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Sobre Antonin Artaud: um ensaio inédito


Claudio Willer

Escrevi ao final de 1982, no embalo da preparação de Escritos de


Antonin Artaud (L&PM). Cheguei a pensar em agregá-lo ao livro. Desisti
por dois motivos: seria muito, e não consegui concluí-lo. Dispersei-me
por excesso e não por falta de idéias, de estímulo intelectual. Furor
ensaístico. Agora, tento completá-lo, além de fazer algum copidesque.
Bibliografia utilizada (ao final) é aquela à qual tive acesso na época, bem
pouco com relação ao que dispomos agora. Vasculhei bibliotecas, onde
achei Virmaux, Hayman e outros. E, além das edições francesas, da
Gallimard, valeu-me, para consultas, a extensa coletânea de Artaud
preparada por Susan Sontag que ganhei de Alberto Marsicano. Nela, a
carta a Breton que cito. O poema-carta a Pierre Loëb, no ‘Poètes
d’aujourd'hui’ da Seghers. Mas a maior parte do que cito do próprio
Artaud, já havia traduzido e está em Escritos de Antonin Artaud.

Antonin Artaud foi, acima de tudo, um ser expressivo. Toda a sua vida consistiu
em um ato de amor pela linguagem e pela expressão. Quando afirma que “toda escrita é
porcaria”, quando se volta contra a ditadura da palavra escrita e do texto nos manifestos
do Théâtre Alfred Jarry e em O teatro e seu duplo, em um paradoxo aparente ao
escrever contra a escrita, na verdade está defendendo e propondo uma linguagem livre,
plena, capaz não só de falar do corpo, mas de expressar o corpo – e outros níveis da
realidade dos quais, em nossa civilização, estamos alienados e separados.
Como bem assinala Derrida, “o trabalho de subversão a que Artaud, desde
sempre, submeteu o imperialismo da letra, tinha o sentido negativo de uma revolta
enquanto se produzia no meio da literatura como tal.” (em “A palavra soprada”). Com
efeito,

[...] a primeira exigência de um teatro in-orgânico é a emancipação com relação


ao texto. Embora só encontremos o seu rigoroso sistema em Le Théâtre et son
Double, o protesto contra a letra fora desde sempre a preocupação principal de
Artaud. Protesto contra a letra morta que se ausenta para longe do sopro e da
carne. (idem)

Por isso, sua obra completa não consiste apenas na enorme quantidade de textos
editados pela Gallimard. Há muito mais: seus desenhos (particularmente da última fase,
a partir de Rodez), as encenações teatrais, participações como ator em filmes e peças de
teatro, conferências e apresentações públicas (é profundamente lamentável que quase
nada disso tenha sido gravado ou filmado), fotografias (tanto as dele, Artaud, quanto as
montagens surrealistas que fez com Eli Lotar), até mesmo seu comportamento no dia a
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dia. Em síntese, sua vida. Qualquer dúvida sobre a identidade de obra e vida em Artaud
é resolvida com a leitura de testemunhos como o de Anaïs Nin – por exemplo, a
passagem em que encarna publicamente Heliogábalo.
Nem poderia ser de outra forma: Artaud não apenas jamais aceitou a separação
de vida e obra, como também, em repetidas passagens, observou que aquilo que poderia
ser designado como sua produção artística e literária era um modo de refazer-se, de
reconstruir-se, criar um novo corpo, desde o “não tenho feito outra coisa senão
recuperar-me” de 1927 até o “nada de boca / nada de língua / nada de dentes / nada de
laringe / nada de esôfago / nada de estômago / nada de ventre / nada de anus. /
Reconstruirei o homem que sou.” de 1947. Pois “Eu, Antonin Artaud, sou meu filho, /
meu pai, minha mãe / e eu” (Aqui jaz), pois “comigo, é o absoluto ou nada” (Cartas de
Rodez, carta a Henri Parisot). E para isso, para restaurar “a grande lei do coração”
(idem), é necessária uma nova linguagem, que atue como negação da linguagem do
senso comum e da ordem estabelecida; uma “retórica” especial:

E a arte consiste em levar essa retórica ao ponto de cristalização necessário para


formar uma unidade com certas maneiras de ser, reais, do sentimento e do
pensamento. Em uma palavra, o único escritor duradouro será aquele de fazer
com que essa retórica se comporte como se fosse o próprio pensamento, e não
um gesto do pensamento. (texto de 1925)

Fazem parte, portanto, dessa concepção abrangente da arte as fotografias do


próprio Artaud. São impressionantes. Retratam sua expressividade nos diversos papéis
como ator e também fora do palco e da tela: a bela aparência nas fotos de juventude, sua
transformação em uma espécie de bruxo desvairado com o passar do tempo, o rosto
sofrido e devastado quando voltou à tona depois dos internamentos. Artaud fotografado
de meio perfil por Man Ray em 1925; de frente com um olhar apaixonado como o
monge de Jeanne d’Arc; o desvairado pai dos Cenci numa roupagem esquisita,
gesticulando no meio de um cenário mais estranho ainda; o esquelético moribundo de
1947/48, no jardim ou no quarto em Ivry. Vale a pena examinar esse material
iconográfico; folhear, por exemplo, a revista Oblique (nº 10/11) ou o Artaud and After
de Ronald Hayman.
Foi no livro de Hayman que encontrei a foto mais terrível de Artaud. Não é uma
foto do próprio Artaud, mas de um corredor: uma série de portas corrediças como as de
uma prisão, a parte de cima gradeada e envidraçada para que todos possam ver o que se
passa dentro dos cubículos. Um corredor com seu assoalho de ladrilhos que vai dar em
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outro corredor transversal, com o mesmo assoalho de ladrilhos, a mesma série de portas
gradeadas e envidraçadas na parte de cima, dando para outros tantos cubículos, cada
qual da largura da sua porta.
A legenda da foto: “Corredor do asilo de Quatre-Mares, Sotteville-les-Rouens,
primeiro dos cinco asilos onde Artaud foi internado entre 1937 e 1946. Esteve lá de
dezembro de 1937 até abril de 1938.”
O pavoroso mundo simétrico e organizado dos hospícios, dos hospitais, das
prisões, dos conventos e monastérios, dos colégios e internatos, dos quartéis:
invariavelmente a mesma arquitetura de longos corredores com suas fileiras de portas e
seu chão de indefectíveis ladrilhos cinza, brancos e pretos. Um mundo organizado,
exato, onde cada detalhe e cada momento da vida de seus ocupantes é administrado,
vigiado e controlado. O mundo no qual Artaud viveu por nove anos da sua vida. Logo
ele, contestador radical desse tipo de mundo e de vida, empenhado em demonstrar que
toda a nossa civilização era uma extensão do universo carcerário e hospitalar, uma
sociedade de mortos-vivos controlada não só por penitenciárias, hospícios, escolas e
quartéis, mas pela ideologia que produz e justifica semelhante sistema.
Consegue-se adivinhar o penetrante cheiro de creolina invariavelmente usada
para lavar esses assoalhos de ladrilhos e desinfetar as privadas. É possível imaginar a
exasperante regularidade da vida dos internados, a monotonia da passagem do tempo:
hora de acordar, de tomar café, receber a visita do médico ou enfermeiro, sair do
cubículo para andar, hora de comer, de dormir, para no dia seguinte começar tudo de
novo. A vida com uma multidão de infelizes igualmente acorrentados à prática do
mesmo ritual, eventualmente protestando, expressando seu desespero e horror para
imediatamente serem trancafiados, postos em camisa de força, anestesiados ou
paralisados por eletrochoques.
Certamente o mais terrível dos lugares onde Artaud esteve internado foi o
hospício de Sainte-Anne, onde ficou mais tempo, até 1943. Um hospício de pobres em
tempo de guerra, o país ocupado e seus ocupantes nazistas tendo por princípio
exterminar aqueles considerados loucos incuráveis, categoria na qual Artaud estava
incluído, confinado no pavilhão dos irrecuperáveis junto com uma esquelética multidão
de famintos. Pois sabe-se que Artaud passou fome, passou por muitas privações em
Sainte-Anne (e como deviam ser gelados esses corredores e cubículos no inverno
europeu); e por isso saiu de lá com a saúde definitivamente arruinada. Nas cartas de
1943/44, sua queixa mais freqüente ainda é de fome, que não lhe traziam o suficiente
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para comer, que queria pão, que os amigos lhe mandassem alimentos, que não adiantava
lhe mandarem alimentos, pois não os recebia: “Por isso preciso de pão e peço-lhe que
me ache algum pão. – E a coisa que você pode fazer por mim nessa terra, minha querida
Annie, é mandar-me o mais cedo possível um pouco de pão. – Pois isso é urgente.”
(carta a Anne Manson, 1944) “Vejo que você não se dá conta do que é a vida de um
internado num asilo de alienados. Dão para o internado sua ração num prato e isso é
tudo. Faz sete anos que, nas minhas refeições, não como mais que uma sopa e um
legume.’ (Carta a Madame Artaud, 1944)
Se alguma vez na vida Artaud esteve realmente louco, foi durante a estada em
Sainte-Anne. Ao sair, esquálido e aterrorizado, não falava, parecia não entender mais
nada. Louco de sofrimento, o que nada tem a ver com quadros de referência
psiquiátricos. Esteve efetivamente em risco de vida e pouco faltou para que nunca
tivéssemos a oportunidade de ler obras como Van Gogh, o suicidado pela sociedade ou
as Cartas de Rodez. Seu amigo, o poeta Robert Desnos, conseguiu tirá-lo de lá,
utilizando expedientes para atravessar a fronteira entre a França ocupada e a região
“livre’, a República de Vichy, onde fica Rodez. Logo em seguida, Desnos, um dos
maiores poetas franceses do século 20, seria preso pelos nazistas e confinado em
Terezienstad, morrendo de tifo enquanto as tropas americanas ocupavam o campo de
concentração.
Cabe indagar: o que, precisamente, ele fez para ser levado a Quatre-Mares,
Sainte-Anne e demais etapas do seu calvário? Afinal, nunca assassinou alguém; não
roubou, nunca bateu em alguém ou cometeu qualquer outra violência física, não
planejou ou executou atentados. Exceto tomar ópio regularmente, nada que pudesse ser
considerado crime, ilícito penal.
O próprio Artaud dá a resposta:

Quando fui brutalizado, molestado e maltratado de todas as maneiras, não por


causa do que eu fazia, pois nunca fiz nada para ninguém, nunca tive um gesto
agressivo, nunca levantei a voz em lugar algum, mas somente por causa do que
suspeitavam que eu pensasse e que nem sequer pensava, pois a Administração e
a medicina francesa são demasiado imbecis para sequer fazerem uma idéia
verdadeira das idéias que eu possa ter sobre seja o que for [...] (Carta a Madame
Artaud, 1944)

Ou seja: o confinamento de Artaud, bem como as demais restrições que ele


sofreu ao longo de sua vida, tem razões ideológicas. Devem-se, principalmente, a ele
haver encarnado plenamente o papel que atribuía ao artista verdadeiro. Esse tem
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[...] o dever social de dar passagem às angústias da sua época. O artista que não
abrigou no fundo do seu coração o coração da sua época, o artista que ignora ser
um bode expiatório cuja obrigação é imantar, atrair, fazer cair sobre suas costas
as cóleras errantes da sua época, não é um artista. (das suas palestras no México)

Sabia muito bem qual seria o resultado desse confronto ideológico, prevendo-o
desde o momento em que se situou em um “ponto de vista nitidamente anti-social”,
partindo do princípio de que “todo ato individual é anti-social”.
A justificativa do seu internamento pela loucura não resiste a uma análise mais
atenta. Há um discurso fácil, que consiste em explicar o comportamento e passagens dos
textos de Artaud através psiquiatria. Vários autores caem nisso: Ferdière, por exemplo,
na tentativa de explicar os eletrochoques (ao que consta, dezenas de sessões, muito até
pelos padrões psiquiátricos ortodoxos). E outros com melhores intenções, como Martin
Esslin, que acha Artaud um gênio, mas ao mesmo tempo observa que era louco; que
delirava, era contraditório, supondo uma contradição entre loucura e genialidade.
Mas essa contradição não existe. A relação de loucura e criatividade é muito
mais de implicação que de contradição ou antagonismo. Há que escolher entre uma
linguagem ou outra: ou se encaram certos fenômenos sob a ótica psiquiátrica, ou sob a
ótica da criação. Psicologizar um criador – e escrever sobre a esquizofrenia, a paranóia e
a mania em Hölderlin, Nerval, Lautréamont ou Artaud – é adotar uma postura
reducionista. O contrário é mais produtivo: por exemplo, o método utilizado por Gilles
Deleuze e Félix Guattari em O Anti-Édipo que consiste em partir da esquizofrenia para
esclarecer o funcionamento da criação e do desejo. Essa mudança de perspectiva
também confere especial importância aos estudos de Maurice Blanchot e Michel
Foucault que tratam de Artaud.
Uma grande contribuição de Artaud, por sua vez, foi o modo como obrigou a
essa mudança de perspectiva. A linguagem da psiquiatria, destinada à compreensão de
um conjunto de fenômenos dentro de uma ótica específica, mostrou-se impotente para
falar de Artaud – e, por extensão, da criação poética. Qual seria, então, a linguagem
adequada para falar de Artaud? É dessa interrogação que parte o importante ensaio de
Derrida, “A palavra soprada”, mostrando que tanto o discurso clínico quanto o discurso
crítico se revelam insuficientes, pois ambos o tratam como “caso”, ou seja, de forma
reducionista:

[...] se o comentário clínico e o comentário crítico reivindicam por toda a parte a


sua autonomia, pretendem fazer-se reconhecer e respeitar um pelo outro, nem
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por isso deixam de ser cúmplices – por uma unidade que reenvia, por mediações
impensadas, à que há pouco procurávamos – na mesma abstração, no mesmo
desconhecimento e na mesma violência.

A obra de Artaud volta-se, justamente, contra as bases filosóficas desses


discursos:

Se Artaud resiste totalmente – e, cremo-lo, como ninguém o fizera antes – às


exegeses clínicas ou críticas, é porque na sua aventura (e com esta palavra
designamos uma totalidade anterior á separação da vida e da obra) é o próprio
protesto contra a própria exemplificação. O crítico e o médico ficariam aqui sem
recursos perante uma existência quer se recusa a significar, perante uma arte que
se quis sem obra, perante uma linguagem que se quis sem rasto. Isto é, sem
diferença. [...] Artaud quis destruir uma história, a da metafísica dualista que
inspirava, mais ou menos subterraneamente, os ensaios acima evocados:
dualidade da alma e do corpo sustentando, em segredo sem dúvida, a da palavra
e da existência, do texto e do corpo etc.

Há mais alguns argumentos, a meu ver, contra interpretações de Artaud


utilizando conceitos psiquiátricos. Um deles é a amplidão do que seria a sua loucura. O
discurso clínico vê-se obrigado a recuar, não diante da sua eventual normalidade, dos
momentos de não-loucura, mas sim do excesso, do caráter pleno dessa loucura. Estudar
Artaud revela quadros clínicos para todos os gostos: quem procurar, encontrará
sintomas e traços de paranóia, histerismo, disritmia, mania, toxicomania, neurose, entre
outros. A loucura de Artaud, se avaliada através dos sintomas, é múltipla – parecendo
muito menos coerente que seu pensamento e sua obra, e isso, pela limitação dos
paradigmas utilizados para classificá-la.
Outro argumento para questionar sua caracterização como louco é o crescimento
de seu texto, de Rodez em diante, quando estaria supostamente mais delirante; mais
“alienado”. No entanto, ganha em qualidade literária: as Cartas de Rodez,
principalmente aquelas para Henri Parisot, e textos como Van Gogh e a “Carta a Pierre
Loeb” são literariamente superiores ao que escrevera antes; têm mais ritmo e vigor,
como se estivesse mais solto, dominando plenamente seu meio de expressão.
A explicação do internamento de Artaud pela loucura, por apresentar um quadro
clínico, não se sustenta, portanto. Podemos utilizar o raciocínio empregado pelo próprio
Artaud a propósito de Van Gogh, quando, ao tratar dos sintomas como cortar a orelha e
queimar a mão, refere-se a uma “pura lógica direta”. Tais atos deixam de pertencer aos
anais da psiquiatria por sua “lógica”; por terem sentido e serem demonstrações de
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coerência. O mesmo vale para Artaud: seus aparentes sintomas são operações
semiológicas, dotadas de sentido.
É claro que qualquer sintoma de loucura também é uma operação sobre a
linguagem, utilizando de modo não-convencional. Delírios, surtos e fantasias sempre
têm sentido, dizem algo que pode ser traduzido. No entanto, no caso de Artaud – e de
outros artistas-loucos – há mais a ser levado em conta: o sentido se inscreve em um
projeto, formulado com clareza, levado adiante de modo consciente e proposital. Isso
leva Alain Virmaux a falar em “prolongamento” da sua trajetória:

Essa necessidade de levar cada atitude a seu mais alto grau de expressividade,
sem medo de ultraje, caracteriza todas as épocas de Artaud e todos os níveis da
sua existência. Particularmente desconcertante para os outros na vida diária, ele
se comportava do mesmo modo em cena [...] Os gestos que em Rodez eram
atribuídos à sua demência (girar em volta da sua cadeira, recitar fórmulas
incantatórias ...) constituíam apenas o prolongamento de um comportamento
arraigado há muito tempo. Não o exibicionismo pueril de um histrião doente
pelo palco, como alguns afirmaram, mas deslocação permanente de uma vida
desdobrada e que se torna para si mesma seu próprio teatro.

O projeto de Artaud consiste na ampliação do campo da linguagem – e


conseqüentemente do pensamento, da consciência, do comportamento e das relações
sociais – através de operações de alteração e substituição de signos. Isso é destacado por
seus principais comentaristas. Por exemplo, Virmaux: “A palavra situa-se no âmago de
todos os confrontos que dilaceram Artaud. Não existe domínio onde não apareça: ela
alimenta as obsessões, fundamenta as contradições [...]”
Isso fica mais claro se remontarmos á definição clássica de signo, como algo que
está no lugar de outra coisa, que substitui algo a que designa. Ou seja: todo signo da
linguagem é uma máscara, mostrando e ao mesmo tempo encobrindo outra coisa.
Artaud quis arrancar as máscaras, chegar até essa “outra coisa”, produzindo uma
linguagem que não apenas expressasse o pensamento, mas que fosse pensamento e
também corpo. A esse respeito, são dispensáveis as citações: ao longo de toda a sua
obra, insistiu na insuficiência de uma linguagem puramente cerebral, intelectual, em
favor de uma linguagem mais efetiva por também ser carne, ou seja, totalidade,
concretude – e, em seus últimos textos, Artaud fala explicitamente em linguagem
concreta. Desde O pesa nervos e com particular ênfase na cartas de Rodez sobre
Jabberwocky, passando pelos manifestos do Teatro da Crueldade, a procura da outra
linguagem.
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Semelhante procura é feita através de duas operações. São a reiteração do


mesmo, atribuindo concretude e peso aos signos; e a busca do outro, substituindo o
signo por algo que lhe corresponde.
No primeiro caso, na primeira dessas operações, estão todas as ocasiões em que
Artaud conferiu um estatuto de realidade ou concretude a um signo. Anaïs Nin relata
que descobrira, ao longo de sua análise, uma atração profunda e mal resolvida pelo
próprio pai. Na mesma época, Artaud a acusava de, efetivamente, transar com o pai,
cometer incesto. A fantasia, do incesto tomada como realidade. Na mesma época,
preparando Heliogábalo, o anarquista coroado, encantava-se com o episódio da Pedra
Negra, no qual o símbolo passava a desempenhar a função que simbolizava. Ao mesmo
tempo, encarnava Heliogábalo, como se vê pelo relato de Anaïs. Esse, por sua vez,
acreditava ser a encanação do deus Elagabalus. Na mesma categoria da concretização de
símbolos, todas as referências à Cabala, cuja essência consiste, justamente, na atribuição
de um valor fundante à palavra; e histórias como aquela do bastão mágico irlandês,
encarnação (e não apenas símbolo) da sua obra poética, como fez questão de sublinhar
no prefácio de 1946 à edição da sua Obra Completa.
No segundo caso, da substituição do signo pelo outro, chegamos ao próprio
cerne da obra de Artaud, àquilo que a fundamenta: sua noção de duplo alquímico,
entendido como realidade mais profunda em correspondência com algum plano
manifesto ou aparente da linguagem ou da realidade (o que dá na mesma, pois toda
linguagem faz parte, de algum modo, da realidade, e toda realidade é sígnica, existe
como linguagem, em algum nível). Esse é o fundamento de sua reflexão sobre O teatro
e seu duplo: a idéia de fazer que o Duplo tome o lugar daquilo que o duplica.
Um exemplo, sua viagem ao México e a descrição do rito do peiote entre os
Taraumaras. Viu-o como manifestação real do Teatro da Crueldade, conforme um texto
que vai sendo reescrito, sucessivas vezes. E que se confunde com o teatro da Crueldade
na obra derradeira de Artaud, Para acabar com o julgamento de deus.
Não se trata de substituição da representação (o teatro) pela realidade (o ritual),
como em Heliogábalo (onde a realidade histórica se comporta como teatro), porém de
algo mais complexo: a substituição da representação, de um conjunto de significantes,
não pelo que é representado, mas pela mesma representação, porém em um plano mais
profundo e verdadeiro. Artaud não utilizava uma lingüística ingênua, acreditando que a
cada signo correspondesse um pedaço de realidade, por ele designado. Tampouco há
idealismo, nenhuma crença metafísica em um plano de essências, verdades absolutas ou
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ocultas: “não acredito em nenhuma noção, ciência ou conhecimento, e especialmente


em nenhuma ciência oculta”. (da carta a André Breton, de 1947)
Os dois planos – o Duplo e o duplicado – podem ter relação com a noção
freudiana do conteúdo manifesto e latente. Tanto é que, em várias ocasiões, Artaud
introduz em sua argumentação o sonho e o pesadelo, caracterizados, não como
irrealidade, mas como realidade mais densa, pesada, por isso opressiva e cruel: “Não se
trata de suprimir a palavra articulada, mas de atribuir às palavras quase a mesma
importância que elas possuem nos sonhos.”
Já que foi mencionado o modelo freudiano de interpretação de sonhos, cabe
mostrar onde o papel do sonho na obra artausiana difere daquele que lhe é atribuído na
psicanálise. Há uma divergência entre o surrealismo e Freud que ilustra essa diferença:
respondendo a uma carta de Breton, convidando-o para uma exposição surrealista sobre
os sonhos e o inconsciente, em 1936, Freud observou que seu interesse pelo sonho era
de outra natureza, e não daquela dos surrealistas, que o tomavam como criação artística
e material para exposições. Para Freud, o sonho interessava como matéria para
interpretações, conteúdo manifesto remetendo a um conteúdo latente, a uma fantasia.
Para os surrealistas, não: eles não queriam interpretar, buscar significados, mas operar
com o significante.
Esse também é o papel do sonho na obra de Artaud. Também queria operar ou
atuar no plano do significante. O sonho, bem como todas as demais manifestações do
Duplo, serviria para inquietar, perturbar, questionar a realidade, a ordem estabelecida. O
mesmo para o ritual: nunca foi tradicionalista e se interessava pelo confronto, pelo
choque de culturas; e não pela restauração de uma cultura tradicional. O culto solar a
Elagabalus o atraiu por sua capacidade de perturbar a civilização latina e a sociedade
romana, mais que como modelo. A peça A conquista do México é a tematização do
confronto, a épica do processo, e sua viagem àquele país tinha que ter, necessariamente,
uma ida e uma volta, um duplo movimento: abandonar a cultura européia e trazer a
cultura indígena – ou então, expor publicamente sua transformação pessoal após passar
por um ritual iniciático, assim perturbando a sociedade parisiense. Nas palestras
mexicanas, a ênfase também é posta na contribuição que a raiz indígena poderia trazer,
como cultura próxima da terra, questionando o cerebralismo europeu. Estava voltado
para o processo de transformação, e não para entidades fixas, modelos e utopias.
Isso desanima alguns leitores de Artaud, que o acham pessimista demais, pela
ausência de utopias e tempos pretéritos idealizados. Mas a questão não é essa: trata-se,
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antes, de um tipo de ênfase; de atenção ao processo e não a seu resultado. O pensamento


de Artaud é dialético; mas a sua é uma dialética sem final feliz. Na mesma medida, o
outro, o Duplo, não é sacralizado. Nada a ver, portanto, com aquelas doutrinas místicas
que propõem a recuperação do oculto e primordial de um modo ascético e regrado.
Mitos e religiões, corpóreas e sexuais, interessavam na medida em que contrapostas ás
religiões do nosso tempo, às ideologias, á noção de progresso. O tempo cíclico, não-
linear, puro movimento, contraposto a nosso tempo linear e irreversível, à imposição de
um sentido à história, seja em nome de qual ideologia for, marxismo inclusive.
A proposta de Artaud é “arrebentar o real, desgarrar os sentidos, desmoralizar ao
máximo possível as aparências, desgarrar as aparências”, e isso, pelo “caminho da
perda” (de suas palestras mexicanas). Portanto, quando se dialetiza Artaud, é preciso
observar de qual dialética se trata: a da supremacia do movimento e da ruptura,
condição prévia da sua concepção radical de revolução: “Existe uma revolução que deve
ser feita, desde que o homem não se pense revolucionário só no plano social, mas que se
acredite, e fundamentalmente, que também o seja no plano físico, fisiológico,
anatômico, funcional, circulatório, respiratório, dinâmico, atômico e eletrônico.” (da
carta a Breton de 1947)
O fundamento dessa dialética é, portanto, a negatividade, como bem assinala
Sollers:

Creio que na atualidade podemos reconhecer que, com relação a um anti-


hegelianismo que é uma tradição francesa bem conhecida [...] o que gira ao
redor do conceito de negatividade é central. É igualmente surpreendente que
esse conceito de negatividade, tão difícil de fazer surgir e pensar, tão difícil, ao
que parece, de ser pensado inclusive pelos filósofos, é Artaud, e, como veremos,
também Bataille, que permitem pensá-lo com toda a sua força histórica, teórica,
prática e política.

A dialética de Artaud, evidentemente distinta da filosofia hegeliana da história, é


formulada em nome de um ideal de liberdade absoluta:

Vivemos sob um odioso atavismo fisiológico que faz com que, mesmo em
nossos corpos, e a sós, não sejamos livres, pois uma centena de papai-mamãe já
pensaram e viveram por nós antes de nós, e aquilo que poderíamos encontrar de
legitimamente nosso num dado momento, a idade dita da razão, a religião, o
batismo, os sacramentos, os ritos, a educação, o ensino, a medicina, a ciência,
apressam-se em nos arrebatar.
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A fascinação de Artaud pelo incesto, presente em toda a sua obra (Os Cenci, a
acusação a Anaïs Nin, a biografia de Heliogábalo, o elogio à peça de Ford etc), mostra
como ele ia diretamente ao que importava. Em uma superficial interpretação
psicológica, um problema edipiano mal resolvido. No entanto, sabemos, a partir de
Lévi-Strauss e Bataille, que o tabu do incesto é o fundamento da ordem social e a base
da estrutura familiar. Seu questionamento é necessário para expressar “a revolta interior
profunda contra todas as formas do Pai, contra a preponderância invasora do Pai nos
costumes e nas idéias”. Essa negação do Pai – do superego, do discurso, da palavra
como absoluto e “logos” – significa afirmar que “eu, Antonin Artaud, sou meu filho,
minha mãe e eu”; ou seja, dono da sua pessoa e do seu discurso, pois “não tenho papai-
mamãe / natureza / espírito / ou deus / satã / ou corpo / ou ser / vida / ou nada / nada que
esteja fora ou dentro / e menos ainda / a entrada do ser” (Aqui jaz)
A negatividade, a revolta total e a liberdade absoluta, para serem formuladas e
praticadas, requerem uma determinada linguagem; uma “linguagem sem exterioridade”,
como acertadamente a designa Kristeva. Dela fazem parte os fonemas não-semantizados
e demais transgressões da gramática e, evidentemente, também da lógica. No dizer da
teórica da Semanálise:

Tocar os tabus da gramática – talvez também da aritmética – é tocar o


mandamento surdo a uma sexualidade identificatória: a revolução da linguagem
é uma travessia da sexualidade e de todas as coagulações sociais (famílias, seitas
etc) aderidas a ela.

Pode-se, então, reexaminar o que foi exposto sobre o jogo intersemiótico de


Artaud, suas trocas de signos. É uma prática da linguagem sem exterioridade, sem
nenhuma transcendência fora dela. Seu propósito não seria dizer algo, porém dizer mais,
incluindo no campo da linguagem as glossolalias salmodiadas, os gestos, sons,
entonações da voz, posturas, luzes, ruídos.
As trocas ou substituições de signos já comentadas – a atribuição de concretude
a um signo e a substituição do duplicado pelo duplo – poderiam corresponder à
metonímia e à metáfora. Tomar a Pedra Negra como equivalente ao deus Elagabalus ou
uma fantasia de incesto pelo incesto seria trocar o todo por uma das partes: uma
metonímia. Afirmar que as pessoas são conformistas por estarem enfeitiçadas, assim
descrevendo o poder da ideologia, ou dizer que Deus é um ladrão instalado dentro da
pessoa, roubando-lhe a linguagem, assim descrevendo a alienação, seriam metáforas ou
alegorias.
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Artaud recorre, constantemente, a imagens ilustrativas: as epidemias de peste, o


quadro de Lucas van der Leyde, o filme dos irmãos Marx, a peça de Ford, em O teatro e
seu duplo. Seus poemas sobre Heloisa e Abelardo e sobre Paolo Ucello, a peça Os
Cenci, as histórias de conspirações e enfeitiçamentos são, evidentemente, formas de
dizer algo, indo além do modo convencional desse dizer. No entanto, não é totalmente
correto afirmar quem ele se expressa de forma alegórica e metafórica, como o fazem
alguns de seus estudiosos – Derrida e Virmaux, inclusive. Falar em metáforas e
metonímias é responder ás questões apresentadas pro ele de modo demasiado simples,
equiparando sua obra à literatura, que ele dizia abominar, e atropelando sua própria
lingüística, na qual tais categorias não têm lugar.
As imagens em Artaud são de outra ordem. Quando diz que está sendo
enfeitiçado, não está comparando os modos como se exerce o poder à bruxaria; não se
trata de um símile ou comparação de bruxaria e alienação. Na verdade, usa a forma mais
correta, ou, na sua terminologia, a linguagem mais efetiva para dizer isso. Qualquer uma
de suas imagens é sempre aquela, por não ser possível haver outras, por só assim algo
poder ser dito com todo o seu peso; ou seja, da forma mais cruel. Pode parecer um
código muito rígido, prevendo relações estritas entre os signos – e assim é, de fato.
Tanto que às categorias artausianas de crueldade e efetividade vem sempre associada a
de rigor.
A expressão do Duplo é rigorosa e obedece a regras determinadas. Daí Artaud
não ter simpatia pela escrita automática e qualquer manifestação na qual interviesse o
acaso. Também por isso, encenações baseadas na improvisação e na criação espontânea
em cena não seriam teatro da crueldade. Já o paralelo de sua prática com operações de
magia e a liturgia é correto, nesse sentido: havendo um termo fora do lugar, uma palavra
errada, toda a operação fracassa.
Fica mais clara a razão do desprezo de Artaud pela literatura: essa
corresponderia a um sistema aberto, no qual substituições de significantes podem se
multiplicar ou desdobrar, pois sempre são possíveis novas metáforas, palavras ocupando
o lugar de outras (evidentemente, a restrição não vale para a poesia de qualidade, na
qual a mudança de cada trecho ou vocábulo afeta o todo).
O sistema de Artaud, paradoxalmente, sendo muito aberto, ao mesmo tempo é
fechado, ou assim se pretende. Quando substitui a fala sobre a peste por sua
apresentação, encenando-a, é porque só essa apresentação é admissível, único modo de
dizer aquilo por uma linguagem mais concreta e efetiva, através da substituição da
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duplicação pela concretude do duplo. O exemplo mais veemente desse fechamento é


dado por seu silêncio na palestra do teatro Vieux Colombier em 1947. O silêncio, pois a
única fala efetiva naquele momento, observou, seriam as explosões de bombas e rajadas
de metralhadora: a expressão à altura do que tinha a dizer.
Sabe-se que os dois pólos, metafórico e metonímico, correspondem às duas
operações detectadas por Freud em sua interpretação dos sonhos, deslocamento e
condensação, com uma função de mediação entre o conteúdo latente e o manifesto.
Trata-se, portanto, de um paralelo ou analogia da criação literária e da elaboração no
sonho. Quando Artaud, por sua vez, compara o Teatro da Crueldade ao sonho, ao dizer
que sua encenação deveria ser inquietante e perturbadora como o sonho, apesar de não
citar explicitamente a psicanálise freudiana, antecipa o modelo de Jacobson dos dois
pólos da linguagem, metafórico e metonímico. Mas ao contrário: no lugar de um
paralelo da literatura com o sonho, sugere uma expressão muito próxima ao sonho,
substituindo a literatura convencional e, especialmente, o que criticava como “teatro
psicológico”. No sonho, as imagens são determinadas: obedecem a uma causação, têm
uma lógica própria, pautada pelo mesmo tipo de rigor que Artaud queria para o Teatro
da Crueldade. Ao mesmo tempo, no sonho as imagens são dinâmicas, cambiantes: para
ele, a dinâmica que a linguagem deveria ter.
Boa parte da bibliografia sobre Artaud é dedicada a mostrar que foi um criador
primordialmente voltado para o teatro; que sua obra se dirigia para a expressão teatral.
Mas ele contradiz isso, afirmando que o teatro é um modo de por em ação a poesia, em
Heliogábalo e O teatro e seu duplo; e definindo-se como poeta: “Este é o destino que a
França burguesa reserva a um poeta insurreto” nas Cartas de Rodez, por exemplo.
Trata-se de mais uma contradição aparente, pois em várias passagens rebela-se contra a
palavra escrita, o predomínio do texto. Afirma que cada palavra é irrepetível, só pode
ser dita uma vez; e sua permanência na forma escrita é opressiva, imposição autoritária
da letra – mais enfaticamente, em “Acabar com as obras primas” de O teatro e seu
duplo.
É uma prova de coerência o modo como Artaud sempre se reescreveu, ao longo
de toda a sua obra. Quando a Gallimard decidiu organizar a edição da obra completa,
quis refazer alguns dos textos do Volume 1, a seu ver apócrifos. Já foi mencionado
como reescreveu, sucessivas vezes, o Teatro da Crueldade e a viagem ao México, até
fundi-los em Para acabar com o julgamento de deus.
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Aspirava a uma linguagem de signos instantâneos, que se manifestassem para,


imediatamente serem substituídos por outros. Signos efêmeros como as imagens do
sonho, que mudam constantemente, pois o inconsciente desconhece o princípio da
identidade.
Um teatro que se proclama poesia, uma poesia que não quer ser texto escrito,
porém consagração do instante, embora feita de imagens precisas, efetivas e rigorosas.
Que estranha estética e que insólita teoria literária estão aí?
A obra, para Artaud, seria precisamente o refazer-se: um texto que fosse um
corpo, porém mutante, capaz de criar-se e fazer seus próprios órgãos, como a árvore do
corpo descrita na Carta a Pierre Loeb, feita de “vontade que decide a seu respeito a
cada instante / pois era isso a árvore humana que caminha”. O texto da vida, cambiante
com “nervos elétricos, chama de um fósforo permanentemente aceso”. E
incompreensível, pois “toda verdadeira linguagem é incompreensível” (Aqui jaz),
embora perturbador e efetivo. Algo como o livro perdido, feito de fonemas não-
semantizados, a que se refere em uma das cartas de Rodez a Henri Parisot.
Artaud como autor de uma obra em processo (lembrando a boa expressão de
Kristeva, “O sujeito em processo”), mutante, mas ao mesmo tempo em busca de uma
linguagem concreta. Dialeticamente, nos fala de processos e relações, não de coisas.
Apenas como um dos exemplos, sua insistência nas fezes e na fecalidade, dominante
nos derradeiros textos: o “me cago no espírito” de Artaud, o momo; o “da árvore corpo,
mas pura quen éramos / fizeram esse alambique de merda, esse tonel de destilação fecal,
/ causa da peste e de todas as doenças” da Carta a Pierre Loëb, o “onde cheira a merda
cheira a ser” em Para acabar com o julgamento de Deus.
Imprecações e blasfêmias, sem dúvida. Ou, como observou Susan Sontag,
retomada do gnosticismo, doutrina para a qual o mundo era o dejeto de um deus por sua
vez degradado. No entanto, pode-se observar que, freqüentemente, utilizou a merda e o
cagar como símbolos da transformação. Não se refere apenas às fezes, mas chega a falar
em cagar seu próprio corpo, como meio de transformá-lo, de ser outra coisa. Não apenas
defecar, mas defecar-se, expulsar-se inteiro de si mesmo. Pode-se lembrar, nessa altura,
a interpretação psicanalítica da história por Norman Brown, em Life against Death,
quando associa a formação da sociedade capitalista à retenção fecal. Ou toda a literatura
psicanalítica ligando a formação do caráter e do superego ao controle e retenção das
fezes. Artaud queria justamente o contrário: liberar, expulsar, botar para fora. Para dizer
isso, usou as imagens e termos mais crus e diretos: os mais efetivos.
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Cabe insistir mais ainda no caráter mutante dos excrementos: resultado de uma
transformação, e algo que logo se transformará; que, de um modo ou de outro, deixará
de ser o que é. Pode-se confrontá-los com outro símbolo forte em Artaud: o fogo – as
chamas, as explosões, o fósforo aceso a que se refere em um trecho já citado. Também
mutante; também, e mais ainda, em processo de permanente transformação.
Em qual disciplina ou campo do conhecimento essas duas entidades, fogo e
fezes, se confrontam e interagem? Na alquimia – que, para Artaud, tinha valor de
paradigma; daí seu teatro da crueldade ser alquímico. A transformação alquímica é
celebrada no soneto Vogais de Rimbaud. Seria produtivo projetar esse soneto, como se
fosse um quadro de referências, na obra de Artaud, para chegar a percepções e
interpretações adicionais.

TEXTOS CITADOS; ALGUMA BIBLIOGRAFIA:


ARTAUD, Antonin, Les Tarahumaras, Paris: Idées / Gallimard, 1971;
ARTAUD, Antonin, Messages Révolutionnaires, Paris: Idées / Gallimard, 1971;
ARTAUD, Antonin, Oeuvres Complètes, Paule Thévenin, org., Paris: Gallimard, Tome
I, 1956, e subsequentes;
CHARBONNIER, Georges, Essai sur Antonin Artaud, Paris: Pierre Seghers, 1959;
DERRIDA, Jacques, A escritura e a diferença, São Paulo: Perspectiva, 1978;
DUROZOI, Gérard, Artaud – L’aliénation et la folie, Paris: Larousse, 1972;
ESSLIN, Martin, Artaud, São Paulo: Cultrix – EDUSP, 1978;
HAYMAN, Ronald, Artaud and After, Oxford University Press, 1977;
SOLLERS, Philippe, org., Artaud, Coloque de Cérisy-la-Salle, Paris: UGE, 1973;
SONTAG, Susan, org., Antonin Artaud – Selected Writings, Nova York: Strauss, Farrar
and Giroux, 1976;
VIRMAUX, Alain, Artaud e o teatro, São Paulo: Perspectiva, 1978;
WILLER, Claudio, organização e tradução, Escritos de Antonin Artaud, Porto Alegre:
L&PM, Coleção rebeldes e malditos, 1983.

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