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Sobre Antonin Artaud Um Ensaio Inedito
Sobre Antonin Artaud Um Ensaio Inedito
Antonin Artaud foi, acima de tudo, um ser expressivo. Toda a sua vida consistiu
em um ato de amor pela linguagem e pela expressão. Quando afirma que “toda escrita é
porcaria”, quando se volta contra a ditadura da palavra escrita e do texto nos manifestos
do Théâtre Alfred Jarry e em O teatro e seu duplo, em um paradoxo aparente ao
escrever contra a escrita, na verdade está defendendo e propondo uma linguagem livre,
plena, capaz não só de falar do corpo, mas de expressar o corpo – e outros níveis da
realidade dos quais, em nossa civilização, estamos alienados e separados.
Como bem assinala Derrida, “o trabalho de subversão a que Artaud, desde
sempre, submeteu o imperialismo da letra, tinha o sentido negativo de uma revolta
enquanto se produzia no meio da literatura como tal.” (em “A palavra soprada”). Com
efeito,
Por isso, sua obra completa não consiste apenas na enorme quantidade de textos
editados pela Gallimard. Há muito mais: seus desenhos (particularmente da última fase,
a partir de Rodez), as encenações teatrais, participações como ator em filmes e peças de
teatro, conferências e apresentações públicas (é profundamente lamentável que quase
nada disso tenha sido gravado ou filmado), fotografias (tanto as dele, Artaud, quanto as
montagens surrealistas que fez com Eli Lotar), até mesmo seu comportamento no dia a
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dia. Em síntese, sua vida. Qualquer dúvida sobre a identidade de obra e vida em Artaud
é resolvida com a leitura de testemunhos como o de Anaïs Nin – por exemplo, a
passagem em que encarna publicamente Heliogábalo.
Nem poderia ser de outra forma: Artaud não apenas jamais aceitou a separação
de vida e obra, como também, em repetidas passagens, observou que aquilo que poderia
ser designado como sua produção artística e literária era um modo de refazer-se, de
reconstruir-se, criar um novo corpo, desde o “não tenho feito outra coisa senão
recuperar-me” de 1927 até o “nada de boca / nada de língua / nada de dentes / nada de
laringe / nada de esôfago / nada de estômago / nada de ventre / nada de anus. /
Reconstruirei o homem que sou.” de 1947. Pois “Eu, Antonin Artaud, sou meu filho, /
meu pai, minha mãe / e eu” (Aqui jaz), pois “comigo, é o absoluto ou nada” (Cartas de
Rodez, carta a Henri Parisot). E para isso, para restaurar “a grande lei do coração”
(idem), é necessária uma nova linguagem, que atue como negação da linguagem do
senso comum e da ordem estabelecida; uma “retórica” especial:
outro corredor transversal, com o mesmo assoalho de ladrilhos, a mesma série de portas
gradeadas e envidraçadas na parte de cima, dando para outros tantos cubículos, cada
qual da largura da sua porta.
A legenda da foto: “Corredor do asilo de Quatre-Mares, Sotteville-les-Rouens,
primeiro dos cinco asilos onde Artaud foi internado entre 1937 e 1946. Esteve lá de
dezembro de 1937 até abril de 1938.”
O pavoroso mundo simétrico e organizado dos hospícios, dos hospitais, das
prisões, dos conventos e monastérios, dos colégios e internatos, dos quartéis:
invariavelmente a mesma arquitetura de longos corredores com suas fileiras de portas e
seu chão de indefectíveis ladrilhos cinza, brancos e pretos. Um mundo organizado,
exato, onde cada detalhe e cada momento da vida de seus ocupantes é administrado,
vigiado e controlado. O mundo no qual Artaud viveu por nove anos da sua vida. Logo
ele, contestador radical desse tipo de mundo e de vida, empenhado em demonstrar que
toda a nossa civilização era uma extensão do universo carcerário e hospitalar, uma
sociedade de mortos-vivos controlada não só por penitenciárias, hospícios, escolas e
quartéis, mas pela ideologia que produz e justifica semelhante sistema.
Consegue-se adivinhar o penetrante cheiro de creolina invariavelmente usada
para lavar esses assoalhos de ladrilhos e desinfetar as privadas. É possível imaginar a
exasperante regularidade da vida dos internados, a monotonia da passagem do tempo:
hora de acordar, de tomar café, receber a visita do médico ou enfermeiro, sair do
cubículo para andar, hora de comer, de dormir, para no dia seguinte começar tudo de
novo. A vida com uma multidão de infelizes igualmente acorrentados à prática do
mesmo ritual, eventualmente protestando, expressando seu desespero e horror para
imediatamente serem trancafiados, postos em camisa de força, anestesiados ou
paralisados por eletrochoques.
Certamente o mais terrível dos lugares onde Artaud esteve internado foi o
hospício de Sainte-Anne, onde ficou mais tempo, até 1943. Um hospício de pobres em
tempo de guerra, o país ocupado e seus ocupantes nazistas tendo por princípio
exterminar aqueles considerados loucos incuráveis, categoria na qual Artaud estava
incluído, confinado no pavilhão dos irrecuperáveis junto com uma esquelética multidão
de famintos. Pois sabe-se que Artaud passou fome, passou por muitas privações em
Sainte-Anne (e como deviam ser gelados esses corredores e cubículos no inverno
europeu); e por isso saiu de lá com a saúde definitivamente arruinada. Nas cartas de
1943/44, sua queixa mais freqüente ainda é de fome, que não lhe traziam o suficiente
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para comer, que queria pão, que os amigos lhe mandassem alimentos, que não adiantava
lhe mandarem alimentos, pois não os recebia: “Por isso preciso de pão e peço-lhe que
me ache algum pão. – E a coisa que você pode fazer por mim nessa terra, minha querida
Annie, é mandar-me o mais cedo possível um pouco de pão. – Pois isso é urgente.”
(carta a Anne Manson, 1944) “Vejo que você não se dá conta do que é a vida de um
internado num asilo de alienados. Dão para o internado sua ração num prato e isso é
tudo. Faz sete anos que, nas minhas refeições, não como mais que uma sopa e um
legume.’ (Carta a Madame Artaud, 1944)
Se alguma vez na vida Artaud esteve realmente louco, foi durante a estada em
Sainte-Anne. Ao sair, esquálido e aterrorizado, não falava, parecia não entender mais
nada. Louco de sofrimento, o que nada tem a ver com quadros de referência
psiquiátricos. Esteve efetivamente em risco de vida e pouco faltou para que nunca
tivéssemos a oportunidade de ler obras como Van Gogh, o suicidado pela sociedade ou
as Cartas de Rodez. Seu amigo, o poeta Robert Desnos, conseguiu tirá-lo de lá,
utilizando expedientes para atravessar a fronteira entre a França ocupada e a região
“livre’, a República de Vichy, onde fica Rodez. Logo em seguida, Desnos, um dos
maiores poetas franceses do século 20, seria preso pelos nazistas e confinado em
Terezienstad, morrendo de tifo enquanto as tropas americanas ocupavam o campo de
concentração.
Cabe indagar: o que, precisamente, ele fez para ser levado a Quatre-Mares,
Sainte-Anne e demais etapas do seu calvário? Afinal, nunca assassinou alguém; não
roubou, nunca bateu em alguém ou cometeu qualquer outra violência física, não
planejou ou executou atentados. Exceto tomar ópio regularmente, nada que pudesse ser
considerado crime, ilícito penal.
O próprio Artaud dá a resposta:
[...] o dever social de dar passagem às angústias da sua época. O artista que não
abrigou no fundo do seu coração o coração da sua época, o artista que ignora ser
um bode expiatório cuja obrigação é imantar, atrair, fazer cair sobre suas costas
as cóleras errantes da sua época, não é um artista. (das suas palestras no México)
Sabia muito bem qual seria o resultado desse confronto ideológico, prevendo-o
desde o momento em que se situou em um “ponto de vista nitidamente anti-social”,
partindo do princípio de que “todo ato individual é anti-social”.
A justificativa do seu internamento pela loucura não resiste a uma análise mais
atenta. Há um discurso fácil, que consiste em explicar o comportamento e passagens dos
textos de Artaud através psiquiatria. Vários autores caem nisso: Ferdière, por exemplo,
na tentativa de explicar os eletrochoques (ao que consta, dezenas de sessões, muito até
pelos padrões psiquiátricos ortodoxos). E outros com melhores intenções, como Martin
Esslin, que acha Artaud um gênio, mas ao mesmo tempo observa que era louco; que
delirava, era contraditório, supondo uma contradição entre loucura e genialidade.
Mas essa contradição não existe. A relação de loucura e criatividade é muito
mais de implicação que de contradição ou antagonismo. Há que escolher entre uma
linguagem ou outra: ou se encaram certos fenômenos sob a ótica psiquiátrica, ou sob a
ótica da criação. Psicologizar um criador – e escrever sobre a esquizofrenia, a paranóia e
a mania em Hölderlin, Nerval, Lautréamont ou Artaud – é adotar uma postura
reducionista. O contrário é mais produtivo: por exemplo, o método utilizado por Gilles
Deleuze e Félix Guattari em O Anti-Édipo que consiste em partir da esquizofrenia para
esclarecer o funcionamento da criação e do desejo. Essa mudança de perspectiva
também confere especial importância aos estudos de Maurice Blanchot e Michel
Foucault que tratam de Artaud.
Uma grande contribuição de Artaud, por sua vez, foi o modo como obrigou a
essa mudança de perspectiva. A linguagem da psiquiatria, destinada à compreensão de
um conjunto de fenômenos dentro de uma ótica específica, mostrou-se impotente para
falar de Artaud – e, por extensão, da criação poética. Qual seria, então, a linguagem
adequada para falar de Artaud? É dessa interrogação que parte o importante ensaio de
Derrida, “A palavra soprada”, mostrando que tanto o discurso clínico quanto o discurso
crítico se revelam insuficientes, pois ambos o tratam como “caso”, ou seja, de forma
reducionista:
por isso deixam de ser cúmplices – por uma unidade que reenvia, por mediações
impensadas, à que há pouco procurávamos – na mesma abstração, no mesmo
desconhecimento e na mesma violência.
coerência. O mesmo vale para Artaud: seus aparentes sintomas são operações
semiológicas, dotadas de sentido.
É claro que qualquer sintoma de loucura também é uma operação sobre a
linguagem, utilizando de modo não-convencional. Delírios, surtos e fantasias sempre
têm sentido, dizem algo que pode ser traduzido. No entanto, no caso de Artaud – e de
outros artistas-loucos – há mais a ser levado em conta: o sentido se inscreve em um
projeto, formulado com clareza, levado adiante de modo consciente e proposital. Isso
leva Alain Virmaux a falar em “prolongamento” da sua trajetória:
Essa necessidade de levar cada atitude a seu mais alto grau de expressividade,
sem medo de ultraje, caracteriza todas as épocas de Artaud e todos os níveis da
sua existência. Particularmente desconcertante para os outros na vida diária, ele
se comportava do mesmo modo em cena [...] Os gestos que em Rodez eram
atribuídos à sua demência (girar em volta da sua cadeira, recitar fórmulas
incantatórias ...) constituíam apenas o prolongamento de um comportamento
arraigado há muito tempo. Não o exibicionismo pueril de um histrião doente
pelo palco, como alguns afirmaram, mas deslocação permanente de uma vida
desdobrada e que se torna para si mesma seu próprio teatro.
Vivemos sob um odioso atavismo fisiológico que faz com que, mesmo em
nossos corpos, e a sós, não sejamos livres, pois uma centena de papai-mamãe já
pensaram e viveram por nós antes de nós, e aquilo que poderíamos encontrar de
legitimamente nosso num dado momento, a idade dita da razão, a religião, o
batismo, os sacramentos, os ritos, a educação, o ensino, a medicina, a ciência,
apressam-se em nos arrebatar.
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A fascinação de Artaud pelo incesto, presente em toda a sua obra (Os Cenci, a
acusação a Anaïs Nin, a biografia de Heliogábalo, o elogio à peça de Ford etc), mostra
como ele ia diretamente ao que importava. Em uma superficial interpretação
psicológica, um problema edipiano mal resolvido. No entanto, sabemos, a partir de
Lévi-Strauss e Bataille, que o tabu do incesto é o fundamento da ordem social e a base
da estrutura familiar. Seu questionamento é necessário para expressar “a revolta interior
profunda contra todas as formas do Pai, contra a preponderância invasora do Pai nos
costumes e nas idéias”. Essa negação do Pai – do superego, do discurso, da palavra
como absoluto e “logos” – significa afirmar que “eu, Antonin Artaud, sou meu filho,
minha mãe e eu”; ou seja, dono da sua pessoa e do seu discurso, pois “não tenho papai-
mamãe / natureza / espírito / ou deus / satã / ou corpo / ou ser / vida / ou nada / nada que
esteja fora ou dentro / e menos ainda / a entrada do ser” (Aqui jaz)
A negatividade, a revolta total e a liberdade absoluta, para serem formuladas e
praticadas, requerem uma determinada linguagem; uma “linguagem sem exterioridade”,
como acertadamente a designa Kristeva. Dela fazem parte os fonemas não-semantizados
e demais transgressões da gramática e, evidentemente, também da lógica. No dizer da
teórica da Semanálise:
Cabe insistir mais ainda no caráter mutante dos excrementos: resultado de uma
transformação, e algo que logo se transformará; que, de um modo ou de outro, deixará
de ser o que é. Pode-se confrontá-los com outro símbolo forte em Artaud: o fogo – as
chamas, as explosões, o fósforo aceso a que se refere em um trecho já citado. Também
mutante; também, e mais ainda, em processo de permanente transformação.
Em qual disciplina ou campo do conhecimento essas duas entidades, fogo e
fezes, se confrontam e interagem? Na alquimia – que, para Artaud, tinha valor de
paradigma; daí seu teatro da crueldade ser alquímico. A transformação alquímica é
celebrada no soneto Vogais de Rimbaud. Seria produtivo projetar esse soneto, como se
fosse um quadro de referências, na obra de Artaud, para chegar a percepções e
interpretações adicionais.