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Rio de Janeiro
o
2 . semestre de 2005
CATALOGAÇÃO NA FONTE
_____________________________________________________
Profa. Dra. Nadiá Paulo Ferreira (UERJ-Orientadora)
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Profa. Dra. Ida Maria Santos Ferreira Alves (UFF-Titular)
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Prof. Dr. Marcus Alexandre Motta (UERJ-Titular)
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Profa. Dra. Ângela Maria Dias de Brito Gomes (UFF – Suplente)
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Profa. Dra. Maria Helena Sansão Fontes (UERJ – Suplente)
DEDICATÓRIA
Este trabalho é uma leitura da poesia de Ana Hatherly. A Poesia Concreta era a poesia
praticada na segunda metade do século XX, em Portugal e no mundo. A Poesia
Experimental, da qual fazia parte Ana Hatherly, era uma de suas vertentes. Essa poesia de
vanguarda coloca-se à frente dos princípios e valores estéticos do seu tempo. A poesia
concreta teve origem com os inovadores e não convencionais poemas de Mallarmé, ainda
no fim do século XIX. O século seguinte foi de profundas transformações em todas as
esferas do conhecimento humano, e os poetas não ficaram a parte disso, o que justifica a
profusão de movimentos poéticos. Ana Hatherly, ao longo de sua vida acadêmica tem
pesquisado e investigado, através do trabalho que produz, a literatura e suas diferentes
ideologias, regras e formas, com o intuito de compreender a realização do texto e do ato de
escrever. Suas idéias são fundamentadas em seu interesse e conhecimento da literatura
tradicional, fazendo releituras das obras de Fernando Pessoa e Luís de Camões. A escolha,
dentre tantas, de três poesias do período experimental de Ana Hatherly, foi feita com o
interesse em direcionar o olhar para poesias que são sínteses de sua obra: a exploração do
conceito de escrita. As poesias selecionadas privilegiam o fenômeno da intertextualidade,
propondo uma reinvenção da leitura através da ambigüidade da escrita.
This work is a reading of Ana Hatherly’s poetry. The poetry practiced in the second half of
the 20th century, in Portugal and in the world, was Concrete Poetry. Experimental Poetry, in
which Ana Hatherly took part, was one of its trends. This avant-garde poetry faces the
principles and the aesthetic values of its time. Concrete poetry had its origin in the
unconventional poems written by Mallarmé, in the late 19th century. The following century
was of deep transformations and the poets did not ignore this, which explains the myriad of
poetic movements. Ana Hatherly has researched and investigated, through her work, the
literature and its different ideologies, rules and forms, intending to understand the
production of the text and the act of writing, basing these ideas on her personal interest and
knowledge of the traditional literature, doing re-interpretations of the poems of Fernando
Pessoa and Luís de Camões. By choosing three, among so many poems from the
experimental period of Ana Hatherly, I tried to emphasize poems that represent a synthesis
of her work: the investigation of the concept of writing. The selected poems highlight
intertextuality, proposing a re-invention of reading through the ambiguity of writing.
Key – words: experimental poetry – modern Portuguese poetry – Ana Hatherly – visual
poetry
SUMÁRIO
Introdução............................................................................................................................. 9
2 – As Proposta Teóricas...................................................................................................... 37
3 – A Produção Poética........................................................................................................ 58
Conclusão............................................................................................................................. 78
Referências Bibliográficas................................................................................................. 81
Anexos.................................................................................................................................
a palavra evocadora
invocativa
alocutiva
II
A viagem que o meu ser empreende
Começa em mim,
E fora de mim,
Ainda a mim se prende.
III
Se o círculo como meta
A nenhum ponto leva,
Ninguém distinguirá o vencedor
De entre os vencidos.
E assim ficam os prémios todos
Recebidos,
Ou só invalidados?
(HATHERLY,1959)
Introdução
Fazer uma leitura de alguns poemas de Ana Hatherly, produzidos durante sua
participação no movimento de Poesia Experimental, é a proposta deste trabalho.
Durante esse período, Ana Hatherly visa produzir novas formas poéticas, onde a
investigação da linguagem é submetida a uma sistemática experimentação, resultando daí
um processo de reflexão e exercício.
Inicialmente, serão apresentadas as diretrizes do movimento de Poesia
Experimental, a fim de compreender não só a poesia portuguesa dessa época, mas
principalmente a produção poética de Ana Hatherly.
A poesia da chamada segunda vanguarda portuguesa foi desenvolvida entre as
décadas de sessenta e setenta do século XX. Foi uma poesia de intervenção, uma vez que
observamos a participação dos escritores dessa época em movimentos sociais e políticos.
Eles acompanhavam e também se opunham ao endurecimento do processo de
institucionalização de um Estado repressivo e conservador. Ana Hatherly diz que ingressou
no grupo dos experimentalistas, porque esses tinham uma posição de insubordinação e, na
época, tudo o que era subversivo lhe interessava. Lutar era para ela uma posição certa
àquela altura, quando o mundo fervilhava de acontecimentos marcantes: movimentos
estudantis, guerras, feminismo, expansão do rock, etc...
O experimentalismo poético é uma das vertentes dessa nova vanguarda que, além da
poesia, abrangeu ainda a pintura, a música, o teatro e o cinema, provocando uma verdadeira
revolução no modo de fazer e de ver a arte. A autora justifica sua adesão ao
experimentalismo, recorrendo à lingüística moderna, ao estruturalismo, à semiótica, à teoria
da forma, à ciência experimental, à publicidade, à caligrafia, à tipografia, aos ideogramas
chineses, aos caligramas antigos, à tecnologia de ponta, ou seja, Ana Hatherly, como uma
escritora de seu tempo, utiliza-se dos inúmeros meios propiciados pelos avanços
tecnológicos e científicos sem descuidar dos saberes passados.
Ao afirmar que a criação poética experimental está assentada no “princípio de uma
pesquisa contínua” (HATHERLY, 1981, p. 92), Ana Hatherly nos dá a direção para a leitura
de sua obra, cujo processo criativo se baseia ainda no ato lúdico da descoberta e da
sondagem.
Sua adesão ao Concretismo, como ela própria afirmou, além de breve, porque o
considerava ortodoxo e redutor, aconteceu tardiamente. Não obstante ter escrito, em 1959,
o primeiro poema declaradamente concreto publicado em Portugal, só aderiu ao
concretismo em 1966. A despeito da brevidade de seu engajamento ao Concretismo, esse
lhe proporcionou um grande aprendizado, levando-a a integrar elementos desse processo a
outras experiências produtivas, como sua poesia visual ou seus poemas em prosa.
Em várias ocasiões, Ana Hatherly afirmou que o tema da escrita, seja ele na sua
representação oral ou visual, sempre marcou seu trabalho de escritora/poeta/pintora, que é
caracterizado pela incessante pesquisa sobre o ato criativo e sobre a criação.
Ana Hatherly afirmou que a palavra é uma “fábrica de realidades” (HATHERLY,
2004, p.151), e isso ela corrobora em sua obra, pois se pela palavra passa a experiência do
mundo, suas obras refletem essa experiência e quando elas, as palavras, deixam de produzir
sentido nos poemas e textos orais, transformam-se em elementos plásticos nos poemas
visuais.
O entrelaçamento entre escrita, pintura e cinema revela vivência na tradição cultural
de sua época, quando o artista participava dos vários movimentos e formas de arte,
fazendo-os interagir, para criar uma obra única. A proposta da obra de Ana Hatherly traduz-
se, nas palavras da própria autora, na reinvenção da palavra, num apelo à reinvenção da
leitura, através da “ambigüidade de escrita, a sua contradição na pluralidade dos
significados, a própria ilegibilidade natural da escrita” (HATERLY, 1981, p.151). Essa
posição provocou, por vezes, críticas hostis à sua poesia.
Para uma melhor compreensão da fase concretista de Ana Hatherly, vamos
apresentar uma breve exposição histórica do movimento concretista brasileiro e da poesia
experimental portuguesa. Nesse estudo, vamos destacar a poesia de Mallarmé, Un Coup des
Dés, com a finalidade de mostrar a decisiva influência de Mallarmé nos movimentos de
vanguarda da segunda metade do século XX.
Selecionamos, da extensa obra de Ana Hatherly, poemas visuais e experimentais em
prosa e verso, e os poemas que visam releituras de outros poemas.
Esse recorte será o ponto de partida de uma leitura, que tenta articular a produção
teórica de Ana Hatherly sobre a literatura e a vanguarda portuguesas com o seu fazer
poético.
II – HE STRANGLES THEE WITH SCARFES OF SILK
Sento-me no meio de ruínas:
Não me queixo
Grito um grito calado
Um tremor me percorre:
Suicidas-me com tua mão que me salva
(HATHERLY, 2001)
1 – A arte no século XX
Desde as últimas décadas do século XIX, a arte passava por profundas modificações
e rupturas que contribuíram para a eclosão dos movimentos das vanguardas européias do
início do século XX. Em Portugal as transformações artísticas começaram a ocorrer de
modo perceptível a partir de 1890, por iniciativa dos simbolistas e decadentistas. Fernando
Pessoa, em seu texto, Sobre a Moderna Literatura Portuguesa, afirma que essas iniciativas
foram recebidas “com violenta desaprovação, como tudo que é novo” (PESSOA, 1976, p.
420)
O século XX foi, sem dúvida, uma época de profundas transformações em todas as
esferas da experiência humana e os artistas não podiam se manter alheios a essas mudanças,
o que em parte justifica a profusão de movimentos de vanguarda e ideais artísticos que nele
surgiram. A literatura portuguesa se inscreve no panorama da arte européia, ainda que com
certa defasagem de tempo, e tal como as vanguardas, o modernismo em Portugal
desencadeou sucessivos movimentos que produziram novas idéias e novos meios de ação,
como é o caso dos manifestos e da criação de revistas.
O Modernismo primeiro movimento de vanguarda da literatura portuguesa deu
origem aos dois únicos números da revista Orpheu1. A supervalorização do cenário
cosmopolita, enfatizando as máquinas, e a multidão que se aglomerava nas ruas e nas saídas
das fábricas é o que vai caracterizar o Modernismo português, em que se destacam entre
muitos outros Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros.
O grupo Orpheu, ao contrário do Futurismo, defendia o encontro entre o passado e o
futuro. Entre seus colaboradores havia os que participavam da estética pós-simbolista e os
que buscavam novas formas de expressão poética, procurando inscrever-se de forma
atuante na cultura do seu tempo. Fernando Pessoa foi, desde o início, o “motor da primeira
vanguarda portuguesa” (MELLO E CASTRO, 1980, p. 19), considerando o modernismo uma
arte cosmopolita. A respeito de cosmopolitismo diz Fernando Pessoa:
1
– A Revista Orpheu, foi trimestral e teve uma vida breve. Tinha a intenção de estabelecer não apenas uma
contribuição literária, mas proceder a uma intervenção na história da cultura de Portugal de seu tempo e de
sua posteridade, estabelecendo um elo entre o Modernismo, o Simbolismo e o Clássico.
Criar uma arte cosmopolita no tempo e no espaço. A nossa época é
aquela em que todos os países, mais materialmente do que nunca, e pela
primeira vez intelectualmente, existem todos dentro de cada um, em que a
Ásia, a América, a África e a Oceania são a Europa, e existem todos na
Europa. Basta qualquer cais europeu – mesmo, aquele cais de Alcântara –
para ter ali toda a terra em comprimido.(...) Por isso a verdadeira arte
moderna tem que ser maximamente desnacionalizada – acumular dentro de
si todas as partes do mundo. Só assim será tipicamente moderna. (PESSOA,
1976, p. 408)
O objeto estético proposto por Pessoa teria a seu ver que representar uma mudança
fundamental no modo de pensar nacional, que deveria ser transformado pela literatura. “O
peso de chumbo da tradição” precisava ser posto de lado, esquecido mesmo, pois era
necessário escrever sobre assuntos que interessassem a inúmeros países, e não mais apenas
aos portugueses. Escrever sobre assuntos cotidianos seria então tarefa para jornalistas e
comentaristas políticos. Os poetas precisavam ser “portugueses escrevendo para toda a
Europa”, e aquele era o momento afirma Pessoa de “trabalhamos livres de Camões, de
todos os tediosos absurdos da tradição portuguesa, para o Futuro” (PESSOA, 1976, p. 422).
Os princípios básicos do Modernismo são: estética da diversidade, questionamento
dos valores estabelecidos ética e literariamente, exaltação eufórica das invenções da
técnica, libertação da escrita literária de todas as convenções e de todas as regras. Para o
Futurismo, o importante era inovar e ao contrário do grupo Orpheu, todas as linguagens do
passado deveriam ser condenadas, todas as artes existentes, desprezadas, pois nada do que
havia sido feito anteriormente representava a velocidade desse século que iniciava.
As guerras dos primeiros cinqüenta anos do século passado engendraram
revoluções. O mundo, perplexo, assistia então a sucessivos movimentos artísticos. A
humanidade se deparava com novos e perigosos acontecimentos. À euforia pelas máquinas
que tanto influenciaram o Futurismo é quebrada pelo advento da primeira grande guerra.
Sucederam-se movimentos que se contrapunham àqueles momentos de incerteza. Antes e
depois da primeira guerra mundial, os Manifestos se multiplicaram mantendo aceso o
espírito de renovação. Continuou a crescente transformação tecnológica que se fazia
presente em vários aspectos da sociedade. Os movimentos nas artes se sucederam: o já
citado Futurismo, o Expressionismo, o Cubismo, o Cubofuturismo, o Dadaísmo, o
Espiritonovismo, o Surrealismo, o Neovanguardismo.
O Expressionismo, que nasceu na Alemanha, foi uma reação contra todo o passado,
representando uma rebelião contra a totalidade de padrões e valores que vigoravam na
época. Pregava a libertação da tradição e da história.
O Cubismo, diretamente influenciado pelas artes plásticas, baseava-se na
simultaneidade e no mesmo plano de percepções, lembranças, intuições. A livre associação
de planos o tornava bem próximo da pintura. O jogo de formas era submetido a uma lógica,
porém esta se achava distante do racionalismo. Seu principal representante foi Apollinaire,
e sua obra Calligrammes exerceu grande influência na Poesia Experimental.
O Dadaísmo se caracterizava basicamente pela expressão de revolta contra as
instituições e as convenções vigentes: questionamento da realidade, sátira à arte e à
literatura. Sem dúvida os artistas dadaístas refletiram o estado de aniquilamento moral dos
homens e mulheres europeus, entristecidos e desencantados pela experiência de uma guerra
continental.
O Surrealismo preconizava a escrita automática, acreditando que, através da
associação livre, seria possível um discurso que revelasse o inconsciente. A publicação do
manifesto em 1924 marcou o início do movimento que primou por uma nova e ousada
linguagem artística.
Essa rápida passagem pelos principais movimentos estéticos e artísticos entre
guerras permite perceber em todos eles um desejo de ruptura com o passado e um sonho
para um futuro rico em promessas. O curto período entre guerras foi marcado pela ânsia de
viver, de aproveitar o aqui e agora. A nova guerra mudou outra vez o pensamento e o
comportamento do ser humano. A Segunda Guerra lançou no espírito humano a incerteza
sobre a permanência e a duração da paz. Para o mundo ocidental, a guerra de 39-45
representou o fim de toda e qualquer ortodoxia.
Pode-se considerar que a chegada de um futuro, preconizado por Fernando Pessoa,
no início do século, para a prática de novas tendências, tem como marco ano de 1945, ano
em que terminou a segunda grande guerra na Europa e começou a era atômica. Nessa
época, processou-se em alguns centros da Europa uma espécie de reavaliação, de retomada
de certos princípios das vanguardas, princípios esses que, de alguma forma, teriam ficado
perdidos entre as duas guerras.
A literatura de vanguarda veio para romper com toda a concepção literária então
vigente. No mundo todo, em meio a revoluções e guerras, os avanços das teorias
psicanalíticas, contribuem para criar o ambiente para a propaganda de novas idéias e novas
formas de expressão. Surge um processo de dissociação psicológica, como atitude
existencial, uma conscientização da angústia, posturas plenamente justificadas na abalada
Europa pós-guerra, constituindo um complexo de valores que se refletirão no pensamento
humano das décadas seguintes.
A literatura, sempre acompanhando as mudanças tecnológicas, políticas e sociais
que então ocorriam, acompanha o comportamento e a cultura de sua época, pois como
defende Ana Hatherly, “o texto literário, refletindo sempre o contexto histórico-social em
que surge” (HATHERLY, 1979, p. 93), resulta de um equilíbrio entre os conflitos e tensões
do momento histórico em que é produzido, dos conflitos do autor e sobretudo dos
“conflitos dentro do próprio texto, criados pelo autor” (HATHERLY, 1979, p. 93)
Com o desenvolvimento da tradição modernista, cujas bases se reportam ao Orpheu
e mais longe ainda à Geração de 18702, surge a poesia de vanguarda ou a Novíssima Poesia
Portuguesa. Sendo assim, essa poesia assume, como diz Melo e Castro, um “certo acertar o
2
– Um grupo de jovens intelectuais, iluminados por idéias inovadoras, inspirados na cultura francesa,
opõem-se a um governo monárquico cada vez mais contestado. Liderados ideologicamente por Antero de
Quental e José Fontana e do qual fizeram parte alguns dos maiores escritores da história da Literatura
Portuguesa, como Eça de Queirós, Ramalho Ortigão, Teófilo Braga e Guerra Junqueiro, compõem o essencial
da chamada Geração de 70.
passo” (MELO E CASTRO, 1980, p.17), com a poesia praticada no resto do continente
europeu. Ela representa, portanto, um modo de estar no mundo, um novo questionamento,
provocado pelo rápido e enorme desenvolvimento técnico e científico que, alargando o
potencial do campo de ação do espírito humano, influenciou o próprio pensamento.
Música, literatura, artes plásticas e mesmo as recém criadas artes do século XX, o
cinema e a fotografia, voltavam-se para o espírito de invenção e de radicalidade dos
movimentos de vanguarda do início do século em questão. A palavra vanguarda não é
usada com muita freqüência nos ensaios críticos ou teóricos quando se fala de poesia
portuguesa, somente a partir dos anos 60 é que ela aparece mais freqüentemente e, muitas
vezes, com conotações contraditórias.
Mas afinal o que é, nesse contexto, vanguarda?
Em seu sentido literal, vanguarda (que vem do francês avant garde, “guarda
avançada”), faz referência ao batalhão militar que precede as tropas em ataque durante uma
batalha. Daí deduz-se que vanguarda é aquilo que “está à frente”, o que se aguarda. Pode-se
dizer que, da ótica da teorização, vanguarda é o conjunto de práticas textuais, sociais e
políticas que, questionando, impulsiona todo um modo novo de pensar e de agir, que,
assumidamente voltado para o futuro, provoca uma série de outras ações que, poderão
corroborar ou não, com essa noção estabelecida a priori. Melo e Castro diz o seguinte
sobre a vanguarda:
4
– Centro de tradição artística, cujo antecedente imediato foi a Bauhaus, empenhado em construir uma nova
realidade poética, uma arte da poesia verdadeiramente criativa.
portanto, teve origem nos revolucionários poemas de Mallarmé, que representaram um
marco divisório na criação e composição poética5.
Por isso, quarenta e três anos depois do lançamento do movimento concretista,
Augusto de Campos, em uma entrevista6 relembra os precedentes históricos de sua obra e
do movimento de poesia concreta no Brasil e diz o seguinte:
Isso ocorre porque entre as formas poéticas fixas e as livres, deu-se uma evolução, e
neste curso a própria poesia alterou-se, levando a poesia concreta ao limite, o que tentava
mostrar o esgotamento da poesia lírica tradicional. Com isso, o sentido tradicional é
convertido num sentido novo, no qual o desprezo pelos ornamentos situa a poesia concreta
no espaço de uma significação intersemiótica, na forma de combinação de componentes
verbais e plásticos, e não mais exclusivamente no espaço da significação verbal. Ana
Hatherly, explica esse sentido de ruptura tão preconizado pelo movimento concretista, da
seguinte maneira:
Isso quer dizer que a poesia não pretendia substituir o discurso, pois sua função não
é essa, mas a poesia pretende ter autonomia em relação a linguagem, e atuar sobre ela para
conter sua alegada degeneração.
Algumas definições da poesia concreta ou concretismo, como a de Afrânio
Coutinho na sua Introdução à Literatura no Brasil, segundo o qual “depois de 1950,
revelando influências de Mallarmé, Pound, Joyce, Apollinaire, Gomringer, veio surgindo
um movimento poético inspirado no concretismo pictórico” (COUTINHO, 1972, p.295),
levam à constatação de que o concretismo poderia ser “definido como um movimento
literário que produziu poemas concretos” (FRANCHETTI, 1992, p. 22) como bem explicou
Paulo Franchetti em Alguns aspectos da teoria da poesia concreta.
Os poetas criadores do concretismo situam-se agora “noutro espaço”, o espaço
específico de sua investigação; sua luta se dá em outro local, o da criação artística, e a
execução de um poema passa a ser considerada uma “operação”. E esses criadores
propunham um experimentalismo poético (planificado e racionalizado) que obedeceria a
alguns princípios por eles determinados:
– abolição do verso tradicional, através da eliminação dos laços sintáticos
(preposições, conjunções, pronomes, etc...), o que gerou uma poesia quase sempre feita de
substantivos e de verbos;
– utilização de paronomásias, neologismos, estrangeirismos, separação de prefixos e
sufixos, repetição de certos morfemas, valorização da palavra solta (som, forma visual,
carga semântica) que se fragmenta e se recompõe na página;
– poema transformando-se em objeto visual, valendo-se do espaço gráfico como
agente estrutural, uso dos espaços brancos, de recursos tipográficos, etc.... em função disso
o poema deveria ser simultaneamente lido e visto.
Essas propostas para a criação foram usadas com lucidez por João Cabral de Melo
Neto, em alguns de seus poemas, onde as poucas palavras, nuas e secas, o jogo dos
elementos iguais, com bem ressalta Pignatari, “estão a serviço de uma vontade didática de
linguagem direta” (PIGNATARI, 1987, p, 68), um exemplo é essa quadra do poeta citado:
Nesses versos, as palavras curtas, incisivas, tornam os versos secos, como seca é a
situação apresentada, também o uso do verbo cessar, como idéia de ausência, repetido, é a
repetição da ausência, as palavras são precisas, enxutas.
Augusto de Campos diz que “a poesia concreta começa por assumir uma
responsabilidade total perante a linguagem” (CAMPOS, 1987, p. 69), realizando-se assim
uma crítica que tem como princípio a relação palavra-objeto. No Brasil, essa atitude, foi um
ataque lúcido contra o “jargão lírico”, quer dizer, o concretismo pretendia abolir o
tratamento lírico dado ao poema, atitude essa que em Portugal soou como uma provocação,
uma transgressão.
Para confirmar a diversidade de características, há o fato de serem classificadas
como poemas concretos, criações em alguns aspectos bastante diferentes entre si. Tomamos
como um dos exemplos destas propostas o poema Terra de Décio Pignatari, no qual a única
palavra utilizada é o substantivo “terra”, que aparece decomposto, e a marca da visualidade
é o vocábulo disposto na página formando um “desenho”. Neste poema, Pignatari levanta o
problema da terra, um assunto tão em voga na época da composição, quanto na atualidade.
Ele trabalha as palavras como um campo arado, atomizando-as, “ter”, “ara”, “terra”:
ra terra ter
rat erra ter
rate rra ter
rater ra ter
raterr a ter
raterra terr
araterra ter
raraterra te
rraraterra t
erraraterra
terraraterra (PIGNATARI, 1956)
de sol a sol
soldado
de sal a sal
salgado
de sova a sova
sovado
de suco a suco
sugado
de sono a sono
sonado
sangrado
de sangue a sangue (CAMPOS,1999, p. 479))
O poeta concreto tendo o olhar voltado para o cotidiano, enxerga elementos deste,
como poesia, independentemente das definições tradicionais do poético. Devido a uma
nova concepção de gênero literário, os poetas concretistas e experimentais assumiram uma
posição por vezes contraditória. Pretendiam que a questão de nomenclatura, do “rótulo”,
7
- A chave léxica é um exercício de tradução didática, um ou mais símbolos com explicação verbal, que
ajudam a entender, visualizar e relacionar os fragmentos do poema.
não fosse importante, sem no entanto, abdicar do termo poesia e, desde o início, afirmaram
ser ela poesia concreta, como assegura Augusto de Campos em seu texto Poesia Concreta:
8
– Esse poema encontra-se na Antologia Grega e na pequena antologia de poemas em forma de coisa
organizada por Charles Boultenhouse para Art News Annual XXVIII de 1959.
Ironicamente essa situação nos leva a concluir que um movimento que se pretendia
de ruptura com a produção poética de sua época, que sempre se atribuiu a posição de
vanguarda em relação ao contexto cultural em que surgiu, cujos componentes ao lado de
sua produção poética produziam um vasto trabalho teórico, com o intuito de explicar e
justificar sua produção e objetivos, era afinal de contas herdeiro de uma tradição, inserido
numa continuidade milenarmente estabelecida, vínculo esse que os concretistas faziam
questão de provar.
No entanto, e apesar de tudo, o concretismo enriqueceu a poesia contemporânea
brasileira, propondo novas relações semânticas para o produto estético, com a possibilidade
da palavra pura, palavra-coisa; trouxe os ideogramas, a poesia russa moderna colocou a
poesia no centro da roda, tornando-a objeto de debate. A experiência acrescentou novos
códigos e parâmetros estéticos à cultura contemporânea brasileira despertando polêmicas
ainda hoje9. Foi um movimento avassalador, sem precedentes na nossa história literária.
O Noigandres foi o grupo que se manteve como o mais unido, ativo e influente
grupo de poesia no debate nacional ao longo de quatro décadas, sendo a sua intensa
atividade de produção de poesia, crítica e tradução rotulada usualmente de "concreta" ou
"concretista". Mesmo depois de haver passado a época do movimento da poesia concreta
como corrente definida como tendência artística brasileira, os integrantes originais, os
primeiros membros desse movimento não pararam de produzir. Sempre envolvidos em
debates, em discussões e em críticas, continuaram marcando os rumos da arte e do
pensamento estético, nacional e internacional.
Vemos com isso que as próprias referências históricas da poesia concreta são por si
só insólitas, tendo entre seus antepassados a cultura greco-latina, os carmina figuratas10 e
elementos da cultura oriental. Ana Hatherly, autora de inúmeros trabalhos sobre a
ancestralidade do visual na poesia, refere-se ao fato de o virtuosismo dos carmina figurata
latinos já implicarem numa alteração do ordenamento do processo de leitura tradicional, ela
diz:
10
Carmina figurata são poemas figurativos latinos com belos textos-imagem.
Na opinião de Ana Hatherly, o poeta experimental acentua a identificação entre ele
e o objeto criado, o que é, sempre, a intenção primeira do criador. No entanto, essa relação
texto/objeto acrescentado de conhecimento pode produzir um estranhamento entre o autor e
sua obra, e como afirma a autora, em Algures – o espaço da significação:
“obrigou” aos poetas que vieram depois dele, mudarem de forma profunda,
a maneira de conceber o texto poético, desde sua base até sua forma pronta,
e tratar essa mudança com uma objetividade científica – não se pode
esquecer que e a arte experimental é desenvolvida paralelamente à ciência
experimental, da qual assume inclusive a terminologia – que “vem alterar a
“posição” do poeta em relação à concepção tradicional”. (HATHERLY, 1979,
p. 52)
11
– A Poesia de 61 foi uma das principais contribuições para a renovação da linguagem poética portuguesa e
um dos mais importantes movimentos da poesia portuguesa do século XX. Alguns dos nomes reunidos ao
redor desse movimento são: Rui Belo, Heberto Helder, João Rui de Sousa, Fiama de Hasse Paes Brandão,
Luiza de Neto Jorge, Ernesto de Melo e Castro, Maria Teresa Horta, António Ramos Rosa, Casimiro de Brito,
entre outros.
Tão debatida e tão questionada, longe de chegar a um consenso, a poesia produzida
nos anos 1950 e 1960 retoma as proposta do modernismo, radicalizando-as, e seu caráter
tem como meta a ruptura dos cânones poéticos, provocando impacto nos leitores.
Caracterizada por um enorme hibridismo de modos e formas, a poesia dos anos 1960
caminha, ora para uma renovação do discurso poético, ora para um surrealismo,
ultrapassado por uma linguagem que, mais do que uma mistura de versos à moda de
Rimbaud, é a promessa de uma linguagem absolutamente renovadora, utópica, inaugural.
Essas duas tendências da poesia da década de 1960 diversificaram-se e enriqueceram-se,
ainda mais com a procura de um experimentalismo da forma verbal que o grupo Poesia 61
traz para as letras portuguesas. Esse grupo fazia uma poesia de redescoberta, atualizando a
relação texto-imagem, criando uma poesia anti-retórica e anticonvencional.
Considerando que a poesia é um reflexo formal da atividade humana, Melo e Castro
em sua obra Proposição 2.0, considera os seguintes tipos de poesia experimental:
1 – Poesia visual: caligramas de Apollinaire, experiências gráficas do Futurismo,
Concretismo, no Brasil e no mundo, Videopoemas em Lisboa.
2 – Poesia auditiva: experiência com voz humana gravada ou não, Poesia Rítmica
ou Poesia Melódica com palavras sílabas ou sons puros, algumas experiências dadístas e
letristas, composição direta na fita gravada (banda sonora).
3 – Poesia tátil: o poema é um objeto, todas as formas de colaboração com artistas
plásticos, os Ready-mades, os Parangolés do Hélio Oiticica, objeto poema e poema objeto,
todos os processos de construção que dão ao poema um corpo material.
4 – Poesia respiratória: experiência de Pierre Garnier com o sopro humano.
5 – Poesia lingüística: E.E. Cummings, James Joyce, Ezra Pound e muitos outros,
tentativas de criação de palavras e línguas novas, poesia poliglota.
6 – Poesia conceitual e matemática-cibernética: métodos permutacionais e
combinatórios, estrutura numérica da obra de arte experiências de Raymond Queneau.
7 – Poesia sinestésica: desenvolvimento das sinestesias, produtos híbridos dos tipos
de poesia já referidos.
8 – Poesia espacial: Mallarmé, “Un Coup des Dés”, de um modo geral o sentimento
espacial manifesta-se como denominador comum de todas as formas atuais do
experimentalismo poético.
O experimentalismo poético, que foi sendo construído ao longo do século XX,
chegou aos anos 1960/1970, como um vívido elemento das composições poéticas, sendo
um artifício de distinção fundamental entre a poesia convencional e a poesia experimental.
Segundo Melo e Castro, praticamente toda a poesia experimental feita em Portugal a partir
do início dos anos 60 pode ser denominada Poesia Espacial, porque, seguindo a mecânica
da estrutura poética criada por Mallarmé, nesses poemas o que sobressai são as
coordenadas visuais. E, efetivamente, é nesse campo de experiências visuais e espaciais do
texto que se dá a inovação da pesquisa morfológica, fonética, sintática e semiológica, que
marcou de forma indelével a Poesia Experimental Portuguesa.
A natureza híbrida desse produto que se apresenta como poético faz com que a
primeira reação, tanto da crítica como do público, tenha sido majoritariamente a rejeição ao
produto de vanguarda como arte, o que, no caso da poesia experimental, equivale à rejeição
do produto apresentado como poesia. Isso leva Ana Hatherly a comentar que:
Todas as palavras
Quando escritas
São palavras de papel
Coisas
Que não existem
Senão assim
Nesse real imaginado (HATHERLY, 2003, p.46).
Ou seja, para a escritora, as palavras só têm real existência quando nós lhes damos
existência, quando nós as lemos, quando as “reconhecemos”.
Ana Hatherly investiga, através do trabalho que produz, as estruturas que o
fundamentam, fazendo pesquisas da estrutura da linguagem ao nível literário e ao nível
visual, inclusive porque, como ela menciona, a poesia concreta levanta o problema da
definição do próprio conceito de literatura. E quando isso acontece, percebe-se que o
fenômeno havia sido questionado quanto à sua literariedade e poeticidade. Investigando
durante todo esse tempo, através de seus próprios textos, a literatura com suas ideologias e
suas regras, com seus propósitos e seus significados, como o ato de realizar um texto, o ato
de escrever em si, Ana Hatherly afirma:
Com isso, a autora nos diz que foi levada a investigar certos campos, certas áreas da
literatura, para extrair deles uma série de significados que levassem a uma transfiguração da
leitura, ou como ela o diz em alguns de seus textos, a uma reinvenção da leitura. A
produção desse tipo de poesia oscilava entre a designação de poesia concreta e poesia
experimental. Por isso, Ana Hatherly definiu como poesia concreta, em seu artigo o
Idêntico Inverso, a produção denominada poesia experimental, ela diz:
Por causa dessa, digamos, falta de especificidade, podemos entender que, sob a
denominação “Poesia Concreta” encontra-se um conjunto heterogêneo de produção poética
que, com o passar do tempo, constituiu um interessante questionamento a respeito do
critério da escolha dos poemas para a elaboração de antologias.
A incorporação de elementos de outras mídias (visuais, auditivas, táteis) ao texto
criou uma nova tendência, que renovou com muita força o pensamento artístico português.
O texto poético deixou de ser tomado como mera interpretação da realidade e passou a
constituir sua própria realidade:
12
– Discurso proferido na Feira do Livro de Lisboa de 1962, quando do lançamento do seu livro Ideogramas.
A poesia concreta ou experimental foi criticada, censurada e perseguida, não porque
se rebelasse contra os cânones estabelecidos (pois isso o modernismo já havia feito), mas
porque ameaçava romper definitivamente com a noção de verso na medida em que o
reduzia à exploração fônica, semântica e visual da palavra. A novidade que ela apresentava,
era vista como terrorismo intelectual por todos os que não estavam preparados para
compreender o que se passava. O entendimento do movimento de poesia experimental foi
deixado para o futuro, quando o código da arte de vanguarda já fosse dominado por mais
pessoas, de modo a ser possível anular a estranheza provocada e permitir o acesso
generalizado. Esse processo de distanciamento corresponde às formas de ver esse tipo de
arte.
Para finalizar: parece-nos claro que mesmo o que há de mais radical nesta
nova poesia não se desvincula – ao contrário – dos princípios básicos da poesia
concreta. Continuamos, portanto, a chamar de concreta a esta poesia. (PINTO e
PIGNATARI, 1987, p. 162)
É uma tela de 2,44 X 2,44m
em que o real imaginado
está devidamente enquadrado
Porque o real
que esta pintura pinta
e que ele quer que se sinta
é um real que se mente
nesta pintura rente
E acrescenta:
Amanhã o público
vai quer outra coisa
além do que eu vi
Falar das propostas teóricas de Ana Hatherly, dos seus conceitos sobre a poesia
experimental e de sua vertente, a poesia visual é conhecer um pouco da pesquisadora que
existe por trás da artista, é também apreciar sua capacidade de estar sempre participando
dos acontecimentos de seu tempo, no qual, “à frente de todos os significados há uma
palavra rebelde à procura do mais pequeno pretexto para se amotinar” (CUNHA E SILVA,
1999, p.10). É desse tipo de palavra, da palavra pré-explosiva, aquela que dispensa
reverência, que Ana Hatherly trata em sua obra, de forma pioneira, pois em suas palavras,
“Escrever é inventar o mundo, usando sempre as mesmas letras” (HATHERLY, 2003, p.13),
porque, toda experimentação inova, inventa.
A aceitação dos novos parâmetros para a poesia enfrentou enormes dificuldades, e
as teorias difundidas pela poesia de vanguarda foram vistas como uma revolução. O
posicionamento assumido pelos poetas concretos refletia uma insubordinação, um
questionamento de valores, colocando em cheque o status quo vigente. Era a época de um
hibridismo caracterizado pela apropriação, montagem, colagem e fusão entre os vários
discursos, textos literários ou visuais, oriundos de campos semânticos e lingüísticos
distintos e até mesmo de épocas distintas.
A abolição dessas fronteiras era feita pelo grupo de poetas concretistas e
experimentais, que realizava esforços no sentido de uma ruptura, de um combate, de uma
luta contra as tradições. Esses grupos desempenharam o ambíguo papel de tropa de choque,
pois, tendo a tarefa de confrontar o poder, tentavam estabelecer eles mesmos a nova ordem.
Questionando sempre, esses poetas, contribuíram para a mudança e reformulação da crítica,
da tradução, trazendo benefícios também para a atividade da leitura. Eles diziam que para
haver uma comunicação era necessário que houvesse ruptura. E os poetas sempre querem
se comunicar mais e mais.
13
– Nessa obra a autora teoriza as questões recorrentes em sua obra poética-ensaística, procurando as raízes
da linguagem, a procedência da imagem em relação à palavra, refazendo o caminho desde os poemas visuais
gregos do século IV a.C. até os poemas visuais do século XX.
14
– Termo empregado por Joyce para expressar a estruturação ótico-sonora, geradora de idéias, colocadas à
disposição do poema.
o poema é
para ver-se
ler-se
(às vezes ouvir-se)
mas
sobretudo
adivinhar-se
o poeta é
uma sombra
um perfil
um desaparecimento
mas
sobretudo
Não que o significado das palavras se altere devido a simples disposição no espaço
do papel, altera-se sua função, passando a existir múltiplas possibilidades de criação de
sentido a partir da disposição das palavras. Assim, a escrita poética passa a criar seu próprio
objeto, que se descobre freqüentemente ao nível da frase. A linha de ruptura que demarca a
modernidade da poesia está representada na pesquisa e na descoberta dos valores outros da
palavra, o que se torna patente no uso de um vocabulário intencionalmente restrito a
algumas palavras, na brevidade do discurso poético e na cuidadosa escolha das imagens.
Ao listar os inúmeros experimentos de texto-imagem, Ana Hatherly afirma que o
rigor do “caráter místico da escrita”15 (HATHERLY, 1981, p. 139) não é um privilégio do
Ocidente, pois no Oriente ele é assumido com exatidão, sendo o poeta-pintor-calígrafo
relevante figura nas sociedades do Japão e da China. Destaque-se que, na Índia e no Tibete,
essas práticas tiveram caráter esotérico. No Oriente Médio e no Norte da África também
foram encontrados, ao longo dos tempos, poemas-objetos, com as implicações culturais
semelhantes.
15
– Anos mais tarde, em 1998, numa palestra proferida durante o Festival de Poesia na Ilha de Porto Seguro,
Ana Hatherly corrobora essa idéia de caráter místico ao falar sobre Quando o poeta pensa a escrita
(HATHERLY, 2004, p. 99).
Ana Hatherly, em sua visão diacrônica, considera que os textos visuais, praticados
por diferentes culturas, em diferentes épocas, criaram uma tradição de mensagens visuais,
uma vez que, durante toda a Idade Média e nos séculos XVII e XVIII, se encontram textos-
imagens que, utilizando-se de inúmeros dispositivos, como a organização de palavras, letras
e signos nas páginas, contribuem para uma pluralidade de significados e de leituras. Essa
reformulação, essa nova relação entre texto e imagem culminou no século XIX, com o
poema Un coup des dés, de Mallarmé, poema símbolo dos tempos modernos.
Nesse sentido, a poesia experimental retomou essa tradição, acrescentando novas
formas e novas técnicas ao entrelaçamento entre imagem e palavra, sendo essa a grande
contribuição trazida pela arte de vanguarda. É a partir dessa retomada que Ana diz que
“interpretar é transformar” (HATHERLY, 1981, p. 141).
Outra característica do discurso poético dessa época baseia-se em uma
disponibilidade intrínseca ao valor das palavras, dada pela sua decomposição, o que foi
amplamente explorado pelas poesias concreta e experimental. Ana Hatherly considera, que
a proposta concretista de abolir o subjetivismo da obra de arte tornou-se uma constante na
criação. A poesia começa a utilizar uma linguagem inovadora, capaz de alterar o sentido da
expressão discursiva. O poema, tornado objeto funcional, conclama o leitor a uma leitura
interpretativa. O discurso poético deixa de ser explícito, a expressão poética liberta-se da
significação das palavras, e, assentada em processos sintáticos que produzem um outro
significado, torna possível a leitura do poema, e este na qualidade de texto-objeto, exige
uma participação do leitor no processo criativo.
O aspecto lúdico da poesia de vanguarda do século XX, assim como da poesia do
barroco, é determinante, fazendo que essa arte se torne um jogo, em que tanto palavra
quanto imagem estão ativamente envolvidas. Elas jogam com a transgressão, que é
característica da arte de vanguarda, podendo mesmo ser considerada seu aspecto
fundamental. Em relação à vanguarda Ana Hatherly diz:
RATATOCK!
des pliques &des plock
16
– Em sua obra, e nessas duas em particular, Ana Hatherly produz um discurso reflexivo, definindo a
interdependência e a complexidade da escrita e da pintura. “O meu trabalho começa com a escrita – sou um
escritor que deriva para as ares visuais através da experiência com a palavra. HATHERLY, 2004, p. 77)
RATAPLOCK!
titorolock.
toplock.
je t’ en mock.
toc.
je t’ en plock. Frock.
poporolock.
piporocock.
troploctictictoc (HATHERLY, 2004, p.188)
Ana Hatherly desenvolveu sua poesia visual, afirmando que ela “transcende e
engloba o problema do conteúdo ao nível do significado” (HATHERLY, 2004, p. 148), ou
seja, o alargamento do significado se dá de tal forma que ele não fica mais restrito a um
conteúdo específico, literal, limitado pela forma gráfica, uma vez que os signos gráficos
comportam ilimitados significados. No desenho, o pensamento visual não precisa ser
deduzido, ao contrário do que muitas vezes se imagina, pois ele próprio é a essência, a alma
do assunto, proporcionando inúmeros significados. No desenho, ou texto-imagem,
entrevemos o funcionamento de um mecanismo em que ele atualiza um fundo potencial.
Quer dizer, o modelo é a imagem, que, ao mesmo tempo em que nos induz, também nos
posiciona, nos guia, na realização do ato mágico, onde o mundo se deixa reunir na imagem
e dura o tempo dessa composição. E só na transparência do desenho é que a composição
revela sua verdadeira natureza.
Essa poética inter-artes, em que o desenho/pintura é a poesia, é também a explosão
contemporânea de códigos de representação, que pretendem abolir as categorizações
hierárquicas entre as artes, uma ação semiótica. No cenário da poética visual, tem-se de
levar em conta que, o contexto da intertextualidade é fundamental para o entendimento
dessa ambigüidade territorial entre palavras e imagens. Por outro lado, a palavra só assume
sua significação no diálogo com outra palavra, com outro discurso, onde se fazem presentes
outras vozes, outros acentos, sociais, de classe, de gênero etc...
A abolição de fronteiras entre os diversos campos e disciplinas, que é uma das
características mais recorrentes e comumente aceitas da vanguarda, pode ser algo positivo
para uns, mas perigoso ou pernicioso para outros, e para isso alerta Ana Hatherly:
A queda de fronteiras entre as artes exigida pelas vanguardas desde
os princípios do século produziu-se de facto, inclusive no íntimo de cada
uma delas, e hoje podemos assistir aos diferentes desdobramentos dentro de
cada área específica que, por isso em muitos casos, se tornou menos
exclusiva (HATHERLY, 1981, p. 77).
2. 2 – Mensagem
Abro a boca
caio
atravesso-te
Quero Ser Ser
A vida interior diluo
reverbera com as me tremo
vozes dos outros te
perscruto (HATHERLY, 2004, p. 250)
17
– Nessa obra, Steiner trata do problema da tradução ou decodificação da leitura, chegando mesmo a definir
significado como “uma função do antecedente sócio-histórico e da resposta partilhada”. (STEINER, 1975).
modelos que possibilitam um ponto de contato possível, promovendo a identificação entre
épocas, povos e culturas e constituindo um padrão de sensibilidade ao qual nos
identificamos podendo-se ainda negar as estruturas particulares nossas ou de nossa
civilização. Daí podermos concluir que a história da civilização “é a história da
imaginação dos povos, ela é também e sobretudo a história do seu vocabulário”
(HATHERLY, 1979, p. 108), como diz Ana Hatherly citando Steiner, uma história de
modelos e formulários aperfeiçoados, modificados, repetidos e esgotados pelas inúmeras
reinterpretações.
Devido à multiplicidade da natureza dos signos empregados, à maneira como são
dispostos, as cores usadas (que permitem leituras várias), a leitura final de um poema visual
pode, às vezes, ser pouco acessível. No entanto, percebe-se que, com o uso de uma certa
tradição da narração, com o uso de figuras de fácil reconhecimento, há uma facilitação da
leitura, levando a uma eficácia desta leitura.
Essa dupla visão da leitura decorre da diversidade de interpretação e decodificação,
pois os elementos precisam ser plenamente entendidos e recriados para serem totalmente
fruídos, e essa recriação dá-se a cada novo contato do leitor com o texto, sem prejuízo de
um dado núcleo comum um tanto cristalizado.
18
– O Escritor datando dos anos sessenta, só foi publicado em 1975, depois da queda da ditadura salazarista,
e como diz a autora é “uma narrativa visual em vinte e seta fases, onde cada imagem é um pictograma (...)
cujo significado é posto em movimento pela leitura”, assim é que essa associação de imagens-signos associa-
se a uma reinvenção da leitura.
conceptualiza – ou, como então eu disse, até a minha mão se tornar inteligente”
(HATHERLY, 2004, p. 108), a autora procura conceitualizar sua busca, uma conceitualização
feita dentro dos modos de agir no âmbito da linguagem, para enfim transferir a
aprendizagem para a escrita ocidental. Com isso, Ana Hatherly, buscou apropriar-se do
modo chinês arcaico, que percebe e registra o mundo através da “escrita” ideogramática, o
que contrasta com o modo ocidental, gráfico e não ideográfico. Um processo cheio de
riscos, que poderia ser bem sucedido ou não, e que se justifica, porque “para o
experimentalismo o processo, o percurso da experimentação é já um valor em si”
(HATHERLY, 2004, p.108).
Ao dominar esse modo de escrita, Ana Hatherly fez combinações da lógica do modo
de escrita chinesa arcaica com a do modo ocidental. E isso, a seu ver, desautomatizou seu
agir perceptivo, escritural e poético, dando-lhe liberdade para experimentação, assim Ana
Hatherly se diz “livre para utilizar ou não qualquer dos seus elementos constituintes, de
uma forma prevista ou não nos códigos vigentes” (HATHERLY, 2004, p. 108). E as duas
alternativas, “utilizar ou não”, “prevista ou não”, sugerem a liberdade buscada pela autora
em sua poesia.
O estilo experimental da poesia de Ana Hatherly é desenvolvido principalmente, em
seus textos visuais, onde se encontram jogos combinatórios e permutacionais, que segundo
a autora, já apareciam nos antigos anagramas e labirintos do barroco. Nos textos visuais, o
que está em jogo é, a escrita como objeto, a quebra do vínculo tradicional entre significante
e significado, o jogo lúdico.
Vemos que a obra visual de Ana Hatherly é marcada por um caminho muito
próprio, onde escrita, escritor, artista e objeto visual se encontram, se fundem ou se
desconstroem, (re)inventando e (re)criando universos, códigos e linguagens. Devido à sua
apurada formação musical, seus poemas, sejam ou não visuais, têm a marca da
musicalidade19, tal como preconizado por Mallarmé.
19
– Essa marca da musicalidade deve-se a seus estudos de música barroca, que lhe ensinaram disciplina e
rigor. Como a própria autora diz: “Ao assimilar-se o rigor, está-se livre para brincar ou não” (HATHERLY,
2004, p. 149).
Por onde passa
o saber
passa
o sabor da diferença (HATHERLY, 2004, p.263)
E é aí que a categoria de jogo usada por Hatherly enuncia que o objeto funcional, a
poesia visual, tem origem no objeto mágico. No entanto, essa categoria traz por vezes
equívocos, pois como diz a autora tudo na vida é jogo, no sentido metafísico.
Essa questão do novo, para uma cultura tão afeita à categoria do gosto, brota
forçosamente do próprio objeto artístico. Isto quer dizer que a feitichização do novo
exprime o paradoxo de toda arte desde o início da modernidade, que a poesia realizada deve
ser feita por si mesma. Mas esse paradoxo se desfaz ao se observar as múltiplas investidas,
ainda românticas, da apreensão subjetiva da atividade criadora. Essa dicotomia entre o fazer
e o pensar é evidente em um texto de Ana Hatherly na Casa das Musas, que diz:
Pela variedade de modos como tem sido posta em prática pelos
diferentes experimentalistas de todo o mundo, a Poesia Visual viu o âmbito
de tal maneira alargado que hoje engloba a produção dum vasto grupo
de textos e/ou objetos que, nem sempre tendo a ver com poesia de tipo
tradicional (dependente de certas regras rítmicas e certos recursos
retóricos), sempre tem a ver com o discurso, mesmo quando este deixa de
ser verbal. (HATHERLY, 1995, p. 68)
Ao fazer esta afirmação, em A casa das musas, Ana Hatherly, corrobora a idéia de
que era preciso a chegada do novo, mesmo que como um simulacro de novo, para despertar
da letargia a cena cultural portuguesa, onde a poesia estava a declinar o sentimento de sua
impotência latente. Ao usar a categoria de jogo, a poeta atribui a origem da poesia concreta
ao objeto mágico. Mas, se colocarmos na categoria de jogo o poeta contemporâneo,
moderno, barroco ou medieval, ele é aquele que destrói o instante nas compulsões da
jogada, sem que se possa dizer que ele é um jogador. E “quanto mais hermeticamente
fechado na jogada, sem a feição de que é ele quem joga, mais sua poesia se reduz à
subsistência do sublime ordinário” (MOTTA, 2004, p. 21).
Alguns textos representativos do estilo barroco português tardio, incluídos num
antigo tipo de poesia laudatória visual, e que supostamente tem origem no Panegírico a
Constantino Magno, composto durante o século VI, podem ser incluídos na categoria dos
Labirintos, uma vez que representam possibilidades de leituras múltiplas, num jogo de
visualidade, independentemente do assunto tratado. Tal como nos poemas visuais de Ana
Hatherly, essas obras apresentam letras dispostas de forma técnica na tentativa de facilitar a
apreensão do texto. Há também os que apresentam em forma de pirâmide, cujo conteúdo
está disposto graficamente a fim de construir uma figura designada por Pirâmide Literária,
que apresenta uma leitura diferente para cada tipo de intenção, uma simbologia própria e
pode ter como tema louvar a vida, celebrar o nascimento de um príncipe, lastimar a ruína e
a morte ou laudatória, em intenção a algum santo.
Quando se conhece o funcionamento das bases teóricas dos labirintos e anagramas,
bem como em textos onde era usado o processo combinatório, percebe-se a importância
dada ao cumprimento de um programa de composição, o que constituía um valor por si
mesmo. Algumas das características desses textos, como recursos de técnica de combinação
e de permuta os aproxima do Movimento Experimental do século XX.
Embora trouxessem em si o desejo de comunicação imediata com o leitor, os textos
experimentais e visuais, em alguns casos, tornaram a poesia verdadeiramente ilegível. No
entanto, com o passar do tempo e com a sua constante divulgação, a aceitação do texto-
imagem passou a integrar antologias em que os autores eram levados a, além de publicarem
suas obras, repensarem-nas escolhendo-as e selecionando-as como que a fazer uma crítica
histórica de sua própria obra.
A fragmentação ou a cegueira é o castigo para o atrevimento que a palavra atualiza.
O poeta não domina a linguagem sendo antes dominado por ela. Ao consagrar-se à palavra
ele oficia a sua rendição. Não está aqui a explicação para o inebriamento que acomete o
poeta no instante da possessão pela palavra? Neste sentido, a poesia é o mais radical dos
jogos (em especial a poesia experimental), abeira-se do aniquilamento para que a palavra
renasça com um ímpeto insuspeito. Ao subverter a mortalidade, o poeta incorre no maior
dos perigos com a inocente perfídia de um jogador compulsivo.
o poeta é um guardador
guarda a indiferença
guarda da indiferença
no incerto
guarda a certeza da voz (HATHERLY, 2004, p. 264)
Isso quer dizer que a experimentação poderá produzir em seus leitores uma intensa
emoção, e com seu pendor ao jogo de palavras, a exploração de certos tipos de sonoridade,
dão indícios do lúdico que Ana Hatherly costuma explorar em suas composições. Ao
investigar os limites da escrita, a autora procura por à prova as diferentes facetas icônicas e
plásticas que compõem os elementos da escrita, e ao intervir nesse território, atinge as áreas
da plasticidade, ultrapassando as fronteiras tradicionais, principalmente no que se refere à
questão dos códigos das mensagens. Em suas próprias palavras, “foi o que me propus e
proponho ainda fazer com as minhas pinturas verbais” (HATHERLY, 2004, p.108).
um
primeiro
um
após
um
primórdio
um
primário
um
primícia
um
preceito
um
proposta
um
receio
um
resposta
um
retido
todos : tudo : sobre o destruído
(HATHERLY, 2001, p.350)
Essa experiência com as palavras surge para violar as leis e regras previamente
estabelecidas, provocando a ilegibilidade transgressora, em exercícios diários feitos pelo
poeta para arriscar-se na singularidade dos textos criativos.
O poeta não quer duplicar o mundo
não quer fazer dele uma cópia:
E a sua mão
robótico instrumento comandado
pela algébrica lógica do sentido oculto
produz
deve produzir
o que o mundo não tem
o que o mundo não diz
o que o mundo não é
(HATHERLY, 1998)
3 – A produção Poética
Para examinar a produção poética de Ana Hatherly, a opção foi por um recorte em
sua obra, uma escolha dentre inúmeras opções, de que resultou a análise, bastante
impressionista, de três poesias que considero mais representativas do seu engajamento com
a Poesia Experimental, e de sua pesquisa sobre do conceito de escrita. Quando se fala de
escrita no sentido gráfico visual, obviamente estamos nos referindo a um estágio já bem
avançado da história da escrita. Em relação a isso, a autora comenta:
Assim sendo, a poesia de Ana Hatherly está sempre propondo ao leitor novas
descobertas e significações. Acreditando que a poesia é sempre experimental porque busca
conotações insuspeitadas, o experimentalismo de Ana Hatherly a coloca no fio da espada,
quer dizer, mesmo quando faz poesia com palavras, e não com imagens, ela as trabalha para
obter um efeito visual, colocando palavras soltas na página como se dançassem um ritmo
ditado por Mallarmé. Essas palavras ora dialogam com Álvaro de Campos, o heterônimo
pessoano comprometido com a modernidade, ora reproduzem um mote camoniano,
desenvolvendo variações que funcionam como processos de permutação, tão caros ao
experimentalismo.
A criatividade de Ana Hatherly está assentada em um complexo de apreensões de
sucessivas descobertas. Seu trabalho resulta de uma meditação sobre a escrita e o ato
criador interessando-lhe especialmente o mistério da criatividade:
Na poesia de Fernando Pessoa, alguns dos altos momentos de lirismo são aqueles
em que o poeta canta a noite. Operando a fusão entre o objetivo e o subjetivo, fazendo com
que a noite se torne o ponto de partida para o sonho e para a libertação. Mas a noite é
também enigma sem decifração. É pela noite que o poeta ultrapassa a noção do objetivo. A
noite realiza a unidade entre a realidade e a fantasia. Tudo perde as arestas e as cores. A
noite é o espaço privilegiado do sonho, oferecendo um mundo onírico que é próprio da
transcendência. Noite é uma das palavras mágicas da língua portuguesa.
A noite se reveste de incerteza, tornando-se símbolo de vida e morte. Assim a noite
simboliza simultaneamente o nascimento e a morte, a criação e a destruição. Através da
poesia da noite, as imagens são o caminho dos sonhos vividos em espírito, descrevendo
trajetórias de movimento da alma, numa perpétua oscilação das exaltações líricas.
Ana Hatherly também explora a noite em seu poema Noite Canto-te Noite. Três
versões da poesia são apresentadas. A autora organiza o texto como se fosse uma partitura
musical, uma sinfonia, uma clara alusão à poesia criada e difundida por Mallarmé. A
presença do silêncio, como esclarece a autora, se faz pelas lacunas que o texto cria, e que
vão aumentando gradualmente, até que na terceira versão, apenas a palavra noite é
proferida, a eliminação de todo o texto que a envolve, funciona como suporte para a
emoção poética.
O poema Noite Canto-te Noite, vem precedido de um programa em que a autora
apresenta e explica o texto, dando algumas direções para a leitura. Esse programa funciona
como um roteiro elucidativo que visa mostrar a relação entre teoria e prática. Ou seja, uma
relação entre criação e leitura. O roteiro não só indica uma leitura, mas também aponta para
o desejo da autora ser compreendida pelos leitores. Essa atitude corrobora a teoria de que o
poeta experimental reinventa e recria a leitura por desejar ser entendido pelos leitores, ainda
que para isso tenha de “orienta-los”.
Ana Hatherly explora os múltiplos sentidos da “noite”, levando em conta os
significados que essa figura tem nas culturas do ocidente e também do oriente. Trata-se de
um poema rico e complexo, onde a “noite” se apresenta como símbolo do mistério
insondável da existência humana. Usar o tema “noite”, não é novidade e foi feito por
inúmeros poetas, Ana Hatherly utiliza a mesma referência simbólica de Fernando Pessoa,
quer dizer, a “noite” como metáfora dos mistérios do mundo, a noite pura magia, noite
como partida para o sonho, noite do oriente e do ocidente. Enquanto, na poesia de Pessoa, a
noite evocada é “antiqüíssima e idêntica”, quer dizer, é uma noite que se inscreve no tempo
e, justamente por isso, tem história. Mas também é uma noite que está aquém e além da
história, porque se apresenta como idêntica a si mesma. Assim, mudando-se a maneira de
ver a noite, os sentidos se alteram, mas o referente, a noite como objeto, permanece fixa.
O título do poema Noite Canto-te Noite apresenta as aliterações de /t/, que são secas
e afirmativas. Aqui, o canto, que se faz escrita, que cria a noite como conceito.
Noite
Canto-te para que tu definitivamente
existas (HATHERLY, 2001, p.135)
“Existir”, esse é o sinônimo de criar. Logo é preciso nomear a “noite” para que ela
possa realmente ser, existir.
“Canto o teu nome porque só as coisas cantadas” – a relação entre cantar/criar e
existir remete para a própria origem da poesia, pois na há verbo mais poético do que o
verbo cantar. E a própria poesia nasce do canto dos bardos, dos menestréis, do cantor ritual
em tribos perdidas no tempo.
“realmente são e só o nome pronunciado” –a constante reafirmação de que é preciso
pronunciar o nome para que a noite possa definitivamente existir, remetendo para a função
criadora da palavra. Ou seja: segundo Jacques Lacan, “faz surgir a coisa mesma, que não é
nada senão o conceito” (LACAN, 1979, p. 275)
“inicia a mágica corrente” – o que é a “mágica corrente” senão o mais-além que
sustenta a palavra? E o que seria esse mais além?
Repare-se que até aqui, a autora usou vocábulos e idéias de criação através da
palavra dita, da palavra proferida, para que a “noite” fosse criada, para que ela existisse,
remetendo à função do poeta, criar o mundo através da palavra. Com isso, Ana Hatherly
nos diz com todas as letras que a palavra se inscreve no universo semântico, que é o da
linguagem. Podemos também pensar no sagrado, na palavra divina, na criação do mundo,
feita por Deus por meio da palavra substantiva, do verbo ativo do sopro divino como está
dito nas Sagradas Escrituras cristãs. Logo, o poeta cria a sua matéria como um deus, usando
a palavra criadora, ordenando a criação através dela, e a poesia é o universo do poeta e o
universo criado pelo poeta.
Ana Hatherly mostra que, só a partir da existência da palavra, a noite como metáfora
se torna símbolo dos mistérios do mundo (e que por isso mesmo nunca será apreendida por
completo), seja ela em termos de linguagem poética ou não poética, permanece indefinida,
justamente porque o ser humano nunca esgota o seu verdadeiro sentido.
No mundo das metáforas, a noite pode ser ao mesmo tempo sinônimo de ente e do
tempo. Ana Hatherly percebe a noite como um ente, como uma criatura, relembrando
outras noites. A autora o faz convocando outras vozes que cantaram a noite. Isto quer dizer
que, apesar do muito que se fala da noite, ela continua complexa. Assim, cada vez que se
canta a noite, aumenta não só a complexidade da própria noite, mas também aponta para
alguma coisa para além do próprio canto.
A palavra, bem como o desejo, deixa sempre um resto para tudo de novo começar.
E mesmo muito explorada, a linguagem poética, nunca realiza de todo o sentido que se
pretende, “pois o desejo que nunca se realiza por completo” (SOBRAL, 2003, p. 323). Ana
Hatherly mostra essa não apreensão como características do ser humano, em sua
diversidade e limitação. Dizer tudo é impossível. E essa impossibilidade, essa restrição
como marca do ser humano quanto a tudo compreender, a autora evidencia como questão
essencial, e se faz presente nas sucessivas repetições de “noite”, até o uso do “além”, a
última palavra do poema, sinalizando para algo que está completamente fora do seu alcance
e compreensão.
Nesses versos, Ana Hatherly trata da invocação da noite como algo misterioso e a
que se devem respeito e veneração.
Aqui há uma retomada, pois a autora dirige-se novamente à “noite” e temos todo o
efeito do ato poético, porque, depois de ser cantada, agora, a noite existe realmente aos
olhos de quem a invocou e a canta.
“sempre abertos porque é sempre noite e os meus olhos” – a noite com o sentido de
mistério, desconhecido, trevas.
“são os olhos da criança que somos nós sempre” – os olhos de criança aqui como
sinônimo de curiosidade tanto do poeta, quanto a curiosidade de todos nós, a curiosidade
que inspira a criação poética.
“diante da imensidão do teu espaço” – a imensidão é a volta ao cosmos, ao sagrado,
mas é também um plano opressor, pois é inapreensível.
“e os meus olhos sempre abertos são a pergunta” – a expressão, “sempre abertos”,
retira o sentido de curiosidade, como indagação, pergunta, mistério.
Ana Hatherly busca alterar o referente ao evocar uma multiplicidade de noites.
Explorando mais o som do /t/, oclusiva alveolar surda, como se vê no título: “Noite Canto-
te Noite”. E assim ela reduz a dolência, explorando um sentido mais ativo e ao mesmo
tempo de difícil realização. O que há de sui generis na carga semântica de noite, é o
mistério, o desconhecido, a divindade como sua habitante. E o mistério e o desconhecido
são os sentidos que mais se destacam da palavra noite, e Ana Hatherly explora tudo isso e
conclui o poema com o sintagma “definitivamente além”.
Em Ana Hatherly assim, o lirismo é mais tênue, ao contrário de Álvaro de Campos,
porque ao explorar a expressividade, ela destaca os procedimentos com que o faz: as
repetições e as afonias personificando a noite, os versos meta-poéticos, e insere esse lírico
na história, ao invocar, por exemplo, Oriente e Ocidente. Ela vê a noite de modo complexo,
quase personificada, e ao mesmo tempo como construção poética, como por exemplo, em:
A última frase do poema é antecedida por duas negativas; a oclusiva, ativa, forte, /t/
se destaca, e “além” quebra mais ainda o ditongo /oi/, destacando o /t/. Ana Hatherly traz os
habitantes da noite, fera, mito, espíritos, etc. A magia da noite vem pela união entre
mistério e conhecimento, entre o eu e os outros, noite coisa, noite palavra comum, noite
poesia, noite sempre inapreensível. É assim que a palavra, a posse da palavra pelo poeta,
aproxima-o dos deuses. A associação da palavra à criação é o sinal da revolta humana face
ao esquecimento e a morte, e pela palavra o poeta usurpa o futuro aos deuses (mas nunca
definitivamente).
Nesse sentido, a poesia é o mais radical dos jogos e, como tal, aproxima-se tanto do
aniquilamento quanto da criação, para que a palavra renasça com um ímpeto insuspeito.
Certo de ascender ao mistério do mundo, o poeta faz unidade com ela, a ela adere, e,
subjugado por seu poder de criar e destruir sentidos, lança a palavra em vôo, como um
pássaro liberto ou como uma seta sem destino.
É pela experimentação que Ana Hatherly extrai novos sentidos, novos modos de ver
o mundo e a linguagem. Isto ela faz ao recorrer a tantos meios para mostrar a complexidade
da noite, na vida em seu tratamento poético. E ela repete no final que, apesar de tudo, a
noite, concreta e poética, sempre escapa à apreensão completa. A noite então se torna
metáfora da própria condição humana: o inacabamento, a incompletude, a falta, a carência,
a limitação, mas essa não apreensão da noite, não apaga os esforços poéticos do ser
humano.
3 .2 – Eros Frenético
Ler o poema Eros Frenético propõe uma impressiva maneira de perceber como a
expressão poética, a partir de uma interpretação pessoal da realidade, transforma os
significados socialmente fixados pelo código em significantes produtores de outros sentidos
que, num aparente paradoxo, retornam mediante a leitura do próprio ambiente social. Há
uma prática de escrita que se inscreve no corpo, trata-se de uma escrita íntima, sexual. Um
corpo assim, eros frenético, assim movido e assinalado às avessas, é um corpo em estado de
alarme.
Numa zona, antes ambivalente e agora pluralizada, esse poema se apropria e requer
para si uma área de transição, que é, no fundo, a expressão mais feliz que Ana Hatherly
encontra para falar – e ao dizer, instaurá-lo – do prazer do sexo com o outro. É nessa zona a
um só tempo fatal e vital, local do encontro do sujeito consigo mesmo, com o outro e com
os discursos que interpretam o mundo e lhe são acessíveis, que a poesia de Ana Hatherly
inscreve uma revolução nos instrumentos de estilo e composição, ditando à sua maneira a
moda que lhe é contemporânea: ler o escrito e escrever o lido através de uma
intertextualidade.
No século XX, os movimentos que promovem a aproximação entre palavra e
imagem, imagem plástica e escrita são a tentativa de criar um discurso que seja a síntese da
nova imagem do humano. Eros Frenético está no limiar desse encontro.
Trata-se de um poema narrativo que, de fato, introduz a questão da desumanização e
da técnica. Sua composição lembra o roteiro de um moderno filme de ficção científica, e
até evoca imagens de um tal filme, embora nele estejam reunidos e vivos para sempre,
versos perfeitamente burilados, harmoniosamente irregulares, com uma musicalidade
intensa, marcos da presença irredutível do humano. Marcos também da pintura capaz de
conciliar os contrários, e que verdadeiramente assume o indizível, onde o mistério da cor e
da luz dão forma ao pensamento da autora. A imagem poética e a imagem plástica são
portadoras de múltiplos sentidos que podem ser encarados como representação do visível,
ou aceitação do visível no invisível.
Se a máquina induz ao desumano, o humano que dela fala a reinstaura em seu
devido lugar: aos pés do eros, do frenesi humano inadministrável que o poema apresenta
com sua curiosa construção. Em Eros Frenético, Ana Hatherly faz uma crítica às
representações conformistas da desumanização e um trabalho de linguagem e estruturação
que mostra aspectos que a linguagem automatizada não consegue mostrar.
As máquinas dormiam.
Suas bocas caladas exalavam o cheiro acre do
combustível muito quieto aguardando as próximas
violentas combustões.
As máquinas repousavam suas válvulas escuras (HATHERLY, 2001, p.130)
Os termos usados trazem ao leitor a lembrança de máquinas, a tal ponto que em uma
primeira leitura custa-se a perceber que se trata de um casal de humanos, ou seja, pessoas
transformadas em máquinas.
Usando palavras da biologia para narrar esse embate amoroso, a autora faz uma
reflexão a respeito do ciclo da vida, do amor e da condenação humana à reprodução.
Entre esses dois versos desenrola-se uma história de amor e sexo, em que a autora
procura transmitir a emoção frenética dos corpos dos amantes, através de um discurso
igualmente frenético, de modo intencional.
Novamente temos a evocação da noite, como símbolo de libertação do mundo e de
si próprio, como um processo de catarse, facilmente encontrado na fluência da linguagem
poética, mas visível, sobretudo na noite. Não só pelo poder sugestivo da sua componente
fônica, a que a dolência do ditongo /oi/ não é alheia, como também pela ambivalência sui
generis da sua carga semântica, é que há magia na palavra “noite”.
No primeiro verso, a noite, traz uma conotação de paz, de descanso, mas a
proporção que o ritmo da poesia, e as reações corpóreas tornam-se frenéticas, a noite passa
a não ter nada de pacificadora nem de protetora. Ana Hatherly, nesse poema, procura
transmitir uma intensa emoção recorrendo a um discurso, aparentemente, alucinado, usando
termos científicos para descrever as reações do corpo, entendido como mecanizado, aos
estímulos eróticos. Alma e corpo conduzidos por uma nova ponte. Trata-se de uma poética
de provocação de si mesma, de desafiar-se a chafurdar no lodaçal da própria existência,
desafiar-se a mostrar onde se ocultam o mistério e o erotismo que anunciam as imagens que
saltam magicamente de seus versos, repletos de evocações e sensações, jogando com
palavras que pulsam intensamente, envolvidos por uma mescla de sentimentos não
limitados pelas convenções do tempo-espaço. Este poema, apesar de erótico, trata o corpo
como se ele fosse realmente uma máquina, mas uma máquina que sofre e que enfrenta a
solidão porque deseja.
Ana Hatherly usa sua erudição e domínio do vocabulário para brincar com as
palavras, para falar do ser humano como robô, criando uma obra poética como ficção
científica, dando-nos a sensação de que as pessoas estão se transformando em máquinas, e
propondo ao mesmo tempo a exposição dessa exposição como forma de a isso resistir.
4.3 – Leonorana
Ao fazer uso repetidamente das palavras “verdura” e “formosura”, Ana Hatherly nos
faz pensar nas rígidas formas de versificação parnasiana que, por tanto tempo, estiveram
vigentes, bem como sugere uma pobreza de vocabulário e de recursos. Mas, ao mesmo
tempo, o efeito criado sugere que a autora brinca com as palavras, brinca como a criança
brinca com seus objetos, mudando-os de lugar, de acordo com uma lógica toda própria do
universo infantil.
Na variação V, a criatividade e a experimentação da poesia de vanguarda levam a
autora a fazer uma síntese das variações anteriores, com economia e justaposição das
palavras, criando e explorando as possibilidades da língua portuguesa. Com isso, os três
versos, que dançam na página, resumem todos os elementos do tema. Ou seja, a relação
entre tradição e invenção está claramente ilustrada nessa Variação.
Ao romper com a tradição, destruindo para criar, e por isso de fato sem apagar a
tradição, Ana Hatherly apresenta na Variação VI a fragmentação temática e formal do mote
camoniano, ou seja, ela está re-inventando um tema já há muito conhecido, e esse re-
nascimento implica uma ruptura, uma mudança do sistema de valores. O deslocamento dos
vocábulos na organização desse poema, substituindo a forma anteriormente estabelecida do
mote, almeja a renovação do discurso ultrapassado a fim de substitui-lo por uma nova
ordem.
A Variação XII e a Variação XIII permitem inúmeras leituras:
Variação XII
vai
fonte d para
e
leonor s a
c
verdura a pela
l
formosa ç e
segura a não
vai (HATHERLY, 2001, p.209)
vai
para a não formosa
para a não descalça
para a não verdura
para a não fonte
para a não leonor (HATHERLY, 2001, p. 209)
Nessa desconstrução final, há uma forte carga de erotismo: a força das palavras do
segmento central vertical pode ser entendida como um orgasmo, em que Leonor se desfaz
em todas as suas negativas.
Na Variação XIII o arranjo e a combinação entre as palavras do tema proporcionam
um forte apelo visual, lembrando igualmente uma forte tensão sexual, que aparece
destacada pelo segmento vertical.
A Variação XV tem como principal característica a visualidade pelo uso de cores, e
o desenho em forma de seta mostra a condição erótica do poema. As cores do texto, a
disposição geral dos elementos da Variação, o tipo e o tamanho da letra são utilizados para
produzir inúmeros efeitos de leitura.
A composição poética começa com LIANOR em estado normal, com sua escrita
tradicional, depois passa por vários estágios de excitação, até chegar ao orgasmo. Então há
uma recomposição do elemento vocabular que volta a ser LIANOR, para a seguir continuar
com sua decomposição até acabar num orgasmo com igual intensidade à da excitação
inicial. E mais uma vez há a recomposição agora já fundida com o orgasmo, através da
sucessão de letras “a a”, que se transformam em “a n”, sugerindo mais intensidade. Por
outro lado, a montagem ANOR parece sugerida por ANA, que é a combinação criada pelo
“a” e pelo “n”, que aparece em alguns momentos do poema. As cores que destacam o clima
orgástico, aparecem circundadas pelos “a a” que sugerem a entrega de Lianor a esse clima,
embora mantenha o controle da situação, aparecendo composta no início, meio e fim do
poema, como é apercebido pelas letras maiúsculas e em tamanho maior com que a autora
escreve o nome Lianor.
À primeira vista, a Variação XVI parece um amontoado de letras totalmente
desconexo. Mas a “semantização visual” , como é chamada pela autora essa Variação,
apresenta os vocábulos do mote totalmente reformulados e fragmentados, destacando-se as
letras desses vocábulos, sem as quais o poema seria totalmente incompreensível. Nele Ana
Hatherly utiliza-se de meios extralingüísticos para sua realização, e através da composição
visual procura cativar o leitor. O agrupamento das letras segue uma lei plástica, parte de
uma forma geométrica simples, quer dizer, a autora partindo do nome Leonor, o decompõe,
fracionando-o de acordo com as leis gráficas, obtendo assim, na página em branco, uma
síntese visual do mote que provoca ou sugere uma pluralidade de leituras.
O silêncio, representado na variação XVII, considerado pela autora como um
“afastamento por imagem absoluta”, mostra que a palavra poética obstinadamente
convocada é levada a sua total anulação. Isso nos leva a pensar na concepção de “silêncio
do mistério” expressa por Ana Hatherly:
E são esses enigmas do passado que a autora quer resguardar, deixando que a
donzela cantada por Camões, permaneça acessível apenas para os iniciados, guardando no
silêncio da página em branco seus enigmáticos segredos.
A Variação XIX e a Variação XX apresentam a letra como traço de escrita, isso
quer dizer que Ana Hatherly faz uma investigação da escrita, no sentido de síntese, apoiada
num espírito experimental. Desse modo, a ininteligibilidade por semantização precisa ser
interpretada de acordo com determinadas regras e, nesse caso, as variantes usadas foram
apenas o nome Leonor escrito de modo ilegível, mas identificável. O fenômeno poético,
assim, tenta escapar ao rigor da linguagem, tornando-se um objeto independente que
proporciona uma multiplicidade de possibilidades perspectivas. No entanto, quanto mais
depurada a escrita, mais rigorosa e autônoma ela se torna, oferecendo ao leitor variadas
percepções de leitura.
Como investigação de escrita, Ana Hatherly trabalha utilizando a desconstrução dos
elementos constituintes, quer dizer, ela usa o processo da experimentação, onde as
variações caligráficas passam a constituir algumas das possíveis reelaborações do nome
Leonor. Essas variações pressupõem não um rompimento com o tema, mas uma contínua
releitura dele, com o firme propósito de manter a inventividade na poesia. O que se
encontra nessas variações é o trabalho de investigação desenvolvido por Ana Hatherly no
campo teórico. Este trabalho funciona como suplemento do seu trabalho poético. Ao falar
da sua experiência no campo da pesquisa histórica das raízes da poesia visual ela diz:
crer que a revelação desse passado pode desempenhar um papel importante
numa fase de renovação do texto, pois a pesquisa histórica vem trazer de
novo para o conhecimento geral uma enorme variedade de formas e de
concepções do funcionamento da escrita criativa que abrirão certamente,
para muitos, perspectivas até agora insuspeitadas. (HATHERLY, 1995, p.115).
Variação XXVII
LEO nor LEN oor LON eor EON lor OLO ren NER olo
ELO nor ELN oor OLN eor OEN lor LOO ren ENR olo
LOE nor LNE oor LNO eor ENO lor OOL ren NRE olo
OLE nor NLE oor NLO eor NEO lor OOL ren RNE olo
EOL nor ENL oor ONL eor ONE lor LOO ren ERN olo
OEL nor NEL oor NOL eor NOE lor OLO ren REN olo
Variação XXVIII
Leonor
eLonor
eoLnor
eonLor
eonoLr
eonorL
Ela expressa o que foi constatado em nosso estudo sobre o movimento da Poesia
Experimental em Portugal. Ao refletir sobre a poesia de Ana Hatherly, compreendi que o
pressuposto fundamental da sua obra é a idéia de que a poesia se desenvolve ao nível da
experimentação e da leitura. Diz a autora:
Obras da autora:
HATHERLY, Ana. Itinerários. Biblioteca “Uma existência de papel”, Vol. 42. Vila Nova de
Famalicão, Portugal: Quase Edições, 2003.
HATHERLY, Ana e MELO E CASTRO, E.M. PO. EX. Lisboa: Moraes Editores, 1981.
Teoria e poesia
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira, São Paulo: Cultrix, 1999.
CAMPOS, Augusto, PIGNATARI, Décio e CAMPOS, Haroldo. Teoria da Poesia Concreta. São
Paulo: Editora Brasiliense, 1987.
CIRNE, Moacy. Vanguarda: um projeto semiológico. Petrópolis, RJ: Editora Vozes Ltda,
1975.
COUTINHO, Afrânio. Introdução à Literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Distribuidora de
Livros Escolares Ltda., 1972.
FERREIRA, Nadiá Paulo. Amor Ódio e Ignorância. Coleção Janus. Rio de Janeiro: Rios
Ambiciosos Livraria e Editora, 2005.
LACAN, Jacques. O Seminário, livro I: os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1979.
PESSOA, Fernando. Obra poética. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguillar S.A., 1977.
REIS, Pedro. Poesia Concreta: uma Prática Intersemiótica. Porto, Portugal: Universidade
Fernando Pessoa, 1998.
CAMPOS, Álvaro de. Vem, Noite antiqüíssima e idêntica. In Jornal de Poesia. Disponível em
www.secrel.com.br/jpoesi/facam03.html. Acesso em 05 ago 2005.
CAMPOS, Augusto de. Questionário do simpósio de Yale sobre Poesia Experimental, visual
e Concreta desde a década de 1960 (Universidade de Yale, EUA, 5-7 de abril de 1995).
Disponível em www2.uol.com.br/augustodecampos/yaleport.htm. Acesso em 03 jul 2005.
PIGNATARI, Décio. terra. In poesia.net, São Paulo: no. 96, 2004. Disponível em:
http//www.avepalavra.kit.net/poesianet096.htm. Acesso em 05 jul 2005.
Fonte iconográfica
Noite
Canto-te noite para que tu definitivamente
existas
Canto o teu nome porque só as coisas cantadas
realmente são e só o nome pronunciado inicia
a mágica corrente
Canto o teu nome como o homem antigo fazia eclodir
o fogo do atrito das pedras
Canto o teu nome como o feiticeiro invoca
a magia do remédio
Canto o teu nome como um animal uiva
de noite
Como os animais pequenos bebem nos regatos depois
das grandes feras
Canto-te noite
e tu definitivamente existes nos meus olhos
sempre abertos porque é sempre noite e os meus olhos
são os olhos da criança que nós somos sempre
diante da imensidão do teu espaço
noite
Canto-te noite
e os meus olhos sempre abertos são a pergunta
instante pendente de eu te interrogar
noite
e interrogo as coisas em seu ser nocturno
em seu estar sombriamente presentes na tua claridade
obscura
E como é sempre noite
meus olhos abertos perscrutam-te
noite
símbolo de tudo o que me foge
como apertar o ar dentro das mãos
e querer agarrar-te
noite
oh substância
Canto-te noite
com a fragilidade de tudo o que existe perante
uma eternidade demasiado nocturna para os nossos
olhos infantis perante a tua antiguidade
futura
E a nossa voz é uma pequena onda no dorso
de teu oceano de matéria
Um leve arrepio apenas na espantosa espessura
de teu éter
Ah no ar é que tudo acontece
no ar nocturno das idades esquecidas
que previamente desconheceremos
No espaço é que tudo acontece
e o espaço é uma grande noite muito quieta
onde os nossos olhos penetram
no não sabermos até onde
ali
além
no além onde tudo acontece
Oh noite
oh espaço de tudo ser tão ligeiro e impalpável
e sermos nós a respiração da noite
teu bafo ritmado
imperceptível distância
Oh noite augusta majestática dignidade do silêncio
Oh impassibilidade da tua mecânica celeste
Oh organismo primeiro de todos os fins secretos
da compreensão das coisas
Oh inorgânico organismo dos seres
que se devoram
Oh noite diz
a quem servimos nós de pasto
Canto-te noite
como quem pronuncia o Mantra esotérico do teu nome
Canto-te e grito
para que a poeira que se infiltra em todas as
coisas se erga de ti como um plâncton
Oh Madre
matriz das criaturas inferiores que rastejam
a teus pés cobertas de pó
esse pó que a cada momento ameaça submergir-nos
Noite
Noite
Oh aranha enorme tecendo tua teia de pó
Oh noite que desintegras tudo e tudo tu constróis
Ah noite com nós lambemos tuas duras mãos
Oh noite que fustigas nossos olhos com tua sombra
enorme
Oh noite
Noite que deixas tanto espaço para o silêncio
Noite das mil pétalas
Noite dos mil braços esplendorosos em seu abandono
Noite dos murmúrios
Noite dos afagos
Noite sangue derramado sobre o mundo
Oh noite noite
Porque és sempre tão premente?
Porque sempre estás ausentemente
longe na tua constância em todas as coisas?
Noite
Oh sono
Oh noite morte tão desejada e longa
Noite mágica povoada de átomos
milhões de espírito enchem o teu sopro
E penetras em nós como uma bala
E tudo morre quando tu chegas
E tudo se dilui e se transforma em ti
Noite alada presciência de tudo acontecer
tão longe de nós e tão antigamente
de tudo nos ultrapassar com soberana indiferença
ante os nossos olhos cegos pelo teu negrume
Oh noite
Brilha para dentro de mim
Acende teus luzeiros em meus olhos
Ergue teus braços oh noite prenhe de tudo
Oh vaso
Oh via Láctea de nos amamentares com teu leite
de sombra
Oh noite úbere e pródiga
Aleita tua ninhada faminta
Noite
Noite
Grande fera luzidia
Grande mito
Grande deus antigo
Oh noite urna onde todos dormimos
Oh noite
Meus olhos choram já de tanto perscrutar-te noite
E canto-te
Canto-te
Para que tu existas
E eu não veja mais nada além de ti
E nada mais deseje senão que venhas outra vez
levar-me para dentro do teu ventre
de nunca mais haver noite
e nada mais haver que noite
Noite
Noite
Oh tu noite definitivamente além
Eros Frenético
Fernando Pessoa
Vem, vagamente
Vem, levemente
Vem sozinha, solene, com as mãos caídas
Ao teu lado, vem
E traz os montes longínquos para o pé das árvores próximas,
Funde num campo teu todos os campos que vejo,
Faze da montanha um bloco só do teu corpo,
Apaga-lhe todas as diferenças que de longe vejo,
Todas as estradas que a sobem,
Todas as várias árvores que a fazem verde-escuro ao longe.
Todas as casas brancas e com fumo entre as árvores,
E deixa só uma luz e outra luz e mais outra,
Na distância imprecisa e vagamente perturbadora,
Na distância subitamente impossível de percorrer.
Nossa Senhora
Das coisas impossíveis que procuramos em vão,
Dos sonhos que vêm ter conosco ao crepúsculo, à janela,
Dos propósitos que nos acariciam
Nos grandes terraços dos hotéis cosmopolitas
Ao som europeu das músicas e das vozes longe e perto,
E que doem por saber que nunca os realizaremos...
Vem, e embala-nos,
Vem e afaga-nos.
Beija-nos silenciosamente na fronte,
Tão levemente na fronte que não saibamos que nos beijam
Senão por uma diferença na alma.
E um vago soluço partindo melodiosamente
Do antiqüíssimo de nós
Onde têm raiz todas essas árvores de maravilha
Cujos frutos são os sonhos que afagamos e amamos
Porque os sabemos fora de relação com o que há na vida.
Vem soleníssima,
Soleníssima e cheia
De uma oculta vontade de soluçar,
Talvez porque a alma é grande e a vida é pequena,
E todos os gestos não saem do nosso corpo
E só alcançamos onde o nosso braço chega,
E só vemos até onde chega o nosso olhar
Vem, dolorosa,
Mater-Dolorosa das Angústias dos Tímidos,
Turris-Erburnea das Tristezas dos Desprezados,
Mão fresca sobre a testa em febre dos humildes,
Sabor de água sobre os lábios secos dos Cansados.
Vem, lá do fundo
Do horizonte lívido,
Vem e arranca-me
Do solo de angústia e de inutilidade
Onde vicejo.
Apanha-me do meu solo, malmequer esquecido,
Folha a folha lê em mim não sei que sina
E desfolha-me para teu agrado,
Para teu agrado silencioso e fresco.
Uma folha de mim lança para o Norte,
Onde estão as cidades de Hoje que eu tanto amei;
Outra folha de mim se lança para o sul,
Onde estão os mares que os Navegadores abriram;
Outra folha minha atira ao Ocidente,
Onde arde ao rubro tudo o que talvez seja o Futuro,
Que eu se conhecer adoro;
E a outra, as outras, o resto de mim
Atira ao Oriente,
Ao Oriente donde vem tudo, o dia e a fé,
Ao Oriente pomposos e fanático e quente,
Ao Oriente excessivo que eu nunca verei,
Ao Oriente budista, bramânico, sintoísta,
Ao oriente que tudo o que nós não temos,
Que tudo o que nós não somos,
Ao oriente onde – quem sabe? – Cristo talvez ainda hoje viva,
Onde Deus talvez exista realmente e mandando tudo...
Vem, cuidadosa,
Vem, maternal,
Pé ante pé enfermeira antiqüíssima, que te sentaste
À cabeceira dos deuses das fés já perdidas,
E que viste nascer Jeová e Júpiter,
E sorriste porque tudo te é falso e inútil.
Luís de Camões