Você está na página 1de 34

ferrovias no brasil 1870-1920

Ana Lúcia Duarte Lanna


Historiadora, Professora Associada do Departamento de História da Arquitetura e Estética do
Projeto da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo

RESUMO ABSTRACT
Este artigo p r e t e n d e analisar diferentes This article intends to analyse the different
processos de c o n s t r u ç ã o de ferrovias e processes o f r a i l w a y c o n s t r u e t i o n a n d
operação de empresas concessionárias des- operation of concessionary railway
tes serviços. Privilegia a análise de duas enterprises.The analysis is focused on two
i m p o r t a n t e s c o m p a n h i a s ferroviárias, A important railway companies, the " C o m -
C o m p a n h i a Paulista de Estradas de Ferro, panhia Paulista de Estradas de Ferro", es-
constituída p r i n c i p a l m e n t e p o r capitais tablished principally with national capitais,
nacionais, e a Brazil Railway, empresa que and the Brazil Railway, which operated in
operava no sul do país e pertencia, no perío- the South of the country and belonged to
do em questão, ao conjunto de empresas the group of companies controled by
controladas pelo g r u p o de Percival Farquhar. Percival Farquhar. T h e analysis also u n d e r -
Pretende discutir as diferentes formas de lines the different forms of operation and
operação e lucratividade destas empresas e profitability of the two companies and high-
destacar os altos lucros obtidos quando da lights t w o contradictory situations they
construção das linhas férreas, contraposto a experimented: the great profits obtained
u m r e c o r r e n t e prejuízo operacional. O s during their constuetion and the frequent
interesses políticos, inserções internacionais losses verified d u r i n g their operation. T h e
e desmandos operacionais revelam uma in- political interests, international insertions
tensa superposição entre interesses públicos and operational mistakes revealed an
e privados que contribuem, decisivamente, intensive articulation b e t w e e n the public
para os problemas enfrentados pelo negócio and private interests, w h i c h c o n t r i b u t e d
ferroviário no Brasil. decisively to the problems faced by the
railway business in Brazil.
P a l a v r a s - c h a v e : ferrovias; Brasil; C o m -
panhia Paulista de Estradas de Ferro; Brazil K e y w o r d s ; railway enterprises; Brazil;
Railway. Companhia Paulista de Estradas de Ferro;
Brazil Railway.

história econômica & história de empresas VIII.1 (2005), 7-40 I 7


Em 31 de o u t u b r o de 1835, p o u c o s anos após Sthevenson ter
posto em m o v i m e n t o a primeira locomotiva, ligando M a n c h e s t e r -
Liverpool, promulgava-se no Brasil a Lei n° 101, conhecida c o m o
Lei Feijó, que autorizava a criação de companhias que visassem cons-
truir u m a "estrada de ferro da Capital do Império para as de Minas
Gerais, R i o Grande do Sul e Bahia", c o m privilégio de uso garantido
p o r 40 anos. Mas apenas em 1854 foram inaugurados os primeiros
quilômetros de via férrea no Brasil. Foi necessário que. se passasse
quase outra década para que ferrovias fossem construídas a fim de
a t e n d e r às p r e t e n s õ e s p o l í t i c o - e c o n ô m i c a s estabelecidas nos anos
1830.
As linhas construídas ao longo das duas primeiras décadas de in-
vestimentos ferroviários no Brasil (1850/1860) eram, em sua m a i o -
ria, de capital inglês e localizaram-se na Bahia, em Pernambuco, no
R i o de Janeiro e em São Paulo, consolidando u m a visão de ocupa-
ção e desenvolvimento do território, que articulava povoamento do
hinterland a p o r t o exportador. Foram "construídas para servir à agri-
cultura de exportação", c o m impactos diferentes nas culturas de cana
1
e café . A participação em empresas ferroviárias foi, em t o d o o m u n -
do, u m a área de atuação dos ingleses, seja no financiamento das vá-
rias empresas nacionais, seja na atuação direta ou, ainda, através da
atividade comercial de exportação de locomotivas e demais materiais
necessários para a viabilidade dos e m p r e e n d i m e n t o s . As atividades
ligadas à m o n t a g e m e à operação das ferrovias faziam, na Inglaterra,
parte do processo de industrialização que desenvolveu o setor de
bens de capital e consolidou as bases da dominação mundial ingle-
2
sa . U m a parcela significativa do material em ferro, utilizado no Bra-
sil, na construção das linhas, das máquinas e das estações, era de
o r i g e m inglesa. Nas décadas de 1850-1860, a m ã o - d e - o b r a qualifi-
cada envolvida na construção das primeiras ferrovias era estrangeira.
Garantia de juros e privilégio de zona, permitindo m o n o p ó l i o na
exploração ferroviária e acesso especial a imensas glebas, n u m m o -

1
M a r i a Lúcia L a m o u n i e r , "Ferrovias, agricultura de exportação e m ã o - d e - o b r a " , in
História econômica e história das empresas, III. 1 (2000), p. 49.
2
Ver, d e n t r e o u t r o s , E. H o b s b a w m , Industry and Empire e A era do capital, 1848-1875
( R i o de Janeiro, 1982), o n d e ferrovias e cidades são apresentadas c o m o os símbolos
exteriores mais impressionantes do capitalismo. Para a i m p o r t â n c i a da indústria de
b e n s de p r o d u ç ã o para o d e s e n v o l v i m e n t o do capitalismo e nela inserida a questão
da indústria ferroviária, ver David Landes, O Prometeu Desacorrentado.

8| Ana Lúcia Duarte Lanna


m e n t o em que se regularizava a propriedade da terra no Brasil, c o n s -
tituíram os mecanismos centrais de atração de investidores, seja no
Império, seja na República. Serão também, c o m o veremos adiante,
um dos principais mecanismos de obtenção de lucros no e m p r e e n -
d i m e n t o ferroviário, no geral mais decisivos do que eventuais divi-
dendos advindos da exploração das linhas férreas.
As ferrovias c o m e ç a m a ser construídas não a partir da Lei Feijó,
em 1835, mas da efetiva garantia de juros e privilégio de zona. Entre
1852 e 1880, são estabelecidos quatro tipos de concessões, c o m dife-
3
rentes prazos de exploração, garantias de juros e privilégio de zona .
A multiplicidade de leis, federais e provinciais, c o m critérios distin-
tos, será um problema, q u a n d o das negociações para renovação de
concessões, obtenção de direitos sobre novos trechos, pagamento de
juros e resgate das linhas pelo governo. De qualquer maneira, a ga-
rantia de juros foi mecanismo mundialmente adotado, sem o qual o
capital não se dispunha a correr riscos. A questão é qual seria a taxa
de r e t o r n o estimulante. Para a Índia, 5% de garantia de juros eram
4
suficientes, para o Brasil 7% . Em 1854, apenas 14,5km de linhas
férreas haviam sido construídas, em 1877, 1.120km e 28.500km em
1920. Apesar da significativa expansão, os quilômetros construídos
foram insuficientes para a constituição de redes e a integração do ter-
ritório, assim c o m o materializavam quantidades menores de linhas
utilizáveis do que o gasto em subvenções, realizado pelo g o v e r n o
brasileiro, para construí-las.
Havia, na história da construção ferroviária no Brasil, u m a d i -
mensão política fundamental, expressa em interesses gerais e p a r -
ticulares que definiram as leis, os traçados, os incentivos e as incor-
p o r a ç õ e s , fazendo d o p o d e r p ú b l i c o , desde s e m p r e , u m p a r c e i r o

3
Em 1852, a concessão era p e r p é t u a , c o m garantia de j u r o s p o r 90 anos e definição de
capital m á x i m o e privilégio de z o n a de 6 6 k m ; o resgate da linha pelo Estado seria
possível após 30 anos. Em 1874, é introduzida a concessão t e m p o r á r i a , m a n t ê m - s e
a garantia de j u r o s e o privilégio de zona é r e d u z i d o para 6 0 k m . Em 1 8 7 8 , a garantia
de j u r o s é reduzida para 30 anos, o capital garantido fixado no ato do c o n t r a t o e o
privilégio de z o n a r e d u z i d o para 4 0 k m . P o r fim, em 1880, as concessões passam a ser
temporárias e de prazo m á x i m o de 90 anos, após o q u e a linha passa a p e r t e n c e r ao
Estado, a garantia de j u r o s d e p e n d e do custo inicial da linha e será paga p o r no
m á x i m o 30 anos e o privilégio de zona é r e d u z i d o para 2 0 k m .
4
R. M a t t o o n . " T h e C o m p a n h i a Paulista de Estradas de Ferro, 1 8 6 8 - 1 9 0 0 : a local
railway e n t e r p r i s e in São Paulo, Brazil". Tese de D o u t o r a m e n t o , Yale University,
1 9 7 1 , p. 3 6 .

Ferrovias no Brasil 1870-1920 |9


indispensável à existência das ferrovias, m e s m o q u a n d o construídas
5
e operadas p o r capitais privados, nacionais ou estrangeiros . A distri-
buição da rede ferroviária no Brasil é crescentemente desigual em
relação ao território nacional.
A concessão para a construção e a exploração das linhas era um
p r i m e i r o e fundamental m o m e n t o da articulação entre e m p r e e n d i -
m e n t o e c o n ô m i c o e práticas políticas. Políticos e e m p r e e n d e d o r e s
locais o b t i n h a m o direito de implantar u m a linha ferroviária. C o m
este título, negociavam parceiros e instituíam um g r u p o fundador,
que realizava lucros significativos ao pagar em ações aos que tinham
6
obtido a concessão, sem despender para isto n e n h u m capital . A as-
sinatura de contratos, a obtenção de garantias de juros e do paga-
m e n t o dos mesmos, i n d e p e n d e n t e m e n t e da realização das obras acor-
dadas, assim c o m o a precariedade dos canais de fiscalização são outras
características essenciais desta relação entre estado e economia, c o n -
solidando u m a imensa superposição entre b e m público e interesse
privado. A contratação de trabalhadores, a gestão das empresas e a
c o m p r a das c o m p a n h i a s pelo g o v e r n o , q u a n d o estas enfrentavam
sérias dificuldades, c o m p l e t a m este q u a d r o r e c o r r e n t e e estrutural
de práticas políticas ilícitas que c o n t a m i n a m e perpassam o sistema
ferroviário do país. A documentação é farta em exemplos e d e n ú n -
cias acerca desta nefasta relação entre política e exploração ferroviá-
7
ria no Brasil .
As características e os problemas destas primeiras ferrovias a p o n -
tavam para questões que se revelarão estruturais: a imperiosidade de
intervenções do governo para estimular investimentos em serviços
públicos e os recorrentes desmandos, falcatruas e corrupção, associa-

5
C o l i n Lewis (Public policy and private initiative: railway building in São Paulo 1860-
1889. L o n d r e s , 1991) afirma q u e as ferrovias financiadas p o r capitais nacionais e
subvencionadas pelo G o v e r n o Imperial faziam p a r t e de tentativas de definição de
u m a política nacional sobre a implantação de u m a rede ferroviária q u e considerava
as possibilidades de i n t e g r a ç ã o regional e nacional q u e p o d e r i a m daí resultar.
6
Flávio Saes."Os investimentos franceses no Brasil: o caso da Brazil R a i l w a y C o m p a n y
1 9 0 0 - 1 9 3 0 " , in F. M a u r o , Transport et commerce en Amerique Latine. Paris, H a m a t t a n ,
1990 p. 9 4 .
7
A n t o n i o M a n u e l H e s p a n h a , ao estudar o estado no A n t i g o R e g i m e P o r t u g u ê s ,
afirma c o m o característica central a ausência de soberania q u e mesclava ou invia-
bilizava a n o ç ã o de p ú b l i c o c o m o c o n t r a p o s t o à sociedade civil. I l m a r M a t t o s (O
tempo Saquarema) discute a construção da cidadania no Brasil em finais do século
XIX.

10 | Ana Lúcia Duarte Lanna


dos à gestão destes negócios "públicos". O engenheiro civil Francisco
Calaça, em 1876, quando apenas se delineavam os problemas e as
características da m o n t a g e m de u m a rede ferroviária no Brasil, já
apontava, de forma enfática, os vários desmandos administrativos e
destacava a corrupção c o m o um imenso problema, a contaminar e
inviabilizar a exploração ferroviária.

Assumindo que esta indistinção entre a coisa pública e o interesse


particular é o elemento c o m u m aos diversos empreendimentos ferro-
viários no Brasil, torna-se essencial procurar compreender as relações
entre o capital disponibilizado para a construção e a manutenção das
linhas c o m o governo.
A articulação entre o governo brasileiro, as companhias de estra-
das de ferro e o capital financeiro internacional é r e c o r r e n t e m e n t e
apontada c o m o geradora de contratos irrealizáveis, de benefícios e
custos ilícitos e da má qualidade dos traçados e das linhas implantadas.
Estas, c o m u m e n t e , custavam muito mais do que o previsto, apresen-
tando u m a qualidade em geral inferior à necessária para o funciona-
m e n t o adequado das ferrovias.
A tumultuada história da linha S ã o P a u l o - R i o G r a n d e ( S P R G ) ,
localizada na R e g i ã o Sul do país, explicita b e m estas relações. Em
1889, o G o v e r n o Imperial entrega a concessão ao engenheiro Teixeira
8
Soares que, associando-se a L e g r u , lança, de forma fracassada, u m a

8
Legru, francês, nasceu em 1846. Era comerciante e declarou falência em Seine e Oise.
Em 1880, assumiu a gerência da fábrica de açúcar dirigida p o r seu pai. Os dois foram
a b a n c a r r o t a e, para evitar p r o b l e m a s maiores, ele sai da França e n t r e 1 8 8 3 e 1889,
i n d o para o C a n a d á e a Bélgica. Fez fortuna na A m é r i c a e teceu ali u m a rede de
relações q u e o auxiliaram a participar cada vez mais de n e g ó c i o s a m e r i c a n o s . Volta
para a França em 1 8 8 9 e funda, na 11 R u e Louis le G r a n d , i m p o r t a n t e casa financei-
ra. Este n o b r e e n d e r e ç o será t a m b é m , na p r i m e i r a década do século X X , o e n d e r e ç o
oficial em Paris da Brazil R a i l w a y C o m p a n y , firma de Percival Farquhar. L e g r u é
f u n d a d o r ou a d m i n i s t r a d o r de vários n e g ó c i o s industriais, n o t a d a m e n t e a S o c i e d a d e
A n ô n i m a de Fosfatos Tocqueville (Argélia); Sociedade Mineira e Industrial R o t c h e n k o ;
S o c i e d a d e de Altos F o r n o s e Acerias na Rússia; C o m p a n h i a Francesa do P o r t o do
R i o G r a n d e d o Sul; C o m p a n h i a d e T r a n w a y C a n a d e n s e , q u e opera n o R i o d e
Janeiro. H o m e m d e excelentes relações, morava n a 4 , R u e M u r i l l o , p a g a n d o u m
aluguel anual de 5.500frs. T i n h a um estilo de vida m e m o r á v e l . Possuía um iate, O
Apache, no qual organizava, c o m estardalhaço, recepções ao l o n g o de seus cruzeiros
pelo litoral francês. D e p o i s de ter m a n t i d o n u m fausto, quase escandaloso, a " d i v a "

Ferrovias no Brasil 1870-1920 | 11


primeira série de títulos referentes ao e m p r e e n d i m e n t o no merca-
do de Paris.
Sob sua orientação, são criadas empresas e subdivididos os tre-
chos — objetos da concessão. Estabelece-se, então, um primeiro con-
fronto acerca dos reais detentores dos direitos sobre as linhas. A di-
reção da empresa ficará nas mãos de brasileiros até 1906. Os dois
diretores d o p e r í o d o , A n t o n i o R o x o R u i z e Fernandes Pinheiro,
nos seus relatórios revelam a existência de embates e desmandos
administrativos referentes à concessão de empréstimos e à aplicação
9
de recursos . O fato é que a companhia não constrói os trechos acor-
dados, apesar de receber do governo brasileiro o m o n t a n t e de capi-
tal referente à garantia de juros de 30.000$00 por km construído.
Através de compra de ações, a empresa será, a partir de 1909, c o n t r o -
lada pelo g r u p o de Percival Farquhar, a Brazil Railway Company,
constituindo-se na linha mestra da rede pretendida. A permanência
dos desmandos e dos descontroles acentua-se. Os relatórios de fis-
calização, produzidos p o r M. Sengès, a partir de 1908, explicitam os
problemas que marcam a referida linha. Este engenheiro fiscal, fran-
c a m e n t e antiamericano, afirma que, apesar da má qualidade da li-
nha, construída até a chegada do "sindicato a m e r i c a n o " , os gastos
eram mais controlados pela administração brasileira, que teria inves-
tido na construção apenas o m o n t a n t e de capital de q u e p o d e r i a
dispor, em função das garantias acertadas c o m o governo federal. O
g r u p o d a Brazil R a i l w a y C o m p a n y ( B R C ) ter-se-ia p r e o c u p a d o
em construir u m a linha em condições técnicas mais favoráveis, mas

Arlette D o r g e r e , t o m o u p o r a m a n t e a artista lírica Mlle. Frevalles". Estas i n f o r m a -


ções fazem p a r t e de um l o n g o dossiê elaborado pela Polícia de Paris para averiguar,
em 1914, as d e n ú n c i a s de i m p r o b i d a d e s c o m e t i d a s p o r Percival F a r q u h a r e sua
holding, a B R C . O dossiê i n f o r m a sobre várias empresas e atividades de Farquhar e
alguns de seus parceiros, d e n t r e eles, M. Bayens, d o n o da empresa de wagons-lits, M r .
Pearson, p r e s i d e n t e d a Light and P o w e r n o R i o d e Janeiro, M . C h a u v y , e J o ã o
Teixeira Soares. "Prefecture de Police C a b i n e t du Préfet 1er B u r e a u " , in Diredion
Politique et Commerciale Série B, cartton 178, dossier 30d. Paris, fevrier de 1914, pp.
126/129, MAE/Paris.
5
A leitura dos relatórios e n c a m i n h a d o s aos acionistas revela u m a tensão entre estes
dois dirigentes. F e r n a n d e s P i n h e i r o , ao assumir a direção, sugere q u e R o x o R u i z
teria gastado, de forma inadequada, recursos provenientes de e m p r é s t i m o s obtidos
para a c o n s t r u ç ã o da S P R G . Afirma q u e sua gestão realizou u m a a d e q u a d a fiscaliza-
ção dos recursos e c o n t e n ç ã o dos gastos. R o x o R u i z volta a o c o m a n d o d a S P R G
em 1 9 0 1 , o n d e ficará até v e n d e r suas ações para a B R C , q u e assume e n t ã o o c o n t r o l e
d o e m p r e e n d i m e n t o ( A N P F V M 7 5 4 A 31).

12 | Ana Lúcia Duarte Lanna


não teria efetuado n e n h u m controle sobre os gastos. A c o n s e q ü ê n -
cia é que dilapidaram todo o capital referente à garantia de j u r o s ,
construindo apenas metade das linhas acordadas. Este descompasso
deve-se a u m a prática governamental em que, u m a vez definidos o
m o n t a n t e a ser pago c o m o subvenção quilométrica e as dimensões
das linhas a serem construídas, se liberava, semestralmente, o d i -
nheiro referente ao conjunto dos trabalhos acordados e não em r e -
lação às obras efetivamente concluídas ou em andamento.
Desta forma, temos que o total de linhas a serem construídas pelo
g r u p o de Percival Farquhar, sob o regime de subvenção quilométrica,
perfazia um total de 2.478km. Em 1913, às vésperas da falência do
grupo, estavam construídos 1.409km, ou seja, aproximadamente 57%
do total. E n t r e t a n t o , o g o v e r n o r e p u b l i c a n o já t i n h a l i b e r a d o o
equivalente a 92% (L9.516.459) do m o n t a n t e referido às garantias
acordadas para a totalidade das linhas (os 2.478km). Isto significava
que a B R C tinha a receber L790.943 e a construir, 1.069 k m . M a n -
tido o nível das despesas efetuadas, seriam necessários, para concluir
a obras, mais L4.489.585. Estes n ú m e r o s indicam a impossibilidade
de conclusão do traçado proposto, pois havia unanimidade em afir-
10
mar que, sem as garantias governamentais, nada se construiria . C o -
locado o impasse, são produzidos vários relatórios e pareceres de
advogados, justificando a liberação de mais recursos e a não ruptura
dos direitos de concessão p o r parte do governo federal. O desenlace
deste impasse encontrava-se inconcluso nos anos 1930. Mas o g o -
v e r n o continuava a realizar os pagamentos referentes aos acordos
estabelecidos, acrescidos de 30% do valor inicialmente estipulado; a
linha não tinha sido concluída, seja na mera quantidade de quilô-
metros a serem disponibilizados para o tráfico, seja no c u m p r i m e n t o
de qualidades técnicas. Neste ínterim, o g r u p o de capitalistas " a m e -
ricanos" - o sindicato Farquhar — já tinha tido sua falência decretada.

10
A l b e r t o G a s t o n Sengès, e n g e n h e i r o fiscal, chefe do distrito. Lettre Officiele nº 48.
Confidentiel. Cópia do Relatório do 12 distrito de Inspeção Federal das Ferrovias, encami-
nhado ao Sr.Jose Eustaquio de Lima Brandão. Curitiba, 29 de setembro de 1913 ( A N P F V M
7 5 4 A 35). Na farta c o r r e s p o n d ê n c i a trocada entre os diretores da B R C , d e s t a c a m -
se os i n c ô m o d o s e os transtornos causados p o r este fiscal. As disputas p e l o p o d e r no
R G S t a m b é m são p o n t u a d a s c o m o essenciais para a definição dos traçados das
linhas e dos benefícios a serem obtidos. Em carta pessoal, F a r q u h a r aponta B o r g e s de
M e d e i r o s c o m o i n i m i g o e o p o s i t o r do seu projeto. E n t r e t a n t o , destaca a adesão de
P i n h e i r o M a c h a d o , depois de várias "conversas í n t i m a s " e de c o m o este ú l t i m o
controla a bancada de seu estado nos órgãos legislativos ( A N P F V M 7 5 4 A 35).

Ferrovias no Brasil 1870-1920 | 13


Apesar disto, c o n t i n u a v a m a d m i n i s t r a n d o a ferrovia h o m e n s que
foram, ao longo de sua trajetória, parceiros decisivos daquele grupo,
tais c o m o Teixeira Soares e Geraldo R o c h a .
A partir dos anos 1870, ocorre u m a mudança significativa no que
se refere aos capitais envolvidos na construção e na operação das
ferrovias no Brasil. A C o m p a n h i a Paulista de Estradas de Ferro
(CPEF), que operava no interior do estado de São Paulo, é exemplo
pioneiro. Nela, os capitais envolvidos serão basicamente nacionais e
a m ã o - d e - o b r a qualificada, crescentemente nacional.

O f e n ô m e n o i m p o r t a n t e a destacar deste processo, a l é m da


evidente centralização dos capitais é a transmutação sofrida pelo
investidor em companhias ferroviárias: o grande m e l h o r a m e n t o
deixava de ser visto simplesmente c o m o meio de transporte para
11
ser encarado c o m o oportunidade de aplicação de capitais .

As ferrovias demandavam, para serem implementadas, " u m a m a g -


nitude de inversões m u i t o acima da capacidade individual ou fami-
12
liar" . A presença do Estado, concedendo privilégio de zona e garantia
de juros, foi essencial. Além disto, a figura do concessionário, aquele
q u e d i s p u n h a do direito de organizar, em prazo estipulado, u m a
companhia nacional ou estrangeira para viabilizar o e m p r e e n d i m e n t o
13
era imprescindível para estudos de viabilidade, prospecções, c o n -
tratação de técnicos, engenheiros, empreiteiros, subscrição de ações,
enfim, um processo de dimensões desconhecidas no Brasil.

11
José C e c h i n , op. cit. p. 3 0 . O a u t o r faz esta afirmativa a partir da apresentação do
processo de i n t e g r a ç ã o h o r i z o n t a l das ferrovias do n o r t e fluminense e sudeste m i n e i -
ro. T a m b é m destaca as diferenças entre as ferrovias da cana e do café, a partir da
rentabilidade do investimento.
12
Idem,p. 32 e seguintes, o n d e explica os passos necessários para a implantação de u m a
estrada de ferro.
13
Foi assim q u e M a u á p a r t i c i p o u da c o n s t r u ç ã o de muitas ferrovias. As concessões
foram a forma privilegiada q u e o Estado brasileiro e n c o n t r o u , em fins do século
X I X e início do X X , para implantar toda u m a r e d e de serviços de infra-estrutura q u e
incluía água, luz, esgoto, etc. Percival Farquhar era t a m b é m c o n h e c i d o c o m o " c a ç a -
d o r de c o n c e s s õ e s " e teve, nos primeiros anos da R e p ú b l i c a , t a m a n h o p o d e r q u e há
q u e m o tivesse c o m p r e e n d i d o sob a ótica da ameaça à soberania n a c i o n a l . Ele
c h e g o u a deter 2 7 % das ações da M o g i a n a e 4 0 % da C o m p a n h i a Paulista. Ver Paul
Singer, " O Brasil n o c o n t e x t o d o capitalismo internacional, 1 8 8 9 - 1 9 3 0 " i n B o r i s
Fausto (Org.). História Geral da Civilização Brasileira, t o m o III, v. 1. São Paulo, 1 9 8 9 .

14 | Ana Lúcia Duarte Lanna


Na construção da Estrada de Ferro ligando P a r a n a g u á - C u r i t i b a ,
vemos acontecer, ainda no período imperial, u m a disputa que esta-
belecia o traçado da linha férrea, definindo-o em função de interes-
ses políticos q u e envolviam, p o r um lado, os irmãos R e b o u ç a s e,
por outro, a influente família paranaense Correia. A decisão favorá-
vel à família de oligarcas, tendo p o r base de poder local justamente
o p o r t o de Paranaguá, que, c o m o traçado definido, se transformaria
no grande e praticamente exclusivo canal de escoamento de toda a
p r o d u ç ã o de erva m a t e do planalto, significou o afastamento de
R e b o u ç a s do regime monárquico, do Imperador e o a b a n d o n o de
14
suas pretensões empresariais .
Em 1879, a C o m p a g n i e Génerale des C h e m i n s de Fer Brésiliens
( C G C F B ) , empresa de 3/4 de capital francês, substitui os primeiros
concessionários. O contrato previa a concessão p e r p é t u a , garantia
de 7% ao ano, p o r 30 anos, para um capital de 11.492:042$000
(32.500.000fr). As dificuldades encontradas na construção da linha
justificam a emissão de obrigações e, a partir de 1884, os acionistas
não recebem mais dividendos. Entre 1887 e 1902, quando é resgata-
da pelo g o v e r n o brasileiro, o c o r r e r a m sucessivas negociações para
ampliar capitais garantidos, tal c o m o já havia o c o r r i d o c o m a c o m -
panhia inglesa Recife-São Francisco e c o m a São Paulo Railway.
A linha Paranaguá-Curitiba é um feito de engenharia tão espeta-
cular quanto a São Paulo Railway. E a sua lucratividade t a m b é m tão
excepcional q u a n t o a de suas parceiras paulistas, envolvidas c o m o
transporte da produção cafeeira. A C G C F B controlará parcelas sig-
nificativas do comércio da erva-mate, n u m m o m e n t o de exporta-
ções crescentes para a Argentina e demais países do c o n e sul. Os
resultados da exploração são maiores do que a garantia de juros, tal
c o m o ocorrerá na Santos Jundiaí e na Paulista. Apesar disto, a c o m -

14
Para esta discussão, ver Maria Alice R e z e n d e de Carvalho, O quinto século: André
Rebouças e a construção do Brasil. R i o de Janeiro, R e v a n , 1998 pp. 1 1 8 / 1 2 0 ; A n d r é
R e b o u ç a s , Diário e notas autobiográficas. R i o de Janeiro, José O l y m p i o , 1938. No início
dos anos 1870, os irmãos R e b o u ç a s o b t ê m a concessão de u m a linha férrea ligando
A n t o n i n a a C u r i t i b a , sem garantia de juros. Em 1875, A n d r é R e b o u ç a s tenta reativar
o projeto q u e tivera c o m o m e n t o r seu i r m ã o A n t o n i o , já falecido. É neste m o m e n t o
que perde para os interesses da família Correia. Em 1874, R e b o u ç a s fazia parte do
g r u p o q u e obteve a concessão para a construção da primeira estrada de ferro na
Paraíba e q u e passa a negociar c o m capitalistas londrinos as possibilidades e as vanta-
gens para a construção das linhas n u m a prática recorrente de benefícios pessoais e
lucros especulativos.Ver Gervácio Aranha, op. cit. cap. III, especialmente p p . 1 5 6 / 1 6 0 .

Ferrovias no Brasil 1870-1920 | 15


\

panhia encontra dificuldades em colocar novos títulos no mercado


internacional, necessários para viabilizar a extensão da linha até Ponta
Grossa. As inseguranças geradas pela "revolução" de 1889 no merca-
do internacional são apontadas c o m o causa destas dificuldades. As
negociações com o governo brasileiro para cessar o pagamento da ga-
rantia de juros, em troca de câmbio favorável para pagamento das obri-
gações, foram realizadas p o r M. Leon Maître e por Teixeira Soares.
D e s d e então, o e n g e n h e i r o Teixeira Soares, "financista brasileiro
b e m c o n h e c i d o , m e m b r o d o C o n s e l h o Administrativo d o B a n c o
Francês no Brasil, e n g e n h e i r o conselheiro da C G C F B e m e m b r o
15
correspondente da Sociedade de Engenheiros Civis na França" e
primeiro concessionário da linha S P R G , aparece c o m o o mais i m -
portante intermediário entre os interesses da companhia e o gover-
no federal. Estabelecem-se aí os vínculos c o m o então administra-
dor da C G C F B , M. Cerjat, vínculos que serão mantidos e reforçados
n o e m p r e e n d i m e n t o d a B R C . Teixeira Soares a c o b e r t a t o d o s o s
desmandos de Cerjat na direção da empresa, inclusive quando este,
aparentemente, se associa aos revoltosos de 1893/1894, que se a p o -
16
d e r a m da linha c o m o parte de estratégia separatista . Finda a revolta,
Teixeira Soares e Cerjat escrevem várias cartas em que descrevem o
que teriam sido os terríveis m o m e n t o s passados nas mãos dos cruéis
revoltosos. Teixeira Soares afirma que, apesar de todas as dificulda-
des, Cerjat soube preservar a linha e seus equipamentos. O C o r o n e l
encarregado de presidir o Tribunal Militar em Curitiba, discordan-
do desta versão, indicia Cerjat, por ter estabelecido parceria c o m os
revoltosos. No ano segui-nte, Teixeira Soares aparece envolvido na
m o n t a g e m da S P R G , associado não só a personagens declaradamente
suspeitos, c o m o o Sr. Delanay, que se diz engenheiro sem sê-lo, como,
17
mais u m a vez, ao já citado M. L e g r u .

15
" C o m p a g n i e des C h e m i n s de Fer du Paraná, confidentielle, n° 7 8 " , 8 de o u t u b r o de
1897, in Correspondance Politique et Commerciale, N o u v e l l e Serie, 1 8 9 7 / 1 9 1 8 , t o m o
27, M A E / P a r i s .
16
São i n ú m e r o s os relatórios enviados pelos representantes consulares franceses sobre
a R e v o l t a da M a r i n h a , m o s t r a n d o a articulação entre a armada c o m a n d a d a p o r
C u s t ó d i o de M e l o e os revoltosos, q u e , vindos do R i o G r a n d e do Sul, c o n t r o l a m os
t e r r i t ó r i o s do sul e as linhas férreas. A violência dos combates e a existência de
t o r t u r a e m relação aos revoltosos d e r r o t a d o s são m i n u c i o s a m e n t e d e s c r i t o s n a
C o r r e s p o n d a n c e Politique, M A E / P a r i s .
17
Correspondance Politique et Commerciale, N o u v e l l e Serie, 1 8 9 7 - 1 9 1 8 , C h e m i n s de Fer
I, dec 1891 a j u i n 1897, t. 2 6 , M A E / P a r i s .

16 | Ana Lúcia Duarte Lanna


A parceria de Cerjat, Teixeira Soares e Legru reafirma-se em 1899,
quando os dois primeiros avaliam, para o consórcio do banco Paris
et Pays Bas e a sociedade Dyle et Bacalan, o eventual interesse na
compra da Sorocabana. A firma explicitamente interessada na c o m -
pra da ferrovia é a do capitalista inglês Schoreder, que havia recente-
m e n t e realizado empréstimo de 1.000.000 de libras para o estado de
São Paulo. As conclusões encaminhadas afirmam que a compra da
ferrovia só seria e c o n o m i c a m e n t e rentável se feita através de inter-
mediações c o m o governo brasileiro, que estabeleceria todas as ga-
rantias de juros necessárias para fazer do e m p r e e n d i m e n t o um n e -
gócio interessante. Apenas adquirir a companhia seria um péssimo
negócio, pois ficariam c o m o ônus da exploração e a obrigatoriedade
de realizar lucros.
Em 1909, Legru e Teixeira Soares p e r m a n e c e m associados, ao rei-
v i n d i c a r e m j u n t o ao g o v e r n o brasileiro concessões para explorar,
c o m exclusividade, as ferrovias no estado de Santa Catarina. A e x -
clusividade pretendida incluiria t a m b é m as reservas minerais e r e -
forçaria o controle do "sindicato a m e r i c a n o " ( B R C ) , que teria por
objetivo o controle sobre todas as linhas férreas do sul do país, além
de arrebanhar quantidades incomensuráveis de terras, em função da
18
garantia de zona .
Em 1913, foi veiculado pelo jornal Moniteur Economique et Financia
um conjunto de artigos assinados por H. A. Bromberger, denuncian-
do a criação de companhias ferroviárias no estrangeiro que faziam
evadir, sem n e n h u m controle, divisas da França. O autor analisa, t o -
m a n d o c o m o referência os balancetes e os relatórios oficiais de várias
c o m p a n h i a s , os e m p r e e n d i m e n t o s em vários países da A m é r i c a e
acaba p o r afirmar que o Brasil conseguia destacar-se neste quadro
19
de especulações e d e s m a n d o s .
R a p i d a m e n t e a maioria das estradas construídas no Brasil ficou
deficitária e seus acionistas saíram em busca de empréstimos ou de
grupos interessados em encampá-las. Neste m o m e n t o , que coincide
c o m os anos iniciais da República e c o m u m a crescente disponibili-
dade de capitais na Europa, decorrente da saída da crise econômica
que marcou as décadas finais do século X I X , ocorreu u m a decisiva
entrada de capitais de origem francesa.

18
Projects des c h e m i n s de fer en Santa Catarina. Correspondance Politique et Commerciale,
N o u v e l l e Serie, t. 2 8 , dossie 3, de 27 de n o v e m b r o de 1909, M A E / P a r i s .
19
H. A. B r o m b e r g e r , Les chemins de fer exotiques. Paris, E d . M o n i t e u r E c o n o m i q u e , 1913.

Ferrovias no Brasil 1870-1920 | 17


Os investimentos franceses faziam-se sobre, basicamente, três for-
mas: os fundos do estado, as debêntures e as ações. O n ú m e r o de
títulos negociadas no mercado oficial da Bolsa de Paris passa de 26,
20
em 1880, para 114, em 1914 , sendo que os títulos de rendimento
fixo (obrigações e fundos de estado) representavam cerca de 80%
dos valores investidos. Em 1902, a França tinha 30.000.000 de fran-
21
cos aplicados em valores estrangeiros . A maior parte destes recur-
sos foi destinada a outros países europeus. D o s valores investidos na
América Latina, 28,6% foram para a Argentina, 21,5% para o Brasil e
9 , 3 % para o México. Estes valores t e n d e m a crescer até a década de
1910 e, de forma crescente para o Brasil, sobretudo através da n e g o -
ciação das obrigações na Bolsa de Paris. Em 1902, o Brasil teria r e -
cebido p e r t o de 700.000fr, sendo que a B R C concentrava aproxi-
m a d a m e n t e 2 5 % do total destes investimentos. Muitos destes títulos,
negociados na Bolsa de Paris, envolviam investimentos de caráter
especulativo e, rapidamente, se revelaram maus negócios para os in-
22
vestidores franceses .
Os e m p r e e n d i m e n t o s ferroviários foram capazes de atrair e m o -
bilizar m i l h õ e s de francos a partir das últimas décadas do século
X I X até a eclosão da I Guerra. Mas esta disponibilidade de capitais
não foi capaz de reverter um quadro de ineficiência administrativa e
improbidade acerca da coisa pública, velhas conhecidas na socieda-
de brasileira. Pelo contrário, os custos envolvidos na atração destes
capitais revela, em alguma medida, os riscos de investimento em um
país o n d e t u d o se fazia p o r ações de políticos, no estabelecimento
de contratos irrealizáveis e na p e r m a n e n t e necessidade de pagamento

21
E m i l e B e c q u é . L'Intemationalisation des capitaux.Paris, 1912, p. 17.
21
Este valor eqüivale a a p r o x i m a d a m e n t e 2 0 6 . 0 0 0 . 0 0 0 de francos atuais, ou 3 1 . 4 0 4 . 5 0 0
euros.
22
N o s anos 1870, a posição da França no c o m é r c i o internacional se degrada. No
p e r í o d o entre 1896 a 1905 o c o r r e o início de u m a retomada do crescimento, marcada
pela expansão industrial.Analisando a r e t o m a d a do crescimento e c o n ô m i c o francês,
Barjot c h a m a a a t e n ç ã o para u m a bibliografia q u e até os anos 1960 destacava o
caráter essencialmente c o n s e r v a d o r do investidor francês, o que significaria a a u s ê n -
cia de um espírito de e m p r e e n d e d o r pelos patrões franceses. Pesquisas recentes
relativizam esta afirmativa, destacando um papel i n o v a d o r em tecnologia e no papel
dos técnicos. M e s m o estes n o v o s dados n ã o alteram o perfil conservador e rentier do
investidor francês, o n d e , p o r e x e m p l o , a prática de investimentos em ações n ã o
atingirá 2 0 % de t o d o s os investimentos antes dos anos 1920. D o m i n i q u e Barjot et al.
La France au XIX siècle. Paris, P U F , 1 9 9 5 , p p . 3 7 8 / 3 8 7 .

18 | Ana Lúcia Duarte Lanna


de taxas e sobretaxas para viabilizar os negócios. Assim, as diferentes
séries de papéis negociados nas bolsas de Paris e Londres são s e m -
pre marcadas p o r taxas onde nunca se paga 100% do valor impresso.
Seja p o r " i m p r o b i d a d e administrativa", p o r assumir dívidas fi-
nanceiras impagáveis, ou por estarem atreladas ao tráfego de um único
p r o d u t o , o fato é que, nos 50 anos aqui estudados, vemos, via de
regra, as empresas iniciarem suas atividades e n q u a n t o e m p r e e n d i -
mentos privados, seja de capital nacional ou estrangeiro, usufruindo
garantia de juros, subvenção quilométrica e privilégio de zona, rea-
lizando lucros no processo da construção e a c u m u l a n d o prejuízos
durante a exploração.

O lucrativo processo de construção destas estradas esteve marca-


d o p o r u m a i m p r e s s i o n a n t e m o r t a n d a d e . A o a d e n t r a r e m regiões
inexploradas, trabalhadores e engenheiros, todos os envolvidos n a -
quela aventura, foram atacados e dizimados aos milhares. Alencar
Araripe, ao escrever sobre a história da Estrada de Ferro V i t ó r i a -
Minas, descreve a situação da construção no ano de 1904, " a r r e m e -
tendo contra o desconhecido, ela (ferrovia) travou batalha formidá-
vel, v e n c e n d o distâncias e n o r m e s , a solidão, a i n s a l u b r i d a d e das
regiões quase inóspitas, cobertas de florestas e charcos, m e i o hostil,
23
devorador de vidas" . Na construção da Estrada de Ferro do Paraná
( P a r a n a g u á - C u r i t i b a ) , m o r r e r a m t a m b é m milhares de t r a b a l h a d o -
res, nacionais e estrangeiros. A malária matava de forma espantosa,
"bastando dizer que para manter 3.400 h o m e n s em serviço foi n e -
cessário contratar 9.000 e que em certa ocasião estavam nos h o s -
2 4
pitais, m o n t a d o s pelo empreiteiro 5.800 h o m e n s " . Ao estudar a
M a d e i r a - M a m o r é , Francisco F o o t - H a r d a m a n apresenta um quadro
trágico a respeito das duas tentativas de construção desta estrada que,
sem objetivos claramente definidos, se apresentava c o m o "aparente
vitória do capital sobre o trabalho e a natureza", m o d e r n i d a d e na
selva. Em 1872, n u m a associação complexa de capitais bolivianos e

23
Alencar Araripe, História da Estrada de Ferro Vitória Minas, citado p o r Lea B . R . R o s a ,
" A Estrada d e Ferro V i t ó r i a - M i n a s , 1 8 9 0 - 1 9 4 0 " . Dissertação d e M e s t r a d o , H i s t ó -
n a - U S P , 1976, p. 9 6 .
24
P e d r o Silva Telles, História da engenharia no Brasil. R i o de Janeiro, 1984, p. 3 3 6 . Estas
referências são para o a n o de 1 9 1 3 .

Ferrovias no Brasil 1870-1920 | 19


ingleses, e recorrentes socorros do G o v e r n o Imperial brasileiro, ini-
cia-se, sob o c o m a n d o de G. C h u r c h , a construção da ferrovia. M a r -
cada p o r sucessivos fracassos, até ser definitivamente a b a n d o n a d a ,
em finais da década de 1870, esta primeira história da ferrovia será
marcada p o r milhares de mortes e p o r u m a debandada geral, que
d e i x o u para trás e q u i p a m e n t o s , depósitos, casas de e n g e n h e i r o s e
apenas sete quilômetros de estrada construídos. No início do século
X X , a empreitada é retomada e, agora, auxiliada pelo saber m é d i c o -
sanitário, manterá as mortes n u m patamar de 2 5 % dos envolvidos na
construção. Entretanto, neste processo macabro, as taxas de reposi-
ção destes h o m e n s mortos são impressionantes, contratando-se 2.450
25
trabalhadores em 1908 e 5.664 em 1 9 9 1 .
Os múltiplos processos de transferência de concessões, aquisição
de controle acionário, resgate das linhas e a r r e n d a m e n t o posterior
implicam u m a crescente concentração das linhas que leva à consti-
tuição de grandes companhias. Em 1900, as ferrovias no n o r t e do
país eram, apesar da existência de planos gerais que visavam realizar
i n t e r c o n e x õ e s entre as linhas existentes e p o r construir, marcadas
pelo isolamento. A constituição da Great Western, c o m 1.200km em
4 estados, não configura a existência de u m a rede, p o r q u e interliga
pequenas ferrovias e em áreas exíguas, sendo que nunca dispensou
ou superou outros meios de transporte, n o t a d a m e n t e o de tração
26
animal . N o s anos 1910, continuava-se a acreditar na possibilidade
de constituição de redes. Desde sempre a presença do Estado foi
essencial, não apenas c o m o órgão fiscalizador ou detentor do direito
de ceder as concessões de exploração, mas atuando ativamente n u m
p r o c e d i m e n t o de "salvamento das empresas privadas em a p u r o s " ,
fossem elas nacionais ou estrangeiras. Esta intervenção, ao m e s m o
t e m p o em que garantia a manutenção dos interesses e dos privilégios
dos capitais e dos grupos privados, mantinha em funcionamento as

25
Percival Farquhar a t u o u nesta segunda fase de construção da ferrovia. Inserida no
m e i o da selva, s e m m o t i v a ç õ e s e c o n ô m i c a s explícitas, esta ferrovia expressa, na
análise de F o o t - H a r d a m a n , as trágicas condições às quais o capital s u b m e t e o traba-
lho nos seus grandes e novos e m p r e e n d i m e n t o s aqui e no m u n d o . Veja Francisco
F o o t - H a r d m a n . Trem Fantasma, a modernidade na selva. São Paulo, C o m p a n h i a das
Letras, 1988.
26
G e r v á c i o Aranha. " T r e m , m o d e r n i d a d e e i m a g i n á r i o na Paraíba e região: tramas
p o l í t i c o e c o n ô m i c a s e práticas culturais ( 1 8 8 0 - 1 9 2 5 ) " , Tese de D o u t o r a m e n t o ,
U N I C A M P , 2001, pp. 203 a 213.

20 | Ana Lúcia Duarte Lanna


linhas importantes para o escoamento da produção e, ainda que de
27
forma limitada, garantia a integração do t e r r i t ó r i o .
Portanto, as ferrovias foram construídas n u m quadro complexo e
diversificado de intenções, problemas, interesses e ligações c o m o
capital internacional, possibilidades de lucratividade e controle de
m ã o - d e - o b r a . Fazem parte do quadro de transformações em curso
na sociedade brasileira dos oitocentos. Unificava-as u m a recorrente
indistinção entre interesse da empresa e vontades particulares e u m a
p e r m a n e n t e p r o t e ç ã o do Estado, o q u e acabava p o r estimular os
movimentos especulativos e de corrupção, fazendo das ferrovias gran-
des negócios de construção e financeiros.
Para a p r o f u n d a r m o s estes p o n t o s acima e n u n c i a d o s , t o m a m o s
c o m o exemplos a C o m p a n h i a Paulista de Estradas de Ferro, ferrovia
do café, exemplo pioneiro de investimento de capitais nacionais nos
n e g ó c i o s ferroviários e de empresa privada lucrativa, e a Brazil
Railway Company, de Percival Farquhar, holding de capital interna-
cional, exemplo de investimento especulativo c o m ferrovias nunca
lucrativas.

A Companhia Paulista de Estradas de Ferro

A São Paulo Railway (SPR) inicia suas operações ligando Santos


a São Paulo, em 1865, e chega a Jundiaí em 1867. No ano seguinte,
fazendeiros, capitalistas e grandes p r o p r i e t á r i o s c r i a m u m a nova
empresa ferroviária — a C o m p a n h i a Paulista de Estrada de Ferro,
cujo objetivo inicial era ligar Jundiaí a Campinas. A implementação
da Paulista será seguida da construção de outras empresas, todas de
capital nacional. A Estrada de Ferro Mogiana e a Sorocabana serão as

M a r g a r e t h G. Martins. " C a m i n h o s tortuosos: um painel e n t r e o Estado e as e m p r e -


sas ferroviárias brasileiras, 1 9 3 4 - 1 9 5 6 " . Tese de D o u t o r a m e n t o , História USP, 1 9 9 5 .
A autora p r o c u r a e n t e n d e r as transformações do transporte ferroviário, privilegian-
do a ótica de i n t e r v e n ç ã o do Estado no setor. Apresenta para 18 estradas de ferro, o
processo de c o n c e n t r a ç ã o e m u d a n ç a de c o n t r o l e a partir de fins do século X I X . P o r
e x e m p l o , o caso da C o m p a n h i a L e o p o l d i n a . C o n s t i t u í d a p o r capitais nacionais a
partir da aquisição de p e q u e n a s empresas. Em 1 8 7 1 , o b t é m j u r o s e s u b v e n ç õ e s do
G o v e r n o e contrai e m p r é s t i m o s em Londres. Falida, em 1897, é transformada na
Leopoldina R a i l w a y C o . , m a n t e n d o - s e c o m o estrada d e p r o d u t o s agrícolas para
exportação.Vive em crescente crise financeira, o n d e seus problemas são detectados
c o m o o r i g i n á r i o s da má qualidade de seus traçados e da crise do café no Vale do
Paraíba. Foi e n c a m p a d a pelo G o v e r n o no final da década de 1920.

Ferrovias no Brasil 1870-1920 | 21


mais i m p o r t a n t e s , seja pelo v o l u m e de tráfego, seja pela extensão
dos trilhos. A rápida expansão dos trilhos, a multiplicação de p e -
quenas empresas e a construção de múltiplos ramais revelarão c o n -
flitos que marcarão a existência destas companhias. Estes se definem
a partir da questão do privilégio de zona, q u e preserva áreas de
influência para as companhias, do traçado das linhas, a p r o x i m a n d o -
se ou afastando-se de tais e quais propriedades, e do embate político
entre as vertentes conservadora e liberal, que se expressa, de forma
28
intensa, na grande imprensa .
A necessidade de se construir u m a ligação efetiva e eficiente en-
tre o planalto e o interior era assente entre os grandes proprietários
e seus representantes nas Assembléias Provinciais desde, pelo m e -
nos, 1851.
Em 1867, o Presidente da Província de São Paulo, Saldanha M a r i -
n h o , mais identificado c o m os interesses provinciais do que c o m os
do Governo Imperial, assume a coordenação do projeto de constru-
ção da p r i m e i r a ferrovia financiada c o m capitais privados locais.
Apoiados e estimulados por este político de origem p e r n a m b u c a n a
29
e de convicções liberais e certificados do desinteresse formal da
companhia inglesa em estender os seus trilhos para além de Jundiaí,
esta elite paulista, c o m interesses rurais e urbanos, constitui, em 1868,
a partir de abertura de capital acionário, a C o m p a n h i a Paulista de
Estradas de Ferro (CPEF). A nova empresa contava c o m os n o m e s
dos maiores e mais tradicionais cafeicultores e grandes proprietários
de São Paulo.
Em janeiro de 1868, os primeiros trinta e um acionistas da C o m -
panhia Paulista consolidam o estatuto da empresa e definem u m a
diretoria. Todo este processo ocorre no palácio do G o v e r n o e, não
p o d e n d o o articulador Saldanha M a r i n h o ser indicado presidente
da empresa, p o r ser o da Província, indicam para o cargo o Senador
Souza Queiroz, o m e s m o que advogava a idéia de uma ferrovia c o m

28
Ver, para esta discussão, Flávio Saes. Ferrovias,op. cit., especialmente capítulo 1.
29
C é l i o D e b e s (A caminho do Oeste. História da Companhia Paulista de Estrada de Ferro.
S.n.t.,p. 100) afirma q u e o papel central deste p e r n a m b u c a n o , advogado e jornalista
e e x - p r e s i d e n t e de p r o v í n c i a em M i n a s Gerais, foi o de u n i r os diferentes grupos
políticos de São P a u l o em t o r n o da idéia c o m u m da construção da C o m p a n h i a
Paulista e q u e este gesto é o q u e teria possibilitado a realização deste projeto.
Saldanha M a r i n h o era defensor das idéias liberais e opositor da M o n a r q u i a , p r i n c i -
p a l m e n t e p o r seus m e c a n i s m o s centralizadores.

22 | Ana Lúcia Duarte Lanna


capital britânico no início da década de 1860. É a primeira c o m p a -
nhia brasileira que, em p o n t o tão elevado, se abstrai de capitais es-
30
tranhos e se libera " d o j u g o do estrangeiro" .
A Paulista consolida-se c o m o um e m p r e e n d i m e n t o local.

Seu contrato v e m do G o v e r n o Provincial e não do Imperial.


Ela foi fundada, financiada e dirigida principalmente pelos paulistas
e não p o r h o m e n s c o m o M a u á , capital inglês e capitalistas. Os
fundadores paulistas eram líderes, cujos negócios políticos, e c o -
nômicos e familiares ligavam domínios urbanos e rurais. Esta elite
urbano-agrícola organizou e captou, ela mesma, o capital necessá-
rio para formar a C o m p a n h i a Paulista... Seu exemplo fornece u m a
rara oportunidade de ver u m a elite rural combinar os elementos
necessários para produzir u m a inovação industrial da magnitude
31
d e u m e m p r e e n d i m e n t o ferroviário .

A constituição e a implementação da C o m p a n h i a Paulista p o d e m


então ser c o m p r e e n d i d a s c o m o parte da solução para o p r o b l e m a
dos transportes, que se apresentava c o m o limitação à expansão dos
negócios cafeeiros. Mas consolida-se n u m quadro que marca a exis-
tência de um forte sentimento local que se estabilizará nas próximas
décadas, sob a bandeira do federalismo republicano. Passará a d e -
fender u m a política de imigração c o m o "braços para a lavoura", n e -
gando t a m b é m a proposta Imperial de imigração c o m o colonização.
Neste quadro, cria as condições essenciais para viabilizar a expansão
da fronteira p r o d u t i v a e consolidar sua h e g e m o n i a em relação ao
32
restante do país .

30
R e l a t ó r i o apresentado à Assembléia Legislativa Provincial de São Paulo no dia 2 de
fevereiro de 1868 pelo presidente da m e s m a Província C o n s e l h e i r o J o a q u i m Saldanha
Marinho.
31
R. M a t t o o n Jr., op. cit., p. 47. A a r g u m e n t a ç ã o exposta nas páginas acima sobre a
constituição da C o m p a n h i a Paulista t o m a , c o m o referência, este trabalho.
32
E m 1 8 7 8 , realizou-se n o R i o d e J a n e i r o u m i m p o r t a n t e e n c o n t r o d e cafeicultores d e
M i n a s Gerais, R i o de Janeiro, São Paulo e Espírito Santo. D i s c u t i n d o os problemas
mais u r g e n t e s da lavoura, os cafeicultores e seus representantes a p r e s e n t a v a m as
soluções e os c a m i n h o s a serem p e r c o r r i d o s na transformação q u e se operava na
sociedade brasileira. A crise da lavoura é discutida nesta perspectiva de transforma-
ção nacional. As propostas c o n s u b s t a n c i a v a m distintos e n c a m i n h a m e n t o s para a
transição. Minas, R i o e Espírito Santo apresentavam propostas inseridas no p r o j e t o
político, definido em 1 8 7 1 , de fim gradual da escravidão e de i n c o r p o r a ç ã o dos

Ferrovias no Brasil 1870-1920 I 23


A composição da primeira diretoria expressa os interesses envol-
vidos, ao m e s m o t e m p o em que indica a existência de u m a ativida-
de empresarial de caráter urbano e os fortes vínculos familiares que
ligavam estes empreendedores. C l e m e n t e Falcão de Sousa Filho era
advogado e líder empresarial; Inácio C o c h r a n e , e n g e n h e i r o , tinha
experiência de trabalho em ferrovias e era casado c o m a filha de
u m a família de comerciantes de café de Santos; Bernardo A. Gavião
Peixoto, Francisco A n t o n i o de Sousa Q u e i r ó z e M a r t i n h o da Silva
P r a d o eram m e m b r o s de importantes famílias paulistas, c o m i n t e -
resses de plantadores e urbanos. Esta composição indica que ser cafei-
cultor era, em fins do século X I X , ser mais do que plantador de café.
A empresa não teve dificuldade em obter capital, através da venda
de lotes acionários e revela a capacidade da província em incorporar
grandes empreendimentos. Mas o capital acionário era extremamente
concentrado nas famílias poderosas. Apesar de todas estas inovações
e implicações no p o d e r i o paulista, a C o m p a n h i a que se estruturava
tinha dois claros limites. Primeiro, era dependente da Ingleza (SPR)
e do acesso que ela garantia ao p o r t o exportador de Santos; em se-
g u n d o lugar, era subsidiária do vigor da economia cafeeira, da qual
se tornava "convidada ilustre", o q u e implicou em limites às suas
33
possibilidades de gestar u m a economia industrializada . Apesar disto,

libertos c o m o m ã o - d e - o b r a livre fundamental. Os cafeicultores paulistas, ao c o n t r á -


rio, articularam-se e m t o r n o d e u m novo e elaborado projeto q u e r o m p i a c o m esta
c o n c e p ç ã o gradualista, i m p l e m e n t a d a c o m a Lei do Ventre Livre. Os paulistas falam
em n o m e da g r a n d e lavoura da Província, r e p r e s e n t a n d o os interesses de m u i t o s
daqueles q u e se t i n h a m e m p e n h a d o na c o n s t r u ç ã o da C o m p a n h i a Paulista. Q u e r e m
a descentralização administrativa, garantias para o capital comercial e financeiro e
ajuda eficaz ao p r o j e t o imigrantista, ajuda q u e se traduz na ampliação dos direitos
civis dos c o l o n o s e u r o p e u s e na i m p l e m e n t a ç ã o de u m a série de m e d i d a s q u e signi-
ficam a secularização e a m o d e r n i z a ç ã o do Estado. Os cafeicultores das demais
regiões o p õ e m - s e à descentralização do c r é d i t o e à criação de b a n c o s provinciais
patrocinados p o r capitais particulares. A l m e j a m u m G o v e r n o q u e n ã o interfira nas
atividades produtivas, mas garanta d i n h e i r o farto e barato para a lavoura endividada,
assim c o m o r e i v i n d i c a m a taxação de lucros o b t i d o s pelos comissários e pelos
capitalistas urbanos e a c o n s e q ü e n t e d i m i n u i ç ã o de seu p o d e r sobre a lavoura. Em
relação ao trabalho, este g r u p o , n ã o imigrantista, defende o a p r o v e i t a m e n t o do
trabalhador nacional e a m a n u t e n ç ã o do p r o j e t o de abolição gradual. Para o d e s e n -
v o l v i m e n t o deste a r g u m e n t o , ver A n a Lúcia D u a r t e Lanna, A transformação do traba-
lho. C a m p i n a s , 1988.
33
R. M a t t o o n , op. cit., e José C e c h i n . " A c o n s t r u ç ã o e o p e r a ç ã o das ferrovias no Brasil
d o século X I X " . Dissertação d e M e s t r a d o , U N I C A M P , 1978.

24 | Ana Lúcia Duarte Lanna


a C o m p a n h i a Paulista constituiu-se n u m raro caso de ferrovia lucra-
tiva, gerando dividendos para seus acionistas e dispensando, a partir
de 1877, a garantia de juros, fornecida pelos Governos Provincial e
Imperial.
O traçado das linhas seguiu os interesses do café e a intensidade das
disputas acerca dos percursos expressam interesses que articulam a
expansão da lavoura, o poder político e a propriedade da terra. Os
trilhos da ferrovia chegaram a Campinas em 1872, apesar do atraso
das obras devido a desmoronamento na serra de Santos, que inter-
r o m p e u o tráfego São Paulo/Santos de fevereiro a j u n h o . A linha
Jundiaí-Campinas foi inaugurada em 11 de agosto de 1872. Os c o n -
vites distribuídos davam o t o m da festa:

Ilmos. Srs. A diretoria da C o m p a n h i a Paulista t e m a honra de


convidar Vv S.S.as para o festejo da inauguração da Estrada de
Ferro Paulista que se abrirá ao trânsito público em toda a sua
extensão até Campinas, no dia 11 de agosto p r ó x i m o futuro, os
inclusos cartões darão passagem no trem especial que partindo de
São Paulo às 10 horas da manhã do referido dia irá até Campinas
e nos dias seguintes viagens de volta em qualquer dos trens, cujo
h o r á r i o será anunciado, d a n d o igualmente direito a entrada no
salão em que será servido na Estação de Campinas um copo d'água
logo depois de terminada a viagem e finda a cerimônia religio-
34
sa .

Os festejos duraram três dias e contaram c o m a presença do P r e -


sidente da Província, Conselheiro Francisco Xavier P i n t o Lima e
muitas pessoas importantes da capital e de outras localidades. A c h e -
gada da primeira locomotiva à cidade foi assim descrita p o r Q u i r i n o
do Santos:

Contavam-se três horas e meia quando um estremecimento es-


tranho veio eletrizar em todos os sentidos aquela reunião e n o r m e :
ouvia-se l o n g í n q u o um rugido estridente e os ecos repercutiam
pelas nossas belas Campinas o férreo galopar do misterioso h i p o -

34
G . T o m a n i k . J u n d i a í : cronologia histórica. Literarte, 1 9 9 3 . G i l b e r t o Freyre (Os ingleses
no Brasil) c o n t a q u e os trens n ã o apitavam na sexta-feira santa em " r e s p e i t o ao
s e n h o r m o r t o " . O s e m p r e e n d e d o r e s n ã o q u e r i a m desrespeitar a s fortes tradições
religiosas.

Ferrovias no Brasil 1870-1920 | 25


grifo. O que se passou neste instante foi u m a coisa que não se diz:
s o n h a - s e o u v ê - s e . Girândolas, foguetes, baterias, aclamações,
música, t u d o isso ergueu-se n u m í m p e t o tão sublime c o m o a p r ó -
pria alma do povo a perder-se n u m a vertigem de alegria indefini-
da (...) D u a s locomotivas galhardamente enfeitadas c o m topes,
fitas, laços e bandeiras abriram caminho p u x a n d o dezenove wagons
em que v i n h a m os dois grandes vultos do dia — Saldanha M a r i -
n h o e Falcão Filho — o iniciador e o executor do p e n s a m e n t o
concebido na C o m p a n h i a Paulista e vinham mais os m e m b r o s da
diretoria desta, inúmeros acionistas e convidados, entre os quais o
35
Presidente da Província e o Chefe de Polícia .

36
Tratava-se, sem dúvida de experiência própria da m o d e r n i d a d e .
C o n t i n u a n d o seu c a m i n h o , a C o m p a n h i a Paulista m a n t é m sua
expansão. C o n s t r u í d a em função dos interesses do café, interferiu
no crescimento das cidades e o estimulou. Os interesses dos dirigentes
e acionistas eram ligados ao café, mas não de forma exclusiva. Eram
t a m b é m grupos urbanos. A Paulista foi u m a grande empresa de ser-
viços públicos, considerada exemplo de eficiência e lucratividade.
Na mesma época, construía-se, no Paraná, c o m capitais franceses,
a Paranaguá- Curitiba, que tinha p o r objetivos escoar a p r o d u ç ã o
extrativa da erva-mate, c o m vistas a atender especialmente o merca-
do argentino. Apesar de um endividamento, ocasionado pela emis-
são de obrigações no mercado internacional, que deveriam ser res-
gatadas em m o m e n t o de cambio desfavorável, a ferrovia apresentou,
durante t o d o o período aqui estudado, lucros operacionais significa-
tivos, m e s m o q u a n d o suas atividades ficaram sob a responsabilidade
da B R C , à qual foi arrendada em 1909. A associação entre ferrovia e
p r o d u t o único de exportação p o d e ter significado os entraves à in-
dustrialização, tal c o m o a p o n t a d o p o r Saes e C e c h i n . E n t r e t a n t o ,
constituíram as linhas rentáveis e operacionalmente justificáveis de
todos os milhares de quilômetros construídos no Brasil.

35
Dr. Q u i r i n o dos Santos,"Inauguração...", in Gazeta de Campinas, citado p o r A d o l p h o
A. P i n t o . História da viação pública de São Paulo. São Paulo, 1977, pp. 4 0 / 4 1 .
36
P e n s o aqui na questão colocada pela estética do sublime c o m o c o n t r a p o s t a à do
maravilhoso.Ver S. Greeblatt. Possessões Maravilhosas. São Paulo, 1996, e C. B e r t r a n d
e S. Grusinski. História do Novo Mundo. São Paulo, 1998, Nicolas Taylor. " T h e awful
sublimity of t h e v i c t o r i a n city", e R o b e r t o R o m a n o . "O sublime e o p r o s a i c o " , in
Revista Brasileira de História, n° 8 / 9 , São P a u l o , 1 9 8 5 .

26 | Ana Lúcia Duarte Lanna


A Brazil Railway Company
Em finais do século X I X , já havia algumas regras e controles para
que se efetivasse a criação de empresas de capital de ações. U m a
delas era que a empresa, para começar a operar, deveria ter conse-
guido obter, negociando no mercado, pelo m e n o s u m a parcela do
seu capital total autorizado. E n t r e t a n t o , a legislação do estado do
Maine, E U A , permitia que as empresas começassem a funcionar sem
a necessidade de n e n h u m aporte de capital. Utilizando-se deste e n o r -
me atrativo, c o n s t i t u i u - s e , em 1906, a Brazil R a i l w a y C o m p a n y
( B R C ) . A B R C teve capital autorizado de 40 milhões de dólares e
um aporte inicial em dinheiro de apenas 900 dólares. Caso a sede da
empresa fosse no Brasil, para este m e s m o montante, a empresa teria
37
que dispor inicialmente de 4 milhões (10% do capital autorizado) .
Este p r o c e d i m e n t o implicava, já de início, lucros. substanciais para
os fundadores. Criada a empresa — B R C — deviam-se obter conces-
sões q u e viabilizassem o f u n c i o n a m e n t o da holding. As concessões
eram compradas, em geral c o m preços superestimados, c o m as ações
da B R C , para as quais havia autorização, mas que não tinham e n -
contrado compradores no mercado.
O j o r n a l a Gazette, de Paris, de 11 de março de 1914, publica u m a
notícia que nos auxilia a c o m p r e e n d e r os mecanismos de ação de
B R C e nos traz de volta o engenheiro Teixeira Soares, m e n c i o n a d o
no início deste artigo.

A partir de 1907 Sr. Farquhar se ligou a um senhor Teixeira


Soares, concessionário da linha S P R G e lhe c o m p r o u todas suas
ações, as quais constituíam a quase totalidade do capital da socieda-
de. Esta sessão foi feita pelo preço médio de três milhões de francos,
pagáveis em vencimentos diversos e espaçados. O valor de cada
u m a destas ações era p o u c o i m p o r t a n t e , pois na Bolsa do R i o
eles eram negociados entre 2,5fr e 2,75fr. Nesta época um francês
de R o u b a i x , estabelecido no R i o de Janeiro c o m p r o u p o r este
preço algo em t o r n o de 1.500 títulos (...) O preço destas ações foi
cotado a 80 mil réis, ou seja 120frs cada. Elas constituíram ( c o m -

37
O j o r n a l Brésil Economique, de 13 d e o u t u b r o de 1 9 1 3 , p r o p õ e - s e a analisar o Sindica-
to F a r q u h a r c o m o organização administrativa e financeira para aferir sua h o n e s t i d a -
de ou não. Destaca q u e , do capital fundador, de 206.800.000frs, dividido em 4 0 0 . 0 0 0
ações de 517 frs, foram subscritas 11 ações e sem n e n h u m capital depositado.

Ferrovias no Brasil 1870-1920 I 27


pradas p o r este preço sic) o primeiro portfólio da Brazil Railway.
38
Jamais n e n h u m dividendo foi obtido por esta c o m p a n h i a .

Flávio Saes explica: "a empresa pagava em ações aos indivíduos


que haviam obtido a concessão, c o m o pagamento por gastos e servi-
39
ços prestados" . Constituía-se, então, um g r u p o fundador, que pas-
sava a ter ações da empresa. Este grupo era composto p o r Farquhar
e / o u outros m e m b r o s da B R C e os concessionários originais da-
quele serviço público.
Tratava-se de u m a empresa holding, ou seja, ela controlava outras
empresas p o r m e i o de participação acionária. N e n h u m a destas e m -
presas situava-se em t e r r i t ó r i o n o r t e - a m e r i c a n o , da m e s m a forma
que n e n h u m dos títulos negociados em mercados de valores o fo-
ram nos Estados U n i d o s . Esta internacionalização é marca registrada
da B R C e dos tempos inaugurados c o m o fim da recessão interna-
cional do século X I X . Este espraiar-se pelo m u n d o t a m b é m dificul-
t o u e n o r m e m e n t e a cobrança dos títulos e das dívidas assumidos
pela empresa, q u a n d o de sua crise, a partir de 1917, porque, se capi-
tais e investimentos eram transnacionais, a legislação era n o r t e - a m e -
ricana e era naquele espaço nacional que as ações e os processos
deveriam acontecer. Mas os negócios estavam fisicamente alocados
no Brasil e os investidores lesados, na sua maioria, na Europa.
Além disto, o estatuto da empresa dava aos diretores, fundadores
do e m p r e e n d i m e n t o , um poder praticamente absoluto sobre os ca-
m i n h o s a serem seguidos. As decisões tomadas pelos diretores r e -
ferentes a compra e venda de ações e bens, de participação em e m -
p r e e n d i m e n t o s , enfim, dos destinos operacionais da c o m p a n h i a ,
s o p r e p u n h a m - s e às decisões das Assembléias de acionistas, o que
significava que não havia instância prevista de controle sobre as ações
40
e as deliberações da diretoria . Estes aspectos indicam que a e m p r e -

3 8
A N P F V M 369.
39
Flávio Saes, op. cit.
40
Artide 5: Les directeurs auront le pouvoir de vendre, transférer ou disposer de quelque forme
que ce soit de tout ou partir des biens de la Compagnie, d'émettre des titres, obligations ou
autres garanties au nom de la Compagnie, de vendre lesdits pour la somme qui leur parîtra
convenable à leur libre arbitre, d'hypothéquer ou engager de toute forme les biens mobiliers et
immobiliers de la Compagnie, pour garantir le paiement de sés actions sans l'assentiment ou
le vote des actionnaires.

Article 19: Des asscmblées regulières se tiendront, etc., cependant les décisions de la majorité

28 | Ana Lúcia Duarte Lanna


sa, já na sua fundação, estava marcada p o r amplos espaços de i m p u -
nidade. Farquhar era o m e n t o r desta empresa, associado a outros
41
e m p r e e n d e d o r e s internacionais e políticos locais .
O objetivo da empresa B R C era a construção e a operação de
ferrovias c o m vistas a estabelecer u m a grande rede, interligando o
sul do Brasil ao Uruguai, à Argentina e ao Paraguai. O sonho de u m a
ligação pan-americana estava na base dos argumentos daqueles que,
defendendo a B R C , viam e m Farquhar u m visionário, u m h o m e m
42
à frente do seu tempo, um estadista .
Para o governo brasileiro, a construção desta ligação fazia parte de
uma visão estratégica do território. A guerra do Paraguai tinha d e -
monstrado a fragilidade das fronteiras e colocado de forma p r e m e n -
te a necessidade de consolidá-las. A idéia de u m a ferrovia p a n - a m e -
ricana tinha no traçado da S P R G u m a base essencial: u m a grande
linha longitudinal, espinha dorsal, que ligaria o país de n o r t e a sul. A
S P R G seria, assim, u m a linha comercial de primeira o r d e m e, ao
mesmo tempo, u m a via estratégica que permitiria enviar rapidamente
43
tropas para a fronteira sul . Apesar da formulação desta estratégia, a

des directeurs seront valables, même síl y avait eu vice dans le mode de convoquer la dite
assemblée. C i t a d o n o a r t i g o " B r a z i l R a i l w a y C o m p a n y , d e u x i e m e a r t i c l e " , i n
Informations, 18 mars, 1914. O Règlement pour l'Administration au Brésil de la Brazil
Railway Company et entreprises subsidiaires de 3 avril 1914 m a n t é m as regras f o r m u l a -
das e m 1 9 0 6 .
41
Percival F a r q u h a r nasceu em 1864, na Pensilvânia, E U A . E s t u d o u em Yale, o n d e
estabeleceu muitas das relações das quais lançaria m ã o para a realização de seus
negócios. Em 1 8 9 8 , inicia suas aventuras internacionais, participando da m o n t a g e m
de u m a c o m p a n h i a de tranways em C u b a . D a í vai para a G u a t e m a l a , instituindo u m a
das características de seus negócios: v o l u m o s a captação de recursos para a m o n t a -
g e m de serviços públicos, seguida de rápida falência.Junto c o m Pearson, na p r i m e i r a
investida no Brasil, m o n t a a R i o de J a n e i r o Light and Power, e n t r e 1 9 0 3 e 1 9 0 8 .
Associa-se c o m e m p r e e n d e d o r e s internacionais, c o m o Van H o r n e , d a Canadían Pacific
Railway, e M r . Keith, da U n i t e d Fruits. Em 1906, cria a Brazil Railway. C o m a
falência da B R C e a eclosão da I G u e r r a , organiza empresa e x p l o r a d o r a de carne no
Paraguai. Casa-se nos Estados U n i d o s , e m 1 9 1 8 , e , n o f i n a l d e 1919, r e t o r n a a o R i o .
Tenta, s e m sucesso, reproduzir o e s q u e m a de financiamento e concessões, utilizados
nos n e g ó c i o s ferroviários na exploração de minas de ferro em Itabira.Vive no R i o de
J a n e i r o até 1 9 4 6 . Charles Gauld, The last Titan: Percival Farquhar 1864-1953.American
Entrepeneur in Latin America. California, Institute Studies, 1 9 7 2 .
42
U m a p a n h a d o destes a r g u m e n t o s p r ó Farquhar e n c o n t r a - s e n a biografia deste p e r -
s o n a g e m , G a u l d , op. cit.
43
Le Journal, 19 de j u l h o de 1909, in Correspondance Politique et Commerciale, N o u v e l l e ,

Ferrovias no Brasil 1870-1920 | 29


construção da rede ocorria sem um plano de conjunto e p e r m a n e -
cia fortemente marcada pela necessidade de articulação ferrovia/porto
exportador. O acesso ao litoral e a associação ferrovia/porto foi, des-
de as primeiras ferrovias, em meados do século X I X , u m a caracte-
rística essencial, que reforçava as formas de ocupação do território,
marcadas p o r séculos de colonização. As ferrovias não as alteraram,
m e s m o p o r q u e nasceram justificadas e associadas a atividades e c o -
nômicas de exportação, que as reforçavam.
As manifestações de fortes resistências à presença avassaladora do
grupo de Farquhar manifestam-se na imprensa nacional já em 1911.
Os argumentos apresentados evocam um t o m de emergente antiame-
ricanismo, um receio da excessiva e m o n o p o l i z a d o r a presença de
um grupo estrangeiro no Brasil, ameaçando a soberania nacional.
A empresa, q u e foi criada para explorar negócios ferroviários,
agregou rapidamente investimentos em portos, companhias de c o -
44
lonização, exploração de madeiras e rebanhos e hotéis . O funcio-
n a m e n t o do negócio, que supunha o m o n o p ó l i o de atividades no
seu r a m o de atuação, trabalhava c o m o exemplo da Canadian Pacific,
da qual vinha um dos sócios fundadores da empresa — van H o r n e .
Este m o d e l o significava englobar várias atividades, c o m vistas a viabi-
45
lizar as linhas ferroviárias que não tivessem tráfego inicial rentável .

Serie 1 9 0 8 - 1 9 1 0 , t. 2 8 , M A E / P a r i s . D e s d e a concessão de 1898 esta idéia de d e s e n -


v o l v i m e n t o e c o n ô m i c o e integração e defesa do t e r r i t ó r i o justificarão a cessão de
imensos recursos públicos para a tentativa de construção da linha e seus ramais.
44
A B R C " e n v u e d ' a c q u e r i r dans le sud du Brésil des concessions des c h e m i n s de fer
o u d e droits d ' a f f e r m a g e , ainsi q u e des p a r t i c i p a t i o n s dans des C o m p a g n i e s
preexistants et d'établir un vaste réseau en c o n n e x i o n avec l ' U r u g u a y , l ' A r g e n t i n e et
le Paraguay. Par la suite, p o u r a u g m e n t e r le trafic de sés réseaux, la societé s'était
intéressée des entreprises de ports, d'exploitations forestiers, d'élévage, de colonisation,
d'hotels, etc. f o r m a n t um système é c o n o m i q u e qui couvrait les états de São Paulo,
Paraná, Santa C a t a r i n a , R i o G r a n d e d o Sul e t M a t o Grosso. E t e n d a n t e x a g é r é m e n t
sa sphére d ' a c t i o n , elle avait pris des intérêts dans les c h e m i n s de fer de l ' U r u g u a y ,
Bolivie, C h i l e et m ê m e du haut bassin d ' A m a z o n i e " Assotiation National des Porteurs
Français des Valeurs Mobilie annuaire 1915-1920, p.159.
45
A m a u r y Patrick G r e m a u d , " O Brasil e o fluxo internacional de capitais, 1 8 7 0 - 1 9 3 0 :
o caso da Brazil R a i l w a y C o m p a n y " . São Paulo, Dissertação de M e s t r a d o , F E A -
USP, 1992.O a u t o r afirma q u e o m o d e l o da C a n a d i a n envolvia ferrovias, terras para
colonização, empresas madeireiras (p. 129). Ao l o n g o de seu trabalho, G r e m a u d
analisa cada u m a das subsidiárias da B R C , m o s t r a n d o as intenções e as estratégias
de f u n c i o n a m e n t o e a p o n t a n d o os motivos da crise e do d e s m o r o n a m e n t o da e m -
presa e suas subsidiárias (Bromberger, op. cit.) Um c o n t u n d e n t e crítico de Farquhar

30 | Ana Lúcia Duarte Lanna


Os grupos internacionais envolvidos c o m o esquema Farquhar já
eram antigos conhecidos no mercado de empréstimos e concessões
de serviços públicos no Brasil, ou seja, o grupo capitaneado p o r ele
herda e, assim, incrementa a ação de determinados grupos financei-
ros internacionais no Brasil, cuja atuação anterior a 1906, já se tinha
mostrado desastrosa para o sucesso das ferrovias nas quais se tinham
envolvido, mas extremamente vantajosa para os grupos financeiros.
A forte e decisiva afluência de capitais franceses conta c o m a c o n i -
vência do Ministère des Affaires Étrangéres, que, apesar de r e c o r r e n -
temente alertado para os problemas financeiros do grupo, reafirma a
ausência de i m p e d i m e n t o s políticos, viabilizando, assim, a emissão
dos títulos na Bolsa de Paris. A tradição francesa de aplicar em pa-
péis de renda fixa, garantidos pelo governo e de baixo valor unitá-
46
rio, consolida as possibilidades de captação de recursos .

afirma q u e se a ilusão era c o n s t r u i r u m a réplica da C a n a d i a n Pacific Railway, o q u e


a c o n t e c e u foi similar à Q u e b e c R a i l w a y (p. 101). O j o r n a l L'Argent, de 23 de j a n e i r o
d e 1 9 1 1 , traduz artigo p u b l i c a d o n a R e v u e F r a n c o - b r e s i l i e n n e d o R i o d e J a n e i r o a
respeito da situação crítica da B R C , a f i r m a n d o q u e , para q u e as c o m p a n h i a s e as
sociedades i n c o r p o r a d a s pela B R C possam vir a ser lucrativas, serão necessárias
décadas, pois atravessam t e r r i t ó r i o s d e s o c u p a d o s . A l é m disto, os investimentos r e a -
lizados seriam a b s o l u t a m e n t e e q u i v o c a d o s , objetos de chacota, a n e d o t a s autênticas.
R e f e r e - s e aos e m p r e e n d i m e n t o s madeireiros e de r e b a n h o s : "L'histoire de ce lac
creusé par les a m e r i c a i n s p o u r faire flotter les bois de la L u m b e r C o . et qu'ils o n t dù
c o m b l e r ensuite s i m p l e m e n t parce qu'ils avaient oublié q u e les bois du Brésil sont
des bois lours et s'obstinent, au lieu de flotter, à c o u l e r à p i c , celle des c o u t e u x
r e p r o d u e t e u r s a m e n é s à grands frais du Fra West p a r la L a n d C a t t l e P a c k i n g C o . et
qui sont tous m o r t s , s i m p l e m e n t parce q u e les A m e r i c a i n s avaient o u b l i é de les
vacciner c o n t r e les maladies du Brésil sont assez c o n n u s a u j o u r d ' h u i " . M a u s a d m i -
nistradores e industriais, c o m o sugere o artigo, mas e x c e p c i o n a l m e n t e b e m r e m u n e -
rados. M a c k e n z i e , d i r e t o r dos e m p r e e n d i m e n t o s citados, recebia o p o l p u d o salário
d e U S $ 5 0 . 0 0 0 , 0 0 anuais, mais presentes s u n t u o s o s d e F a r q u h a r , e v i d e n c i a n d o u m a
das características da B R C , q u e era a r e m u n e r a ç ã o farta de seus diretores e p a g a -
m e n t o s precários e atrasados para seus trabalhadores, a l é m de r e c o r r e n t e s práticas de
suborno (ANPFVMD 259).
46
G e o r g e s R i b e i l l , c o m e n t a n d o a atração q u e os i n v e s t i m e n t o s em ferrovias francesas
e x e r c i a m sobre os p e q u e n o s p o u p a d o r e s , indica os m o t i v o s q u e levaram a tão g r a n -
d e aceitação dos papéis n e g o c i a d o s pela B R C n a Bolsa d e Paris. " F o r t e tutelle
é t a t i q u e , m o n o p o l e d e l o n g u e d u r é e des concessions, c o n c e n t r a t i o n d u p o u v o i r
é c o n o m i q u e dans les c o m p a g n i e s , j u s q u ' à la m o d i c i t é du c o u r s n o m i n a l (500 francs
em general) des actions de c h e m i n s de fer et leur r e v e n u garanti (qui em font t o u t
p a r t i c u l i è r e m e n t l'action t y p i q u e des 'pères de famille'), tous ces ingredients d o n c
confèrent à l ' e n t r e p r i s e ferroviaire française l'image d ' u n e puissance b i e n assise,

Ferrovias no Brasil 1870-1920 I 31


A B R C funcionou no Brasil a partir de 1906. Em 1914, ocorre
u m a primeira grande crise, sendo n o m e a d o um receiver americano,
C a m e r o n Forbes, responsável p o r diagnosticar a situação e apontar
novas diretrizes de funcionamento. Em 1916, um representante dos
portadores de debêntures franceses, M. Chevalier, passa a negociar
c o m o receiver a reorganização da B R C . U m a das condições impostas
é que Farquhar se demita de vários cargos que ocupava na c o m p a -
nhia e nas empresas subsidiárias. E n t r e t a n t o , o g r u p o capitaneado
p o r Forbes, em princípio representante dos interesses de p o r t a d o -
res de debêntures prejudicados pela má condução dos negócios da
B R C , assume a i m p o r t â n c i a d a m a n u t e n ç ã o d e F a r q u h a r c o m o
" a r t i c u l a d o r político, sem p o d e r decisório na empresa", dada sua
e n o r m e influência e trânsito j u n t o ao governo brasileiro. O relató-
rio de Forbes, apresentando alternativas para a reorganização da B R C ,
f u n d a m e n t a - s e nos dados obtidos pelo e n g e n h e i r o M o l i t o r e nas
propostas e nos diagnósticos elaborados p o r Percival Farquhar em
1915. Na documentação, cartas e relatórios de Farquhar dirigidas a
Forbes, diga-se de passagem, seu amigo de longa data, vemos o ex-
presidente do g r u p o realizando negociações j u n t o ao governo bra-
sileiro, apresentando diagnósticos sobre os vários negócios da B R C
e sugerindo a solução, enfim adotada, de manutenção da integrida-
47
de do negócio c o m o essencial para viabilizar sua reorganização .
A reorganização, aprovada em 1918, prioriza o p a g a m e n t o das
debêntures e só após o resgate das diversas séries é que os eventuais
dividendos acionários começariam a ser pagos. A proposta aprovada
defende e m a n t é m a unidade do sistema construído por Farquhar e
garante a p e r m a n ê n c i a do controle dos grandes bancos, q u e agora
t ê m maioria das ações: Société Générale, B a n q u e de Paris et Pays

stable et sûre, plus p r o c h e par certains cotes d ' u n e administration p u b l i q u e que


d ' u n e véritable société commercilae 'libre' (Georges Ribeill, "Les fondations
strategiques des grandes gares parisiennes", in K a r e n B o w i e (Org). Les grandes gares
parisiennes du XIX siècle (p. 28); M a r i a Bárbara Levy e Flávio Saes. " D í v i d a e x t e r n a
brasileira 1 8 5 0 - 1 9 1 3 : e m p r é s t i m o s p ú b l i c o s e p r i v a d o s " , in História econômica e
história de empresas IVA (2001). São Paulo, H u c i t e c / A B P H E , 1998, p p . 4 9 / 8 2 . A n a -
lisando a história da dívida pública no Brasil, os autores m o s t r a m a diversidade dos
padrões de e n d i v i d a m e n t o . A f i r m a m q u e " e n t r e 1906 e 1913, o m e r c a d o francês
talvez t e n h a sido mais i m p o r t a n t e para o Brasil do q u e o p r ó p r i o m e r c a d o de
L o n d r e s " e explicitam os m e c a n i s m o s pelos quais este dinheiro era captado.
47
Percival Farquhar, Carta e Relatório encaminhado a M. Cameron Forbes. R i o de Janeiro,
4 de d e z e m b r o de 1914, e 7 de j u n h o de 1915 (ANPFVM).

32 I Ana Lúcia Duarte Lanna


Bas, Banque Speyer e Schoreder e Loewenstein. Em 1918, a e m p r e -
sa é reorganizada e passa a ser controlada por um C o m i t ê Conjoint,
do qual faz parte o engenheiro Teixeira Soares, velho conhecido dos
negócios ferroviários no Brasil e na França. Neste m o m e n t o , Farquhar
é afastado, ainda que os novos diretores sejam pessoas que c o m p u -
n h a m seu g r u p o íntimo de parceiros. A empresa continua existindo
até 1975, q u a n d o entra em liquidação voluntária.
D e n t r e os relatórios produzidos em função da falência da B R C ,
o do e n g e n h e i r o Molitor, realizado em 1916, é exemplar, dada a
minúcia das informações. Em todas elas p o d e m o s aferir as c o n s e -
qüências de um esquema de desmandos e ineficiências, existentes
na empresa desde sua fundação e amplamente acentuados q u a n d o
48
da incorporação de seu ativo pelo g r u p o de Farquhar . O texto a p o n -
ta, de forma clara e inequívoca, os inúmeros problemas da c o m p a -
nhia e revela que, sob n e n h u m aspecto, ela era adequadamente cons-
tituída. Da mesma forma, mostra c o m o a empresa se desviou de seus
objetivos, incluindo em seu portfólio u m a variedade de empresas e,
c o m o todo território percorrido pela B R C , está longe de se cons-
tituir em um território povoado e dinâmico. A ausência de cidades é
um dos dados essenciais destacados para mapear este "território do
vazio". O relatório Molitor acaba p o r explicitar, do p o n t o de vista
operacional, o desastre da construção ferroviária.
O traçado das linhas é péssimo, ainda que as execuções recentes
t e n h a m sido b e m feitas, mas sem alterar erros e problemas de o r i -
gem. Analisa as condições entre São Paulo e Santa Ana do Livramen-
to, traçado de 1.323,5 milhas. Afirma, de forma a fazer os resultados
compreensíveis a t o d o m u n d o , que o traçado existente significa que
cada passageiro desta linha principal passa 968 sobre ele m e s m o e é
elevado a u m a altura de 25.921 pés e desce 27.805 pés. Para cada
milha de distância percorrida, o viajante e a mercadoria fazem cerca
49
de 3/4 de um círculo c o m p l e t o .
Se o traçado das linhas é ruim, não são melhores o estado geral e
sua m a n u t e n ç ã o . E x i s t e m , nos estoques, quantidades e n o r m e s de
trilhos e travessas acondicionados de forma que este material se d e -
teriora rapidamente.
Vagões e locomotivas eram obsoletos, mal cuidados e de m a n u -
tenção cara.

48
R e l a t ó r i o M o l i t o r , 1916 ANPFVM,
49
R a p p o r t M o l i t o r , op. cit.

Ferrovias no Brasil 1870-1920 | 33


As últimas máquinas compradas chegaram antes que a via p u -
desse recebê-las. Há no total 49 máquinas sendo q u e algumas
nunca foram utilizadas. Duas dentre elas estão em São Francisco e
não p o d e m sair de lá por causa do estado da ponte móvel sobre a
antiga linha (...) Apenas 50% dos carros de passageiros e merca-
50
dorias tem freios e só 8% das locomotivas tem freios contínuos .

Os ateliês de reparação da B R C , assim c o m o os seus armazéns,


apresentam t a m b é m problemas de localização, de i n a d e q u a ç ã o de
materiais disponíveis para reparos a serem executados. As oficinas
maiores e n c o n t r a m - s e divididas entre reparação de locomotivas e
reparações gerais e localizadas em cidades diferentes, o que onera os
51
serviços a serem efetuados .
A este quadro trágico, referente à construção e à m a n u t e n ç ã o das
linhas, p o d e m o s agregar problemas estruturais de má administração
e tráfico insignificante. Estas informações c o r r o b o r a m m i n h a h i p ó -
tese de que era um excelente negócio construir ferrovias, mas não
explorá-las.
A estrutura de tarifas encarece, mas, sobretudo, estimula a cons-
trução de traçados sinuosos e não adequados à exploração, já que os
custos eram definidos p o r quilômetros percorridos em relação aos
p o n t o s terminais, não levando em consideração trajetos i n t e r m e -
diários.
Molitor compara u m a viagem R i o - M o n t e v i d é u feita p o r mar ou
p o r trem. Indo p o r terra, o passageiro teria que percorrer 1.985 milhas
e gastar 294$000; indo de primeira classe, gastaria 92 horas, mas se o
m e s m o passageiro fosse de navio gastaria 73 horas, percorrendo 1.253
milhas e gastando 198$000 réis. Evidentemente, não havia concor-
rência possível. Mas, alerta Molitor, se os traçados tivessem sido b e m
feitos, a viagem de trem poderia ser concluída em 50 ou 60 horas.
N ã o bastassem todos estes entraves, a B R C não possuía um de-
partamento comercial que objetivasse atrair passageiros e m e r c a d o -
rias para suas linhas. Além disto, cada trecho e cada empresa eram
administrados c o m o unidades separadas, sem troca entre elas, e não

50
R a p p o r t M o l i t o r , op. cit.
51
A oficina da Paulista em Jundiaí agregava estas atividades e era considerada e x e m -
plar e m o d e r n a . R e f e r ê n c i a s a esta oficina de reparos p o d e m ser e n c o n t r a d a s na
R e v u e G é n i e Civil, assim c o m o nos relatórios d o cônsul francês e m São Paulo, M .
George Ritt.

34 | Ana Lúcia Duarte Lanna


c o m o parte de u m a rede. O sonho de u m a ferrovia pan-americana
não encontrava condições reais para se materializar e parecia não
fazer parte integrante das expectativas de seus e m p r e e n d e d o r e s .
Grenaud, analisando o funcionamento da B R C , mostra a inviabi-
lidade intrínseca do e m p r e e n d i m e n t o . O "lucro f u n d a d o r " signifi-
cou não só lucros inicialmente elevados c o m o o desvio de dinheiro,
o b t i d o c o m vendas de ações para r e m u n e r a r os q u e obtiveram o
52
direito de explorar as concessões ou os a r r e n d a m e n t o s . S e n d o o
capital acionário insuficiente para concretizar os e m p r e e n d i m e n t o s ,
a B R C e suas subsidiárias o b t ê m nos mercados acionários europeus
capitais a partir da emissão de debêntures. Neste caso, os bancos t ê m
expressiva lucratividade. T r a b a l h a n d o em parceria c o m o " g r u p o
fundador", retinham parte do capital emitido c o m o taxa de comis-
são, para efetuarem o negócio, assim c o m o retêm parte do valor n o -
minal dos títulos. Por exemplo, "para u m a obrigação de ffl00 lançada
53
ao tipo 9 5 % são entregues para a empresa apenas 95ff" .Vale l e m -
brar que as empresas já tinham expressivas dívidas assumidas antes
da incorporação pela B R C e que não tinham possibilidades imediatas
de lucro, p o r atravessarem regiões de pouca ou nula atividade e c o n ô -
mica. Além disto, as despesas crescem vertiginosamente e as receitas,
m o d e r a d a m e n t e , g e r a n d o o u t r o grave d e s e q u i l í b r i o . Estes dados
indicam que o e m p r e e n d i m e n t o era, em si, no seu esquema de fun-
c i o n a m e n t o inviável.

(...) a integração de sistemas ferroviários não eram e c o n o m i c a -


m e n t e tão lucrativos quanto fora alardeado nos mercados e u r o -
peus. As ferrovias continuavam sendo essencialmente c a m i n h o s
para o mar, para as exportações; a economia interna apesar de já

52
A. G r e n a u d , op. cit.. afirma q u e ainda q u e seja difícil precisar a q u a n t i d a d e de d i n h e i r o
desviado desta forma, apresenta dados o n d e o g r u p o fundador, em função de rendas
futuras superestimadas, teria r e c e b i d o algo e m t o r n o d e U $ 6 1 . 5 0 0 . 0 0 d e u m total
de U $ 1 0 0 . 0 0 0 . 0 0 0 , capital da holding. Estes valores " c o n s t i t u e m m o n t a n t e de c a p i -
tal acionário q u e n ã o foi efetivamente a p o r t a d o à empresa, tanto m o n e t a r i a m e n t e
c o m o em serviços" (pp.185/186).
53
Grosso m o d o , para um capital total a ser r e m u n e r a d o de U $ 1 6 6 . 0 0 0 . 0 0 0 , foram
efetivamente a p o r t a d o s à B R C U $ 1 0 5 . 0 0 0 . 0 0 0 , ou seja, para cada dois dólares
aportados à empresa, três d e v e m ser r e m u n e r a d o s . Se p e n s a r m o s n u m a r e m u n e r a -
ção m é d i a de 5 , 5 % para este capital, o l u c r o líquido da empresa destinado a r e m u -
n e r a r este capital deve ser de pelo m e n o s 8 % " (A G r e m a u d , op cit., p p . 1 9 1 / 1 9 2 ) .

Ferrovias no Brasil 1870-1920 | 35


se desenvolver fortemente, não era sustentáculo suficiente para as
54
ferrovias, ainda mais c o m elevado nível de e n d i v i d a m e n t o .

A l é m destas questões, havia ainda o problema constitutivo dos


subornos e da corrupção. Gastos elevados, incorporados nos custos
operacionais, q u e incluíam pagamentos e favores a políticos brasi-
leiros e engenheiros fiscais, c o m p r a inadequada e superfaturada de
material, salários elevados para a diretoria. A l é m dos exemplos já
citados, referentes aos custos de ações e pagamentos de salários, a
d o c u m e n t a ç ã o pesquisada aponta a tentativa da B R C de ter autori-
zada pelo governo, na aprovação de sua prestação de contas, o gasto
de 432.000$000 réis de gastos financeiros c o m o gastos de explora-
55
ç ã o . Da mesma forma, em 25 de j u l h o de 1911 Carlos Sampaio, um
dos mais importantes articuladores da B R C no Brasil, solicita a Mr.
Egan, engenheiro da C o m p a n h i a , que forneça ao Dr. Francisco de
Sá, último Ministro da Viação no Brasil, informações necessárias para
q u e possa defender-se das acusações feitas contra ele, referentes à
56
má utilização do dinheiro público na linha Itararé-Uruguai .
D e n ú n c i a s acerca de contratos irrealizáveis, necessidade p e r m a -
nente de pagamentos de taxas e comissões, furto de material, c o m -
pras inadequadas são recorrentes em todas as linhas férreas. A E s -
trada de Ferro D. Pedro II (Central do Brasil) ganhava destaque em
função das quantidades de funcionários contratados e passagens gra-
57
tuitas cedidas em troca de favores políticos . As linhas do Nordeste,
analisadas na tese de Gervácio Aranha, sofrem todas destes mesmos
problemas. Paul Serre, nos seus relatórios sobre a concessão francesa
na Bahia, é c o n t u n d e n t e na formulação destas denúncias, que sem-
pre envolvem furtos, aquisição de material de construção em exces-
so e material rolante incompatível c o m as linhas existentes, degrada-
58
ção de equipamentos nos pátios da companhia e negociatas políticas .

54
G r e n a u d , idem, p p . 2 4 5 / 2 4 6 .
55
Jornal Le Marche, 10 n o v 1912, p. 7 B, 1 7 8 - 3 , in Correspondance Politique et Commerciale,
Nouvelle Serie, t. 31 M A E / P a r i s .
56
Afirma Carlos S a m p a i o : " h e wants t o k n o w exactly h o w m u c h t h e San Francisco
line coast us p e r km a n d I ask y o u to give h i m all the i n f o r m a t i o n , because I am sure
that, d e f e n d i n g himself, he can do a lot of g o o d to u s " (Carta de Carlos S a m p a i o para
M r E g a n , 2 5 j u l h o d e 1911 - A N P F V M 7 5 4 ) .
57
A. C. E l - K a r e h . Filha branca de mãe preta: a Companhia de Estrada de Ferro D. Pedro II,
1855-1865. Petrópolis.Vozes, 1982.
58
M. Paul Serre, vice-consul de 1ère classe charge de la gérance du C o n s u l a t de France

36 | Ana Lúcia Duarte Lanna


A M a d e i r a - M a m o r é aparece c o m o espetáculo de h o r r o r neste cená-
59
r i o . C o n f o r m e fomos apontando, em outros m o m e n t o s do texto, o
problema da " i m p r o b i d a d e administrativa" levou inúmeras linhas à
falência e terem sido encampadas pelo governo, arrendadas p o r par-
ticulares nacionais ou estrangeiros nunca modificou este quadro de
desmandos, p e r m a n e n t e na história ferroviária em particular e na
dos serviços públicos em geral, no Brasil.
Mas, voltando à B R C , a crise de 1914, a nomeação do receiver
C a m e r o n Forbes, a falência de 1917 e a reorganização da empresa
em 1918 não e l i m i n a m Farquhar e seus seguidores dos n e g ó c i o s
ferroviários e n e m m e s m o da administração. Da mesma forma, não
coíbem os abusos, desmandos e superposição de interesses particu-
lares e b e m público. O problema colocado na reorganização era c o m o
retirar Farquhar da direção dos negócios, a fim de responder às exi-
gências dos credores internacionais, mas, ao m e s m o t e m p o , m a n t e r
sua influência essencial para viabilizar os negócios j u n t o ao governo
60
brasileiro .
As promessas de desenvolvimento, integração do território, povoa-
m e n t o e colonização, pluralidade de atividades econômicas e cresci-
m e n t o urbano p e r m a n e c e r a m utopias não realizadas. O m o n o p ó l i o
das ferrovias no comércio nunca se concretizou, a velocidade nunca
ocorreu. Mas a corrupção, os desvios e os desmandos, envolvendo o
dinheiro público no Brasil e o capital de investidores, foram práticas
recorrentes e constitutivas da empresa, fossem quais fossem seus d i -
rigentes.

à Bahia à son excellence M o n s i e u r S t e p h e n P i c h o n , s e n a t e u r et ministre des affaires


etrangeres à Paris. Chemins de fer de état de Bahia et nord est brésilien (5e rapport) reservé
D i r e c t i o n de affaires politiques et c o m m e r c i a l e s , sous direction d ' A m e r i q u e , n ° 7 1 , t.
32, pp. 7 0 / 8 1 , Bahia, 12 de s e p t e m b r e 1 9 1 3 , e Le gerant du consulat de france à s o n
excelence M. le Ministre des Affaires Etrangeres à Paris, Rapport general sur la Compagnie
des chemins de fer fédéraux de l'est brésilien (confidentiel) C o n s u l a t de France à Bahia,
Brésil, D i r e c t i o n des Affaires Politiques et Commerciales, Sous D i r e c t i o n D ' A m e r i q u e ,
n° 3 5 , Bahia, 1 a o u t 1912, C o r r e s p o n d a n c e Politique et C o m m e r c i a l e , N o u v e l l e
Serie, tomo 30, MAE/Paris.
59
M. F. Rodrigues, A ferrovia do diabo: história de uma estrada de ferro na Amazônia. São
Paulo, M e l h o r a m e n t o s .
60
E x p o s é C a m e r o n Forbes, receiver B R C a u x C o m i t ê s Français d ' O b l i g a t o i r e s . P a -
ris, 21 de fevrier de 1916, in: Correspondance Politique et Comrnerciale, Nouvelle Serie t.
23, C h e m i n d e Fer j u i n 1 9 1 5 - 1 9 1 8 , p . 6 7 , M A E / P a r i s .

Ferrovias no Brasil 1870-1920 | 37


Abreviaturas
Assotiation N a t i o n a l e des P o r t e u r s Français des Valeurs Mobilieres - A N P F V M
Brazil R a i l w a y C o m p a n y — B R C
C o m p a n h i a Paulista de Estradas de Ferro — C P E F
M i n i s t è r e des Affaires Étrangères - M A E
São P a u l o R i o G r a n d e - S P R G

Bibliografia

A. C. E l - K a r e h . Filha branca de mãe preta: a Companhia de Estrada de Ferro D. Pedro II,


1855-1865. Petrópolis,Vozes, 1982
A R A N H A , G e r v á c i o . " T r e m , m o d e r n i d a d e e i m a g i n á r i o na Paraíba e região: tramas
p o l í t i c o e c o n ô m i c a s e práticas culturais ( 1 8 8 0 - 1 9 2 5 ) " . Tese de D o u t o r a m e n t o ,
UNICAMP, 2001.
B A R J O T , D o m i n i q u e et alli, La France au XIX siècle. Paris, P U F , 1 9 9 5
B E R T R A N D , C. e Grusinski, S. História do Novo Mundo. São Paulo, 1998
C A R V A L H O , M a r i a Alice R e z e n d e de. O quinto século: André Rebouças e a construção do
Brasil. R i o d e Janeiro, R e v a n , 1998
C E C H I N , José. " A c o n s t r u ç ã o e o p e r a ç ã o das ferrovias n o Brasil d o século X I X " .
Dissertação d e M e s t r a d o , U N I C A M P , 1 9 7 8 .
D E B E S , Célio. A caminho do Oeste. História da Companhia Paulista de Estrada de Ferro.
S.n.t.
F R E Y R E , G i l b e r t o . Os ingleses no Brasil
G A U L D , Charles. The last Titan: Percival Farquhar 1864-1953. American Entrepeneur in
Latin America. California, Institute Studies, 1 9 7 2
G R E M A U D , A m a u r y Patrick. " O Brasil e o f l u x o internacional d e capitais, 1 8 7 0 -
1930: o caso da Brazil R a i l w a y C o m p a n y " . São Paulo, Dissertação de M e s t r a d o ,
F E A U S P , 1992.
H A R D M A N , Francisco F o o t . Trem Fantasma, a modernidade na selva. São Paulo, C o m -
p a n h i a das Letras,1988.
H O B S B A W M , E. A era do capital, 1848-1815. R i o de Janeiro, Paz e Terra, 1 9 8 2 .
L A M O U N I E R , M a r i a Lúcia. "Ferrovias, agricultura d e e x p o r t a ç ã o e m ã o - d e - o b r a " ,
in História econômica e história das empresas, III. 1 (2000).
L A N D E S , D a v i d . O Prometeu Desacorrentado.
L A N N A , A n a Lúcia D u a r t e . A transformação do trabalho. C a m p i n a s , 1 9 8 8 .
LEVY, M a r i a Bárbara e SAES, Flávio. " D í v i d a e x t e r n a brasileira 1 8 5 0 - 1 9 1 3 : e m p r é s t i -
m o s públicos e p r i v a d o s " , in História econômica e história de empresas IV.1(2001). São
Paulo, H u c i t e c / A B P H E , 1998.

38 | Ana Lúcia Duarte Lanna


L E W I S , C o l i n . Public policy and private initiative: railway building in São Paulo 1860-1889.
L o n d r e s , 1991
M. F. R o d r i g u e s . A ferrovia do diabo: história de uma estrada de ferro na Amazônia. São Paulo,
Melhoramentos.
M A R T I N S , M a r g a r e t h G. " C a m i n h o s tortuosos: um painel entre o Estado e as e m p r e -
sas ferroviárias brasileiras, 1 9 3 4 - 1 9 5 6 " . Tese de D o u t o r a m e n t o , História U S P , 1 9 9 5 .
M A T T O O N , R . " T h e C o m p a n h i a Paulista d e Estradas d e Ferro, 1 8 6 8 - 1 9 0 0 : a local
railway e n t e r p r i s e in São Paulo, Brazil". Tese de D o u t o r a m e n t o , Yale University,
1971.
M A T T O S , Ilmar. O tempo Saquarema discute a c o n s t r u ç ã o da cidadania no Brasil em
f i n a i s d o século X I X .
P I N T O , A d o l p h o A. História da viação pública de São Paulo. São Paulo, 1977.
R I B E I L L , G e o r g e s . "Les fondations strategiques des g r a n d e s gares p a r i s i e n n e s " , in
K a r e n B o w i e ( O r g . ) . Les grandes gares parisiennes du XIX siècle.
R O S A , Lea B . R . " A Estrada d e F e r r o V i t ó r i a - M i n a s , 1 8 9 0 - 1 9 4 0 " . D i s s e r t a ç ã o d e
Mestrado, História-USP, 1976.
SAES, Flávio. Ferrovias no Brasil. São Paulo, H u c i t e c , 1.
________. " O s i n v e s t i m e n t o s franceses no Brasil: o caso da Brazil R a i l w a y C o m p a n y
1 9 0 0 - 1 9 3 0 " , in F. M a u r o . Transport et commerce em Amerique Latine. Paris, H a m a t t a n ,
1990.
S I N G E R , Paul. " O Brasil n o c o n t e x t o d o capitalismo internacional, 1 8 8 9 - 1 9 3 0 " , i n
Boris Fausto ( O r g . ) . História Geral da Civilização Brasileira, t o m o III, v. 1. São P a u l o ,
1989.
T E L L E S , P e d r o Silva. História da engenharia no Brasil. R i o de Janeiro, 1 9 8 4 .
T O M A N I K , G. Jundiaí: cronologia histórica. Literaite, 1 9 9 3 .

Fontes primárias

A R A R I P E , Alencar. História da Estrada de Ferro Vitória Minas.


B E C Q U É , Emile. L'Internationalisation des capitaux, Paris, 1 9 1 2 .
B R O M B E R G E R , H. A. Les chemins de fer exotiques. Paris, E d . M o n i t e u r E c o n o m i q u e ,
1913.
R E B O U Ç A S , A n d r é . Diário e notas autobiográficas. R i o de Janeiro, José O l y m p i o , 1 9 3 8 .

Jornais

Le Journal, 19 de j u l h o de 1909, in Correspondance Politique et Commerciale, Nouvelle


Serie 1 9 0 8 - 1 9 1 0 , t. 28. M A E / P a r i s .
L'Argent,23 de j a n e i r o de 1 9 1 1 , ANPFVM D 259.
Le Marché. 10 n o v 1 9 1 2 . p . 7 B, 1 7 8 - 3 , in Correspondance Politique et Comrnerciale, N o u v e l l e
Serie, t . 3 1 , M A E / P a r i s .

Ferrovias no Brasil 1870-1920 | 39


Relatórios e correspondências
" C o m p a g n i e des C h e m i n s de Fer du Paraná, confidentielle, nº 7 8 " , 08 de o u t u b r o de
1897, in Correspondance Politique et Conunerciale, N o u v e l l e Serie 1 8 9 7 / 1 9 1 8 t o m o
27, M A E / P a r i s .
"Prefecture de Police C a b i n e t du Préfet 1er B u r e a u " , in Direction Politique et Commerciale
Série B cartton 178 dossier 30d. Paris, fevrier de 1914, pp. 1 2 6 / 1 2 9 , M A E / P a r i s .
ANPFVM 369.
ANPFVM 754 A 3 1 , A l b e r t o Gaston Sengès, e n g e n h e i r o fiscal, chefe do distrito. Lettre
Officiele n° 48 Confidentiel. Cópia do Relatório do 12º distrito de Inspeção Federal das
Ferrovias encaminhado ao Sr.Jose Eustaquio de Lima Brandão. Curitiba, 29 de setembro de
1913. A N P F V M 7 5 4 A 3 5 .
ANPFVM 754 A 35
Assotiation National des Porteurs Français des Valeurs Mobilie annuaire 1915-1920, p. 159.
Brésil Economique, 13 de o u t u b r o de 1913.
C a r t a d e Carlos S a m p a i o para M r . Egan, 2 5 j u l h o d e 1 9 1 1 . A N P F V M 7 5 4
Correspondance Politique et Commerciale, N o u v e l l e Serie 1 8 9 7 - 1 9 1 8 C h e m i n s de Fer I
dec. 1 8 9 1 , j u i n 1897, t . 2 6 , M A E / P a r i s
E x p o s é C a m e r o n Forbes, receiver B R C a u x C o m i t ê s Français d'Obligatoires. Paris, 2 1
de fevrier de 1916, in Correspondance Politique et Commerciale N o u v e l l e Serie t. 2 3 ,
C h e m i n d e Fer j u i n 1 9 1 5 - 1 9 1 8 , p . 6 7 , M A E / P a r i s .
M. Paul Serre, v i c e - c o n s u l de 1ère classe chargé de la gérance du C o n s u l a t de France
à Bahia à son excellence M o n s i e u r S t e p h e n P i c h o n , senateur et ministre des affaires
etrangeres à Paris, Chemins dc fer de état de Bahia et nord est brèsilien (5e rapport) reservé
D i r e c t i o n de affaires politiques et commerciales; Sous direction d ' A m e r i q u e n° 7 1 ,
t. 32, p p . 7 0 / 8 1 , Bahia, 12 de s e p t e m b r e 1 9 1 3 , e Le gerant du consulat de france à
son e x c e l e n c e M. le Ministre des Affaires Etrangeres à Paris, Rapport general sur la
Compagnie des chemins de fer fédéraux de l'est brésilien (confidentiel). C o n s u l a t de France
à Bahia Brésil, D i r e c t i o n des Affaires Politiques et C o m m e r c i a l e s , Sous D i r e c t i o n
D ' A m e r i q u e , n° 3 5 , Bahia, 1 aout 1912. C o r r e s p o n d a n c e Politique et Commerciale
N o u v e l l e Serie t o m o 3 0 , M A E / P a r i s .

Percival Farquhar, Carta e Relatório encaminhados a M. Cameron Forbes. R i o de Janeiro, 4


de d e z e m b r o de 1914 e 7 de j u n h o de 1 9 1 5 . ANPFVM.
Projects des c h e m i n s de fer en Santa C a t a r i n a . Correspondance Politique et Commerciale,
N o u v e l l e Serie, t. 2 8 , dossie 3, de 27 de n o v e m b r o de 1909, M A E / P a r i s .
R è g l e m e n t p o u r l'Administration au Brésil de la Brazil Railway C o m p a n y et entreprises
subsidiaires.
Relatório apresentado à Assembléia Legislativa Provincial de São Paulo no dia 2 de fevereiro de
1868 pelo presidente da mesma Província Conselheiro Joaquim Saldanha Marinho.
Relatório Molitor, 1916 ANPFVM.

40 | Ana Lúcia Duarte Lanna

Você também pode gostar