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8º Encontro da Associação Brasileira de Ciência Política

Gramado, 1 a 4 de agosto de 2012.

Área Temática: Eleições e Representação Política

Governança eleitoral: incentivos institucionais e competição partidária.

Gabriela da Silva Tarouco (UFPE)

Resumo:

O estudo discute a relação entre governança eleitoral e incentivos institucionais


ao comportamento partidário. O conceito de governança eleitoral abrange
aspectos institucionais relacionados aos processos eleitorais tais como a
formulação legislativa, a condução e implementação das eleições e o
processamento de conflitos, indo além das variáveis do sistema eleitoral
usualmente mobilizadas nas análises de sistemas partidários. As instituições
que regulam e operam os processos eleitorais podem funcionar com diferentes
graus de independência, especialização, centralização, burocratização e
delegação. Estas características afetam as expectativas dos atores políticos e o
comportamento dos partidos. O artigo apresenta uma proposta de
operacionalização das dimensões da governança eleitoral para aplicação em
estudos comparados.

1
Governança eleitoral: incentivos institucionais e competição partidária 1.

Gabriela Tarouco (UFPE)

1. Introdução

A despeito de ser um aspecto fundamental da democracia contemporânea, a


competição partidária assume formas muito variadas entre os diferentes
sistemas políticos. A quantidade de partidos envolvidos nas disputas eleitorais,
o grau de polarização ideológica, os padrões de coligação, os níveis de
volatilidade eleitoral e de nacionalização dos partidos são elementos frequentes
nos estudos dos sistemas partidários, todos referentes à atividade de
competição eleitoral dos partidos. A variação nestes aspectos, por sua vez, tem
sido tratada pela ciência política como produto da combinação entre clivagens
sociais ou políticas e incentivos institucionais gerados pelos sistemas eleitorais.

Assim, há uma vasta literatura teórica estabelecendo os mecanismos da


relação entre o comportamento dos partidos e dos eleitores e os regimes
eleitorais e sistemas de governo e uma literatura maior ainda testando
empiricamente estas relações. A expectativa neoinstitucionalista de que
instituições importam em geral não tem sido frustrada. As perspectivas de
consolidação das democracias da terceira onda têm sido discutidas a partir
destes pressupostos.

Entretanto, há uma série de arranjos institucionais nacionais que variam entre


países com as mesmas macro-instituições e que têm sido negligenciados por
esta literatura. Instituições que conduzem os processos eleitorais se organizam
e funcionam de diferentes maneiras e não há razão a priori para supor que não
afetem o comportamento dos atores políticos, ou afetem menos que o sistema

1
Este trabalho contém resultados parciais do projeto de pesquisa “Indicadores de Governança
Eleitoral: um estudo metodológico”, em andamento com auxílio do CNPq.

2
eleitoral, por exemplo. Os órgãos encarregados de administrar os processos
eleitorais, os canais de solução de conflitos, as regras sobre elegibilidade,
sobre elaboração legislativa, sobre financiamento e recrutamento partidário,
todos estes aspectos são institucionais e produzem incentivos específicos ao
comportamento dos partidos e dos eleitores.

Neste artigo, o conceito de Governança Eleitoral é explorado como um recurso


para agregar analiticamente todos os elementos institucionais envolvidos nos
processos eleitorais. Os incentivos gerados pelos diferentes modelos são
discutidos para defender o argumento de que tais incentivos afetam a qualidade
da competição eleitoral.

2. O conceito de Governança Eleitoral

Governança eleitoral é um conceito relativamente recente na ciência política e


foi formulado para agregar analiticamente todos os aspectos relacionados aos
processos eleitorais. Salvo engano, as primeiras menções aparecem em um
número especial da International Political Science Review de 2002, que reúne
vários artigos de discussão conceitual e teórica, além de estudos comparados
de governança eleitoral em democracias recentes (África e América Latina). A
proposta dos formuladores (Mozaffar and Schedler 2002) era elaborar um
instrumento capaz de incorporar, nas pesquisas comparadas sobre democracia
e transições, vários elementos que afetam as eleições, mas que geralmente
são tratados separadamente.

Na introdução ao referido número especial da revista, governança eleitoral é


apresentada como um conjunto de atividades de rotina que propiciam a
eleitores, partidos e candidatos uma certeza procedimental que legitima a
incerteza quanto aos resultados, inerente a eleições competitivas.

Segundo Mozaffar e Schedler (2002),

3
“Electoral governance is the wider set of activities that creates and
maintains the broad institutional framework in which voting and
electoral competition take place.”

Os autores identificam três níveis em que a governança eleitoral opera: rule


making, rule application, and rule adjudication. No primeiro ocorre a elaboração
das normas que devem reger o processo eleitoral, é o processo legislativo. No
segundo, ocorre a condução do processo eleitoral em si e a organização das
atividades envolvidas nas eleições – seria a administração das eleições. No
terceiro nível são processados os conflitos entre os atores, acolhidas as
queixas e decididos os litígios - seria o processo de adjudicação.

O nível do rule making geralmente é estudado em pesquisas sobre regras do


sistema eleitoral, tanto do ponto de vista descritivo quanto em análises
relacionais, como variável resultante de processos de escolha institucional ou
como variável explicativa para configurações do sistema partidário, por
exemplo.

Os níveis rule application e rule adjudication, por serem frequentemente


responsabilidade de uma mesma instituição – os chamados Electoral
Management Board (IDEA 2005) – costumam ser tratados conjuntamente nos
mesmos estudos.

No Brasil o conceito de governança eleitoral aparece pela primeira vez, salvo


engano, em uma pesquisa de doutorado da PUC-SP (Marchetti Ferraz Jr.
2008) sobre a relação entre o judiciário e as regras eleitorais. Mais
recentemente, também na área de estudos sobre a judicialização da política, o
conceito apareceu em mais duas teses de doutorado, apenas mencionado,
sem maiores desenvolvimentos (Vale 2009; Lima 2011).

Estudos que se debruçam apenas sobre um ou dois dos três níveis da


governança eleitoral citados acima necessariamente negligenciam alguma
variável importante. Trata-se de uma escolha do analista que se justifica em
pesquisas individuais em que o tempo e os recursos são mais limitados.
Entretanto, um progresso qualitativo do conhecimento a este respeito
pressupõe o tratamento integrado e simultâneo de todos os aspectos relativos
aos processos eleitorais.

4
No texto que formaliza pela primeira vez o conceito de governança eleitoral,
Mozaffar e Schedler (2002) apontam para os desafios a serem enfrentados no
seu estudo e identificam as seis dimensões nas quais as escolhas institucionais
dos países a respeito da governança eleitoral devem ser analisadas:

a) centralização na condução dos processos eleitorais;

b) burocratização do aparato institucional encarregado do processo;

c) independência das instituições;

d) especialização das instituições por funções a serem desempenhadas;

e) grau de delegação a atores independentes

f) nível de regulação das relações entre os atores.

Estas dimensões, segundo os autores, devem ser consideradas como


articuladas no que eles chamam de “estrutura da governança eleitoral” e sobre
todas elas há ainda que explicar sob quais condições são feitas as escolhas
institucionais, o que as determina, e que efeitos produzem.

Ainda segundo Mozaffar e Schedler (2002), tais desafios podem ser


enfrentados com recurso a diferentes abordagens. Uma possibilidade é a
abordagem compreensiva, também chamada de check-list, em que se produz
uma lista de itens a serem monitorados, geralmente mais viável em estudos de
caso. A segunda abordagem é a seletiva, em que a análise se restringe a
poucos aspectos para viabilizar a comparação. A terceira abordagem é a
subjetiva, feita através da pesquisa com as percepções das vítimas da
manipulação eleitoral (à maneira como são feitas algumas medidas de
corrupção). A última abordagem é a indireta, que toma os resultados eleitorais
como indicadores (a observância de alternância no poder seria indicativa de
eleições corretamente conduzidas). Cada uma destas alternativas tem seus
próprios pressupostos normativos e limitações operacionais.

Os autores recomendam, para estudos internacionais comparados, a


combinação da abordagem seletiva com a subjetiva, dada a importância, que
deve ser reconhecida, dos partidos de oposição e suas denúncias. Nenhum
outro ator teria mais a perder com eleições manipuladas e por isso a

5
legitimação dos processos eleitorais pela oposição é um elemento crucial da
governança eleitoral.

3. Governança eleitoral e efeitos sobre a competição partidária

A credibilidade dos processos eleitorais é uma questão crucial para a


democracia, tanto do ponto de vista dos interesses dos atores (governo e
oposição) quanto da perspectiva da análise científica que se ocupa dos
conceitos como democracia, legitimidade, qualidade da representação e
accountability, e de suas manifestações empíricas.

A ciência política apenas recentemente passou a se debruçar sobre as


instituições responsáveis por esta credibilidade. Há uma ampla agenda
internacional de pesquisa a este respeito e uma tímida produção bibliográfica
apenas começa a ganhar visibilidade.

A preocupação com eleições livres e imparciais começou a se generalizar no


bojo do processo de transição conhecido como terceira onda de
democratização (Marchetti 2008). Países que estavam em meio ao processo
de construção de novas instituições tornaram-se o foco da atenção da ciência
política por constituírem uma espécie de laboratório para o estudo das
instituições. A probabilidade de consolidação das novas democracias foi
relacionada ao sistema eleitoral adotado, ao número de partidos, ao sistema de
governo. As regras e o funcionamento das instituições responsáveis pelos
processos eleitorais, entretanto, só recentemente se tornaram objeto de
atenção. Tais instituições seriam responsáveis pela credibilidade das eleições
e, por conseguinte pela legitimidade que tanto situação quanto oposição podem
conferir a elas. Tal legitimidade, por sua vez, seria crucial para o sucesso da
transição e para a estabilidade do novo regime.

6
Assim, várias organizações passaram a acompanhar os processos eleitorais
através do mundo e graças a isto a ciência política dispõe hoje de bancos de
dados muito ricos, tais como os do IDEA, a da Freedom House, entre outros.

A possibilidade de acesso a informações sobre os processos eleitorais ao redor


do mundo tem permitido o desenvolvimento de análises comparadas dos mais
variados aspectos destes processos eleitorais. As regras e instituições que
definem a condução das eleições já foram tratadas de forma descritiva (Sawer
2001; Marchetti 2008), como variáveis independentes em estudos sobre
qualidade da democracia (Lehoucq 2002; Hartlyn, McCoy et al. 2008) e como
variável dependente em estudos sobre as origens do desenho institucional
(Mozaffar 2002).

Uma das vertentes mais profícuas destes estudos é a que compara os EMB
(Electoral Management Boards) entre diferentes países. Responsáveis pela
legitimação das autoridades políticas e pela definição inequívoca de
ganhadores e perdedores nas disputas eleitorais, estes órgãos acabam sendo
responsáveis também pela produção da confiança na opinião pública e em
última instância, pela própria credibilidade e legitimidade das eleições. A forma
como operam, seu desempenho na gestão dos processos eleitorais e sua
independência afetam as reações dos atores, sua propensão a aceitar
resultados adversos e o apoio ao sistema e às regras do jogo em geral. (Monte
2011).

Estas questões podem parecer, à primeira vista, pouco relevantes em um


momento em que quase todos os países podem ser considerados
democratizados. Entretanto, em muitas das novas democracias, a realização de
eleições não vem sendo acompanhada da sua lisura. E mesmo em
democracias consolidadas a ocorrência de denúncias e escândalos (como o
das eleições de 2000 nos Estados Unidos, por exemplo) indica que o
comportamento infrator nas eleições pode emergir quando não há incentivos
institucionais suficientes para contê-lo.2 A emergência de regimes híbridos, com
eleições não competitivas ou em que os resultados eleitorais são manipulados,
tem chamado a atenção dos pesquisadores para a questão da qualidade da

2
No Brasil, o caso da fraude nas eleições de 1994 no Rio de Janeiro é sempre lembrado como
exemplo da importância das rotinas operacionais para a legalidade das eleições.

7
democracia, especialmente na América Latina, África e Leste europeu. (Way
and Levitsky 2002).

A importância dos EMB fica mais visível quando eles não funcionam a
contento, ou seja, em casos de fraude ou outras formas de delitos ou
transgressões eleitorais. Onde denúncias de favorecimento de candidatos do
governo ou de cerceamento da oposição são frequentes, por exemplo, os
atores políticos incorporam esta informação como um dado do sistema com o
qual devem interagir. Se o ambiente eleitoral não é competitivo, os partidos de
oposição não têm incentivos para investir em atividades eleitorais.

O estudo de fraudes e infrações eleitorais tem se desenvolvido bastante a partir


dos dados gerados pelos relatórios de observadores internacionais de eleições
(Birch 2012). Algumas organizações como a União Europeia ou as Nações
Unidas (ONU) enviam regularmente missões de observação eleitoral aos
países. Um exemplo é a iniciativa do projeto “Electoral Malpractice and
Electoral Manipulation in New and Semi-Democracies”, da Universidade de
Essex, na Inglaterra. O grupo de pesquisadores, coordenado por Sarah Birch,
desenvolveu uma metodologia para elaborar um “índice de manipulação e
desvios” eleitorais, a partir da análise e codificação de relatórios de
observadores internacionais de eleições.

Recentemente, estudos mobilizam o desempenho e as capacidades


institucionais dos EMB como variável independente na explicação da
consolidação das novas democracias (Monte 2011) e da confiança nas
instituições democráticas em geral (Molina and Hernández 1998). A ocorrência
de fraudes, por sua vez, aparece como variável explicativa do número de
partidos nas novas democracias, através do mecanismo dos incentivos
institucionais necessários para aceitar e seguir as regras do jogo competitivo
(Donno and Roussias 2012). Regras que regulam a transparência dos
processos eleitorais, tais como o financiamento das campanhas e o
recrutamento e seleção de candidatos, por sua vez, também têm sido
acionadas na discussão do papel público dos partidos políticos no contexto de
declínio das suas funções representativas (Peschard 2005).

Mais especificamente, Elkit e Reynolds (2005) chegam a listar as


características dos modelos de governança eleitoral que estão intimamente

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relacionadas com o funcionamento dos sistemas partidários. Muito além do
EMB e do próprio sistema eleitoral, os processos de educação para eleições, os
procedimentos de cadastramento de eleitores, a complexidade do ato de votar
e a regulação das campanhas são, entre outros aspectos, institutos próprios da
governança eleitoral que afetam diretamente a atuação dos partidos.

É razoável supor que em um ambiente eleitoral mais protegido contra


manipulações os partidos terão mais incentivos para participar da competição
eleitoral e para respeitar os resultados. Ao contrário, em disputas marcadas
pela discricionariedade dos gestores, pela parcialidade nos julgamentos e pela
vulnerabilidade a fraudes, haverá menos incentivo ao comportamento
competitivo democrático.

O quadro 1 abaixo propõe possíveis efeitos de cada uma das dimensões da


governança eleitoral sobre os incentivos à competição partidária, conforme
algumas capacidades que se espera de um EMB. Um modelo descentralizado,
por exemplo, ao mesmo tempo que agilizaria os processos, seria menos
eficiente na prevenção de fraudes do que um sistema centralizado. Da mesma
forma, um modelo menos regulado oferece mais liberdade de ação aos
gestores, facilitando o fluxo dos processos, mas ao mesmo tempo, ao oferecer
abertura para discricionariedade, pode comprometer a credibilidade.

9
Quadro 1: Incentivos à competição partidária conforme dimensões e funções de governança eleitoral:

Funções relevantes para a competição partidária

Dimensão
Produção de decisões
Eficiência da gestão Prevenção de fraudes Garantia de direitos
legítimas

Centralização: controle central


risco de ineficiência, reduz discricionariedade uniformiza leis e uniformiza leis e
sobre a organização das eleições
morosidade e rigidez local procedimentos procedimentos
nacionais

Burocratização: caráter reduz erros por aumenta accountability impessoalidade dos complexidade dos
permanente da comissão eleitoral inexperiência e por identificação dos procedimentos favorece processos pode atrasar
e do aparato burocrático improvisação responsáveis aceitação dos resultados provimento de direitos
rotinas próprias e
Independência: ausência de autonomia favorecem aumenta confiança na aumenta confiança na aumenta confiança na
vínculo com o executivo agilidade dos neutralidade neutralidade neutralidade
processos
separação de expertise favorece divisão de tarefas
Especialização: separação entre beneficia-se da confiança
competências favorece detecção de facilita canalização de
as funções administrativa e judicial no judiciário
o desempenho irregularidades demandas
Delegação: tarefas e poder de evita favorecimentos
afasta atores
indicar membros da comissão reduz impasses por aumenta confiança na partidários e
interessados do
eleitoral a cargo de órgãos não embates partidários imparcialidade cerceamento de
processo decisório
partidários opositores
Regulação: grau de limitação da risco de ineficiência, limita discricionariedade beneficia-se da maior reduz oportunidades de
discricionariedade dos agentes morosidade e rigidez dos agentes conhecimento prévio das decisões ad hoc
pelos principais, através de regras do jogo
restrições formais

10
Uma configuração que produz incentivos à competição eleitoral, em alternativa
a outras estratégias de oposição3, teria, por exemplo, uma gestão centralizada,
com comissões e burocracia permanentes, independentes do executivo e não
partidárias, além de uma detalhada regulamentação e da divisão das tarefas
administrativas e judiciais entre autoridades diferentes. Já a produção da
confiança geral no sistema seria favorecida por desenhos mais eficientes e
ágeis, para os quais a descentralização pode ser uma boa opção.

O quadro 2 abaixo apresenta uma proposta de operacionalização para as


dimensões da governança eleitoral. Cada dimensão pode estar ausente,
parcialmente presente ou plenamente presente em uma configuração
institucional e poderia ser codificada com as categorias 0,0, 0,5 e 1,0,
respectivamente:

Quadro 2: Operacionalização das dimensões da governança eleitoral:

0 0,5 1,0
Dimensão
(ausente) (parcial) (plena)
eleições organizadas
as eleições são por EMB locais mas as eleições são
Centralização organizadas por EMBs uma instância nacional organizadas por EMB
locais cumpre papéis centrais
importantes
comissões eleitorais ad
comissões eleitorais e comissões eleitorais e
Burocratização hoc e burocracia
burocracia ad hoc burocracia permanentes
permanente
executivo participa das
EMB interno ao nomeações mas nenhum vínculo com
Independência
executivo decisões são executivo
autônomas
funções concentradas
Especialização divisão interna no EMB EMBs diferentes
no mesmo EMB

coordenação entre partidos só nomeiam


Delegação partidos excluídos
partidos membros

legislação genérica, rotinas locais a critério todas as rotinas são


Regulação
sem previsão de rotinas da autoridade local regulamentadas

3
Por exemplo, o apelo para mobilizações sociais ou golpes.

11
As medidas acima são inspiradas na metodologia proposta por Monte
(2011:209) e permitiriam a construção de um indicador de governança eleitoral,
calculado pela média de todas as dimensões e variando de 0 a 1. Um modelo
em que todas as dimensões estivessem plenamente presentes, por exemplo,
teria o valor 1 e um modelo em que todas as dimensões estivessem ausentes
teria o valor 0. Por sua vez, a uma configuração hipotética descentralizada, não
burocratizada nem especializada, mas altamente regulada, com influência
parcial dos partidos e independente do executivo, por exemplo, corresponderia
um índice de 0,44.

A operacionalização proposta acima poderia ser útil na comparação de modelos


de governança através dos países, o que, por sua vez, permitiria mobilizar
estas variáveis no estudo da variação das dinâmicas eleitorais e partidárias.

4. Governança eleitoral no Brasil

O modelo brasileiro de governança eleitoral, segundo Marchetti (2008),


favorece a ocorrência do fenômeno que ficou conhecido como judicialização da
política. Trata-se de uma atuação do poder judiciário que extrapola os limites
originais das suas atribuições, para interferir na atividade do legislativo através
da produção de normas e na atividade do executivo, através do provimento de
direitos aos cidadãos que recorrem à justiça, por exemplo. O tema da
judicialização da política é complexo demais para ser tratado aqui, além de já
contar com uma vasta produção acadêmica especializada. Entretanto esta é
uma questão que não pode ser ignorada na discussão da governança eleitoral
no Brasil, exatamente pelo papel fundamental da Justiça Eleitoral, o nosso
EMB, na trajetória da democracia brasileira.

A justiça eleitoral brasileira afeta a competição partidária de duas maneiras:


uma delas corresponderia ao citado processo de judicialização da política e a
4
(0,0 + 0,0 + 0,0 + 1,0 + 0,5 + 1,0)/6 = 0,416

12
outra seria através das suas atividades próprias de EMB. No primeiro caso,
através da edição de normas sobre questões eleitorais, sobre as quais os
parlamentares deveriam legislar mas demoram a fazê-lo, o judiciário altera as
regras da competição político-partidária (Marchetti 2008). Alguns exemplos
frequentes neste debate são a verticalização das coligações eleitorais, a
redução do número de vereadores e a fidelidade partidária. No segundo caso, a
justiça eleitoral produz incentivos à participação gerando a confiança na lisura
do processo eleitoral, através da sua atuação na administração das eleições e
na solução de dissídios.

A centralidade do papel exercido pela Justiça Eleitoral na democracia brasileira


já foi apontada na literatura. Segundo Sadek (1995),

“(...) a Justiça Eleitoral foi mantida mesmo durante o regime militar, de


1964 a 1985. Houve, nesse período, uma série de deliberadas
restrições na competitividade, a começar pela implantação do
bipartidarismo compulsório. Mas a Justiça Eleitoral continuou a crescer
institucionalmente, e foi sua atuação como um organismo independente
que garantiu a proclamação de resultados contrários aos esperados
pelo regime. O próprio processo de abertura iniciado nos anos 70,
ancorado como foi na disputa eleitoral, teria sido impensável se o Brasil
não dispusesse, a essa altura, de procedimentos razoavelmente
confiáveis de administração e controle do processo eleitoral.”
(...)
“Dissemos em capítulo anterior que a disputa eleitoral não é um
mecanismo típico ou exclusivo do regime democrático, embora apenas
neste tenha importância decisiva no processo político. Em sistemas
semi-competitivos ou não-competitivos, as eleições não implicam em
mudanças reais na estrutura do poder, mas nem por isso deixam de
desempenhar um papel relevante. Utilizadas como mecanismo de
sobrevivência ou de reprodução desses sistemas, elas podem também
levar à sua corrosão. Estes efeitos, entretanto, dependerão
fundamentalmente do grau de credibilidade do processo eleitoral. A
abertura brasileira de 1974-1985 é um exemplo paradigmático do que
acabamos de afirmar.”.

A Justiça Eleitoral brasileira, além de várias outras competências, concentra


atividades que são cruciais na prevenção de fraudes: o alistamento de eleitores,
a votação em si e a apuração. O cadastro de eleitores está informatizado desde
1986 e precisa ser regularmente revisado e atualizado;5 o processo de votação

5
Está em andamento uma revisão do eleitorado paralela ao recadastramento biométrico.

13
é acompanhado por fiscais dos partidos; a apuração, além de também ser
acompanhada por fiscais, vem sendo feita de forma automatizada desde a
adoção da urna eletrônica, entre 1996 e 2000.

Em todas estas etapas os atores envolvidos (partidos, candidatos e eleitores)


podem recorrer ao poder judiciário para questionar os demais ou para pedir
providências que considerem necessárias à correção do processo 6. Também
durante a fase que antecede as eleições a justiça eleitoral recebe demandas
sobre pesquisas eleitorais, propaganda irregular, pedidos de direito de
resposta, denúncias de compra de votos, de abuso do poder político ou
econômico. Após a proclamação dos resultados, a justiça recebe demandas
relativas a inelegibilidade e recursos contra a diplomação de eleitos.

Apesar do presumível custo de iniciar ações na justiça e da morosidade que se


espera dos resultados7, partidos, coligações, candidatos e eleitores não deixam
de utilizar este recurso. Uma rápida consulta à página do Tribunal Superior
Eleitoral no módulo “acompanhamento de processos” confirma a noção
corrente de que recorrer ao judiciário não é, nem para partidos de oposição
nem para os de situação, vista como inócua. Ao acessarem a justiça eleitoral,
os atores políticos reconhecem a validade da sua atuação como canal
adequado e confiável de solução de questões eleitorais, o que pode ser
interpretado como um incentivo para participar da disputa, legitimando o
sistema como um todo.

5. Considerações Finais

Algumas variáveis institucionais, para além daquelas relativas aos sistemas


eleitorais tradicionalmente mobilizadas nos estudos partidários, têm um enorme

6
Por exemplo, a substituição de um juiz em um caso em que seja considerado impedido de
agir com isenção.
7
Agradeço a Ricardo Borges por chamar atenção para este aspecto: a conhecida morosidade
do judiciário funciona como incentivo contrário ao seu uso como estratégia eleitoral.

14
potencial de afetar as expectativas que os atores políticos desenvolvem a
respeito da competição eleitoral. Disposições legais específicas e
características intrínsecas ao funcionamento dos EMB produzem efeitos sobre
a confiança no processo eleitoral e portanto sobre as decisões dos partidos
quanto à sua participação.

Até mesmo as estratégias eleitorais dos partidos, e não só durante o período de


campanha, são adotadas levando em conta todo o quadro institucional em que
operam, ou seja, levando em conta os aspectos da governança eleitoral
frequentemente negligenciados nas pesquisas comparadas.

O uso da estratégia judicial pelos partidos políticos seria irracional sem a


confiança na instituição responsável pela condução dos processos eleitorais,
como mostra o exemplo brasileiro. A competição partidária, fundamental para a
compreensão da dinâmica dos sistemas partidários, não pode ser analisada
levando em conta apenas os incentivos produzidos pelas grandes instituições.
A gestão das regras do jogo pode ser tão importante quanto o seu próprio
conteúdo e pode ser a explicação para as inúmeras variações que distinguem
os sistemas partidários em países com os mesmos sistemas eleitorais.

Evidentemente os incentivos descritos no quadro 1 são deduções não testadas


empiricamente e a categorização proposta no quadro 2 é arbitrária. Mas, se
sobreviverem ao exame da crítica, poderão subsidiar os desafios da agenda de
pesquisa, quais sejam: comparar modelos de governança eleitoral nos países
da América Latina e seus efeitos sobre a dinâmica da competição partidária.
Adicionalmente, a observação dos processos de escolha institucional nas novas
democracias pode se valer da operacionalização aqui proposta para analisar
em que condições emerge cada tipo de configuração.

6. Referências

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15
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latinoamericanas y sus factores. El efecto de los organismos electorales, el
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Recursos eletrônicos:

Electoral Malpractice Project:


http://www.essex.ac.uk/government/electoralmalpractice.

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