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*- biografia de JM feita por Jorge Caldeira para o prefácio do livro ‘A


Guerra’, de Julio Mesquita (São Paulo, ‘O Estado de S. Paulo’, 2002)

Julio Mesquita foi responsável por uma grande


revolução: a implantação do jornalismo moderno no
Brasil. Para fazer isso, realizou uma obra
extraordinariamente complexa, que exigiu sucesso
em várias frentes ao mesmo tempo. Ele precisou ser
bem-sucedido como político, empresário, jornalista e
comandante de um jornal. Eram exigências muitas
vezes contraditórias, e esta situação exigiu dele
alguns sacrifícios. O maior deles foi o de não ter uma
obra pessoal reconhecida, algo que a publicação
deste livro finalmente ajuda a começar a sanar.

Nascido em Campinas, em 1862, tornou-se jornalista


profissional em novembro de 1888, quando foi
contratado como gerente do jornal A Província de S.
Paulo. Fundado por pessoas ligadas ao Partido
Republicano Paulista, vendia 4 mil exemplares
diários, disputava a liderança do mercado local, e era
praticamente desconhecido fora da região onde
circulava. Em 39 anos de atividade, Julio Mesquita
conseguiu se tornar dono da publicação onde
começou como funcionário, transformar O Estado de
S. Paulo numa publicação de importância nacional e
montar o maior parque gráfico ao sul do equador. No
momento de sua morte, em 1927, a tiragem chegara
aos 60 mil exemplares diários – num tempo em que
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São Paulo tinha 570 mil habitantes, mais da metade


dos quais analfabetos.

Sob seu comando, portanto, aconteceu a


transformação de um órgão destinado a um grupo
relativamente limitado de leitores com interesses
políticos em outro que falava a uma sociedade
complexa. Esta mudança no sentido da atividade de
fazer jornais vinha ocorrendo no mundo desde a
segunda metade do século XIX – mas apenas Julio
Mesquita foi capaz de introduzi-la no Brasil. Aqui, os
obstáculos para a mudança foram grandes, apesar
da existência da maioria das condições necessárias
para o salto.

A imprensa brasileira dos tempos iniciais do Império


podia ser considerada das mais avançadas de seu
tempo. Naquele momento, praticamente todos os
jornais do planeta tinham as mesmas características:
eram de propriedade de políticos e extremamente
partidárias – defendiam ardorosamente o governo,
quando seu proprietário fazia parte dele, e o
detratavam como podiam, nos momentos em que
estavam na oposição. Isto era um progresso: o jornal
surgiu com a luta eleitoral e a democracia, como um
instrumento para convencer eleitores. E seu
partidarismo não se limitava às idéias. Era norma da
época em todo o mundo que o jornal, no momento
em que seus proprietários estavam no poder, tivesse
como maior fonte de renda os cofres públicos,
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através de subsídios diretos ou de contratos de


serviço vantajosos.

O Brasil imperial tinha eleições regulares e um


sistema eleitoral dos mais abertos do mundo – pois
naquela época o número de eleitores, mesmo nos
Estados Unidos ou na Inglaterra, representava
apenas uma pequena fração da população total. Era
um sistema bastante fechado, o que transformava o
jornal num veículo que circulava apenas na elite. Só
se comprava um exemplar por assinatura, a um
preço relativamente elevado, e se considerava quase
uma afronta a idéia de fazê-lo circular nas ruas.
Enquanto as coisas foram assim, o jornalismo
brasileiro podia ser comparado em pé de igualdade
ao dos maiores centros do mundo, mesmo quando
se pensava na quantidade vendida – geralmente em
torno de 2 mil exemplares.

A partir da década de 1840, a situação mudou


radicalmente. A revolução começou em Nova York,
quando Benjamin Day lançou o The Sun. Em vez de
buscar a elite, o jornal era feito especialmente para
ser vendido nas ruas. Tinha menos páginas e ligava
pouco para a possibilidade de ganhar dinheiro com
cartadas políticas. Pelo contrário, vendia algo que
era pouco compreendido na época: relatos de
acontecimentos que julgava importantes para
cidadãos comuns. A forma de vender também era
nova: vendedores de rua, que apregoavam as
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notícias mais importantes. Quando os concorrentes


começaram a prestar atenção à novidade, o Sun já
vendia 19 mil exemplares diários, mais que a soma
de todos eles reunidos. Estava feita a revolução – e
a separação no ritmo do progresso do jornalismo
brasileiro em relação aos países desenvolvidos.

O jornal em que Julio Mesquita foi trabalhar tinha


quase tudo do jornalismo partidário: defendia as
idéias republicanas, era feito por jornalistas que
militavam no partido, circulava na área de influência
do partido. Mas tinha já algumas diferenças
fundamentais. Desde o momento de sua fundação,
em 1875, todos os envolvidos no projeto sabiam que
não poderiam alimentar qualquer esperança próxima
de receber dinheiro público – e esta era a fonte
financeira mais importante para o jornalismo
partidário, sua principal razão econômica. Por isso,
montaram uma empresa com certa solidez, e
trataram de matizar o partidarismo do jornal –
tentaram desde cedo conquistar leitores não pela
concordância política, mas pela qualidade do
noticiário que ofereceriam. Tinha de ser assim,
porque só podiam sobreviver com leitores e
anunciantes.

Ainda assim, o corte político era fundamental no


jornal – e Julio Mesquita se trajava por este molde.
Filho de um comerciante português imigrado na
metade do século, sofreu de perto a influência
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republicana, que era forte em Campinas. Tal


influência não era apenas eleitoral, mas se estendia
a vários aspectos da vida da cidade. Ele estudou no
colégio Culto à Ciência, fundado pelos republicanos
locais, onde o currículo era bastante diferente do
ramerrão imperial, feito mais de catecismo que de
preparação prática. Teve como professor de história
Francisco Rangel Pestana, o primeiro diretor de
redação do jornal. A diferença de preparo se fez
notar: com apenas 15 anos de idade foi aprovado na
Faculdade de Direito de São Paulo.

Entrou no curso já como republicano convicto, e saiu


dele como um republicano radical. Além de participar
dos grupos de discussão (no Clube Republicano
Acadêmico, era colega de Alberto Salles, Júlio de
Castilhos, Assis Brasil, Pedro Lessa e Afonso Celso,
todos políticos republicanos importantes) e da
confecção de pequenas publicações partidárias,
freqüentava a Charutaria Kling, onde se reuniam os
abolicionistas mais radicais da cidade, organizadores
do grupo dos Caifazes, que promovia rebeliões em
senzalas, enfrentava capitães-do-mato, escondia os
foragidos e dava proteção jurídica a tudo isso. Mas
Julio Mesquita não limitava seus interesses à
política. Adorava literatura, o que, para um radical
como ele, naquele momento, significava tomar
posição a favor do realismo e de uma forma de
narrar na qual a moral não estava no centro da
construção do texto; Eça de Queirós era o modelo, e
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Machado de Assis – antes de se tornar um mestre


realista –, seu detrator no Brasil. Também gostava
muito de teatro, uma paixão de vários de seus
colegas de república, e de significado amplo: volta e
meia, a casa se enchia de atrizes em festas que
duravam até o último centavo de todos.

Os pendores boêmios, e mais um conjunto formado


por cabelos claros, olhos azuis, bom humor e um
otimismo jovial ajudavam, e muito, a atenuar seu
radicalismo político. Nas reuniões republicanas,
falava sempre em revoluções, jamais em evolução.
Seu primeiro discurso entre membros do partido,
num banquete em Campinas realizado em 1882,
quando tinha vinte anos, pregava a luta
revolucionária como a forma adequada para dar fim
a uma “dinastia corrupta”. A peça revolucionária foi
publicada da Gazeta de Campinas. Mas a ela logo
se somaram outras, mostrando aspectos diversos de
sua personalidade: um conto romântico adolescente
do admirador dos realistas e uma reportagem sobre
a morte e o enterro de Luís Gama, líder maior dos
Caifazes.

Em apenas um dia de 1884, Julio Mesquita viveu


três mudanças importantes. Retirou seu diploma na
Faculdade de Direito, casou-se com Lucila Cerqueira
César (filha de José Alves Cerqueira César, então o
principal dirigente republicano paulista e acionista de
A Província de S. Paulo) e mudou-se para
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Campinas, onde se instalou como sócio de um


escritório de advocacia. Um ano depois já era pai,
vereador (o mais votado da cidade) e estreava como
editorialista convidado no jornal paulistano, para
realizar uma obra que parecia o oposto de suas
idéias. No final de 1884 voltou para São Paulo, para
acompanhar o nascimento de sua primeira filha. O
evento, no entanto, coincidiu com uma eleição em
que, aproveitando-se de pleitos em dois turnos, os
republicanos fizeram um acordo com os
conservadores, no segundo turno, e elegeram dois
deputados federais.

O acordo provocou celeumas, pois significava uma


aliança com os maiores adversários. Naquele
momento, poucos republicanos, especialmente os
radicais, tinham coragem de falar abertamente no
assunto. Mas não Julio Mesquita, que iniciou em
janeiro de 1885 uma série de editoriais no A
Província de S. Paulo intitulada “Os Partidos
Políticos e as Transações”, na qual defendia a
negociação com um argumento sólido:
“Precisávamos lançar mão de todos os meios dignos
para eleger um representante nosso. A monarquia
entendeu que deveria transigir conosco. Aceitamos a
transação. Por meio dela triunfou a verdade do
sistema representativo, porque vamos ser minoria no
Parlamento – nós que somos minoria no país.
Cumprimos um dever de democratas”. Os artigos já
revelavam outra de suas características pouco
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comuns: a de manter posições muito avançadas e


reconhecer, ao mesmo tempo, a limitação de seu
alcance, que exigia negociar com os setores
majoritários. Com os editoriais, mostrava que não
confundia as duas coisas.

Com esta combinação de realismo e radicalismo ele


conseguiu, ao mesmo tempo, tornar-se um
respeitado líder dos republicanos radicais – o que
significava, naquele momento, lutar com todas as
formas contra a escravidão e pregar uma mudança
revolucionária no regime político – e um sensato
vereador e advogado, preocupado com as questões
da cidade e os interesses de seus clientes. Foi então
que se revelou um problema que limitaria suas
atividades: uma doença pulmonar, que o obrigaria a
freqüentes interrupções de suas atividades. A
primeira aconteceu em 1886, curada com uma
viagem à Argentina. No ano seguinte, quando
começava a ter um papel decisivo na adoção de
suas idéias por todo o partido (pois os abolicionistas
e os revolucionários eram uma ala minoritária até
então), uma nova crise o obrigou a parar por mais de
um ano, quando viajou para Portugal.

Com esta experiência de vida, na qual a política


ocupava muito tempo e o jornalismo era apenas um
aspecto secundário de sua atividade, ele assumiu o
cargo de gerente do jornal quando retornou ao país.
Para a imensa maioria das pessoas que viveram
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situação semelhante no século XIX, o emprego era


visto como uma oportunidade de aumentar a
influência política – pois esta, afinal, era a razão de
ser do jornalismo partidário. Mas Julio Mesquita,
mesmo com uma experiência bastante limitada em
jornalismo até aquele momento, desde o primeiro dia
entendeu as coisas de outra forma. A partir do
instante em que se tornou gerente, seu nome
praticamente desapareceu das páginas do jornal.
Nem mesmo no expediente aparecia – e esta
ausência vinha a ser, justamente, a marca mais
visível de uma imensa mudança.

Ao apagar seu nome, ele estava invertendo a ordem


dos fatores de um modo como ninguém havia feito
na imprensa brasileira até então. No jornalismo
partidário, a proposta do grupo político era o bem
mais importante, e os políticos ligados ao grupo, as
pessoas mais importantes. Esta ordem de fatores
determinava o andamento da cobertura: ela era
positiva quando os ventos favoreciam o grupo, e
negativa quando o poder ficava mais longe dele.
Como a própria denominação indica, a parte tinha
prioridade absoluta sobre o todo.

Desde o começo, Julio Mesquita tinha uma


explicação para seu comportamento atípico: para
ele, um texto sem assinatura valia muito mais que
outro assinado; enquanto este último trazia sempre
uma opinião pessoal, o anonimato permitia construir
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textos que fossem de uma instituição, e por isso


mesmo mais valiosos. Representariam o jornal todo,
não apenas um de seus membros. Este era um
argumento difícil de aceitar para a imensa maioria
dos jornalistas e articulistas da época. Mas se
tornava muito difícil argumentar contra a idéia
quando ela vinha do próprio diretor. Por isso, a idéia
acabou sendo aceita, com todas as importantes
implicações que trazia consigo.

Uma delas era a de que todos os textos do jornal


deveriam se submeter a uma norma única de
gramática e estilo, imposta por profissionais
especializados. Nem mesmo os textos dele
escapavam desta regra, sendo sempre submetidos à
revisão antes da publicação. Mesmo quando
eventualmente discordava de alguma norma, ele a
seguia. A imposição desta situação levou a uma
outra: a 10definição do texto jornalístico como algo
próprio, que não se confundia nem com artigos nem
com o material que deveria merecer publicação em
livro. Eram textos especificamente montados para
serem lidos no dia, e não deveriam merecer qualquer
preocupação com a posteridade. Destinavam-se
apenas a informar pessoas.

Todo este conjunto indicava uma outra missão para


a atividade jornalística. O espaço central da
cobertura deixava de ser a relação entre o universo
da direção dos negócios públicos e a sociedade,
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para se concentrar naquela entre o jornal e seus


leitores. No lugar da luta eleitoral, o mercado
passava a ser a instância mediadora mais
importante. Começava, no Brasil, a revolução que já
acontecera trinta anos antes nos Estados Unidos e
na Inglaterra.

Tanto quanto era inovador ao se posicionar como


jornalista, Julio Mesquita foi inovador ao tratar do
agora privilegiado aspecto do mercado – aliás, o
mais específico de sua posição inicial na empresa, a
de gerente. No jornalismo partidário, era
absolutamente comum que uma mesma pessoa se
encarregasse dos vários aspectos do negócio. Todos
eram editores, repórteres, vendedores de anúncios e
tipógrafos – atuavam um pouco em cada área. O
cargo de gerente indicava uma responsabilidade
pela administração do negócio, que jamais impediu
uma participação muito importante na vida da
redação. Julio Mesquita, enquanto exercia esta
influência na redação com seu anonimato, promovia
uma grande mudança nos aspectos comerciais do
negócio.

Enquanto a prioridade de um jornal fosse se


agüentar na oposição para forrar as burras no poder,
as boas tiragens eram um aspecto secundário do
empreendimento, demonstrando mais a influência
política do grupo que a saúde do negócio. Neste
sentido, valia a pena ser leniente na cobrança de
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assinaturas: mais leitores significavam


essencialmente mais cacife político, e mais cacife
político, mais chances de cobrar do Tesouro na hora
da vitória. Na nova realidade, menos que
instrumentos, os leitores e anunciantes passavam
para o centro das preocupações. Era necessário
criar tanto o hábito da leitura quanto o do pagamento
pelos serviços prestados pelo jornal.

Assim que entrou no jornal, Julio Mesquita atacou de


frente a primeira face do problema. Embora A
Província de S. Paulo tivesse sido o primeiro jornal
da cidade a empregar vendedores de rua – desde
1876 tinha os seus, o primeiro dos quais foi um
francês que apregoava o produto do alto de um burro
e tocando berrante, figura que aparece em seu ex-
libris –, estes tinham uma função quase marginal no
faturamento da empresa. Três semanas depois de
tomar posse, no entanto, Julio Mesquita aproveitou
um evento político trágico – a morte de alguns
populares numa manifestação republicana reprimida
pela polícia – para lançar uma campanha: doar a
receita das vendas avulsas de uma edição para as
famílias das vítimas. Neste dia, a redação se encheu
de voluntários para a tarefa de vender jornais; no
final da tarde, haviam sido vendidos 9 mil
exemplares, numa publicação que nunca imprimira
mais de 4 mil.
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Mais que tudo, a venda nas ruas tinha o efeito de


criar um novo público, anônimo e não dependente de
relações partidárias. Não demorou muito para que
este público se tornasse importante na vida do jornal.
Era um público incerto, que comprava um exemplar
quando havia algo que julgava muito importante, e
deixava de lado o hábito no dia seguinte. Por causa
deste comportamento, não era exatamente bem
atendido, até a chegada de Julio Mesquita. Sob sua
gerência, este público passou a ser tratado com
cuidado e os resultados logo apareceram. A tiragem
começou a flutuar de acordo com a importância das
notícias – havia dias em que se vendiam até 800
exemplares nas ruas, 20% a mais que a média diária
– e isto levou tanto a um aumento do faturamento
como, principalmente, ao cuidado na apresentação
do jornal.

Foi preciso um bom tempo de investimento neste


aspecto para poder atacar o segundo problema.
Quando assumiu o jornal, Julio Mesquita encontrou
uma média histórica de 45% de inadimplência entre
assinantes – e esta era uma das mais baixas da
cidade, num momento em que os leitores não
estavam no centro da preocupação de jornais
políticos. Somente oito anos depois de assumir ele
foi capaz de cortar assinaturas dos que não
pagavam – e de anunciantes que faziam o mesmo –,
acabando com o último resquício administrativo do
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jornalismo partidário. Quando conseguiu fazer isso,


já tinha feito opções de extrema importância.

O período inicial de implantação do jornalismo


moderno coincidiu com a ascensão ao poder do
grupo fundador do jornal – e este momento era o
sonho de todos os políticos, especialmente quando
se ligavam a jornais. Com a proclamação da
República, a lista de acionistas e jornalistas mudou
de qualidade na mesma velocidade com que o novo
regime obrigou a uma troca de nome da publicação,
que passou a se chamar O Estado de S. Paulo. Esta
lista passou a se confundir com a do comando
político do país. Incluía nomes como Campos Salles
(ministro da Justiça do governo provisório), José
Alves Cerqueira César (um dos integrantes do
triunvirato que governava São Paulo, e logo em
seguida governador), Francisco Rangel Pestana
(que deixou a direção de redação para fazer o
projeto da Constituição republicana e logo em
seguida se elegeu governador), Américo Brasiliense
(governador de São Paulo), João Tibiriçá Piratininga
(deputado, senador e governador de São Paulo),
Francisco Glicério (deputado e senador).

O próprio Julio Mesquita – que jamais abandonou o


gosto pela política – não escapou da transformação.
Foi secretário do primeiro governo republicano
paulista, deputado estadual, deputado federal,
senador estadual (na República Velha os estados
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tinham um senado). Ele jamais deixou de participar


da vida partidária, até o último de seus dias. E, no
entanto, fez tudo isso invertendo prioridades.
Enquanto a maioria de seus correligionários era cada
vez mais de políticos e cada vez menos de
jornalistas, ele percorreu o caminho inverso. Assim
que pôde – seis meses após a mudança do regime
–, colocou a direção do jornal no centro de suas
atividades e a política como uma atividade
secundária, embora jamais deixasse de ser um líder
político reconhecido.

A complexa mistura que realizou entre estes


elementos contraditórios foi exemplar. Para o líder
político, nada melhor que ter um jornal nas mãos,
capaz de levantar seu nome e torcer a realidade
sempre a seu favor. Para um jornal moderno, não
existe norma mais abstrusa do que esta. No caso de
Julio Mesquita, a completa ausência de seu nome
nos artigos assinados representou uma prioridade
clara para o jornal: a precisão da cobertura era mais
importante que a posição pessoal do dono. Porém,
muito mais importante que o aspecto editorial, o
aspecto econômico. A hora de ocupar o poder
coincidia com a oportunidade de faturar um bom
dinheiro público.

Neste aspecto, o comportamento de Julio Mesquita


foi ainda mais radical que no caso da assinatura. No
início do governo republicano, quando tudo era
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instável, o jornal aceitou um contrato típico do


jornalismo partidário para receber dinheiro público na
época: passou a fazer o serviço de transcrição dos
debates da Assembléia Estadual e a publicá-los.
Mas, apenas assentado o novo regime, o contrato foi
abandonado. Com a força política que tinha, Julio
Mesquita poderia ter arrancado quanto dinheiro
quisesse, caso quisesse, dos amigos no governo.
Em vez disso, passou a agir em outra direção.

O novo regime provocou uma revoada de jornalistas


na direção do funcionalismo público, a começar pelo
diretor de redação, Francisco Rangel Pestana.
Ocupando seu lugar, Julio Mesquita tratou de
preencher as vagas contratando jornalistas que
tivessem um engajamento pessoal com a profissão,
sem ambições políticas próprias. Acabou recrutando
emigrados portugueses (sobretudo para os
fundamentais cargos de revisores e normatizadores
da produção) e italianos (especialmente para a
edição de material internacional); no mais, contratou
uma série de pessoas que pensavam como ele: mais
importante que o talento individual era a obra
coletiva. A mudança se estendeu até mesmo para o
preenchimento de sua vaga, ocupada por José
Filinto da Silva, um dos primeiros a encarar a
administração de um jornal sob o prisma
empresarial.
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Enquanto fazia tudo isso, Julio Mesquita ia criando


um afastamento entre o jornal e o partido que lhe
dera origem. Embora fosse um republicano de quatro
costados, incomodava-se muito com o fato de que o
jornal que dirigia era o órgão oficial do partido. Logo
nos primeiros meses de sua gestão, conseguiu
acabar com esta posição, convencendo o partido a
empregar o Correio Paulistano – jornal de
conservadores que aderiram ao novo regime – para
esta função. Ao mesmo tempo, procurou fazer no
jornal uma cobertura tão isenta quanto possível do
novo regime, o que o levou a trombar de frente com
o governo, logo nos primeiros meses de 1890.

Não demorou para que a equação ficasse clara para


os acionistas do jornal: os números de venda
melhoravam, enquanto a qualidade da submissão do
jornal aos interesses do partido se deteriorava.
Muitos ficaram insatisfeitos com esta estranha
inversão de prioridades e começaram a vender suas
ações, que foram sendo compradas pelo diretor. Sua
peculiar posição com relação ao balanço entre as
necessidades políticas e as do serviço aos leitores ia
se fortalecendo cada vez mais.

Ainda assim, pouca gente poderia apostar na


continuidade deste projeto quando se colocasse
alguma questão que apresentasse a escolha entre
um e outro aspecto de maneira radical. E este
momento aconteceu no início do governo Campos
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Salles. Além de ser um dos principais responsáveis


pela fundação do jornal, ele era tio da mulher de
Julio Mesquita e freqüentador diário da casa de seu
sogro – onde ele mesmo morava. Como se não
bastasse, foi eleito presidente da República. E, para
tornar ainda mais atraente a situação para quem
pensasse como jornalista partidário, era um
presidente muito disposto a despejar dinheiro público
para ter jornais amigos. Fez isso com grande volúpia
durante todo seu mandato, e ainda justificou o
comportamento mais tarde, quando escreveu uma
autobiografia. Mais que nunca, portanto, Julio
Mesquita tinha todas as condições para levar o jornal
no caminho do partidarismo naquele momento. E
esta seria a direção aprovada por todos numa época
em que o jornalismo brasileiro era quase todo
partidário.

Pois bem. Não apenas Julio Mesquita rompeu com o


governo Campos Salles, como rompeu porque
discordava da política dos governadores, que, em
essência, transformava o resultado de eleições em
questão de Estado, não em representação da
vontade dos eleitores. Para mágoa do presidente,
colocou toda a influência do jornal a serviço de seus
leitores, prejudicados com a medida, e não a serviço
de um governo bastante disposto a pagar pelo
convencimento de seus benefícios. A posição valeu
uma última ruptura: retiraram-se os acionistas que
ainda esperavam dividendos políticos – Julio
19

Mesquita comprou suas participações, tornando-se


dono do jornal. Finalmente podia fazer o jornal que
imaginava.

Corria o ano de 1901, e a tiragem andava por volta


dos 12 mil exemplares diários, o triplo do momento
em que ele entrara para a empresa. Com a opção de
partir para a oposição, Julio Mesquita perdeu seu
mandato parlamentar e passou a se dedicar
exclusivamente ao jornal. A partir daí, todos os
esforços se concentraram numa única direção:
eliminar todos os resquícios de partidarismo na
cobertura política – o que não queria dizer deixar de
ter posições políticas, mas sim deixar de acreditar
que tais posições se traduziriam imediatamente em
atos do governo –, ampliar o noticiário, buscar todos
os leitores e anunciantes que estivessem dispostos a
pagar pelo serviço, e entregar-lhes um jornal de
qualidade melhor que o da concorrência.

Tudo isto foi montado ao longo da década seguinte.


A tiragem dobrou novamente; o noticiário se tornou,
de longe, o mais isento da cidade; a credibilidade
trouxe leitores de todos os matizes políticos, o que
fez com que os anunciantes confiassem em pagar
pela inserção de mensagens. Tudo isso deu a Julio
Mesquita o respaldo suficiente para pensar no
crescimento do jornal unicamente como resultante
de sua posição no mercado. Editorialmente isto
queria dizer, naquele momento, não buscar favores
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com dinheiro público – o governo era tratado como


um anunciante como outro qualquer, que gerava em
torno de 3% da receita do empreendimento, sempre
pagando por anúncios a preço de tabela, e
anunciando quando queria.

A consolidação do jornal como uma publicação


moderna, que fornecia notícias e artigos recebendo
em troca dinheiro de anunciantes e leitores,
aconteceu no início da segunda década do século.
Em 1912, a empresa lançou debêntures no mercado
para financiar sua expansão, conseguindo que até
mesmo o capital viesse da comunidade a que servia,
e não do governo. Foi um momento de grande
atividade para Julio Mesquita, mas que teve
conseqüências danosas. Ele sofreu uma forte crise
pulmonar, e ficou vários dias entre a vida e a morte.
Terminantemente proibido de trabalhar, foi obrigado
pelos médicos a sair de perto do jornal. Passou mais
de um ano vagando por hotéis da Europa, gastando
seu tempo e vários baralhos jogando paciência, até
que tivesse forças para voltar e conhecer o novo
maquinário e a nova redação.

Financeiramente, o momento era delicado: muito


dinheiro havia sido investido, e chegara a hora de
pagar com juros àqueles que tomaram as
debêntures. Mas, por outro lado, Julio Mesquita tinha
confiança de sobra nas opções que tomara. Com 52
anos de idade em 1914, alimentava a esperança de
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realizar seu sonho, depois de tanto tempo: montar


uma empresa sólida, e sólida porque fundada na
confiança de um público amplo, não nos azares da
conjuntura política. A obra coletiva finalmente se
imporia sobre os acidentes individuais.

Não faltavam elementos para alicerçar esta


confiança. Seu jornal liderava folgadamente a luta
pelo mercado na cidade. Ele continuava mantendo
suas posições políticas, a mais conspícua das quais
era a luta pela verdade eleitoral, com a
desmontagem das máquinas de fabricar resultados
nas urnas erigidas com a política dos governadores.
Continuou freqüentando o teatro e a vida cultural da
cidade, ao lado da mulher, Lucila. Cada vez mais
tolerante, não ligava a mínima para suas próprias
contradições – estava chegando ao ponto de apoiar
a aprovação de verbas públicas para a Igreja, ele
que nunca punha os pés em uma; fumava bastante,
mesmo sofrendo dos pulmões. Entre o pouco que
lhe faltava, estava uma casa própria: empenhado em
solidificar o jornal, ele era econômico consigo
mesmo a ponto de ter medo de empenhar o dinheiro
pessoal num gasto que considerava luxuoso – um
outro indício de que colocava a instituição acima das
pessoas, inclusive a sua.

Os cálculos positivos que embasavam o momento


foram todos deixados de lado no momento em que
eclodiu o conflito mundial. Mesmo antes de ele se
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generalizar, avaliou todas as conseqüências para a


empresa: aumento no custo do papel, todo ele
importado, e diminuição nas receitas de publicidade.
Com a mesma rapidez, viu que seria uma luta
extensa – mas sobretudo uma luta de valores, uma
disputa entre a democracia, que considerava um
bem fundamental, e o militarismo, que considerava
um mal sistêmico. Sendo assim, resolveu duas
coisas. Primeiro, dar ao conflito um tratamento
importante. Isso significava investir mais em
informação, e mais ainda na apresentação da
informação aos leitores. Publicaria a versão mais
isenta possível do conflito, buscando as versões dos
vários lados, e da maneira mais clara que
conseguisse – o que incluía a confecção de mapas
das batalhas e a obtenção de fotografias. Em
seguida, associar esta isenção do noticiário a uma
posição editorial firme ao lado de ingleses e
franceses, representantes da democracia.

Esta combinação entre isenção do noticiário e


firmeza nas posições editoriais era a marca do
jornalismo moderno. E só era possível como
combinação com a condição que a posição fosse
sustentada não por partidarismo, mas pela defesa de
princípios considerados importantes para toda a
sociedade, como no caso da democracia. Este é um
valor universal, na medida em que sua defesa não
está ligada a um grupo partidário, mas a uma regra
geral. O exercício desta combinação entre isenção e
23

engajamento, no entanto, se baseia numa arte de


equilíbrio: supõe tolerância e capacidade de
distinguir a todo momento entre o desejo, sempre
grande, e sua possibilidade de realização, sempre
limitada. Exige também uma modéstia básica: jamais
se pode acreditar que os princípios se realizarão
plenamente, e eles devem ser sempre submetidos à
realidade dos fatos.

Este foi o exercício básico que Julio Mesquita


desenvolveu ao longo dos quatro anos que durou o
conflito. Embora claramente posicionado ao lado da
causa aliada, em nenhum momento ele empregou
esta crença para torcer os fatos dos campos de
batalha. Podia ficar mais alegre com uma vitória ou
mais triste com uma derrota, mas jamais ficava cego
para o fato da vitória ou da derrota.

Com isso em vista, seu trabalho tinha uma dupla


carga. De um lado, aparava as muitas arestas
partidárias dos telegramas que recebia dos diversos
países, até chegar a uma descrição dos fatos que
julgava a mais próxima possível da realidade. Fazia
isso com uma competência extraordinária, raramente
se enganando quanto ao resultado efetivo dos
conflitos. Uma vez cumprida esta etapa de análise,
empregava seus valores para produzir uma síntese,
que não tinha exatamente um sentido noticioso. Em
geral apresentada na introdução, ela mostrava os
valores que estavam em jogo por trás dos combates
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– e sempre deixavam claros os valores importantes


para o analista.

Em geral, essas duas tarefas são hoje realizadas por


pessoas diferentes dentro de um jornal. A primeira
cabe a repórteres e agências de notícias, que
procuram transmitir notícias: relato isento de um
conjunto de fatos. A segunda é a atividade básica de
articulistas e editorialistas, que procuram um
julgamento desses fatos segundo um conjunto de
valores. O trabalho de Julio Mesquita mostra um dos
poucos jornalistas de sua época no Brasil capazes
de desempenhar as duas tarefas com enorme
proficiência, produzindo textos em que as duas
atividades apareciam bem executadas num único
conjunto.

Esta era uma possibilidade que só existia com a


condição da ausência de assinatura – que
contaminaria imediatamente a credibilidade da parte
do texto que se caracteriza pela busca da isenção. E
esta possibilidade de combinar análise e síntese era
justamente a mais importante característica do
trabalho de Julio Mesquita. Ao longo do tempo, ele
foi transformando uma seção relativamente
secundária, chamada “Notas e Informações”, na
página mais quente de seu jornal. Esta coluna era
composta de pequenas notas editoriais,
entremeadas de informações a respeito dos
personagens ou do assunto enfocado. Grande parte
25

de seu efeito vinha da arte de combinar a descrição


mais seca possível com o comentário menos
judicativo que se pudesse escrever. Por muitos anos,
Julio Mesquita treinou seus principais redatores no
uso desta combinação – essa era a marca do jornal.
À medida que o tempo passava, delegava cada vez
mais esta função – o que estava de acordo com sua
idéia de textos que fossem do jornal, não de
pessoas.

Esta delegação torna muito difícil a identificação


daquilo que saiu diretamente de sua pena (eram
tempos em que se escrevia à mão nos jornais). Há
certeza de que, nos momentos das crises políticas
mais importantes ou de grandes decisões, vinham
dele as notas da coluna. Mas, na maior parte das
vezes, há alguma dificuldade para identificar com
clareza a autoria do artigo, dificuldade que
aumentava com o maior adestramento de seu
pessoal na técnica que ele propunha.

A coluna semanal sobre a guerra, no entanto, é


inteiramente de sua autoria; quando não escrevia, a
publicação era suspensa. Ao longo dos dias da
semana ele ia coletando o material, publicado nas
edições de segunda-feira com o título “Boletim
Semanal da Guerra”. Em pouco tempo, tornou-se
leitura obrigatória numa cidade em que a maioria da
população era de pessoas nascidas nos países em
conflito, especialmente italianos e alemães. Lida nos
26

dias de hoje, revela em sua plenitude a imensa


capacidade de peneirar fatos em meio a um cipoal
de telegramas – há muito poucos enganos de
julgamento, absolutamente comuns nas condições
em que se trabalhava na época. E revela também
uma imensa capacidade de avaliar as
conseqüências a longo prazo desses fatos,
especialmente no campo dos valores. No conjunto,
uma das mais factuais e isentas coberturas de uma
guerra que se pode imaginar – e uma demonstração
clara do tipo de jornalismo moderno que Julio
Mesquita realizava.

Mas isto que aparece aos olhos de hoje está longe


de refletir a reação do momento. O pioneirismo de
Julio Mesquita no cenário ao seu redor fazia com
que os textos sobre a guerra fossem lidos quase que
de maneira contrária à atual – num padrão que se
repetia na recepção de seus escritos sobre a política
brasileira. Este descompasso permite entender as
dificuldades que ele enfrentava para fazer algo que
hoje parece normal – suas palavras são facilmente
entendidas hoje, tornando a leitura do texto
agradável, mas não o eram na época.

Tudo nelas destoava do momento, a começar do


estilo. A prosa de Julio Mesquita é coloquial e
fluente, embora escrita num tempo em que o
parnasianismo predominava em estética, o
gongórico no discurso político, o afetado no
27

comportamento social da elite. Era, enfim, um texto


que se construía na contramão do estilo do tempo,
feito para ser claro e conciso, avesso a
demonstrações de erudição ou marcas de estilo,
com uma dose precisa de ironia e celebrador de
limitações.

A adesão à causa aliada, o centro nervoso dos


valores, é totalmente convicta e intransponível, mas
quase nunca se traduz em certeza de vitória,
desqualificação da capacidade bélica dos
adversários, distorção no julgamento dos resultados
das batalhas. Para os dias de hoje, esta seria uma
posição prudente e matizada – mas esta era uma
impossibilidade numa época em que o padrão ainda
era o do jornalismo partidário.

Desde o primeiro dia, a coluna não assinada


provocou reações fortes, especialmente da
comunidade alemã, bastante influente na cidade.
Tão influente que tinha até seu jornal próprio, o
Diário Alemão. Dele vieram os primeiros ataques ao
jornal. Inicialmente contidos, falavam na
impropriedade de uma cobertura pró-aliados num
momento em que o Brasil mantinha uma posição de
neutralidade com relação ao conflito. Mas bastou
notarem que deste mato não sairia coelho para
mudar o tom.

Das críticas, o concorrente passou diretamente para


a calúnia, e uma calúnia típica de uma era dominada
28

pelo jornalismo partidário: passou a dizer que a


posição se devia ao recebimento de fundos pelo
governo inglês. Como se verá adiante, não havia
nada mais distante da realidade que esta afirmação
– mas também nada era mais adequado que esta
afirmação na realidade brasileira. Desde Campos
Salles, o noticiário dos jornais era viciado em
publicar falsidades, desde que pagas com dinheiro
público, como as eleições em atas falsas. A praxe da
imprensa da época era a de acentuar a crítica ao
governo simplesmente para aumentar o preço da
adesão a ele – e era uma praxe tão difundida que
José do Patrocínio comparava abertamente o
trabalho do jornalista ao de um advogado, pago para
defender a causa de seu cliente.

Também neste sentido a cobertura de Julio Mesquita


foi exemplar. Desde que optara por criar um negócio
sustentado por leitores e anunciantes, ele afastara o
jornal do padrão brasileiro. Publicava balanços
regulares, destinados a satisfazer leitores e
debenturistas. Assim criou o único jornal que
criticava abertamente a situação da imprensa na
época, e propunha outros métodos e objetivos para o
ramo. Os boletins da guerra lhe deram mais uma
preciosa oportunidade de mostrar até onde ia esta
coerência.

A própria situação da guerra tinha conseqüências


difíceis para a publicação. Como Julio Mesquita
29

previu, logo o preço do papel aumentou e os


negociantes se mostraram mais retraídos para
publicar anúncios, o que corroeu os lucros num
momento em que eram fundamentais para pagar os
investimentos. Esta situação se agravou bastante
com os ataques do concorrente germanófilo, até
porque este logo encetou uma campanha para que
os anunciantes alemães da cidade boicotassem o
adversário. Claro que havia interesse próprio na
posição – os anunciantes alemães, mais
interessados em vender que favorecer amigos,
preferiam O Estado de S. Paulo. Mas, naquela
situação excepcional, aderiram à idéia proposta.

A combinação da retração natural dos negócios com


o boicote produziu uma devastadora redução do
faturamento publicitário. As vendas de anúncios, em
relação a 1913, apresentaram uma queda de 21%
em 1914, e de 32% no ano seguinte. Esta queda,
combinada com um aumento de 15% nos custos do
papel, corroeu todo o lucro do jornal, já em 1914. Na
entrada de 1915, apesar de cortes em vários setores
da empresa, a situação se tornou crítica.

A saída econômica evidente era a de sacrificar os


valores de longo prazo à realidade do curto prazo,
atenuando as críticas aos alemães e diminuindo o
preço dos anúncios – o que mal seria percebido
numa sociedade acostumada a ver seus jornais
mudarem de idéia. Mas Julio Mesquita resolveu
30

apostar numa direção completamente diferente,


numa decisão que mostrava um tino empresarial
ainda maior que o jornalístico. Não apenas manteve
sua posição pró-aliados, mas foi tornando-a cada
vez mais clara, num momento em que os resultados
dos conflitos não eram nada claros. Concentrou suas
esperanças no único benefício efetivo que estava
tendo com a situação – o aumento do número de
leitores –, embora isso quase não tivesse tradução
econômica naquele momento. Pelo contrário,
fornecer pelo mesmo preço uma mercadoria que
custava cada vez mais, como fez, significava corroer
cada vez mais as já minguadas taxas de retorno.

Outra saída usual seria a de buscar algum dinheiro


público para sustentar a travessia, uma possibilidade
que sempre esteve ao alcance do jornal. Mas, em
lugar disso, Julio Mesquita se encarregou de fechar
a porta para este tipo de idéias, publicando uma
longa série de editoriais, em dezembro de 1915, em
que narrava os desastres da política iniciada por
Campos Salles de comprar posições editoriais, e
dissecava as conseqüências funestas da opção para
os proprietários de jornais que caíam nesta tentação:
“Os escribas sem ocupação, com o apetite aguçado,
se ofereceram ao governo. Os governos aceitaram a
oferta. Passou a ser uma das instituições oficiais
mais queridas e mais cuidadas, uma das profissões
mais protegidas como as mais honestas nunca o
31

foram, o jornalismo venal, torpemente agressivo,


sem freio de qualquer espécie”.

Contra esta situação, só havia uma saída – que ele


empregou. Deu a público, com toda a clareza, todos
os movimentos financeiros de seu jornal com o
governo – enquanto desafiava seus concorrentes a
procederem com a mesma transparência. Nesta
série de editoriais ficava claro que a opção pelo
jornalismo moderno, que vive de leitores e não de
butim, era irreversível.

Com esta estratégia em mente, adotou uma série de


medidas para o ano de 1916, um ano de vacas
magras. Apostou todas as fichas no aumento do
número de eleitores, e o número de assinantes
aumentou nada menos que 43% neste ano,
passando de 16,6 mil para 23 mil – com isso, a
tiragem total do jornal chegou aos 45 mil exemplares
diários. Este aumento do número de leitores se
transformou num argumento importante para coletar
anúncios. Para isso, empregou-se uma arma forte: a
luta direta contra a realidade partidária do mercado
publicitário.

O primeiro passo nesta luta foi o de abrir um


processo por calúnia contra o Diário Alemão. Como
o ônus da prova cabia ao jornal, a saída foi a de abrir
todos os registros contábeis para a Justiça – e para
os advogados do concorrente e os de todos que
quisessem ver o processo. Tal procedimento era
32

absolutamente inusitado na época, mas deu


resultados. O primeiro deles foi o de conseguir uma
condenação a dois meses de prisão para o diretor do
jornal que acusava sem provas.

A segunda medida na mesma direção foi a de


combater outra praga do jornalismo partidário que
dominava o ambiente. Ainda era mantido o hábito da
vista grossa para a inadimplência, que ganhara um
novo motivo nos últimos anos: o preço da
publicidade dependia da tiragem, e os jornais
partidários viviam de mentir para cima os números
de sua circulação. Porém, na falta de informações
objetivas, o mercado acabava descontando a
diferença no preço dos anúncios, num hábito que
prejudicava mais os jornais que mentiam menos.
Para contornar esta situação, O Estado de S. Paulo
exigiu da Justiça uma auditoria na impressão e
distribuição de exemplares, além do cadastro de
anunciantes. Pela primeira vez na história do país,
um jornal teve sua tiragem auditada, que lhe permitia
cobrar um preço justo por seus anúncios.

Com todas estas medidas, obteve um aumento de


36% em sua receita publicitária de 1916 –
insuficiente, no entanto, para recuperar os níveis
anteriores ao conflito. Como os preços do papel
quase dobraram, nem todo o esforço melhorou a
situação. Foi preciso limitar o tamanho das edições,
cortar custos e diminuir pessoal, e ainda assim o
33

lucro simplesmente desapareceu. Em 1917, a


mesma situação se manteve, e o jornal precisou
matar até mesmo a única razão de ser de tudo
aquilo, o aumento do número de leitores:
simplesmente foi obrigado a limitar a tiragem, sem o
que teria prejuízo ainda maior com o preço do papel
que passou a ser praticado.

O período de publicação do boletim foi ainda uma


época dura sob o ponto de vista pessoal para Julio
Mesquita. Em 1916 morreu sua companheira de 32
anos, Lucila, deixando-o com nove filhos solteiros, o
mais novo dos quais com apenas nove anos de
idade. Neste momento, a publicação foi interrompida
pela primeira vez, até que ele se recuperasse
minimamente para enfrentar seus problemas.

E estes, que já não eram pequenos, aumentaram


quando o Brasil entrou na guerra ao lado dos
Aliados, em 1917. Esta opção do país deveria
significar um alívio para sua posição, mas as coisas
políticas brasileiras nunca são o que parecem à
primeira vista. Com a entrada na guerra foi
decretado o estado de sítio, e com ele a censura –
velha adversária do jornal, mas desta vez a cargo
das autoridades locais. Estas, por sua vez, andavam
muito raivosas com o jornal, desde que ele
defendera a posição dos grevistas na grande
paralisação de 1917.
34

Assim produziu-se uma situação curiosa. Enquanto


os artigos sobre a guerra – teoricamente a razão de
ser da censura – eram liberados sem problema, o
jornal não conseguia publicar uma única linha sobre
as misérias do governo local. Foi assim até o último
dia do conflito – o jornal publicava espaços em
branco, em um papel que lhe custava a saúde
econômica.

Posto o contexto, pode-se finalmente compreender


que estes textos aqui reunidos mostram a grandeza
do primeiro jornalista moderno deste país. A grande
demora para que isso acontecesse se deve ao
quanto ele era rigoroso em manter o anonimato,
decisão que permitiu esta evolução no jornalismo.
Mesmo na época, os jornalistas sabiam que aquele
era um material precioso, um grande exemplo do
que se poderia fazer na profissão. Constituía-se,
ainda, no único conjunto completo de textos
claramente de autoria de Julio Mesquita. Hoje, a
reunião desses boletins é imperiosa para mostrar o
valor da obra daquele que mudou radicalmente o
sentido do jornalismo no Brasil.

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