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Qualquer um que se informe sobre os recentes acontecimentos no Brasil, seja no

âmbito político, social, econômico, moral ou até no âmbito artístico, depara-se com uma
inquietação que abrange diferentes gerações e insufla um conflito de ideias e distinções
que parecem ter adormecido no tempo para exalar seu aroma agora que o fogo do
caldeirão foi aceso. Uma espécie de dualismo maniqueista se apresenta diante de
qualquer um que procure entender a situação, e tudo que acontece, aparentemente só
pode ser entendido a partir de um dos lados conflitantes. Indo para além das fronteiras,
um observador percebe que obviamente há algo errado com a América Latina,
adicionando ao caldeirão uma substância fumegante que dificulta ainda mais a
compreensão do que está acontecendo nesta parte do mundo. Há uma crise terrível na
Venezuela, uma continuação de mandato de 2006 até 2020 de Evo Morales na
presidência da Bolívia, criminalidade crescendo a níveis estratosféricos em todos os
países latino-americanos. Caminhando um pouco mais para trás, tivemos vários regimes
militares presentes na América Latina no último século. O que significa tudo isso?
Talvez não seja apenas uma doença superficial, mas uma reação epidérmica de uma
enfermidade que atinge o organismo dos países de origem ibérica de maneira profunda.
Coloco desde já, como autor do texto, que minha posição de análise parte de um
viés cristão e católico dos problemas acima mencionados, e ao longo das páginas
procuro examinar e traçar um paralelo entre a moralidade latina e a crise política e
social. Partindo desse pressuposto, levanto as seguintes observações sobre a
sociedade e cultura atuais, já analisadas mais profundamente por Mário Ferreira dos
Santos no seu maravilhoso livro "A Invasão Vertical dos Bárbaros":
- Valorização e incentivo de tudo que afirme bestialidade no ser humano, juntamente
com a exposição tremenda da sensualidade e sexualidade.
- Separação da sociedade em hordas e tribos, como frutos da "consciência social" ou de
vontade popular.
- Disseminação do mau-gosto sob o pretexto de respeito à credos tribais ou
comportamentos primitivos, conforme manifestações artísticas ou culturais dos bandos e
hordas que colorem a sociedade atual. Circunstâncias anormais se exibem como arte
sublime, e o homem honesto é posto como uma figura cômica perdida em um programa
humorístico.
- Habitualidade com a corrupção e relativização do crime. A criminalidade é considerada
em função de quem a cometeu e de quem foi a vítima, podendo o crime até ser
considerado nobre em alguns casos. Ninguém mais é responsável diretamente pelos
seus atos. Há um vitimismo constante que tira dos ombros dos criminosos o fardo de
suas atitudes.
Claramente, esses aspectos desdobram-se em inúmeros problemas, mas
prosseguindo a analogia de um caldeirão fumegante, o acima exposto seria o vapor que
desprende da mistura, e para encontrar a razão da composição do aroma ou odor latino-
americano, é necessário mergulhar nas profundezas e remexer na razão das
convulsões que afligem o continente. Fazendo uma breve consulta popular, a culpa
sempre recairia em problemas de diferenças de colonização, desequilíbrio de rendas e
outros motivos baseados na economia, tendo como solução uma simples reforma sócio-
econômica. Unido ao fato do declínio moral humano, é possível encontrar na história
política a razão para tantos males? Farei uma rápida digressão sobre a formação
política dos países latino-americanos.
A camada superior dos políticos latino-americanos, em grande parte uma
aristocracia formada pela pequena nobreza espanhola, instigados pela Grã-Bretanha e
Estados Unidos – ansiosos pelo comércio na área – e imbuídos com os ideais da
Revolução Francesa, se sublevaram contra a dominação da Coroa. Tivemos o
espetáculo de uma aristocracia dona de terras lutando contra a Coroa Espanhola na
"guerra da libertação", e os estados desunidos da América Latina tiveram que lidar com
problemas de insolúveis desde o seu nascimento. Até então, jamais a forma republicana
de governo fora adotada por países tão pouco qualificados para fazê-la funcionar. Houve
a ascenção de pequenos ditadores locais e uma decadência tão generalizada que as
potências européias nem se preocuparam em lutar para reconquistar terras tão
corrompidas.
No fim de sua vida, o grande libertador da América Simón Bolívar, decepcionou-
se com a não realização de seu sonho na América Latina, prevendo a desunião e o
caudilhismo que seguiria sua morte. Efetivamente, ao ler a "República" de Platão,
apreende-se a tese da transição natural de uma democracia para a tirania, tão
recorrente na história: República de Weimar para a tirania Nazista, Revolução Francesa
e a ascenção napoleônica, Governo Provisório Russo sob Kerensky para a revolução
bolchevique. Não seria diferente com a América.
Contrariamente, no Brasil, vencendo a opção pela monarquia constitucional e
uma continuação da estrutura político-institucional erguida desde a época da colônia,
gozou-se da liberdade sem as comoções democráticas e sem as violências da
arbitrariedade, facilitando o processo político e a unificação territorial em torno da Coroa.
O Brasil se torna, desde a independência, um bastião de estabilidade política na
América do Sul. A monarquia no Brasil também funcionou como uma instituição
internacional, com a união entre a Coroa Portuguesa e a Austríaca, uma das mais
importantes no século XIX. O breve período da regência e as diversas rebeliões e
explosões revoltosas provinciais voltam a confirmar a tese acima mencionada de Platão,
mas novamente, sob a tutela de Dom Pedro II, a moderação volta a circular no âmbito
político nacional. Com a proclamação da República, e após um período de conflitos, o
papel de moderador e guardião do equilíbrio político passa a ser exercido pelas forças
armadas, ou por políticas adotadas pela elite cafeeira, sempre freando os impulsos
ditatoriais, até a ascensão de Getúlio Vargas.
Já outorgaram-se diversas constituições nos 126 anos da nossa República, e as
ditaduras militares na América foram apenas medidas tapa-buraco para a pluralidade
civilizacional dos povos formadores do povo latino-americano e brasileiro, jamais
resolvendo o problema da democracia na América Latina. As constituições servem
apenas como pedaços de papel, sem realmente fazer brotar o denominador comum
que é essencial para o funcionamento de uma democracia. Nos Estados Unidos, a ética
protestante, conforme colocou Max Weber, trouxe muito mais unidade e "espírito de
equipe" para o país, coisa que não ocorre no iberismo europeu, e muito menos no
espírito individualista latino-americano. Os conflitos de opinião adormeceram no Brasil
por razões de domínio cultural midiático nas últimas décadas, mas com a internet e a
facilidade com que informações circulam livremente hoje, acordaram com todo o furor,
mesmo sendo o povo brasileiro historicamente sem inclinação para radicalismos.
Conforme levantado, se um processo político é mais rápido que o
acompanhamento psicológico da população, é necessária uma arbitrariedade ditatorial
para brotar a homogeneidade. Em alguns casos, instaura-se um "reino de terror" –
como na Revolução Francesa – e a diferença histórico-política do Brasil e da América
Latina suporta a tese. Massas se inclinam a eleger demagogos que lhes dão a
impressão de serem auto-governados e representados. Desde a abertura política no
Brasil, é verificável uma proliferação de partidos, sempre com uma tendência a explorar
a diferenças sociais, ocultas sob diversas bandeiras: racismo, ambientalismo,
machismo, e outros ismos. Há um incentivo à degradação moral sob o pretexto de
libertação contra uma cultura opressora. Tudo isso apenas contribui para a
"deseducação democrática" e a contínua falta de unidade, tão essencial em uma
democracia, facilitando com que o estamento burocrático continue seu assalto político.
HÉLIO AMORIM
Primeiro-Tenente
Engenheiro Naval

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