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Teatro Reunido - Hilda Hilst PDF
Teatro Reunido - Hilda Hilst PDF
TEATRO REUNIDO
(1967 - 1969)
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Editora XXXXXXXXXXXXXX
Coordenação editorial: XXXXXX
Preparação dos originais: Edson Costa Duarte
Revisão: XXXXXXXXXXXXXXXXXX
Capa e projeto gráfico: XXXXXXXXXXXX
Foto da capa: XXXXXXXXXXXXXXXXX
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Hilda Hilst
TEATRO REUNIDO
(1967 - 1969)
Editora XXXXXX
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00.XXX - B869.000
B 869.00
EDITORA XXXXXXXXXXX
Endereço XXXXXXXXXX
XXXXXXXXXXXXXXX
Telefone/ Fax 0000000000
2000
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Hilda Hilst
AS AVES DA NOITE
1968
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Cenário
Nota
Hilda Hilst
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Com As aves da noite, pretendi ouvir o que foi dito na cela da fome,
em AUSCHWITZ. Foi muito difícil. Se os meus personagens
parecerem demasiadamente poéticos é porque acredito que só em
situações extremas é que a poesia pode eclodir VIVA, EM
VERDADE. Só em situações extremas é que interrogamos esse
GRANDE OBSCURO que é Deus, com voracidade, desespero e
poesia.
Hilda Hilst
AUSCHWITZ, 1941
PERSONAGENS
Estudante 20 anos
SS
Hans Ajudante do SS
Nota
Voz do
prisioneiro 5659 Não! Por favor! Eu não! Eu tenho filhos! Tenho mulher! Eu não!
(Soluça e chora. Algum tempo)
Voz do
padre Maximilian (Tom objetivo e provocado por impulso violento) Eu posso ir no
lugar dele. Eu posso ir.
Voz do SS (Com ironia) Ah... Padre Maximilian? Quer ir no lugar dele? (Pausa)
Vejamos... Por quê?
Voz de Maximilian (Tom objetivo. Voz alta) Eu já não posso trabalhar. Não sirvo mais.
Voz do SS (Com ironia) Mas é tão moço ainda... Qual é a sua idade?
Voz de Maximilian (Muito objetivo) Mas eu não agüento mais o trabalho. (Pausa) Não
agüento.
Pausa.
Voz do SS Como quiser. Aqui nós fazemos a vontade de todos. O que fugiu
também não fez a sua? Mas que fique bem claro: para cada um que
fugir deste campo, alguns irão apodrecer na cela da fome. O método
será sempre o mesmo: sorteio. (Pausa) 5659, volte para o seu
lugar. (Passos do 5659) Então, padre Maximilian, está contente?
(Pausa) Vamos, vamos, os cinco em fila, em fila, andando, vamos.
(Passos dos cinco prisioneiros afastando-se) E vocês todos, voltem
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Pausa.
Poeta (Lento)
Curvo-me sobre o que foi rosto. Oval em branco.
Pálpebra remota
Boca disciplinada para o canto. O braço longo
Asa de ombro... Amou. Corroeu-se de sonhos.
E cúmplice de aflitos, foi construído e refeito
Em sal e trigo.
(Muda levemente o tom. Sorri.)
O ventre escuro não gerou,
(Grave)
Talvez por isso
Teve mãos desmedidas
E grito exacerbado foi o verso. Amou. Amou.
(Fala mais rapidamente, olhando-se.)
Tem os pés de criança: altos e curvados.
O corpo distendido como lança. É inteiriço e claro.
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Estudante Quando eu digo lá fora... é outro tempo, muito longe... tudo muito
longe daqui.
Pausa.
Carcereiro (Para Maximilian que está ajoelhado fora do centro) Mas até quando
você vai ficar assim?
Estudante Uma certa ansiedade... vem sempre quando começa a noite (Sem
pausa) você sabe que tem gente que pega um gato...
Estudante ... e cria gato num quarto escuro desde pequeno. Depois... um dia...
solta o animal numa manhã...
Pausa.
Maximilian (Ainda ajoelhado) Há certas coisas absurdas... Mas que talvez seja o
medo... que faz com que as pessoas façam certas coisas absurdas.
Poeta (Para Maximilian. Exaltado) Por quê? Por quê? Por que você
escolheu esta nossa morte quando podia ter a vida? Ainda que fosse
aquela... era a vida. Que força te conduziu a isso? Por quê?
Pausa.
Maximilian (Levantando-se. Voz lenta) Me foi dada... uma força... me foi dada.
Pausa.
Pausa.
Maximilian Vigia
Poeta (Tom crescente) Dorme! Dorme! Dorme um sono tão fundo que as
pálpebras enrijeceram. E nunca mais se abrirão.
Estudante De vergonha.
Pausa.
Poeta (Para Maximilian. Voz alta) Como é que você pôde? Fala!
Passos violentos do SS. Olha pela pequena abertura da cela, de modo que se possa vê-lo.
Maximilian (Interrompendo com voz firme) Luz infinitamente poderosa, dai- nos a
Tua força, a Tua misericórdia, o Teu amor.
Pausa longa.
Joalheiro (Entre irônico e afetuoso) Vamos, vamos. Uma aula. O nosso jovem
biologista???.
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Carcereiro (Sombrio) Aqui você vai poder estudar a carne até o fim. E o
estômago... o que ele faz quando não tritura nada... sem nada...
absolutamente nada. (Ri)
Estudante O falcão...
Pausa.
Joalheiro E daí?
Carcereiro Do falcão?
Estudante É.
Carcereiro Então?
Estudante (Olhando à volta da cela) Os tubos eram fechados nos dois lados por
umas telinhas de arame.
Carcereiro E depois?
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Estudante O falcão era obrigado a engolir esses tubos mas depois punha prá
fora.
Carcereiro Vomitava?
Estudante É.
Pausa.
Carcereiro (Colérico, voz baixa) Maximilian, você quer me dizer que esses filhos
da puta têm alma? O que é a alma então? Eu não posso ter nada que
eles têm.
Maximilian (Indo de encontro ao Poeta) Filho, fala um pouco mais conosco, fala.
Nós precisamos falar.
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Poeta (Falando com dificuldade) A minha amiga... A minha amiga era boa...
O meu amigo também era bom, mas... Eu não compreendo como...
Joalheiro (Com algum desprezo) Todo mundo diz que todo mundo já escreveu
versos. Eu não.
Maximilian Mas ele escrevia sempre. Sempre escreveu. (Para o Poeta) Desde
menino, não é?
Poeta (Para Maximilian. Está desesperado) Mas por que ele foi fazer isso?
Ele sabia que se alguém fugisse os outros pagariam... Ele era meu
amigo... Por quê? Por quê?
Maximilian (Brando) Mas ele não sabia que você seria um dos sorteados.
Carcereiro Acaso para nós (Aponta para Maximilian) Escolha para ele.
Estudante (Violento) Calem-se idiotas. Ele é diferente, vocês não vêem? (Para o
Joalheiro com algum desprezo) Quem é você? Um joalheiro. Mas
não muito bom decerto, porque eles não te aproveitaram. (Para o
Carcereiro) E você? Um carcereiro. Foi o que você foi na sua terra,
não é? (Com certo desprezo) Um carcereiro!
Carcereiro Nós somos iguais àquela carne (Com ironia) dos tubos.
Maximilian Filho, não será tão difícil, você vai ver, escute, quando eu entrei para
o seminário (Tentando ser natural) Eu pensava que nas minhas
orações,... Deus se mostraria. Pensava que o ato de rezar seria
acompanhado de infinito consolo, que eu teria sensações, sabe? Me
sentiria leve, o coração ficaria inundado de luz, de calor, quem sabe...
Se até visões eu teria. Uma vez diante do Santíssimo exposto eu vi
uma claridade... Uma claridade... E depois sabe o que era? (Ri)
Tinham acendido a lua da sacristia (Ri) A luz, sabe, a luz lá dentro
também clareou o altar, lógico (Ri) Lógico, lógico, a luz da sacristia.
Carcereiro (Interrompe) Mas então Maximilian, que estória filha da puta é essa
que você quer nos contar?
Carcereiro Diferente? Diferente no quê? Você mesmo disse que ele é feito de
células carnívoras como todos nós... e como o falcão..
Estudante Você não entende, não pode entender. Um que foi carcereiro não
pode entender.
Carcereiro Você teve sorte. Tocava em coisas limpas... pedra, ouro. Eu tocava
sempre no ferro. As chaves eram pesadas, ficavam amarradas na
cintura por uma corrente que também parecia de ferro... o barulho
que elas faziam... eu ficava brincando com elas. Minha mulher chegou
a dizer que eu cheirava ferro, grades, tudo de ferro.
Maximilian (Voz em tensão) Então eu não tive aquele especial conforto de ter o
coração inundado de luz, mas...
Maximilian (Interrompe em grande comoção) Mas depois . senti, que era preciso
que eu não tivesse nenhum conforto, que Deus queria que a minha
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oração fosse lúcida, clara, que era preciso rezar com os olhos bem
aberto, que dentro de mim tudo ficasse nítido, limpo.
Pausa longa.
Estudante Ela me dizia que o corpo muitas vezes parece uma coisa independente
da tua vontade.
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Joalheiro Independente?
Pausa.
Maximilian (Brando, mas com firmeza) O corpo é o envoltório daquilo que está
mais fundo, por isso...
Poeta (Para o Estudante, febril) Então a tua amiga estava certa? Ela não
disse que o corpo parece uma coisa independente da nossa vontade?
E se o corpo é só um envoltório da vontade... o corpo não é
nada, hein? (Voz alta) Maximilian, eu não quero esse meu corpo, eu
não quero mais! faz alguma coisa para que ele se acabe depressa, faz
alguma coisa prá que eu não saiba dele mais, maldito corpo. (Soluça)
Maximilian (Muito comovido) Ele se acabará meu amigo, logo, logo... se fosse
possível não pensar tanto nele agora... não pensar tanto.
Poeta (Interrompe exaltado) Mas eu não posso. Eu sou meu corpo. Eu sou
esta imundície que parece não ter fim.
Maximilian (Interrompe) Mas existe uma luz muito mais intensa e essa...
Carcereiro (Interrompendo) Maximilian, você podia ficar lá fora e ser muito mais
útil pr'aqueles coitados. Aqui você é inútil, aqui a morte é feita de
carne, aqui você já é a morte, tudo que você fala é a morte que fala.
Carcereiro As chaves.
A porta é aberta com suavidade. Demoram um pouco para entrar. Ouve-se o SS dizendo:
"Você já vai ver, entra, você vai gostar". Uma voz de mulher: "Mas para quê?". Voz dos SS
empurrando a Mulher para dentro da cela: "Entra!". Entram, também, o ajudante e o SS.
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Pausa.
Pausa.
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Pausa.
Carcereiro Conta.
Maximilian (Tentando ser natural) Você está aqui há muito tempo? Tem família?
Estudante Mas nada do que ela disser pode nos aliviar, é tudo tão...
Pausa.
Mulher (Canta)
Que dia tão claro
Sobre o meu coração
Que dia tão claro
Pausa.
Pausa.
Carcereiro Conta.
Carcereiro (Interrompe, para Maximilian) Eu quero ouvir o que ela vai contar.
Carcereiro (Com ironia) Para que a gente se lembre mesmo depois da morte,
sempre, sempre, porque se morrerem todos, a tua palavra vai ficar
viva no espaço, viva, você não entende?
Estudante (Olhando à volta da cela) Esta cela terá vida. Palavras vivas.
Estudante (Interrompendo) A pedra não faz esforço, a pedra não tem vida.
Maximilian (Tentando acalmar) Todas as coisas que deus criou têm uma forma
de vida. Nós às vezes não vemos, mas a vida está lá dentro pulsando
e...
Pausa. Tensão.
Joalheiro Mangueiras?
Pausa.
Joalheiro (Com medo) Alguém me disse que tinha ouvido uma ordem um dia.
Joalheiro (Gritando a ordem que algué m ouviu) "Está bem! Dê-lhes algo para
devorar."
Pausa.
Pausa.
Mulher É o sinal.
Pausa.
Pausa.
Pausa.
Joalheiro Cristais...
Mulher (Interrompe) Eles ficam depois olhando através do vidro das vigias.
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Pausa.
Pausa.
Vou andando
Carcereiro (Interrompe violento, tom crescente) Não! Não! Ela vai contar até o
fim, eu tenho direito de saber, eu o direito, de qualquer jeito eu vou
morrer, conta, vamos, vamos, aí vocês entram...
Maximilian (Interrompe com delicadeza) Não diz mais nada, filha, não diz mais
nada.
Pausa.
Pausa.
Pausa.
Estudante (Rapidamente) Olhem, ele dava um exemplo bem simples, ele dizia: é
bem simples, veja: se um leão, vive de zebras e as duas espécies são
mantidas estáveis na população, então deve existir cerca de dez quilos
de zebra para cada quilo de leão. Como as zebras comem capim,
deve existir dez quilos de capim para cada quilo de zebra, e portanto
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cem quilos de capim para cada quilo de leão. Simples, ele dizia,
simples, este é um exemplo de uma cadeia de alimento e
invariavelmente cresce como uma pirâmide. (Está exausto)
Pausa.
Mulher (Agoniada) Como uma pirâmide, é assim que eles estão junto à porta
de metal, como uma pirâmide toda feita de sangue, de sangue muito
escuro.
Pausa longa.
Mulher (Sôfrega) Eu quero viver, eu quero viver... é mais forte do que tudo.
(O Carcereiro cospe na mulher) Mas eu sou como vocês, eu sou
como vocês. (Para o Carcereiro) Eu sou igual a você!
Maximilian Você é igual a nós, minha filha, é verdade, nós sabemos muito bem,
tudo é terrível, a vontade de viver é mesmo uma coisa muito forte,
vem de dentro, todos nó s sabemos que é uma coisa muito forte,
talvez... de repente... no teu lugar nós faríamos a mesma coisa, não
fique assim (A Mulher está desesperada) um dia estaremos juntos,
todos nós, e nos abraçaremos, muito, muito.
(levanta a voz)
Ah, meus olhos esquecidos de tudo que já viram
Sonharem que são olhos inocentes. Meus olhos...
Na noite com espanto eles se abriram
Na noite se fecharam de repente.
Pausa.
Poeta (Interrompe sorrindo) Mas o mal não vem, mas o mal não vem, mas o
mal não vem.
Maximilian As coisas divinas... as coisas divinas são uma noite infinita para a
nossa razão.
Joalheiro (Tom ingênuo e comovido) Eu fiz uma linda peça rendilhada uma
vez...vários pontos azuis (Lembra-se do azul dos cristais e continua
num tom de voz angustiado) e um ouro filigranado, muito difícil.
Carcereiro (Tom crescente) Por que, Maximilian? As coisas de Deus são tão
confusas não é mesmo? Tudo pode ser e não ser, não é? O direito e
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Joalheiro (Como se falasse consigo mesmo) "O pecador tem um intelecto leve
como a palha mas o justo é pesado como o ouro."
Maximilian (Interrompe brando, comovido) Ele disse uma vez... "Não foi para te
dar o riso que eu te amei."
Carcereiro (Para Maximilian, com ironia) Amor por quem? Por nós? (Os risos
recomeçam. Pausa) Você tem amor por eles?
Poeta (Lentamente, quase inconsciente) Eles são como certas aves que se
feriram nas duas asas... e se você quiser socorrê-las... não saberá
como... nem por onde segurá-las. Eles são como certas aves da noite.
Carcereiro (Para Maximilian, provocativo, referindo-se aos SS) Você tem amor
por eles?
Maximilian (Com firmeza) Ainda não!... mas lentamente eu abrirei meu peito para
que eles tomem os seus lugares dentro de mim.
Carcereiro (Para a mulher com intensa ironia) Que caridade, que fineza. Você vai
nos limpar depois de mortos? Vai separar o sangue e a merda? Hein?
Vai?
Joalheiro (Assombrado) Mas a gente sangra morrendo por fome e por sede? A
gente também sangra?
Mulher É limpo.
Carcereiro É um menino.
Poeta Eu gostaria muito... que todos vocês... cantassem aquela canção outra
vez.
Maximilian começa lentamente a cantar, e lentamente todos o acompanham. Tom cada vez
mais apaixonado.
SS É uma festa?
(Pausa)
Respondam é uma festa?
Estudante (Sem acreditar) Não, não, ele ainda não está morto.
SS Um poeta? Muito bonito... Hans, leva prá fora, leva prá fora o porco
poeta. (Todos se aproximam muito do Poeta) Para trás, para trás. (O
ajudante afasta todos com violência) Vamos, todos cantando,
cantando, la, la, ra, la... Não querem mais cantar? Pena, pena. (Hans
começa a arrastar o corpo do Poeta para fora) Então um poeta...
muito bonito... nós também temos grandes poetas... espera um pouco
Hans. (Começa a dizer lentamente)
Sobre todos os cimos
O repouso.
Sobre todos os cumes
Apenas leve sopro.
Continua comigo Hans.
(Os dois juntos)
Calam os pássaros na mata
Espera, pois, e em breve
Também descansarás.
(Vão saindo, o SS dá risadas discretas e Hans só sorri)
Muito bonito... muito bonito...
Pausa longa.
Carcereiro (Para Maximilian. Tom ferido) Olha, toca em mim, toca em você...
Você acha que deus tem alguma coisa a ver com a gente? com tudo
isso que vai apodrecer? E se Ele tem alguma coisa a ver com a gente,
Ele não é inocente, Ele sabe. (Exaltado) De qualquer jeito ele não é
inocente. Perto de nós, muito longe de nós.
Joalheiro (Objetivo, tenso) Ah, isso nunca aconteceu, isso nunca aconteceu no
meu trabalho...
Carcereiro (Para Maximilian, sarcástico) Mas você não teve a predileção divina,
você se impôs a Deus, você não foi sorteado.
Carcereiro (Provocativo) Talvez não... Você pode até não morrer... (Com ironia)
Pode acontecer um milagre... ou você pode demorar muito, muito
para morrer. E isso vai significar... sabe o quê?
Joalheiro O quê?
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Carcereiro (Voz alta, para todos) Que ele não é um escolhido de Deus.
Mulher (Olhando fixamente para o carcereiro) Deus nem o demô nio nos
aceitam.
Estudante (Febril) A sede, a minha sede não é humana... Eu não tenho mais
nada de humano. (Olha-se a si mesmo) Maximilian, eu não sou mais
humano.
Carcereiro (Em grande aflição) Se tudo isso foi permitido, deve haver um motivo.
Um motivo, vocês não acham? Qual é esse motivo, Maximilian? fala,
qual é o motivo?
Carcereiro (Com sarcasmo) Ah, sim é verdade, nós teremos o amor... pela
primeira vez. Pela primeira vez o mundo inteiro terá compaixão, o
mundo inteiro ficará possuído de amor por nós. é isso Maximilian?
Foi isso o que teu Deus planejou? Amor para esse povo eleito. Amor
a qualquer preço! Amor!
Carcereiro (Com ironia) O padre Maximilian acha que tem, não é? Ele vai nos
dizer agora o motivo divino dessa carnificina. (Aproxima-se agressivo
de Maximilian) Você vai me dizer nem que eu tenha que te obrigar.
(Sacode Maximilian) Vamos Maximilian, qual é a resposta do teu
Deus?
A Mulher intervém.
Maximilian (Exaltado) Mas o meu Deus ofereceu a sua própria carne e o seu
próprio sangue. Ofereceu.
Carcereiro E depois?
Carcereiro Depois... Ele nos colocou aqui. (Para Maximilian muito exaltado) Ou
você pensa que o teu Deus se ofereceu por nada? Para o seu próprio
gozo... para o seu próprio gozo. Um Deus que escolhe para ele
mesmo o martírio, nada é suficiente, você não vê? E para que ele
consiga um grande prazer, a nossa fome e a nossa sede não bastam.
(Começa a bater as próprias costas na parede)
(Alto-falantes na cela, música) Não bastam, não bastam, por quê?
por quê?
Maximilian (Desesperado) Mas que é que você está fazendo? Não faz isso, não
se machuca assim, por favor, se eu tivesse uma resposta eu diria a
você mas eu não sei, é alguma coisa que vem de dentro, pare, pare!
(Entra praticamente em luta com o Carcereiro. Machuca-se. O
Carcereiro pára subitamente exausto)
Carcereiro (Ofegante, para Maximilian) Por que você está aqui? Este tempo é o
nosso tempo... Você não compreende? O nosso tempo, nosso! Que
é que você veio fazer aqui? (Ajoelha-se e começa a raspar o chão)
Maximilian ajuda-o a deitar a cabeça nas pernas do Joalheiro, os dois fecham os olhos. Estão
como que anestesiados. A Mulher o Estudante e Maximilian ficam próximos um do outro.
Pausa.
Maximilian (Firme, mas brando) Porque prestaremos conta de toda palavra vã.
Estudante Mas aqui neste lugar, nesta hora, alguma palavra é palavra vã?
Estudante (Para Maximilian) Você sabia antes de tudo isso acontecer, quem era
o teu Deus?
Estudante E agora?
Pausa.
Estudante Você não pôde se conter? Quando você disse "Eu posso ir no lugar
dele, eu posso ir?”, você não pôde se conter?
Maximilian Eu não sei... foi muito mais do que um impulso, foi muito mais.
Mulher (Como uma confissão) Padre, eu quero dizer que... quando eu limpo
aqueles corpos, eu sinto no fundo... (Com espanto de si mesma)...eu
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sinto tanta alegria de não estar ali daquele jeito, o senhor entende? Eu
consigo sentir tanta alegria... é quase igual... quando eu era criança, a
visita para os mortos era um passeio lindo para mim, lindo. Eu nunca
ficava triste quando visitava os mortos, eu me dizia: eles não sentem
mais nada, e eu estou aqui respirando e dentro de mim havia um
frescor, eu respirava várias vezes, sempre repetindo: eu estou viva, eu
estou viva... e tudo em volta de mim era vida...apesar dos mortos. Eu
olhava para o céu e de vez em quando passava um bando de
passarinhos e eu me lembro que um dia... quando eu era ainda tão
pequena... eu fiquei tão contente de estar ali, perto dos mortos, mas
viva, fiquei tão contente de estar viva... eu era tão pequena...sabe o
que eu fiz? Eu levantei o meu vestidinho e comecei a rodar a rodar a
rodar, até que minha mãe pensou que algum espírito tinha me
possuído, imagine... ela chegou a pensar isso... um espírito.
Carcereiro (Simulando suavidade) Eu, o demônio? Mas é você que vem das
fornalhas... você é que ajuda, (Ri) olha, sua mãe devia estar certa...
um espírito te possuiu... você é que ajuda as aves da noite, você
ajuda, fazendo aquela limpeza você ajuda. (Aproxima-se da Mulher)
Deixa ver as tuas mãos. (A Mulher recua) Mostra as tuas mãos.
Maximilian (Para o carcereiro) São iguais às nossas, não há nada para ver, deixa!
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Mulher (A Mulher cruza os pulsos junto à fronte, as palmas das mãos rígidas
para fora, temendo tocar-se) Elas não eram assim, sabe, elas não
eram assim, eu te juro.
Maximilian (Voz firme) E por isso mesmo é que elas são limpas.
Mulher (Para Maximilian, docilmente) São limpas sim, não é mesmo? São
limpas... (Encurva as mãos em direção ao peito mas ainda não ousa
tocar-se)
Carcereiro Não, merda, não é suficiente! Alguém tem que sofrer mais do que eu,
eu sozinho não agüento, não agüento.
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Carcereiro (Álgido) Eu olho para você, Maximilian, e sei que estou sozinho.
Pausa.
Maximilian (Agoniado) Mas por quê? Por quê? Você não pense nem por um
segundo que é fácil... é que... vocês é que me ajudam... sem vocês eu
não agüentaria.
Carcereiro (Com ironia) Você não agüentaria sem mim? Eu te faço tudo mais
fácil, não é? Vocês ouviram? Ele não agüentaria sem nós. (Violento e
muito próximo a Maximilian) Você mente! Você agüentaria sua mãe
apodrecendo na tua frente, e você agüentaria sozinho. (Ri) Não
agüentaria... (Voz muito alta, angustiada) Sofre um pouco, homem!
(Mais brando) Olha pra mim, Maximilian, vamos olha. (Muito
emocionado) Me abraça, abraça este corpo que apodrece, porque o
meu corpo... o meu corpo apodrece. (Maximilian tenta abraçá-lo)
Maximilian Mas por quê? Por quê? Ela é obrigada a fazer aquele serviç o. (Voz
crescente) Não é fácil, não é fácil, ela é obrigada!
Mulher Eu? Você quer dizer que eu... (Desesperada) isso eu nunca vou
fazer... você me acredita Maximilian? Eu não faço nada com as aves,
as aves são eles, não é? Com as aves não... eu nunca fiz nada com as
aves.
Carcereiro (Com sarcasmo) Você vai fazer, você fará, pra viver, pra viver.
Joalheiro (Para o estudante) Você ainda não olhou direito para ele, olha para
ele e olha pra você agora, e pra mim... ratos... nós... ratos num canto.
Maximilian (Continua no tom anterior) "E todos comeram uma mesma comida... e
todos beberam uma mesma bebida."
Mulher (Para o carcereiro, sôfrega) Pega na minha mão. Seja bom, pega. Se
você pegar na minha mão...
Maximilian (Brando, no tom anterior) "O olho não pode dizer à mão: não tenho
necessidade de ti. Nem a cabeça pode dizer aos pés: não tenho
necessidade de vós."
Pausa.
Fora ouvem-se vozes de vários SS. Deve ficar claro para o público que estão estuprando uma
mulher que está morrendo. frases assim, por exemplo:
- assim
- segura mais firme
- abre mais
- a cadela não abre
- merda
- isso, mete agora
- mas vai homem
- vai de uma vez
- merda, ela está morrendo
- depressa, depressa
(Risadas, vozes, ruídos)
- tira ela daí agora
(Ruídos)
Pausa longa.
Joalheiro (Lento para o estudante) Você conhece alguma coisa mais forte do
que a pedra? Algum...algumas pedras não são muito resistentes,
vocês sabiam?
Estudante Quais?
Mulher Ele está melhor, sim. (Para o Carcereiro) Agora está passando, não
é?
Carcereiro (Com ironia) Eu estou ouvindo. Então nós vamos pedir a Deus o que
Maximilian? Só amor, só isso?
Maximilian E misericórdia.
Maximilian E coragem.
Maximilian, a Mulher e o Carcereiro estão todos juntos e entende-se apenas uma fala
monocórdica de Maximilian, como uma longa oração. Paralelamente, há um dialogo entre o
estudante e o joalheiro.
Estudante Imaculada.
Joalheiro E as serpentes?
Pausa.
Estudante E os filhos?
Joalheiro Ela dizia que uma alma masculina tinha entrado no seu corpo.
Joalheiro E quando uma alma masculina entra no corpo de uma mulher... ela
nunca tem filhos, você sabia?
Estudante Não.
Joalheiro Olha este chão, olha. É neste chão que nós estamos morrendo, não
é?
Estudante Sim.
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Joalheiro (Tensão crescente) Eles vão se lembrar. Daqui a vinte anos eles vão
se lembrar de nós. Cada um, a cada dia, a cada noite, vai se lembrar
de nós. (Estudante começa a sorrir) Você está sorrindo?
Estudante (Desesperado) Maximilian! Diz pra ele que todos vão se lembrar da
gente, diz, eu não posso... não posso. Eles vão dizer que nós, que nós
somos uma porca invenção.
Pausa.
Mulher Do rei? É uma estória antiga... e depois o rei... deu um nome a essas
três coroas, não é isso?
Entreolham-se e sorriem.
Mulher Ela? Ah, já sei. Uma que você amou. Ela era assim? (Passa as mãos
sobre o rosto) Como eu?
Carcereiro (Grita) Maximilian! Vem cuidar da minha alma. Os porcos têm alma.
Estudante (Interrompendo sorrindo) Clara. Uma fivela clara. Ela dizia que as
ratazanas...
Estudante (Voz muita alta)... que as ratazanas tinham alma. Você acredita? (Ri)
Você acredita?
Carcereiro (Em grande tensão) Maximilian! Você ainda não me disse... você só
me falou de uma noite infinita, não é isso? (Voz muito alta) Mas isso
não basta para quem vai morrer, isso não basta.
Joalheiro (Delirando) Que brilho! É a mais bonita que eu já vi! É toda feita de
sangue.
Maximilian (Muito veemente) Mas não assim tão fácil, olha, foi preciso que
primeiro eu o devorasse para que depois pouco a pouco ele se
alimentasse de mim. Eu também, eu também sou o lobo desse Deus.
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Maximilian (Delicado) Ele ficará dentro do teu peito com o nome que você
quiser. Qualquer nome.
Mulher Assim?
Joalheiro (Num grito) Sustenta-me Adonai, para que o teu sangue e o meu
sejam apenas um.
Maximilian aproxima-se do joalheiro. Diz algumas palavras: "Meu amigo, meu bom amigo!"
Maximilian tenta rezar.
Carcereiro (Para Maximilian, lentamente) Então esse amor não é nada suave
como eu ouvia dizer... o teu Deus não é nada suave.
Maximilian (Desesperado) Mas para nós, eu não te disse? Para nós foi
predileção, você compreendeu? Predileção! Amor sem limite. (Para o
joalheiro) Eles vão se lembrar, fique certo de que eles vão se lembrar.
SS (Com as mãos para trás, escondendo alguma coisa) Que paz! Que
tranqüilidade. Que silêncio, não acha Hans? (Para a Mulher) Prestou
algum serviço?
Continua gritando "volta" enquanto o SS agride-o várias vezes, tentando fazê-lo calar. Durante
a agressão do SS Maximilian tenta interferir mas recebe golpes violentos. A Mulher segura
com rapidez e desespero as mãos de todos, o estudante tenta segurar a Mulher mas Hans
afasta-a violentamente, derrubando-a. A Mulher abraça as pernas de Maximilian mas é
arrastada para fora da cela.
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FIM
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Hilda Hilst
O VERDUGO
(Peça em dois atos)
1969
58
PERSONAGENS
Filho Jovem.
Filha 28 anos.
Carcereiro ???
1o ATO
CENÁRIO:
Casa modesta, mas decente. Sala pequena. Mesa rústica. Dois bancos compridos junto à
mesa. Um velho sofá. Uma velha poltrona. Uma porta de entrada. Outra porta dando para o
quarto. Paredes brancas. Dois pequenos lampiões. Aspecto geral muito limpo. Nessa sala não
deve haver mais nada, nada que identifique essa família particularmente. Morem numa vila do
interior, em algum lugar triste do mundo. Mesa posta. O verdugo, a mulher, a filha e o filho
estão sentados à mesma. A mulher deve estar servindo sopa ao marido. É noite.
Filho O pai sabe que é imundície tocar naquela corda que vai matar o
homem.
Filho (Exaltado) Por quê? Por que é que eu tenho de calar? Você pensa
apenas em você. E se o pai vai ganhar dinheiro por fora desta vez é
porque é mais difícil matar aquele homem do que qualquer outro.
Filho (Dócil) Mas vão falar, vão falar. Espera, pai. (Pausa) O pai sabe que
o homem dizia coisas certas. O homem é bom.
60
Filha Bom, bom (Com desprezo) Ha, ha, ele pôs fogo em todo o mundo.
Fogo, só isso.
Mulher Bondade é dar dinheiro para encher a barriga. Ele te deu dinheiro,
por acaso?
Mulher (Para o filho) A sua irmã é uma estúpida para não compreender o que
você fala? Deixa de ser bobo, menino. Começou a estudar outro dia
mesmo.
Filho O homem falou que encher a barriga é importante, mas que não é
tudo.
Mulher Não? Não? Quem sabe se ele quer encher (Põe a barriga para frente
e contorna-a com as duas mãos) a barriga das mulheres, hein? É isso
que o homem também quer?
Filho (Manso) Pára, mãe. Ninguém aqui na vila quer que o homem morra, a
senhora sabe.
Mulher Ninguém aqui na vila... E quem são esses coitados? Cuida da tua
vida, menino.
Filha É sim, meu pai. O senhor o defende sempre. Por quê? Ele é melhor
do que nós? Eu também não sou sua filha?
Verdugo O??? merda, mulher! A minha cabeça agüenta algum tempo, depois
eu me esqueço, ouviu? Me esqueço que sou um homem e viro...
chega! (Pausa. Brando) O homem tem uma cara impressionante.
(Pausa)
Filha Por dentro ninguém sabe como ele é. Ninguém sabe como ninguém é
por dentro.
Filha (Para o irmão) Mas vou deixar de ser. Vou casar, vou ter filhos...
Filha (Exaltada) Com aquele, sim. E vou deixar de ver a tua cara. Isso já
será um grande consolo.
62
Mulher (Para o filho) O seu pai precisa descansar. E vai aceitar o serviço,
sim. (Para o verdugo, branda) Não é?
Mulher Trate de ficar sabendo logo. Não é o primeiro nas tuas mãos.
Mulher Eu quero dizer que ele é igual a todos os outros filhos da puta que
morreram porque a lei mandou. (Para o verdugo, sorrindo com ironia)
Você se lembra daquele que parecia um anjinho? Hein? Lembra?
Todos diziam...
Mulher ...mas os outros diziam: ele tem cara de anjo. E vocês se lembram do
que ele fez? (Para o verdugo e para o filho) Se lembram? Conta, filha,
porque aquele outro anjinho foi condenado.
Mulher E depois?
Mulher (Para o verdugo) Não, espera. (Para a filha) E por que ele queimou
as plantas dos pés e as mãozinhas dos meninos? Hein, filha?
Mulher Para fazer aquela porcaria, não é? Então, e muita gente dizia que ele
parecia um anjinho.
Verdugo Eu não.
Filho Mas esse é diferente, não é nada disso, mãe. Esse só falou.
Mulher Deus, Deus, onde é que está esse Deus? (Para o filho) Não foi você
mesmo que andou lendo que naquele lugar, lá longe...
Mulher Sei lá, na Índia, onde for, as criancinhas de seis anos vão para o
puteiro? Deus, Deus... e depois não foi você mesmo quem disse que
se elas não fossem para os puteiros aos seis anos, elas morreriam de
qualquer jeito, de fome? Hein?
Mulher Então deixa o teu pai fazer o serviço. Se Deus não consegue ajudar
aquelas criancinhas, você acha que esse homem é que vai nos ajudar?
(Pausa)
Mulher (Impaciente) Mas não é você quem vai matar. É a lei que mata. Você
é o único aqui na vila que pode fazer o serviço. Ninguém mais. Ora,
que besteira.
Verdugo Mas a gente da vila não quer que o homem morra. O povo...
Mulher (Interrompe) Deixa disso, o povo é filho da puta, eles fazem assim só
pra não dar o gosto pra aqueles juízes.
Filho Os juízes estavam cansados. Você viu, mãe? Eles quase se deitavam
sobre a mesa. O rosto dos dois estava branco. E as mãos também.
Eles suavam.
Filha Mas você é besta mesmo, não? Por que eu havia de sentir medo
daquele homem? O homem não é nada meu, é só um homem que
falava, falava... (Pausa) Idiota.
Verdugo (Manso) Não sei, meu filho, não sei. (Pausa) É muito difícil para mim.
É assim como se eu tivesse que cortar uma árvore, você entende? Eu
nunca derrubei uma árvore, eu não saberia, é difícil, não é o meu
ofício.
Mulher Uma árvore... Você cortou cabeças, enforca gente e fala de uma
árvore. Parece que está louco.
Verdugo De perto, meu filho... ele parece o mar. Você olha, olha e não sabe
direito pra onde olhar. Ele parece que tem vários rostos.
Verdugo (Para o filho) ...de repente, ele olha firme, você sabe? Assim como se
eu te atravessasse. É muito difícil olhar para ele quando ele olha
assim. E depois... ele também pode olhar de m jeito... Você se
lembra daquele cavalo que um dia te seguiu?
Filha (Rindo) Quem é que não se lembra? O cavalo não agüentava subir
aquela ladeira. O dono do cavalo dava umas pauladas no focinho do
coitado. (Ri. Para o irmão) Aí você gritou: se você é tão macho para
bater em mim como bate nesse cavalo, eu corto o meu... (Ri) e pulou
em cima do homem como um leão. O coitado fugiu feito doido. E o
cavalo só podia te seguir, lógico. (Ri) Até o cavalo compreendeu. Foi
engraçado aquele dia. (Todos riem. Pausa)
Mulher Mas o que adianta vocês ficarem falando que ele é bom, se ele tem os
olhos do cavalo ou não? (Para o filho) O homem tem de morrer e é
seu pai quem vai fazer o serviço. E vai ganhar bem desta vez. Vamos
começar outra vida, tenho certeza. (Batem na porta)
Mulher (Para a filha) É o teu noivo. Abre. (A filha vai até a porta. Abre e
fecha rapidamente. Entra o noivo)
Mulher (Amável) Boa noite, meu filho. Senta. Já jantou hoje? (O noivo faz
uma cara apreensiva) Mas que cara!
Noivo É.
Mulher E a casa desse jeito. Nem tirei a mesma. (Tenta tirar as coisas de
cima da mesa)
Verdugo Manda entrar, mulher, vai. Eles sabem que a casa é assim mesmo. (A
mulher vai abrir a porta)
Mulher Entrem, por favor, Excelências. (Os juízes entram) Não esperávamos,
está tudo ainda... (Mostra a mesa em desordem)
Mulher Esperamos, mas (Apontando para o noivo) ele está sem serviço.
(Pausa longa)
Juiz jovem Não, não, temos um pouco de pressa. Ainda não fomos para nossas
casas. Nem pudemos tirar essa roupa. (Olha para a toga)
Filha Acho que sim (Olha para o noivo), não é? (Olha para o juiz jovem.
Sorri. Os juízes sorriem. Pausa)
Juiz jovem (Para o verdugo) Bem, o senhor sabe como é... o homem... tem de
morrer.
Juiz velho (Para o verdugo) Ele falou demais. O senhor compreende? E boca
deve ter uma medida.
Filha (Sorrindo para o juiz jovem) Eu não entendia bem o que ele falava.
Juiz velho Nem era para entender, minha filha. Ninguém entendia.
Filha (Olhando para o juiz jovem. Sorrindo) E depois sempre havia tanta
gente... Eu não conseguia chegar muito perto.
Mulher (Para os juízes) A gente é curiosa. Só ia pra ver, ver como era, os
senhores sabem.
Noivo (Sorriso idiota) Aqui a gente não tem nada pra ver.
Mulher Ah, está sim, ele não precisa se preparar muito. (Sorri) É o ofício
dele, de sempre (Para o marido), não é?
Juiz jovem Espera um pouco, senhora. (Olha para o rapaz) O moço quer dizer
alguma coisa?
Mulher Ele não quer dizer nada, Excelência. Ele é um menino, só isso. (Para
o filho) Vai.
Juiz velho (Para o filho) Você acha que a lei se enganou, meu filho?
Mulher Por favor, excelências, o meu menino não sabe nada. Começou a
estudar há pouco tempo.
Juiz jovem Você acha então que é bondade falar o que ele fala?
Filho (Para o noivo) Morreu porque mataram. Não foi o homem quem
matou.
Juiz velho (Para o filho) Morreu, meu filho, porque o homem enlouqueceu as
gentes. Agitou.
Juiz jovem Deus não é alguém que vive na boca desse homem. Deus está dentro
do nosso coração. Não é preciso falar Dele a toda hora. (Pausa)
71
Mulher (Para o verdugo) Fala, homem, eles não podem perder tempo. (Para
os juízes) Ele é um bom profissional. Nunca precisou de ajudante. A
mão dele é firma, grande (Procura mostrar a mão do verdugo para os
juízes. O verdugo encolhe as mãos)
Mulher Mas o que é que tem mostrar a tua mão para as Excelências? (Insiste,
pega nas mãos do verdugo) Estica, estica assim.
Juiz jovem (Para a mulher) Nós sabemos que ele é um bom profissional.
Filha (Em tensão) O pai está cansado, é isso. Passou o dia inteiro lá, vendo
o peso do homem, preparando tudo, os senhores sabem.
Juiz jovem (Para a filha) Mas é preciso saber se o seu pai está preparado para a
execução.
Verdugo (Cabisbaixo) Não é bem assim... não é... é que... eu não me sinto
capaz.
Juiz velho Mas isso é para nós um terrível contratempo. O senhor sabe que é o
único na vila credenciado para esse serviço.
Juiz jovem (Para todos) Os senhores viram que fizemos todo o possível.
Juiz jovem (Para todos) Ele teve todos os direitos. Fizemos tudo.
Juiz velho (Para todos) Nada lhe foi negado. Então... (Pausa)
Juiz jovem (Interrompe) Mas não é a vila que julga o homem. Pra isso nós
existimos. Já dissemos, foi tudo dentro da lei.
Juiz velho (Para o verdugo) Procure entender... escute: o senhor terá... regalias.
Verdugo Dinheiro?
73
Verdugo Mas nunca foi preciso qualquer coisa além daquilo que eu ganho,
para fazer o meu serviço.
Juiz jovem Mas... como é um caso difícil, nós entendemos que será justo ajudar
o senhor.
Verdugo Difícil?
Noivo (Sempre com o mesmo sorriso alvar) A vida é difícil para todos, não?
Eu, por exemplo...
Juiz jovem (Para o verdugo) Difícil, sim, porque as pessoas não querem
entender.
Juiz velho (Para o casal de noivos) Vocês pensam fazer uma casa aqui na vila?
Filha (Sorrindo) Nem sei. (Olhando para o noivo e para o juiz jovem) Nem
sei.
Juiz jovem (Sorrindo para a filha) Eu tenho alguns terrenos muito bons. Junto à
praça. (Olha para o noivo também) Se quiserem, podem falar comigo
depois de amanhã. (Olha para a filha. Sorri mais aberto) Podemos
combinar.
74
Noivo (Para a noiva) Combina sim. (Para o juiz) Ela vai, ela vai.
Filha (Para o juiz. Sorri) Depois de amanhã. (Para a mãe. Contente) Mãe,
a gente vai ter tudo.
Filho (Seco) Depende do pai. Ele ainda não respondeu. Todos olham para
o verdugo. (Pausa tensa)
Mulher (Para o verdugo) Você não vai fazer? (Pausa) Hein? (Pausa) Pois eu
faço.
Mulher (Para o verdugo, encarando-o) Se você não fizer o que eles mandam,
eu faço.
Mulher (Irada) Eu posso fazer o serviço que o seu pai faz, mas que agora por
estupidez não quer fazer. Ninguém vai desconfiar de nada. Eu sou do
tamanho dele (Encosta-se ao verdugo), olhem. Eu tem o capuz.
(Todos estão surpresos)
Mulher (Para o verdugo) Claro, homem eles deixam. (Os juízes continuam
calados)
75
Filho (Em tensão) Isso está certo. O pai tem razão. Não é permitido.
Filha (Desesperada, para o irmão) Você quer estragar a nossa vida? Sai
daqui.
Juiz jovem Deixa, ele pode ficar. (Aproxima-se do jovem) Olha, moço, você vai
entender. (Para o verdugo) O senhor também. Não temos muito
tempo para explicar... mas...de uma certa forma também cumprimos
ordens. Há gente mais importante do que nós. Devemos dar atenção
a certa gente.
Juiz velho (Aproximando-se do filho) Meu filho, escute. (Põe a mão no ombro
do rapaz)
Juiz jovem Escutem, não façam tanto barulho, afinal, não queremos
complicações.
Mulher É claro, Excelência, mas estou perdendo a cabeça com esse menino.
Juiz velho O moço não tem culpa. Pensa que o pai está certo.
Filho (Emocionado) Eu sei que o pai está certo de não querer matar o
homem, porque o homem não fez nada. Nada!
Juiz jovem (Para a mulher, objetivo) A senhora acha que pode fazer o serviço?
Mulher (Olha para o marido, para o filho, hesita um pouco, mas olha em
seguida para a filha e resolve) Posso, muito bem até.
Verdugo (Muito emocionado) Mulher, não fala assim. Você não vai fazer nada.
Mulher (Exaltada) Não vou fazer? Eu não tenho medo de você. Eu é que
sei... Entra ano, sai ano, é sempre esse desassossego de não saber o
que vai ser de nós. (Olha para os juízes) Deviam pagar melhor os
verdugos, sem eles a vida não fica fácil nem para Vossas Excelências.
Sem os verdugos não há segurança. (Para o marido, suplicante)
Homem, pensa no teu filho também...
Mulher Ah, pensa? Não é você, seu desgraçado, que diz todo dia que não
quer mandado por ninguém? Que quer correr o mundo e falar com as
gentes? E você pensa que vai poder fazer o que quer se não estudar?
E para estudar precisa dinheiro, desgraçado, dinheiro.
Filho Eu não quero mais nada, mãe, eu não quero nada à custa da morte
desse homem.
Juiz velho Isso é verdade, moço. Pela lei, ele já está morto.
Noivo (Para o filho) Olha, meu chapa, a vida é assim mesmo. Todo mundo
morre.
Mulher Arranjar outro? Dar o dinheiro pra outro? Não tem ninguém pela
redondeza, Excelência. Os senhores teriam de viajar muito. E ninguém
vai querer. E não há mais tempo.
Juiz velho Pois é por isso é que estamos aqui. Mas o seu marido não quer o
auxílio. (Batidas leves na porta)
Mulher Bateram.
Filha Não.
Juiz jovem Espere, não abra. (Vai até a porta) Quem é? Fala quem é.
Voz do carcereiro (Aflito) Sou eu, sou eu, o carcereiro. Eu preciso falar com as
Excelências.
Juiz velho (Indo até a porta) Tem alguém junto com você?
Voz do carcereiro (Aflito) Não tem ninguém, abre por favor. Abre. (O juiz velho abre a
porta. Entra o carcereiro)
Juiz jovem (Para o carcereiro) Diz direito o que é que há, homem.
Carcereiro Boa noite, para todos, então. (Para o filho) E você deixa de ser
atrevido, hein...
Juiz velho (Para o verdugo) Quer dizer que lá está tudo preparado? Lá na
praça?
Verdugo Não. Os senhores não vão matar o homem agora. Isso não pode ser
feito assim. Assim não.
Filha (Voz de choro) Meu Deus, pai, pensa na nossa vida. Quem é esse
homem para você? Um homem que dizia coisas que ninguém sabia
direito o que era...
Verdugo (Para os juízes) Mas está marcado para depois de amanhã. Com a
presença do povo.
Juiz velho (Para o verdugo) O povo estará presente hoje. Nós vamos tocar o
sino da igreja. Mas é preciso que seja hoje. (Pausa. Brando) Eu peço
ao senhor...vamos...faça o que lhe cabe.
Verdugo (Empurrando a filha. Para os juízes) O homem não fez nada. Ainda
tem esperança.
80
Juiz jovem Eu posso obrigar o senhor a fazer. Mas não quero obrigar.
Filha Foi o que eu disse. Ele pôs fogo nas gentes. (Pausa)
Filho (Voz alta) Ele precisava falar daquele jeito para os outros
entenderem.
Filho Não mente. Você sabe muito bem o que ele falava.
81
Juiz velho Amor... é respeitar o povo. Ele não respeitou vocês. Ele insultava
vocês.
Filho (Para a mulher, exaltado) Não é isso, mãe. Ele dizia que os coiotes
não costumam viver eternamente amoitados. Que é preciso sair da
moita.
Voz do
carcereiro (Aflitíssimo) Excelências, abram.
Juiz velho (Para o juiz??? jovem) Abre. (O juiz abre rapidamente a porta)
82
Carcereiro (Entra afoito) Não é possível esperar mais. Agora atiraram uma pedra
na janela. Saio para pegar o desgraçado e nada. A escuridão outra
vez. (Todos entreolham-se) Mandem fazer o serviço depressa,
Excelências, acreditem em mim, eu já estou ficando doente. (Pequeno
silêncio)
Mulher (Para a filha) Traz o capuz. (A filha fica imóvel olhando para o pai)
Mulher (Para a filha, voz de comando com violência) Traz o capuz. (A filha
entra correndo no quarto)
Verdugo (Para a mulher. Como se visse a mulher??? pela primeira vez) Você
tem coragem! Você tem coragem de enganar o povo! O verdugo sou
eu.
Verdugo (Irado, mas com a voz baixa) A mulher me manda calar a boca! (A
filha volta nesse instante com o capuz preto nas mãos, mas pára,
vendo a fisionomia terrível do pai) Calar a boca! (Investe contra a
mulher) Sua porca! (Começa a esbofeteá-la) Miserável! (O filho tenta
intervir, dizendo ao mesmo tempo “Pai, não, não” mas como o
verdugo não pára, os juízes, o carcereiro e o noivo avançam e lutam
para imobilizar pai e filho. Conseguem)
Verdugo Filha. (A filha pára. Os outros estão surpresos por terem conseguido
tanto)
Filha (Um pouco atemorizada) Então troca de roupa, mãe. Põe uma calça
do pai, troca os sapatos. (A mulher entra no quarto)
Filha (Tom suplicante) Pai, o homem já morreu. Não somos nós que vamos
matá-lo. Ele já está morto. Só falta a terra em cima do cara.
Verdugo (Enojado, voz crescente) Uma casa? Esta não é uma casa? O que eu
tenho no corpo não é roupa? O que você veste não é roupa? O que
você come não é comida?
Filha (Para o pai) O senhor não precisa falar assim com ele. Ele é um
homem igual a todos.
Verdugo Um rato.
Juiz velho E não temos mais tempo. (A mulher do verdugo volta do quarto.
Veste calças compridas, sapatos masculinos e capuz preto)
Carcereiro (Para a mulher) Esconda um pouco as mãos, dona. São menores que
as dele.
Juiz jovem (Para o carcereiro) Olhe, preste atenção. Tire o homem de lá. Nós
todos ficamos do lado de fora, vendo se há alguma novidade. (Põe a
mão no bolso da toga e mostra um capuz branco) Depois cobrimos a
cabeça do homem com esse capuz. Em seguida vamos até a praça.
Sem muito ruído, hein?
Mulher Não é preciso que me olhem na cara. Quando muito o que vocês
descobrem é se alguém tem olho de cavalo ou não. Eu tenho olho de
gente. (Aproxima-se do filho) De gente. (Pausa) Vocês vão-me
agradecer depois. Me agradecer.
Juiz velho (Para o carcereiro) Tira a chave. (O carcereiro tira a chave da porta)
Juiz jovem (Para no noivo) Apaga as luzes. (Noivo apaga os lampiões e sorri
para o verdugo e o filho. Batem a porta. Trancam. Semi-obscuridade.
Pausa. Soluços discretos do verdugo. Passos afastando-se)
Filho O senhor não tem culpa. O senhor fez o que pôde. Quem sabe se
está certo o que disseram: o homem já está morto.
Verdugo (Recompondo-se) Nada disso, filho, nada disso. O homem está bem
vivo. Essa lei dos homens não conta.
Filho Essa é a única lei que conta. O senhor não viu? (Pausa)
Verdugo Ele apertou a minha mão. Ele apertou a minha mão de um jeito...
Verdugo Sim.
Filho Somos um só? (Pausa) Ele quis dizer que o senhor é igual a ele?
Filho É assim: ele morre nas mãos do verdugo... que seria o senhor.
Outros, mais tarde, morrerão pelas coisas que ele falou?
(Repensando) E se for assim, ele também será como um verdugo, o
senhor compreende? Será que é isso que ele quis dizer?
Verdugo Acho que não é isso. E depois os verdugos existem há tanto tempo e
esse homem parece o primeiro sobre a terra. EU nunca vi um homem
assim.
Filho A gente talvez não saiba, mas devem ter existido. Se existiram muitos
verdugos... também existiram muitas vítimas. (Repensando) E eles
podem ser iguais?
Verdugo Não sei, meu Deus, eu sei que sinto como se estivessem preparando
a minha morte. (Voa alta) Nós precisamos sair daqui, a sua mãe...
87
Verdugo (Interrompe) Ele era paciente. Tudo mudou... na noite em que fui
verdugo pela primeira vez. Quando voltei para casa e me deitei sem
comer e sem dizer uma palavra, ela perguntou: Você não vai
agüentar? E eu disse o que você acabou de dizer: não fala, não fala,
eu nem posso me mexer de vergonha. (Voz alta) Eu não devia ter dito
isso, ela não entendeu, não era fraqueza... era...
Filho Eu sei.
Verdugo (Voz comovida e alta) ...mas ninguém tem de ser verdugo, se não
fosse eu seria um outro, eu achei que ser verdugo era ser humilde
como eu sou, você compreende?
Verdugo Você não sabe. No fundo, você não entende o seu pai, não é?
Verdugo Fala.
Filho Da planta?
Verdugo Você está ouvindo? Alguém já sabe. Dá um jeito nisso, meu filho. Eu
vou lá, eu vou falar com o povo. (Rapidamente, entusiasmado) Eu
salvo o homem, e enquanto eu estiver lá você vai até o vale, prepara
o barco perto do rio mas não fala com aqueles... eles agora são
capazes de não entender mais. Me espera no barco, compreendeu?
Eu vou até lá com o homem. Você está conseguindo? Vamos, meu
filho. (O filho tenta desesperadamente) Todo mundo vai me ajudar,
eles nunca viram um homem assim, eles gostam do homem, eles
gritavam a vida! a vida! (Pausa) Você não está conseguindo? Filho,
por favor. (Passos apressados lá fora, uma frase: “Mas é agora?” )
89
Eles não vão tocar o sino. Não vão. Mas todo mundo vai acordar,
tenho certeza. Quando eu voltava, hoje, eu vi a porta da igreja
fechada... será que... que o padre não está lá? Será que... não, não é
isso, deve ser uma outra coisa.
2o ATO
Cenário:
Voz de um
cidadão Mas é noite ainda.
Cidadão 1
para o 4 Manda tocar o sino.
Cidadão 2
para o 4 E chama o padre. Ele dá um jeito nisso.
Cidadão 3
para o 4 Avisa a minha gente.
91
(Frases se sobrepondo)
Mas assim ninguém fica sabendo.
Quem não tá aqui é porque não quer ver.
Com todo esse barulho todo mundo já sabe, mas ninguém quer vir.
Deu cagaço na turma.
Frase bem audível Acho que hoje ele foi até o vale. No asilo.
Juiz jovem Senhores... a lei precisa ser cumprida. (Frases dos cidadãos: “Mas o
homem não fez nada” - “Ele só falava” - “Você entendia?” - “Era só
depois de amanhã”)
Cidadão 5 Mas ninguém entendeu o que as Excelências disseram. Foi uma fala
enrolada. (Frases: “Nós queremos saber direito” - “Claro” -
Rumores)
92
Juiz jovem O homem enganou vocês. Colocou vocês contra a lei. Agitou.
Juiz jovem Vocês não viviam em paz? (Frases: “Paz é no enterro” - “Mas não
durante, só com a terra por cima”)
Cidadão 5 (Para o juiz) Que paz? (Uma frase: “Na minha barriga é que tem
muita paz” - Risos)
Cidadão 1
para o 5 (Empurra-o para o patíbulo) Vai, fa la você, sabe explicar. (O número
5 sobe no patíbulo. Entre o verdugo, correndo)
Cidadão 6 (Para a mulher) Tira o capuz! Tira o capuz! (A mulher tira o capuz.
Cidadãos A mulher! É mesmo a mulher! Sai daí de cima! Sai! (Os juízes fazem
com que a mulher fique. Rumores)
Juiz jovem Esperem, nós podemos explicar. (O verdugo fica no meio dos
cidadãos, tentando convencer uns e outros)
Cidadão 5 Mulher não pode ser verdugo. (Frase solta: “A minha bem que podia”
- Algum riso - Rumores)
Juiz velho Esperem , nós queremos ser honestos com vocês. (Risos mais
audíveis) Escutem, se nós não cumprirmos a lei agora, amanhã vocês
é que serão mortos. (Frases: “Nós?” - “Mortos?” - “Por quê?”)
Cidadão 5 (Para os juízes) Por que a mulher está aí? (Frases dos cidadãos: “É
isso mesmo” - “Isso não pode” - “Por que, hein?”)
Juiz jovem (Apontando o verdugo) Esse homem não pode mais ser verdugo.
Não tem mais coragem.
Cidadão 5 Ninguém vai matar ninguém aqui. (Frases dos cidadãos: “Soltem o
homem” - Aproximam-se mais do patíbulo. Para os juízes) Soltem o
homem!
Juiz jovem (Dando alguns passos à frente) Vocês serão todos mortos. Mortos.
(Os cidadãos estaqueiam. Para o outro juiz) Mostra o papel. (Alguns
cidadãos recuam)
Juiz velho (Tirando um papel do bolso da toga) Nós vamos ler o que só teria de
ser lido em caso de extrema necessidade. (Desdobra o papel)
Senhores, este é um documento dirigido a nós, os juízes. (Começa a
ler) As autoridades esperam que o lúcido critério de Vossas
Excelências torne possível a execução do homem, dentro de um
prazo mínimo. Como é nosso dever proteger o povo, zelar por suas
vidas...
Juiz velho Como é nosso dever proteger o povo, zelar por suas vidas, estender-
lhe a mão...
Juiz velho Silêncio... (Continua a ler) ...lutar contra toda espécie de ameaças,
sejam elas sutis ou definidas...
Cidadão 5 Sutil.
Cidadão 4 E sutil?
Filha (Aflita) Mas amor é... (Não sabe o que dizer mas lembra-se da fala
do juiz. Olha para o juiz jovem) ...comedimento.
Filha (Com raiva) A gente deve matar aqueles que nos confundem.
Verdugo O que ele falava... era verdade. Ainda que fosse para daqui a muito
tempo.
Cidadão 4 Falava do jeito que falava pra gente não pensar na barriga de hoje?
Filha Mas enquanto o padre está por perto você pensa que está aliviado,
não é?
Cidadão 5 E daí?
Filha (Apontando para o homem. Voz muito alta) Esse homem é como um
padre na hora da morte. Só isso. Mais nada. (Silêncio completo)
Cidadão 5 (Irritado) Mas que mulher enrolada, pôxa. Parece até uma bobina. Eu
já nem sei o começo da conversa. (Os outros cidadãos concordam)
Escutem, vamos fazer uma coisa.
Todos os
cidadãos Fala, fala.
98
Cidadão 1 Bem... eu acho que mais ou menos o homem falava a coisa certa.
Cidadão 1 Ele falava que é preciso conhecer o que mais nos oprime.
Cidadão 3 Se era isso, não adianta. Eles não estão sozinhos. A coisa vem de
cima.
Filha Não adianta vocês fazerem isso, ele já foi julgado. (Os juízes dão
sinais evidentes de impaciência)
Cidadão 4 Pra mim ele me deu vontade de matar. (Rumores mais audíveis)
Cidadão 1 Eu só tive vontade de matar quando olhei na cara daquele que matou
os menininhos.
Cidadão 4 Porque eu entendi muito bem o que ele falava. Mostrar a cara de
bicho não é tudo, porque o bicho também tem garra.
Cidadão 3 (Para o verdugo) E se você é bicho e tem cara e tudo de bicho, você
só mostra a cara?
Juiz velho Me escutem um pouco, por favor, me escutem. Tudo isso nã o vale
nada. Julgar um homem não é simples assim. Vocês querem saber?
Com pouca palavra? É isto: tudo é como uma roda girando há muito
tempo. Às vezes estamos no alto, outras vezes não.
Cidadão 5 Isso é bem simples. Mas vocês é que estão no alto há muito tempo.
Juiz velho Se vocês não matam o homem agora, os outros de cima vão matá-lo
de qualquer jeito.
Verdugo Escutem, meu filho está no vale perto do rio. Eu levo o homem até lá.
O homem foge, eu volto. E fica tudo em cima de mim.
Cidadão 5 Ele sabe muito bem o que diz. (Para o verdugo) Qual dinheiro?
(Pausa) Que dinheiro é esse?
Juiz jovem Silêncio, por favor. (Pausa) Oferecemos sim. Oferecemos dinheiro
para salvar vocês.
Cidadão 5 E vocês sabem se eles (Aponta os juízes) vão dar o dinheiro para
nós? (Silêncio. Expectativa tensa)
Carcereiro Não é permitido tirar esse capuz. O senhor não pode fazer isso.
Verdugo (Para os cidadãos. Voz muito alta) Mas vocês não queriam matar o
homem! Um de vocês gritou! A vida! A vida! O carcereiro ouviu.
(Para o carcereiro) Conta. (Para os cidadãos) Foi um de vocês!
Carcereiro Eu não estou bem certo, não. Acho que era voz de mulher.
Cidadão 1 O homem parecia bom, mas a tua filha disse que ele falava do jeito
que falava pra gente não pensar na fome de hoje. E isso é bondade?
Verdugo Mas é tudo mentira. Ela falou assim por causa do dinheiro.
Juiz jovem O homem esteve sempre contra vocês. Qualquer um que põe o povo
contra as autoridades está contra vocês.
Juiz jovem Ofereceram dinheiro para que vocês se animem e nos ajudar.
Verdugo Mas gente! Ofereceram dinheiro foi pra mim, não pra vocês. Eles não
queriam ajudar nada.
Cidadão 6 E você não quis por quê? A tua barriga está mais cheia do que a
nossa?
Verdugo Porque não era justo. Não era justo (Tom suplicante) Vocês não
queriam.
Cidadão 1 É que era difícil entender, homem. Todo mundo fala de um jeito difícil,
a gente se atrapalha. (Aproxima-se um pouco do patíbulo)
Cidadão 5 O padre deve ter ido até o vale. Foi no asilo daqueles. E quando ele
vai pra lá ele fica a noite inteira. (O verdugo olha desesperadamente
ao redor, como se procurasse alguém)
Mulher (Para o verdugo) Homem, agora é demais. Deixa eles fazerem o que
é preciso. Você tem a mim e a seus filhos. Deixa o homem morrer a
morte dele.
Cidadão 3 Mas afinal esse homem é teu parente ou o que é? Você prefere ele a
nós. (Rumores) Olha, nós vamos fazer uma comunidade onde todo
mundo vai entrar e melhorar de vida. Com esse dinheiro que
ofereceram, todos vão trabalhar e encher a barriga. Você também
não tem filhos? A moça (Aponta a filha) não vai casar com aquele ali?
(Aponta o noivo)
Cidadão 3 E de qualquer jeito, ninguém vai entender o que ele fala. (Para o
verdugo) Anda logo com isso. (Expectativa. Silêncio)
Homem (Lentamente) Eu não soube dizer. Eu não soube dizer como devia. Eu
não me fiz entender. Eu não me fiz entender. (Para o verdugo) Faz o
teu serviço. (Silêncio completo)
Cidadão 1 Olha o filho dele. (O filho pára, olha em torno, olha para o pais)
Cidadão 5 Não deixem o moço chegar perto, ele vai atrapalhar. (O carcereiro
segura o filho)
Cidadão 3 Fica quieto, moço. O seu pai já tem muita encrenca, fica quieto. (O
filho tenta chegar perto do pai mais uma vez)
Cidadão 6 (Para o verdugo) Faz logo o serviço, anda. (Cidadãos todos juntos:
vai, vai, vai)
Cidadão 5 (Empurrando a mulher) Não, agora ele vai ficar e fazer o serviço.
Filho (Desesperado, voz baixa) Pai, meu pai. (A mulher tenta novamente
aproximar-se, mas é empurrada. A filha tenta também aproximar-se.
O noivo está quieto no mesmo canto)
Filha (Voz alta, exaltada) Eu disse, ele está doente, não façam nada com
ele. (Olha para os juízes. Os cidadãos aproximam-se perigosamente
do patíbulo. Os juízes descem. Nesse instante entram na praça os
dois homens-coiotes. Estão vestidos da seguinte maneira: calça e
camisa comuns, cabeça e rosto de lobos, mãos para trás. Ficam de
frente para o público, examinam o público fixamente e depois voltam
as cabeças em direção ao patíbulo. Tem-se a impressão de que não
foram vistos por nenhum dos cidadãos, nem pelos juízes etc. Apenas
o filho do verdugo dá a impressão não só de que os conhece, mas de
que os esperava)
Cidadão 5 O homem tem de morrer. Vamos, vai andando. (Entra em luta com o
verdugo, os cidadãos atacam em conjunto, o filho tenta escapar das
mãos do carcereiro, mas não consegue. Frases: “Mata logo o
homem” - “Mata do nosso jeito”)
Voz do verdugo (Com intensa comoção) Não. Não. Eu morro, mas... (Frase: “Então
morre” - Começam a dar pauladas no homem e no verdugo. Cena de
intensa violência. Frases soltas: “Dá uma no olho de cavalo” - “Toma
você também, seu porco” - Terminam a chacina. Recuam
vagarosamente. Silêncio esticado. Descem do patíbulo. Vê-se o
homem e o verdugo lado a lado, mortos)
Juiz velho (Quebrando o silêncio) Nós não queríamos que fosse assim. (Mulher,
filha e noivo se unem amedrontados, num canto. O carcereiro solta o
filho e este sobe no patíbulo e olha para o verdugo, estarrecido)
Cidadão 5 (Pára, olha para os juízes que também vão saindo) Daqui a algumas
horas nós passamos por lá.
Juiz jovem (Para o juiz velho) Eu não agüento mais esta roupa.
Cidadão 1 Eles têm uma cara diferente da nossa... (Param um instante, mas não
chegam perto) ... um olho...
Cidadão 2 Um olho que atravessa. E dizem que são esquisitos. Dizem que
quando eles falam, a boca se enche de sal.
Os homens coiotes atravessam a pequena praça junto com o filho do verdugo. Quando estão
saindo, um foco de luz violenta incide sobre as mãos dos homens-coiotes. As mãos estão
cruzadas na altura dos rins, e deve ser visto claramente que são patas de lobo, com grandes
garras.
FIM
108
Hilda Hilst
A MORTE DO PATRIARCA
1969
109
PERSONAGENS
O Papa 60 anos
O Cardeal 45 anos
O Monsenhor 25 anos
Anjo número 1
Anjo número 2
Três jovens
110
CENÁRIO
Anjo 1 (Fechando um livro com ruído. Para o Demônio) O Senhor acha que
está na hora de intervir?
Demônio Perfeitamente/
Demônio Cansaram-se.
Anjo 1 De quê?
Ano 1 Comem?
Demônio Empanturram-se.
Anjo 2 E as criancinhas?
Demônio Gordas.
Anjo 1 E os políticos?
Demônio Não mais. (Na cena de baixo, o Papa faz um gesto de desânimo de
um bom lance do Cardeal. Não é um lance definitivo, mas o Cardeal
comeu-lhe uma boa pedra. O Demônio vê o lance. Para os anjos)
Olhem, aí há um problema.
Anjo 1 (Para o Demônio) O senhor não está com boa cara. Lembre-se de
que nesta hora nós precisamos estar unidos... e o senhor nos
prometeu... (O Papa faz novo gesto de desalento com ruído, o que
interrompe a fala de cima)
Anjo 1 (Voz um pouco baixa. Para o anjo 2) Como foi que eles se
agüentaram tanto tempo? (O Demônio dá risadas discretas.
Apreensivo) Ele ouviu?
Anjo 1 (Para o Demônio) É por milagre então... que eles ainda estão lá? Não
há outra explicação?
Demônio Não. (Neste momento entram na cena de baixo três jovens vestidos
apenas com pequenas sungas e carregando as estátuas de Mao, Marx
e Lenin. O público deve ver rapidamente as placas onde estão
escritos os nomes dos três. As placas estão fixadas nas estátuas e os
114
Demônio (Olhando para baixo) Carregados. (Sorri) Mudos. E não se fala mais
deles. (Pausa)
Demônio Não, não, não foi assim. Tudo começou com um ataque ao sistema
de concorrência.
Anjo 2 Não comece a discursar, por favor, porque o pessoal corta esse
pedaço. E, na verdade, o que a gente se lembra mesmo é só aquela
estória da propriedade.
Anjo 2 Eficiente.
115
Demônio Eficiente.
Anjo 2 (Folheando o livro) Está aqui. Disseram: “Por que não transformamos
todos em proprietários eficientes?”
Anjo 2 Acharam.
Anjo 2 (Para o Demônio) Por falar nisso, um dia desses o senhor usou a
minha asa.
Anjo 2 (Consultando o livro) Mas nós estávamos onde? Ah, sim... Ficaram
todos proprietários. Fizeram casinhas para todos.
Demônio Mas isso não importa nada, por favor. Enfim, ficaram à sombra.
Anjo 2 Ora, isso já aconteceu tantas vezes. (Apontando uns livros grossos)
Olhe, olhe para esses tratados de escatologia. O mundo terminou
milhares de vezes... Olhe para esse aqui, com mais de dez mil
páginas. Não parece nada, não parece nada mas é um Lusíadas que
está aqui.
Anjo 2 E o senhor acha que eu tive ânimo para começar? Nem toquei. A
única coisa certa (para o Demônio) é que todas as vezes que o senhor
nos aborrece. Qual é a promessa que o senhor nos faz sempre, hein?
Anjo 1 Não é preciso que ele responda. (Consulta um livro) Aqui está a
última promessa: “Prometo intervir para que não se faça o caos.”
(Fechando o livro) E como foi feio dessa vez, cruz credo.
Anjo 1 Desde sempre. Na hora de intervir é com o senhor. Mas será que
desta vez as coisas não poderiam ser mais tranqüilas?
Demônio É o povo.
Anjo 2 O senhor sabe muito bem que aqui nunca houve dessas coisas.
Demônio (Grave) Mas repousa. E não quer mais voltar. Na verdade, está
ausente. (O Papa e o Cardeal levantam-se e vão até a janela. Ficam
espiando a praça através da vidraça)
Demônio (Sorrindo) Mentia sim, mas à maneira de um poeta. (Um jovem entra
na sala carregando a estátua de Ulisses. O público não sabe que é
Ulisses. A estátua é colo cada num canto, sozinha e de costas para o
público. O Papa, o Cardeal e o Monsenhor continuam alheios a essa
manobra)
Anjo 1 (Para o 2) Olhe, não é ele que está sendo colocado naquele canto?
Anjo 2 É ele sim. (Para o Demônio) Isso foi coisa sua. O senhor vai
confundi-los.
Demônio Os senhores não entendem. Desta vez quero fazer as coisas com
logicidade. (Referindo-se a Ulisses) Aquele vai entusiasmá-los.
118
Anjo 2 (Com melancolia) Não sabemos o que fazer. (Pausa) Vamos meditar.
(Saem. O Demônio fica sozinho, coloca os óculos e consulta livros. A
luz diminui. Luz maior sobre a cena do palco)
Cardeal Sim, Santo Padre, mas isso é a única coisa de que se lembram. (O
Papa faz um gesto de desalento. Vira-se. O Cardeal também.
Deparam com as estátuas. Entreolham-se sem compreender)
Papa (Muito intrigado) Mas por quê? (Examinando Mao, Marx, Lenin e
Ulisses) Por quê?
Cardeal Não sei, Beatíssimo Padre, francamente... não sei. (O Papa faz novo
gesto de desalento e encaminha-se novamente para a mesa de xadrez.
Senta-se. O Cardeal também)
Papa Sim.
Monsenhor (Voz baixa, tentando colocar as asas) Parece que não há solução.
Monsenhor Como vê, não vai. A asa não foi feita para este corpo. (Pausa)
119
Cardeal Sim.
Cardeal (Tentando ser mais claro) Um rei é... um homem que reina.
Cardeal (Tentando achar uma boa definição) Ora, vejamos... um rei tem dois
braços, duas pernas e quando necessário tem a mão pesada.
Cardeal Ah, é verdade, eles também estão no jardim, não é? Então não é mais
possível. (Vai até as estátuas. Examina-as) Não poderíamos, assim
para fazer alguma coisa, limpar estas estátuas? (Refere-se a Mao,
Marx, Lenin e Ulisses)
Monsenhor (Caminhando até Marx. Com certa ingenuidade) A mulher dele falou
certa vez que seria agradável usar novamente os guardanapos de
damasco. (Olhar de interrogação do Cardeal e do Papa. Tentando
explicar) Ela possuía uns guardanapos de damasco muito bonitos mas
eles iam sempre do armário para o penhor, do penhor para o armário,
e ela não podia usá-los. (Comovido) Nesse período a vida deles era
muito modesta. Passavam...
Papa (Interrompe a palavra “morte”. Exaltado) Mas por quê? Por quê?
Cardeal (Voz alta. Para o Monsenhor) Mas não precisamos falar do seu avô.
(O Demônio, quando ouve a palavra “avô”, assusta-se como se o
tivessem chamado, fecha o livro, tira os óculos, consulta o relógio de
pulso e prepara-se para descer. Eu gostaria que o Demônio descesse
deslizando de uma via cilíndrica)
Monsenhor Pois ele sempre foi um exemplo para a comunidade. Basta lhe citar
um fato...
Cardeal (Um pouco afoito e com certo entusiasmo) Sim, de fato poderíamos
até dizer que é mais belo sem asas. Alguém me disse que as asas já
são símbolos gastos e...
Monsenhor Não fale assim, não são caras. (Olhar de desaprovação do Papa)
Quero dizer... não são caras comuns.
Demônio A Santo Padre já não viu? Então. É preciso reviver alguma verdade.
Papa (Com paixão) E não é por amor a uma verdade que ainda luto?
Demônio A vossa verdade parece não ser a verdade deles. Não compreendem
mais.
Demônio Compreende-se.
Demônio Talvez porque... são bem feitinhas, não é? Obras de arte? Será isso?
(Todos fazem caras de dúvida. Demônio, referindo-se a Jesus.
Delicado) Ele é o único que não tem a mesma cor. Mas assim mesmo
parece descuidado. (Para o prelado) Estava no jardim?
Demônio (Atmosfera digna. Tom grave. Lentamente) Alguns disseram que Ele
amava Madalena e que certa vez estava decidido a casar-se com
ela... mas quando resolveu declarar-se sentiu que umas garras lhe
feriam a cabeça...
Demônio (Com ironia) Deus também pode ter garras, Beatíssimo Padre.
Demônio (Grave) Não, Santo Padre, não foi o que disseram. Não orava.
Andava de um lado a outro, debatia -se, jogava-se no chão e falava
em voz alta.
Demônio Certas coisas eu apenas intuí. Mas uma tarde Ele colocou a sua crua
mais perfeita na direção do sol. Disso lembro-me bem. E assim, com
o braço estendido, repetiu várias vezes: (Comovido) “És bela, sim, és
bela.” (Pausa. O Demônio muda o tom, fica mais descontraído) E daí
127
Demônio Santo Padre, eles não falam mais. Entende-se o que querem apenas
pelos inflexos. (Ruídos muito agressivos) Escutai. Estão descontentes
agora.
Papa (Perturbado) Mas é preciso tentar alguma coisa. (Ruído de fora mais
intenso)
Demônio Muito bem, muito bem. Vamos mostrá-la. E a coroa agora. Tirai-a,
Santo Padre.
Papa (Impaciente, tirando a coroa. Para o Cardeal) Oh, por favor, que
importa? (Entrega a coroa ao Demônio)
Monsenhor Não é simplesmente uma cara. (O Papa faz um gesto para que o
Monsenhor não insista)
129
Papa (Aborrecido. Para o Demônio) Mas o senhor não percebe? Eles não
querem mais esse aí... nem outro qualquer.
Demônio Nada é inútil nesta hora. Começamos com este (refere-se a Marx) e
continuamos com os outros.
Papa (Apontando Jesus) Por que não começar com Ele? (Pausa. O
Demônio não responde, mas lha fixamente o Papa)
Demônio Santo Padre, talvez exista em algum trecho uma palavra chave.
Alguma coisa que os emocione novamente.
Papa Amor?
Monsenhor Mas ele dizia uma palavra que nunca ouvi ninguém dizer.
Monsenhor Perfeitamente.
Demônio Gasta.
Monsenhor (Para o povo, um pouco atrás de Marx. Voz possante mas com
alguma hesitação) “Para que servem vossas mentiras e vossas frases
oficiais? Nós não pedimos...” (Para o Demônio. Virando-se com
discrição) O quê? Mas isso eu não posso dizer, é perigoso.
Monsenhor (Com hesitação) ...nós não pedimos piedade. Quando chegar a nossa
vez nós não empregaremos o terrorismo. (Para o Demônio) Mas o
homem disse isso?
Cardeal Potoqueiro.
Cardeal (Horrorizado) Mas, por favor, o que é que o senhor vai fazer?
Demônio (Citando Mao) “Nossa nação entra na grande família das nações que
no mundo amam a paz e a liberdade.” (Ruído intenso. Uma pedra
entra pela sacada. O Demônio tira da sacada rapidamente a estátua
de Mao e pega a de Lenin. Quase sem fôlego, para o povo.
Repetindo Lenin) “Não, mil vezes não, camaradas.” (Ruídos
agressivos e novas pedras entrando pela sacada. O Demônio, durante
os ruídos, continua atrás de Lenin, parado como se estivesse
pensando)
Cardeal (Para o Monsenhor, inquieto) Por que ele não experimenta dizer sim?
Monsenhor Evidente.
134
Cardeal (Com alguma rispidez. Para o Demônio) É melhor que o senhor não
interfira. (Pausa)
Demônio (Aproximando-se dos dois) Vai ser difícil ajudá-los. Não temem?
(Mais próximo) Não temem? (O Cardeal e o Monsenhor perturbam-
se mas em seguida se recompõem)
Cardeal e
Monsenhor Não. (O Demônio volta ao pássaro. Rodeia o pássaro e resolve
montar no dorso da ave como se estivesse montando um cavalo. Dá
discretas risadas mas de repente inflama-se como se estivesse
cavalgando, dominando inteiramente o pássaro)
Monsenhor (Com alguma determinação) Não faça isso, por favor. (O Demônio
obedece e resmunga com dis crição. Pausa)
Demônio (Distraidamente) Dizem que ela sofreu muito antes de morrer. Dizem
que não foi possível (faz um gesto como se estivesse se
estrangulando) ...como costumavam fazer por misericórdia... não foi
possível porque armaram??? o conjunto todo muito lá em cima... para
que o povo visse seu rosto, naturalmente, e o carrasco não tinha
como fingir que arrumava a lenha... e porisso foi horrível... o fogo foi
comendo aquela carne viva, o cheiro era insuportável, ela (levanta a
voz) urrou... urrou. (Com desânimo) Parece que o coração ficou
intacto. Já é alguma coisa, já serve.
Monsenhor Da Joana.
Cardeal (Para o Monsenhor que não desvia os olhos do Demônio) Não lhe dê
atenção. (O Monsenhor finge jogar xadrez)
Demônio Timão, de Atenas. (Apontando Marx) Mas ele também gostava muito
desse trecho. (Aproximando-se do Cardeal e do prelado) Eminência,
Monsenhor, eu também endosso as palavras de Timão.
Cardeal Mas quem é que pode acreditar em ti?
Demônio Então eu mesmo não sei, mais do que todos, o que o ouro pode fazer
aos homens?
Cardeal (Para o Monsenhor, que lhe comeu uma pedra) O senhor está
avançando demais.
Monsenhor Mas eles estão ativos agora. (Pausa) Quero dizer... apedrejam.
Demônio Aparentemente ativos. Mas saberão o que desejam?
Monsenhor Ah, disso eu não me lembro. Mas era um nome qualquer. (Olha para
o Demônio com atenção)
Monsenhor Nem seria de bom senso, Eminência, que ele de repente percebesse
que nós nem lhe sabemos o nome.
Cardeal O quê?
Cardeal Evidente.
Cardeal e
Monsenhor Perfeitamente. (O Cardeal e o Monsenhor tiram dos bolsos pequenos
blocos para tomar notas e não vêem quando um Anjo entra na sala e
entrega ao demônio uma lousa e um giz. O Demônio agradece com a
cabeça)
Monsenhor Para não fugir muito da nossa linha, gostaríamos que o senhor desse
um certo embasamento às suas afirmativas, que o senhor...
Cardeal Como?
Monsenhor e
Cardeal Por quê?
Cardeal Hum...
Monsenhor Hum...
ficam emocionados sem saber o que fazer. Algum tempo) Muito bem,
muito bem.
Cardeal Jogamos?
Monsenhor Não deve ser por mal, Eminência. Ele está brincando.
O Demônio fica muito satisfeito, continua a brincadeira, dá algumas voltas na cena com
estranha comicidade sob os olhares condescendentes do Monsenhor e do Cardeal. Pára diante
das estátuas de Mao, Marx e Lenin e sacode a túnica como se estivesse diante do touro,
provocando risos do Cardeal e do Monsenhor. Em seguida o Demônio aponta a túnica para o
Monsenhor que a princípio fica acanhado de fingir-se de touro, mas diante do olhar agradável
do Cardeal resolve aderir à brincadeira. O Cardeal fica em atitude discreta como se estivesse
tomando conta de um recreio de crianças, o Demônio aproxima-se também do Cardeal com
muita graça e (o???)instiga o Cardeal a brincar, sacudindo a túnica. O Cardeal demora a
convencer-se de que deve tomar parte no jogo, mas vendo a alegria ingênua do Monsenhor, e
para não desapontá-lo, entra na brincadeira e ataca com certa sem-graceza o Demônio. O
toureiro finge que foi atingido, em seguida levanta-se sorrindo e diante do extremo bom humor
do Cardeal e do Monsenhor coloca como prêmio a túnica do Papa nas costas do Cardeal.
Cessam as risadas. O Cardeal fica profundamente chocado algum tempo. Em seguida alisa a
túnica e vai erguendo lentamente a cabeça, possuído de vaidade. O Demônio toma com
brandura a coroa e a coloca com extrema delicadeza sobre a cabeça do Cardeal. Cena
silenciosa, grave.
Cardeal (Com desprezo) Uma odisséia doméstica, isso sim. (Pausa. Resolve
examinar Ulisses)
Monsenhor É bonito.
Monsenhor Eu ainda não entendei muito bem... (Olhando o conjunto das estátuas,
afastando-se e aproximando-se algumas vezes) mas à primeira vista...
Monsenhor Onde?
Demônio Tentamos fazer uma composição, Santo Padre. (Vai até a janela,
espia. Voz baixa) Já chegaram.
Demônio Este é novamente o meu tempo. (Ouve-se na praça uma voz jovem,
vigorosa)
FIM
151
Hilda Hilst
O NOVO SISTEMA
152
1968
CENÁRIO
Uma praça. Chão com aparência de pedra. Banco de pedra, sem encosto. No fundo,
ao centro do palco há um enorme triângulo equilátero que pode ser feito de material leve,
imitando pedra. Em cada um dos seus lados há a seguinte frase impressa em letras pretas:
ESTUDE FÍSICA. Em frente ao triângulo, lateralmente, dois postes. Em cada poste há um
homem amarrado (dois bonecos), de costas para o público. O triângulo tem um movimento
lento, giratório. Deve manter esse movimento durante toda a peça. O aspecto geral da praça é
de extrema gravidade. Os dois bonecos, amarrados nos postes no início da peça, estão
vestidos apenas com calças e camisa branca. Os segundos bonecos estarão vestidos como um
padre e um bispo, conservando a mitra do bispo, os terceiros bonecos estarão vestidos como
o pai e a mãe do menino.
PERSONAGENS (oito)
Menino 13 anos
Mãe Jovem
Pai Jovem
Menina 15 anos
Escudeiro no 1
Escudeiro no 2
Escudeiro no 3
Escudeiro positivo
Dois físicos (que podem ser os dois escudeiros)
O Escudeiro mór (que pode ser um dos escudeiros)
153
Vozes das crianças He! Ha! (Algumas vezes. As exclamações deve ser ditas aspiradas,
objetivas mas com grande entusiasmo. Algum tempo. Cessam as
vozes das crianças).
Voz do
escudeiro mór A coletividade deve abrir a página 208 do livro: A evolução da física, de Albert
Einstein e Leopold Infeld.
Voz do
escudeiro mór Página 53: Temos um vaso fechado por um êmbolo que pode deslocar-se
livremente. O vaso contém uma certa quantidade de gás que deverá ser mantida a
uma temperatura constante. Se o êmbolo estiver, inicialmente, em repouso em
alguma posição, poderá ser movido para cima, retirando-se o peso, ou para
baixo, acrescentando-se o peso. (Voz violenta) Para empurrar o êmbolo para
baixo deve ser empregada força (Destacando) agindo contra a pressão interna do
gás. (Voz normal) Primeira pergunta: Qual é o mecanismo dessa pressão interna,
de acordo com a teoria cinética? Segunda pergunta: Qual é o mecanismo dessa
pressão interna de acordo com o Novo Sistema? A coletividade compreendeu?
Voz do
escudeiro mór Página 17: Todo corpo permanece em seu estado de repouso ou de movimento
uniforme em linha reta, (Voz violenta) se não for obrigado a mudar de estado por
forças nele aplicadas. Se não for obrigado a mudar de estado por forças neles
aplicadas. A coletividade entendeu?
Voz do
escudeiro mór Uma força imprimida é uma ação exercida sobre um corpo a fim de modificar o
seu estado. (Lentamente) A força consiste somente na ação. (Destaca) Ação.
(Pausa) E tudo isso quer dizer no Novo Sistema... tudo isso quer dizer...
INÍCIO DA PEÇA.
Mãe do menino chegando na praça. A mãe está com capa de chuva. O menino está com o
uniforme do Novo Sistema: blusa branca com botões, calça preta. Tem aspecto militarizado mas não deve
lembrar ostensivamente nenhum uniforme atual. A mãe traz o casaco do filho num dos braços. É um casaco
branco também militarizado. O menino segura um boné numa das mãos. No boné há um emblema: uma
caixa preta com a tampa levantada.
Mãe Ainda bem que passou a chuva. Vamos esperar o seu pai nessa praça. (Pausa)
Mãe (Puxando o menino com firmeza) Põe o teu casaquinho. Vai começar a fazer frio.
(Ajuda o menino a vestir o casaco)
Menino (Olhando para os homens amarrados. Está angustiado) Eles podem ficar assim, o
tempo todo, sem comer?
155
Mãe Quando papai chegar você vai contar que ganhou a nota mais alta de Física do seu
bloco, não é?
Mãe (Tentando sempre mudar de assunto) É terrível... Eu sempre pensei que você se
sairia melhor na Literatura... No conto, na poesia... (Suspira) Nunca me esqueço
da sua primeira estorinha. Foi a única coisa que eu consegui decorar na minha
vida.
Mãe Ora, mas que insistência, menino. (Puxa o menino para perto de si) Ainda bem
que a praça está deserta. Olha, senta aqui. (Senta-se no banco) Vamos ver se
você está mesmo firme na Física.
Mãe Ah... mas é sempre uma satisfação para a mãezinha comprovar as qualidades de
seu filhinho. Quero ver... (Fica em dúvida sobre o que vai perguntar para o
menino) Bem... eu na Física ainda não sei bem por onde começar... (Pensa mais
um pouco) A matéria?
Mãe Mas a matéria não é o começo da Física? Não se estuda a matéria? Pelo menos
que eu me lembre...
Menino (Interrompendo aborrecido) Já sei, mamãe, do que você se lembra: “Matéria atrai
matéria na razão direta das massas e inversa do quadrado das distâncias.”
Mãe É isso! É isso mesmo! E eles continuam a falar dessa forma tão complicada?
Menino (Olhando fixamente os homens) Foi o que eles foram? Mais claros? Falaram
abertamente? Foi isso? Foram mais claros?
Mãe Quem?
Menino (Indiferente) Esse é o emblema daqueles que tiveram a nota mais alta de Física.
Mãe (Examinando o emblema com alguma indiferença) Uma caixa preta com uma
tampa levantada? Ótimo (Põe o boné no menino) Outra coisa, vamos... seja
bonzinho. Eu também tenho vontade de saber. O que é isso que caiu na prova?
Menino Mas por quê? Você já não sabe que eu tirei a nota mais alta?
Mãe (Encantada) Oh que beleza, que beleza... “afirme o contrário” Que beleza! (Beija
várias vezes o filho) Beleza, beleza, beleza.
Menino Eu estou com os pés molhados. E não agüento mais ver estes homens.
Mãe Mas você tem que se acostumar. Sempre que voltar da escola e passar pelas
praças vai ver esses homens.
Mãe Pelo menos durante muito tempo ainda. Hoje são esses, amanhã serão outros.
Mãe Menino, pensa na Física, pensa na Física. Nas órbitas permitidas, ouviu? (Pausa)
(Resolve agradar o menino) Olhe, escute... Eu achei um cachorrinho (Fala baixo)
158
na rua, lindo, lindo... tem duas orelhinhas, quatro patinhas, um focinho tão
friozinho... você vai brincar com ele, vai gostar, vai adorar!
Menino Faz tanto tempo que eu não vejo cachorrinhos... por que mamãe?
Mãe Olha, você vai entender... O Novo Sistema... (O menino esconde o rosto nas
mãos) Mas você está chorando?
Menino (Lentamente) Não, eu não estou chorando mamãe. (Olha para os homens) Eu
estou praticamente morrendo.
Mãe Ora, que bobagem, menino! Você diz sempre coisas para me assustar. (O menino
continua a olhar para os homens com piedade) Está bem. Sabe do que vamos
falar agora? Sabe? Pois eu vou falar desses dois homenzinhos.
Menino Você vai me explicar? Oh, minha mãe, eu agradeço tanto! Pensei que você
sempre se recusaria.
Mãe Olha, esses homenzinhos não foram bons, ouviu? (Aparece o pipoqueiro) Olha o
pipoqueiro! Moço! Moço! Vem cá. (O pipoqueiro atende depressa depois de
olhar muito rapidamente para os postes)
Mãe Imagine! (Para o pipoqueiro) Ele é louco por pipocas. Fala assim porque é muito
delicado. (Começa a comer as pipocas enquanto o pipoqueiro olha atentamente
para o emblema do menino)
Mãe Teve uma medalha de ouro no início do semestre. E tenho certeza de que vai se
graduar suma cum laudae.
Menino (Olhando para os homens) Posso comprar qualquer coisa para os homens
comerem?
Mãe (Aflitíssima, para o pipoqueiro) Obrigada, obrigada, pode ir. Pode ir. (O
pipoqueiro afasta-se depressa, olhando rapidamente para os postes)
Mãe Mas você viu o jeito que ele olhou? Rapidamente, muito rapidamente, apenas um
instante.
Menino Mas o que é que tem olhar bastante para os homens, mamãe? Eu não posso nem
olhar como quiser?
Mãe Oh, menino! Você já se esqueceu dos postulados? Como é? Como é mesmo?
“apenas”... “apenas”...
Menino “E a seleção dessas órbitas permitidas faz-se com observância de certas regras
especiais”
Mãe (Desesperada) Fale baixo. Oh senhor! Eu já estou cansada de dizer ao seu pai
que tudo isso não vai adiantar. Eles não estão sendo claros! Não estão sendo
nada claros! (Afasta-se u pouco do menino e fala consigo mesma) Ele não
compreende a relação da Física com tudo o que é preciso aprender agora. Todos
dizem que este é o novo método indireto, e esse método ia resolver tudo, que as
autoridades sabem o que fazem, que ia adiantar, que ia adiantar... adiantou na da,
as perguntas são as mesmas de sempre... (Olha para o menino, de longe) O meu
menino não entendeu, oh, estou exausta e inquieta, lógico... (Para o menino) Pára
de olhar os homens, sim? (Aproxima-se do menino)
Pai (Aproxima-se, olha para os homens no poste rapidamente. Levanta o menino nos
braços) Então, meu filho, tudo vai bem? (Beija a mulher) Tudo bem?
Mãe (Com ironia) Pelo contrário. Teve a nota mais alta... de Física. Olha o emblema.
Pai (Contentíssimo) A nota mais alta de Física? Eu sabia! Meu querido filho! Então é
esse o emblema? (Examina) Que beleza! Uma caixa preta... com a tampa
levantada... muito bem, muito bem.
Menino Daqui por diante eu só poderei conversar com os colegas que têm o mesmo
emblema.
Mãe (À parte, com o pai) Eu também estava... mas só até a porta da escola. Depois ele
chegou aqui nesta praça. E esse será o nosso caminho diário. Oh, senhor! Eu
também estava muito contente, (O menino fica longe) olha de vez em quando o
triângulo, olha os pais, olha, com receio da mãe, os homens amarrados)
Mãe (Desesperada) Mas ele não entende! Não vai entender! Nós não vamos conseguir
nada. A Física para ele é somente a Física.
Mãe (Desesperada) Eles não estão sendo claros! Eles não se fazem entender!
Pai Não é verdade. Não pode ser. (Olha para o menino) Ele é pouco sensível, mas
vai depender de nós, você vai ver. eu vou tentar explicar tudo sem chocá-lo.
161
Pai (Perdendo a paciência) Teimoso? Você tem coragem de me dizer que sou
teimoso? Você não entende que nós estamos correndo um risco? Se todos estão
aprendendo assim, ele tem que aprender, ouviu?
Pai Gritar com ele? Você parece que não conhece seu filho. Aí sim é que podemos
perder as esperanças. Não é um menino com quem se possa gritar. (Começa a se
desesperar) Oh... que situação... todos estão aprendendo... tem dado resultado, é
preciso que dê resultado para o no sso menino!
Pai Mas a nossa vida está em perigo e o menino acaba indo para o instituto e você diz
simplesmente - faça o que quiser? (Levanta a voz) E você acha que eu posso fazer
como quero? (O menino olha para o pai meio intrigado)
Mãe Bem, ele não deixará de olhar os homens (Acentua) “demoradamente” e não
deixará de perguntar.
Pai (Desesperado) Mas isso é para nós dois como uma sentença... de (O menino
começa a se aproximar do pai) Meu Deus!
Mãe Não fique assim. Ele já está percebendo. Não fique assim na frente dele. Vamos
ter calma.
Pai É verdade. Vamos nos sentar um pouco. (Sorri) (O menino chega perto do pai)
Filho, senta aqui com papai.
Menino (Olha muito para o pai, depois olha para os homens) Você está vendo, papai?
Menino Os homens.
Pai (Grave) Escute, meu filho, esses homens (Aparece novamente o pipoqueiro)
Mãe (Interrompendo) Olha o pipoqueiro outra vez. (Para o menino) Você quer
pipocas?
Pai Sim, sim. (Para o menino) Nós dois queremos, não é, meu filho?
Mãe Ele não quer, mas nem por isso você vai deixar de comer. (Para o pipoqueiro)
Moço! Moço! Pode voltar.
Pipoqueiro (Aproximando-se rapidamente, mas agora sem olhar os homens) Pronto dona.
162
Mãe Eu já contei que o menino teve a nota mais alta de Física. E depois o emblema.
(Come as pipocas)
Pai (Interrompendo) Oh, sim! (Para o pipoqueiro) Muito obrigado, moço. É mesmo
pra gente ficar contente, não?
Pai Ah, sim. Escute, meu filho, esses homens não aceitaram o Novo Sistema. Você
compreende? Não foram bons homens.
Pai (À parte, para a mulher) Mas eu tinha te avisado que qualquer explicação cabia a
mim.
Pai Bem, bem. Outra vez, deixe por mim minha conta, ouviu?
Pai Então esqueça esses homens. Ou melhor, não esqueça, não esqueça, mas imagine
que você os viu apenas por um instante, está bem?
163
Menino Mas não é lícito o que você está me pedindo. São seres humanos no poste, não é?
Menino (Desesperado. Demonstra grande angústia) Você quer dizer que eles estão
mortos?
Pai (Tentando acalmar o menino) Não fique assim... o quê? Mas quem te falou que
estão mortos? (Para a mulher) Você falou isso para ele?
Menino (Para o pai) Você mesmo é que disse que eles não são nada... e eles não se
mexem... é verdade! Eles não se mexem...
Pai E tudo que não se mexe está morto, por acaso? (Tentando brincar e acalmar o
menino) A nota mais alta de Física, hein? Não posso acreditar...
Menino (Mais calmo) Você quer dizer, papai, que eles parecem mortos mas não como
certas estruturas inapreensíveis...
Pai Mas você já quer entender tudo de uma hora para outra? Por enquanto pense
somente isso: Esses homens estão aí porque não foram bons.
Menino Isso eu não sei, meu pai, porque você não me disse porque que eles não foram
bons homens.
Pai Mas eu te afirmo que eles não são bons homens, você me acredita?
Menino Papai, primeiro você falou que eles não “foram” bons homens, e mamãe também
falou assim. Agora você fala que eles não “são” bons homens. (Começam a surgir
164
na praça dois escudeiros carregando uma escada) Mas, afinal, eles “foram”, não
“são”... eles estão vivos ou mortos?
Pai (Interrompendo) Cht, cht! Fique quieto. (Para a mulher) Olha, olha.
Pai (Em tensão) Vão tirar os homens do poste, foi isso o que eu disse. (Os escudeiros
chegam perto do poste. Um deles começa a subir na escada para desamarrar um
dos homens. O outro escudeiro olha muito para a família a faz menção de se
aproximar mais do pai, que se adianta com certa rapidez. Diz para o menino:
“Fique aí”. Para os escudeiros: “Boa tarde, boa tarde.”)
Escudeiro 1 (Que é o que está no chão. Para o escudeiro 2, que é o que está na escada)
Primeiro desamarra o trono. (Para o pai do menino) Nós vamos recolher.
Escudeiro 1 (Olhando fixamente para o menino, que está com a mãe) Seu menino?
Escudeiro 1 Acho que estou vendo o emblema. Meus parabéns. O senhor está satisfeito?
Escudeiro 2 Incrível, senhor, incrível. O escudeiro mór não esperava tanto. Ele nos disse que
são tantos como formigas. (Ri) Aquelas grandes com asas... o senhor sabe.
Escudeiro 2 Assim é que é bom ouvir falar. Trabalhamos muito mas temos esperanças. Existe
muita gente como o senhor, com fé, com esperança.
165
Pai Não foi uma surpresa. Nós já estávamos esperando (O menino consegue se
desvencilhar da mãe e começa a se aproximar dos escudeiros apesar dos sinais
aflitos da mãe).
Escudeiro 1 Então mocinho, o que é que caiu na prova? (O pai só percebeu nesse instante que
o menino está perto. Fica muito aflito. Dá a entender discretamente ao menino que
se afaste. O menino demora um pouco a entender) (Para o escudeiro 2) A nota
mais alta de física.
Escudeiro 2 No outro bloco é uma menina. Um pouco maior que ele (O menino resolveu
atender o pai e vai se afastando).
Escudeiro 1 Mocinho, mocinho! (O menino volta-se) Então não me disse o que caiu na prova?
Escudeiro 2 Pontos básicos (O pai manda discretamente que o menino se afaste. O menino
afasta-se para junto da mãe. A mãe tenta vários recursos para distrair o menino.
Tenta fazer um joguinho idiota com o menino. Mostra três dedos da mão direita e
dois da esquerda, entende-se que ela está pedindo para que o menino faça a
soma. O menino dá um sorriso, tenta segurar os dedos da mãe. A mãe tenta
dificultar aritmética. Mostra dez dedos, esconde dois etc., manda dividir,
multiplicar etc.).
Escudeiro 1 O método tem sido muito eficiente. E bem coadunado como novo espírito, não?
(À parte, para o pai) Eles não estão gostando muito, o senhor sabe? (Os
escudeiros fazem o trabalho com moleza, preferem conversar)
Pai Não diga... está havendo então (O escudeiro desce da escada colocando o
homem no chão).
Escudeiro 1 Não, não está havendo nada, o escudeiro mór não permite (Para o escudeiro 2)
Agora eu subo. (Põe a escada no outro poste. Vai subindo. Fica no alto) (Para o
pai) Mas nota-se o olhar, sabe? Na maneira de responder... (Inclina-se para falar
melhor ao pai) Se a gente pergunta, por exemplo, se todos os elementos estão
166
Escudeiro 1 ... fazem umas caras meio enfezadas... fecham os olhos assim...
demoram para responder... querem saber o que é exatamente que
nós entendemos como o máximo de rendimento. Tão simples, não
acha o senhor? O máximo de rendimento é o máximo de rendimento.
Escudeiro 1 Não podem ficar lá muito tempo. Devem vir para cá.
Escudeiro 2 Mas assim, com tanta gente, o serviço foi triplicado (O menino
aborreceu-se horrivelmente com o jogo da mãe e escapa correndo
para junto do pai).
Escudeiro 1 (Severo) Ele parecia olhar de um jeito fora da lei. Demorou olhando.
O seu menino demorou olhando.
Escudeiro 2 Ah... então está bem... meus parabéns (Para a mãe) Meus parabéns.
Teatro reunido Hilda Hilst 168
Mãe É... no berço sempre se começa... sem dúvida senhor. Bem, com
licença.
Escudeiro 1 (Interrompendo) Pelo escudeiro mór! Então já não vi? Ele tem o
emblema! Quero dizer apenas que para ser a nota mais alta de física
deve ter tido também boa orientação dentro de casa, porque tem uns
que são a nota mais alta e os pais são uns bobalhões, põem tudo a
perder... mas com o senhor já vi que posso falar tranqüilamente. O
senhor é um homem instruído no Novo Sistema, já vi... fez o
preparatório para os pais, não é?
Teatro reunido Hilda Hilst 169
Escudeiro 2 Pois é. Então, de acordo com eles, o núcleo atômico... não é uma
estrutura rígida, compreendeu?
Pai Perfeitamente.
Pai Cristalino.
Escudeiro 2 Pois o escudeiro mór pediu com muita delicadeza, como sempre aliás,
para os tais da física, que eles aplicassem esse princípio ao Novo
Teatro reunido Hilda Hilst 170
Escudeiro 1 Claro.
Escudeiro 2 Espere... já chego lá. então o princípio será... (Numa voz muito clara,
muito bonita .Tenta conseguir uma bela voz) “Não somos uma
estrutura rígida, antes um sistema dinâmico”. Agora a voz do escudeiro
mór (Faz uma voz possante) Como o quê? (Bem espaçado) Como o
quê? E todas as nossas crianças responderão (Imita a voz das
crianças) Como o núcleo atômico, como o núcleo atômico, como o
núcleo atômico. Belíssimo, não acha?
Pai Lógico.
Escudeiro 2 Pois bem. Os tais da física fizeram umas caras... uma coisa tão
simples, um slogan perfeito, altamente elucidativo. Dinâmico,
dinâmico... e o senhor precisava ver a paciência do escudeiro mór
explicando para os tais que é muito importante que se faça assim,
porque eles não queriam saber, não queriam saber!
Escudeiro 1 (Para o pai) Não é por nada meu senhor... é só por disciplina que nós
perguntamos, entende? (A voz baixa) É que são certos planos ainda
em embrião...
Escudeiro 1 É o seguinte (Diminui a voz): o escudeiro mór não vai ter paciência
durante toda a vida. Assim que as crianças notas altas de física
estiverem aptas... com toda a informação...
Escudeiro 1 Pode estar certo meu senhor. Estão aprendendo muito depressa.
Escudeiro 1 Se eles não colaboram... a solução mais prática (Sorri e alisa o poste).
Escudeiro 2 É uma coisa lógica, muito lógica, compreendeu? Mas por enquanto é
preciso ter muita paciência. E nisso o senhor escudeiro mór é um
mestre, aliás em tudo... Conversou longamente com eles e de vez em
quando ouvíamos umas frases que os tais diziam, exaltados, ouviu?
Exaltados... (Imita a voz do físico e o jeito de fala fechando os olhos)
Teatro reunido Hilda Hilst 172
Escudeiro 1 E o senhor escudeiro mór falou, falou, falou. Até que foram obrigados
a ceder. Que figura! Que paciência!
Pai Vou esperar minha mulher... (Olha ao redor) Ah, já chegaram. Acho
que é o momento de ir para casa (Afasta-se um pouco) Bem, muito
obrigado (Aparecem mais dois escudeiros com mais dois corpos. O
corpo de um padre e de um bispo).
Menino (Aflito, referindo-se aos novos corpos) Mamãe, esses também não se
mexem?
Menino Esses outros que chegaram agora (Refere-se aos corpos do padre e
do bispo).
Pai Vamos indo, vamos indo (O pai tenta atravessar a praça fazendo o
possível para que o menino não olhe para os corpos, mas o menino
não se contém, está muito agitado. O mesmo escudeiro, o positivo,
Teatro reunido Hilda Hilst 173
Escudeiro Positivo (Para o 1 e o 2) Aqui nesta praça é a primeira troca. Mas nas outras
já fizeram três. Vocês estão atrasados.
Escudeiro positivo (Para o 1 e o 2) A nota mais alta de física, hein? Mas sem muito
rendimento, sem muito rendimento. Ele está agitado.
Escudeiro 1 (Para o positivo) Você acha? Acho que não. O pai diz que o menino
tem admiração por nós, é por isso que ele fica olhando.
Escudeiro positivo (Para o escudeiro 1) Não seja imbecil. Ele não está olhando para nós.
Escudeiro 2 (Para o positivo) Mas espere um pouco. O que é que você vai fazer?
A nota mais alta de física é a nota mais alta de Física.
Teatro reunido Hilda Hilst 174
Escudeiro 3 Não, com o menino não acontece nada. Só o Instituto. Mas quanto
aos pais... houve outra reunião apertando o cerco.
Escudeiro 1 E os pais?
Escudeiro 2 É velho...
Escudeiro positivo Bem, vamos tratar disso logo. (Para o 3) Vai colocando. (O número 3
começa a colocar os novos corpos no poste. Os números 1 e 2 ficam
por um instante olhando a operação).
Escudeiro 1 Esses eu teria até medo de tocar (Está se referindo aos corpos do
padre e do bispo).
Escudeiro positivo Dezenas, homem, dezenas. Parece que vamos ter que reduzir as horas
de exposição. Meia hora cada dois corpos.
Escudeiro positivo Como sozinho? O meu companheiro está aí (A mãe fica agitada). Só
por um instante. Não se preocupem. Venham. São ordens do
escudeiro mór.
Mãe (Para o positivo. Aflitíssima) Mas não podemos ir, meu senhor.
Pai (Interrompendo. À parte, para a mulher) Temos que ir. Não fale
assim. (Para o positivo) Pois não, senhor escudeiro. (Para o filho)
Fique aqui. Sua mãe e eu já voltamos.
Mãe (Desesperada. Voz baixa, para o filho) Não olhe mais para os corpos
(Tenta abraçar o menino) meu filho...
Pai (Para a mãe, que está desesperada) Não faça assim, não é nada,
talvez uma simples advertência.
O menino fica sozinho na praça com o escudeiro número 3. O escudeiro continua atarefado
amarrando os corpos do padre e do bispo.
Escudeiro 3 (Fazendo continência) então, menino, vai para lá. Olha as órbitas
permitidas...
Menino Chances?
Escudeiro 3 Ora, você não sabe? É assim: as velhas colocam as asas durante o
percurso-procissão que eles são obrigados a fazer até chegarem ao
lugar da morte. Quando as velhas fizeram esse pedido, o escudeiro
mór deu boas risadas, deu excelentes risadas, mas depois entendeu
que como as velhas vão morrer logo (à parte) porque elas não podem
ser substituídas, depois delas acaba esse negócio de asas, inventa-se
outra coisa, sabe???, elas são cinco mães de antigas autoridades
imundas do Velho Sistema. Mas, então, o escudeiro mór achou o
pedido das asas tão engraçado (ri) que não só concedeu essa licença,
mas até resolveu transformá-la numa lei. Enquanto as velhas existirem,
lógico (ri muito). Sempre as velhas devem colocar as asas, sempre, em
todos. Elas têm um trabalho! Você já pensou? Fazer asas para tanta
gente? É, mas elas é que fizeram... quero dizer, para ser bem exato, foi
assim: enquanto os filhos, autoridades imundas do Velho Sistema
caminhavam para a morte, uma delas disse (imita a voz de uma velha
chorosa): “São anjos caminhando para a morte”. O escudeiro mór
ouviu e respondeu: “Sem asas”. E uma outra continuou (imita a voz)
“Se não vedes as asas, senhor, nós as colocaremos”. O escudeiro mór
achou a resposta muito engraçada e morrendo de rir respondeu: “Em
verdade, só isso é que fareis daqui por diante, até a vossa morte”.
(Morre de rir) É muito engraçado tudo isso, hein? O que você
acha?
Escudeiro 3 Doloroso? Doloroso? Para aqueles que tentam fugir (rindo), mas não
machuca nada colocar as asas. São pequenas armações de plumas
muito engraçadas. Os seres do Nosso Sistema que querem assistir o
percurso-procissão devem reservar lugares com antecedência. é um
grande ritual de alegria para a Nação. Você nunca viu?
Escudeiro 3 Ora, menino, os pássaros estão por aí. Aliás, esse problema foi
também muito engraçado. As velhas, obrigadas a fazer as asas,
pediram plumas de material sintético, mas o escudeiro mór (morre de
rir) disse que absolutamente, que as plumas deveriam ser genuínas, de
pássaros mesmo. Ele dizia: “Não é uma chance de subir ao céu? Não
é uma chance de subir ao céu?”???? E dava excelentes risadas. Aí as
velhas se danaram, não queriam mais colocar nada. (Imita as velhas
chorosas) “Matar os pássaros? Nunca. Nunca”. O escudeiro mór não
quis saber de nada. Designou três velhas para fazerem as asas, outras
duas para caçar os pássaros. É, mas não estão dando conta. Quase
não há mais pássaros e as velhas estão meio cegas. (Pausa) Você está
chorando? Mas, menino, muitos ainda terão a chance de subir ao céu!
(Morre de rir) Você é mesmo a nota mais alta de física do seu bloco?
A nota mais alta chorando? (Ri) Não saia daí, hein... Não saia daí
(sai).
O menino fica um instante sozinho apenas. Olha para os corpos amarrados no poste, depois
senta-se no banco. Entra a menina. Lentamente. Olha para os corpos só com um movimento
rápido de cabeça. Vê o menino. Aproxima-se. A menina veste blusa verde e saia branca. Um
cinto preto de couro, boné igual ao do menino com o emblema da nota mais alta de Física.
Há uma análise mútua. Na menina, nenhuma expressão de simpatia, apenas análise cautelosa.
Depois, ela olha para a praça mas não para o poste. O menino senta-se novamente. Está muito
angustiado.
Menina É limpa esta praça (Pausa. Todas as falas da menina são ditas sem
brandura)
Menino É limpa?
Menina Claro. Você conhece alguma coisa mais limpa do que a pedra?
Conhece?
Menino Sim. Eu estou aqui há algum tempo e chovia quando eu saí da escola
(Pausa).
Menina Daqui a alguns meses todos nós vamos passar um tempo no mar. É
bom ver o mar. O mar é limpo.
Menino É limpo?
Menina Você conhece alguma coisa mais limpa do que a pedra e mar?
Menina Meu pai hoje me mostrou a última poesia do Novo Sistema. É linda.
Eu vou te dizer (diz lentamente com muita gravidade):
Você não se lembra de nada que tenha analogia com esse poema?
Menino Não.
A menina olha para o triângulo e em seguida para o menino que está de olhos fixos nos homens
amarrados.
Menino Mas você pode entender que eu vejo os homens à minha maneira.
Menina Ainda posso. Mas daqui a pouco não entenderei mais. (Pausa)
Menina Você pensa que está só porque agora você não pode mais falar
apenas de si mesmo. Você não compreende? Neste nosso tempo
você só existirá se individualmente você representar o ser da
coletividade. O ser da coletividade. Entendeu?
Menina Não dessa maneira que você vê. Escute: os olhos devem registrar essa
cena (aponta os homens sem olhar) apenas um instante. Amarrar os
homens no poste é uma simples demonstração de poder. É para
produzir em nós todos uma reação interior automática, você
compreende? Automática. (Pausa) Nunca se falou tão claro.
Menino Mas então... porque é que nós não podemos nos entender? Me ajude.
Menina Porque eu posso ainda te dar algum tempo. Tenho poder para isso.
(Pausa) Não, eu não te amo. Eu não sei o que é o amor. Eu sei o que
é atração e repulsão. Você me atrai.
Menina Porque você é a nota mais alta de física do seu bloco. (Pausa)
Teatro reunido Hilda Hilst 181
Menina Ainda é uma ilusão perniciosa do Sistema. Eu sei que os pais nunca
saberão colaborar. Você não vê que é impossível? Ou você pensa que
eles realmente se alegram com a tua nota mais alta, pela tua nota mais
alta? A alegria desses pais não tem nada da minha alegria por
exemplo. Eu me alegro porque sou o Novo Sistema. eu sou a
coletividade. Os pais se alegram porque, através de crianças lúcidas
do Novo Sistema, estão escapando da morte. Você sabe que a
morte não será situação do Novo Sistema. Não para nós. Mas os pais
carregam a morte porque já são muito velhos para se esquecerem
dela. E você, se continuar assim, você vai para o Instituto. Lá, as notas
mais altas adquirem em pouco tempo a consciência total do ser... o ser
da coletividade. É como uma ressurreição. Como Lázaro (ri). Olha, eu
posso ainda te dar algum tempo. Você vai compreender. Aliás, é um
dos exemplos mais fáceis para se fazer analogia. Eu vou te fazer uma
pergunta e você vai responder. É uma pergunta irrisória para quem é a
nota mais alta, mas é só para ficar bem claro para você. Está bem?
Menina Mas você vai saber. Você é a nota mais alta de Física do seu bloco.
O que eu vou te perguntar é como se fosse o primário da Física.
Menino Sim.
Menina ... e isso quer dizer que na nossa analogia política que só podemos ver
a verdade quando olhamos em direção oposta a do sol, isto é, quando
olhamos para dentro de nós (curva-se). E olhando para dentro de nós,
nós vemos o quê?
Menino Sim.
Menina Mas eu não posso bater em você. Ninguém pode bater numa nota
mais alta de Física. E de mais a mais isso tem um ranço cristão.
Menino Faça. Pense que eu sou como um bicho... e que só entendo essa dor.
Menina Está bem. Então tire o casaco. (O menino está de pé. A menina
começa a bater pausadamente nas costas do menino enquanto ele
repete: “O meu ser é o ser da coletividade” algumas vezes. Aos
poucos, gradativamente, ouvem-se vozes de muitas crianças e
exclamações He! Ha! muitas vezes. É uma manifestação popular na
praça contígua à praça onde estão o menino e a menina. Ouve-se
também a voz do escudeiro mór dizendo: “Como o quê? Como o
quê?” E as crianças respondendo: “Como o núcleo atômico” (3
vezes).
Durante esta cena, o menino e a menina devem movimentar-se. Ela vai até o obelisco, ele olha
para os homens. Há angústia e uma certa delicadeza entre os dois.
Ficam em silêncio. O menino olha fixamente para a menina. A menina está intrigada com o
menino, mas não dá demonstração nem de piedade nem de afeto. Está curiosa. Olha
curiosamente para o menino como se estivesse vendo alguma coisa que escapa ao seu
entendimento. Enquanto ficam assim, continuam as exclamações He! Ha! que devem ser ditas
com pequeno intervalo e energicamente. Em seguida, ouve-se uma voz masculina.
Voz masculina Seres do Novo Sistema! Hoje o escudeiro mór está em pessoa entre
nós.
Voz masculina E resolveu passar uma tarefa para vocês. Essa tarefa deve ser feita em
suas próprias casas. Daqui por diante, uma vez por semana haverá
uma nova tarefa. Hoje é a primeira. As tarefas devem ser resolvidas
com o máximo de perfeição. A coletivid ade compreendeu?
Voz do
escudeiro mór Seres do Novo Sistema!
Voz do
escudeiro mór Tenho em minhas mãos um manual de Física.
Voz do
escudeiro mór Vou abri-lo na página 203. Aqui está escrito: Observe o rádio de um
carro ou, melhor ainda, o painel de um avião. Você verá uma caixa
preta metálica ou uma coleção delas. Vários fios entram e saem das
caixas, ligando-as entre si ou com o exterior, com a antena ou com o
solo, com linhas elétricas, ou com um alto-falante, ou com um
mostrador. Levante a tampa de uma caixa e dentro você verá um
labirinto de fios coloridos. Você não compreende a finalidade de cada
fio, mas sabe usar perfeitamente bem a caixa preta. Tal experiência
legou-nos uma frase útil e expressiva. Referimo -nos a um sistema físico
de qualquer tipo como uma “caixa preta” quando o utilizamos sem
Teatro reunido Hilda Hilst 185
Voz do
escudeiro mór A Física é um grande empreendimento dos seres do Novo Sistema.
Ninguém a conhece toda. A curiosidade de abrir as caixas pretas é
necessária para o bom entendimento da Física.
Voz do
escudeiro mór A confiança na caixa preta vem com o uso, a experimentação e
finalmente com a cobertura da tampa, a verificação do método de
operação. O que permanece como caixa preta nesse instante será
aberto pela vossa geração.
Voz do
escudeiro mór Sua abertura envolverá, porém, o uso hábil de todos os tipos de
caixas pretas... caixas pretas, crianças, que nunca vimos.
Voz do
escudeiro mór Agora a tarefa para fazer em casa. Uma câmara fotográfica é uma
caixa preta para muitas pessoas, para todos até certo ponto, pois não
sabemos como funciona a ação de cada parte (pausa) até que ponto
uma câmara é uma caixa preta para vocês? Essa é a tarefa que deve
ser respondida e relacionada com o Novo Sistema. E agora um
pequeno esclarecimento para lhes facilitar a mesma tarefa: a maior
parte das decisões que tomamos, a maioria das informações que
recebemos sobre o mundo, penetram através dos olhos. No
cérebro humano, a área chamada córtex visual, que recebe os sinais
do olho, é maior que a de todos os outros sentidos juntos. O olho,
seres do Novo Sistema, é uma caixa preta que usamos com audácia e
precisão. Mas num quarto escuro, o olho se torna inútil. O olho
depende de sinais luminosos. E o sinal luminoso, o grande sinal solar
do nosso tempo, é o Novo Sistema.
Teatro reunido Hilda Hilst 186
Voz do
escudeiro mór A coletividade compreendeu?
Voz masculina Não somos uma estrutura rígida. Antes um sistema dinâmico. (Duas
vezes)
Voz do
escudeiro mór Como o quê? Como o quê?
Menino Eles virão, não é? (Pausa) Olha, neste lugar eu ouvi dizer que havia um
lago e pássaros muito bonitos.
Menino Eu ouvi minha mãe dizendo ao meu pai: “Como era bom quando havia
o lago e os pássaros tão bonitos.”
Menino Minha mãe disse que achou um cachorrinho... e que ele está lá em
casa.
Menina Sua mãe não colabora com o Novo Sistema. Não é permitido levar
um cachorro para casa. Deve-se chamar o serviço competente. A
Teatro reunido Hilda Hilst 187
carne dos cães é um ótimo alimento para a nossa grande nação. Você
não teve a orientação integral do Novo Sistema. Os teus pais
escondem a verdade. Você parece frágil, seus pais devem ser frágeis,
anêmicos para o Novo Sistema.
Menino E os seus?
Menina Minha mãe também era frágil, desfibrada. Teve o destino de todos os
incompetent es e o seu corpo foi preparado para ficar exposto durante
muitos dias, para que todos soubessem que o meu pai cumpre com
rigor as leis do Novo Sistema.
Menina Você deve perder as esperanças. Eles não virão mais te buscar.
Menino E você já sabia de tudo isso quando chegou aqui perto de mim?
Menina Sim. Eu fui avisada. Uma das minhas tarefas é essa, não permitir que
as crianças iguais a você perturbem o trajeto de seus pais anêmicos
para a morte.
Menino (Com extrema gravidade) E é isso que você fez comigo até agora.
Você simplesmente ganhou tempo? (Pausa) (Desesperado) Enquanto
meus pais... Eu compreendi... Eu compreendi.
Menina Mas você não parece contente. E você devia estar contente.
Menino E tudo será sempre assim? O entendimento sem amor? Sem amor?
O menino mata a menina. Começa a arrastar o corpo para fora da cena. O palco vai
escurecendo até ficar black out total. O menino também sai da cena. Fica apenas o obelisco
iluminado girando lentamente. Entram depois de um instante os quatro escudeiros. Holofotes
violentos sobre a cena. O escudeiro número três e o positivo trazem os corpos da mãe e do pai
do menino. Todos começam a desamarrar os outros corpos e começam a amarrar os novos
corpos no postes. Serviços rapidíssimos.
Escudeiro 2 O escudeiro mór sempre diz: “Se eu não conduzisse à morte esses
pais, eles não saberiam o que fazer das próprias vidas.”
Escudeiro positivo É que o negócio agora é meio complicado. É preciso ter olho e tutano.
Escudeiro 1 Você está certo. No Velho Sistema era tudo na base da burrice e da
safadeza. E não se acostumaram? Demorou anos para acontecer tudo
isso que está acontecendo agora.
Escudeiro positivo Agora vamos procurar o menino. (Começa a pensar. Rápido. Saem.
Os holofotes se apagam, ficando apenas o obelisco iluminando
discretamente os corpos. Em seguida, black out total novamente)
Voz do alto-falante Nenhum castigo corporal para a nota mais alta de Física. (Duas vezes)
Nunca inutilizem uma nota mais alta de Física. (Duas vezes) Entreguem
a nota mais alta de Física ao escudeiro na praça número um. (Duas
vezes)
Luzes violentas. O menino está no centro do palco. Num plano muito alto, está o escudeiro
mór, e num plano mais baixo estão os dois físicos. O escudeiro mór está sentado numa grande
cadeira de linhas sóbrias, em cujo braço está uma caixa preta com a tampa levantada.
Menino Não. Ela disse que não sabia o que era o amor.
Menino ... e que se sentia atraída por mim porque eu sou a nota mais alta de
Física do meu bloco. (Pausa) Mas era amor.
Escudeiro mór O quê? Você está mentido. Minha filha nunca poderia ter sentido
amor.
Escudeiro mór Nunca. Minha filha sabia que (Manipula a caixa preta e em seguida
ouve-se uma voz monocórdica.)
Voz masculina
adolescente
(Monocórdica) Objetos de igual material que foram eletrizados pelo mesmo processo
sempre se repelem. (Duas vezes)
Escudeiro mór E na nossa analogia política isso quer dizer o quê? Respondam. Não
importa, responderão por nós. (Manipula a caixa)
Voz masculina
adolescente
(Monocórdica) Os seres do Novo Sistema que aprendem a Física pelo Novo Sistema
sempre se repelem, sempre se repelem... humanamente. (Pausa) É
compulsório que se compreendam (acentua) “apenas” política e
cientificamente (Duas vezes) Senhor escudeiro mór: Os seres humanos
são impulsionados pelas suas próprias cargas imprevistas.
Impulsionados pelas suas próprias cargas humanas imprevistas.
Físico 2 E como será possível continuar a descendência dessa organização se [JLA1] Comentário:
Escudeiro mór Será preciso lembrar-vos? Há muito que os vossos colegas sabem de
que maneira é possível estimular artificialmente sentimentos como
o amor. Será preciso lembrar-vos? É necessário apenas (Manipula a
caixa).
Teatro reunido Hilda Hilst 191
Voz masculina
adolescente
(Monocórdica) Colocar um simples eletrodo do tamanho de uma antiga moeda sobre
a cabeça. Esse eletrodo será religado a um cérebro eletrônico
cuja função é resolver vários problemas, inclusive estimular os
chamados afetos (Duas vezes).
Escudeiro mór As notas mais altas de Física na idade de vinte anos devem dar filhos à
nossa Nação. E para isso serão estimulados apenas o tempo
necessário.
Escudeiro mór (Interrompe) A verdade tem sido uma enorme sonolência. A única
verdade é a verdade do Novo Sistema: uma imensa matriz racional. A
Física nos dará, em breve, um cérebro no qual toda a memória
científica do mundo estará guardada. Por isso (dirige-se aos físicos),
tornem-se daqui por diante necessários, para que vosso destino não
seja igual àquele destino (aponta os postes) que foi compulsório.
Físico 1 Ainda que meu destino seja aquele, eu quero vos fa zer uma pergunta.
(O escudeiro assente) Por que é que nasceu na vossa mente, a prática
do Novo Sistema?
Escudeiro mór Eu vou responder. Mas antes também desejo lhes fazer uma pergunta.
(Os físicos assentem) Por que é que nasceu na mente de alguém a
teoria da relatividade?
Escudeiro mór Apenas uma segunda pergunta: em que consiste a força dessa nova
teoria?
Teatro reunido Hilda Hilst 192
Escudeiro mór Muito bem, senhores. Eis a minha resposta: a prática do Novo
Sistema nasceu da necessidade, de contradições sérias e profundas do
Velho Sistema político, para as quais parecia não haver saída. E
continuo: a força do Novo Sistema está na consistência e na
simplicidade com que resolve todas as dificuldades usando apenas
(aponta os postes) umas poucas práticas, executadas de maneira
muito convincente.
Cena imóvel, black out total sobre o escudeiro mór e os físicos. Luz sobre o menino, o poste
e o triângulo. Black out total sobre os postes que devem ser retirados. Luz cada vez mais
intensa sobre o menino e o obelisco e simultaneamente as exclamações He! Ha! começando
discretamente e aumentando com a luz. Luz muito clara, exclamações fortíssimas, terminando
com um Ha! muito enérgico.
Durante as exclamações de He! Ha! o menino lentamente curva -se sobre si mesmo até ficar
ajoelhado, curvado e imóvel. As exclamações de He! Ha! terminam com um Ha! valente e em
seguida todo o elenco, não mais como personagens mas como atores vai surgindo no palco.
FIM
Hilda Hilst
Teatro reunido Hilda Hilst 194
Auto da b a r c a d e C a m i r i
1968
Teatro reunido Hilda Hilst 195
Juiz jovem Que lugar, santo Deus! Que lugar! Isso é uma injustiça!
Juiz jovem Não, não! Obrigarem-nos a fazer esta visita. E depois (olha ao redor),
veja bem: só nos dois. Não deveríamos ser três?
Juiz velho É. Esse não veio. (Olha ao redor) E mesmo que viesse, só há duas
cadeiras.
Juiz jovem É verdade. Aqui é certamente o fim do mundo. Ou o inferno, não sei.
Juiz velho Você acha que pode existir um lugar melhor? Um outro que seja o
céu?
Juiz jovem No céu certamente seríamos três juízes. E aqui somos dois. Ainda
bem. Não há possibilidade de clemência.
Juiz jovem Um alimento! Um alimento! Por que nunca vi tantos pássaros ao redor
de uma só pessoa. E os cães então... você não viu?
Juiz jovem Mas é verdade? Nem os pássaros? Nem os cães? Eram muitos,
muitos! Estavam todos ao redor do homem. Estranho... Você jura que
não viu?
Juiz velho Mas com esse calor eu não vejo nada. Com esse calor todos fedem.
Os homens fedem.
Juiz jovem Tem razão. Tem razão. Os homens são seres escatológicos. Essa tema
é ótimo para discorrer. Veja. (Vira-se para a platéia) Escatologia,
certamente os senhores saberão o que é: nossas duas ou três ou mais
porções matinais expelidas quase sempre daquilo que
convencionalmente chamamos de bacia. Enfim (curva a mão em
direção à boca e estende em direção ao traseiro), esse entra e sai.
Para vencer o ócio dos senhores que dia a dia é mais freqüente, não
bastará falar sobre o poder, a conduta social, a memória abissal, o
renascer. É preciso agora um outro prato para o vosso paladar tão
delicado. (Vira-se para o velho) E se pensássemos num tratado de
escatologia comparada? Nada mais atual e mais premente.
Juiz velho Tudo isso é bom para o teatro. Fale merda para o povo e seja sempre
novo. Ah, nossa boca de vento... (Põe a mão na boca num gesto de
desprezo) Blá, blá, blá.
Juiz jovem Mas nossa boca de vento, que aparentemente é vazia, seria o primeiro
elemento para uma escatologia... comparada. Boca de vento... Na
verdade (põe a mão no traseiro e na boca) duas bocas do nada.
Partindo do nada, chegaríamos a infinitas conclusões. Depois do nada,
vem tudo de mão beijada. A cultura.
Juiz jovem Espere... espere. Você sabe que o verme come o homem. E a cultura
de material abundante seria no futuro nosso única forma de leitura.
Cultivar a matéria! Ler na matéria! O mundo se transformaria num
grande laboratório de análises. Acostumar as narinas! Já de início
ficaríamos todos livres da parasitose. Depois, quem sabe o que se
descobriria na matéria... quem sabe o quê!!
Juiz velho Ora, é evidente. Comer muito para muito ler. E a época é de
contenção. E será sempre.
Juiz velho Porque se você abrir um dicionário, verá que a palavra escatologia
tem dois sentidos. Um, é essa tua matéria, está certo. O outro, faz
parte da teologia. Escatologia: doutrina das coisas que deverão
acontecer no fim do mundo.
Teatro reunido Hilda Hilst 199
Juiz jovem Mas está perfeito! Uma surpreendente analogia! No fim do mundo
sobre nossas cabeças uma nova esfera! A coproesfera! Sobre nossas
cabeças enfim o que os homens tanto desejam: a matéria!! Você não
se entusia sma? Sobre nossas cabeças como um novo céu, a merda!
Escatologia pura.
Juiz velho Já que você tem idéias, você conhece alguma coisa que consiga tirar o
cheiro das testemunhas? Durante toda a minha carreira pensei em
várias soluções...
Juiz velho (Ainda com as calças, tira dos bolsos tampões cilíndricos muito
compridos e finos) Usar enormes tampões!
Juiz velho Ou uma tenda enorme de oxigênio. (Desce do alto rapidamente uma
cúpula de plástico contornando por inteiro o juiz velho)
Juiz jovem (Muito alto) E não seria o extremo? (A cúpula sobe rapidamente)
Juiz velho (Para a platéia) E isso é teatro, senhores. Conflito iminente... nem
sempre. Pois vêem que estamos de acordo.
Entra o trapezista. Trapézio desce do alto. Trapezista pela para o trapézio de um salto.
Como libélula!
Mas sem o estremecer daquela!
Tranqüilo como em repouso!
Sem esforço!
E que luz abundante sobre a roupa!
(Luz violenta sobre o trapézio)
Excelências
O homem ficou suspenso
No ar! No ar!
Que visões temos tido!
Que vidências!
Juiz velho (Tapando o nariz) Mas ainda não começamos a audiê ncia. Retirai- vos.
Juiz jovem (Para o juiz velho, tapando o nariz) Eu não lhe disse? Escatologia do
porvir.
Juiz velho (Para o trapezista) Sai, sai. Pois estamos quase nus.
Juiz velho (Empurrando o trapezista para fora) Com licença, com licença.
(Começa a vestir a toga) Isso é demais. Isso é demais!
Risos do povo.
Alguém pergunta: Quem são esses homens?
São da cidade.
E vêm fazer o quê?
Eles vêm dizer se o homem existe ou não.
E a gente não sabe não?
Teatro reunido Hilda Hilst 201
Muitos risos.
Música. O povo invade a sala dos juízes, homens e mulheres tentam fazê-los dançar. Os juízes
estão muito aflitos, tapam as narinas, procuram as roupas etc. O povo canta.
Letra da
primeira música Ai coisa complicada
São os da cidade
Os que vêm dizer
Se o homem que a gente vê
É de verdade ou não
É de verdade ou não
Se o homem que a gente diz que se move
Ai que se move ou não
Ai que se move ou não
Se tudo é, ou se é tudo ilusão
Se tudo é, ou se é tudo ilusão
São os da cidade
Os de compreensão
Os que vêm dizer
Se o que a gente vê
É sabedoria
ou é danação
Se o que a gente vê
É coisa brilhosa
Ou é escuridão.
Letra da
segunda música Homem que a gente vê
Mas ninguém quer
Que se veja
Ai, chupa o meu mindinho
E assim tu me distrai
E eu não vejo nada
Além do meu mundinho
Letra da
terceira música (Para ser cantada de início pelo trapezista e em seguida pelo povo)
Teatro reunido Hilda Hilst 202
Juízes (Para o povo) Saiam, por favor, saiam, saiam. Isso é demais, isso é
demais. Com licença, minha senhora, com licença, meu senhor. Eu
nunca vi, ah, isso eu nunca vi.
O povo sai.
Juiz velho (Vestindo a toga) Mas amassaram tudo, veja. Lamentável. Inda bem
que saíram.
Juiz jovem Mas a testemunha é sempre assim: quando não entra, sai.
Juiz jovem (Vestindo a toga) Nada, nada. O que eu digo e não digo é a futura
problemática do ser. Isto é: escolher entre o dizer mais fundo e o não
dizer. Neste caso agora, eu escolhi o último.
Os juízes com suas respectivas togas mudam inteiramente o tom das falas. Formalíssimos.
A cada testemunha que entra, com exceção do agente, os juízes dão demonstração de
desagrado em relação ao cheiro. Talvez possam usar grandes lenços de renda.
Tão leal
Diria que passei
Todo amor que me tinha
Para o pobre animal.
Mas aí vi o homem.
Excelência!
Foi como se a Divina Providência
De mim se apiedasse. Pedi:
Homem que não sei de onde vem,
Sossegai-me
E transformai o pássaro
No que era: Garganta de luar
Peito de primavera.
O homem abriu as mãos.
E nesse instante
Dessa tarde de águas
Fez-se o sol... tênue
A princípio
Mas o bastante
Para aclarar-me o rosto.
Excelência!
O sopro desse homem
No pequenino corpo!
E um sol tão absurdo
Tão crescente
Nessa tarde de águas!
E súbito o que vejo?
Um esticar de asas!
Um espreguiçar-se de pássaro!
Como se voltasse de um sono
Simplesmente!
E que canto! Um canto
Sobre o ombro do homem...
Um canto de alegria...
Comprido! E depois mais um
Mais dois...
Dele me esqueci.
Veio gente, tanta gente!
Cheguei a dizer que o homem
Era Deus. Então alguém me disse:
Nós queremos milagres eficazes
E não Deus.
Agente Porque se o pássaro morreu uma vez, está morto não é? Seja qual for
a aparência.
Passarinheiro (Angustiado)
Excelência! Excelência!
E por que não declarar
Que os pássaros ressuscitados
Têm a consistência dos vivos?
Estendem as asas e cantam
Ao contrário dos mortos...
Isso é tão claro, deve estar nos livros!
O Agente começa a agredir o Passarinheiro que faz o possível para esquivar-se. Os gestos do
Passarinheiro devem seguir um posterior relato do prelado, quando depõe.
Entra o trapezista.
Os juízes entreolham-se.
Pausa.
Trapezista Impossível.
Entra o prelado.
Prelado Excelência!
Trapezista e
Prelado juntos A sombra do...
Prelado Oh!
Trapezista e
Prelado Que declarem o homem existente!
Prelado Senhor
Pelo que vejo
Com a minha vista bendita
Deixai-me a mim
Teatro reunido Hilda Hilst 222
Ao Passarinheiro
E ao Trapezista
Acompanhar o homem e seus cães...
E seus pássaros... pela minha vista
Bendita!
Prelado Sim.
Esse contato?
Ouve-se nova rajada vigorosa de metralhadoras. O Trapezista sai correndo da sala e o Prelado
ajoelha-se e reza. Um tiro seco.
Trapezista (Ofegante)
Senhores, o homem está morto!
Tudo o mais é suposto!
Crivaram-no de balas
Mas agora tem o rosto
À semelhança d’Aquele
Que dissemos.
Pausa.
Prelado Do Cristo.
Slides com corpo de Cristo morto. Uma das posições parecidas com a descida da cruz de
Ticiano. Slides da descida da cruz. Rápidos. Simultaneamente.
Juízes (Juntos)
Teatro reunido Hilda Hilst 227
Trapezista Excelências!
(Desesperado)
Mataram os pássaros!
Mataram os cães!
Ouve-se de muito perto uma rajada vigorosa de metralhadora, e o Passarinheiro entra com os
braços abertos, quase de um salto, e cai morto. O Trapezista e o Prelado tentam auxiliar o
Passarinheiro e ajoelham-se ao seu lado, de frente para a porta aberta.
Pausa.
Teatro reunido Hilda Hilst 229
Pequena pausa.
FIM
Hilda Hilst
Teatro reunido Hilda Hilst 230
O visitante
1968
Teatro reunido Hilda Hilst 231
PERSONAGENS
Ana Mãe.
Maria Filha.
Corcunda
Corcunda Homem alto, com uma leve corcova. Nem feio, nem bonito. 45
anos.
CENÁRIO
Notas: Pequena peça poética que deve ser tratada com delicadeza e paixão.
Pausas, cumplicidades nada evidentes, silêncios esticados. Sobretudo é
preciso não temer as pausas entre certas falas. São absolutamente
necessárias.
Ana Imagina! Sei tão bem que é a mesma casa e a mesma mesa e...
Como um soco.
Maria Não.
Maria Devo alimentar o cão. (Pega uma vasilha e vai até um dos
aros(???arcos), coloca a vasilha no chão e fala como se o cão
estivesse presente) Tu és bom. Tu és bom. És meu. (Volta novamente
e continua a arrumar os pães. Olha para a mãe fixamente)
Maria (Irônica)
E nessa noite
Havia pelo menos um luar?
Ana Não.
Ana (Olha para a filha) Era um olhar... (pausa) doente. (Maria olha
fixamente para Ana) Minha filha... que olhar!
Maria (Severa)
O meu olhar de sempre. Já disse.
Tens mais imaginação do que um profeta.
Primeiro falas do ventre e de ruídos.
Quem te ouvisse
Em ti encostaria o próprio ouvido
E esperaria o impossível... (Ri)
Um vagido! (Ri)
(Severa) Nunca te conformaste com a velhice.
(Aproximando-se) Queres parir ainda? Abrir as pernas
E dar caminho ao que vai sair
Ou a uma nova espera?
Maria Mas está morta. (Pausa) Falas do meu olhar... E o teu? Já te olhaste?
(Pega na badeja de metal) Eu te mostro. (Segura a bandeja bem
próximo de Ana junto ao rosto???) Olha!
Tens o olhar de uma mulher com sede.
Ana (Com seriedade e meiguice) E a minha culpa em tudo isso onde está?
(Ouve-se ruídos, vindos de fora. Ana olha para um dos arcos que dá
para o jardim) Cala. Teu marido vem chegando.
Homem (Grave) ainda bem, Ana. Rezar é bom. (Aproxima-se da mulher, sorri)
Canta. Como era? (Pausa) Está triste?
Ana (Afoita)
Sabes, tem vergonha
De cantar tão bem
Que tu nem sonhas.
Homem (Grave)
Quem te ouve falar
Pensa que quando entramos no quarto
Somos um. E estás mais loge de mim
Do que o céu do mar.
Ana É bela.
Ana É bela.
Ana Falávamos...
Homem (Grave) De sol e lua. (Para Maria) Deixa-me olhar os teus olhos.
Olha-me. (Aproximando-se) De treva.
Pausa.
Homem (Amável)
Como não conheço?
Pelo aspecto, pela fala
Deve ser homem de apreço.
Tem apenas um defeito
(As duas mulheres olham-no interrogando)
Teatro reunido Hilda Hilst 243
Ana Vamos tratá-lo bem, se gostas dele. Parece que advinhamos, não é,
minha filha? Temos uma linda ceia.
Ana Por que será que sempre comparamos uma coisa com outra que não
conhecemos?
Ana (Rindo) Disseste que tu e ele eram dois homens que estavam ali,
plantados e quietos como dois lobisomens.
Ana Não disse? Por isso devias dizer... “quietos” como... (tenta encontrar
uma boa comparação) bem...
Homem (Para Maria) Deixa. eu abro. (Maria põe a mão sobre o ombro do
marido não o deixando levantar-se)
Corcunda (Interrompe. Firme) Ana não disse assim. (Pausa) Posso vos chamar
de Ana, simplesmente?
Ana Meia-Verdade?
Teatro reunido Hilda Hilst 250
Homem (Rindo)
E eu que não sabia! Meia -Verdade!
Tem graça! Se a verdade ninguém sabe
Quando se mostra. Inteira ou meia
Pode ser bela e feia
E não ser verdade.
Ana (Angustiada)
Não... Apenas sinto o ventre intumescido
E dentro dele às vezes um ruído...
Como um soco.
(Cobre o rosto com as mãos)
Homem (Interrompendo) Como uma flor... quase nascendo? (Ana põe a mão
sobre a boca do Homem)
Corcunda (Para Ana) Por que não dizes... como a tua própria carne
desabrochando/
Maria (Grita) Ana! Ana! é o que diz cada noite tua boca.
Maria A morte.
Ana A vida.
Homem (Muito meigo) Mas que tola... Que tola. Abraça-me. Vem.
Maria (Afastando-o)
Ainda és capaz de me dizer palavras?
Mas o que queres de mim?
Maria Ternura?!
Corcunda Sai. Caminha um pouco. (O Homem abre a porta e olha para Ana
com olhar angustiado. Sai rapidamente. O Corcunda levanta a cabeça
de Maria. Fala lentamente. Explicativo)
Certa vez, uma mulher pediu Àquele (Olha para o alto)
Àquele Ser antes do Um, esse que é sol e noite,
Pássaro e coiote, que lhe fizesse brotar
Flores nos pés.
Maria E esse é um pedido que se faça
Àquele que tu dizes... sol e noite, pássaro e coiote?
Maria (Enlouquecida)
E ela foi atendida?
Nasceram-lhe flores?
Maria Olha, posso parecer tola aos teus olhos, mas não sou, ouviste? Como
conheceste meu marido?
Maria (Interrompe) Se não havia mais luz, também não havia sombra.
Maria (Rindo) E eu que nada percebia... como fui tola! Às vezes sim, ouvia
passos... seria sonho? Pensava... É vigília? talvez quem sabe o
demônio? Pensava. (Ri) Mas por que não me disseram que já se
conheciam? E que ele (aponta o Corcunda) nas noites abria esta porta
e contigo se deitava?
Por que esse medo de mim, minha mãe? Afinal, é a tua casa... (vai até
a porta) E o outro que saiu... tolo, ah, eu tenho culpa sim, imaginei
tanta coisa, nas noites ele falava... e eu à escuta, mas mal ouvia, quase
nada, pensava que ele dizia (olha para Ana) o teu nome. (Ri)
Ana, Ana, tu és tão bela e boa... e encontraste, que bom...
Meia-Verdade! (Aproxima-se da mãe) Te acanhaste de mim?
Ficaram todos medrosos como se eu fosse um carrasco...
ou um querubim! (Aproxima-se de Meia -Verdade)
E que estórias inventaste! Flores nos pés, limo na carne!
Que estórias! Como serás bom pai.
(Ajoelha-te, põe as mãos no ventre de Ana. Fala para a criança
dentro da mãe)
Teatro reunido Hilda Hilst 259
Ana (Angustiada) Deixa, filha. Deve ter ido buscar o teu marido. (Ouvem-
se passos)
FIM
Hilda Hilst
A empresa (A possessa)
(Estória de austeridade e exceção)
Teatro reunido Hilda Hilst 261
1967
Teatro reunido Hilda Hilst 262
Personagens
Terceira Postulante
Observações
2) Está escrita para “palco italiano”, onde deveriam existir três pla nos (A, B, C). No entanto,
mando esboço de cenário para “palco de arena”, porque entendo que dessa forma ela pode ser
melhor solucionada, e os planos (A, B, C) sofreriam maior fusão, havendo ao mesmo tempo
proximidade e distanciamento. Neste caso, a movimentação de América será sempre no centro
do palco. Nos dois casos (italiano e de arena) a primeira cena deve ser tratada de modo a dar
a impressão de um momento muito recuado no tempo, assim como uma fotografia baça e
amarelecida.
3) América é bastante jovem na primeira cena, mas sem as características da adolescência. Sua
lucidez acentuada e singular firmeza são características de maturidade. Ainda quando é quase
delirante no seu “estado de graça” ela inteira é adulta e quase sábia. Personalidade intensa.
4) Eta e Dzeta são ilustrações de uma forma quase perfeita de repressão. América quando
inventa a estória de Eta e Dzeta para o “Monsenhor”, quer simplesmente dizer que sendo essas
ilustrações quase perfeitas, nunca seriam suficientemente poderosas a ponto de sufocar o
espírito do homem. No entanto, o “Monsenhor” dá uma seqüência extraordinária à estória de
América, transformando Eta e Dzeta numa realidade de potencial repressivo ilimitado.
5) A empresa pode ser entendida como um teorema seguido de inúmeros corolários. Um deles
seria “Redefinição”. Mas Redefinição que mantivesse no homem sua verdadeira extensão
metafísica.
1) Três planos A, B, C.
7) América não é uma postulante, mas uma aluna desse internato. Portanto sua roupa deve
diferir das postulantes.
8) A modificação do vestuário no decorrer da peça deve ser feita de modo a deixar claro a
transformação no caráter dos personagens.
PRIMEIRA CENA
Primeira Postulante (Sorrindo, prudente) Não é bem isso. É que você disse... que depois
dele tudo ficou diferente... e...
América (Entusiasmo moderado) Mas foi assim mesmo. E não é bom? Depois
dele, da luta, tudo mudou. Todos teriam todas as coisas que
desejassem. Tudo. Não é bom? (Pausa. Postulantes entreolham-se)
América (Firme) Tédio é não ter. Será que você não entende?
Primeira Postulante Porque você disse que ele era bom, muito bom, mas ele mandou
matar os outros.
América (Seca) Se um leão te ataca e você tem uma arma, você não mata o
leão?
Teatro reunido Hilda Hilst 267
América (Como quem fala consigo mesma. Branda) Ele se sentiu leve.
Primeira Postulante (Um pouco febril) Ele se sentiu assim como se ele fosse um pássaro
muito grande, muito contente e vivo, vivo?
Segunda Postulante Ih... Lá vem você. Ele era um homem e América disse que ele era
forte como uma pedra. E as pedras nem são pássaros nem voam.
América (Com muita certeza. Grave)Ela era um que tinha mais alegria do que
os outros porque tinha uma idéia.
Primeira Postulante Assim como se a gente se perdesse num deserto e tentasse nalgum
lugar e encontrasse água? (Pausa)
Terceira Postulante (Quase infantil) Como se a gente descobrisse de repente que existe um
outro lá dentro da gente?
Segunda Postulante Ah, isso é gravidez. (Risos das postulantes. Pausa. Olham para
América em silêncio)
Segunda Postulante (Desconfiada) E será que uma idéia pode ser tanto como se fosse um
outro dentro da gente?
América (Apaixonada) Essa idéia sim. Nenhuma é tão grande como essa.
América (Aflita, tentando explicar) Não é que é bom, meu Deus, será que
vocês não entendem, é mais, é...
Primeira Postulante (Interrompendo com bastante interesse) E você acha que ele também
amava os outros como um herói?
América (Apaixonada) O amor era para ele como uma bola de fogo que ele
podia arrancar de dentro de si mesmo e sustentar nas mãos, e se
quisesse também poderia até mesmo desfazer-se dela, tudo isso sem
deixar de possuí-la. Vocês me entendem? (Pausa)
Primeira Postulante Mas eu também acho que é bonito ser assim, só que...
América (Interrompendo, voz firme e alta) Mas não é que é bonito. O homem
era todo honesto, limpo. Era amor.
Segunda Postulante Nossa, eu fico até com febre quando você fala assim. (Põe a mão de
América na sua testa) Olha.
América (Com entusiasmo) E um dia essa estória que eu contei pode ser a sua
estória. Você já imaginou? (Para todas) Vocês já imaginaram?
As três postulantes (Com entusiasmo) A nossa estória? Nossa? (Sorriem todas umas para
as outras)
Teatro reunido Hilda Hilst 269
América Mas é horrível, beijar a ferida dos... dos outros. Mesmo que fosse a
ferida da gente. E por que a senhora conta sempre essa estória ?
Sempre a mesma. Pras meninas e pras postulantes. Não tem outra
menos macabra?
América (Decidida) Mas por quê? A estória é até nojenta. E se ela é nojenta
porque eu não posso falar? O próprio Monsenhor disse que gostaria
de ouvir tudo o que eu pensava.
SEGUNDA CENA
As mudanças de cena são muito rápidas. Luz intensa sobre o plano A, onde já está América e
o Monsenhor. Cadeira negra, de espaldar muito alto para o Monsenhor e um banco para
América.
América (Sorrindo) Uma que ela se aborreceu foi sobre a Nossa Senhora.
Monsenhor (Brando) Não nos cabe o julgamento dessas revelações. É preciso ter
fé.
Monsenhor (Amável, mas firme) Mas a fé não pretende que você deixe de pensar.
A fé não pretende que você abdique de sua inteligência.
América (Sorrindo, com tímido desdém) Mas isso não é lógico. Como posso
acreditar numa coisa que é absurda? Todo mundo sabe que é
impossível ser virgem e dar à luz.
Monsenhor (Grave) Há verdades imutáveis. Divinas. Aos poucos, pela fé, todas as
dúvidas ???tornar-se-ão verdades também no seu espírito. Entendeu?
América (Sorrindo) Monsenhor, mas...
Monsenhor (Levemente agressivo) É sua culpa sim, minha filha. (Pausa) Que tipo
de argumentos você usa?
Teatro reunido Hilda Hilst 273
Monsenhor (Voz baixa, ainda hostil) Mais do que isso, América, muito mais.
(Pausa. Toca no braço de América. Tom confidencial) Elas sonham
com você. Você sabia?
Monsenhor (Muito sombrio) Se todas começarem a sonhar com você, você corre
um risco. E eu não poderei... Olhe, eu posso algumas vezes te auxiliar,
mas não numa questão de vida ou... Acautele-se.
América (Muito surpreendida) De vida ou... Mas eu sou eu, América. É uma
maneira de ser.
América de início fixa o Monsenhor como se achasse muito difícil explicar o que vai dizer. O
Monsenhor vai gradativamente mudando a expressão do seu rosto. Está sombrio, mas aos
poucos vai sorrindo, analisando América. A mudança é simultânea em América e no
Monsenhor. É como se de repente eles resolvessem descobrir alguma coisa um do outro.
América, ainda com certa precaução, vai inventar uma estória porque sabe que é a única
maneira de dizer o que pensa é inventar uma estória nos moldes tradicionais, inventando pais
mais ou menos normais e um irmão mais velho para que o Monsenhor dê maior importância ao
seu relato. Eta e Dzeta são, para América, apenas símbolos de sua estória, mas o Monsenhor
vai encarar tais símbolos de maneira diversa, dando-lhes uma nova realidade, realidade essa
insuspeitada para América.
O vigia faz movimentos que acompanham o relato se América, isto é, inclina gradativamente o
tronco e cabeça como se seguisse com espantosa atenção o percurso de Eta e Dzeta.
América (Ilustra o que conta) Era assim, Monsenhor: saiam daqui. Caminhavam
juntas em linha reta, iam andando, iam andando, chegando no fim da
caixa, aí iravam sobre si mesmas e repetiam o mesmo caminho até o
ponto de partida. Depois começavam tudo outra vez. (Pausa)
Teatro reunido Hilda Hilst 275
América E isso era impossível. Tudo tinha sido planejado para que nada
modificasse o comportamento de Eta e Dzeta.
América (Como se já esperasse essa resposta) É... foi o que o pai disse. (Tom
de estudada inocência) Mas minha mãe... (Finge não querer continuar)
Teatro reunido Hilda Hilst 276
América (Objetiva e empolgada) Minha mãe disse que achava a estória nova.
Nova, ela repetiu bem alto. E meu irmão respondeu: “Pois é. Ser novo
é uma maneira de ser...” E assim as coisas se passam comigo também.
Eu quero dizer que eu sou eu mesma, América. Uma maneira de ser.
(Pausa)
Monsenhor Sim sim, minha filha, compreendo. (Pausa. Intrigado) Mas me diz...
como eram essas pequenas coisas... na aparência?
América É, e...
lacrimejaram. (Pausa) Não, espera, uma vez só, mas foi de madrugada
e nessa hora não teve muita importância porque os deveres já tinham
sido cumpridos e todos estavam dormindo.
América Daí que quase não havia perigo para Eta e Dzeta (Pausa longa.
Monsenhor caminha. Percebe-se que ele está profundamente
interessado. Olha algumas vezes para América, faz gestos lentos, alisa
o rosto, o queixo. Está pensando seriamente na estória e numa
provável aplicação de Eta e Dzeta. América acompanha o Monsenhor
com os olhos e tenta demonstrar indiferença diante de suas reações.)
Monsenhor É, o vigia.
América Ah, ele roía uns tabletes vitaminados, mas não desviava os olhos...
(Pausa)
Monsenhor Mas pelo menos uma coisa ainda hoje. E o seu irmão? (Pausa)
Entra a irmã Superintendente sem ser notada pelo Monsenhor. As mãos enfiadas na manga.
Monsenhor Mas aos poucos ela poderá ter um comportamento razoável. (Tom
levemente persuasivo) E se a senhora, com seus dotes de paciência,
conseguir assimilar América?
Monsenhor (Firme) Não seria bom. Ela seria afastada. E isso não é agradável para
nós. Ela se destaca das outras. (Pausa) Quem sabe se existe dentro
dela certa ambição... louvável?
Monsenhor O desejo de progredir, por exemplo. Por que não criar o cargo de
vigilante para as classes? Um cargo de confiança.
Superintendente (Esboçando recusa) Será difícil, ela é muito soberba. Outro dia
ordenei que ela abaixasse os olhos como castigo para uma resposta
grosseira e ela me respondeu que talvez sim??? abaixasse os olhos,
mas só diante de Deus. E depois ela poderá pensar que tento agradá-
la. Isso seria terrível. Sentir-se-á importante. Pode até anular minha
autoridade. (Pausa) Não será melhor castigá -la?
Superintendente (Levemente hostil) E por que o senhor mesmo não tenta falar com ela
e assim resolve essas coisas que me propõe?
Monsenhor Mas eu posso ter as minhas próprias idéias, não irmã? E se de repente
elas coincidem em parte com as de América? (Espanto da
Superintendente. Monsenhor continua com pretensa amabilidade) Não
é tão grave, irmã.
Superintendente (Com alguma soberba) Por que não dizer que eu quero substituir o
conteúdo deste odre velho que é meu corpo pela claridade do...
Monsenhor (Interrompe) Mas Deus pode ser treva. Pode ser a grande noite.
(Pausa)
TERCEIRA CENA
Luz intensa sobre a Superintendente, que está sentada na cadeira do Monsenhor, e sobre
América.
América Fidelidade. (Tocando com uma das mãos o próprio peito) A tudo aqui
de dentro.
Superintendente (Indignada) Você chama de parábola o que você conta àquelas que
um dia vão fazer parte da Ordem?
Superintendente Você não se contenta com nada. Não será mais vigilante da sua
classe, tarefa aliás que você desempenha muito mal, porque está
sempre se intrometendo com aquelas que logo mais pertencerão a
Deus.
América Que ele pode ter dado uma outra versão à minha estória.
Superintendente Mais uma parábola? O Monsenhor não pode perder tempo ouvindo
suas fantasias. Tem mais o que fazer. Tem deveres.
visivelmente perturbada. As partes mais importantes dos textos das cooperadoras devem ser
repetidas, como quando se retrocede um gravador e se escuta de novo. Por exemplo, e fala: “É
de seu dever procurar entre os cooperadores do Instituto aquele que se encontra em íntima
dissonância com a própria tarefa.” Escuro total. Luz. Repete-se a cena. Outra: “Pois Eta e
Dzeta são como um termômetro, acusam as oscilações da consciência, acusam as asas do
espírito” Escuro total. Luz. Repete-se a cena. Os textos devem ser repetidos algumas vezes.
América mostra grande aversão pela fala das cooperadoras. Tensão. Intensidade.
As duas
Cooperadoras Chefes (Tom objetivo, seco, de comando) Agora que você viu Eta e Dzeta
moverem-se, sua função se ampliará. Você não será mais o simples
vigia das pequenas coisas, mas irá gradativamente adquirindo novos
postos. (Primeira cooperadora) Agora será diferente. (Segunda
cooperadora) Agora será diferente. (Juntas) Todas as vezes que Eta e
Dzeta apresentarem modificações no comportamento, é de seu dever
procurar entre os cooperadores do Instituto aquele que se encontra
em íntima dissonância com a própria tarefa, pois Eta e Dzeta são
como um termômetro, acusam as oscilações da consciência, acusam
as asas do espírito, e essas são as únicas razões do seu percurso
anormal. Devemos zelar para que isso não aconteça. Devemos zelar
para que isso (Com ênfase) nunca aconteça.
Escuro nos dois planos e imediatamente luz intensa no plano A, onde estão a Superintendente,
sem o hábito, com roupa mais simplificada, e América. A partir daqui ocorre toda a
modificação nos personagens, mostrando que a comunidade não é de forma alguma a mesma.
América (Muito perturbada) Não era isso que eu queria, não era isso, isso não.
Superintendente (Com assombro) Mas o que foi? O que foi, América? O que é que
você não queria?
América (Muitíssimo perturbada) Era maior do que isso... era muito maior do
que isso.
Superintendente Escute, América, preste atenção, acalme-se. Vamos falar com maior
clareza. (Pausa) De início quero lhe dizer que não tenho mais a
intenção de lhe tirar o cargo de vigilante. Você pode até ser chamada
para um alto posto. Reconsiderei. (Pausa) Está melhor? (Pausa longa)
América (Lenta, olhar vago, voz baixa) E como seria esse novo posto?
Teatro reunido Hilda Hilst 285
Superintendente Sim. E nesse novo posto você apenas nos indicaria aquelas que não
estão contentes.
Diminui a luz neste plano. Cena imóvel. Luz intensa sobre o plano C.
Cooperadoras Chefes Muito bem. É isso mesmo. Vimos que você compreendeu.
Cooperadoras Chefes (Amáveis) Nem pense nisso. Não será um caso de delação, pois
todas as cooperadoras deste Instituto são pessoas altamente capazes.
É natural no ser humano um possível deslocamento de interesses, um
não conformismo entre os seus altos ideais e o seu trabalho diário. Os
cooperadores serão sempre mantidos nos seus postos, porque a
rotina, o trabalho, a disciplina, lhes dará a dimensão necessária para
prosseguir.
Superintendente (Tom reconciliatório) Delação. Que termos você usa. Não seja tola. É
natural uma certa inquietude no coração das criaturas quando o dia a
dia sofre certas modificações. Você pensa por acaso que eu castigaria
alguém? Quero guiá -las unicamente.
A partir daqui, América vai falar como alguém que, através de uma compreensão particular e
única, separou-se dos demais. Acentue-se a transformação de América. O tom será calmo,
algumas vezes apaixonado, mas sempre lúcido e grave.
América Rumor vindo de uns lados do lá fora. (Pausa) Agora sei que se fará
em mim um novo tempo.
Superintendente América, você é como o Monsenhor disse: “Um grito que se abre.”
Essa é você: um grande grito.
América Essa foi uma imagem de mim. A outra será construída em solidão.
(Pausa) Alimentada e diversa... dividi-me. E se uma agora se extingue,
a outra se fará solar e rara.
Superintendente E se uma agora se extingue? (Pausa) Mas você nunca mais poderá
voltar atrás. Agora não moça (Pausa. Tentando reconciliação)
América, escute, talvez nos fomos longe demais com você. Mas era
preciso saber se a sua palavra, ou como você diz, as suas parábolas,
se transformariam em verdade no espírito de todas. E isso aconteceu,
América. A alma da nossa empresa é nova.
Escuro total.
Teatro reunido Hilda Hilst 288
QUARTA CENA
Luz no plano A, onde está América, e luz no plano B, onde estão as três postulantes. Os
objetos do plano A devem ser retirados. América ilustra a estória que vai contar, fazendo os
dois personagens. No entanto, América vai acentuar recursos de mímica assim como os usados
numa peça infantil. Ela quer ser clara e didática.
Durante este relato de América, as postulantes que usam agora uma roupa mais simplificada,
apenas com uma cruz no peito, mantêm atitude rígida e distanciada. Alguns risos muito discretos
evidenciam que as postulantes acham grotesca e ridícula a atuação de América.
As três postulantes (Irônicas, sorrindo) Ela está diferente. Ela está diferente. Não é mais
América contente. Ela está diferente.
Primeira Postulante E quem era esse homem tão esquisito, América? (Pausa)
Superintendente América, peça uma coisa e nós lhe daremos. Peça, vamos.
Primeira Postulante Ora, esse todo mundo sabe que foi um golpe de Marta para fazer a
prévia do homem Jesus.
As três Postulantes Como você ficou boca. Ninguém pode ser filho de uma virgem.
Teatro reunido Hilda Hilst 291
Superintendente (Com pretensa piedade) As coisas que ela diz... Agora é preciso
castigá-la. Será que ela contou coisas assim para as outras?
Primeira Postulante Para as outras não, irmã. Mas contou para nós.
Primeira Postulante (Com desdém) Ela contou a estória de um homem que dizia que o
caminho continuava na floresta e...
Primeira Postulante A mulher para quem ele perguntou disse que o caminho acabava ali
mesmo onde ele estava.
Segunda Postulante (Tom acusatório) E América disse que esse homem era um sonhador.
Terceira Postulante (Hostil) E que ela, América, era igual a ele. (Pausa)
Superintendente Por isso, minha filha, é preciso atenção. Usar sempre a cabeça e não
arrancá-la como faz América.
Segunda Postulante (Com muita ironia) Ninguém vê uma cabeça que não existe.
As postulantes tiram de algum canto um camisolão preto e jogam por cima de América como se
fossem vesti-la. Mas fazem-no de forma a Não deixar que a cabeça de América passe pela
abertura.
Escuro total. Dar um tempo. Luz gradativa. América está sozinha no mesmo plano e já vestida
com o camisolão preto. Quase madrugada. Clima muito sombrio.
América (Profundamente comovida, lenta, mas não como alguém que se sente
derrotado, muito como alguém que sofre piedade e extrema lucidez)
Superintendente (Com autoridade) América, você vai receber uma visita. Vamos,
prepare-se para receber o Inquisidor.
Inquisidor Sim, a sua mãe de carne e osso, não a sua Virgem. (Pausa) Vamos,
fale.
Inquisidor Ah... estamos indo muito bem... Aquela estória era sua, não? Muito
boa, muito boa. Foi qualificada: Eficiente. (Pausa. Tom severo) Quer
dizer que seu pai também não é aquele? Então como era seu pai?
(Pausa)
América Sim.
QUINTA CENA
Bispo (Para o público) O Deus de que vos falo não é um Deus de afagos.
Inquisidor É mudo.
Bispo Essa que vos inunda os olhos (Apontando América com bastante
ironia) quando o canto da infância se refaz. (Pausa)
Inquisidor (Tom suave, íntimo, contínuo) Vossas crianças claras sobre a laje.
Bispo (Com pretensa piedade) Vossas mães no vazio das horas... (Pausa)
Bispo (Seco) Estamos aqui para ouvi-la, moça. Por que se modificou? De
início, como foi constatado junto às postulantes e às outras jovens, o
seu pensamento era belo, novo, racional. Suas dúvidas foram um dia
as nossas, mas o homem resolveu os mistérios aparentes.
Inquisidor (Moderado) Sua conduta, América, foi de início tão coerente com as
nossas atualíssimas proposições que lhe foi concedido o cargo de
vigilante de sua classe. E então... por que se modificou? (Pausa)
Bispo Assim nada se escuta. Eu não ouvi nada moça. O que foi que você
disse? Fale alto, fale alto.
América Que eu talvez não saiba como dizer. Eu digo que agora eu sei que
existe... o mistério. O imponderável.
Inquisidor (Firme) Mas aí é que está o seu erro. Não há mistério nem
imponderável algum.
América Eu quero dizer... que algumas verdades... essas que são imutáveis...
Inquisidor (Moderado, para América) Bem. Mas foi preciso saber se você era
na verdade uma reformuladora consciente.
Bispo (Irritado) Moça, não se faça de louca. No seu caso não terá sucesso.
Como não compreende? Você foi o nosso termômetro. Por seu
intermédio soubemos que era o momento de agir.
América (Tom apaixonado, mas calmo) Senhor, eu sei que não é assim. OS
senhores querem me provar novamente, não é? Mas eu juro... meu
peito está abrasado de amor e eu acredito no Anjo, na Anunciação e
na Grande Senhora que foi Virgem antes do parto, no parto e depois
do parto, na ressurreição...
Superintendente (Indignada) Que heresias ela diz. Será um caso de prima facies.
Grave.
Teatro reunido Hilda Hilst 300
América (Firme e apaixonada) Eu sei que não foi assim, senhor. Um anjo disse
a Maria: “Eu vos saúdo, cheia de graças, o Senhor é convosco.
Bendita sois vós entre todas as mulheres. Dareis à luz um filho. Ele terá
o nome de Jesus. Será chamado o filho do Altíssimo.” E ela
respondeu: “Como poderá isso acontecer se não conheço homem
algum.” E o anjo continuou: “O Espírito Santo descerá sobre vós. O
poder do Altíssimo cobrir-vos-á com a sua sombra. Ele será chamado
filho de Deus.”
Bispo (Desgostoso) Oh, as trevas que podem descer sobre a cabeça das
gentes.
América (Grave, sem medo) Mas o Deus é um, senhor. Três vezes santo.
Inquisidor (Irritado) É preciso que você se explique. Isso não quer dizer nada.
América Eu não posso pôr em palavras o mistério. Posso apenas dizer que
tenho corpo e alma e sou uma só, mas...
América Não senhor. Eu não posso dizer isso... posso apenas dizer que uma
flor tem muitas pétalas mas é uma, assim como eu tenho braços e
Teatro reunido Hilda Hilst 301
América Mas eu não posso falar do mistério com a linguagem que conheço.
Inquisidor (Solícito, com ironia bem oculta) Olha, minha filha, você não seria
capaz de fazer uma demonstração lúcida desse seu... mistério? Isso
poderá salvá-la. Quem sabe uma equação...
Bispo Mas a fé não faz milagres? Não faz milagres? Vamos vamos. O
quadro negro.
América (Com estupefação) Mas não há coisa alguma que se pareça a essa
trindade, senhor.
Seria clara como coisa... se sobrepondo a tudo que não ouso. Seria
clara como coisa... sob um feixe de luz num lúcido anteparo. Seria...
ouro e aro na superfície clara de um solário. (Pausa)
América (Levantando a voz) Eu falarei com os mortos? Estão mortos esses que
me vêem?
América (Com humildade mas firme) Senhora, o meu olhar pode ver o mais
fundo das coisas.
América (Febril) A madeira dessa cruz que ostentais no peito será igual à
madeira deste banco ou desta cadeira onde me acusais? Será igual?
Inquisidor Nós somos aqueles que perguntam, moça. E você é aquela que
responde. Vamos, à lousa.
Inquisidor Ora ora, não pode... Vamos. (Joga um giz para América) Aqui está
um giz para suas grandes demonstrações. (Pausa)
Bispo (Voz baixa para o Inquisidor, muito grave) Nem as crianças nem os
loucos falam assim.
Superintendente (Para o Bispo) Será que não seria conveniente alguns cursinhos? Nós
reuniríamos todos e...
Bispo O quê?
E isso quer dizer: Trabalhar para comer, comer para trabalhar. E estas
duas essencialidades (Faz um círculo ao redor da fórmula) serão
moldadas numa única essencialidade vigorosa. (Faz outro círculo ao
redor do primeiro) Esta: A Técnica. (Escreve Técnica no quadro
negro e faz uma seta. É isto em conjunto o que o Inquisidor desenha:
DESENHO
Bispo (Enfastiado) Bem bem. Tudo isto se arrasta em demasia para o meu
gosto. (Pausa) Senhor Inquisidor... qual seria uma solução justa?
Bispo Não considero eficiente a sua sugestão. (Sorri) Às vezes uma galinha
pode parir um cisne.
Bispo Claro, claro, isso nunca. Mas haveria relatórios diários. Seriam
anotados a enviados ao senhor. Todas as tardes uma exposição
completa das idéias daquele dia.
Inquisidor Temerário. Já houve idéias que nos irritaram bastante, o ponto ômega
que vai subindo, subindo até não se sabe onde.
Bispo Mas quem sabe uma chamazinha não muito alta... Certas
potencialidades ainda não captadas, quero dizer, ainda não
registradas... ela é jovem, pode de súbito adquirir eficiência...
pensante.
Bispo Bem bem, temos que chegar a uma conclusão, senão será preciso
recorrer ao Supremo. Vamos, pensemos. (Pausa) O jejum?
Inquisidor Ora que bobagem, que bobagem. Começará a ter visões. (Pausa)
Bispo O exílio?
Superintendente A flagelação?
Bispo Mas por favor, Superintendente... aí sim é que ela pode subir aos
céus. Que tolices. (Pausa. Tom reconciliatório) Moça América: se
confessar a sua culpa, se se retratar, a sua situação pode adquirir um
novo aspecto. Lembre-se minha filha: aqui não é um tribunal qualquer.
Queremos a sua salvação.
Inquisidor Levante-se.
Inquisidor Ofereça-nos uma grande vantagem para que isso não aconteça.
Bispo (Um pouco magoado) Eu fiz uma boa sugestão: os jardins. Mas o
senhor não apreciou devidamente. Pense noutra então. E, por
gentileza, rápido, se me faz o favor.
Bispo Benignidade.
muito alta e apaixonada) Ah, boca de uma fome antiga, rindo um riso
de sangue. Se pudésseis abri-la para cantar meu canto.
Teatro reunido Hilda Hilst 309
SEXTA CENA
Luz em resistência no plano C, onde está a caixa de Eta e Dzeta, que fazem ruídos débeis,
descompassados, e as cooperadoras chefes, que estão vestidas com roupa de laboratório.
2a Cooperadora O quê? Sobreviver? Claro que ela desejará sobreviver. De início fará
o seguinte raciocínio: eu preciso continuar existindo assim como sou,
para que Eta e Dzeta fracassem. Você sabe como é, a postura do
herói, tenacidade... sacrifício. Depois lentamente as duas pequenas
coisas a conquistarão. E ela continuará existindo... mas conquistada.
1a Cooperadora A outra equipe fez o bastante para melhorar Eta e Dzeta na aparência.
Apesar de que eu, pessoalmente, não julgava necessário.
1a Cooperadora Olhe bem. (Tom brando) Você acha que elas estão melhor assim?
2a Cooperadora Muito. Como eles foram delicados. Veja, até pintaram aquela segunda
garra de Dzeta.
1a Cooperadora Se América não se recuperar num prazo razoável, talvez Eta e Dzeta...
Teatro reunido Hilda Hilst 310
1a Cooperadora Chegaram a isso? Mas não deveria acontecer. Temos tido tanto
cuidado... e a luz tem sido intensificada todos estes dias.
1a Cooperadora Surpreendente... sim... mas não podemos nos esquecer que América é
fanática, fanática minha amiga.
2a Cooperadora Mas assim chegamos à conclusão de que Eta e Dzeta não só acusam
as oscilações da consciência, mas também a intensidade do conflito.
Ora, isto não estava previsto.
1a Cooperadora Ora, uma coisa que foi construída, racionalmente, não pode
ultrapassar a intenção daquele que a construiu e tomar vida própria.
2a Cooperadora Mas veja: se América assim que assumir o posto fizer uma ação
compensatória, é quase certo que Eta e Dzeta resistam a esse terrível
abalo.
1a Cooperadora Mas alguma coisa não está certa. Isso que aconteceu não podia
acontecer. Nós poderíamos aperfeiçoar todo o mecanismo e Eta e
Dzeta acusariam não somente as asas do espírito, não somente a
intensidade do conflito, como verificamos, mas poderiam influir no
âmago, na medula de todo aquele...
2a Cooperadora Olha, ela está chegando. Agora é preciso muito cuidado com Eta e
Dzeta.
Entram América e a irmã Superintendente. América usa a mesma roupa das cooperadoras
chefes.
Superintendente (Para América, atitude maternal) Aqui você estará bem, minha amada
filha. E aos vossos cuidados senhoras cooperadoras.
2a Cooperadora Pode ficar tranqüila irmã Superintendente. Tudo será feito para
reintegrar América.
Superintendente Sim... mas não é só isso que a cúpula deseja. Desejamos antes de
tudo que ela continue com alguma coisa que ainda tem.
Superintendente (Com alguma cautela) Sabe o que ela foi capaz de dizer ao senhor
Inquisidor?
1a Cooperadora Ela disse alguma coisa que não consta dos nossos relatórios? Isso me
parece grave.
Superintendente Justamente por isso vou lhe dizer o que não constou dos relatórios. (A
Superintendente tira do bolso um papel e lê, enquanto a Cooperadora
toma nota) Ela disse (Tom objetivo): “Sendo quem sou, em nada me
pareço. Sendo quem sou, não seria melhor ser diferente, e ter olhos a
mais, visíveis, úmidos, ser um pouco de anjo e duende?”
Superintendente Mas veja bem, ela disse “não seria melhor”, e não afirmou que é
alguma dessas coisas.
Superintendente (Muito objetiva) A sua tarefa, Cooperadora, é fazer com que América
deseje ardentemente cantar (Acentua) “o nosso canto”. E cantar com
Teatro reunido Hilda Hilst 313
1a Cooperadora A pulsação?
2a Cooperadora América, daqui por diante você tomará conta das pequenas coisas.
Chamam-se Eta e Dzeta. Vê como são bonitas... (Com melosidade na
voz, e um certo tom burlesco) ...brilhantes, veludosas, não te vêm à
cabeça os brinquedos de antes, de pelúcia? E ao mesmo tempo que
ritmo, que astúcia nesse caminho... vê só... de ida e volta. E que
graças nas garras, que brilhosa aquela segunda garra esmaltada de
rosa. América, toda essa sutileza, essa fina apreensão de Eta e Dzeta
nós devemos à técnica. E essa delicada aparência, esse existir astuto e
moderado, tem infinitas conotações éticas e estéticas. E... bem, o
mecanismo é aparentemente simples, mas que complexidade nisso de
devorar a luz dos outros (América dá sinais de extrema perturbação,
percebe-se que ela está em agonia. Isso não é notado pelas
Cooperadoras, porque a segunda está encantada com o próprio
discurso, e a primeira encantada em ouvi-lo) ...e existir através de
alheias luminosidades. Se há luz (Toca o próprio peito) aqui por
dentro, Eta e Dzeta devoram... (Sorri) mas só por um momento. Em
seguida transformam o teu pretenso vulcão em sábio entendimento. E
há coesão, harmonia, surpreendente limpeza, e mais (Com rigidez): No
fundo dessas carapaças quase imateriais há o poder de impulsionar e
dirigir seguidas gerações. (América imobiliza-se. Está morrendo. O
Teatro reunido Hilda Hilst 314
A segunda Cooperadora, ainda muito maravilhada com as palavras que acabou de pronunciar,
maravilha-se ainda mais quando percebe que o ruído de Eta e Dzeta está intenso e perfeito.
Então olha para América, e em seguida para a primeira Cooperadora, com evidente
encantamento.
F IM
Teatro reunido Hilda Hilst 315
Hilda Hilst
O rato no muro
1967
Teatro reunido Hilda Hilst 316
PERSONAGENS
Irmã Superiora
Irmã B
Irmã D
Irmã E
Irmã F
Irmã H
CENÁRIO
Interior de uma capela. Paredes brancas com algumas manchas negras, como as de um
incêndio. Ao fundo, uma cruz enorme, negra. No chão, a sombra de uma cruz luminosa onde as
mulheres se movem. Um vitral, ou uma grande escultura representando a figura de um anjo,
talvez semelhante ao “Anjo velho” de Odilon Redon, ou um anjo que dê a impressão do que
nos fala Marcel Brion: “Que reste-t-il à un ange qui a perdu jeunesse et beauté, attributs de son
angelisme? Ses ailes sont incapables de le soulever et de ramener vers le ciel, l’ange dèchu est
dejá evanhi par la banalié, la laideur, la mediocrité.”
O cenário deve ter dois planos. É preciso que se veja o interior da capela e ao mesmo tempo
em certos momentos uma cerca que estaria a alguns metros de um muro que jamais se vê.
Na capela, alguns castiçais, um banco e uma pequena janela.
As mulheres freiras estão em círculo, ajoelhadas, e ao lado de cada uma, um pequeno chicote
de três cordas.
A Superiora está de pé, afastada das outras.
Teatro reunido Hilda Hilst 318
As nove freiras
juntas Nós somos um. Nós somos apenas um. Um só rosto. Um. (Pausa)
As nove freiras
juntas (Tom salmódico) De todas as nossas culpas, perdoai-nos. De todas as
nossas culpas, salvai-nos. De todas as nossas culpas, esquecei-vos.
As nove freiras
juntas (Tom cantado e agudo, em tensão crescente) Tentai esquecer-vos,
Senhor. De todas as nossas culpas, entristecei-vos.
As nove freiras
juntas (Tom mais agudo, tensão crescente) Alegrai-vos, para que nós nos
esqueçamos de todas as nossas culpas.
As nove freiras
juntas (Tom cantante, destacando as sílabas) Muitíssimas.
As nove freiras
juntas (Tom ainda cantante, mas separando as sílabas no ritmo de um
relógio) Tan... tás Tan... tás Tan... tás
As nove freiras
juntas (Tom cantante esticado) Ai, sim... ai, sim... A... I... A... I
Superiora (Bate palmas três vezes) Irmã A. Diga uma delas. Uma de suas culpas
de hoje.
Superiora Irmã B.
Teatro reunido Hilda Hilst 319
Superiora Irmã C.
Superiora Irmã D.
Irmã E (Angustiada) Hoje eu não tive para quem dar o meu pão, nem o leite.
Ah, procurei-o tanto, procurei-o tanto! (Seca) E porisso me esqueci
de plantar os girassóis na cerca. (Chora)
Irmã F Hoje o dia foi tão longo... Olhei o pássaro que pousou na janela. Tive
vontade de ser.
Superiora Irmã G.
Irmã G (Muito velha) Ah, não sei, não sei. Vivi pensando em comer, como
sempre, é uma coisa do meu ventre. É doença.
As nove freiras
juntas (Cansadas) Oh novamente! Oh novamente!
Superiora (Muito severa) Irmã I! Diga uma de suas culpas de hoje. Não foi o
que lhe ordenei?
O Dominus Vobiscum é repetido três vezes, sempre mais intenso, tons agudos. O tem da
Superiora não é cantante. É sempre rápido e grave. Depois do Dominus a Superiora bate
palmas uma vez.
As freiras repetirão o ritual três vezes. Na última vez o tom é agudíssimo. A irmã H recua
sempre mais até ficar bem próxima à cruz. A Superiora, depois do canto, bate palmas
novamente. I olha em desespero para H. As freiras levantam-se. Saem em fila. A Irmã H fica
sozinha, examina febrilmente as manchas, o anjo. Pára diante do anjo.
Irmã H Mas tu serás assim tão velho? E tão triste? E eu poderia ainda te
cantar como um dia te cantei? Se algum irmão de sangue, de poesia,
mago de duplas cores no meu manto, testemunhou seu anjo em muitos
Teatro reunido Hilda Hilst 321
Irmã H Mas eu não posso. Você não vê que eu não posso? Eu não sei o que
inventar... e depois... eu não consigo me esquecer... deles, você não
entende? Deles.
Irmã I Mas o que adianta você se lembrar, nós nos lembrarmos? Eles se
foram. Foram embora. Não há mais nada que fazer. Ficamos nós,
neste lugar.
Irmã I Faz muito tempo, meu Deus! Já faz muito tempo! Muito tempo.
Irmã H E por que você acha que eles não podem voltar?
Irmã I Porque é uma coisa evidente. Eles levaram todos. Você acha que não
está bem claro? Que se nós ficamos era para ficarmos?
Irmã H Mas para quê? Por quê? Não tem sentido algum.
Irmã I Mas aqui tem uma árvore, tem água, tem alimento. Onde é que você
quer ir?
Teatro reunido Hilda Hilst 322
Irmã H Será que você não compreende? E se foi à toa que nós ficamos? Por
nada, por nada. Por esquecimento talvez. Por nada.
Irmã I Então você acha que é possível que eles tenham se esquecido de
alguma coisa?
Irmã I O quê?
Irmã H As manchas.
Irmã H Não são as mesmas. Elas crescem a cada dia. Você não vê?
Irmã I Não, não vejo. Por que é que você insiste? (Pausa)
Irmã H Escuta, se o animal morreu, não teve sentido ele ter ficado.
Irmã I Mas milhões de animais ficaram. Devem estar por aí. A gente é que
não vê.
Irmã H Mas se ele morreu... se ele havia ficado... se ele havia ficado ele não
podia morrer, você não compreende? Não tem sentido.
Irmã H Mas sacrifícios para quê? Não há mais para que, nem porque fazer
sacrifícios. Então você mesma não disse que não há mais ninguém,
ninguém? Só os animais.
Irmã I Mas talvez me engane. Alguém certamente deve ter ficado, não é? E
se fizermos tudo para não pensarmos mais nisso, hein? Por favor... por
favor.
Teatro reunido Hilda Hilst 323
Irmã H Você viu quanto tempo eles levaram... e quantos eram... o céu...
coalhado... horas... dias, dias, que noites! Haverá alguém além de
nós? Alguém?
Irmã H E será por esse ou por essa que eu farei tanto sacrifício? Vem comigo,
por favor. Vamos embora. Quem sabe se eles estão colhendo gente
ainda e nós não vemos.
Irmã I Ainda que haja uma só criatura devemos ficar e rezar por ela. Não
fizemos o nosso voto? E se eles estão na colheita, ainda, virão até nós
um dia. Uma noite.
Irmã I Mas você não poderá jamais sair daqui. Nem eu. Há o muro.
Irmã I Uma saída? Você sabe que é impossível, você sabe que quem toma
conta do muro é a madre.
Irmã I Dorme... você chama aquilo de dormir? Você acha que quem toma
conta do muro pode dormir? E além disso existe a cerca que ela
mandou fazer. A cinco metros do muro.
Irmã H Porque nenhum muro pode ser tão alto, nenhum poço tão profundo.
(Pausa)
Irmã G Pobrezinha! Sabe, eu pensei se a senhora não teria por acaso uma
rosquinha... Ah, Irmã I, a senhora também está, eu compreendo, quer
ajudar a irmãzinha, não é? Não direi nada, nada, pode ficar
sossegada, mas não tem uma rosquinha? Tenho tanta fome.
Irmã G Mas a senhora não disse que não teve para quem dar o seu pão e o
seu leite? Antes era para o gato. Agora pode dar para mim. Ele
morreu... foi maldade, mas ele morreu.
Irmã H Mas não fui eu quem disse do leite e do pão... Alguém disse isso?
Irmã G (Tom cantante) Ai... Aí... A... í... A... í. Sempre me confundo.
Irmã G (Conta nos dedos) A, B, C, D, E... Ah, é isso mesmo, foi a irmãzinha
E, pobrezinha.
Irmã I Quem sabe se a irmã D, porque matou e está mais aliviada, não lhe
conseguirá uma comidinha?
Irmã G A irmã D? Deus me livre. Tenho muito medo. Ela põe sempre o
veneno para cupins perto da nossa comida. Alguém menos avisado
pode pensar que é mel. É da mesma cor... Mas não tem mesmo uma
rosquinha?
Irmã G Mas é verdade? Pode estar mentindo só para poder confessar uma
culpa amanhã.
Irmã H Sinto muito, irmã G, mas é verdade. Não tenho mesmo nada.
Irmã G Está tão escuro aqui... Vamos acender mais algumas velas? (Acende
duas ou três velas) Bem... bem... (Aproxima o castiçal do rosto da
irmã H) Oh... mas está tão pálida, pobrezinha.
Irmã I e H O quê?
Irmã G O hálito.
Irmã I e H O hálito?
Irmã G É... o que saía de dentro... era luminoso... quando eles moviam os
lábios.
Irmã H Não...
Teatro reunido Hilda Hilst 326
Irmã G (Escondendo-se) Eu não quero que ela me veja... Pode me deixar sem
comer de pura maldade.
Irmã A (Os olhos muito abertos) Estão aqui? Tem alguém aqui? Ah, estão,
que bom... A Irmãzinha G também está?
Irmã A Ah, Irmãzinha, a minha vista, os meus olhos... Hoje de manhã havia sol
e eu me alegrei, mas agora...
Irmã A A senhora me compreende bem. Não sei se é a memó ria que nos
confunde, mas havia tanta luz onde eu nasci. Não sei se era tanta, tanta
luz, porque depois... (Olha cautelosa para os lados) deles, o que nós
vemos ainda é luz? Primeiro me vêm à lembrança certas águas... o rio,
o rio enorme da infância. Um sol que cegava todos. A mim, não. E
muitos diziam: só ela é que não põe a mão sobre os olhos, um dia
certamente ficará cega. Mas isso não aconteceu. Vejo perfeitamente,
só que à noite os olhos doem. Eles precisam da luz do sol, e por isso,
para não incomodá-los, fico assim de olhos bem abertos... sempre há
alguma luz ao redor, não é mesmo? Talvez a Irmãzinha G tenha alguma
coisa para mim.
Irmã G Não tenho nada e nem consigo lembrar-me se tenho ou não, com essa
fome que estou.
Irmã G Muita, muita. Por quê? Tem alguma coisa aí? Procurem. Procure. (As
três freiras, A, I e H, procuram nos bolsos do hábito)
Irmã A A senhora tem sorte, pois agora me lembrei desta maçã. Tome.
Irmã G Uma maçã? Verdade? É verdade... mas onde foi que descobriu?
Irmã G Tenho tanto medo... A Irmã D não terá posto o remédio na maçã?
Teatro reunido Hilda Hilst 328
Irmã H Meu Deus, desde Adão que não vejo tanto medo de maçã!
Irmã A Deles?
Irmã G Não sei se era uma corda mas era bem luminoso.
Irmã H O tato.
Irmã I A temperatura.
Irmã A Da pedra?
Irmã I É você?
Irmã H É a Irmã B.
Irmã B Precisava.
Irmã B Não. Agora existe a cerca. Mas havia a sombra do muro. É quase a
mesma coisa. E perto da cerca a terra estava revolvida.
Irmã G É por causa dos girassóis que serão plantados amanhã. Você tem
alguma coisa aí? (Procura nos bolsos da Irmã B)
Irmã H Quem?
Todas (menos
a Irmã G) Por quê?
Irmã G Procurem outra vez nos bolsos alguma coisa para mim.
Irmã G (Para a Irmã B) Não tem mesmo nada? Você não procurou direito.
Todas (menos a
Irmã G) Por quê?
Irmã B Tenho as balas que a Irmã D fez para comemorar a morte do gato.
(Tira muitas balas, do bolso do hábito, enroladas em papel colorido)
Irmã H (Para a irmã B) Diga de uma vez porque é que ela quer que a gente se
esqueça do muro.
Irmã B Mas é tão claro! Antes... quando (Olha para os lados) eles ainda não
tinham vindo, a gente quase encostava no muro, na hora da meditação
e da leitura. Agora, se você vai só até a cerca, ela pede para que se
afaste.
Irmã B Pediu. Foi à tardinha. Fui ver se as covas eram suficientes para os
girassóis e estava lá examinando quando ela disse: (Aparecem a
Superiora e a Irmã B, destacadas, ???junto à cerca)
Irmã B Eu sei. Mas vim ver se as covas estão prontas para os girassóis.
Irmã B Mas mesmo assim, o que é que tem, Madre? Sempre gostei tanto de
ajudar.
Superiora Ajude-se a si mesmo. Olhe cada vez mais para baixo, mas não neste
lugar.
Superiora Não deveria, mas posso responder: se ficar por perto, terá vontade de
colher as sementes dos girassóis quando eles crescerem.
Irmã B Nós sempre veremos o muro, Madre. De qualquer lado que se olhe...
E mesmo se eu não colher as sementes, a outra Irmã há de fazê-lo. A
Irmã E. Ela verá o muro.
Superiora Mas ela continuará a procurá-lo sempre. Nunca viu nada além do
gato. E basta. Afaste-se daí. (Some)
PLANO DA CAPELA
Irmã H Mas nós duas vimos os seres, não foi, minha irmãzinha?
Irmã A (Para a Irmã I) Talvez porque para a senhora o muro é maior do que
devia?
Irmã H Por quê? Por que a senhora fala assim? Não vê que eu sofro? Que
desejo tanto ir além do que me prende?
Irmã A (Para a Irmã H) E a senhora iria... (aponta para a Irmã I) sem ela?
(Irmã H abaixa a cabeça)
Irmã G (Escondendo-se) Não posso comer em paz com esse entra e sai.
Todas juntas Hoje olhei para dentro de mim. Havia sangue. Tive medo.
Irmã C Nunca!
Irmã A A luz, o sol é que nos faz ser assim como somos.
Irmã C Aquela luz me fez mal... Quando (olha para os lados) eles vieram, na
noite, foi minha noite pior.
Irmã I Quando nós queremos falar nisso, ela sempre diz: “Eles já se forma,
basta!”
Irmã A E sabem? Quando fechei os olhos, naquela noite, não senti muita dor.
Irmã C Será que nós estávamos tão fatigados e por isso é que vimos?
Irmã I E no pátio!
Irmã C Sem! Essas manchas na parede e aquelas outras no pátio são manchas
de sangue.
Irmã H (Em pânico) Mas não é possível... são tão escuras. (Todas tocam as
manchas vagarosamente, menos a Irmã G)
Irmã G É que já faz muito tempo. É bem possível que sejam de sangue. Vocês
acham que eles tocariam o muro impunemente?
Irmã I De sangue?
Irmã I Será que todas são assim? Por dentro, vermelho vivo?
Irmã I (Para a Irmã H) A nossa mãe me disse uma vez que quando você
nasceu, foi difícil limpar o teu rosto... estava cheio de sangue.
Todas
Teatro reunido Hilda Hilst 338
Por quê?
Irmã G Porque ela quis conhecer o seu próprio desgosto. E é sempre aqui
(passa a mão no pescoço) nessa faixa do medo que a palavra tenta
explicar-se e sair.
Irmã G Falava e chorava muito. Aqui na capela ela discursava. E tudo o que
ela falou eu agora tento engolir.
Irmã C Como é difícil entender o que ela diz. (Ouve-se um ruído) O que é?
Irmã H (Dirigindo-se à janela) Eu não entendo porque temos tanto medo que
ela venha até aqui. Da janela podemos ver o que se passa lá , perto do
muro... olhem... ela já está lá! E conversa com a Irmã D.
Superiora (Para a Irmã D) Você fez bem em matá-lo. Ele movia-se com muita
liberdade. Mas eu nunca posso dizer essas coisas diante das outras.
Superiora Que estória... A noite toda passam acordadas por causa disso. Estão
na capela como todas as noites e imaginam que eu não sei. (Olha para
cima, para a capela. As outras afastam-se da janela rapidamente.
Superiora e Irmã D somem)
Irmã I Não.
Irmã A Não.
Irmã B Não.
Irmã C Sim, a Irmã D também. Vocês não estão vendo? Vocês não sabiam?
Irmãs H, I, A, B O quê?
Irmã H Que estranho. O que tem uma coisa a ver com a outra?
Irmã G Não é nada estranho. Uma matou o gato, a outra nos sufoca até...
até... Em breve, serão cúmplices. Então. (Todas voltam à jane la,
menos a Irmã G)
Superiora E relatórios.
Irmã D E monografias.
Superiora Conferências.
Irmã D Pesquisas.
Superiora Trocas.
Superiora Substanciosas.
Superiora Devassado.
Irmã D Compreendido.
Superiora Aproveitada.
Irmã H Onde?
Irmã G Lá, lá... agora escondeu-se. (Pausa) Dizem que o rato tem dois tons.
Irmã G Mas nem tanto... Se a senhora quiser ver um rato branco, procure na
limpeza. Homens do mesmo tom descobrem as suas vísceras com tais
delicadezas, que é preciso parar para espiar tanta pesquisa e sutileza..
Irmã G Um outro mais fundo: uma ânsia de ser vertical e agudo. A senhora
nunca viu um rato sobre o muro... naquela pedra lisa?
Teatro reunido Hilda Hilst 342
Irmã G Nem por isso... E se o rato chegasse até lá, na manhã ou no escuro,
não poderia libertar-se?
Irmã G Seria um rato sobre um muro. Olhando para o alto pode ver o mais
fundo.
Irmã I (Na janela) Devíamos ter pensado nisso antes. Muito antes.
Irmã C E sangravam.
Irmã A E por que não veio antes? Você sabe que nós estamos sempre aqui.
Irmã F Sim.
Irmã C Mas não foi só hoje que você confessou esses culpa?
Irmã F Só hoje? Imagine! Eu digo isso todos os dias. Vocês é que não me
ouvem.
Todas juntas O dia foi tão longo. Fiquei olhando o pássaro que pousou na janela.
Tive vontade de ser.
Irmã F Nós nunca nos ouvimos... nunca. Porque sempre pensamos... neles.
Teatro reunido Hilda Hilst 344
Irmã G (Deixando de comer pela primeira vez) Sim, esta: a cruz. (Pausa)
Sabem o que Ele disse um pouco antes de ser crucificado?
Todas juntas “Ó sagrada cruz! Ergue -me a ti, sagrada cruz. Eles hão de me
crucificar sobre ti e tu serás a minha testemunha. Toma-me. Não
chores, mas alegra-te. Tu levarás a coroa do meu reino.”
Entram a Irmã Superiora e a Irmã D, carregando um pequeno caixão como de uma criança.
Branco.
Superiora Ela matou-se. Não tinha mais para quem dar o seu pão e o seu leite.
Irmã A E ainda existe alguém que se mata por causa de um gato? Que se
mata?
Irmã C E não seria por outra coisa? Talvez pelas próprias culpas? Pelas
próprias culpas?
Irmã H (Em aflição) Não fale assim, não fale assim, meu Deus, nós temos que
chegar até o muro. (Vai até a janela) Olhem, olhem aquela ferida
enorme nas montanhas de pedra... Tudo isso não deve ser em vão.
Ninguém arranca as vísceras de uma montanha por nada.
Hilda Hilst A empresa (A possessa) 346
Superiora (Para a Irmã D) Eu não disse que elas ficam patéticas diante da
morte?
Todas (menos a
Irmã G e Irmã D) Por quê?
Irmã D Sempre.
Irmã B Não é verdade o que elas dizem. Nós podíamos quase encostar no
muro, na hora da meditação e da leitura. Não é verdade?
Superiora É verdade somente nessa hora. Mas assim mesmo vocês nunca
chegaram muito perto. Por quê?
Irmã A Eu não.
Irmã D (Ri altíssimo) Elas nem sabem o que querem. Chegaram tão perto...
Superiora É porque o muro parece tão irreal agora que vocês o desejam.
Superiora Os estrangeiros?
Irmã A De subi-lo.
Irmã B Transpô-lo.
Irmã F (Vibra as mãos como se fossem asas, cada vez mais alto)
Como um pássaro... como um pássaro!
Irmã H É preciso que nós façamos tudo na noite. A noite á sempre melhor
para essas empresas.
Irmãs A, B, C e F
(Vagarosamente) Tan tás, tan tás, tan tás...
Irmã H Parem! Parem! Vocês não vêem que ela está tentando nos deixar sem
resposta? Que quando ela fala na culpa nós pensamos no tempo? E
que diante dela nós nos comportamos como um brinquedo de corda?
Que estamos fartas de ficar diante da morte e da renúncia?
Superiora (Para a Irmã H. Severa) O rato é você. Que deseja subir e ver. (Tom
crescente, procurando tensão)
Superiora E assistisses...
Superiora
e Irmã D Ainda... Ainda.
Todas (menos
a Irmã H) (Tom agudo) Alegrai-vos, para que nós não nos esqueçamos de
todas as nossas culpas.
Todas juntas
(menos a Irmã H) (Tom cantante) Muitíssimas...
Superiora Quantas?
Todas (Diversos tons) Tan tás, tan tás, tan tás, tan tás.
Irmã H aproxima-se da Irmã I, agarra-a sempre repetindo “PAREM”. Rola pelo chão.
FIM