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Primeiro estágio da leitura analítica: regras para descobrir o conteúdo

1. Classifique o livro de acordo com o tipo e o assunto.


Filosofia. Pedagogia. Crítica à cultura.
2. Diga sobre o que é o livro como um todo, com a máxima brevidade
possível.
O livro de Nietzsche se pretende uma crítica à sociedade alemã do
século XIX, cuja cultura se degenerou em um aparato do mercado e
do estado para a obtenção de fins específicos.
3. Enumere as partes principais em sua devida ordem e relação, e
delineie essas partes assim como delineou o todo.
CAPÍTULO I – DA NA NECESSIDADE DE SE AUTOLIBERTAR
Dos cidadãos contemporâneos:
13.1 Perguntou-se certa vez a um viajante: qual característica ele sempre
encontrou nos homens. Ele respondeu: certa tendência à preguiça. Todo ser
humano sabe muito bem que só estará sobre a terra uma única vez. Mas o
esconde de si como se escondesse uma má consciência. Isso por medo do
próximo, que exige a convenção e com ela se protege. O que é isso que o impede
de ser feliz consigo próprio. Para a alguns: o pudor; para a maioria: a
comodidade, a indolência ou a tendência à preguiça. Os homens são ainda mais
preguiçosos que medrosos. 14. O que eles mais temem são os incômodos.
Quando o grande pensador despreza os homens, ele despreza sua preguiça.
Que ele siga então sua consciência que exorta “seja você mesmo”. Comentado [BHdRX1]: Dos cidadãos conteporâneos

Do incômodo dos deslocados:


15. Quão desoladora e sem sentido pode ser a vida sem essa libertação!
Quão esperançosos podem ser todos aqueles que não se sentem cidadãos
deste tempo; pois, caso o fossem, estariam contribuindo para matar seu tempo
e perecer com ele – quando desejam despertar seu tempo para a vida. Comentado [BHdRX2]: Do incômodo dos deslocados

Devemos, diante de nós próprios, responsabilizar-nos por nossa existência;


devemos fazer-nos timoneiros dessa existência e não permitir que ela seja
encarada como mera causalidade irrefletida.
Dos impedimentos:
16. Eu tentarei alcançar a liberdade, diz a alma jovem; ela seria impedida
pelo acaso de duas nações e odiarem. Tudo isso não é você mesma, ela diz a
si. Há incontáveis trilhas e pontes e semideuses que podem carregar através do
rio; mas apenas ao preço de si mesmo; você se perderia. Há apenas um
caminho. Não pergunte, trilhe-o. Comentado [BHdRX3]: Dos impedimentos

Do que fazer. Alternativa 1:


Como reencontramos a nós mesmos? Como o homem pode conhecer-
se? 17. Que a alma jovem olhe retrospectivamente para a vida e pergunte: o que
você amou verdadeiramente até agora, o que elevou sua alma, o que a dominou
e alegrou? Coloque diante de si a série desses objetos venerados e talvez eles
lhe revelem uma lei: a lei fundamental de seu verdadeiro si. A sua essência não
encontra escondida em você, mas acima de você. Seus educadores não podem
ser mais que seus libertadores. Comentado [BHdRX4]: Do que fazer. Alternativa 1.

De como encontrar a si. Através dos educadores-libertadores. Alternativa


2:
18. Há outros meios para nos encontrarmos após abandonar o torpor no
qual nos encontramos. Não conheço outro meio melhor do que evocar os
educadores e formadores. Gostaria de honrar a memória de um grande
professor: Schopenhauer. Comentado [BHdRX5]: De como encontrar a si.
Através dos educadores-libertadores. Alternativa 2.

Capítulo II – Do encontro com Schopenhauer.


De como encontrar um educador:
19 Caso eu encontrasse um filósofo como educador a quem se pudesse
obedecer sem maiores considerações, porque se confiaria nele mais que assim
mesmo, quais seriam os princípios segundo os quais ele me ensinaria? Refletiria
acerca de sua opinião sobre duas máximas acerca do nosso tempo: a) uma que
o educador reconheça o ponto forte do seu discípulo e oriente suas forças a isso;
b) a outra pede que o educador aproveite todas as forças disponíveis e as cultive. Comentado [BHdRX6]: De como encontrar um
educador
20; A tarefa do educador seria moldar o homem inteiro como um sistema solar e
planetário e movente.
Da condição contemporâena
Descobri o quão pobre somos nós em relação aos gregos e romanos. 21.
Nada mostra mais claramente o arrogante contentamento de nossos
contemporâneos consigo próprios do que a pobreza das exigências que fazem
a educadores. Mesmo o muito admirado modo como os eruditos alemães se
lançam sobre sua ciência mostra que eles pensam mais na ciência do que na
humanidade, que eles são treinados a se sacrificar por ela como uma manada
estourada, para que em seguida novas gerações sejam cultivadas para tal
sacrifício. 22. Onde estão para todos nós os modelos éticos e os grandes vultos Comentado [BHdRX7]: Da condição contemporânea

entre nossos contemporâneos, a encarnação visível de toda a moral criadora de


nosso tempo? Não há nada mais assim: alimentamo-nos do capital herdado dos
costumes. As escolas simplesmente ignoram a educação ética e se contentam
com a formalidade. 23. Nunca se precisou tanto de educadores éticos. Os
tempos em que os médicos são mais necessários, tempos de grandes
epidemias, são aqueles em que eles se encontram em maior perigo. Onde estão
os médicos da humanidade moderna?
Do educador da extemporaneidade:
23. Seria realmente divagar em desejos se eu imaginasse poder encontrar
um filósofo como educador que pudesse nos elevar acima da limitação da própria
época e nos ensinasse a ser extemporâneos. Comentado [BHdRX8]: Do educador da
extemporaneidade
Da particularidade de Schopenhauer:
24. Em meio a tais urgências que encontrei Schopenhauer, há 9 anos.
Depositei nele a minha confiança. Jamais encontrei nele um paradoxo –
afirmações que não inspiram confiança, porque o próprio autor não as produziu
com confiança legitima, porque com elas ele apenas quer brilhar. Schopenhauer
nunca quer aparentar. 26. Tampouco nos lembraremos ao ouvir Schopenhauer, Comentado [BHdRX9]: Da importância de
Schopenhauer
do erudito débil, que por isso se apresenta de modo desajeitado, ao passo que
o espírito severo de Schopenhauer não nos faz sentir falta da graça aristocrática
e da elegância dos bons escritores franceses. Os modos de expressão de
Schopenhauer me fazem lembrar os de Goethe, pois ele sabe dizer de forma
simples o que é profundo, sem retórica o que é comovente e sem pedantismo o
que é científico. Não se trata de elogiar Schopenhauer, mas de caracterizá-lo.26.
Também como escritor ele é honesto. Há apenas outro escritor semelhante a
Schopenhauer: Montaigne. Os dois compartilham ainda outra característica:
uma alegria verdadeira e contagiante. O verdadeiro pensador sempre alegra
sem gestos irritadiços. A alegria de Schopenhauer não é a alegria dos escritores
medíocres. Esses bobos-alegres não veem nada do sofrimento e dos monstros
que eles simulam sua alegria desperta desgosto porque ilude. 28. Assim, ao
lembrar de Schopenhauer, percebo uma impressão composta de três elementos:
a) um causado por sua honestidade; b) por sua alegria; e c) por sua constância.
Suspeitei ter encontrado nele aquele educador e filósofo que tanto procurara.
Capítulo III – O filósofo como exemplo
A vida de Schopenhauer como modelo
30. A consideração que tenho por um filósofo aumenta na proporção exta
em que ele é capaz de se oferecer como exemplo. Esse exemplo deve ser visível
não meramente em livros, mas em sua própria vida. Mais: pela expressão do
rosto, postura, vestimenta, alimentação e modos do que pela fala ou escrita. –
Kant se manteve vinculado á universidade, submeteu-se a governos, passou a
impressão que possuía uma fé religiosa, aturou colega e estudantes; nada mais
natural que se exemplo tenha produzido basicamente professores universitários
e filosofia acadêmica – Schopenhauer fez pouca concessões à casta dos
eruditos, buscou independência em relação ao Estado e sociedade – esse é seu
exemplo e seu modelo. A “verdade” da qual tanto falam os professores parece Comentado [BHdRX10]: A vida de Schopenhauer
como modelo
ser algo dócil, protegida pelos poderes estabelecidos, de modo que ninguém
deveria, por conta dela, criar quaisquer embaraços; cada um seria, então,
apenas “ciência pura”. A filosofia na Alemanha deve cada vez mais desaprender
a ser “ciência pura”: esse é o exemplo de Schopenhauer como homem.
Dos inconvenientes de ser um espírito livre na sociedade alemã
Assim, as única personalidades que resistiram à cultura alemã foram
pessoas do nível de Beethoven, Goethe, Schopenhauer e Wagner. Neles deixa-
se ver o efeito das mais desgastantes lutas: sua respiração se torna mais pesada
e seu tom se torna mais facilmente violento. Também o pobre Schopenhauer
carregava no coração uma culpa oculta por estimar mais a sua filosofia que seus
contemporâneos. Sua tristeza se devia ao fato de saber que para proteger sua
filosofia, ele deveria defende-la da desconsideração de seus contemporâneos,
na medida em que o silencio – isto é, o desconhecimento da obra de
Schopenhauer – é uma censura inquisitorial, como afirmava Goethe. Outro
inconveniente é a solidão! Onde quer que tenha havido sociedades, governos,
religiões, opiniões públicas, ou a tirania, aí o filósofo solitário foi odiado; pois a
filosofia abre ao homem um asilo em que nenhuma tirania pode penetrar: a
caverna da interioridade. Ali que se escondem os solitários: mas ali também
espreita o grande perigo aos solitários! Esses homens que deram vasão a suas
interioridade também precisam viver exteriormente, tornar-se visíveis. Os Freien
im Geiste – “livres no espírito” – odeiam mais que a morte o fato de que a
aparência é uma necessidade. O mais terrível dos antídotos contra homens
extraordinários é empurrá-los tão profundamente para dentro de si mesmos a
ponto de que seu retorno se torne, a cada vez, uma erupção vulcânica. Mas
sempre volta a surgir um semideus que suporta viver sob condições tão terríveis.
Dos perigos de uma tal existência Comentado [BHdRX11]: Dos inconvenientes de ser
um espírito livre na sociedade alemã
34. Esse foi o primeiro perigo à sobre do qual Schopenhauer vicejou: o
isolamento. O segundo se chama desespero em relação á verdade. Esse perigo Comentado [BHdRX12]: Dos perigos de uma tal
existência
é originário dos que tomam seu caminho a partir de Kant. 37. O que
Schopenhauer pode ser para nós depois de Kant: o guia que conduz para fora
da caverna do descontentamento cético. Esta é sua grandeza: ter defrontado o
quadro da vida como um todo. 37. O terceiro perigo é que todo homem costuma
encontrar em si certa limitação, o que lhe enche de anseio e melancolia e assim
ele anseia para a santidade. 38. O anseio dos homens por renascer como
santos. Onde encontramos talento sem esse anseio ele nos causa repugnância,
pois tais homens deixam de promover e entravam uma cultura em formação. 38.
A natureza de Schopenhauer possui uma duplicidade perigosa. Poucos
pensadores sentiram na mesma proporção e com tamanha certeza o trabalho do
gênio em si; e seu gênio lhe prometeu o mais elevado. Ele sabia que uma das
metades de seu ser era satisfeita e sem desejos; em sua outra metade habitava
um impetuoso anseio do gênio pela santidade, pois ele viu mais longe e
claramente que outros homens. Quão inquebrantável devia ser a natureza de
Schopenhauer para que pudesse não ser destruída por esse anseio! 39.
Contudo, Schopenhauer Não saiu dessa luta dessa luta sem cicatrizes. Contudo,
ele ainda pode ser um modelo independente de tais máculas. Aliás, aquilo que
na essência de Schopenhauer era demasiado humano nos conduz á sua
proximidade, pois nós o vemos como um sofredor. Aqueles três perigos que
ameaçavam Schopenhauer ameaçam todos nós.
Dos perigos constitutivos – partes da natureza humana
a) Para o homem extraordinário sobre o qual pesa esse grilhão, a vida
perde quase tudo o que se esperava dela na juventude: alegria, segurança,
leveza, honra; A fatalidade do isolamento é o presente que seus próximo lhe dão.
Assim, é preciso que ele cuide de não se deixar subjugar, que não se torne
opresso e melancólico. b) O segundo perigo que ameaçava Schopenhauer não Comentado [BHdRX13]: Dos perigos constitutivos –
partes da natureza humana
é raro.: deixando descuidadamente solta as rédeas de seu talento, ele se aniquile
como ser humano e leve uma vida fantasmagórica da ciência pura. C) O terceiro
perigo é o esclerosamento nas coisas éticas ou intelectuais: o homem rompe o
laço que o atava a seu ideal; ele se torna, do ponto de vista da cultural, fraco e
inútil.
Dos perigos temporâneos
Além desses perigos, aos quais Schopenhauer estaria exposto vivendo
em qualquer século, há ainda os perigos oriundos de seu tempo: os perigos
temporâneos. Desse modo, o filósofo deve avaliar seu tempo a partir de sua
diferença em relação a outros. Para os modernos, o sentimento do pensador se
emaranha no dilema entre o desejo de liberdade, beleza e grandeza da vida e
por outro lado o impulso para a verdade. Os filósofos modernos estão entre os
mais poderosos promotores da vida e da vontade de viver. Esse anseio é
também o seu perigo: dentro deles estão em luta o reformador da vida e o
filósofo, ou seja: o juiz da vida. Como Schopenhauer escapou desse perigo
Como filho legitimo de seu tempo, ele sofre todas as enfermidades de sua época
de modo mais forte e sensível que todos os homens menores, então a luta desse
grande homem contra seu tempo é apenas uma luta sem sentido e destruidora
contra si. Em seu tempo, ele luta contra aquilo que o impede de ser grande e
isso quer dizer apenas: ser livre e completamente ele próprio. Sua hostilidade se
direciona contra algo que, embora resida nele, não é ele próprio. O suposto filho
do tempo se mostra finalmente um mero bastardo. 43.42 Assim, o anseio por
uma natureza mais forte, por uma humanidade mais saudável e simples era,
para ele, um anseio por si mesmo. Todos os que conhecem e avaliam a
existência apenas segundo essa horrível figura comete uma injustiça contra ela.
43. O magnifico homem criador deve responder á pergunta “então você diz sim
do fundo do coração a essa existência?” [Pode-se depreender daí que a
possiblidade de convivência entre um impulso reformador da vida e um juízo
pesado sobre a vida estaria realizada justamente na figura de Empédocles, no
que Schopenhauer o seguiria] Comentado [BHdRX14]: Dos perigos temporâneos

CAPÍTULO IV – DE COMO SE EDUCAR, COM SCHOPENHAUER,


CONTRA O PRÓPRIO TEMPO
É importante se preocupar com o próprio tempo?
45. Objetivo: esclarecer como nós podemos nos educar, por intermédio
de Schopenhauer, contra o nosso tempo. Seria possível que um século futuro
considerasse a nossa época como um saeculum obscurum; pois, com seus
produtos, teríamos aquecido os fornos da forma mais longa e fervorosa. Caso
faça algum sentido ocupar-se com o próprio tempo, então é uma felicidade
ocupar-se dele do modo mais profundo possível, de forma que não reste a
ninguém qualquer dúvida a respeito dele: e Schopenhauer propicia exatamente
isso. Comentado [BHdRX15]: É importante se preocupar
com o opróprio tempo?
De como a política como salvação é uma ideia inaceitável
46. O que deve significar o filósofo como educar em nosso tempo? É uma
vergonha que essa adulação tão repugnante, ao estado, possa ser proclamada
por homens que sejam pensantes. 48 Toda filosofia que crê que o problema da
existência é afastado ou resolvido por um evento político não passa de uma
filosofia de salão. Vivenciamos as consequências daquela doutrina pregada
recentemente em todos os púlpitos, que afirma que a meta suprema da
humanidade é o Estado, e que para um homem não há dever mais elevado que
servir o estado [hegelianismo]. Por isso eu me ocupo aqui de um tipo de homem
cuja teleologia aponta para além do bem de um estado, ocupo-me dos filósofos. Comentado [BHdRX16]: De como a política como
salvação é uma ideia inceitável.
De como o filósofo vê a cultura em nosso tempo? De modo diferente do que
aqueles professores de filosofia satisfeitos com seu Estado. As classes eruditas
já não são mais faróis em meio a toda essa inquietude; elas próprias se tornam
a cada dia mais inquietas. Tudo serve à barbárie iminente. O homem culto
degenera em maior inimigo da cultura. Paira sobre nós um dia invernal e vivemos
em cordilheiras elevadas. Curta é toda alegria. Agora há ali um rumor de alegria
irrefletida! O estado deseja que os homens venham a praticar em relação a ele
a mesma idolatria que praticavam em relação á igreja. Diante de tais perigos de
nossa época, quem irá prestar os servidões de guardião e paladino da
humanidade? Quem erigirá a imagem do homem quando todos sentem em si
apenas o verme egoísta e submisso?
Das três imagens do homem produzidos pela época de Nietzsche
51. Há três imagens do homem que a nossa época moderna produziu: a) Comentado [BHdRX17]: Das três imagens do homem
produzidos pela época de Nietzsche
homem de Rousseau: tem a chama mais cadente e o efeito mais popular; b) o
homem de Goethe: é feita apenas para os poucos que são de natureza
contemplativas e são incompreendidos pela multidão; e o homem de
Schopenhauer: exigem os homens mais ativos, pois esmorece os
contemplativos e desencoraja a multidão. Da primeira deriva uma força que
impulsiona revoluções impetuosas [a exemplo da Revolução Francesa de 1789].
Quando ela brada “apenas a natureza é boa, apenas o homem natural é
humano” ela despreza a si e anseia por si para além de si próprio: uma
disposição na qual a alma está pronta para resoluções terríveis, mas que
também convoca o que há de mais nobre e raro. Já o Homem de Goethe não é
um poder ameaçador, pois ele odeia toda a violência, diferentemente do homem
de Rousseau. O homem de Goethe é contemplativo e uma força conservadora
e conciliatória – mas sob o risco de degenerar em um filisteu. O homem de
Schopenhauer no encoraja a nos deixarmos tomar pela maldade para que as
coisas melhorem. O homem schopenhariano assume para si o sofrimento
voluntário da veracidade, o qual serve para que ele extinga sua vontade própria.
Há ainda um modo de negar e de destruir que é, antes, o efuir daquele poderoso
anseio por sacralização e salvação, cujo primeiro professor filosófico entre nós,
homens dessacralizados e verdadeiramente secularizados, foi Schopenhauer.
Por meio de sua coragem, ele certamente aniquila sua felicidade terrena, pois
oferece a si próprio como o primeiro sacrifício á verdade, impregnado da
consciência de quais sofrimentos devem brotar da sua veracidade. Por que ele
deseja tão intensamente o contrário, isto é, sentir a vida, ou seja, sofrer a vida?
Porque ele nota que o querem enganar no que diz respeito a ele próprio e que
há certo tipo de acordo para furtá-lo de sua própria caverna. Então ele se ergue
e conclui: eu quero permanecer meu! Agora ele precisa mergulhar nas
profundidades da existência com uma série de perguntas pouco usuais na ponta
da língua: por que vivo? Que lição devo tirar da vida? Como me tornei assim
como sou e por que motivo sofro por ser assim? Ele se tortura e vê que ninguém
se tortura assim. À pergunta “para que você vive?” eles responderiam
prontamente: “para se tornar um bom cidadão, ou erudito, ou estadista”, e, no
entanto, eles não poderiam se tornar outra coisa. Esse terno devir é um
enganador teatro de fantoches, diante do qual o homem se esquece de si
próprio. Agora ele começa a sondar quão profundamente imbricado ele está com
o devir – uma gigantesca tarefa se eleva diante de sua alma: destruir tudo o que
devém, trazer à luz tudo o que é falso nas coisas. Ele quer conhecer tudo. O
primeiro sacrifício que oferece para si é ele próprio. O homem heroico despreza
seu bem ou mal-estar, suas virtudes e vícios e despreza medir as coisas
segundo à medida que lhe é própria. Sua força reside em seu esquecimento de
si e caso se lembre de si, é para medir a distância entre si e sua elevada metal.
Os pensadores antigos procuram a felicidade e a verdade, e jamais alguém
encontrará o que precisa procurar, assim afirma o princípio da natureza. Para
aquele que procura inverdade em tudo e se associa voluntariamente à
infelicidade talvez esteja reservada outra maravilha da desilusão: aproxima-se
dele algo inefável, do qual felicidade e verdade são apenas imitações idólatras.
CAPÍTULO V – DE COMO AQUELE IDEAL PODE EDUCAR
Dos deveres
61. Resta ainda o mais difícil: provar que esse ideal educa. Deve-se
perguntar de forma resoluta: é possível chegar tão próximo àquele ideal
inacreditavelmente elevado a ponto de que nos eduque à medida que nos atrai
para cima? 62. Para ele é sempre uma infelicidade quando lhe é dada a ocasião
de buscar algo com que não pode se ligar por meio da sua própria atividade
regular. Contra aquele homem schopenaheirano é possível objetar o seguinte:
sua dignidade e elevação apenas permitem que saiamos de nós mesmos,
subtraindo-nos com isso de todas as comunidades dos homens ativos; a
coerência dos deveres e o fluxo da vida ficam para trás. Os perigos são sempre
grandes quando as coisas ficam difíceis de mais para o homem e quando ele
não consegue cumprir nenhum dever. A partir daquela imagem ideal é possível
atar a você e a mim uma corrente de deveres cumpríveis e que alguns de nós já
sentem a pressão dessa corrente. Comentado [BHdRX18]: Dos deveres

Da existência como animal


Em todas épocas os homens os homens mais profundos compadeceram-
se dos animais justamente porque eles sofrem com a vida e ainda assim não
possuem a força para voltar contra si mesmos o espinho do sofrimento. Ver o
sofrimento desprovido de sentido revolta profundamente. É um castigo deveras
pesado viver assim como um animal, submetido à fome e ao desejo sem
qualquer consciência acerca desse modo de viver; não se pode conceber
nenhum destino mais grave do que o do animal, de rapina, que é caçado através
dos desertos pelo mais pungente suplício. Longe de saber que, e porque se é
castigado desse modo, mas cobiçando esse castigo com a estupidez de um
terrível desejo como se ele fosse uma felicidade – isso significa ser animal. Onde
cessa o animal e onde começa o homem! Aquele que ânsia pela vida como quem
anseia por uma felicidade ainda não elevou seu olhar acima do horizonte dos
animais, apena deseja com mais consciência aquilo que o animal busca com um
ímpeto cego. Tudo é prolongamento e animalidade como se o homem
deliberadamente regredisse devesse ser enganado a respeito de sua situação
metafísica. Comentado [BHdRX19]: Da existência como animal

64. Nós todos damos conta de que as mais elaboradas formas assumidas
por nossa vida servem apenas para que fujamos da tarefa que nos é própria
(gostamos de esconder nossa cabeça em algum lugar), de que apressadamente
despachamos nosso coração para o Estado, o dinheiro, sociabilidade ou para a
ciência apenas para não mais o possuir, de que fruímos até do mais pesado dia
de trabalho de forma ardorosa e inconsciente, como se isso fosse necessário
para viver: porque nos parece mais necessário não tomar consciência. Geral é
a necessidade de palavras que soem de forma nova, de modo que a vida ganhe
um ar ruidoso e festivo. Todos conhecem aquele estranho estado em que, depois
que subitamente nos assomam memórias desagradáveis, esforçamo-nos para
expulsá-las da mente por meio de gestos e sons brusco: os gestos e sons da
vida comum permitem adivinhar que nós todos nos encontramos sempre em tal
estado com medo da intromissão das memórias e da introspecção. O que é isso
que tão frequentemente nos incomoda, que inseto é esse que não nos deixa
dormir. Cada instante da vida quer nos dizer algo, mas não queremos ouvir essas
vozes espirituais. Tememos quando estamos sozinhos e em silencia, que algo
nos seja sussurrado ao ouvido e então odiamos o silencia e nos anestesiamos
por meio da sociabilidade. Simultaneamente percebemos como somos fracos
para suportar por muito tempo aqueles momentos em que nos voltamos do modo
mais profundo para dentro. Mesmo esse emergir e despertar por um instante
fugaz não o fazemos com nossas próprias forças, pois precisamos ser
levantados – quem são esses que nos levantam? Esses são os verdadeiros
homens, os não-mais-animais, os filósofos, artistas e santos. Com seu
aparecimento dá seu único salto de alegria, pois pela primeira vez ela sente ter
alcançado sua meta, justamente ali onde compreende que precisa desaprender
a ter metas e que apostou alto demais no jogo da vida.
Da produção do filósofo pela cultura.
67. Que destino pressentir o suficiente da resolução e ventura próprias ao
filósofo, apenas para sentir toda a irresolução e desventura do não-filósofo.
Saber-se um fruto que jamais poderá amadurecer uma vez que sua árvore está
sob sombra, e ver, um palmo à frente, o raio de sol do qual se carece! Alcanço
aqui o ponto em que posso responder à questão de se é possível ligar-se ao
grande ideal do homem schopenhariano por meio de uma atividade. Aqueles
novos deveres não são os deveres de um homem isolado. Somos introduzidos
em uma poderosa comunidade que se mantém unida por meio de um
pensamento fundamental: o pensamento fundamental da cultura. Promover a
produção do filósofo, do artista e do santo dentro e fora de nós e, desse modo,
trabalhar para o arremate da natureza. Em nosso estado ordinário não podemos Comentado [BHdRX20]: Da produção do filósofo pela
cultura
contribuir para a produção do homem redentor, por isso odiamo-nos quando
nesse estado um ódio que é a raiz daquele pessimismo que Schopenhauer
precisou ensinar à nossa época. Somente quando formos admitidos naquela
sublime ordem dos filósofos, dos artistas e dos santos, será fixada também uma
nova meta para nosso amor e nosso ódio. Sabemos o que é a cultura. Para ser
útil ao homem schopenhariano, ela quer que preparemos e promovamos
continuamente produção desse homem – em suma, que combatamos o que nos
prejudica na realização suprema de nossa existência ao impedir de nos
tornarmos tais homens schopenhauerianos.
CAPÍTULO VI – DA CRIAÇÃO DE UM HOMEM SUPERIOR
O estado destemido do autoconhecimento
71. A meta da evolução de uma espécie reside no ponto em que ela
alcançou seu limite, o ponto de transição para uma espécie mais elevada, e não
na massa dos exemplares e seu bem-estar. A humanidade deve buscar e
produzir condições favoráveis sob as quais esses grandes homens redentores
podem surgir. Com essa resolução ele se coloca no círculo da cultura. Ao
devotar-se a ela, cada um profere “eu vejo acima de mim algo mais elevado e
mais humano do que eu mesmo”. Conduzir alguém a esse estado de destemido
autoconhecimento é difícil, pois somente no amor a alma ganha não apenas um
olhar cheio de desprezo. Comentado [BHdRX21]: O estado destemido de
autoconhecimento
A meta da cultura: a produção do verdadeiro homem e gênio
74. Apenas aquele que associou seu coração a algum grande homem
recebe o primeiro sacramento da cultura; nós ansiamos desmedidamente tornar-
nos inteiros. O segundo sacramente é a transição dos acontecimentos interiores
para o julgamento dos acontecimentos exteriores, o olhar deve se voltar para
fora de modo a reencontrar no grande mundo turbulento aquele desejo por
cultura que ele conhece a partir daquelas primeiras experiências interiores. A
partir desse degrau ele deve subir para outro ainda mais alto, a cultura exige dele
não apenas aquela vivência interior, mas exige ação, a luta pela cultura e a
hostilidade contra influências, costumes, leis, instituições nos quais ele não
reconhece sua meta: a produção do gênio. Estamos realmente convencidos de Comentado [BHdRX22]: A meta da cultura: a
produção do verdadeiro homem e gênio
que a meta da cultura é promover o surgimento do verdadeiro homem.
Das instituições que promovem a cultura com interesse
75. Há um tipo de cultura que foi abusada e tornada subserviente.
Justamente os poderes que atualmente promovem a cultura de modo mais ativo
tem segundas intenções e não se portam e m relação a ela com disposições
puras e desinteressadas. Entre eles, em primeiro lugar, há a) o egoísmo dos Comentado [BHdRX23]: Das instituições que
promovem a cultura com interesse
acumuladores, o qual necessita da cultura para a formação [Bildung] das
pessoas do seu tempo. Mas com a qual também se dominam da melhor maneira
todos os meios e caminhos para ganhar dinheiro do modo mais fácil possível.
Formar o máximo possível de homens correntes! Eis o seu lema. Odeia-se toda
formação que torna solitário, que propõe metas que vão além do dinheiro e do
acúmulo, que consome muito tempo. Em segundo lugar existe o b) egoísmo do
Estado, o qual ambiciona igualmente o máximo possível de difusão da cultura e
tem nas mãos as ferramentas mais efetivas para satisfazer seus desejos. A
difusão da formação entre seus cidadãos só beneficia a ele própria na rivalidade
com outros estados. Basta que se chame à memória o que progressivamente foi
feito do cristianismo sob o egoísmo do estado. Em terceiro lugar, a cultura é
promovida por todos aqueles que são conscientes de um c) conteúdo feio ou
tedioso e querem iludir-se a seu respeito. 78. Parece-me às vezes que os
homens modernos se entediam uns com os outros, e que, julgam necessário se
tornar interessantes com o auxílio de todas as artes. Assim eles se preparam
para satisfazer todos os gostos; e todos devem ser atendidos, quer lhes apeteça
o que cheira bem ou mal, o sublime ou a grosseria rústica. Ser culto na sociedade
alemã quer dizer: não permitir que se note quão miserável e ruim se é, quão
rapinamente no ímpeto, quão insaciável no acumular, quão egoísta e
despudorado no gozar. Eu sinto que essa cultura alemã, em cujo futuro aqui se
crê — a da riqueza, do polimento e do fingimento bem-educado — é o mais hostil
antípoda da cultura alemã em que eu acredito. Assim, todos aqueles poderes
que promovem a cultura sem reconhecer a sua meta foram nomeados! Há,
contudo, um quarto poder peculiar para o erudito, trata-se do d) egoísmo da
ciência. A ciência é fria e seca, ela não tem nenhum amor e não sabe nada
acerca de um sentimento profundo de insatisfação e anseio [ciência pura].
Enquanto a cultura for compreendida como essencialmente promoção da
ciência, passará ao largo do grande homem sofredor com frieza impiedosa
porque a ciência vê em toda parte apenas problema do conhecimento. Assim, o
erudito consiste de uma emaranhada rede de estímulos e impulsos bastante
diversos. Ele é um metal impuro. Não é exatamente a verdade o que é buscado,
mas sim a própria busca, e o maior prazer consiste no bote magistral. O impulso
de encontrar certas “verdades” é, em grande parte, incorporado ao erudito, por
conta de sua subordinação aos poderosos, pois sente que se beneficia ao trazer
a verdade para o lado deles.
Das características dos eruditos
Destacam-se no erudito as seguintes características: 1) senso de Comentado [BHdRX24]: Das características dos
eruditos
simplicidade, altamente estimáveis caso sejam mais do que falta de
maleabilidade; 2) vista apurada para o que está próximo, ligada, contudo, a uma
grande miopia para o que está distante e para os casos gerais; 3) a sobriedade
e a banalidade de sua natureza nas inclinações e aversões. Com essa
característica, ele é feliz especialmente no estudo da história, na medida em que
identifica os motivos de homens do passado segundo os motivos que lhe são
conhecidos; 4) pobreza de sentimento e aridez. Com isso, ele está habilitado a
fazer até mesmo vivissecções. Ele não suspeita o sofrimento que muitos
conhecimentos trazem consigo e por isso não receia adentrar domínios que
fazem gelar o coração de outros. Ele é frio e por isso facilmente parece cruel; 5)
baixa autoestima, e até mesmo modéstia; 6) lealdade a seus professores e
líderes; 7) o hábito do erudito de seguir adiante na trilha para a qual foi
empurrado; 8) fuga ao tédio. Enquanto o verdadeiro pensador não anseia por
nada além do ócio, o erudito comum lhe foge por não saber o que fazer com ele;
9) ganha-pão como motivação, no fundo, portanto, o famoso “ronco de um
estômago vazio”; 10) respeito aos pares e medo a seu desprezo; 11) o erudito
por vaidade; 12) o erudito por espírito de recreação; 13) o impulso à justiça como
motivação para o erudito, alguém poderia objetar a mim que esse impulso é
nobre. Assim, o erudito é, segundo sua essência, infértil. Ele cultiva certo ódio
natural contra os homens férteis; por essa razão os gênios e os eruditos em
todas as épocas rivalizaram entre si. Tempos completamente felizes não
precisaram de eruditos. Não é no erudito que se encontra o conhecimento acerca
da meta da cultura. Os esforços dos melhores educadores de nossos dias
produzem notadamente ou o erudito ou o funcionário público ou o acumulador
ou o filisteu da cultura ou uma mistura de todos eles.
Da utilidade de Schopenhauer hoje
Mas hoje são exatamente esses os talentos desviados de seu caminho e
afastados de seus instintos pelas vozes sedutoras daquela “cultura” em moda.
Até mesmo os melhores estão sujeitos a tais aliciamentos. 93.1 Existem homens
que sentem como se fosse sua a miséria do gênio quando o veem lutar de modo
tão extenuante, em perigo de destruir a si mesmo, ou quando sua obra é posta
de lado com indiferença pelo egoísmo míope do Estado, pela superficialidade
dos acumuladores, pela árida falta de ambição dos eruditos. Espero que existam
uns poucos que compreendam o que pretendo dizer com a apresentação do
destino de Schopenhauer e com que propósito, na minha opinião, Schopenhauer
como educador deve efetivamente educar. Comentado [BHdRX25]: Da utilidade de
Schopenhauer hoje!
CAPÍTULO VII – DE COMO SCHOPENHAUER SURGIU
A metáfora da natureza
95. Pergunta: o que deveríamos atualmente desejar e levar uma
existência como a de Schopenhauer? O que deveria ser inventado para
aumentar a probabilidade de que ele influencie seus contemporâneos? Quais
obstáculos deveriam ser afastados para que seu exemplo possa alcançar efeito
pleno? A natureza sempre deseja o proveito de todos, mas não sabe encontrar
os melhores meios e os procedimentos mais adequados: por isso ela é
melancólica. O procedimento da natureza tem a aparência de desperdício; não
se trata do desperdício própria a uma extravagância pecaminosa, mas sim da
inexperiência. A natureza lança o filósofo na direção dos homens como uma
flecha, ela não mira, mas espera que a flecha se fixará em algum lugar. Ao fazer
isso, porém, ela erra muitas vezes. É obra da simploriedade causar uma grande
avalanche quando se quer apenas empurrar um pouco de neve. Eles atingem
sempre poucos, quando deveriam atingir todos (alvos). Seria melhor se a regra
de sua casa fosse: menos custos e receita cem vezes maior. Frequentemente
tem-se a impressão de que um artista e um filósofo vivem em seu tempo por
acaso. Comentado [BHdRX26]: A metáfora da natureza

O que deve fazer quem perceber o problema da sociedade alemã?


Nada pode ser mais vergonhoso para um homem honesto de nossa época
do que perceber quão casualmente Schopenhauer se insere nela.
Primeiramente e por muito tempo, a falta de leitores lhe foi hostil, quando vieram
os leitores, hostil foi a inadequação de seus primeiros testemunhos públicos.
Quem reconheceu a desrazão da natureza desta época terá que cogitar meios
de oferecer alguma ajuda. Sua tarefa será apresentar Schopenhauer aos
espíritos livres e àqueles que sofrem profundamente com nossa época, reuni-los
e produzir uma torrente com cuja força se superará a inépcia. Eles devem definir
sua meta: preparar a produção de um outro Schopenhauer; do gênio filosófico.
De como Schopenhauer cresceu
Se procuro agora reunir as condições com auxílio das quais um filósofo
nato pode ao menos não ser oprimido pela deformidade contemporânea, então
logo noto algo peculiar: as condições sob as quais Schopenhauer cresceu. A) Comentado [BHdRX27]: De como Schopenhauer
cresceu.
Aquela deformidade da época aproximou-se dele de modo terrível na figura de
sua mãe vaidosa e esteta. O caráter orgulhoso e republicamente livre de seu pai
o salvou de sua mãe e lhe ofereceu a primeira coisa de que um filósofo precisa:
hombridade áspera e insubmissa [??????] Esse pai não era nem um funcionário,
nem um erudito: claramente benefícios para aquele que não deve conhecer
livros, e sim homens, que não deve aprender a honrar um governo e sim a
verdade, tornou-se indiferente em relação às estreitezas nacionais; não
considerava uma honra ter nascido justamente entre os alemães; ele
considerava que a única meta do Estado é oferecer proteção em relação ao
exterior, proteção em relação ao interior e proteção contra os protetores. Aquele
que tem no corpo o furor philosophicus já não terá mais tempo para o furor
politicus e sabiamente evitará ler jornais todos os dias ou, ainda mais, servir a
um partido. B) Outro grande benefício conferido a Schopenhauer foi o fato de ele
não ter sido destinado e educado desde o início para se tornar um erudito. Um
erudito não pode jamais se tornar um filósofo: não apenas mais um grande
pensador, mas também um verdadeiro homem. Quando é que alguma vez um
erudito se tornou um verdadeiro homem? Quem permite que conceitos e
opiniões, tempos passados, livros se coloquem entre si e as coisas nunca verá
as coisas pela primeira vez. No caso de um filósofo, esses dois aspectos estão
imbricados, porque ele precisa extrair de si próprio a maior parte de sua
instrução. Quando alguém olha para si mesmo por intermédio de opiniões
alheias, que surpresa se ele não vir em si nada além de – opiniões alheias! E
assim são, vivem, veem os eruditos. C) Schopenhauer teve a felicidade de não
apenas ver o gênio em si, de perto, mas também fora de si, em Goethe: por meio
desse duplo espelhamento ele foi instruído para além de todas as metas e
culturas eruditas, tornando-se sábio. Schopenhauer soube como deve estar
constituído o homem forte e livre pelo qual toda cultura artística anseia. Uma
das magnificas condições de sua existência é o fato de que ele pôde
efetivamente viver tal tarefa, em conformidade com seu lema vitam impendere
vero, nenhuma das necessidades mesquinhas da vida o oprimiu: este foi o modo
como Schopenhauer mais ofendeu a incontáveis eruditos: não se assemelhando
a eles.
CAPÍTULO XVIII – DO QUE OCORRE QUANDO O ESTADO TOMA
CONTA DA FILOSOFIA.
O que acontece quando o Estado toma para si a produção do filósofo
Eis as condições sobre as quais o gênio filosófico pode surgir na nossa
época: livre hombridade de caráter, conhecimento precoce acerca dos homens,
nenhuma educação erudita, nenhuma constrição patriótica, nenhuma pressão
para o ganha-pão, nenhuma relação com o Estado – em suma, liberdade. Essa
liberdade é uma pesada culpa. Ele pereceria por conta de sua liberdade e de sua
solidão. A partir do que foi dito até aqui, talvez um ou outro pai possa aprender
algo e disso fazer uso proveitoso para a educação privada de seu filho.
Provavelmente os pais de todas as épocas foram os mais relutantes em relação
a seus filhos se tornarem filósofos do que em relação às maiores deformidades.
O Estado moderno considera a promoção da filosofia como sua tarefa e a todo
momento procura agraciar certo número de homens com aquela “liberdade” que
entendemos ser a mais essencial condição para a gênese do filósofo. Na
verdade, o Estado moderno está o mais distante possível de tornar justamente
os filósofos em soberanos. Nada obsta tanto à produção e propagação dos Comentado [BHdRX28]: O que acontece quando o
Estado toma para si a produção do filósofo
grandes filósofos por natureza do que os maus filósofos estatais. Considero inútil
toda palavra escrita que não traz consigo tal incitação à ação. Aquela “liberdade”
com a qual o Estado agracia alguns homens em benefício da filosofia, já não é
liberdade, mas um cargo que sustenta o homem que o detém. Ao passo que os
antigos sábios da Grécia não recebiam soldo do Estado, mas, no melhor dos
casos, eram honrados com uma coroa de ouro e um monumento fúnebre no
Kerameikos. Mas já Kant foi como nós, eruditos, costumamos ser, respeitoso,
submisso e, em sua relação com o estado, sem grandeza. Um estado jamais
ousaria beneficiar tais homens e colocá-los em grandes posições porque o
estado os teme e sempre serão beneficiados somente os filósofos dos quais ele
nada tem a temer. Com efeito, o estado sente medo da filosofia, e como esse é
o caso, ele procurará ainda mais atrair filósofos para si, que fazem parecer como
se ele tivesse a filosofia ao seu lado – pois ele tem esses homens ao seu lado,
os quais ostentam o nome de filósofos sem inspirar medo algum. Caso apareça
um homem que realmente exiba seu rosto e dirija a faca a verdade ao corpo de
todos, então este na média em que afirma antes de tudo sua própria existência,
tem razão em afastar tal homem de si e tratá-lo como inimigo; se alguém tolera
ser um filósofo estatal, então também deve tolerar ser visto pelo estado como
alguém que abriu mão de perseguir a verdade. Enquanto for favorecido e estiver
empregado, ele deve reconhecer algo mais elevado que a verdade: o Estado.
Essas concessões da filosofia ao Estado vão muito longe nos dias de hoje. Ele
obriga seus escolhidos a se estabelecerem em determinado lugar, entre
determinados homens, para realizar determinada atividade; eles devem ensinar
cada jovem acadêmico diariamente e em horários marcados. Um filósofo pode
realmente se comprometer a ter diariamente o que ensinar. E ensinar essas
coisas diante de todos que queiram escutar? Ele não se priva de sua mais
soberana liberdade, a de seguir seu gênio, quando ele chama e na direção em
que chama? Na medida em que se compromete a pensar publicamente acerca
de algo pré-determinado em horários determinados. E isso diante de Jovens!
Esse modo de pensar não está de antemão emasculado, por assim dizer? E se
um dia ele se sentisse assim: hoje não consigo pensar nada, nada inteligente
me ocorre” – e apesar disso precisasse se apresentar e parecer pensar? Alguém
falará “ele não precisa pensar, apenas repetir”. Essa é a terceira concessão
perigosa que a filosofia faz ao estado, quando se compromete a se apresentar
principalmente como erudição. O cavoucar em opiniões alheias é a mais
repulsiva das ocupações. A história erudita das coisas passadas nunca foi a
ocupação de um verdadeiro filósofo. Um processor de filosofia que se se dedique
a semelhante trabalho, deve consentir que se diga a seu respeito, no melhor dos
casos: ele é um valoroso filólogo, antiquário, conhecedor de línguas, historiador:
mas nunca: ele é um filósofo. Diante da maioria dos trabalhos eruditos que os
filósofos universitários produzem, um filólogo tem a impressão de que são mal
feitos, sem rigor, na maior parte das vezes um enfado digno de ódio. Que diabo
importa aos nossos jovens história da filosofia? Será que devem ser ensinados
a rejubilar-se, em uníssono, por termos chegado tão magnificamente longe? A
única crítica possível a uma filosofia nunca foi ensinada em universidades:
ensina-se sempre a crítica das palavras pelas palavras. Na realidade,
reconhecidamente não se educa de modo algum para ela, mas para os exames
de filosofia. E se esse suspiro fosse justamente o objetivo do Estado e a
“educação para a filosofia” fosse apenas uma abdução da filosofia? Que a
juventude finalmente descubra com que fim se abusa da filosofia! Não há
qualquer dúvida de que os jovens acadêmicos muito em breve irão se arranjar
sem a filosofia ensinada em suas universidades e de que os homens fora da
academia já hoje se viram bem sem ela.
Dos filósofos acadêmicos
Seja como for, a filosofia universitária caiu em desapreço. Eles, os Comentado [BHdRX29]: Do papel dos filósofos
acadêmicos
filósofos acadêmicos, sempre encontravam razões pelas quais seria mais
filosófico não saber nada do que aprender algo. E quando se arriscavam a
aprender, seu impulso secreto era escapar às ciências e fundar um reino obscuro
em qualquer uma de suas lacunas e pontos mal iluminados. Depois de tantas
vezes terem sido agarrados pelos cabelos e puxados de volta para baixo por
algum rude e obstinado discípulo de alguma ciência verdadeira, suas faces
assumem a habitual expressão de melindre daqueles que são pegos em
flagrante. Eles perderam sua feliz confiança, de modo que nenhum deles vive
por amor à sua filosofia. Inúmeros princípios abstratos não demonstrados são
avidamente recolhidos por pessoas de temperamento sanguíneo, o mundo
inteiro. Mas o mundo não se importa com tais abstrações. Eles certamente
querem ter um pouco de ciências naturais entre as mãos, algo como psicologia
empírica à maneira dos herbartianos.
Como se livrar dos maus filósofos
Essa manada de mau filósofos é ridícula – em que medida ela também é
nociva? Enquanto subsistir o pseudopensamento reconhecido pelo Estado,
qualquer efeito grandioso de uma verdadeira filosofia será frustrado. Eu
considero uma exigência da cultura que a filosofia seja privada de qualquer
reconhecimento estatal e acadêmico e que o estado e academia sejam
totalmente liberados da tarefa de distinguir entre filosofia real e aparente.
Permitam ao menos que os filósofos cresçam baldios, neguem-lhes qualquer
perspectiva de emprego e posição nas profissões civis, parem de mimoseá-los
com salários, persigam-nos. Os pobres filósofos aparentes irão dispensar em
fuga, procurando aqui e ali um teto. De repente, tudo está vazio, pois é fácil se
livrar dos mais filósofos, mais aconselhável do que patrocinar publicamente
qualquer filosofia. Para o estado nunca se trata da verdade, mas apena da
verdade que lhe é útil. Uma união de estado e filosofia só tem sentido se a
filosofia pode prometer ser incondicionalmente útil para o Estado. O que ele tem
em sua posse é apenas a falsa “verdade”. Como Estado não pode ter nenhum
outro interesse pela universidade a não ser educar cidadãos devotados e úteis,
ele deveria ter hesitações quanto a colocar em questão essa devoção. Esse
ganho não pode compensar o dano que precisamente essa atividade
compulsória pode causar nos jovens; eles passam a conhecer livros proibidos e
começam a criticar seus professores. Hoje, o Estado tem o poder: antigamente,
à época de Hegel, gostaria de tê-lo – essa é uma grande diferença. Ele não
precisa mais de aprovação por meio da filosofia. eu deveria pensar que uma
morada das verdadeiras ciências deveria considerar-se favorecida quando se
liberta companhia de uma semiciência. O espírito dos jornalistas penetra cada
vez mais a universidade, e não raro sob o nome de filosofia; - tais indícios são
testemunhas de que o espírito da universidade começa a se confundir com o
espírito do tempo. Parece-me de grande valor quando surge, fora das
universidades, um tribunal mais elevado que vigie e julgue também essas
instituições no que diz respeito à formação por elas promovida. O filósofo pode
ser útil também à universidade caso não se misture a ela, mas a supervisione a
uma distância digna. É na proporção em que aumenta a servidão à opinião
pública e o perigo à liberdade que pode elevar-se a dignidade da filosofia; Ela
deveria, no entanto, ser-lhe algo atemorizante; nossos pensadores acadêmicos
são inofensivos; pois seus pensamentos crescem tão pacificamente na tradição
quanto qualquer árvore carrega sua maçã: eles não assustam, não tiram nada
do lugar. Assim deveria estar escrito na lápide da filosofia universitária: “ela não
incomodou ninguém”. Mas se as coisas se passam desse modo em nossa
época, então a dignidade da filosofia foi jogada na lama: parece até mesmo que
ela própria tornou-se algo ridículo ou irrelevante. É por ações que eles
demonstram que o amor à verdade é algo terrível. Essas coisas todas
Schopenhauer demonstrou – e demonstrará mais a cada dia. Comentado [BHdRX30]: Como se livrar dos maus
filósfos

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