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A REPRESENTAÇÃO DOCENTE À LUZ DO INTERACIONISMO

SOCIODISCURSIVO: O DIÁRIO REFLEXIVO DE UM PROFESSOR DE


INGLÊS EM FORMAÇÃO NO PIBID

Giuseppe Andrew Ferreira Dantas1


Juliana Barbosa dos Santos2

Palavras-chave: Linguística Aplicada, Interacionismo Sociodiscursivo, Pibid, Diário


reflexivo.

INTRODUÇÃO

Ancorado na Linguística Aplicada contemporânea, indisciplinar e não positivista


(MOITA LOPES, 2006), o Interacionismo Sociodiscursivo (ISD) (BRONCKART, 1999)
assume uma postura teórica na qual considera a linguagem um instrumento de mediação
simbólica que está no âmago das relações sociais, sendo a linguagem decisiva para
formação e o funcionamento do pensamento consciente, bem como do desenvolvimento
humano em sociedade (VTGOSTSKY, 2008 [1987]). A linguagem, materializada no meio
social em forma de textos/discursos, é entendida como uma forma de agir no mundo, uma
vez que permitem ao ser humano a possibilidade de dizer e configurar o mundo a partir das
unidades da língua como sistema presentes nos textos/discursos (HABERMAS, 1987). A
linguagem difundida nos gêneros recorre à concepção bakhtiniana na qual descreve o texto
como ferramenta fundamental na interação entre os indivíduos das mais diversas esferas da
sociedade (BAKHTIN, 2003[1979]). Diante disto, no campo de formação de professores,
Machado (2009) assevera que a prática de ensino deve ser vista como trabalho e não como
dom ou sacerdócio, sendo o trabalho docente uma atividade complexa e conflituosa, uma
vez que.

O trabalhador deve fazer escolhas permanentes, enfrentando conflitos


com o outro, com o meio, com os artefatos, com as prescrições etc.,
guiando-se por objetivos que ele constrói para si mesmo, em solução de
compromisso com as prescrições, com a situação específica em que se
encontra e com os próprios limites de suas capacidades físicas e
psíquicas (MACHADO, 2009, p.37).

Dito isso, ajustando o foco deste trabalho para o contexto de formação de


professores, temos como objetivo principal analisar as representações de um professor
(João)3 em formação inicial vinculado ao Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à

1
Universidade Federal da Paraíba – Programa de Pós-graduação em Linguística (email:
giuseppeafd@live.com)
2
Universidade Federal da Paraíba – Programa de Pós-graduação em Linguística (email:
julisantos7@gmail.com)
3
Nome fictício
[1]
Docência (Pibid), subprojeto Letras/Inglês, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), a
fim de compreender o trabalho do professor na rede pública a partir da escrita reflexiva
deste profissional em formação. Interpretamos de que forma, de acordo com as marcas
linguísticas, este profissional atribui sentido ao seu trabalho, sendo importante identificarmos
quais são os temas, os conflitos e os personagens que perpassam, orientam e refiguram
esta atividade. Desta forma, o corpus deste trabalho consiste em um conjunto de relatos
reflexivos4 analisados de acordo com a noção de escrita reflexiva (BURTON, 2009).

METODOLOGIA

De natureza qualitativa interpretativista (DENZIN e LINCOLN, 2007), esta pesquisa


está inserida no quadro teórico-metodológico do ISD postulado por Bronckart (1999), que
propõe uma análise descendente do texto, isto é, no caminho das práticas sociais para o
texto. De acordo com Machado (2009), o trabalho docente (complexo e conflituoso)
apresenta as seguintes características: é pessoal, interacional, mediada, interpessoal,
impessoal e transpessoal. Neste sentido, as categorias de análise deste trabalho se pautam
no nível dos mecanismos enunciativos (BRONCKART, 1999), ou seja, nas vozes e nas
modalizações.

Bronckart (1999) elenca as vozes enunciativas a fim de compreender as


responsabilidades da produção textual, ou seja, a quem o agente-produtor se refere e atribui
seu enunciado. São elas: a) Vozes de personagens, b) Vozes sociais e c) Voz de autor
empírico, sendo esta última nosso foco. Já as modalizações enunciativas dizem respeito à
estrutura textual que revela o posicionamento do enunciador em relação ao conteúdo
temático; são elas, as modalizações: a) Lógicas; b) Deônticas; c) Apreciativas e d)
Pragmáticas, embora nem todas estejam textualizadas ou fáceis de serem identificadas.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Em uma análise maior e geral do diário de João, o relato interativo implicado foi
verificado como discurso predominante do mundo do narrar (BRONCKART, 1999). Há
também segmentos que demonstram um discurso teórico autônomo ancorado no mundo do
expor.

Abaixo, apresentamos alguns fragmentos do diário de João.

Fragmento 1 (Maio, 2015)


Aliado a uma aula multimodal, há também uma preocupação com a questão do letramento,
sobretudo do multiletramento, que estabelece um diálogo entre o texto discursivo e as formas

4
O termo diário advém da apropriação do gênero por parte dos autores do contexto de produção,
uma vez que os próprios professores-bolsistas do Pibid narravam o que foi vivido e o que sentiam: as
emoções, as incertezas, as angústias, os problemas, os sucessos e as impossibilidades de um
contexto de prática social. Para mais informações sobre as possibilidades e impedimentos do diário
reflexivo como prática social, prática de letramento e gênero acadêmico, consultar: Reichmann
(2013).
[2]
comunicativas. Herbele (2012, p. 94) menciona os pesquisadores do The New London Group
(1996), que também levam em consideração o multiletramento e [citação direta longa].

No que tange ao discurso teórico autônomo, temos evidências de citações diretas e


indiretas ao longo dos relatos. Respaldando-se em outros autores da área, João pauta seu
discurso em vozes sociais que abordam algumas perspectivas teóricas como o Letramento
Crítico e a Multimodalidade. No fragmento 1, a preocupação sobre práticas de letramento na
escola é apresentada pela modalização lógica há, isto é, João percebe essa necessidade
facilmente em sua prática, marcando um suposto anseio e inquietação em levar práticas de
letramento para os alunos. Este fragmento ilustra o trabalho do professor em contexto pré-
figurativo, ou seja, o trabalho do professor é pautado por outras vozes que prefiguram seu
trabalho antes dele ser efetivamente realizado; a isto, Machado (2009) atribui ao trabalho do
professor a característica impessoal, “dado que as tarefas são prescritas ou prefiguradas por
instâncias externas” (op. cit., p. 37).

Fragmento 2 (Fevereiro, 2015)

Uma vez sabendo que os alunos estão inseridos em um contexto, o trabalho de leitura na sala de
aula se torna complexo (...) Foi nesse momento que eu e minha colega de trabalho ficamos com
dificuldade. Não temos muita noção ainda de que gêneros podem ser aplicados em sala de aula,
uma vez que não temos muito conhecimento sobre os alunos.

No mundo do narrar, o discurso predominante do diário de João é o relato interativo


(BRONCKART, 1999). Assim, há evidências do uso do pretérito perfeito em primeira pessoa
do singular e do plural, que revelam a implicação de João e outros personagens na ação. Ao
longo dos relatos, há uso de adjetivos que descrevem as modalizações apreciativas que
expressam a complexidade e a dificuldade da prática de leitura na sala de aula (vide
Fragmento 2), o que converge à complexidade do trabalho docente descrita por Machado
(2009). Além disso, por meio da modalização pragmática “podem ser”, João revela a
pretensão e a possibilidade dele e da colega em abordar gêneros na sala de aula, algo
que, para ele, demanda um conhecimento sobre os alunos para melhor direcionar seu
trabalho, trabalho este marcado pela interação com os instrumentos simbólicos (os gêneros)
e os alunos, sendo a atividade docente, assim como postula Machado (2009), interpessoal
(aluno-professor) e mediada (professor-gênero-aluno, na e pela linguagem) de acordo com
os objetivos da situação.

Fragmento 3 (Setembro, 2015)

Com o decorrer do tempo, aprendi comigo, pesquisei, li e escrevi; aprendi com outro,
concordei, reconheci o erro, sugeri e ajudei, e aprendi também com o mundo, entendendo
como ele funciona e como eu posso usar isso em favor da educação. Em outras palavras,
posso dizer que aprendi a refletir, a estabelecer um constante diálogo entre o professor
supervisor e coordenador, como também com os outros bolsistas do projeto. Nem tudo foi
fácil, passei por um processo de saber lidar com outro, em falar quando necessário, e o mais
importante: como falar, além de como me portar diante ao outro, me permitindo a aprender
com o diferente.

[3]
A partir do fragmento 3, é observado que João se encontra implicado em sua prática,
o que é revelado pelos verbos em primeira pessoa no pretérito perfeito, demonstrando que
tal seleção de verbos ilustra o trabalho docente como um processo, o que nos apresenta
sua característica pessoal (MACHADO, 2009); ou seja, uma atividade que mobiliza
dimensões físicas, mentais, práticas e emocionais do professor. Neste fragmento, há
modalizações deônticas marcadas pelo uso do verbo modal em primeira pessoa: “posso
usar isso em favor da educação”, o que revela sua capacidade e desejo em favor dos
valores da educação. Além disso, trazendo outros personagens como os colegas bolsistas,
o professor supervisor e o professor coordenador, João reconhece que os acontecimentos
foram difíceis quando faz uso das modalizações apreciativas como (nem tudo, fácil); para
João, torna-se professor não é algo simples. Ademais, nas duas ultimas linhas, João marca
seu discurso por meio de modalizações deônticas através da palavra “necessário”, o que
marca as normas de condutas em relação ao outro e ao diferente; ou seja, ao mundo
social, ressaltando a importância da interação com o outro, o que pode ser percebido
pelo uso dos modalizadores apreciativos mais e importante. Ainda sobre o fragmento 3,
João reflete sobre si mesmo e sobre o outro, trazendo o mundo subjetivo e social
(HABERMAS, 1987) em um único plano, conferindo à atividade docente a característica
transpessoal, uma vez que é “guiada por ‘modelos do agir’ específicos de cada ‘métier’”
(MACHADO, 2009, p.37). Neste trecho, perceptivelmente, sua voz de autor empírico
(BRONCKART, 1999) está bem presente quando ele avalia seu processo de formação
como professor, uma vez que ele comenta e avalia sua prática de acordo consigo
mesmo e com outros personagens envolvidos na ação, podendo este segmento de
textualização uma evidência de desenvolvimento pessoal (VTGOSTSKY, 2008 [1987]) a
partir da escrita reflexiva (BURTON, 2009).

CONCLUSÃO

Através da interpretação da escrita reflexiva (BURTON, 2009) de um professor em


formação inicial, foi constatado que espaços como o Pibid representam um lugar de
mediação formativa que valoriza e incentiva a profissão docente por meio de um diálogo
mais equilibrado e dialético entre universidade-escola (SANTOS e CRUZ, 2017).
Neste contexto de pesquisa, temas que revelam a importância das práticas de
letramento por meio dos gêneros discursivos foram evidenciados, havendo dificuldade de
abordar tais gêneros na sala de aula antes de conhecer o contexto em que se pretende
ensinar. Há também uma ansiedade em relação ao planejamento de aulas, fazendo com
que haja uma preparação anterior à sala de aula que engloba textos teóricos prescritivos
sobre o Letramento Crítico e a Multimodalidade, comprovando que os professores precisam
buscar em outras vozes maneiras de fazer. Também foi demonstrada certa preocupação
com a comunicação e a importância desta interação com o meio e seus pares na formação
do professor, o que caracteriza o trabalho docente como, essencialmente, interacional.
Completamos asseverando que, bem como postula MACHADO (2009), o trabalho do
professor envolve dimensões físicas, mentais, práticas e emocionais do trabalhador, sendo
esta uma atividade que interage com o meio através da mediação de instrumentos
simbólicos ou materiais, envolvendo personagens que pautam diretamente ou indiretamente
o agir humano em cada situação de ensino-aprendizagem.

[4]
A partir dos temas recorrentes, como a dificuldade da prática de leitura em sala de
aula e o trabalho docente como processo, a voz de autor empírico (BRONCKART, 1999) se
revela nas impressões, dificuldades e percepções do professor em formação com os outros,
consigo mesmo e com o meio físico. Neste sentido, ensinar é entendido como uma atividade
dirigida na qual são mobilizadas diversas representações de diversas origens, sendo
impossível atribuir as responsabilidades desta ação somente ao professor envolvido no
processo.
Para concluir, vale ressaltar que este trabalho compreendeu o Pibid como espaço de
formação e mediação por excelência, no qual os personagens interagem por meio não só de
encontros semanais, aulas, congressos, eventos, workshops etc., mas também, por meio de
outras práticas de linguagem que são essenciais para compreensão do comportamento
humano e da prática docente. As representações do professor em formação permitem
concluir que a presença de outras pessoas no processo de ensino aprendizagem é de suma
importância, revelando que o trabalho do professor não é unilateral, mas sim um trabalho
complexo e difícil de descrever que pode ser compreendido a partir de uma perspectiva
ampla que enxerga na linguagem um caráter decisivo nas relações sociais que pautam o
desenvolvimento humano, social e profissional. Assim, professores formadores devem levar
em consideração práticas que exercitem o pensamento crítico-reflexivo dos professores em
formação, atentando para o conceito de linguagem que é desenvolvido nestes espaços.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail; VOLOSCHINOV, Valentin Nikolaevich. Estética da criação verbal. São


Paulo, SP: Martins fontes, 2003[1979]. 414p.

BRONCKART, Jean-Paul. Atividade de linguagem, textos e discursos. Por um


interacionismo sóciodiscursivo. Trad. Anna Rachel Machado e Péricles Cunha. São
Paulo, SP: Educ, 1999. 353p.

BURTON, Jill; QUIRKE, Phil.; REICHMANN; Carla Lynn; PEYTON, Joy Kreeft. Reflective
writing: a way to lifelong teacher learning (e-book). 1. ed. San Francisco: TESL-EJ
Publications, 2009. 188p.

DENZIN, Norman K.; LINCOLN, Yvonna S. O planejamento da pesquisa qualitativa:


teorias e abordagens. Porto Alegre, RS: Artmed, 2006. 432p.

HABERMAS, Jürgen. Théorie de l'agir communicationnel. Paris: Fayard, 1987.

MACHADO, Anna Rachel; CRISTOVÃO, Vera Lúcia Lopes. L.; ABREU-TARDELLI, Lília
Santas. (Org.). Linguagem e educação: o trabalho do professor em uma nova
perspectiva. 1ed.Campinas, SP: Mercado de Letras, 2009, v. 1, 174p.

MOITA LOPES, Luiz Paulo da. Por uma linguística aplicada Indisciplinar. São Paulo, SP:
Parábola, 2006, v. 1. 279p.

REICHMANN, Carla Lynn. Diários reflexivos de professores de línguas: ensinar,


escrever, refazer(-se). 1. ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2013. 307p.

[5]
SANTOS, Ana Jéssica Côrrea; CRUZ, Shirleide Pereira da Silva. Pibid - uma análise das
portarias: avanços ou recuos? In.: XIII Congresso Nacional de Educação, 28 - 31 de
Agosto de 2017.0 Curitiba, 2017. Disponível em:
<http://educere.bruc.com.br/arquivo/pdf2017/24938_13085.pdf> (Acessado em 10 de
Outubro de 2018).

VYGOTSKY, Lev Semenovich. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2008
[1987].

[6]

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