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MILAGRE: UMA INSERÇÃO DO PODER DE DEUS NO MUNDO

Diác. Antônio Lopes Ribeiro1

Para aquele que crê, a solução de seus problemas não se restringe somente à
ciência e à técnica. Aos olhos da fé, há também uma solução pela via transcendente.
Hoje, verifica-se uma intensa procura pela Renovação Carismática Católica (RCC) e
pelo Pentecostalismo, porque ali pessoas são curadas e libertas de problemas não
solucionados pelas vias normais das ciências médica, psicológica e psiquiátrica. O
padre Alberto Gambarini (2007, p. 7), afirma que onde existir alguém capaz de
acreditar no poder de Deus, aí acontecerá um milagre. É muito comum testemunhos
de pessoas que frequentam igrejas de linha de atuação carismática e pentecostal,
afirmando que são curadas de diversos tipos de doenças e libertas espiritualmente de
todo mal, atribuindo a isso um milagre concedido por Deus em suas vidas.
No mundo da racionalidade, o milagre tem sido sempre contestado e
relacionado ao irracional, gerando um estado de tensão constante entre ciência e
religião. O milagre não se situa no mesmo nível da ciência e sim em um outro nível, o
da transcendência, somente verificável objetivamente, em relação à sua eficácia, e
não a seu causador. Mesmo que a ciência venha a refutar o milagre, considerando-o
irracional, por referir-se a um poder transcendente, que escapa à verificação empírica,
contudo não pode contestar sua racionalidade, pela eficácia que produz. Em seus
testemunhos, algumas pessoas exibem raios X mostrando um tumor em alguma parte
do corpo, antes da cura, e outro raio X de um mesmo laboratório, sem qualquer
evidência de tumor. Na RCC, acredita-se que o milagre ocorra por intervenção divina;
mas ali o milagre acontece com tal frequência e amplitude, que nos leva a perguntar:
O que é o milagre? Tudo é de fato um milagre?
A Bíblia está permeada por sinais miraculosos. Tais sinais eram
pedagogicamente utilizados como comprovação da eficácia do poder de Deus e para
o fortalecimento da fé cristã. Na Bíblia cristã, encontramos diversos sentidos do
milagre, destacando três aspectos fundamentais: 1) O aspecto psicológico de quem o
presencia: o milagre é qualificado como um “prodígio”, não se referindo

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Doutor e mestre em Ciências da Religião (PUC-GO) Pós-doutorado em Teologia (PUC-PR).
Professor da Faculdade de Teologia da Arquidiocese de Brasília.
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necessariamente a um fato sobrenatural. Usa-se o termo para falar dos milagres


enquanto atos simbólicos de caráter sagrado, realizado com a finalidade de autenticar
a missão de algum profeta. 2) O aspecto ontológico: o milagre requer uma especial
intervenção da causalidade divina. É obra de Deus e não de homens. 3) O aspecto
semiológico: tanto no Antigo Testamento, quanto no Novo Testamento, usa-se o termo
“sinal” no lugar de milagre, para ressaltar esse aspecto significativo. Com isto, o
milagre não é somente um prodígio que causa admiração, mas um sinal dado por
Deus ao homem para que conheça sua intervenção divina (ARENAS, 2001, p. 371).
Para Santo Agostinho, o milagre está vinculado à criação e coloca em primeiro
plano, o seu valor de eficácia simbólica. A criação é o milagre por excelência. Em sua
concepção, “todo acontecimento na natureza e no mundo humano é um ‘milagre’, uma
vez que pode revelar a grandeza e a bondade de Deus” (EICHER, 1993, p. 552). Por
conseguinte, só Deus tem o poder de realizar milagres. O milagre para ele é um fato
extraordinário, uma ação inusitada de Deus, não explicável pela natureza, com o
propósito de dar uma lição ou ensinar algo ao homem (TEIXEIRA, 2003, p. 83).
Embora conserve a síntese agostiniana em sua totalidade, Tomás de Aquino dele se
distingue no que se refere ao valor do milagre, na sua função de “sinal” a lhe dar
transparência. Para ele interessa mais evidenciar a causa eficaz que o produz. Desta
forma, o “sinal do milagre” cede espaço para a pergunta de cunho teórico-científico:
“O que acontece metafisicamente no milagre? Em que consiste o que é próprio do agir
divino que aí se realiza?” (EICHER, 1993, p. 552). Por conseguinte, afirma que o
milagre “é obra da onipotência de Deus, que viola ou suspende as leis naturais para
agir ele próprio, no âmbito do que é específico das causas segundas, algo que a
natureza criada não pode realizar” (SAMANES, TAMAYO-ACOSTA, 1999, p. 473).
Frente à contestação dos milagres na modernidade, principalmente por parte
das ciências naturais, a reação apologética da Igreja Católica posicionou-se no
sentido de defende-los conforme a concepção tomasiana, de “interrupção das leis da
natureza”. O magistério da Igreja tem defendido a ideia tradicional de que os milagres
são fatos extraordinários, pouco frequentes, e a convicção de que as pessoas comuns
não devem esperar por milagres. Para que se reconheça um verdadeiro milagre,
conforme Gambarini (2007, p. 7), é preciso que se observe os seguintes critérios: 1)
comprovação real por algum documento, que demonstre não ser fruto da fantasia
religiosa ou uma fraude; 2) que se comprove ser resultado de uma experiência
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genuína de Deus; 3) que seja algo inexplicável por parte da ciência, reconhecendo ser
uma intervenção sobrenatural.
No Vaticano II, verifica-se uma virada antropológica, inclusive com mudança de
método, conferindo à teologia um caráter antropológico e cristológico. De acordo com
Octávio Ruiz Arenas (2001, p. 370-371), tudo o que se refere à explicação do mistério
cristão em relação ao homem, encontrará seu significado em Cristo. “Ao falar de Deus,
ela o faz mostrando seu significado para o homem em Jesus Cristo”. Com esta
perspectiva, renova-se também a teologia dos milagres. O Vaticano II afirma que os
milagres são sinais da chegada do Reino de Deus à terra (LG 5). “Cristo percorria as
cidades e aldeias curando todos os males e enfermidades como prova da chegada do
reino de Deus” (AG 12). Mas, em vista ao assentimento livre que o homem deve dar
à revelação (DV 5), os milagres de Cristo não são apresentados como uma imposição
para levar à fé, Pela qual o homem tem inteira liberdade para, no uso pleno de sua
inteligência e vontade, dar seu assentimento voluntário à revelação, entregando-se
total e livremente a Deus (DV 5). Por isso, os milagres devem ser entendidos como
um convite e não uma imposição obrigatória para se chegar à fé. A verdade é que
Cristo “apoiou e confirmou, sem dúvida, com milagres, a sua pregação”, mas com a
finalidade de “despertar e confirmar a fé dos ouvintes, e não para exercer sobre eles
qualquer coação (DH 11).
O magistério da Igreja Católica tem se mostrado reticente no que se refere à
questão do milagre na era contemporânea. De acordo com Mariz (2001, p. 41), a
ênfase no sobrenatural e no milagre é considerada por parte da ala progressista como
alienante. Adotando os mesmos pressupostos do discurso racionalista, os
progressistas atribuem os milagres narrados atualmente na RCC e no
pentecostalismo, como “fenômenos subjetivos, que quase nunca resistiriam a uma
observação empírica objetiva que obedecesse aos cânones científicos”, taxando-os
de irreais e mentirosos, e enquanto tal “estariam negando ou ofuscando a realidade
objetiva que, nessa visão, seria a ‘verdadeira realidade’”. A própria CNBB expediu um
documento intitulado “Orientações pastorais sobre a Renovação Carismática
Católica”, em que deixa clara a posição dos bispos no que se refere ao dom de cura,
relacionando-o à realização de milagres por parte de seu portador, sendo enfática em
sua orientação: “Ao implorar a cura, nos encontros da RCC ou em outras celebrações,
não se adote qualquer atitude que possa resvalar para um espírito milagreiro e
mágico, estranho à prática da Igreja Católica” (CNBB, 1994, Doc. 53, n. 59).
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Considerando a relevância para a sociedade, da cura de doenças não


solucionáveis no campo das ciências médicas, no âmbito da RCC e do
Pentecostalismo, a perspectiva que adotamos ao concluir esta temática bastante
complexa e que merece um maior aprofundamento, é a das Ciências da Religião. Para
nós, não resolve rotular a prática do milagre mediada por sacerdotes e pastores, de
irracional, enquanto a mesma resolve problemas não solucionados pela racionalidade.
Nada mais racional, do que uma pessoa procurar a cura de uma doença, que deveria
ter sido solucionada no âmbito da ciência, e que tem sua solução pela via do milagre.
A solução de um problema é sempre uma solução, não importa os meios aos quais
se recorrem, se pela vida da racionalidade ou se pela via do milagre, oferecido pela
RCC e pelo pentecostalismo.
Quando os métodos ortodoxos da medicina falham na cura de doenças de
pessoas crentes, não lhes resta alternativa a não ser confiar no poder de Deus,
voltando seu olhar para a religião, a única capaz de dar sentido à vida das pessoas,
em nada se interessando por um emaranhado de dogmas e doutrinas, que impedem
uma leitura mais crítica sobre os sinais dos tempos, que apontam para um maior
protagonismo da religião, numa de suas mais antigas e originais práticas, que é a
oferta do milagre. Voltando à perspectiva teológica, refutamos completamente a
instrumentalização da Palavra de Deus, tornando-o a panaceia de todos os males,
numa relação de troca do tipo toma lá dá cá, em que o milagre é vendido por líderes
religiosos inescrupulosos, como um bem simbólico de salvação. Contudo, levantamos
uma questão a ser refletida com toda neutralidade possível: os “milagres” que são
realizados no âmbito da RCC e do Pentecostalismo, não estariam apontando para a
manifestação do poder de Deus, numa época em que mais do que nunca as pessoas
d’Ele necessitam para sair do vazio existencial em que se encontram?

REFERÊNCIAS:
TEIXEIRA, Evilázio Francisco Borges. Imago Trinitatis: Deus, sabedoria e felicidade. Estudo teológico
sobre o De Trinitate de Santo Agostinho. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003.

GAMBARINI, Alberto. O tempo dos milagres. São Paulo: Ágape, 2016.

EICHER, Peter. Dicionário de conceitos fundamentais de teologia. São Paulo: Paulus, 1993.

SAMANES, Cassiano Floristán; TAMAYO-ACOSTA, Juan-José. Dicionário de conceitos fundamentais


do cristianismo. São Paulo: Paulus, 1999.

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