Você está na página 1de 12

I INTRODUÇÃO

Lopes-Graça, figura marcante da música e da cultura portuguesa do século XX, deixou-nos uma
vasta obra musical e literária 1 , um exemplo de cidadania e, naqueles que com ele privaram, a impressão
de uma forte personalidade – de um homem empenhado na vida do seu tempo, que assim se definia a si
mesmo:
Sou apenas um profissional da música, que se tem esforçado até hoje por desempenhar o
seu ofício o melhor possível, sem trair nenhum dos imperativos que lhe fazem amar a sua arte e
defendê-la contra tudo e todos que, dentro e fora dela, tentam aviltá-la; vendendo-a e vendendo a
sua consciência a troco de mesquinhas satisfações de ordem pessoal: o interesse, a vaidade, a
consagração oficial e pública. Se algum título eu aqui posso invocar, é apenas este: o de artista –
um artista que sem deixar, é certo, de ser homem, e sem separar a sua arte do homem e de tudo
quanto ao homem diz respeito ou interessa profundamente: os seus problemas, as suas lutas, o
seu destino, a sua condição social –, só se acha contudo, qualificado para falar das questões
referentes à sua arte e dar a esta o melhor da sua actividade ou alguns dons que acaso a
Natureza lhe concedeu em graça 2 .

Uma das características marcantes da obra de Lopes-Graça consiste na busca de uma


identificação profunda com o povo e a cultura portuguesa.
Para Lopes-Graça, «toda a arte tem de ser em primeiro lugar nacional, só depois do que, ou só
mediante o que, poderá aspirar à ambicionada, e nem sempre alcançada, categoria de universal» 3 .
Em A Canção Popular Portuguesa, Lopes-Graça marca um ciclo de pesquisas, encetadas com a
primeira série de Canções Populares Portuguesas.
O livro foi dedicado
aos jovens amigos e colaboradores do Coro da Academia de Amadores de Música, que, com
dignificante sentido patriótico e cultural me [a ele, Lopes-Graça] têm devotadamente
acompanhado na causa da divulgação e reabilitação da nossa canção popular.

Lopes-Graça deixa aberta a possibilidade de A Canção Popular Portuguesa vir a conhecer uma
próxima edição, «mas esta certamente já não em vida do seu autor».
E assim ficou lançado o repto:
será de crer que quem dela tomar conta disponha dos dados que futuras investigações possam
proporcionar-lhe, de sorte a que a obra se apresente mais rica de informação e com perspectivas
sobre a matéria até agora insuspeitadas, não obstante os largos e muito significativos passos que
em tal sentido foram dados de há umas três ou quatro décadas a esta parte. 4

Cremos que, no âmbito em que Lopes-Graça situava a investigação sobre a música tradicional,
não foram assim tantos os avanços registados, embora os haja, sendo de assinalar os trabalhos mais
recentes publicados por José Alberto Sardinha e outros, produzidos sob a esfera académica 5 , como a
1
Sempre que fizermos citação ou remetermos para textos de Lopes-Graça reproduzidos nesta colectânea, indicaremos o seu título
com o respectivo número colocado entre parêntesis rectos (v. Bibliografia).
2
Em «Sobre o conceito de popular na música» [1]. Palestra feita em Évora, em 1947, na Escola do Grupo de
Amadores de Música Eborense, por ocasião do 5.o aniversário desta colectividade.
3
Em «Sobre os arranjos corais das canções folclóricas portuguesas» [18]. Introdução a um concerto do Coro da Academia de
Amadores de Música (Secção de Folclore), realizado no Tivoli, de Lisboa, por iniciativa da Juventude Musical Portuguesa.
4
Em «Nota à 4.a Edição de A Canção Popular Portuguesa» (Editorial Caminho, 1991).
5
Há vários trabalhos a considerar nesse âmbito, ao nível do trabalho de campo ou da pesquisa histórica, tais como os dois
volumes (Romances du Trás-os-Montes e Le Chant du Pain) da pesquisadora Anne Caufriez e o ensaio O Essencial Sobre a
Música Tradicional Portuguesa, de José Bettencourt da Câmara, diversos trabalhos académicos onde as tradições populares são
modernamente perscrutadas no seu processo de mudança, a monografia sobre Artur Santos, de Cristina Brito da Cruz, e, ainda, a
dissertação sobre a questão da tradição em Lopes-Graça, de Teresa Cascudo (estes últimos trabalhos não tiveram ainda a
necessária sequência editorial).

6
colectânea de textos sobre o folclorismo e a folclorização, agrupados sob o sugestivo título de Vozes do
Povo 6 , onde se realça o entendimento da cultura – e, dentro desta, do folclore – como produto histórico
e se procura analisar o processo da folclorização e o contributo específico dos seus artífices.
Na ocasião do centenário do seu nascimento, surgiu a oportunidade de se disponibilizar ao
público uma colectânea de textos de Lopes-Graça sobre a música tradicional, textos que se
encontravam dispersos pelos vários volumes das suas Obras Literárias.
E o projecto começou a tomar forma enquanto ampliação da última edição de A Canção Popular
Portuguesa. Ampliação porque o número de textos crescia consideravelmente e porque havia também
condição de acompanhar aquilo que de facto ocorreu com as edições anteriores, onde a generalidade
das músicas tradicionais coligidas por Lopes-Graça haviam sido objecto de tratamento na obra musical,
pelo que se afigurou plausível extrair dessa mesma obra musical a indicação ou o critério para a
ampliação pretendida.
Que esta edição não cumprirá de maneira cabal o que Lopes-Graça havia idealizado, estamos
seguros. E aquilo que ela traz de novo não é, certamente, o que o autor de A Canção Popular
Portuguesa colocaria numa quinta edição do seu livro, pois aqui resultou um enfoque personalizado,
procurando realçar o contributo de Lopes-Graça para a criação de uma concepção de música
tradicional: a música popular portuguesa em Fernando Lopes-Graça.

Sobre os textos de Fernando Lopes-Graça

A selecção de textos que se apresenta contém, pensamos nós, o essencial da intervenção escrita
de Fernando Lopes-Graça sobre o folclore e a canção popular portuguesa. Nestes, Lopes-Graça,
ressalvando sempre não se considerar um folclorista, apresenta-nos o seu entendimento sobre a matéria.
Os conceitos de folclorismo e folclorização aparecerão nos diversos textos e notas que seguem. O
folclorismo corresponde ao modo como, num momento histórico específico, o folclore foi entendido e
valorizado. Já a folclorização consistirá no «processo de construção e de institucionalização de práticas
performativas, tidas por tradicionais, constituídas por fragmentos retirados da cultura popular, em regra
rural» 7 .
A par da problematização do folclore proposta em Vozes do Povo, podemos referir ainda a
abordagem do sociólogo brasileiro Florestan Fernandes 8 : trata-se de um questionamento
simultaneamente convergente e sincrónico com Lopes-Graça (isto é, produzido no mesmo período em
que este desenvolve o essencial do seu trabalho no âmbito do folclore); uma leitura que procura
relacionar a vertente científica com a vertente estética, característica central da questão no que refere a
Lopes-Graça.
Segundo aquele autor, serão três as orientações em que se desenvolvem as preocupações
essenciais dos folcloristas: «a subordinação dos estudos folclóricos a critérios de investigação
fornecidos pelas ciências sociais; a aspiração de converter o folclore em disciplina científica
autónoma»; e, finalmente, «o recurso a critérios estéticos de reconstrução e de apresentação das

6
Castelo-Branco, Salwa (org). Vozes do Povo. Celta Editora (Oeiras, 2003). Não deixa todavia de ser relevante que, sendo a
questão do folclorismo tratada em toda a sua extensão em Vozes do Povo, Lopes-Graça seja citado praticamente em todos os
artigos e não haja um que, especificamente, seja dedicado à análise do contributo deste autor.
O estudo da participação de Lopes-Graça no processo de folclorização está ainda por fazer. A simples constatação do uso que
Lopes-Graça fazia da música tradicional portuguesa e dos conceitos que, a respeito dela, exprimia nos seus escritos e
intervenções não permite fazer o alinhamento directo deste autor junto dos demais artífices da folclorização. Há diferenças
assinaláveis de sentido quando conceitos como «autenticidade» ou «qualidade estética» são utilizados por Lopes-Graça ou por
outros intervenientes da sua geração.
7
Castelo-Branco, ibidem.
8
Fernandes, Florestan (1956). O Folclore em Questão. Editora Huitec (São Paulo, 1978).
A referência à proposta deste autor vem aproveitada de um trabalho intitulado F. Lopes-Graça e o Folclorismo Musical
(Alexandre B. Weffort e Eli Camargo Jr.; 1999, texto inédito).

7
manifestações folclóricas». Cremos que é precisamente esta última a que melhor enquadra o
posicionamento particular de Lopes-Graça 9 .
Podemos hoje, dispondo da necessária distanciação, tentar reconhecer no folclorismo as margens
e seu sentido. Da mesma forma que os conceitos de povo, cultura e folclore são construções históricas,
a intervenção de Lopes-Graça no âmbito do folclore é historicamente datada (e este será um factor a
reter para a interpretação do sentido dos seus textos).
Nos seus escritos, Lopes-Graça combate de forma sistemática e incisiva o processo de
folclorização encetado pelo Estado Novo e contrapõe, na sua prática enquanto compositor e músico
actuante, uma visão própria do valor da música popular enquanto «expressão e documento da vida,
sentimentos, aspirações e afectos do nosso povo» 10 , afirmando que:
ela nos define e integra na nossa realidade psicológica e social. Amá-la, é conhecermo-nos no
que em nós existe de mais fundo e enraizado no solo natal; defendê-la, é defender portanto uma
parcela de nós mesmos, da nossa individualidade, da nossa história íntima 11 .

O folclore é, no pensamento de Lopes-Graça, produto de evolução e de transformação.


Combatendo a tendência dominante do processo de folclorização, Lopes-Graça intervém também nesse
processo. Mas a sua intervenção realiza-se integrada num «movimento de busca e descoberta de um
País, ele próprio atravessado pelas crises da sua história política e social» 12 – de «um Portugal antigo,
rural, depauperado, mas também de um Portugal ocultado pelo discurso do regime» 13 – movimento em
que Lopes-Graça participa, em busca de «um conhecimento mais crítico, mais liberto, que o revele
através daquilo que poderiam ser as suas manifestações mais arcaicas, de vozes e gestos» 14 .
Há em Lopes-Graça um prisma ideológico que informa o sentido das suas acções.
O povo de Lopes-Graça não é nem nunca foi o povo de que falavam o Estado Novo e o SNI
[Secretariado Nacional de Informação]. Assim como a chamada política do espírito tinha para o
seu povo a música que convinha, assim Lopes-Graça se esforçava por desmascarar a imagem
ínsita nessa operação de propaganda. Daí que rejeitasse o pitoresco e procurasse nas canções
do povo o que nelas havia de mais representativo da sua luta pela sobrevivência, da sua
sabedoria da vida, do seu humanismo religioso, do seu anseio de amor, de paz e de progresso, da
sua capacidade de resistência, da sua energia criadora, da sua irreverência, do seu potencial
subversivo 15 .

Lopes-Graça intervém no âmbito do folclore enquanto artista e enquanto cidadão do seu tempo.
Os seus escritos destinavam-se à intervenção na realidade, e não apenas à reflexão distanciada da
mesma, mas, não obstante, a sua acção era informada por um esforço de distanciação, para o qual
recorria ao conhecimento científico disponível. À medida em que se amplia o leque de informação,

9
Florestan Fernandes aprofunda a questão considerando que «o critério estético permite conhecer aspectos da realidade que são
inacessíveis à indagação histórica e à investigação experimental. No estudo do folclore, esse critério abre perspectivas para a
descrição de conexões psicoculturais das actividades humanas que só são acessíveis, vistas através de situações concretas de
existência, à exposição intuitiva. Daí o contraste que se pode estabelecer entre a orientação estética e a orientação científica na
reconstrução do folclore. A pesquisa folclórica, de orientação científica, visa reconstruir o objecto e a explicá-lo por meio da
abstracção dos elementos formais, estruturais ou funcionais que se repetem com certa regularidade ou que variam dentro de um
intervalo reconhecível de flutuação. Ela é incapaz, portanto, de reunir evidências que permitam representar o objecto através dos
elementos cuja variação não possa ser compreendida nos limites comuns: a) do que se repete com regularidade; b) do que se
altera dentro de um intervalo definido de flutuação. A abordagem estética, ao contrário, comporta a reconstrução do folclore a
partir desses elementos. Pela observação e pela compreensão endopática, ela pode estabelecer dentro de que limites os efeitos
irregulares,que transcendem à capacidade média ou comum de percepção social e da reacção condicionada, se inserem no
contexto das ocorrências folclóricas, caracterizando-as de modo profundo. Com isso, o excepcional é excluído da esfera do
contingente e passa a servir como fonte de reconstrução e de explicação das condições ou das situações em que possa ocorrer».
10
Em Lopes-Graça, F. «Valor estético e significação nacional da canção popular portuguesa» [2].
11
Idem, ibidem.
12
Pais de Brito, Joaquim. Onde Mora o Franklin? Um Escultor do Acaso. MNE (Lisboa, 1995).
13
Idem, ibidem.
14
Idem , ibidem.
15
Viera de Carvalho, Mário. O Essencial sobre Fernando Lopes-Graça. INCM (Lisboa, 1989).

8
regista-se uma transformação do seu pensamento, o que na maior parte das vezes é noticiado pelo
próprio 16 .
O assentamento das bases em que ocorre a indagação científica a respeito da cultura popular é um
processo em permanente evolução, com correntes e modas, algumas mais perenes, outras passageiras.
Lopes-Graça revelou acompanhar atenta e criticamente este processo, a ele reagindo e nele intervindo
constantemente.
E, embora Lopes-Graça afirmasse sempre não ser um folclorista,
nem por isso deverá a dimensão científica do seu contributo ser omitida. [...] deve-se-lhe um
significativo legado em matéria estritamente etnomusicológica, seja pela reflexão produzida
sobre a nossa música tradicional [...], seja por algum trabalho de campo a que também
procedeu, só ou acompanhando Michel Giacometti, seja ainda pelo apoio musicológico que a
este último não regateou» 17 .

Do conjunto dos escritos de Lopes-Graça seleccionados para esta colectânea, podemos desde já
referenciar algumas preocupações recorrentes: a delimitação do conceito de música tradicional
(essencialmente rural, que Lopes-Graça diferenciava da música popular urbana); o reconhecimento da
música tradicional enquanto parte integrante de uma identidade cultural nacional; a valorização estética
da música tradicional e o sublinhar da relação entre a música e a vida social.
Assim definia Lopes-Graça a canção popular 18 :
companheira da vida e trabalhos do povo português, a canção segue-o do berço ao túmulo,
exprimindo-lhe as alegrias e as dores, as esperanças e as incertezas, o amor e a fé, retratando-
lhe fielmente a fisionomia, o género de ocupações, o próprio ambiente geográfico, de tal maneira
ela, a canção, o homem e a terra, onde uma floresce e o outro labuta, e ama, e crê, e sonha,
e a que entrega por fim o corpo, formam uma unidade, um todo indissolúvel 19 .

Os textos de Lopes-Graça adiante reproduzidos foram agrupados da seguinte forma, de acordo


com o enfoque que assumem: conceituação (n.os 1 a 5), problematização (n.os 6 a 10), caracterização
(n.os 11 a 16), tratamento (n.os 17 a 19), regiões (n.os 20 a 28) e crítica (n.os 29 a 32), sendo que, dentro
de cada grupo, a ordenação seguida é a da data da sua primeira publicação 20 .
Dos textos incluídos, alguns merecem especial atenção: trata-se das entradas relativas à música
popular da Beira Baixa e do Alentejo constantes da primeira edição de A Canção Popular Portuguesa,
que foram retiradas na segunda edição e seguintes do livro.
Lopes-Graça explica a razão da alteração:
os dois estudos que na 1.a edição se estamparam como apêndices («Apontamentos sobre a
canção alentejana e Apontamentos sobre a canção popular da Baira Baixa) foram [...]

16
Vejam-se, por exemplo, os textos «Apontamentos sobre a canção alentejana» [20] e «Acerca do canto alentejano» [22] ou
«Apontamentos sobre a canção popular da Beira Baixa» [23] e «Cantos da Beira Alta, Beira Baixa e Beira Litoral» [25] das
primeira e quarta edições de A Canção Popular Portuguesa ou em «Valor estético e significação nacional da canção popular
portuguesa» [2].
17
Bettencourt da Câmara, José. O Essencial Sobre a Música Tradicional Portuguesa. INCM (Lisboa, 2001). Assinalando a
«relação multímoda» de Lopes-Graça com a música tradicional portuguesa, este autor refere ainda, em Lopes-Graça, a «definição
da música popular portuguesa como a do património das nossas comunidades rurais, exagerando certamente no seu combate à
“mitologia fadista”». A questão do fado foi objecto de tratamento por Lopes-Graça em alguns textos específicos. Optamos por
não os inserir por entendermos ser esta uma questão marginal ao conceito de música popular praticado por Lopes-Graça e, por
outro lado, por considerarmos que a compreensão da posição de Lopes-Graça a respeito do fado requer uma abordagem mais
extensa do que o adequado neste contexto.
18
Para Lopes Graça, «por canção popular portuguesa se deve entender, antes de tudo, a nossa canção rústica» (em «Folclore
autêntico e contrafacção folclórica» [3]).
19
A mesma fonte referida na nota anterior.
20
Tendo por critério fazer uso apenas dos textos editados por Lopes-Graça, ficaram de fora os guiões para programas de rádio e
outros textos avulsos. É de assinalar também a ausência do prefácio de Lopes-Graça ao livro de José Alberto Sardinha sobre a
Estremadura, o texto sobre Giacometti, gravado aquando de um diaporama em homenagem a este pesquisador, e algumas
entrevistas concedidas por Lopes-Graça onde a questão da música popular portuguesa é também tratada.

9
suprimidos, tanto por deslocados no contexto geral, como porque o seu teor desdizia em parte
certas conclusões a que nos foi possível entretanto chegar».

Cabe-nos explicar a razão que justifica recuperar esses escritos: dar ao leitor a oportunidade de
apreciar a transformação do pensamento do autor, em conteúdo e estilo, ao longo das quase cinco
décadas em que, neste âmbito específico da escrita sobre a canção popular portuguesa, Lopes-Graça
intervém.
Os textos que seguem mostram-nos não apenas o pensamento do autor sobre a temática em
apreço mas também o modo como aproveitava a oportunidade para, partindo dessa temática específica,
alargar o horizonte das preocupações e questões específicas da música e cultura populares aos
problemas do seu país, do seu povo, do seu tempo.
Como oportunamente assinala Mário Vieira de Carvalho 21 ao sublinhar o carácter nacional da
obra musical de Fernando Lopes-Graça, este «jamais escreveu uma nota alheado das formas de
existência social da sua música, conscientemente assumida como “produto de uma equação entre o
artista e o seu meio”». Esta afirmação, que Mário Vieira de Carvalho faz tendo em vista a obra
musical 22 , estendemo-la nós aos escritos sobre a música popular.

Os exemplos musicais

Os textos sobre a canção popular portuguesa foram aqui considerados com base num critério de
alargamento do material apresentado por Lopes-Graça em A Canção Popular Portuguesa. Já os
exemplos musicais seguem uma lógica menos linear.
Há uma alteração substancial de critério a assinalar no alargamento dos exemplos apresentados
por Lopes-Graça na obra referida e nesta colectânea, que passa das sete dezenas para a centena e meia.
Em A Canção Popular Portuguesa, Lopes-Graça expõe, no terreno da indagação científica, as
suas descobertas e ideias a respeito do folclore musical e, na selecção dos exemplos, procura atender
aos critérios científicos da época. Afirmando sempre não ser folclorista, vai entrando no terreno e
marcando de forma determinante o desenvolvimento do folclorismo em Portugal. Todavia, cotejando
os exemplos musicais expostos em livro com os que utiliza como material para a composição, podemos
observar haver na obra composta um critério mais aberto que o observado no livro em referência.
Sem querer cair num vício de anacronismo, que resultaria da apreciação da obra fora do seu
tempo, é sobretudo na utilização da fonte folclórica enquanto matéria para a criação musical, que
Lopes-Graça manifesta a sua plena modernidade.
Assim, fomos à procura na obra composta, na criação musical de autor, das fontes que, muito
provavelmente, foram por ele utilizadas para a composição de mais de cinco centenas de peças
musicais de raiz tradicional. Daquelas que foi possível descortinar a fonte, seleccionamos centena e
meia, baseados sobretudo em duas grandes colecções: as canções para voz e piano e as canções corais a
capella.
A razão dessa escolha prende-se com o facto de, nessas duas colecções, ser mais evidente o
propósito de Lopes-Graça em gerar instrumentos de divulgação de traço etnográfico. Assim, nas
canções para voz e piano, os temas populares são expostos pelo canto quase sem modificação em
relação à fonte, sendo o trabalho composicional realizado na parte do piano.
Nas canções corais a capella o propósito da divulgação do folclore é de ordem programática: nas
palavras de Lopes-Graça, «as canções regionais portuguesas [foram] o sucedâneo obrigatório das

21
Viera de Carvalho, Mário. O Essencial sobre Fernando Lopes-Graça. INCM (Lisboa, 1989).
22
Diz Vieira de Carvalho (no texto já referido): «Se [Lopes-Graça] dedicou numerosos textos à canção popular portuguesa
(alguns reunidos em livro, outros dispersos nomeadamente pelos diversos volumes da Antologia) não é essa leitura que dela faz a
que mais interessa à nossa perspectiva: é a leitura do compositor ao trabalhar sobre o documento original, repensando-o,
transformando-o, recriando-o, trazendo-o para outro plano.»

10
canções heróicas [...]. Tinham a sua missão também de reavivar de recordar ao povo as suas canções
originais» 23 .
Tanto no material editado por Lopes-Graça em livro como, obviamente, nas suas criações
musicais, manifesta-se sempre presente o critério do músico, em parceria com o do folclorista (que,
recordemos, Lopes-Graça afirmava não ser). E esse facto tem aparentemente levado o meio científico,
sobretudo o de vinculação académica, a evitar de certa forma fazer uso do legado de Lopes-Graça para
uma abordagem disciplinar no âmbito da etnomusicologia.
O critério de selecção dos exemplos musicais aplicado por Lopes-Graça, tendo definido nele um
parâmetro estético, tem chocado com as perspectivas metodológicas hoje predominantes no âmbito da
etnomusicologia, onde esse mesmo critério se apresenta como uma contaminação, a priori, dos dados
pela perspectiva do observador.
Mas, se essa reserva for pertinente (o que não está para nós em questão), então importará
conhecer intimamente esse critério estético para, conhecendo o filtro utilizado, melhor discernir sobre a
significação dos dados.
A obra musical de Lopes-Graça apresenta-nos o critério mais amplo do autor face à questão
estética. Assim, procuramos constituir uma colectânea de temas musicais populares que, em nossa
opinião, estabelecem uma ideia abrangente da música popular portuguesa, socorrendo-nos novamente
da formulação de Mário Vieira de Carvalho quando afirma que quem
se familiariza com a arte de Lopes-Graça (sobretudo com as suas recriações de canções
regionais para o Coro da Academia de Amadores de Música ou em versões para canto e piano) é
induzido a formar uma determinada concepção do carácter nacional da nossa música 24 .

Trata-se pois de uma determinada concepção, aquela que é proposta, da música popular
portuguesa em Fernando Lopes-Graça.
Procurámos um critério de ordenação também correspondente ao gesto do autor. Seguimos,
assim, as datas de publicação dos cadernos das canções populares para voz e piano e das canções
corais. Exceptuando as colectâneas como as Cantatas de Natal, as Encomendações das Almas e o
caderno sobre as cantigas de Linhares, dedicado a Vergílio Pereira e baseado em recolhas deste último,
a ordenação resulta, nos planos temático e regional, «desordenada». Mas esse foi efectivamente o
critério editorial praticado por Lopes-Graça 25 . Cada caderno de canções apresenta-se, antes de mais,
como uma proposta de programa de recital, contemplando uma diversidade de regiões e temas.
Procurámos apresentar os exemplos tal qual Lopes-Graça os encontrou e, sempre que surgiram
dúvidas (sobretudo de notação), diligenciámos resolvê-las recorrendo, caso a caso, à solução
apresentada por Lopes-Graça.
Por outro lado, juntámos numa colectânea anexa as letras que o autor seleccionou para
acompanhar a composição musical. Nelas podemos observar também as tendências estéticas e
ideológicas do compositor que, repetindo citação anterior, «jamais escreveu uma nota alheado das
formas de existência social da sua música, conscientemente assumida como “produto de uma equação
entre o artista e o seu meio” 26 .

Fontes folclóricas em Fernando Lopes-Graça

23
Registo sonoro, ao vivo, de Lopes-Graça numa apresentação do Coro da Academia de Amadores de Música (Lisboa, 1976).
24
Viera de Carvalho, Mário. O Essencial sobre Fernando Lopes-Graça. INCM (Lisboa, 1989).
25
Em abono da verdade, tivemos algumas dificuldades quanto ao critério de ordenação temática utilizado por Lopes-Graça para,
mantendo aquela ordenação, realizar um alargamento quantitativo do material. O critério apresentado no Cancioneiro Popular
Português (1981) é mais profícuo, mas sendo da autoria de Giacometti, não faria sentido aplicá-lo a Lopes-Graça até porque este,
na 4.a edição de A Canção Popular Portuguesa (1991), não faz dele uso. Nos guiões de programas de rádio já referidos, o critério
utilizado por Lopes-Graça é mais consistente, mas subordinado ao discurso expositivo inerente ao meio radiofónico. Optamos,
assim, pelo critério editorial da obra composta, procurando colmatar a ausência de uma ordenação regional ou temática através da
adição de índices específicos.
26
Ver nota 22.

11
A constituição da antologia de canções populares portuguesas extraídas da obra musical composta
por Lopes-Graça observou, como critério elementar, descobrir a sua fonte provável 27 . E, encontrada
essa fonte, passou-se a um processo de selecção com vista à obtenção de uma antologia minimamente
equilibrada na sua diversidade, que correspondesse à imagem que fazemos da sua obra musical 28 .
Se, da antologia agora publicada, não é possível retirar ilações conclusivas quanto à natureza do
critério estético de Lopes-Graça, o mesmo ocorrerá em relação às fontes utilizadas, pois não foram
estas esgotadas. Mas é possível, contudo, propor uma hipótese quanto ao trajecto da integração dessas
fontes no manancial de material folclórico que Lopes-Graça foi progressivamente acumulando.
A primeira peça para voz e piano, aquela com que Lopes-Graça abre a primeira de quatro séries
de vinte e quatro canções populares portuguesas 29 , foi a canção No figueiral, figueiredo. A Canção do
Figueiral aparece em várias fontes a que Lopes-Graça poderia plausivelmente ter recorrido. O tema foi
utilizado por Viana da Mota 30 , foi reproduzido no Cancioneiro de César das Neves, ao qual Lopes-
Graça poderia ter acedido na Biblioteca do Conservatório Nacional, assim como, também, no
Cancioneiro Musical Português, de Francisco de Lacerda.
Pelo título adoptado por Lopes-Graça para essa canção, poderíamos sugerir que a fonte foi
Lacerda, mas um pequeno detalhe de transcrição da letra sugere César das Neves como fonte também
provável 31 . Entende-se todavia mais consentâneo com a sua maneira de ser que Lopes-Graça tivesse
percorrido todas essas diversas fontes.
A busca à volta da hipótese de ser Francisco de Lacerda a fonte revela-se profícua. Lopes-Graça
faz também uso de outras peças editadas por Lacerda no seu Cancioneiro Musical Português 32 . E
Lacerda pode muito provavelmente ter sido o ponto de partida para Lopes-Graça na sua abordagem
sistemática do material folclórico, pois quase todos os autores ali representados foram por ele
perscrutados e alguns deles efectivamente utilizados, o que podemos dizer, quase certamente, através
de citação de Lacerda.
Um dos autores mais utilizados por Francisco de Lacerda no seu cancioneiro é Pedro Fernandes
Tomás. Deste último, Lopes-Graça conheceu em detalhe e utilizou material dos seus três livros: Velhas
canções e Romances Populares (1913), Cantares do Povo (1919) e Canções Populares da Beira (2.a
ed., 1923). Deste último trabalho, o mais extenso, Lopes-Graça fez menor uso, talvez devido à
preponderância das canções coreográficas, que considerava musicalmente menos interessantes 33 .
Outro autor, que Lacerda cita apenas duas vezes e que Lopes-Graça aproveita uma, é Felipe
Pedrell, do qual é utilizada uma versão do Romance de Santa Iria estampada no Cancionero Musical
Español 34 . E não se tratará, certamente, de uma manifestação do conhecido iberismo de Lopes-Graça,
mas de se saber que muitos dos registos mais antigos da música portuguesa encontram-se guardados
em arquivos espanhóis 35 .

27
Para isso recorremos à comparação sistemática dos textos e desenhos melódicos dos temas utilizados por Lopes-Graça com os
editados em diversos cancioneiros e documentos similares. Para validar a hipótese, além da necessária coincidência da «solfa», a
data de publicação da fonte teria de ser anterior à da sua utilização.
28
Fica, assim, o leitor alertado para os limites de validade que decorrem dos aspectos subjectivos do processo de escolha desta
proposta antológica, a qual representa, grosso modo, a quarta parte do conjunto dos temas populares utilizados por Lopes-Graça
na sua obra musical.
29
São ao todo 103 canções.
30
Em Cenas Portuguesas, Op. 18, para piano, que datam de 1908.
31
Ou, mesmo a fonte indicada por César das Neves: o livro intitulado Epopeas da Raça Mosarabe, de Teófilo Braga.
32
Nos seis fascículos até agora editados. Não sabemos se, por alguma circunstância, Lopes-Graça conheceria em detalhe, no todo
ou em parte, o restante material inédito que, esperamos, será brevemente editado, conforme informa José Bettencourt da Câmara.
33
Lopes-Graça considerava as recolhas de Pedro Fernandes Tomás «sem dúvida mais prestantes (comparando com as de César
das Neves) mas ainda longe de se alicerçarem em critérios esclarecidos e esclarecedores» (em «O problema da canção popular
portuguesa» [4]).
34
Lopes-Graça faz uso desta versão para uma canção de voz e piano, mas não a utiliza no seu livro A Canção Popular
Portuguesa, preferindo, primeiro uma de António Joyce e depois, em substituição desta, uma de Francisco Serrano.
35
Diz Lopes-Graça a propósito do romanceiro popular português: «No geral, enfeuda-se este ao romance espanhol. Não nos
compete a nós discutir esta teoria, ou terçar armas pela sua pertinência ou impertinência. Mas antolha-se-nos que algo se poderia
adiantar numa questão em que as peças processuais são desigualmente sopesadas, se se considerasse que as toadas dos romances
portugueses não são de modo algum uma réplica das toadas dos romances espanhóis, que, na variedade dos seus giros melódicos,
rítmicos e tonais, elas observam uma individualidade própria (sem que por isso as tenhamos por estanques), que, em suma, as

12
Nas fontes de Lopes-Graça encontramos utilização de dois outros autores que, embora tenham
editado ainda em vida do ilustre compositor e maestro açoriano, não chegaram a Lopes-Graça por essa
via: Francisco Serrano (1921) e Firmino Martins (1928).
É provável que o conhecimento destes dois autores seja mais tardio. Firmino Martins torna-se
referência quando edita Folclore de Vinhais 36 , obra onde, além do seu mérito próprio, são estampadas
algumas das recolhas de Kurt Schindler. O livro de Francisco Serrano, Romances e Canções Populares
da Minha Terra 37 terá sido apresentado a Lopes-Graça, já nos anos 50, por um elemento do Coro da
Academia de Amadores de Música, curioso destas questões 38 . Sobre este livro Lopes-Graça escreve um
artigo em 1982, que integra na quarta edição de A Canção Popular Portuguesa sob o título
«Lembrando Francisco Serrano».
As recolhas de Kurt Schindler são referência obrigatória na obra musical de Lopes-Graça. A
canção de embalar Ó, ó, menino, ó, para voz e piano, ou a peça intitulada Quatro laços da dança de
paulitos, para coro a capella – adiante reproduzidos –, são dois exemplos, entre muitos, do
aproveitamento que Lopes-Graça fez deste autor. Um exemplar de Folk Music and Poetry from Spain
and Portugal, de Kurt Schindler, consta da biblioteca de Lopes-Graça, com evidentes sinais de uso 39 .
Mas, dos contributos de autores estrangeiros, o livro que mais marcou o horizonte de Lopes-
Graça foi, certamente, Cantares do Povo Português, de Rodney Gallop. Editado em 1936, Lopes-Graça
faz dele uma extensa e profunda análise crítica, fixada num artigo de 1937 (artigo que aparece citado
por António Joyce no Relatório do Júri Provincial da Beira Baixa, publicado na Revista Ocidente, em
1939). Sobre este livro, e da leitura que dele fez Lopes-Graça, remetemos o leitor para o texto
intitulado «Folclore musical português» [29], incluído nesta compilação. E passamos assim a outra
fonte.
O texto, acima referido, de António Avelino Joyce é de importância crucial. Trata-se do relatório
que resulta do processo de apuramento do concurso A Aldeia Mais Portuguesa de Portugal, uma das
iniciativas determinantes do processo de folclorização encetado pelo Estado Novo. Vários dos
exemplos musicais fixados por Joyce são utilizados, entre outros compositores, por Cláudio Carneyro,
Joly Braga Santos e, naturalmente, Lopes-Graça 40 .
Já na década de 40, é editado o Cancioneiro Minhoto de Gonçalo Sampaio, sobre o qual Lopes-
Graça escreve uma crítica em 1945 41 e do qual aproveita vários espécimes.
Em 1947, Lopes-Graça desenvolve trabalho de campo na Beira Baixa, dando disso notícia em
artigo intitulado «Apontamentos sobre a canção popular da Beira Baixa». Em 1949, procede a recolhas
na região de Évora, na companhia de Luís de Freitas Branco 42 , e em Pegarinhos, na região de Trás-os-
Montes. Em 1953 realiza uma prospecção folclórica na Beira Baixa, com apoio de um magnetofone. Os
registos efectuados nessa ocasião só agora foram recuperados 43 . Nos anos de 1966, 1969, 1970 e 1971
participa em trabalhos de campo na companhia de Michel Giacometti.

toadas dos romances portugueses são... portuguesas, sem prejuízo da diversidade dos materiais carreados para o caldeamento
daquilo que definimos por “português”.» (em «Sobre as toadas dos romances populares portugueses» [16], texto incluso no
Romanceiro Geral do Povo Português de Alves Redol, editado em 1964).
36
O primeiro volume em 1928 e o segundo em 1938.
37
Editado em 1921, em Braga.
38
Assim nos relata Albino Martins Faria, que assevera ter oferecido a Lopes-Graça um exemplar de Romances e Canções
Populares da Minha Terra. Albino Faria, membro mais antigo do Coro da Academia de Amadores de Música, hoje Coro Lopes-
Graça, conserva uma bela colecção de cancioneiros e obras similares que, sugerido pelas obras cantadas no coro ou pelas
referências dadas pelo seu maestro, ia adquirindo sempre que possível (exemplares que foram, alguns deles, gentilmente cedidos
para a nossa pesquisa).
39
Consultado na biblioteca do Museu da Música Portuguesa-Casa Museu Verdades de Faria, no Monte-Estoril, Cascais, onde se
encontra depositado o espólio de Lopes-Graça.
40
Uma dezena deles vai reproduzida nesta colectânea.
41
«Sobre o Cancioneiro Minhoto de Gonçalo Sampaio» [30].
42
Em Reguengos de Monsaraz.
43
Giacometti dava estes registos sonoros como extraviados (1981: Vértice n.os 444-445). Foram recentemente identificados e
digitalizados no Museu da Música Portuguesa-Casa Museu Verdades de Faria. Alguns destes registos integram o suporte
multimédia que acompanha este livro.

13
Em 1953, o próprio Lopes-Graça publica A Canção Popular Portuguesa, fazendo uso intensivo
dos exemplos musicais ali consignados. Nesse mesmo ano Margot Dias publica o resultado das suas
pesquisas com Jorge Dias A Encomendação das Almas e Rio de Onor.
De Artur Santos, Lopes-Graça utiliza alguns temas que haviam sido integrado nos Álbuns de
Música Portuguesa, publicados por Luís de Freitas Branco em 1944 (e revela ter conhecimento dos
registos posteriores por este efectuados nos Açores e nas Beiras), o mesmo acontecendo com Cláudio
Carneiro, de quem Lopes-Graça chegou a gravar algumas peças, entre elas a canção Ó meu amorzinho
para voz e piano 44 , da qual (ou, antes, tema do qual) fez uma versão para coro a capella.
Na década de 50, Vergílio Pereira desenvolve diversos trabalhos de pesquisa. Os mais
conhecidos, editados em livro, foram os cancioneiros de Cinfães (1950) e de Arouca (1959). Vergílio
Pereira ainda realizou pesquisa na Beira Baixa, já na década de 60. Lopes-Graça conheceu-o
pessoalmente, tendo escrito, em 1951, um artigo sobre o Cancioneiro de Cinfães. As pesquisas
realizadas por Vergílio Pereira nas regiões beirãs, algumas sob os auspícios da Fundação Gulbenkian 45 ,
serviram também de base ao trabalho de campo de Michel Giacometti, quem, com Lopes-Graça,
dedicou expressamente a Vergílio Pereira o volume respectivo da Antologia da Música Regional
Portuguesa 46 .
Michel Giacometti é, certamente, a fonte decisiva para Lopes-Graça. Com o trabalho de
Giacometti, criaram-se as condições para um contacto sonoro mais amplo e sistemático com a fonte da
música tradicional. Como refere Lopes-Graça em «O problema da canção popular portuguesa», a
Antologia da música regional portuguesa
oferece-nos já um panorama largo e vivo da nossa canção popular, do mesmo passo revelando-
nos preciosos e insuspeitados aspectos desta, que vêm ampliar consideravelmente os conceitos
que dela se poderiam formar através dos sós documentos escritos.

Lopes-Graça preconizava ser «a recolha e estudo sistemático da nossa canção popular uma tarefa
que importava realizar com a maior urgência, com vista sobretudo à organização e publicação de um
Cancioneiro Popular Geral que, de uma forma tanto quanto possível completa, compendiasse, por
províncias, regiões, zonas de afinidade ou qualquer outro método que mais conveniente se julgasse, o
rico e pela sua maior parte ignorado tesouro do nosso folclore musical» 47 . Foi essa a tarefa que
Giacometti procurou concretizar ao longo de trinta anos de vida em Portugal, em permanente e estreita
colaboração com Lopes-Graça.
É também em colaboração com Lopes-Graça, que Giacometti edita em 1981 o Cancioneiro
Popular Português, obra que se tornou referência incontornável no conhecimento da música popular
portuguesa. Nesse cancioneiro – onde encontramos muitas das canções originais utilizadas por Lopes-
Graça – são reproduzidos e recuperados para o público diversos autores menos conhecidos. Para alguns
desses, o nosso caminho de acesso foi também mediado pelo cancioneiro de Giacometti 48 .
De Giacometti há ainda a registar uma fonte de informação preciosa: a série televisiva Povo que
Canta, onde «os valores do registo sonoro são alargados à integral captação do fenómeno musical, no
seu contexto, no gesto mesmo que ele representa» 49 .

44
Interpretada por Arminda Corrêa, com Lopes-Graça ao piano, num álbum que integra, além de obras do já referido Cláudio
Carneiro, canções da autoria de Artur Santos, de Francisco de Lacerda e do próprio Lopes-Graça.
45
Que, só agora, passadas três décadas, irão conhecer a luz do dia. As gravações realizadas por Vergílio Pereira na Beira Baixa
integram actualmente o acervo do Museu Nacional de Etnologia.
46
Edição discográfica, em cinco volumes, da música tradicional portuguesa, abrangendo respectivamente, as regiões de Trás-os-
Montes, do Algarve, do Minho, do Alentejo e, finalmente, da Beira Alta, Beira Baixa e Beira Litoral. Dessa colectânea ficou por
editar um último volume com exemplos musicais da Estremadura e Ribatejo.
47
Em «O problema da canção popular portuguesa» [4].
48
As notas relativas a cada entrada são, no cancioneiro de Giacometti, referência enriquecedora e indispensável. Fazendo
explanação detalhada da fonte citada e de outras comparadas, as notas constituem um guia para a integração do material musical
(e também um guia para o acervo que constitui a biblioteca especializada de Giacometti – que consta de cerca de 4000 títulos –
em tempo adquirida pela Câmara Municipal de Cascais e disponibilizada ao público no Museu da Música Portuguesa).
49
Bettencourt da Câmara, José. O Essencial Sobre a Música Tradicional Portuguesa. INCM (Lisboa, 2001).

14
Estão assim referidas as principais fontes do material folclórico utilizadas por Lopes-Graça e que
são aqui também citadas ou, em parte, reproduzidas, tendo como objectivo, antes de mais, focar a
relação dessa fonte com a obra de Lopes-Graça.

A obra musical de raiz tradicional

Encontramos no catálogo 50 da obra musical de Fernando Lopes-Graça mais de três dezenas de


entradas de obras onde a temática folclórica é explícita. Nestas, podemos relacionar mais de cinco
centenas de canções recriadas para diversas instrumentações, desde o piano solo, passando para a voz e
piano, variadas formações camerísticas até à orquestra sinfónica.
A primeira obra conservada 51 no catálogo de Lopes-Graça data de 1927: as Variações sobre um
tema popular português – para piano. Lopes-Graça não indicou a proveniência do tema original. Em
conversa, chegou a aventar a possibilidade de ter o tema proveniência espanhola (por outro lado,
Constança Capdeville indica ser o tema «extraído de uma canção alentejana» 52 ). Nós encontrámos
semelhanças de contorno melódico e ritmo no romance Dom João vai à caça, registado por Pedro
Fernandes Tomás e que Lopes-Graça reproduz no Romanceiro Popular Português, de Alves Redol.
Entre 1927 e 1939 não há a registar passos significativos nesta área. Em 1939, Lopes-Graça inicia
a composição das Canções Populares Portuguesas para Voz e Piano (Versão de Concerto). Estas
canções, organizadas em séries de 24 canções, apresentam-se como o primeiro passo, e passo decisivo,
na assimilação da fonte tradicional.
Aquando de uma apresentação pública das suas canções, com a interpretação a cargo de Olga
Violante e o próprio Lopes-Graça ao piano, Santiago Kastner publica na revista Seara Nova 53 uma
crítica onde, manifestando embora o seu menor agrado face a alguns traços da liguagem musical de
Lopes-Graça (Kastner considera que Lopes-Graça «abusa dos seus já típicos cachos de segundas
[...]» 54 ), reconhece desde logo a qualidade e o alcance da obra afirmando que «a utilidade para a
música portuguesa deste trabalho ainda se há-de estimar em anos vindouros; criou-se uma base em que
pode assentar uma música portuguesa autónoma e de sentido universal» 55 . Destas canções, que tiveram
diversos intérpretes vocais, há um registo discográfico na voz de Arminda Correa, com Lopes-Graça ao
piano.
As canções populares para voz e piano foram para Lopes-Graça também um espaço de pesquisa
(que não deixou de ser explorado com regularidade pelo compositor até aos anos 80) – um laboratório
também para outras abordagens –, tendo algumas dessas canções sido transportadas para a música de
câmara ou para a orquestra. E foi para orquestra a obra seguinte.
Em 1941, Lopes-Graça compõe Trois Danses Portugaises, desta feita baseada em dois temas
instrumentais e uma canção dançada (Fandango, Dança dos pauliteiros, Malhão). Os temas escolhidos
refletem ainda o imagiário dominante da música tradicional praticado por outros compositores como,
por exemplo, Luís de Freitas Branco ou Viana da Mota, mas o tratamento revela já o prisma específico
de Lopes-Graça.
Em 1943 inicia a composição das canções corais a capella 56 . As canções corais constituem não
só um espaço de exploração criadora mas também de intervenção cívica. Tanto nas canções para voz e
piano como nas corais é assinalável a intenção do autor em conservar a fonte. No caso das canções
corais, há uma natural contenção do compositor, atendendo à condição amadora do seu intérprete
50
Cascudo, Teresa. Fernando Lopes-Graça. Catálogo do espólio musical. Colecção Museu da Música Portuguesa 2. Cascais:
1997.
51
Dizemos conservada porque há obras que não se encontram no catálogo e algumas que foram inutilizadas pelo autor.
52
Nas notas para o disco Lopes-Graça – Obras para piano. EMI (Lisboa, 1994).
53
No n.o 760, de 7 de Março de 1942.
54
Idem, ibidem.
55
Idem, ibidem.
56
Há ligeira discrepância entre as datas no Catálogo do Museu da Música Portuguesa e na tábua da obra indicada por Mário
Vieira de Carvalho, que, neste âmbito da obra coral a capella, é mais detalhada.

15
privilegiado – foram elas destinadas ao repertório do Coro da Academia de Amadores de Música. Esse
esforço de contenção perdura ao longo de 22 dos 24 cadernos das canções tradicionais portuguesas.
Pode assinalar-se, contudo, uma maior liberdade (e consequentemente maior dificuldade) nas obras que
integram os últimos dois cadernos, compostas quando o compositor já não desempenhava o cargo de
maestro do coro.
O repertório coral é de uma plena diversidade e abrangência, tanto regional como temática. Além
dos 24 cadernos assinalados, há mais dois de referência temática: as primeira e segunda Cantatas de
Natal.
A primeira dessas cantatas, composta, na sua versão inicial, em 1945, destinava-se a ser
interpretada pelo Coro Clássico da Academia de Amadores de Música e a segunda já foi dedicada ao
Coro da Academia de Amadores de Música, que se designava diferenciadamente do primeiro com a
aposição da indicação «(secção de folclore)». Tratava-se, na verdade, do Coro do Grupo Dramático
Lisbonense, criado em 1945 e que tinha como repertório programático as Marchas, Danças e Canções,
também conhecidas por canções heróicas. A proibição, pela censura política, dessas canções (e outras
contingências), levaram o coro a procurar refúgio na Academia, o que veio a acontecer, passando a
fazer parte dessa instituição – onde se mantém até ao presente.
Ainda na década de 40, mais precisamente em 1945, Lopes-Graça compõe quatro Canções
Populares Portuguesas para voz solista e grupo instrumental. Tratava-se de uma primeira experiência
de orquestração de temas já trabalhados para voz e piano. A obra foi entretanto inutilizada pelo autor.
Em 1948, Lopes-Graça enceta nova experiência de orquestração de temas inicialmente compostos
para voz e piano. Desta feita, as Nove Canções Populares Portuguesas chegaram ao público na sua
versão orquestral, em 1953, pela Orquestra Sinfónica da Radiodifusão Francesa.
Em 1949 surgem as Canções e Rodas Populares Infantis, para coro a capella – dedicada aos
«canaritos» de Francine Benoît –, e os Sete Fragmentos de Velhos Romances Populares Portugueses,
novamente em orquestração de canções originalmente para voz e piano, havendo registo da sua
iterpretação por Dulce Cabrita e um ensamble instrumental sob a direcção de Lopes-Graça.
Em 1950 surge a Suíte Rústica n.o 1, para orquestra sinfónica. Composta sobre seis melodias
tradicionais portuguesas, foi estreada em 1951 e posteriormente gravada pela Orquestra Sinfónica
Nacional Húngara. No mesmo ano surgem as Glosas sobre Canções Tradicionais Portuguesas para
Piano. No texto já citado de Constança Capdeville, assinala esta compositora: Glosas «reflecte a rica
personalidade do seu autor e faz com que, em síntese, estas surjam como um autêntico hino à vida, com
tudo o que ela possa conter de belo ou de sereno, de doloroso ou de amargo» 57 .
Em 1951, Lopes-Graça compõe para orquestra Cinco Velhos Romances Portugueses e, em 1953,
Três Velhos Fandangos Portugueses para piano. Mas a obra mais referenciada surgirá acabada no ano
seguinte: trata-se das Viagens na Minha Terra – Dezanove peças para piano sobre melodias
tradicionais portuguesas, dedicada ao pianista brasileiro Arnaldo Estrela que, segundo José Eduardo
Martins 58 , «comungava de ideais sócio-políticos com o compositor português». E continuando a citar
José Eduardo Martins,
Viagens na Minha Terra, servem como homenagem ao grande escritor [Almeida Garrett] e
pretexto para o compositor penetrar Portugal em uma das suas essencialidades [...]. Sente a
grandeza de Portugal, como escreve [Lopes-Graça] em Fevereiro de 1959: “[...] estímulos para
novas partidas, para novas viagens neste continente ainda tão mal conhecido que é a música
portuguesa”» 59 .

Ainda em 1953, são compostas as Três Canções Populares Portuguesas para violoncelo e piano,
uma das várias explorações instrumentais do repertório inicial para voz e piano, enquanto em 1954,

57
Ver nota 52.
58
Pianista brasileiro que, recentemente, gravou parte da obra de Lopes-Graça para piano.
59
Martins, José Eduardo. Nas notas do CD Viagens na Minha Terra. Portugaler (Leiria, 2003)

16
compõe para voz e piano Sete Canções Castellano-Portuguesas de Rio de Onor, um ano após a
publicação do livro Rio de Onor, Comunitarismo Agro-Pastoril, de Jorge Dias 60 .
Nos anos de 1955 e 1956 surgem, a par de novas canções corais, Dois Embalos para piano, obra
que veio a conhecer uma edição em 1960, em separata da Gazeta Musical e de Todas as Artes.
Enquanto em 1956 surge o primeiro caderno de Melodias Rústicas Portuguesas, para piano, que
conheceu registo discográfico pelo próprio autor, logo seguido do segundo caderno, também para
piano, este inédito. O terceiro caderno de Melodias Rústicas Portuguesas surge apenas em 1979, desta
feita para piano a quatro mãos (estreado por Lopes-Graça e Olga Prats), e o quarto caderno surge no
mesmo ano, mas instrumentado para flauta e guitarra.
Retrocedendo a 1965, nesse ano é composta a suíte rústica n.o 2, para quarteto de arcos, sendo a
suíte rústica n.o 3 datada de 1979 e destinada a banda filarmónica.
De permeio, em 1969, Lopes-Graça realiza a orquestração de Viagens na Minha Terra, tendo
como dedicatória: No primeiro centenário da morte de Almeida Garrett.
Lopes-Graça conclui, ou organiza, nos anos os seguintes e até 1988, os cadernos 17 a 24 das
canções regionais portuguesas para coro a capella, encerrando assim a sua gesta de música de raiz
tradicional.
Na obra musical, Lopes-Graça conservou-se coerente com as suas palavras:
Há que restituir ao povo a sua música. Há que restituir-lha por dever e por necessidade: por
dever humano e por necessidade estética. Por dever humano, porque a música é um bem comum,
uma riqueza que por todos deve ser partilhada, uma eucaristia que todos têm o direito de
comungar; e por necessidade estética, porque, desde sempre, e sobretudo nas épocas de crise, a
música se foi retemperar nas fontes vivas da arte popular do perigo que corria de se esterilizar
no afinamento extremo dos meios técnicos e especulativismo das questões teóricas, com prejuízo
da verdade, da força e da humanidade da sua mensagem. 61

Alexandre Branco Weffort


Queluz, Janeiro de 2006

60
Obra fundamental da antropologia portuguesa, que contempla um cancioneiro da autoria de Margot Dias.
61
Lopes-Graça, F. «Sobre o conceito de “música portuguesa”». Em Seara Nova, n.os 740-742 (Outubro-Novembro de 1941).

17

Você também pode gostar