Você está na página 1de 17

O CIRCUITO CULTURAL, PATRIMONIAL E DE MEMÓRIA BONFIM-

PORTO DA LENHA: ANÁLISES INTRODUTÓRIAS E CONTRIBUIÇÕES DAS


POLÍTICAS DE PATRIMÔNIO E DA MEMÓRIA PARA VALORIZAÇÃO DA
CULTURA LOCAL.

Alana Silva Alves1


E-mail: alanaalves.alves@gmail.com

Resumo
O presente texto busca apresentar a ideia de existência e estabelecimento de um
circuito cultural, patrimonial e de memória entre o bairro do Bonfim e o Porto da Lenha
destacando os elementos expressivos e ocultos de identidade, patrimônio e memória do
lugar e como eles podem ser dinamizados, valorizados e comunicados a partir de uma
perspectiva local com contribuição de ações técnicas aliadas às políticas públicas de
patrimônio e memória. Analisar também estratégias e formas de comunicação, que
melhor funcionam neste circuito/território, tendo como horizonte a valorização,
empoderamento e desenvolvimento local.

Palavras-chave: memória, patrimônio, circuito cultural e política cultural.

1Museóloga, graduada pela Universidade Federal da Bahia – UFBA. Atua como Técnica na Diretoria de Museus da Bahia do
Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia - DIMUS - IPAC, no Núcleo de Articulação Territorial de Museus. Capoeirista
Angola (membro da Associação de Capoeira Angola Corpo Movimento - Mestre Angola). Membro Suplente do Colegiado Setorial
de Museus da Bahia.

1
A cidade de Salvador é muito singular na sua composição cultural, histórica e
geográfica. Tanto assim é a sua divisão em duas cidades - Alta e Baixa, que tem como
marco divisório o Elevador Lacerda. Territórios diversos que em alguns aspectos se
complementam e em outros diferem, antagonicamente, atribuindo identidade a cada
região.
Os bairros do Bonfim e Estaleiro do Bonfim - Porto da Lenha (Av. Beira Mar),
comparativamente, guardam relação semelhante à estabelecida entre cidade alta e a
cidade baixa, tendo também um elemento divisor que é a Ladeira da Lenha. A ladeira os
divide e os une, tendo na base superior (no Alto da Colina) outra grande referência deste
território, a Igreja do Nosso Senhor do Bonfim, servindo também de referência material
e histórica para encontrar o Estaleiro do Bonfim, que fica na lateral abaixo da Colina e
da Igreja. O Bonfim e o Estaleiro do Bonfim possuem cada um, características próprias,
as quais percorrem o cultural, urbanístico e o econômico, que também os diferenciam e
os complementam pela história e dinâmica local, as diferenças antigas e atuais se
confirmam pelos dados registrados no trecho a seguir referentes ao bairro do Bonfim:
“O bairro, até a década de setenta, abrigava famílias situadas nas maiores faixas de
renda da Cidade Baixa. Como reminiscências deste passado, ainda existem muitos
casarões no local.”. (SANTOS et al., 2010, p 390). Dados estatísticos mais atuais
revelam, em parte, a formação e composição atual da população dessa área que mantém
certa identidade local ao Bairro do Bonfim:
“O Bonfim possui uma população de 9.401 habitantes, o que corresponde a
0,38% da população de Salvador; [...] estando 29,93% dos seus chefes de
família situados na faixa de renda mensal de 5 a 10 salários mínimos. No que
se refere à escolaridade, constata-se que 46,97% dos seus chefes de família
têm entre 11 e 14 anos de estudo.” (SANTOS et al., 2010, p 390).

O Porto da Lenha possui realidade social diferente dos dados acima


apresentados. Boa parte dos moradores não possui renda elevada, são autônomos e
escolaridade reduzida. A ocupação maior é com o comércio, especialmente, bares e
restaurantes.
Marcado pela história religiosa, que influenciou na sua composição arquitetônica
e institucional, o bairro do Bonfim tem até hoje referência significativa cultural e
festiva, pela existência de prédios históricos, religiosos (Convento da Sagrada Família,
antigas casas dos Romeiros da Igreja do Bonfim) e algumas residências (como o Solar
Marbak) com características específicas ou elementos construtivos que datam de
períodos mais distantes, como do século XVIII.
2
Sobre a história do Estaleiro do Bonfim - Porto da Lenha, acessada de maneira
mais rápida, para o primeiro levantamento, (livros, internet) encontram-se poucas
informações sobre a sua formação, mas sabe-se que ali existia um Porto no qual
chegavam saveiros trazendo Lenha e até transportando pessoas, em alguns momentos,
especialmente os Romeiros para a Igreja do Bonfim. “Aqui aportavam os saveiros
vindos das ilhas e do Recôncavo, trazendo a lenha para aquecimento dos lares de
Salvador. Isto nos tempos do fogão à lenha, do ferro de gomar à carvão, etc.”
(GANTOIS,2012). Moradores antigos do bairro como D. Elenita Santana de setenta e
seis anos guardam um pouco da história de formação do bairro que começou a ser
habitado por volta da década de 60, quando as ruas ainda eram de barro, e quando
precisava buscar água para as necessidades básicas na Ribeira, bairro próximo. A
moradora também informa que na época ainda havia uma feira no bairro, há um tempo
findada.
De posse desses dados busca-se analisar pontos fundamentais e inerentes a esse
circuito e relacionar, de maneira objetiva, alguns conceitos e discussões realizadas no
campo da cultura e das políticas culturais. Diagnosticar de maneira introdutória as
possibilidades de efetivação de um circuito cultural, patrimonial e de memória nesse
território singular e diverso com base em conceitos de memória, identidade, patrimônio
além de abordar alguns marcos legais, instâncias, organismos, mecanismos de gestão e
fomento à cultura que devem colaborar na concepção desse circuito.
Considerando a diversidade cultural notória do Brasil, desde a sua formação à
realidade atual, o resgate da memória e o reconhecimento de identidades, passam a ser
etapas fundamentais e anteriores à formação, por exemplo, de um Circuito Cultural e de
Memória, dentro da cidade de Salvador. Um circuito que abarque, naturalmente,
diversidades de memórias, patrimônios e identidades. Cientes de que a memória, o
conceito de patrimônio e de identidade cultural são, em certa medida, recentesno
cotidiano local e nacional, ao serem utilizados causam ainda muitos conflitos e
estranhamentos, por isso entende-se que há ainda muito que democratizar e difundir
sobre a discussão desses elementos e o estabelecimento de circuitos culturais locais
pode contribuir para essa disseminação de conceitos e entendimento prático.
“A diversidade cultural amplia as possibilidades de escolha que
se oferecem a todos; é uma das fontes do desenvolvimento,
entendido não somente em termos de crescimento econômico,
mas também como meio de acesso a uma existência intelectual,
afetiva, moral e espiritual satisfatória.” (UNESCO, 2012)

3
Memória e Identidade
Ao pensar o circuito de cultura e memória entendido entre Bonfim, Porto da
Lenha ou Estaleiro do Bonfim na Av. Beira Mar, entende-se que existe uma questão de
identidade e de cultura local que pode ser mais bem trabalhada com os sujeitos e
instituições culturais ali identificados. Estabelecer esse território cultural é, por
consequência, produzir uma identidade coletiva na diversidade, porém com vistas a uma
unidade, interlocução e reconhecimento efetivos do território. Nesse sentido, surgem os
questionamentos: será que a comunidade residente, usuária; comerciantes,
frequentadores visualizam um circuito cultural e patrimonial pujante? Se este é
reconhecido quais fatores o determinam e podem contribuir para a sua projeção? Este
coletivo/território se identificaria com esse circuito? “Através da memória o indivíduo
capta e compreende continuamente o mundo, manifesta suas intenções a esse respeito,
estrutura-o e coloca-o em ordem (tanto no tempo como no espaço) conferindo-lhe
sentido.” (CANDAU, 2014, p.61)
Por outro lado e, automaticamente, surgem as questões: quais as memórias que
esse circuito possui consolidadas? Quem são as pessoas que a detêm em nível de
coletivo? Quais memórias foram esquecidas e quais são diariamente potencializadas,
inclusive, pela via da comunicação.
Existe uma diversidade de memórias essenciais para a concepção deste circuito,
as quais localizam- se em momentos cronológicos díspares, porém complementares,
entre elas a memória histórica, de formação dos bairros aqui sinalizados para compor o
circuito, a memória religiosa, gastronômica, festiva e mesmo a memória afetiva,
permeando as narrativas registradas em publicações, fotografias, documentos,
arquiteturas e, simplesmente, porém tão significativos quanto os relatos de moradores
antigos ou mais jovens, de religiosos, comerciantes, frequentadores (as), etc. “Porque a
memória organiza “os traços do passado em função dos engajamentos do presente e
logo por demandas do futuro” [...]” (CANDAU, 2012, p.63).
As Narrativas que esse circuito trará à tona não, necessariamente, serão verdades
absolutas, mas terão que ser reflexo mais fiel possível, da sua realidade local além do
que é colocado nas mídias, publicações ou roteiros turísticos fechados. Os patrimônios
materiais (edificações - residências, construções religiosas, praças e espaços públicos) e
os patrimônios imateriais (os indivíduos, os saberes, as práticas culturais locais) terão
suas próprias narrativas de memória, uns mais explícitos, outros menos, outros

4
ocultados, visto que a memória narrada é aquela construída a partir dos fatos que se quer
destacar e considera-se importante.
Ao pensar nesse Circuito de Memória, precisamos refletir não só no território
físico identificado anteriormente, mas considerar que há uma memória e identidade
coletiva implícita, que transcende o pertencimento a cada grupo cultural e social, pois já
estão inseridos na tradição local, nas práticas cotidianas como: a pesca, as missas e
festas religiosas de origem católica, festas religiosas de matriz africana, a culinária, as
comemorações. “Assim se explica como as imagens espaciais desempenham esse papel
na memória coletiva. O lugar ocupado por um grupo na é como um quadro-negro no
qual se escreve e depois se apaga números e figuras.” (HALBWACHS, 2006, p.159).
Mas o que de fato compõe esse Circuito Cultural e de Memória e forma,
consequentemente, a identidade e memória coletiva desse território? A Praça do
Bonfim, as casas antigas dos romeiros, o Museu do Ex-votos, a Capoeira Angola, o
espaço para realização de apresentações musicais de estilos locais (geralmente dos
estilos chamados de Seresta e Arrocha), promovidas por barracas do Porto da Lenha que
oferecem o tradicional Pirão de Aipim, o quiosque construído no lugar da antiga
Associação de Moradores (então demolida) - todos esses espaços comportam memórias
individuais e coletivas muito simbólicas para moradores, frequentadores ou,
simplesmente, para quem tenha a sensibilidade para apenas observar. Em momentos
específicos do ano, festas e datas consideradas importantes, no calendário oficial, como
o Presente de Iemanjá, Caminhada do dia do Trabalhador - 1º de Maio e comemorações
e eventos comunitários no e do Porto da Lenha ou Estaleiro do Bonfim (Galo de
Currute, aniversários de moradores ou pessoas ligadas ao bairro, eventos da Capoeira
Angola, etc.). Observar os sons, as relações, as dinâmicas culturais e sociais, a
diversidade de saberes e práticas culturais também:
“cada aspecto, cada detalhe desse lugar tem um sentido que só é inteligível
para os membros do grupo, porque todas as partes do espaço que ele ocupou
correspondem a outros tantos aspectos diferentes da estrutura e da vida de sua
sociedade, pelo menos o que nela havia de mais estável.” (HALBWACHS,
2006, p. 160).

É a memória presente em cada morador (a), nos grupos divididos por gênero,
idade, ocupação, religião, celebram uma identidade diversa neste território que se
caracteriza pela situação periférica em termos geográficos na metrópole de Salvador,
porém central e de destaque em muitos aspectos culturais soteropolitanos.

5
Patrimônio: difusão de conceitos, leis de preservação e reconhecimento do
patrimônio local e demais documentos de referência
O conceito de patrimônio, ainda carrega forte influência do seu significado e
contexto familiar e financeiro, o qual remete a legados, restritamente, materiais e de
valor econômico (jóias, propriedade de terra, imóveis, etc.). Nesse sentido, difundir o
conceito de patrimônio cultural, levando em conta a diversidade cultural deve ser uma
ação de comunicação, educação e política para a formação crítica e ampliada da
sociedade sobre o tema projetando para o valor simbólico desses bens.
Um dos mais importantes documentos que tratam do conceito de patrimônio o
qual merece ser mais comunicado, discutido e decodificadoé a Constituição Brasileira
(1988) a qual considera patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e
imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à
identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira.
Visto ser um documento com linguagem feita para e por um grupo social específico
(legistas) a informação contida nele acaba não sendo apropriada por parte da população,
principalmente, pelas classes que não estão diretamente envolvidas com a área de
elaboração das leis, ou por não terem tido acesso ao estudo formal, onde todos deveriam
ter conhecimento mínimo das informações desta Carta Magna como também é
chamada. Ainda que exista interesse em conhecer e aprofundar o entendimento sobre os
assuntos abordados na Constituição e em outros marcos legais, sabe-se que não é um
documento simples de apropriação do seu conteúdo, visto a falta de discussão.
Os órgãos de esfera nacional e estadual seguem a definição contida na
Constituição de 88, passando também a ampliar sua atuação para além dos patrimônios
materiais, estabelecendo legislação e ações específicas para o patrimônio imaterial ou
intangível, além de avançar em elaboração de políticas e gestão que, de fato, envolvam
a participação da sociedade como está previsto neste trecho:
“A Constituição Federal de 1988, em seu Artigo 216, ampliou o conceito de
patrimônio estabelecido pelo Decreto-lei nº 25, de 30 de novembro de 1937,
substituindo a nominação Patrimônio Histórico e Artístico, por Patrimônio
Cultural Brasileiro. Essa alteração incorporou o conceito de referência
cultural e a definição dos bens passíveis de reconhecimento, sobretudo os de
caráter imaterial. A Constituição estabelece ainda a parceria entre o poder
público e as comunidades para a promoção e proteção do Patrimônio Cultural
Brasileiro, no entanto mantém a gestão do patrimônio e da documentação
relativa aos bens sob responsabilidade da administração pública.” (IPHAN).

Nota-se que o envolvimento da comunidade na gestão do patrimônio tem sido


fundamental para a realização de ações que contemplem os anseios dos indivíduos e

6
grupos diretamente envolvidos, premissa que se reforça em trecho da lei estadual que
Institui a partir do ano de 2003 normas de proteção e estímulo à preservação do
patrimônio cultural do Estado da Bahia: “O patrimônio cultural, para fins de
preservação, é constituído pelos bens culturais cuja proteção seja de interesse público,
pelo seu reconhecimento social no conjunto das tradições passadas e contemporâneas do
Estado.”(BAHIA, 2003). Seguindo o que está dito nesse trecho da lei 8.895/03, entende-
se que os bens presentes nesse circuito devem ser de interesse público e referência não
só local, mas da cidade pelos aspectos históricos e culturais citados, merecendo a devida
atenção, proteção e dinamização, de modo que a cidade em diversos territórios e
comunidades possam se apropriar de seus patrimônios e memórias culturais locais e
torná-lo meio de desenvolvimento social local.
Assim como os documentos legais citados anteriormente, a Política Setorial de
Museus da Bahia (2012), documento construído pelo poder público e sociedade civil,
deve servir também de referência para ações de estruturação desse circuito de memória,
refletindo, especialmente, o que está expresso em uma de suas diretrizes que é
“Fomentar e apoiar ações para a construção de uma cultura cidadã, apoiada na aplicação
de ações museológicas de pesquisa, preservação e comunicação” (SECULT-BAHIA,
2012, p. 9) Logo, se espera ações de construção das políticas, de formação para os
atores diretamente envolvidos com o patrimônio.
Em âmbito municipal existe legislação recente, datada de 2014, porém
consolidada neste ano de 2016, voltada para o patrimônio nas suas dimensões materiais
e imateriais. A lei 8550/14 segue a mesma concepção adotada na esfera estadual e
apresentada no parágrafo anterior através do trecho da lei. Composta de Livros para
inscrição de bens dos quais destacamos os livros referentes aos bens imateriais: IV -
Livro do Registro Especial dos Eventos e Celebrações; V ‐ Livro do Registro Especial
das Expressões Lúdicas e Artísticas; VI ‐ Livro do Registro Especial dos Espaços
destinados a Práticas Culturais Coletivas, instrumentos que devem colaborarnão só no
reconhecimento oficial, mas na gestão, acompanhamento técnico e na construção de
outros documentos oficiais que trarão metase ações para essa salvaguarda como está
indicado no inciso II desta lei: “a estrutura técnica constará de inventário e cadastro de
informações sobre o bem imaterial e, ainda, do plano de salvaguarda, composto por
ações de apoio à existência dos bens registrados de modo sustentável, pela melhoria das
condições sociais e materiais de sua transmissão e reprodução;” (PREFEITURA DE
SALVADOR, 2016).
7
Política Cultural: Breve panorama municipal e estadual Salvador-Bahia
Discutir e usar o termo política cultural, atualmente, é mais comum, no entanto e
ao mesmo tempo, ainda restrita e burocrática. Restrita no seu alcance prático, cotidiano,
no acesso aos e pelos diferentes grupos e setores da cultura; burocrática e engessada
pelas demais políticas ou legislações vigentes.
A partir do ano de 2005 e mais, especialmente, em 2007 o Estado da Bahia
começa a desenvolver uma política para a cultura mais participativa e estruturante com
a realização das Conferências de Cultura e elaboração de políticas para os diversos
setores da cultura.
As demandas da área da cultura, novas e antigas, a formação e capacitação para
atuar na área e a própria mobilização da sociedade civil, conduziram o poder público a
elaborar legislação própria para a cultura no Estado. A Lei Orgânica da Cultura do
Estado da Bahia lançada em 2011 resume o desejo de sistematizar a atuação e garantir
mecanismos de acompanhamento; participação e financiamento na área da cultura.
Entretanto, analisando de modo mais panorâmico a política pública, estadual e
municipal, nota-se que há ainda carência de estratégias, ações permanentes de formação
para os diferentes grupos sociais, que favoreçam o entendimento do que são as políticas
públicas e de cultura, a que tipo de objeto estão destinadas e a efetivação através de
instâncias de participação. A própria educação patrimonial (a qual preza pelo
entendimento e apropriação dos conceitos de cultura, identidade, patrimônio, cidadania
cultural), as conferências de cultura e seus grupos de trabalho, seminários e encontros
de cultura, contribuem significativamente para o envolvimento daqueles que vivem ou
trabalham com cultura. A criação e eleição dos Colegiados Setoriais de Patrimônio e de
Museus do Estado da Bahia (em 2014), previsto na Lei Orgânica da Cultura do Estado
da Bahia – Lei 12.365/11, são instâncias representativas e deliberativas com maioria da
sociedade civil, é um exemplo do resultado de alguns anos de conferências, encontros e
discussões setoriais, é a oportunidade de estender a ação do Estado no desenvolvimento
e aplicação das políticas com a participação de membros que estão, geralmente, na
ponta das ações culturais, seja como parte integrante ou técnico cultural.
Comunicação, patrimônio e memória.
A comunicação na perspectiva de promoção dos patrimônios culturais materiais
e imateriais deve visar não somente o conhecimento sobre este, mas a valorização, o
reconhecimento e perpetuação do mesmo. Ou seja, não há como pensar em

8
comunicação sem que nela esteja a intenção de exercer uma nova ou diferenciada
percepção do bem cultural sob as pessoas que serão foco dessa comunicação: “[...] o
termo comunicação [...] designa nem o ser, nem a ação sobre a matéria, tampouco o
práxis social, mas um tipo de relação intencional exercida sobre outrem” (Martino,
2015).
No entanto, o outro significado identificado em alguns dicionários e também
mencionado por Martino, é relativo à comunicação de espaços, passagem ou circulação
de um lugar para outro, o qual se adequa bem para a proposta de comunicação no
circuito cultural, patrimonial e de memória aqui identificado, em que se imagina um
roteiro ampliado de visitação e difusãoque não fique restrito à Igreja do Bonfim ou no
máximo ao Museu dos Ex-votos, mas que explore, no melhor dos sentidos, a riqueza
patrimonial e histórica que está para além da Colina Sagrada e das práticas religiosas
cristãs.
O circuito Bonfim - Porto da Lenha - Beira Mar para existir ou coexistir deve ter
como uma das características a comunicação/circulação espacial entre os bairros
proporcionada seja pela proximidade geográfica, cultural, social ou devido à prática
econômica (o comércio de produtos artesanais, lembranças, o comércio ambulante -
água, pipoca).Ainda que esse não seja o principal sentido atribuído à comunicação, mas
sim aqueleque diz respeito à transmissão de mensagem e informação, será a partir desse
outro conceito de comunicação agregado do significado de transporte de coisas,
circulação de bens, consequentemente, mais próximo das práticas econômicas, que em
certa medida também é análise ou pretensão desse texto: fomentar a sustentabilidade
desse circuito analisando como a comunicação pode ajudar. Este é o questionamento
que se faz à ciência e prática da comunicação ao notar-se que o ato de comunicar
transcende a relação emissor-receptor/ mensagem- código.
O que é possível observar a cada dia é uma maior apropriação e reconhecimento
pelos indivíduos, grupos, comunidades, dos seus patrimônios, processo de alguma
forma proporcionado pelas constantes iniciativas de pessoas mais sensíveis às questões
de identidade e práticas culturais e pela ação de alguns órgãos relacionados. Alguns
desses (as) mobilizadores (as) culturais ou, simplesmente, valorizadores de sua cultura,
tendem a comunicar sobre esta. Comunicam, até mesmo, pela sua forma de falar
(linguagens diversas), através das vestimentas, da forma de ocupação e organização dos
espaços, etc.

9
Ainda que existam elementos e objetivos comuns sabemos que a forma e os
meios de comunicar serão e precisam ser diferenciados para atender a diversidade de
indivíduos, instituições e identidades. Aliar elementos tradicionais de comunicação
(oralidade) – as histórias familiares contadas pelos mais velhos, rodas de conversa entre
moradores (as) antigos, as músicas (as ladainhas da capoeira, as músicas tocadas nas
festas dos terreiros, o hino ao Santo Católico, etc.) aos formatos mais formais de
comunicação como palestras, oficinas, textos, publicações, os meios de comunicação
mais atuais como a televisão, rádio e, predominantemente, a internet com seus variados
sítios de informação (sites, blogs) e redes sociais (facebook, instagram e outras).
“Considerando que o processo de globalização, facilitado pela rápida evolução das
novas tecnologias da informação e da comunicação, apesar de constituir um desafio
para a diversidade cultural, cria condições de um diálogo renovado entre as culturas e as
civilizações,” (UNESCO, Declaração da Diversidade Cultural, 2002). Formar os
indivíduos da comunidade para conhecer a história e cultura local e serem possíveis
mediadores ou comunicadores culturais, atendendo grupos de turistas, estudantes,
pesquisadores ou simplesmente curiosos.
No entanto, essa aparente democratização da comunicação na prática não é tão
democrática assim. Vemos que não basta as ferramentas digitais de comunicação serem
de livre acesso se, em contrapartida precisa-se ter o suporte (celular, computador, etc.) e
a condição razoável de acesso (disponibilidade de internet e com serviço de qualidade),
além de conhecimentos específicos para utilizar os meios de acesso e decodificar as
informações disponibilizadas nesses meios.
A comunicação é o problema fundamental da sociedade
contemporânea, que é composta de uma imensa variedade de
grupos, que vivem separados uns dos outros pela
heterogeneidade de cultura, diferença de origens étnicas e pela
própria distânciasocial e especial. (BELTRÃO, 1980).

É preciso considerar a especificidade cultural de cada grupo e indivíduo que


necessita ou prefere outras formas de comunicação: oral, visual, musical e, porque não,
das diversas maneiras sensitivas de comunicar (cheiro, toque), visto que precisamos
pensar na comunicação de forma ampla e diversa, garantindo atingir crianças, jovens,
adultos, portadores de deficiências (auditiva, visual, mental); trabalhadores, estudantes,
religiosos, incrédulos, mulheres e homens.
Entender que outros suportes e meios podem e devem ser explorados, ainda que
pareçam ultrapassados como o jornal local impresso, panfleto informativo, cartaz, feira
10
de produtos e cultura local, calendário de festas locais, exposições sobre a arte, cultura,
saberes e patrimônios, realizadas em espaços construídos para esse fim ou adaptados em
espaços públicos (praças, ruas, escolas, associações de bairro e culturais). Essa
necessidade foi reforçada em conversa com moradoras (es) que, em sua maioria,
reconhecem os diversos patrimônios e culturas locais que podem compor esse Circuito
e, em seguida concordavam com ideia de fortalecimento e divulgação do mesmo com
formas de comunicação mais populares, tradicionais e em meio físico. Alguns
recordaram de determinado jornal local que era organizado por pessoa do bairro, no
qual entre outras notícias, apareciam as atividades culturais e cotidiano do lugar, no
entanto que essa era a iniciativa mantida por uma pessoa que como outras, trabalham
sozinhas e acabam sem apoio da comunidade ou de órgãos públicos competentes e
designados para a promoção de ações semelhantes, logo desistindo pelo cansaço de dar
continuidade à ação. Entretanto, maioria dos entrevistados (número pequeno
quantitativamente, mas significativoquando analisado o perfil destes - moradores
antigos, praticantes da capoeira, comerciantes, membros de instituições religiosas e
culturais - foi consenso que a comunidade deve promover este território cultural, mas
que é fundamental políticas públicas em setores diferentes para que o que se comunica
em termos culturais do lugar possa ter sustentabilidade e, efetivamente, comunicar.
Havendo, por exemplo, o interesse em promover ações de valorizaçãoda cultura
local e envolver mestres e mestras da cultura, ou detentores de saberes e histórias do
lugar e pensar em um modelo de comunicação/ divulgação das ações restrita aos meios
virtuais, estes, provavelmente estes não serão contemplados, atingidos. Pois,
comumente, é um grupo de indivíduos que prezam e necessitam da comunicação
pessoal. “Quando, para cada parcela da comunidade, faz-se necessário usar uma
linguagem especial, adotar um meio adequado, empregar uma técnica distinta, sem o
que o diálogo torna-se difícil, se não impossível.” (BELTRÃO, 1980, p.6).
Mas, de fato qual a comunicação que existe sobre esses espaços patrimoniais e
de memória que compõem o Circuito? Se ela existe como acontece e que meios
potenciais contribuem ou podem contribuir para comunicar esses patrimônios, essas
memórias? O coletivo, mais ou menos homogêneo, entende que a comunicação é um
elemento fundamental para o desenvolvimento do lugar e interação entre comunidade,
patrimônios e aqueles que estão externos a essa dinâmica local?

11
E por outro lado, comunicar não é “ter algo em comum”, apenas
por ser membro de uma mesma comunidade. [...] Como vimos,
no próprio sentido etimológico do termo já aparece a
comunicação como produto de um encontro social, a
comunicação designa um processo bem delimitado no tempo,
mas ela não se confunde com a convivialidade”.
(HOHLFELDT; et al.,2015,p.14)

Assim se pensarmos em um Circuito no qual a lógica de desenvolvimento e de


interação tem influência do modelo econômico capitalista, mas com uma dinâmica
interna permeada por valores e relações sociais e comunitárias, é fundamental para o
processo de fortalecimento e difusãoa adoção de outras formas de comunicação.

Conclusão
Pensar o circuito é entender que há uma estrutura constituída mais ou menos da
seguinte maneira: detentores da cultura, da memória e patrimônios locais; os detentores
dos meios ou recursos para manter os primeiros e aqueles que exploram ou somente se
beneficiam das duas condições anteriores (detentor do bem e do recurso), sejam
empresários, instituições, organizações culturais, turísticas ou agentes culturais ativos.
Nesse ponto, o Estado ou governo e as políticas públicas por eleselaboradas,
devemservir de mediador importante e decisivona preservação, utilização e gestão dos
patrimônios com a colaboração dos grupos envolvidos.
A noção de Estado, sociedade e política pública é ainda um desafio, em termos
práticos e é também desafiante a instituição de relação complementar, participativa bem
delimitada entre esses dois entes (Estado e sociedade). Dessa forma, é necessário
pensar, reavaliar e adequar constantemente, os mecanismos de participação e construção
coletiva das políticas públicas, de modo que seja um conjunto de diretrizes e ações que
representem a diversidade dos grupos diretamente envolvidos e que se pretende atingir
com as políticas.“A convocação para a revisão das estruturas políticas vigentes e sua
relação com a participação social é uma questão também abordada por Milton Santos
(1986), que defende a importância da abertura de novas perspectivas.” (SANTOS apud
SANTOS, p. 36).
A comunicação feita para atingir pessoas em larga escala (comunicação de
massa), geralmente, ligada ao desenvolvimento tecnológico, pouco ou nada colabora
para a promoção de comunicação de grupos menos privilegiados economicamente e em
termos educacionais. Pois, deixaram de ter um caráter formativo, político e dialógico,

12
visto que é uma relação na qual emissor e receptor estão distante fisicamente,
culturalmente e temporalmente.
Continuamos a ver que a comunicação de massa tem prevalecido na sociedade
contemporânea, consequentemente, de maneira pouco diversificada e maisverticalizada.
Vertical, pois é produto de setores ou grupo específico, fechado,dominantee
frequentemente, elitizado. Por isso, se confirma a necessidade de fortalecer e ampliar os
antigos e atuais métodos de comunicação local, horizontal e direta, permitindo ao
indivíduo ou grupo ter reações e respostas mais adequadas e complementares aos
anseios e questionamentos.
O reconhecimento do patrimônio material e simbólico associado à apropriação e
desenvolvimento de políticas públicas de preservação e da cultura que subsidiem as
iniciativas ou práticas comuns de comunicação e local dará subsídio às identidades e
memórias coletivas do lugar. Por isso, o trabalho de mapeá-los, de destacar esses
patrimônios e memórias locais perpassa também processos comunicacionais e medidas
públicas de difusão, valorização e preservação desse circuito.
Logo, vincular essa construção de ações desse cunho à politização da prática de
preservação como indica Maria Cecília Fonseca (2005), ou seja, “vincular a temática da
preservação à questão do desenvolvimento – à politização da prática de preservação, na
medida em que os agentes institucionais se propuserem a atuar como mediadores dos
grupos sociais marginalizados junto ao Estado”. Nesse sentido, a proposta do Circuito
numa região fora do centro econômico histórico e turístico comumente privilegiado
carrega como pano de fundo e objetivo fim vincular o patrimônio às possibilidades de
desenvolvimento e consequentemente a construção ou fortalecimento da cidadania
cultural.
O Bairro do Bonfim, especialmente, a Baixa do Bonfim, já teve uma recorrente
movimentação artístico-cultural – a qual incluía shows musicais gratuitos, aos sábados,
com artistas locais, com formação de público permanente e comércio local associado
(geração de renda). Ficava evidente que um novo circuito cultural, com público bem
definido e fidelizado havia se constituído e quebrado, de alguma forma, com a
concentração cultural de outros espaços da cidade de Salvador. Não era declaradopelos
organizadores, nem havia divulgação sobre a existência de apoios institucionais
públicos ou de empresas privadas de grande peso que dessem subsídio à manutenção
desta estrutura cultural. Hoje, no mesmo espaço cultural e turístico, nota-se um
abandono em termos da estrutura física e da utilização e valorização para fins culturais.

13
Voltando à Colina Sagrada, exceto as atividades religiosas movimentadas pela Igreja,
em dias específicos e no período da Lavagem do Bonfim, este bairro fica sem a
correspondente expressãocultural compatível.
No Porto da Lenha, as rodas de Capoeira, as festas populares e eventos culturais
são divulgados por comunicação informal e de caráter pessoal.
Por fim, o que se pretende é, especialmente, levar em conta o capital humano,
simbólico e cultural contido nesses bairros (Bonfim, Porto da Lenha) e a necessidade de
desenvolvimento de uma política local descentralizadora, porém coesa e efetiva.
“O patrimônio é ainda um recurso para o desenvolvimento. É na
verdade o único recurso, juntamente com a população, que se
encontra em toda parte e que basta procurar para encontrá-
lo.Todo diagnóstico prévio a uma política de desenvolvimento e
à determinação de estratégias adaptadas a um dado território
deve levar em conta a totalidade do patrimônio, a complexidade
dos usos que podem ser feitos dele e do papel que seus
componentes podem desempenhar no processo do
desenvolvimento.”(VARINE, 2012, p.19)

Pensar nesta realidade – um território de grande cidade como Salvador, é pensar


no alcanceque as políticas públicas têm ou podem vir até no desenvolvimento desse
circuito?Uma diretriz que possa ser aplicada e seguida pela comunidade junto ao poder
público? Que cooperações institucionais precisam acontecer para a consolidação desse
circuito, consequentemente, a descentralização de ações e fomentos culturais pela
cidade? Para tais questionamentos, entende-se que a efetivação desse circuito deve
partir de uma formação e colaboração mútua entre Estado e Comunidade para
construção e manutenção de um trabalho de valorização do patrimônio e da memória de
um grupo ou território.

14
REFEREÊNCIAS

Bibliográficas

BELTRÃO, Luís. Civilização e Comunicação. In: ______. Folkcomunicação: a


comunicação dos marginalizados. São Paulo: Cortez, 1980. p. 1-20.
CANDAU, Joel. Da mnemogênese à memogênse. In: ______. Memória e Identidade.
Tradução Maria Letícia Ferreira. 1ª edição. 2ª reimpressão. São Paulo: Contexto, 2014.
p. 59-70
FONSECA, Maria Cecília Londres. O Patrimônio em processo: trajetória da política
federal de preservação no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/Minc-Iphan,
2005, p. 11 – 22il.
HALBACHES, Maurice. A memória coletiva e o espaço.In: ______. A memória
Coletiva. Tradução de Beatriz Sidou. 2ª edição. São Paulo: Centauro,2006. p.157 – 190.
HOHLFELDT, A.; MARTINO L. C.; FRANÇA, V.V.;(organizadores). Teoria da
Comunicação. 15 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015
SANTOS, Hortência Silva Nepomuceno dos. Políticas públicas culturais para as
cidades: os casos do Recife e Salvador. Salvador:EDUFBA, 2015. 7- 63p.il.
VARINE, Hugues de; (trad.) Maria de Lourdes Parreiras Horta. As raízes do futuro: o
patrimônio a serviço do desenvolvimento local. Porto Alegre: Medianiz, 2012. 256p.

Eletrônicas

BAHIA. Lei nº 12.365 de 30 de novembro de 2011.


BAHIA.Lei nº 8.895 de 16 de dezembro de 2003. Disponível em
<http://www.ipac.ba.gov.br/wp-content/uploads/2011/09/LEI889503.pdf>. Acessado
em 13 de julho de 2016, às 15:40.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil.
Brasília, DF: Senado, 1988. Disponível em:
<http://presrepublica.jusbrasil.com.br/legislacao/91972/constituicao-da-republica-
federativa-do-brasil-1988#art-216>. Acesso em 05 de março de 2016 às 19:23.
GANTOIS, Eduardo. Meu Bairro Querido - Porto do Bonfim e da Lenha. In:História
de Salvador - Cidades Alta e Baixa. Disponível

15
em:http://salvadorhistoriacidadebaixa.blogspot.com.br/2012/10/meu-bairro-querido-
porto-do-bonfim-e-da.html. Acesso em 16 julho de 2016, às 21:30.
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), Patrimônio Cultural.
Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/218. Brasília, DF. Acesso em
05 de março de 2016 às 20:06
SALVADOR.Lei Ordinária 8550 2014 de Salvador. Disponível
em:<http://www.ipac.ba.gov.br/wp-content/uploads/2014/01/leis_cultura-municipal-
salvador.pdf>. Acessado em 13 de julho de 2016, às 15:40.
UNESCO. Declaração universal sobre a diversidade cultural. Disponível em:
<http://unesdoc.unesco.org/images/0012/001271/127160por.pdf>>. Acesso em 29 de
abril de 2016 às 20:08.

16
ANEXO

MAPA DA REGIÃO DA PROPOSTA DE CIRCUITO CULTURAL/


DESTAQUE EM VERMELHO ACRESCENTADO A IMAGEM
IMAGEM: IBGE (www.censo2010.ibge.gov.br/sinopseporsetores/?nivel=st)

17

Você também pode gostar