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A POESIA EXPERIMENTAL DE ANA HATHERLY

por

Maria Cristina Vasconcellos de Otoya

Universidade do Estado do Rio do Janeiro/ UERJ


Rio de Janeiro
2005
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A POESIA EXPERIMENTAL DE ANA HATHERLY

por

Maria Cristina Vasconcellos de Otoya

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


graduação em Letras da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro/UERJ, para obtenção do título de
Mestre em Literatura Portuguesa.

Linha de Pesquisa: Literatura Portuguesa e outros


campos do saber

Orientadora: Profa. Dra. Nadiá Paulo Ferreira

Rio de Janeiro
o
2 . semestre de 2005
CATALOGAÇÃO NA FONTE

OTOYA, Maria Cristina Vasconcellos de

A poesia experimental de Ana Hatherly. Dissertação de Mestrado


em Literatura Portuguesa apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Letras da UERJ. Orientadora: Profa. Dra.Nadiá
Paulo Ferreira. Rio de Janeiro: 2o. semestre de 2005. 80 p.
OTOYA, Maria Cristina Vasconcellos. A poesia
experimental de Ana Hatherly. Dissertação de
Mestrado em Literatura Portuguesa apresentada ao
programa de Pós-graduação em letras da UERJ.

Dissertação aprovada em_________ de _______________________ de 2005.

_____________________________________________________
Profa. Dra. Nadiá Paulo Ferreira (UERJ-Orientadora)

_____________________________________________________
Profa. Dra. Ida Maria Santos Ferreira Alves (UFF-Titular)

_____________________________________________________
Prof. Dr. Marcus Alexandre Motta (UERJ-Titular)

_____________________________________________________
Profa. Dra. Ângela Maria Dias de Brito Gomes (UFF – Suplente)

_____________________________________________________
Profa. Dra. Maria Helena Sansão Fontes (UERJ – Suplente)
DEDICATÓRIA

Ao meu marido Juan Francisco;

Aos meus filhos Giselle, Juan e Natascha;

Aos meus pais Clívia e Lourival.


AGRADECIMENTOS

Um trabalho mesmo que seja individual, é, na verdade, resultado de cooperações.


Agradecer a todos que me apoiaram ao longo desse caminho, para a realização deste
trabalho, expressa apenas em parte o meu reconhecimento, para quem de alguma forma
colaborou para que a pesquisa seguisse adiante.
A Deus, em quem sempre busco apoio, minha força e confiança, sempre;
Ao meu marido Pancho, pelo companheirismo e disponibilidade, cumplicidade e incentivo
com que compreende minha necessidade de crescimento;
Aos meus filhos Giselle, Juan e Natascha pelo amor e carinho com que estiveram ao meu
lado, compreendendo, ajudando e dando força nos momentos mais críticos;
Aos meus pais, Clívia e Lourival que, com seu amor e ensinamentos, proporcionaram e
incentivaram meu aprendizado durante toda vida;
Aos meus irmãos Maria Lúcia, Maria Betânia e Luiz André pelo estímulo e apoio;
À minhas tias Clarisse Pires mestra das primeiras letras e Clélia Pires o constante incentivo;
À Profa. Nadiá Paulo Ferreira, querida orientadora, pelo apoio bibliográfico, interesse,
amizade e qualidade da sua orientação desde o início desta caminhada;
Ao amigo Adail Ubirajara Sobral, interlocutor virtual, pela generosidade em trocar idéias,
partilhar conhecimento e dedicação com que leu e opinou sobre o meu trabalho;
Ao professor Marcus Alexandre Motta, meu co-orientador, pelos sábios e valiosos
conselhos que direcionaram esta pesquisa;
Aos professores Maria do Amparo Tavares Maleval, Maria Cristina Batalha, Sérgio Nazar
David, Carlinda Fragale Pate Nuñez, Guillermo Giucci e Marina Machado Rodrigues, pelos
doutos ensinamentos;
À colega e amiga Marina Loureiro, pelo incentivo e disponibilidade em ler meu trabalho;
À Liana Flosky Manno colega, amiga e parceira generosa;
Ao incentivo do querido amigo Marcelo Maya que, infelizmente, não está mais entre nós.
Aos colegas da primeira turma de Literatura Portuguesa, pelo respeito mútuo e colaboração.
RESUMO

Este trabalho é uma leitura da poesia de Ana Hatherly. A Poesia Concreta era a poesia
praticada na segunda metade do século XX, em Portugal e no mundo. A Poesia
Experimental, da qual fazia parte Ana Hatherly, era uma de suas vertentes. Essa poesia de
vanguarda coloca-se à frente dos princípios e valores estéticos do seu tempo. A poesia
concreta teve origem com os inovadores e não convencionais poemas de Mallarmé, ainda
no fim do século XIX. O século seguinte foi de profundas transformações em todas as
esferas do conhecimento humano, e os poetas não ficaram a parte disso, o que justifica a
profusão de movimentos poéticos. Ana Hatherly, ao longo de sua vida acadêmica tem
pesquisado e investigado, através do trabalho que produz, a literatura e suas diferentes
ideologias, regras e formas, com o intuito de compreender a realização do texto e do ato de
escrever. Suas idéias são fundamentadas em seu interesse e conhecimento da literatura
tradicional, fazendo releituras das obras de Fernando Pessoa e Luís de Camões. A escolha,
dentre tantas, de três poesias do período experimental de Ana Hatherly, foi feita com o
interesse em direcionar o olhar para poesias que são sínteses de sua obra: a exploração do
conceito de escrita. As poesias selecionadas privilegiam o fenômeno da intertextualidade,
propondo uma reinvenção da leitura através da ambigüidade da escrita.

Palavras-chaves: poesia experimental – poesia portuguesa moderna – Ana Hatherly –


poesia visual
ABSTRACT

This work is a reading of Ana Hatherly’s poetry. The poetry practiced in the second half of
the 20th century, in Portugal and in the world, was Concrete Poetry. Experimental Poetry, in
which Ana Hatherly took part, was one of its trends. This avant-garde poetry faces the
principles and the aesthetic values of its time. Concrete poetry had its origin in the
unconventional poems written by Mallarmé, in the late 19th century. The following century
was of deep transformations and the poets did not ignore this, which explains the myriad of
poetic movements. Ana Hatherly has researched and investigated, through her work, the
literature and its different ideologies, rules and forms, intending to understand the
production of the text and the act of writing, basing these ideas on her personal interest and
knowledge of the traditional literature, doing re-interpretations of the poems of Fernando
Pessoa and Luís de Camões. By choosing three, among so many poems from the
experimental period of Ana Hatherly, I tried to emphasize poems that represent a synthesis
of her work: the investigation of the concept of writing. The selected poems highlight
intertextuality, proposing a re-invention of reading through the ambiguity of writing.

Key – words: experimental poetry – modern Portuguese poetry – Ana Hatherly – visual
poetry
SUMÁRIO

Introdução............................................................................................................................. 9

1 – A Arte no século XX.................................................................................................... 11

1.1 – A Vanguarda em Portugal..................................................................................... 15

1.2 – O Concretismo no Brasil..................................................................................... 17

1.3 – A Poesia Experimental Portuguesa..................................................................... 29

2 – As Proposta Teóricas...................................................................................................... 37

2.1 – A reinvenção da leitura – Aspectos plurais.......................................................... 37

2.2 – Mensagem ........................................................................................................... 44

2.3 – Poesia visual como jogo ...................................................................................... 48

2.4 – Texto, leitura e experimentação........................................................................... 55

3 – A Produção Poética........................................................................................................ 58

3.1 – Noite Canto-te Noite – Vem Noite antiqüíssima e idêntica................................. 60

3.2 – Eros Frenético .................................................................................................... 66

3.4 – Leonorana .............................................................................................................69

Conclusão............................................................................................................................. 78

Referências Bibliográficas................................................................................................. 81

Anexos.................................................................................................................................
a palavra evocadora
invocativa
alocutiva

a articulação mais discursiva


a expressão mais alusiva
a interpelação
o culto
do sentido íntimo

(HATHERLY, 2001, p.325)


A CORRRIDA EM CÍRCULOS
I
O círculo é a forma eleita:
É ovo, é zero,
É ciclo, é ciência.
Nele se inclui todo o mistério
E toda a sapiência.

É o que está feito,


Perfeito e determinado,
É o que principia
No que está acabado.

II
A viagem que o meu ser empreende
Começa em mim,
E fora de mim,
Ainda a mim se prende.

A senda mais perigosa


Em nós se consumando,
Passamos a existência
Mil círculos concêntricos
Desenhando.

III
Se o círculo como meta
A nenhum ponto leva,
Ninguém distinguirá o vencedor
De entre os vencidos.
E assim ficam os prémios todos
Recebidos,
Ou só invalidados?

(HATHERLY,1959)
Introdução

Fazer uma leitura de alguns poemas de Ana Hatherly, produzidos durante sua
participação no movimento de Poesia Experimental, é a proposta deste trabalho.
Durante esse período, Ana Hatherly visa produzir novas formas poéticas, onde a
investigação da linguagem é submetida a uma sistemática experimentação, resultando daí
um processo de reflexão e exercício.
Inicialmente, serão apresentadas as diretrizes do movimento de Poesia
Experimental, a fim de compreender não só a poesia portuguesa dessa época, mas
principalmente a produção poética de Ana Hatherly.
A poesia da chamada segunda vanguarda portuguesa foi desenvolvida entre as
décadas de sessenta e setenta do século XX. Foi uma poesia de intervenção, uma vez que
observamos a participação dos escritores dessa época em movimentos sociais e políticos.
Eles acompanhavam e também se opunham ao endurecimento do processo de
institucionalização de um Estado repressivo e conservador. Ana Hatherly diz que ingressou
no grupo dos experimentalistas, porque esses tinham uma posição de insubordinação e, na
época, tudo o que era subversivo lhe interessava. Lutar era para ela uma posição certa
àquela altura, quando o mundo fervilhava de acontecimentos marcantes: movimentos
estudantis, guerras, feminismo, expansão do rock, etc...
O experimentalismo poético é uma das vertentes dessa nova vanguarda que, além da
poesia, abrangeu ainda a pintura, a música, o teatro e o cinema, provocando uma verdadeira
revolução no modo de fazer e de ver a arte. A autora justifica sua adesão ao
experimentalismo, recorrendo à lingüística moderna, ao estruturalismo, à semiótica, à teoria
da forma, à ciência experimental, à publicidade, à caligrafia, à tipografia, aos ideogramas
chineses, aos caligramas antigos, à tecnologia de ponta, ou seja, Ana Hatherly, como uma
escritora de seu tempo, utiliza-se dos inúmeros meios propiciados pelos avanços
tecnológicos e científicos sem descuidar dos saberes passados.
Ao afirmar que a criação poética experimental está assentada no “princípio de uma
pesquisa contínua” (HATHERLY, 1981, p. 92), Ana Hatherly nos dá a direção para a leitura
de sua obra, cujo processo criativo se baseia ainda no ato lúdico da descoberta e da
sondagem.
Sua adesão ao Concretismo, como ela própria afirmou, além de breve, porque o
considerava ortodoxo e redutor, aconteceu tardiamente. Não obstante ter escrito, em 1959,
o primeiro poema declaradamente concreto publicado em Portugal, só aderiu ao
concretismo em 1966. A despeito da brevidade de seu engajamento ao Concretismo, esse
lhe proporcionou um grande aprendizado, levando-a a integrar elementos desse processo a
outras experiências produtivas, como sua poesia visual ou seus poemas em prosa.
Em várias ocasiões, Ana Hatherly afirmou que o tema da escrita, seja ele na sua
representação oral ou visual, sempre marcou seu trabalho de escritora/poeta/pintora, que é
caracterizado pela incessante pesquisa sobre o ato criativo e sobre a criação.
Ana Hatherly afirmou que a palavra é uma “fábrica de realidades” (HATHERLY,
2004, p.151), e isso ela corrobora em sua obra, pois se pela palavra passa a experiência do
mundo, suas obras refletem essa experiência e quando elas, as palavras, deixam de produzir
sentido nos poemas e textos orais, transformam-se em elementos plásticos nos poemas
visuais.
O entrelaçamento entre escrita, pintura e cinema revela vivência na tradição cultural
de sua época, quando o artista participava dos vários movimentos e formas de arte,
fazendo-os interagir, para criar uma obra única. A proposta da obra de Ana Hatherly traduz-
se, nas palavras da própria autora, na reinvenção da palavra, num apelo à reinvenção da
leitura, através da “ambigüidade de escrita, a sua contradição na pluralidade dos
significados, a própria ilegibilidade natural da escrita” (HATERLY, 1981, p.151). Essa
posição provocou, por vezes, críticas hostis à sua poesia.
Para uma melhor compreensão da fase concretista de Ana Hatherly, vamos
apresentar uma breve exposição histórica do movimento concretista brasileiro e da poesia
experimental portuguesa. Nesse estudo, vamos destacar a poesia de Mallarmé, Un Coup des
Dés, com a finalidade de mostrar a decisiva influência de Mallarmé nos movimentos de
vanguarda da segunda metade do século XX.
Selecionamos, da extensa obra de Ana Hatherly, poemas visuais e experimentais em
prosa e verso, e os poemas que visam releituras de outros poemas.
Esse recorte será o ponto de partida de uma leitura, que tenta articular a produção
teórica de Ana Hatherly sobre a literatura e a vanguarda portuguesas com o seu fazer
poético.
II – HE STRANGLES THEE WITH SCARFES OF SILK
Sento-me no meio de ruínas:
Não me queixo
Grito um grito calado

Meu sofrimento é de pedra

Meu desejo cinge-me a garganta


Com lenços de seda
Com vozes de seda

Sinto tua carícia longínqua


Final

Um tremor me percorre:
Suicidas-me com tua mão que me salva

(HATHERLY, 2001)
1 – A arte no século XX

Desde as últimas décadas do século XIX, a arte passava por profundas modificações
e rupturas que contribuíram para a eclosão dos movimentos das vanguardas européias do
início do século XX. Em Portugal as transformações artísticas começaram a ocorrer de
modo perceptível a partir de 1890, por iniciativa dos simbolistas e decadentistas. Fernando
Pessoa, em seu texto, Sobre a Moderna Literatura Portuguesa, afirma que essas iniciativas
foram recebidas “com violenta desaprovação, como tudo que é novo” (PESSOA, 1976, p.
420)
O século XX foi, sem dúvida, uma época de profundas transformações em todas as
esferas da experiência humana e os artistas não podiam se manter alheios a essas mudanças,
o que em parte justifica a profusão de movimentos de vanguarda e ideais artísticos que nele
surgiram. A literatura portuguesa se inscreve no panorama da arte européia, ainda que com
certa defasagem de tempo, e tal como as vanguardas, o modernismo em Portugal
desencadeou sucessivos movimentos que produziram novas idéias e novos meios de ação,
como é o caso dos manifestos e da criação de revistas.
O Modernismo primeiro movimento de vanguarda da literatura portuguesa deu
origem aos dois únicos números da revista Orpheu1. A supervalorização do cenário
cosmopolita, enfatizando as máquinas, e a multidão que se aglomerava nas ruas e nas saídas
das fábricas é o que vai caracterizar o Modernismo português, em que se destacam entre
muitos outros Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros.
O grupo Orpheu, ao contrário do Futurismo, defendia o encontro entre o passado e o
futuro. Entre seus colaboradores havia os que participavam da estética pós-simbolista e os
que buscavam novas formas de expressão poética, procurando inscrever-se de forma
atuante na cultura do seu tempo. Fernando Pessoa foi, desde o início, o “motor da primeira
vanguarda portuguesa” (MELLO E CASTRO, 1980, p. 19), considerando o modernismo uma
arte cosmopolita. A respeito de cosmopolitismo diz Fernando Pessoa:

1
– A Revista Orpheu, foi trimestral e teve uma vida breve. Tinha a intenção de estabelecer não apenas uma
contribuição literária, mas proceder a uma intervenção na história da cultura de Portugal de seu tempo e de
sua posteridade, estabelecendo um elo entre o Modernismo, o Simbolismo e o Clássico.
Criar uma arte cosmopolita no tempo e no espaço. A nossa época é
aquela em que todos os países, mais materialmente do que nunca, e pela
primeira vez intelectualmente, existem todos dentro de cada um, em que a
Ásia, a América, a África e a Oceania são a Europa, e existem todos na
Europa. Basta qualquer cais europeu – mesmo, aquele cais de Alcântara –
para ter ali toda a terra em comprimido.(...) Por isso a verdadeira arte
moderna tem que ser maximamente desnacionalizada – acumular dentro de
si todas as partes do mundo. Só assim será tipicamente moderna. (PESSOA,
1976, p. 408)

Em Portugal, no começo do século XX, as vanguardas estéticas surgiram como


escândalos que se contrapunham ao academicismo e ao espírito conservador. E a esse
respeito diz Pessoa:

Quando em março de 1915 surgiu em Lisboa a revista Orpheu, foi-


lhe feito, pela gente que representa entre nós aquilo a que em outros países
se chama de crítica, um acolhimento adverso e escandaloso.(...) A mesma
ordem de manifestações acolheu o aparecimento do segundo número, salvo
que determinadas peças literárias, que esse número continha, levaram a um
auge de indignação dispersa a adversa opinião popular a seu respeito.
(PESSOA, 1976, p. 433)

O objeto estético proposto por Pessoa teria a seu ver que representar uma mudança
fundamental no modo de pensar nacional, que deveria ser transformado pela literatura. “O
peso de chumbo da tradição” precisava ser posto de lado, esquecido mesmo, pois era
necessário escrever sobre assuntos que interessassem a inúmeros países, e não mais apenas
aos portugueses. Escrever sobre assuntos cotidianos seria então tarefa para jornalistas e
comentaristas políticos. Os poetas precisavam ser “portugueses escrevendo para toda a
Europa”, e aquele era o momento afirma Pessoa de “trabalhamos livres de Camões, de
todos os tediosos absurdos da tradição portuguesa, para o Futuro” (PESSOA, 1976, p. 422).
Os princípios básicos do Modernismo são: estética da diversidade, questionamento
dos valores estabelecidos ética e literariamente, exaltação eufórica das invenções da
técnica, libertação da escrita literária de todas as convenções e de todas as regras. Para o
Futurismo, o importante era inovar e ao contrário do grupo Orpheu, todas as linguagens do
passado deveriam ser condenadas, todas as artes existentes, desprezadas, pois nada do que
havia sido feito anteriormente representava a velocidade desse século que iniciava.
As guerras dos primeiros cinqüenta anos do século passado engendraram
revoluções. O mundo, perplexo, assistia então a sucessivos movimentos artísticos. A
humanidade se deparava com novos e perigosos acontecimentos. À euforia pelas máquinas
que tanto influenciaram o Futurismo é quebrada pelo advento da primeira grande guerra.
Sucederam-se movimentos que se contrapunham àqueles momentos de incerteza. Antes e
depois da primeira guerra mundial, os Manifestos se multiplicaram mantendo aceso o
espírito de renovação. Continuou a crescente transformação tecnológica que se fazia
presente em vários aspectos da sociedade. Os movimentos nas artes se sucederam: o já
citado Futurismo, o Expressionismo, o Cubismo, o Cubofuturismo, o Dadaísmo, o
Espiritonovismo, o Surrealismo, o Neovanguardismo.
O Expressionismo, que nasceu na Alemanha, foi uma reação contra todo o passado,
representando uma rebelião contra a totalidade de padrões e valores que vigoravam na
época. Pregava a libertação da tradição e da história.
O Cubismo, diretamente influenciado pelas artes plásticas, baseava-se na
simultaneidade e no mesmo plano de percepções, lembranças, intuições. A livre associação
de planos o tornava bem próximo da pintura. O jogo de formas era submetido a uma lógica,
porém esta se achava distante do racionalismo. Seu principal representante foi Apollinaire,
e sua obra Calligrammes exerceu grande influência na Poesia Experimental.
O Dadaísmo se caracterizava basicamente pela expressão de revolta contra as
instituições e as convenções vigentes: questionamento da realidade, sátira à arte e à
literatura. Sem dúvida os artistas dadaístas refletiram o estado de aniquilamento moral dos
homens e mulheres europeus, entristecidos e desencantados pela experiência de uma guerra
continental.
O Surrealismo preconizava a escrita automática, acreditando que, através da
associação livre, seria possível um discurso que revelasse o inconsciente. A publicação do
manifesto em 1924 marcou o início do movimento que primou por uma nova e ousada
linguagem artística.
Essa rápida passagem pelos principais movimentos estéticos e artísticos entre
guerras permite perceber em todos eles um desejo de ruptura com o passado e um sonho
para um futuro rico em promessas. O curto período entre guerras foi marcado pela ânsia de
viver, de aproveitar o aqui e agora. A nova guerra mudou outra vez o pensamento e o
comportamento do ser humano. A Segunda Guerra lançou no espírito humano a incerteza
sobre a permanência e a duração da paz. Para o mundo ocidental, a guerra de 39-45
representou o fim de toda e qualquer ortodoxia.
Pode-se considerar que a chegada de um futuro, preconizado por Fernando Pessoa,
no início do século, para a prática de novas tendências, tem como marco ano de 1945, ano
em que terminou a segunda grande guerra na Europa e começou a era atômica. Nessa
época, processou-se em alguns centros da Europa uma espécie de reavaliação, de retomada
de certos princípios das vanguardas, princípios esses que, de alguma forma, teriam ficado
perdidos entre as duas guerras.
A literatura de vanguarda veio para romper com toda a concepção literária então
vigente. No mundo todo, em meio a revoluções e guerras, os avanços das teorias
psicanalíticas, contribuem para criar o ambiente para a propaganda de novas idéias e novas
formas de expressão. Surge um processo de dissociação psicológica, como atitude
existencial, uma conscientização da angústia, posturas plenamente justificadas na abalada
Europa pós-guerra, constituindo um complexo de valores que se refletirão no pensamento
humano das décadas seguintes.
A literatura, sempre acompanhando as mudanças tecnológicas, políticas e sociais
que então ocorriam, acompanha o comportamento e a cultura de sua época, pois como
defende Ana Hatherly, “o texto literário, refletindo sempre o contexto histórico-social em
que surge” (HATHERLY, 1979, p. 93), resulta de um equilíbrio entre os conflitos e tensões
do momento histórico em que é produzido, dos conflitos do autor e sobretudo dos
“conflitos dentro do próprio texto, criados pelo autor” (HATHERLY, 1979, p. 93)
Com o desenvolvimento da tradição modernista, cujas bases se reportam ao Orpheu
e mais longe ainda à Geração de 18702, surge a poesia de vanguarda ou a Novíssima Poesia
Portuguesa. Sendo assim, essa poesia assume, como diz Melo e Castro, um “certo acertar o

2
– Um grupo de jovens intelectuais, iluminados por idéias inovadoras, inspirados na cultura francesa,
opõem-se a um governo monárquico cada vez mais contestado. Liderados ideologicamente por Antero de
Quental e José Fontana e do qual fizeram parte alguns dos maiores escritores da história da Literatura
Portuguesa, como Eça de Queirós, Ramalho Ortigão, Teófilo Braga e Guerra Junqueiro, compõem o essencial
da chamada Geração de 70.
passo” (MELO E CASTRO, 1980, p.17), com a poesia praticada no resto do continente
europeu. Ela representa, portanto, um modo de estar no mundo, um novo questionamento,
provocado pelo rápido e enorme desenvolvimento técnico e científico que, alargando o
potencial do campo de ação do espírito humano, influenciou o próprio pensamento.

1.1 – A vanguarda em Portugal

Música, literatura, artes plásticas e mesmo as recém criadas artes do século XX, o
cinema e a fotografia, voltavam-se para o espírito de invenção e de radicalidade dos
movimentos de vanguarda do início do século em questão. A palavra vanguarda não é
usada com muita freqüência nos ensaios críticos ou teóricos quando se fala de poesia
portuguesa, somente a partir dos anos 60 é que ela aparece mais freqüentemente e, muitas
vezes, com conotações contraditórias.
Mas afinal o que é, nesse contexto, vanguarda?
Em seu sentido literal, vanguarda (que vem do francês avant garde, “guarda
avançada”), faz referência ao batalhão militar que precede as tropas em ataque durante uma
batalha. Daí deduz-se que vanguarda é aquilo que “está à frente”, o que se aguarda. Pode-se
dizer que, da ótica da teorização, vanguarda é o conjunto de práticas textuais, sociais e
políticas que, questionando, impulsiona todo um modo novo de pensar e de agir, que,
assumidamente voltado para o futuro, provoca uma série de outras ações que, poderão
corroborar ou não, com essa noção estabelecida a priori. Melo e Castro diz o seguinte
sobre a vanguarda:

É, portanto, numa ótica de práticas textuais, sociais e políticas que aqui se


encontrarão as vanguardas do século XX conferindo-lhes aquilo que elas
reivindicaram sempre para si, em oposição às estratificações literárias e
filosóficas típicas do século XIX: o serem um conceito operacional que de
fato opera; o serem uma ação que de fato age; o serem um programa que se
objetiva; o serem uma teoria que, como tal modifica as práticas. (MELO E
CASTRO, 1980, p. 17)
As vanguardas fazem uso de “Manifestos”3, curtos textos panfletários que têm como
objetivo, apresentar as principais idéias, diretrizes e objetivos dos movimentos, exercendo
assim a função de verdadeiros porta-vozes, que agindo nos contextos sociais, revolucionam
a noção de obra de arte, e no caso específico da poesia, vê-se a progressiva substituição do
texto lírico, com rima e métrica tradicionais, pela produção de texto com versos livres e
nenhum compromisso com a tradição.
Apesar da ruptura que toda vanguarda enseja, a produção literária de Ana Hatherly,
assim como a de muitos outros poetas, tem por base uma espécie de reelaboração crítica de
antigos modos de trabalhar, e como bem diz a autora isso não é exclusividade dos poetas
experimentais, pois em outras épocas isso também ocorria, como não poderia deixar de ser.
Nesses termos, falar de vanguarda é pensar do ponto de vista de um projeto dinâmico e
dialético, pois a idéia de vanguarda pode definir a atividade do artista, conduzindo-o a uma
busca, a uma procura de suas origens e de suas raízes. Assim, o poeta aproveitando-se
dessas origens, as repensa, sem no entanto nunca romper necessariamente com elas, ainda
que este seja o projeto original. Ana Hatherly, em relação á poesia experimental, faz
questão de assinalar o sentido de ruptura:

Esse aspecto de ruptura da poesia experimental é muito particular


porque essa ruptura é uma recusa do ambiente que nos rodeia, e nunca é uma
ruptura com as nossas raízes. (HATHERLY, 19981, p. 21)

Repensar a atividade de criação de forma dinâmica, projetando-a para o futuro e não


mais amarrada pela história, considerar os materiais dessa criação, falar em termos de
estrutura, usar a capacidade criadora para construir novos modelos, não mais reproduzindo
os pré-existentes, transformar a obra de arte num acelerador do tempo de forma a transmitir
a experiência humana, eis os projetos das vanguardas que, desde o início do século XX, se
sucedem na sua proposta de “valores remodeladores de vida” (MELO E CASTRO, 1980, p.
23), como nos diz Melo e Castro quando analisa os movimentos das vanguardas
portuguesas.
3
– Curtos textos panfletários, importantes de vias de acesso ao pensamento vanguardista, lançados entre 1909
e 1924. Manifesto Futurista, Manifesto cubista, Manifesto Dada, etc...
Em algumas áreas do conhecimento e da filosofia, ainda segundo Melo e Castro
afirma que, o ser humano é capaz de encontrar as “linhas de força dominantes” (MELO E
CASTRO, 1980, p. 23). No entanto, na criação literária e mais ainda na poesia, isso nem
sempre é possível. Daí a atitude experimental que se dá em relação à poesia, que muitas
vezes não é uma corrente estética, mas, uma atitude de procura e de investigação que tem
vital importância para o artista, este, através dos meios, métodos e problemas que a
sociedade e a ciência apresentam, procura trabalhar numa obra em que o indivíduo e
também a coletividade se satisfaçam em sua busca estética, ou pelo menos em princípio,
como diz Melo e Castro:

A obra de arte experimental isola-se do seu autor e coloca-se numa


perspectiva de disseminação coletiva de informação: a informação de sua
própria existência como objeto belo correspondendo às necessidades
estéticas da coletividade. Necessidades essas que cada indivíduo da
coletividade procurará satisfazer através da percepção “sui generis” que tiver
dessa mesma obra. (MELO E CASTRO, 1965, p.58).

Sendo de vanguarda, a obra, coloca-se culturalmente à frente dos princípios e


valores estéticos dominantes no seu tempo, e ao romper com os horizontes de expectativa
prevalecentes causando inevitável estranheza. Com isso a comunicação de uma mensagem
de vanguarda nunca é imediata, nem de fácil compreensão. No entanto, apesar das relações
humanas necessitarem de objetos exteriores para se referenciarem e estabelecerem uma
plataforma para o entendimento, esse entendimento em relação às vanguardas é lento,
demorado, pois é preciso tempo para que a obra seja aceita.
É da natureza mesma dos produtos de vanguarda que sua compreensão e acesso não
sejam fáceis, e que sua aprovação e aceitação não sejam imediatas. No entanto, à medida
que o público aceita esse trabalho inovador, ele vai ter a oportunidade de experimentar um
alargamento das suas experiências perceptivas. Por exemplo, as inovações concretistas,
como produto de vanguarda, provocaram um estranhamento inicial, o que é natural face ao
seu afastamento das estruturas previamente conhecidas. No entanto, para Angel Crespo e
Pilar Gomes, a diluição desse estranhamento e sua assimilação cultural só vieram
corroborar a legitimidade e a autenticidade poética do movimento.
1. 2 – O concretismo no Brasil

Em viagem à Europa, em 1912, o jovem poeta Oswald de Andrade trouxe em sua


bagagem influências suficientes para o desencadeamento dos movimentos de vanguarda no
Brasil. Alguns anos antes havia sido publicado o Manifesto Futurista de Marinetti, e a partir
daí, todas as manifestações que se seguiram passaram a ser chamadas de futuristas. Essas
vanguardas parecem justificar o pensamento corrente de que os diferentes gêneros artísticos
não são sistemas estáticos nem isolados, mas que, ao contrário, interagem com outras
instituições no tecido social e, inscritos nos acontecimentos históricos, denotam momentos
de vigência, de esplendor e de declínio, ou seja, transformações, pelas quais todas as
atividades humanas necessariamente passam, como já era entendido desde o Romantismo.
Fora dos movimentos literários, outros segmentos artísticos ajudaram a romper com
a arte e cultura vigentes na época. Em 1917, a exposição de pinturas expressionistas de
Anita Malfatti culminou com a polêmica gerada entre Oswald de Andrade e Monteiro
Lobato que discordava das inovações estéticas. Em 1921, Oswald apresentou, através dos
jornais, o jovem Mário de Andrade e o chamou de jovem futurista. Outros dois personagens
importantes desse período foram o escultor Victor Brecheret e o músico Heitor Villa-
Lobos, que já apresentavam obras modernistas. A Semana de Arte Moderna durou apenas
três dias, mas, nesse curto espaço de tempo, a arte brasileira sofreu seu maior abalo e
rompeu definitivamente com o atraso cultural em que o Brasil se encontrava.
A Semana de Arte Moderna fez eclodir no país vários movimentos culturais, no
entanto, vale ressaltar que o acontecimento em si, passado o escândalo, não teve grande
importância em sua época. Somente com o passar do tempo, a Semana de Arte Moderna
não só entrou para a história da literatura brasileira, mas também influenciou outros
movimentos artísticos, como por exemplo, o Concretismo. A multiplicidade e diversidade
da produção no campo das artes em geral, bem como o desejo de originalidade, foram a
marca das criações artísticas difundidas por todo o século XX.
No Brasil, uma série de complexas transformações no âmbito social, político e
econômico que marcaram a década de 50, vinham se manifestando desde o fim da segunda
guerra mundial. Essas transformações insinuavam o perfil de um momento de mudança
para uma "nova modernidade", que forneceria um ambiente estimulante para o
desenvolvimento e sugestões renovadoras nas artes. No final dos anos 1940 e início dos
anos1950, mais uma vez, as artes, em especial a literatura, promoveram novas mudanças,
quebrando paradigmas e criando novas possibilidades.
Algumas mostras dessas possibilidades se encontram em eventos, como a
inauguração de Museus de Arte Moderna no Rio de Janeiro e em São Paulo, em 1949 e
1948 respectivamente, e a I Bienal de Arte de São Paulo em 1951. Nessa Bienal, pela
primeira vez no Brasil, fazia-se uma exposição de arte com efetiva repercussão
internacional, trazendo ao contato do público e de artistas locais; o que de mais
contemporâneo se realizava no exterior, como o trabalho de Max Bill e também o de
Niemeyer com Le Corbusier.
Essas transformações, pelas quais a sociedade estava passando, ao lado do
crescimento industrial, explicitam também o interesse de alguns setores dos endinheirados
paulistas em financiar a Companhia Vera Cruz de Cinema com o claro intuito de instalar
uma indústria cinematográfica no país. Era o apogeu do desenvolvimentismo brasileiro,
iniciava-se a era JK. É nesse período que a sociedade brasileira adquiria definitivamente
sua feição urbana, movida pela ideologia do desenvolvimento e pela associação com
capitais externos. Começa nessa época a construção e a instalação de um novo e sofisticado
parque industrial.
Influenciados por esse ambiente borbulhante de novas idéias, Augusto de Campos,
Décio Pignatari e Haroldo de Campos fizeram o trabalho de “inventores”, criando um
movimento de poesia que continha elementos da antropofagia de Oswald de Andrade, do
formalismo de Pound e da herança visual de Mallarmé, buscavam com isso um novo estilo,
uma nova forma para a poesia que fosse o produto de uma evolução crítica. Os jovens
poetas paulistas seguiam assim as idéias do poeta russo Maiakovski, que dizia que para se
ter uma arte revolucionária é necessário revolucionar a forma de expressão dessa arte. Não
se pode ser produzir algo de novo, utilizando-se formas arcaicas de expressão.
Esses poetas paulistanos conceberam então um grupo denominado Noigandres.
Junto a sua criação, houve o lançamento de uma revista para divulgar as idéias propostas
pelo grupo, bem como seus poemas, a revista também era chamada Noigandres. Essa
palavra, que nomeava o grupo e a revista, foi retirada de um poema de Ezra Pound. A
revista lançou as bases para o Concretismo no Brasil
O movimento concretista, na sua dimensão poética, foi lançado pelo poeta suíço-
boliviano Eugen Gomringer, na época, secretário de Max Bill, na Escola Superior da
Forma4, e a quem Décio Pignatari encontrou numa visita a Ulm, em 1955. Esse encontro foi
decisivo para a internacionalização do movimento, pois Pignatari já difundira as idéias do
movimento pela América do Sul. O contato foi reciprocamente proveitoso, havendo mesmo
uma troca de influência produtiva para ambas as partes. O grupo brasileiro fez, no Brasil,
ampla divulgação dos artigos teóricos e da poesia de Gomringer, enquanto este fazia o
mesmo com o trabalho do grupo Noigandres pela Suíça, Alemanha e Áustria.
Ainda nesse momento, os poetas brasileiros costumavam designar “ideograma” a
sua poesia. Seguindo a idéia de Pound, esses poemas em geral, apresentavam uma
semântica mais complexa, plurilíngüe e de múltiplas direções de leitura, que apontava para
uma desconstrução total do verso e não mais uma reformulação. Gomringer nomeava suas
composições de estrutura ortogonal e linguagem reduzida, escritas em alemão, francês,
inglês e espanhol de Konstellationen, tal como fazia Mallarmé, mas, depois acabou
aceitando a denominação geral poesia concreta (conkrete dichtung), proposta pelo grupo
Noigandres.
A partir da publicação de Plano-Piloto para Poesia Concreta, em 1959, o
movimento completou sua maturação e irradiou suas idéias, não apenas no ambiente
literário, mas em outras áreas do contexto cultural brasileiro. A poesia concreta é a
denominação de uma prática poética formulada, a partir do Brasil e da Suíça, que tem como
características básicas: textos verbivocovisuais, a eliminação dos laços do discurso, em prol
de uma conexão direta entre as palavras e a integração entre o verbal e o não verbal.
O projeto concretista brasileiro procurou estabelecer uma tradição literária, baseada
nos movimentos de vanguarda internacional, a fim de renovar decisivamente a poesia
nacional, lançando no mercado internacional a poesia concreta brasileira. Aproveitando-se
de bases lançadas pelo Simbolismo francês, esse movimento procurou repensar toda a
produção artística e desenvolveu uma nova possibilidade estética. A poesia concreta,

4
– Centro de tradição artística, cujo antecedente imediato foi a Bauhaus, empenhado em construir uma nova
realidade poética, uma arte da poesia verdadeiramente criativa.
portanto, teve origem nos revolucionários poemas de Mallarmé, que representaram um
marco divisório na criação e composição poética5.
Por isso, quarenta e três anos depois do lançamento do movimento concretista,
Augusto de Campos, em uma entrevista6 relembra os precedentes históricos de sua obra e
do movimento de poesia concreta no Brasil e diz o seguinte:

Para mim, o marco divisório da linguagem poética de invenção, na


modernidade, é a obra Un Coup De Dés de Mallarmé (1897), o poema
concebido intersemioticamente como estrutura fragmentária ("subdivisions
prismatiques de l'Idée"), na confluência do painel visual e da partitura
musical. A partir da compreensão dessa obra foi possível rever as
experiências das vanguardas do começo do século e caminhar para novas
elaborações. "Sans présumer de l'avenir qui sortira d'ici, rien ou presque un
art", o último Mallarmé - de Un Coup De Dés a Le Livre - cataliza e radica
as principais alternativas futuras da linguagem poética. Nessa obra e nos
desenvolvimentos subseqüentes das vanguardas históricas, que vão ser
reciclados e radicalizados pela poesia concreta, encontram-se os
pressupostos formais da poesia da Era Tecnológica, que se expande ao longo
da segunda metade do século. Além de Mallarmé e das vanguardas do início
do século, eu colocaria como precedentes diretos, Ezra Pound (o "método
ideogrâmico", a colagem e a metalinguagem dos Cantos), James Joyce (o
caleidoscópio vocabular do Finnegans Wake e sua polileitura textual),
Cummings (a atomização e o deslocamento sintático dos seus poemas mais
experimentais) e, num segundo plano, por mais idiossincrática e menos
rigorosa, a prosa experimental, minimalista e molecular, de Gertrude Stein.
No caso particular da poesia brasileira, o Sousândrade (séc.19) de O Inferno
De Wall Street, com seus epigramas-mosaicos pré-colagísticos, Oswald de
Andrade e o poema-minuto "antropófago", a engenharia construtivista de
João Cabral. Numa consideração transdisciplinar, mencionaria as
transformações da linguagem musical de Webern a Cage e da visual de
Malévitch/Mondrian a Duchamp. (CAMPOS, 1995)

Na origem da poesia concreta, vamos encontrar principalmente, a substituição do


descritivo pelo plástico, do auditivo pelo visual, a tendência figurativa, o método
5
– Para Haroldo de Campos “a arte da poesia, embora não tenha uma vivência função-da-História, mas se
apóie sobre um continuum meta-histórico que contemporaniza Homero e Pound, Dante e Eliot, Góngora e
Mallarmé, implica a idéia de progresso, não no sentido de hierarquia de valor, mas no de metamorfose
vetoriada, de transformação qualitativa, de culturmorfologia: “make it new”. (CAMPOS, 1987, p. 32)
6
– Essa entrevista foi concedida a K. Davis Jackson, Erik Vos e Johanna Drucker, no Simpósio sobre Poesia
Experimental, Visual e Concreta, na Universidade de Yale, nos Estados Unidos, em 1995.
ideogramático, as experiências dadaístas. Por isso, para pode-se dizer que o projeto
concretista, segundo Pedro Reis:

insere-se numa passagem da persuasão poética e das formas fixas a uma


poética de descoberta, libertas dos rigores das regulamentações formais
acumuladas ao longo da história e promovidas à condição de normas de
valor estético aceite. (REIS, 1998, p. 62).

Isso ocorre porque entre as formas poéticas fixas e as livres, deu-se uma evolução, e
neste curso a própria poesia alterou-se, levando a poesia concreta ao limite, o que tentava
mostrar o esgotamento da poesia lírica tradicional. Com isso, o sentido tradicional é
convertido num sentido novo, no qual o desprezo pelos ornamentos situa a poesia concreta
no espaço de uma significação intersemiótica, na forma de combinação de componentes
verbais e plásticos, e não mais exclusivamente no espaço da significação verbal. Ana
Hatherly, explica esse sentido de ruptura tão preconizado pelo movimento concretista, da
seguinte maneira:

Essa é a rotura que os poetas de vanguarda assumem ao recusar “a


tradição” enquanto poder instituído. E ao assimilar o passado cultural como
uma reformulação do conceito de história, ela deixa de ser fundamento de
eternidade para se tornar essa “estrutura ausente” que revitaliza, vorazmente,
todas as formas, dotando-as e privando-as constantemente de significado.
(HATHERLY, 1979, p. 121).

No seu texto Poesia concreta: pequena marcação histórico-formal, Décio Pignatari


diz que o poeta americano Cummings soube entender o problema do figurativismo de
Apollinaire, um figurativismo, que impossibilitava a estruturação do ritmo. Cummings
escapou dos caligramas realizando verdadeiros ideogramas com uma melhor utilização dos
recursos tipográficos, utilizando letras e sinais de pontuação, “tecendo uma anedota
pontuada de acidentes líricos ou satíricos” (PIGNATARI, 1987, p. 67).
Cummings também soube usar com maestria os recursos fisiognômicos de alguns
caracteres verbais, usando letras maiúsculas e minúsculas, sinais de pontuação, a fim de
obter os efeitos desejados. Ainda citando Pignatari, enumero alguns exemplos de poemas
com o uso de recursos fisiognômicos: Si-lên-cio de Haroldo de Campos, O formigueiro de
Ferreira Gullar e, o, talvez, mais famoso de todos Ovonovelo de Augusto de Campos. Há,
nesses poemas, múltiplos tipos de criação, ora é a própria letra o material utilizado, ora a
multiplicação de elementos, funcionando como estrutura do poema, levando a uma
criação/recriação da experiência. De qualquer modo, mesmo negando que sua poesia seja
caligrama, os concretistas mantêm afinidades com as experiências de Apollinaire, pela
espacialização do material verbal, largamente utilizado pelos poetas brasileiros.
A poesia concreta passa pela revogação de propostas anteriores, sendo o projeto
concretista a construção de um valor positivo, que é o da liberdade, o que aboliria o
constrangimento das convenções, e como afirma Augusto de Campos “a verdadeira missão
social da poesia seria essa de arregimentar as energias latentes na linguagem para destronar
seus dogmas petrificantes” (CAMPOS, 1987, p.116). A intenção primordial da poesia
concreta é ser uma revitalização da linguagem, e por isso o procedimento poético concreto
sobre o material verbal é radicalmente diferente do usado na comunicação cotidiana.
Discorrendo sobre esse assunto, Augusto de Campos afirma:

Não que a poesia pretenda usurpar à linguagem discursiva a função


comunicativa peculiar a esta. Mas é que o sistema lingüístico de
comunicação, facilmente satisfeito, como que exaure à palavra sua vitalidade
própria, transformando-a logo num túmulo-tabu, célula-morta de um
organismo vivo. O procedimento da poesia é exatamente o contrário.
(CAMPOS, 1987, p.116)

Isso quer dizer que a poesia não pretendia substituir o discurso, pois sua função não
é essa, mas a poesia pretende ter autonomia em relação a linguagem, e atuar sobre ela para
conter sua alegada degeneração.
Algumas definições da poesia concreta ou concretismo, como a de Afrânio
Coutinho na sua Introdução à Literatura no Brasil, segundo o qual “depois de 1950,
revelando influências de Mallarmé, Pound, Joyce, Apollinaire, Gomringer, veio surgindo
um movimento poético inspirado no concretismo pictórico” (COUTINHO, 1972, p.295),
levam à constatação de que o concretismo poderia ser “definido como um movimento
literário que produziu poemas concretos” (FRANCHETTI, 1992, p. 22) como bem explicou
Paulo Franchetti em Alguns aspectos da teoria da poesia concreta.
Os poetas criadores do concretismo situam-se agora “noutro espaço”, o espaço
específico de sua investigação; sua luta se dá em outro local, o da criação artística, e a
execução de um poema passa a ser considerada uma “operação”. E esses criadores
propunham um experimentalismo poético (planificado e racionalizado) que obedeceria a
alguns princípios por eles determinados:
– abolição do verso tradicional, através da eliminação dos laços sintáticos
(preposições, conjunções, pronomes, etc...), o que gerou uma poesia quase sempre feita de
substantivos e de verbos;
– utilização de paronomásias, neologismos, estrangeirismos, separação de prefixos e
sufixos, repetição de certos morfemas, valorização da palavra solta (som, forma visual,
carga semântica) que se fragmenta e se recompõe na página;
– poema transformando-se em objeto visual, valendo-se do espaço gráfico como
agente estrutural, uso dos espaços brancos, de recursos tipográficos, etc.... em função disso
o poema deveria ser simultaneamente lido e visto.
Essas propostas para a criação foram usadas com lucidez por João Cabral de Melo
Neto, em alguns de seus poemas, onde as poucas palavras, nuas e secas, o jogo dos
elementos iguais, com bem ressalta Pignatari, “estão a serviço de uma vontade didática de
linguagem direta” (PIGNATARI, 1987, p, 68), um exemplo é essa quadra do poeta citado:

Como não há noite


Cessa toda fonte
Como não há fonte
Cessa toda fuga. (MELO NETO, 1987, p. 68)

Nesses versos, as palavras curtas, incisivas, tornam os versos secos, como seca é a
situação apresentada, também o uso do verbo cessar, como idéia de ausência, repetido, é a
repetição da ausência, as palavras são precisas, enxutas.
Augusto de Campos diz que “a poesia concreta começa por assumir uma
responsabilidade total perante a linguagem” (CAMPOS, 1987, p. 69), realizando-se assim
uma crítica que tem como princípio a relação palavra-objeto. No Brasil, essa atitude, foi um
ataque lúcido contra o “jargão lírico”, quer dizer, o concretismo pretendia abolir o
tratamento lírico dado ao poema, atitude essa que em Portugal soou como uma provocação,
uma transgressão.
Para confirmar a diversidade de características, há o fato de serem classificadas
como poemas concretos, criações em alguns aspectos bastante diferentes entre si. Tomamos
como um dos exemplos destas propostas o poema Terra de Décio Pignatari, no qual a única
palavra utilizada é o substantivo “terra”, que aparece decomposto, e a marca da visualidade
é o vocábulo disposto na página formando um “desenho”. Neste poema, Pignatari levanta o
problema da terra, um assunto tão em voga na época da composição, quanto na atualidade.
Ele trabalha as palavras como um campo arado, atomizando-as, “ter”, “ara”, “terra”:

ra terra ter
rat erra ter
rate rra ter
rater ra ter
raterr a ter
raterra terr
araterra ter
raraterra te
rraraterra t
erraraterra
terraraterra (PIGNATARI, 1956)

Seguindo o mesmo caminho de organização visual, porém indo além e, criando um


jogo verbal de forte impacto mediante o despojamento de palavras, temos o poema de
Augusto de Campos:

de sol a sol
soldado
de sal a sal
salgado
de sova a sova
sovado
de suco a suco
sugado
de sono a sono
sonado
sangrado
de sangue a sangue (CAMPOS,1999, p. 479))

Aqui, as palavras usadas são, nessa ordem, dois substantivos e um adjetivo,


alternadamente, no entanto, nos dois últimos versos há uma quebra de estrutura, mudança
que provoca no leitor um certo impacto, devido à inversão da ordem da categoria das
palavras, a disposição do adjetivo antes dos substantivos.
Podemos encontrar em antologias internacionais de poesia concreta, poemas
visuais, isto é, poemas que não usam componentes verbais, poemas semióticos, inventados
pelos brasileiros Décio Pignatari e Luiz Ângelo Pinto, que usam apenas uma “chave
léxica”7, bem como outros que, apesar de usarem material verbal, são “ilegíveis”, em
termos do sentido verbal, pois apelam mais para uma contemplação que para a
verbalização. Há ainda os poemas sonoros, que usam uma linguagem verbal, mas cuja
vocalização resulta em sons e ruídos despojados de sentido.
Assim, o alargamento do campo poético que a poesia concreta representa, encontra
correspondência na produção semiológica. De fato, a poesia concreta é a produção literária
que ao recorrer aos signos de outras linguagens, transcende o literário e o autor a classifica
como produção artística num sentido mais amplo. Como afirma Haroldo de Campos na
introdução da primeira edição da Teoria da Poesia Concreta:

Seu consumo se deu de maneira a mais surpreendente. Na linguagem


e na visualidade cotidianas, a poesia concreta comparece. Está no texto de
propaganda, na página e na titulagem do jornal, na diagramação do livro, no
slogan de televisão, na letra de “bossa nova”. É consumida
inadivertidamente mesmo por aqueles que se recusam a reconhecê-la como
poesia. (CAMPOS, 1987, p. 7).

O poeta concreto tendo o olhar voltado para o cotidiano, enxerga elementos deste,
como poesia, independentemente das definições tradicionais do poético. Devido a uma
nova concepção de gênero literário, os poetas concretistas e experimentais assumiram uma
posição por vezes contraditória. Pretendiam que a questão de nomenclatura, do “rótulo”,

7
- A chave léxica é um exercício de tradução didática, um ou mais símbolos com explicação verbal, que
ajudam a entender, visualizar e relacionar os fragmentos do poema.
não fosse importante, sem no entanto, abdicar do termo poesia e, desde o início, afirmaram
ser ela poesia concreta, como assegura Augusto de Campos em seu texto Poesia Concreta:

Em sincronização com a terminologia adotada pelas artes visuais e,


até certo ponto, pela música de vanguarda (concretismo, música concreta),
diria eu que há uma poesia concreta. (CAMPOS, 1987, p. 40).

Ao traçarem uma linha evolutiva da poesia, os poetas concretos pretendem legitimar


o movimento concretista como uma manifestação inequivocamente poética, como
continuadora de uma tradição literária, participante do universo literário, refutando todas as
críticas que não a consideravam nem poesia nem literatura.
Augusto de Campos recusa a denominação de Concretismo, preferindo a designação
de Poesia Concreta, o que significa rejeitar os “ismos”, como uma noção de fenômenos
fugazes, temporais, que numa hora estão na moda e designam uma vanguarda em outra
hora já passaram. Assim, Augusto de Campos procura afirmá-lo como um fenômeno
perene, o que paradoxalmente lhe tiraria a natureza de movimento. A classificação da
poesia concreta como movimento pode ser tomada mais como um expediente teórico do
que propriamente como uma abordagem rigorosa do fenômeno. Não haveria então, nenhum
percurso a ser feito entre o produto e a categoria, uma vez que os dois são uma só coisa, e a
expressão “poesia concreta” designa não só a produção literária como também o gênero
literário, nomeando a um só tempo a produção e sua catalogação.
O fato é que os jovens poetas concretistas, ao se apropriarem de uma tradição
literária, recuam no tempo ao sugerirem um profundo enraizamento para o seu projeto
poético na história da literatura. Para tal eram mencionados nomes conhecidos – Mallarmé,
Apollinaire, Pound, etc. – embora não raro aludissem apenas a uma parte restrita da obra
desses autores, e apenas a um aspecto periférico de suas obras, usando isso para instituir um
elo entre eles, porque de outro modo seria impossível fazer essa associação. No entanto, o
estabelecimento dessa tradição não é algo definido a priori, mas sim algo que os poetas
concretistas fazem ao longo do tempo e de acordo com o conhecimento que vão travando
nas novas bibliografias com que entram em contato.
A volta ao passado, indo até às origens mais remotas da poesia, à invenção mesmo
da escrita alfabética, levou os poetas a descobrirem que esta forma de comunicação é
relativamente recente e que antes dela já existia a comunicação por imagens, como nos
explica Ana Hatherly em A Reinvenção da leitura. Percebe-se assim que a poesia como
texto, já que o cantar poético é originalmente verbal, é indissociável de seu aspecto gráfico.
Pode-se até dizer que, como a escrita tem origem na pintura que a precede, a poesia é uma
pintura de palavras. Nesse sentido, ao considerarem o verso como unidade poética
esgotada, os concretistas pretenderam encontrar uma nova unidade poética e descobriram
então que o espaço gráfico, a página em branco podia converter-se na unidade formal
desejada.
Desde o Ovo8 de Símias de Rodes, que data do século III a.C., um poema bucólico
composto em forma de ovo, até a poesia concreta, passando pelos poemas medievais e os
dos séculos XVII e XVIII, há o embate dialético entre a palavra e a imagem, provocando
um diálogo entre o verbal e o visual, neles a disposição das palavras, letras e outros signos,
geram uma pluralidade de significações, e obviamente de leituras, produzindo, muitas
vezes, uma união não harmônica, crítica e irônica em relação à tradição poética.
Poderíamos dizer então que os dois principais mecanismos envolvidos na concepção de um
poema visual implicam necessariamente numa tomada de posição diante do mundo e dos
modos de se relacionar com ele.
Durante o século XX, houve um grande diálogo entre as artes visuais e a poesia,
acompanhando a diluição de limites rígidos entre as diferentes linguagens, aproximando as
artes e gerando conseqüentemente a quebra de fronteira entre texto e imagem. Alfredo
Bosi, em sua História concisa da literatura brasileira, contextualiza da seguinte maneira a
poesia concreta no Brasil:
A poesia concreta, ou concretismo, impôs-se a partir de 1956, como a
expressão mais viva e atuante da nossa vanguarda estética (...) No contexto
da poesia brasileira, o concretismo afirmou-se como antítese à vertente
intimista e estetizante dos anos quarenta e repôs temas, formas e não raro
atitudes peculiares ao Modernismo de 22 em sua fase mais polêmica e mais
aderente às vanguardas européias. Os poetas concretos entendem levar às
últimas conseqüências certos processos estruturais que marcam o futurismo
(italiano e russo), o dadaísmo e, em parte, o surrealismo, ao menos no que
este significa de exaltação do imaginário e do inventivo no fazer poético.
(BOSI, 1999, p. 531)

8
– Esse poema encontra-se na Antologia Grega e na pequena antologia de poemas em forma de coisa
organizada por Charles Boultenhouse para Art News Annual XXVIII de 1959.
Ironicamente essa situação nos leva a concluir que um movimento que se pretendia
de ruptura com a produção poética de sua época, que sempre se atribuiu a posição de
vanguarda em relação ao contexto cultural em que surgiu, cujos componentes ao lado de
sua produção poética produziam um vasto trabalho teórico, com o intuito de explicar e
justificar sua produção e objetivos, era afinal de contas herdeiro de uma tradição, inserido
numa continuidade milenarmente estabelecida, vínculo esse que os concretistas faziam
questão de provar.
No entanto, e apesar de tudo, o concretismo enriqueceu a poesia contemporânea
brasileira, propondo novas relações semânticas para o produto estético, com a possibilidade
da palavra pura, palavra-coisa; trouxe os ideogramas, a poesia russa moderna colocou a
poesia no centro da roda, tornando-a objeto de debate. A experiência acrescentou novos
códigos e parâmetros estéticos à cultura contemporânea brasileira despertando polêmicas
ainda hoje9. Foi um movimento avassalador, sem precedentes na nossa história literária.
O Noigandres foi o grupo que se manteve como o mais unido, ativo e influente
grupo de poesia no debate nacional ao longo de quatro décadas, sendo a sua intensa
atividade de produção de poesia, crítica e tradução rotulada usualmente de "concreta" ou
"concretista". Mesmo depois de haver passado a época do movimento da poesia concreta
como corrente definida como tendência artística brasileira, os integrantes originais, os
primeiros membros desse movimento não pararam de produzir. Sempre envolvidos em
debates, em discussões e em críticas, continuaram marcando os rumos da arte e do
pensamento estético, nacional e internacional.

1.3 – A Poesia Experimental Portuguesa

A poesia portuguesa dos últimos cinqüenta anos apresenta-se cheia de novas


tendências, grande quantidade de autores e de textos, uma diversidade de modos que se
pretendem representantes dos inúmeros movimentos de vanguarda que fazem parte da cena
literária mundial. As principais influências da poesia experimental convergem e aparecem
9
– Poesia concreta: produto de uma evolução d formas. Implica uma dinâmica, não uma estática. Teoria e
prática se retificam e se renovam mutuamente, num circuito reversível. Certo: compreender a obra em
progresso como uma dialética. Errado: paralisar para compreender. (CAMPOS, 1987, p. 96)
na criação de alguns dos atuais teorizadores e críticos portugueses de poesia, como: E.M.
Melo e Castro, Ana Hatherly, M.S. Lourenço, entre outros.
A poesia experimental, uma evolução da poesia concreta, é essencialmente
característica da segunda metade do século XX e segue a orientação de experimentar ou
construir objetos poéticos, dando importância às intuições e à sua relação dialética com os
signos. A poesia experimental é caracterizada, igualmente, pelo automatismo surrealista e
por uma análise aplicada às estruturas morfológicas e sintáticas, à rima, às analogias
verbais, à distribuição visual dos espaços e dos caracteres gráficos, sendo sua principal
tendência a de explorar ao máximo as possibilidades estruturais do material artístico.
O aparecimento da Poesia Concreta em Portugal, e subseqüentemente da Poesia
Experimental, feita a partir do início da década de 1960, foi marcada por dois
acontecimentos: o primeiro, em 1956, foi a rápida visita a Lisboa de Décio Pignatari,
depois de seu encontro com Gomringer. No entanto, essa visita não rendeu muitos frutos. O
segundo foi em 1962, quando da publicação de uma pequena compilação da Poesia
Concreta do Grupo Noigandres de São Paulo, pela Embaixada Brasileira em Lisboa. Essa
publicação, definitivamente, tornou-se um marco na poesia portuguesa, introduzindo o
concretismo em Portugal e influenciando a obra de vários poetas. No entanto, a Poesia
Concreta, em Portugal, não se apresentou como um movimento organizado, como
aconteceu no Brasil graças à criação do grupo Noigandres.
Ana Hatherly afirma que, o espírito da poesia experimental de vanguarda que tem
sua origem histórica no poema de Mallarmé Un Coup des Dés Jamais n’ Abolira le Hasard,
teve também a influência dos experimentos Futuristas, Dadaístas, Surrealistas e Letristas,
sendo em parte um reflexo dessas produções literárias. Alguns historiadores, no entanto,
determinam o aparecimento dos poemas visuais com os futuristas, no século XX, com suas
“palavras em liberdade” e a “revolução tipográfica”. Mas se de fato quisermos indicar o
que antecede essas referências, chegaremos a algumas longínquas experiências com textos-
imagens, que como afirma Ana Hatherly:

compreendem hieróglifos, ideogramas, criptogramas, diagramas, rebus,


mandalas, amuletos, jóias, brinquedos lápides e até alguns monumentos,
além de todos os outros textos e objetos poemáticos identificáveis como tal.
(HATHERLY, 1981, p.139)
Diz ainda Ana Hatherly que:

de fato é a partir do momento em que se torna possível estabelecer uma


identidade entre ikon e logos, escreve ainda Sylvester Houéddard, que se
define para a poesia de vanguarda e para o poema visual em particular (mas
estão intimamente ligados) uma cronologia que faz remontar a sua origem à
mais longínqua Antigüidade. (HATHERLY, 1981, p.138)

Vemos com isso que as próprias referências históricas da poesia concreta são por si
só insólitas, tendo entre seus antepassados a cultura greco-latina, os carmina figuratas10 e
elementos da cultura oriental. Ana Hatherly, autora de inúmeros trabalhos sobre a
ancestralidade do visual na poesia, refere-se ao fato de o virtuosismo dos carmina figurata
latinos já implicarem numa alteração do ordenamento do processo de leitura tradicional, ela
diz:

Nos “Carmina Figurata” latinos, avulta o nome de Porfyrius Optatianus e na


época carolíngia os dos poetas Alcuino e Bonifácio, residindo a particular
virtuosidade dessas composições no seu caráter acróstico, pois deveriam ser lidas
não só horizontal como verticalmente. (HATHERLY, 1981, p.139)

Esses textos-imagens, cuja composição dos elementos na página, levam o leitor a


uma pluralidade de leituras, apresentam poemas acrósticos em formatos variados.
A cultura asiática também influenciou a identidade entre o icônico e o lingüístico,
pois, especialmente, na China e no Japão, o poeta-pintor-calígrafo é uma unidade cultural
paradigmática. Os concretistas brasileiros referem-se, em especial ao ideograma chinês,
base para muitos poemas, mas, também utilizaram poemas japoneses, particularmente os
hacai, que oferecem a síntese absoluta procurada pela poesia concreta na composição de
seus poemas. Essa linguagem concentrada, vigorosa, sua estrutura gráfico-semântica, seus
processos de composição e suas técnicas de expressão, dão ao poema uma forma sintética
que apareceu de forma decisiva nos movimentos de renovação da poética moderna.

10
Carmina figurata são poemas figurativos latinos com belos textos-imagem.
Na opinião de Ana Hatherly, o poeta experimental acentua a identificação entre ele
e o objeto criado, o que é, sempre, a intenção primeira do criador. No entanto, essa relação
texto/objeto acrescentado de conhecimento pode produzir um estranhamento entre o autor e
sua obra, e como afirma a autora, em Algures – o espaço da significação:

Para um poeta experimental, a dialética do ato criador e do objeto


criado, que é uma evolução da relação entre o eu e o objeto (o ser e o mundo
das coisas), adquire um aspecto realmente particular, pois para ele, o
processo, mais que o objeto criado, é o ponto onde reside o fulcro da
questão, o algures da criação, o centro do sistema gravitacional de relações
que existem e são postas em funcionamento e em questão – violadas – de
cada vez que se pratica um ato criador. (HATHERLY, 1979, p. 51)

Ou seja, para a autora, a experiência criadora, o ato de criação e os múltiplos planos


da experiência são os elementos mais importantes para o poeta. Esses elementos têm
inclusive mais valor que a obra pronta em si, ou seja, mais processo do que produto. Ana
Hatherly referindo-se a Mallarmé no que diz respeito às constelações e astros, ao espaço da
palavra e da significação em sua obra, afirma que o poeta:

“obrigou” aos poetas que vieram depois dele, mudarem de forma profunda,
a maneira de conceber o texto poético, desde sua base até sua forma pronta,
e tratar essa mudança com uma objetividade científica – não se pode
esquecer que e a arte experimental é desenvolvida paralelamente à ciência
experimental, da qual assume inclusive a terminologia – que “vem alterar a
“posição” do poeta em relação à concepção tradicional”. (HATHERLY, 1979,
p. 52)

Na passagem da década de 1950 para 1960, os valores trazidos para a poesia


portuguesa renovaram-se na voz poética de Melo e Castro, Ana Hatherly, M.S. Lourenço e
muitos outros que se afirmaram como nomes essenciais da poesia contemporânea
portuguesa, bem como a geração de poetas reunidos em torno da Poesia 6111.

11
– A Poesia de 61 foi uma das principais contribuições para a renovação da linguagem poética portuguesa e
um dos mais importantes movimentos da poesia portuguesa do século XX. Alguns dos nomes reunidos ao
redor desse movimento são: Rui Belo, Heberto Helder, João Rui de Sousa, Fiama de Hasse Paes Brandão,
Luiza de Neto Jorge, Ernesto de Melo e Castro, Maria Teresa Horta, António Ramos Rosa, Casimiro de Brito,
entre outros.
Tão debatida e tão questionada, longe de chegar a um consenso, a poesia produzida
nos anos 1950 e 1960 retoma as proposta do modernismo, radicalizando-as, e seu caráter
tem como meta a ruptura dos cânones poéticos, provocando impacto nos leitores.
Caracterizada por um enorme hibridismo de modos e formas, a poesia dos anos 1960
caminha, ora para uma renovação do discurso poético, ora para um surrealismo,
ultrapassado por uma linguagem que, mais do que uma mistura de versos à moda de
Rimbaud, é a promessa de uma linguagem absolutamente renovadora, utópica, inaugural.
Essas duas tendências da poesia da década de 1960 diversificaram-se e enriqueceram-se,
ainda mais com a procura de um experimentalismo da forma verbal que o grupo Poesia 61
traz para as letras portuguesas. Esse grupo fazia uma poesia de redescoberta, atualizando a
relação texto-imagem, criando uma poesia anti-retórica e anticonvencional.
Considerando que a poesia é um reflexo formal da atividade humana, Melo e Castro
em sua obra Proposição 2.0, considera os seguintes tipos de poesia experimental:
1 – Poesia visual: caligramas de Apollinaire, experiências gráficas do Futurismo,
Concretismo, no Brasil e no mundo, Videopoemas em Lisboa.
2 – Poesia auditiva: experiência com voz humana gravada ou não, Poesia Rítmica
ou Poesia Melódica com palavras sílabas ou sons puros, algumas experiências dadístas e
letristas, composição direta na fita gravada (banda sonora).
3 – Poesia tátil: o poema é um objeto, todas as formas de colaboração com artistas
plásticos, os Ready-mades, os Parangolés do Hélio Oiticica, objeto poema e poema objeto,
todos os processos de construção que dão ao poema um corpo material.
4 – Poesia respiratória: experiência de Pierre Garnier com o sopro humano.
5 – Poesia lingüística: E.E. Cummings, James Joyce, Ezra Pound e muitos outros,
tentativas de criação de palavras e línguas novas, poesia poliglota.
6 – Poesia conceitual e matemática-cibernética: métodos permutacionais e
combinatórios, estrutura numérica da obra de arte experiências de Raymond Queneau.
7 – Poesia sinestésica: desenvolvimento das sinestesias, produtos híbridos dos tipos
de poesia já referidos.
8 – Poesia espacial: Mallarmé, “Un Coup des Dés”, de um modo geral o sentimento
espacial manifesta-se como denominador comum de todas as formas atuais do
experimentalismo poético.
O experimentalismo poético, que foi sendo construído ao longo do século XX,
chegou aos anos 1960/1970, como um vívido elemento das composições poéticas, sendo
um artifício de distinção fundamental entre a poesia convencional e a poesia experimental.
Segundo Melo e Castro, praticamente toda a poesia experimental feita em Portugal a partir
do início dos anos 60 pode ser denominada Poesia Espacial, porque, seguindo a mecânica
da estrutura poética criada por Mallarmé, nesses poemas o que sobressai são as
coordenadas visuais. E, efetivamente, é nesse campo de experiências visuais e espaciais do
texto que se dá a inovação da pesquisa morfológica, fonética, sintática e semiológica, que
marcou de forma indelével a Poesia Experimental Portuguesa.
A natureza híbrida desse produto que se apresenta como poético faz com que a
primeira reação, tanto da crítica como do público, tenha sido majoritariamente a rejeição ao
produto de vanguarda como arte, o que, no caso da poesia experimental, equivale à rejeição
do produto apresentado como poesia. Isso leva Ana Hatherly a comentar que:

Os Experimentalistas foram objeto de crítica, de censura e até de


perseguição. E não foi só em Portugal que isso aconteceu. Não será então
lícito perguntar: porque razão o Experimentalismo incomodou tanto? Que
sacrossanto valor tinham os cânones estabelecidos (e já atacados pelos
Modernistas) para que seu questionamento tivesse de ser tão combatido? O
que é que esse questionamento punha em perigo? (HATHERLY, 2001, p.9)

Para a autora, a atitude experimental da poesia apóia-se num estudo aprofundado da


possibilidade ou impossibilidade de comunicação entre os homens feita através dos vários
sistemas dirigidos à percepção.
Isso tudo justifica que Moacy Cirne, em sua obra Vanguarda: um projeto
semiológico classifique a poesia concreta como uma produção intersemiótica, na medida
em que dela participam signos literários e outros signos vindos de diferentes áreas
artísticas. Essa mesma observação pode ser feita em relação à obra de Ana Hatherly, por
exemplo, que, embora tenha criado seus textos visuais para serem observados em galerias
como quadros, considera-se uma escritora que explora simultaneamente o pictórico e o
lingüístico, desejando que o texto resultante seja percebido imediata, simultânea e
coincidentemente como um todo.
A autora a nos diz que a palavra é uma “fábrica de realidades” (HATHERLY, 2004, p.
151) pela qual passam as experiências do mundo, e que, se impedida de funcionar como
“agente produtor de sentido”, a palavra, olhada apenas por seu aspecto plástico, convida-
nos a assistir a uma dança em cima do papel; assim sem amarras, a palavra vai construindo
seu sentido, mas a partir dos sentidos que lhe são oferecidos, ou seja, do que conseguimos
descobrir no campo da imagem:

Todas as palavras
Quando escritas
São palavras de papel
Coisas
Que não existem
Senão assim
Nesse real imaginado (HATHERLY, 2003, p.46).

Ou seja, para a escritora, as palavras só têm real existência quando nós lhes damos
existência, quando nós as lemos, quando as “reconhecemos”.
Ana Hatherly investiga, através do trabalho que produz, as estruturas que o
fundamentam, fazendo pesquisas da estrutura da linguagem ao nível literário e ao nível
visual, inclusive porque, como ela menciona, a poesia concreta levanta o problema da
definição do próprio conceito de literatura. E quando isso acontece, percebe-se que o
fenômeno havia sido questionado quanto à sua literariedade e poeticidade. Investigando
durante todo esse tempo, através de seus próprios textos, a literatura com suas ideologias e
suas regras, com seus propósitos e seus significados, como o ato de realizar um texto, o ato
de escrever em si, Ana Hatherly afirma:

Esta minha atitude, ditada por uma necessidade interior, pessoal, é,


porém, paradigmática: representa uma necessidade contemporânea que
muitos escritores e artistas sentiram e praticaram. Creio mesmo, embora seja
difícil definir essas áreas de interação, que o processo é grandemente
imposto de fora para dentro. (HATHERLY, 1977, p. 50)

Com isso, a autora nos diz que foi levada a investigar certos campos, certas áreas da
literatura, para extrair deles uma série de significados que levassem a uma transfiguração da
leitura, ou como ela o diz em alguns de seus textos, a uma reinvenção da leitura. A
produção desse tipo de poesia oscilava entre a designação de poesia concreta e poesia
experimental. Por isso, Ana Hatherly definiu como poesia concreta, em seu artigo o
Idêntico Inverso, a produção denominada poesia experimental, ela diz:

Reduzir a música a ritmo, o pensamento a esquema, a palavra a


substantivo: eis a poesia concreta. E a trilogia de toda a criação poética
aparece assim mais uma vez demonstrada. (HATHERLY, 1981, p. 91)

Apesar da revista que divulgava essa produção poética em Portugal chamar-se


Poesia Experimental, observa-se que os poetas portugueses além de serem signatários de
um documento internacional que reúne poetas concretos de outros países têm suas obras
publicadas em antologias de poesia concreta, sendo que eles mesmos designam sua poesia
como tal, o que pode ser observado na afirmação de Melo e Castro12:

Venho falar-vos da mais recente Poesia Portuguesa e, em particular


da Poesia Concreta – pois Guimarães editores vai lançar, nesta mesma Feira
do Livro, um volume de Poesia Concreta de que sou o autor. (MELO E
CASTRO, 1981, p. 95)

Por causa dessa, digamos, falta de especificidade, podemos entender que, sob a
denominação “Poesia Concreta” encontra-se um conjunto heterogêneo de produção poética
que, com o passar do tempo, constituiu um interessante questionamento a respeito do
critério da escolha dos poemas para a elaboração de antologias.
A incorporação de elementos de outras mídias (visuais, auditivas, táteis) ao texto
criou uma nova tendência, que renovou com muita força o pensamento artístico português.
O texto poético deixou de ser tomado como mera interpretação da realidade e passou a
constituir sua própria realidade:

O letrismo descobre sobretudo outros materiais para construir


poemas, permitindo-se um novo formalismo. De oral (até a Idade Média) a
poesia tornou-se escrita e, agora, em nossos dias, foi arrebatada pelos
sentidos: poesia visual, auditiva e táctil. (ARAGÃO, 1981, p. 35)

12
– Discurso proferido na Feira do Livro de Lisboa de 1962, quando do lançamento do seu livro Ideogramas.
A poesia concreta ou experimental foi criticada, censurada e perseguida, não porque
se rebelasse contra os cânones estabelecidos (pois isso o modernismo já havia feito), mas
porque ameaçava romper definitivamente com a noção de verso na medida em que o
reduzia à exploração fônica, semântica e visual da palavra. A novidade que ela apresentava,
era vista como terrorismo intelectual por todos os que não estavam preparados para
compreender o que se passava. O entendimento do movimento de poesia experimental foi
deixado para o futuro, quando o código da arte de vanguarda já fosse dominado por mais
pessoas, de modo a ser possível anular a estranheza provocada e permitir o acesso
generalizado. Esse processo de distanciamento corresponde às formas de ver esse tipo de
arte.

Para finalizar: parece-nos claro que mesmo o que há de mais radical nesta
nova poesia não se desvincula – ao contrário – dos princípios básicos da poesia
concreta. Continuamos, portanto, a chamar de concreta a esta poesia. (PINTO e
PIGNATARI, 1987, p. 162)
É uma tela de 2,44 X 2,44m
em que o real imaginado
está devidamente enquadrado

Tudo seria plano


como planeado
se não houvesse o splash
a perturbação que anima
a placidez geométrica do fotograma
do freeze-frame
que esta pintura muda
quer ser
e afinal não é

Porque o real
que esta pintura pinta
e que ele quer que se sinta
é um real que se mente
nesta pintura rente

É uma pintura que por nós entra


fina e quase débil
como as magras palmeiras
postas ali para o olhar subir
um pouco
para o longe
para um céu azul que não existe
a não ser como ameaça
latente
na cruel esterilidade
dum real que não mente

O que esta pintura quer tornar patente


não interessa:
É preciso desconfiar das imagens
diz o próprio artista
e num quadro
o sentido vem de toda parte

E acrescenta:
Amanhã o público
vai quer outra coisa
além do que eu vi

Mas o que é a arte


Senão artifício da verdade?
(HATHERLY, 2003)
2 – As Propostas Teóricas

Falar das propostas teóricas de Ana Hatherly, dos seus conceitos sobre a poesia
experimental e de sua vertente, a poesia visual é conhecer um pouco da pesquisadora que
existe por trás da artista, é também apreciar sua capacidade de estar sempre participando
dos acontecimentos de seu tempo, no qual, “à frente de todos os significados há uma
palavra rebelde à procura do mais pequeno pretexto para se amotinar” (CUNHA E SILVA,
1999, p.10). É desse tipo de palavra, da palavra pré-explosiva, aquela que dispensa
reverência, que Ana Hatherly trata em sua obra, de forma pioneira, pois em suas palavras,
“Escrever é inventar o mundo, usando sempre as mesmas letras” (HATHERLY, 2003, p.13),
porque, toda experimentação inova, inventa.
A aceitação dos novos parâmetros para a poesia enfrentou enormes dificuldades, e
as teorias difundidas pela poesia de vanguarda foram vistas como uma revolução. O
posicionamento assumido pelos poetas concretos refletia uma insubordinação, um
questionamento de valores, colocando em cheque o status quo vigente. Era a época de um
hibridismo caracterizado pela apropriação, montagem, colagem e fusão entre os vários
discursos, textos literários ou visuais, oriundos de campos semânticos e lingüísticos
distintos e até mesmo de épocas distintas.
A abolição dessas fronteiras era feita pelo grupo de poetas concretistas e
experimentais, que realizava esforços no sentido de uma ruptura, de um combate, de uma
luta contra as tradições. Esses grupos desempenharam o ambíguo papel de tropa de choque,
pois, tendo a tarefa de confrontar o poder, tentavam estabelecer eles mesmos a nova ordem.
Questionando sempre, esses poetas, contribuíram para a mudança e reformulação da crítica,
da tradução, trazendo benefícios também para a atividade da leitura. Eles diziam que para
haver uma comunicação era necessário que houvesse ruptura. E os poetas sempre querem
se comunicar mais e mais.

2. 1 – A reinvenção da Leitura – Aspectos Plurais

As principais propostas do movimento de Poesia Experimental são: a ruptura com a


tradição poética; a redução do verso à palavra e a utilização de estruturas não verbais
ligadas ao campo da imagem.
Ana Hatherly, em seu texto, A Reinvenção da Leitura13 afirma “que a escrita
alfabética é relativamente recente e que muito antes dela já se estabelecia a comunicação
por imagem.” (HATHERLY, 1981, p.138). Conseqüentemente, para ela, não se pode
dissociar a origem da poesia, como escrita, dos signos não verbais; ou seja, escrita e
imagem sempre estiveram associadas na história da humanidade, razão pela qual para a
autora a introdução da imagem na composição poética não faz outra coisa senão retomar as
origens da própria escrita. A proposta da poesia visual se sustenta assim coerentemente, na
seguinte afirmação: “A escrita é uma pintura de palavras.” (HATHERLY, 1981, p. 138)
Mallarmé o grande mestre da poesia de vanguarda, introduziu uma série de
inovações em seu livro Un Coup des Dés [Um lance de Dados]. Nele, o verbal e o visual se
associam à musicalidade, que vai desembocar na proposta verbivocovisual14 dos
concretistas. Essa articulação entre signo verbal e signo visual nos permite ir mais longe,
para olharmos, por exemplo, os desenhos rupestres das cavernas, feitos na pré-história.
Constatamos então que essas imagens são uma forma de comunicação, funcionando como
textos, para contar histórias, sempre com a intenção de transmitir uma mensagem.
A necessidade de traçar as origens da poesia concreta nos leva, portanto, para
épocas bem anteriores a de Mallarmé. As pesquisas de Ana Hatherly conduziram-na à
descoberta de que na Antiguidade, já havia a relação entre texto e imagem. Ao longo da
história, a existência do texto-imagem comprova que as artes irmãs, poesia e pintura, não só
fazem parte da história da humanidade, mas também caminham lado a lado, em quase
perfeita simbiose. Literatura e pintura partilham territórios muito próximos, um mesmo
espaço limite, com relações de tensão e de paradoxo. Essa quase co-habitação territorial diz
respeito ao espaço e às relações intersemióticas aí estabelecidas. Assim, quando falamos de
poesia visual, vemos /lemos a criação de um novo texto visual. As novas imagens e as
novas leituras são o outro lado do ver, ou seja, são o que Ana Hatherly nomeia de
escritalidade:

13
– Nessa obra a autora teoriza as questões recorrentes em sua obra poética-ensaística, procurando as raízes
da linguagem, a procedência da imagem em relação à palavra, refazendo o caminho desde os poemas visuais
gregos do século IV a.C. até os poemas visuais do século XX.
14
– Termo empregado por Joyce para expressar a estruturação ótico-sonora, geradora de idéias, colocadas à
disposição do poema.
o poema é
para ver-se
ler-se
(às vezes ouvir-se)

mas
sobretudo
adivinhar-se

o poeta é
uma sombra
um perfil
um desaparecimento

mas
sobretudo

a despedida mão feita poema


(HATHERLY, 2001, p. 306)

Não que o significado das palavras se altere devido a simples disposição no espaço
do papel, altera-se sua função, passando a existir múltiplas possibilidades de criação de
sentido a partir da disposição das palavras. Assim, a escrita poética passa a criar seu próprio
objeto, que se descobre freqüentemente ao nível da frase. A linha de ruptura que demarca a
modernidade da poesia está representada na pesquisa e na descoberta dos valores outros da
palavra, o que se torna patente no uso de um vocabulário intencionalmente restrito a
algumas palavras, na brevidade do discurso poético e na cuidadosa escolha das imagens.
Ao listar os inúmeros experimentos de texto-imagem, Ana Hatherly afirma que o
rigor do “caráter místico da escrita”15 (HATHERLY, 1981, p. 139) não é um privilégio do
Ocidente, pois no Oriente ele é assumido com exatidão, sendo o poeta-pintor-calígrafo
relevante figura nas sociedades do Japão e da China. Destaque-se que, na Índia e no Tibete,
essas práticas tiveram caráter esotérico. No Oriente Médio e no Norte da África também
foram encontrados, ao longo dos tempos, poemas-objetos, com as implicações culturais
semelhantes.
15
– Anos mais tarde, em 1998, numa palestra proferida durante o Festival de Poesia na Ilha de Porto Seguro,
Ana Hatherly corrobora essa idéia de caráter místico ao falar sobre Quando o poeta pensa a escrita
(HATHERLY, 2004, p. 99).
Ana Hatherly, em sua visão diacrônica, considera que os textos visuais, praticados
por diferentes culturas, em diferentes épocas, criaram uma tradição de mensagens visuais,
uma vez que, durante toda a Idade Média e nos séculos XVII e XVIII, se encontram textos-
imagens que, utilizando-se de inúmeros dispositivos, como a organização de palavras, letras
e signos nas páginas, contribuem para uma pluralidade de significados e de leituras. Essa
reformulação, essa nova relação entre texto e imagem culminou no século XIX, com o
poema Un coup des dés, de Mallarmé, poema símbolo dos tempos modernos.
Nesse sentido, a poesia experimental retomou essa tradição, acrescentando novas
formas e novas técnicas ao entrelaçamento entre imagem e palavra, sendo essa a grande
contribuição trazida pela arte de vanguarda. É a partir dessa retomada que Ana diz que
“interpretar é transformar” (HATHERLY, 1981, p. 141).
Outra característica do discurso poético dessa época baseia-se em uma
disponibilidade intrínseca ao valor das palavras, dada pela sua decomposição, o que foi
amplamente explorado pelas poesias concreta e experimental. Ana Hatherly considera, que
a proposta concretista de abolir o subjetivismo da obra de arte tornou-se uma constante na
criação. A poesia começa a utilizar uma linguagem inovadora, capaz de alterar o sentido da
expressão discursiva. O poema, tornado objeto funcional, conclama o leitor a uma leitura
interpretativa. O discurso poético deixa de ser explícito, a expressão poética liberta-se da
significação das palavras, e, assentada em processos sintáticos que produzem um outro
significado, torna possível a leitura do poema, e este na qualidade de texto-objeto, exige
uma participação do leitor no processo criativo.
O aspecto lúdico da poesia de vanguarda do século XX, assim como da poesia do
barroco, é determinante, fazendo que essa arte se torne um jogo, em que tanto palavra
quanto imagem estão ativamente envolvidas. Elas jogam com a transgressão, que é
característica da arte de vanguarda, podendo mesmo ser considerada seu aspecto
fundamental. Em relação à vanguarda Ana Hatherly diz:

A abolição dum mito, ou a sua ultrapassagem resulta geralmente na


criação dum outro e assim assistimos a um processo de substituições em
cujos resíduos se enforma a qualidade mágica do ato criador: o fascínio
(HATHERLY, 1981, p. 142).
E esse fascínio levou os movimentos de vanguarda contemporâneos a exercerem um
papel subversivo, uma prática de subverter as estruturas lógicas, psicológicas e ideológicas
que compunham a sociedade burguesa, propiciando uma renovação da literatura e das artes.
O poema concreto, com sua postura de ruptura, de rebeldia, lutava contra a tradição, contra
o lirismo, contra o establishment, e por isso foi considerado uma ameaça aos valores
burgueses.
Com as sucessivas transformações, abriram-se novas perspectivas para o poema
concreto, dando origem a novas formas e ampliando o âmbito da leitura até que os modelos
literários tradicionais fossem suplantados pelas novas manifestações poéticas, como a
poesia visual, e outras propostas inovadoras, até chegar aos happenings, dos quais
participavam os poetas do grupo de Poesia Experimental.
Ana Hatherly afirma que os poetas visuais desejavam a universalização da poesia,
pretendendo assim abolir as barreiras lingüísticas e se propagar à escala mundial, o
movimento de poesia concreta foi fundamental para a poesia, que da expressão lírica
tornou-se uma combinação pura de sinais, ou seja, criou um novo deslocamento da palavra
para o signo. Os componentes não-verbais do poema concreto, isto é, os elementos
extralingüísticos que se tornam componentes da linguagem visual transcendem os idiomas,
contribuindo dessa forma para o processo de internacionalização do poema concreto.
Para Ana Hatherly, o poema como objeto suscita no leitor uma reflexão, tornando-o
produtivo e participante de um jogo intelectual. No entanto, os aspectos emocionais devem
ser excluídos, porque estes estão ligados à expressão lírico-discursiva rejeitada pela poesia
concreta, cuja pretensão é firmar-se como objetiva. O concretismo criou seus próprios
significados, em função de uma construção poética que rompe com o símbolo lógico. O
poema experimental rompe mais ainda, ao propor um outro desvendamento, o do mistério
do dizer, isto é, não há a necessidade de se partir de algo concreto para se construir um
significado, podendo construí-lo a partir do próprio vocábulo. Com isso, há um
deslocamento do significante para o significado, gerando novas possibilidades de
comunicação, com a palavra passando a ter um outro estatuto. A respeito disso, afirma Ana
Hatherly:
A poesia concreta, nas suas formas visual e fônica, é
simultaneamente uma expressão realista e abstrata e se é certo que a arte
sempre foi abstracta – sempre algo abstrai ou de algo extrai – os poetas
concretos acrescentam algo quando dizem: quanto mais a arte abstrai do seu
modelo menos se torna mimética, descritiva e enganadora, e portanto mais se
torna concreta e verdadeiramente humana (HATHERLY, 1977, p. 95).

A simultaneidade do aparecimento do movimento de poesia concreta, na Europa e


no Brasil, deu origem a diferentes caminhos. No Brasil, predomina a tendência a favorecer
o ideograma e a fidelidade aos princípios de Mallarmé, que defendia a relação intrínseca
entre texto e música, fazendo do poema “uma autêntica partitura”. Na Europa, a poesia
concreta foi influenciada principalmente pelas artes plásticas, via Bauhaus. Essa influência
pós-cubista fez que a poesia assimilasse elementos da Pop Art, quebrando dessa maneira as
fronteiras entre as artes. Seguindo essa tendência européia, Ana Hatherly produziu dois
livros: Mapas da Imaginação e da Memória e O Escritor16, em 1973 e 1975,
respectivamente.
Nessas duas obras, a escritora, utilizando-se de signos não verbais, onde a palavra se
torna desenho, apresenta uma narrativa visual que, seguindo uma seqüência de discurso
determinada, evoca acontecimentos, indicando que, no desenho, a visualidade não precisa
de maiores explicações, bastando para tanto que se entenda o mecanismo a que se recorre,
isto é, o dispositivo da narração. Os textos citados são uma reflexão sobre a
comunicabilidade ou incomunicabilidade do texto, sua legibilidade ou ilegibilidade,
resultantes de pesquisa, para descobrir os mecanismos da escrita, experimentalmente.
O experimentalismo de Ana Hatherly apresenta uma vertigem, o que a coloca no
limiar das possibilidades, sem, no entanto perder o raciocínio quase científico, característica
de sua obra, o que lhe possibilita a experimentação e dá unidade ao seu trabalho. A partir
das experiências com textos ilegíveis, aqueles que devem ser reconhecidos e identificados,
mas não necessariamente lidos, e que, possibilitam uma gama enorme de leituras.

RATATOCK!
des pliques &des plock
16
– Em sua obra, e nessas duas em particular, Ana Hatherly produz um discurso reflexivo, definindo a
interdependência e a complexidade da escrita e da pintura. “O meu trabalho começa com a escrita – sou um
escritor que deriva para as ares visuais através da experiência com a palavra. HATHERLY, 2004, p. 77)
RATAPLOCK!
titorolock.
toplock.
je t’ en mock.
toc.
je t’ en plock. Frock.
poporolock.
piporocock.
troploctictictoc (HATHERLY, 2004, p.188)

Ana Hatherly desenvolveu sua poesia visual, afirmando que ela “transcende e
engloba o problema do conteúdo ao nível do significado” (HATHERLY, 2004, p. 148), ou
seja, o alargamento do significado se dá de tal forma que ele não fica mais restrito a um
conteúdo específico, literal, limitado pela forma gráfica, uma vez que os signos gráficos
comportam ilimitados significados. No desenho, o pensamento visual não precisa ser
deduzido, ao contrário do que muitas vezes se imagina, pois ele próprio é a essência, a alma
do assunto, proporcionando inúmeros significados. No desenho, ou texto-imagem,
entrevemos o funcionamento de um mecanismo em que ele atualiza um fundo potencial.
Quer dizer, o modelo é a imagem, que, ao mesmo tempo em que nos induz, também nos
posiciona, nos guia, na realização do ato mágico, onde o mundo se deixa reunir na imagem
e dura o tempo dessa composição. E só na transparência do desenho é que a composição
revela sua verdadeira natureza.
Essa poética inter-artes, em que o desenho/pintura é a poesia, é também a explosão
contemporânea de códigos de representação, que pretendem abolir as categorizações
hierárquicas entre as artes, uma ação semiótica. No cenário da poética visual, tem-se de
levar em conta que, o contexto da intertextualidade é fundamental para o entendimento
dessa ambigüidade territorial entre palavras e imagens. Por outro lado, a palavra só assume
sua significação no diálogo com outra palavra, com outro discurso, onde se fazem presentes
outras vozes, outros acentos, sociais, de classe, de gênero etc...
A abolição de fronteiras entre os diversos campos e disciplinas, que é uma das
características mais recorrentes e comumente aceitas da vanguarda, pode ser algo positivo
para uns, mas perigoso ou pernicioso para outros, e para isso alerta Ana Hatherly:
A queda de fronteiras entre as artes exigida pelas vanguardas desde
os princípios do século produziu-se de facto, inclusive no íntimo de cada
uma delas, e hoje podemos assistir aos diferentes desdobramentos dentro de
cada área específica que, por isso em muitos casos, se tornou menos
exclusiva (HATHERLY, 1981, p. 77).

Dada a falta de exclusividade dos desdobramentos em cada campo artístico, Ana


Hatherly acentua a valorização preferencial do espaço, onde a palavra livre e em
movimento se opõe aos valores tradicionais do texto. Diz ela que é próprio do autor meditar
sobre o grau de legibilidade de um texto, meditar sobre o desgaste da língua sob o peso das
sucessivas ideologias e avaliar até que ponto há limitações na decifração da mensagem. E,
com base em Wittgenstein, a autora afirma que nem tudo é sempre legível, sempre dizível
ou sempre decifrável, sendo que o objeto mais amplo da arte se inscreve nessa zona de
obscuridade, e embora sujeito a limitações de expressão e interpretação, permite “infinitas
leituras criadoras” (HATHERLY, 1981, p.149).
Diante da contínua evolução da ciência e da tecnologia, o indivíduo criador, o
artista, o poeta, deixou-se influenciar por tais descobertas inovadoras e refletiu isso em sua
obra, fazendo estreita correlação entre um dado tipo de texto e um dado tipo de contexto,
que embora reconhecível, porque conhecido, se mostra cristalizado em sua obra, de um
modo que cria novos sentidos. O uso do termo inter-artes, aponta para a necessidade de
diluição das fronteiras entre as diversas artes e, embora focalizando a atenção no diálogo
entre elas, aponta para o hibridismo e a fluidez pertinentes ao tempo em que vivemos.
Quando Ana Hatherly diz que todo texto suscita a crítica, e que o crítico é um leitor
especializado, ela coloca esse crítico entre o texto e o autor, e entre o texto e o leitor, com
uma função teórica, que seria a de contribuir para uma comunicação, um esclarecimento,
permitindo que haja uma relação de interdependência ou co-participação entre as partes
implicadas, ou seja, que o autor e leitor mantenham um dado relacionamento através do
texto.
No particular universo de Ana Hatherly, unem-se tradição e modernidade, palavra
escrita e palavra desenhada, sentido e imagem. Para ela poesia e poesia visual são duas
faces, inseparáveis, de um todo que são sua reinvenção do signo, que, abrindo territórios da
imaginação proporcionam uma reinvenção da leitura. Assim, a palavra inscrita numa
realidade ambígua, no caso específico, num momento de transição entre o antigo e o novo,
entre o tradicional e a vanguarda, torna-se também ambígua. E essa ambigüidade da escrita
apresenta uma pluralidade de significados, provocando uma forma de reinvenção da leitura,
recriada pela interpretação. E nesse sentido Ana Hatherly diz:

E o seu grau de maior ou menor inteligibilidade, quer dizer, o seu


teor informativo, quer dizer também a sua maior acessibilidade imediata, é o
que vai definir o seu grau de comunicação e a exigência duma leitura
adequada. (HATHERLY, 1981, p.147)

2. 2 – Mensagem

A partir da teoria lingüística de Roman Jakobson, são determinados os principais


critérios, ou seja, os modos fundamentais a serem usados na organização do processo
verbal, a fim de permitir o reconhecimento empírico da função poética. São eles: a seleção
e a combinação.
A seleção usa os seguintes princípios de similaridade, equivalência, semelhança,
dessemelhança, sinonímia e antonímia, enquanto a combinação está apoiada no princípio da
contigüidade, uma vez que é através dela que se faz a construção da seqüência. Portanto, o
objetivo da função poética é projetar “o princípio da equivalência do eixo da seleção sobre
o eixo da combinação”. (HATHERLY, 1981, p.132). Quer dizer, para se comunicar
verbalmente, selecionam-se vocábulos a partir de uma similaridade de significados entre
eles e se constrói uma seqüência, visando produzir uma combinação entre as palavras
escolhidas para que estas possam dar corpo à mensagem desejada.
A ambigüidade é uma propriedade inalienável e o elemento indispensável em toda
obra poética, fazendo que a mensagem poética esteja aí centrada. Então, além de a
mensagem poética ser ambígua, tanto o destinador quanto o destinatário também se tornam
ambíguos, isto é no sentido da não serem fixos os sentidos propostos. A ambigüidade de
qualquer texto criativo reside na possibilidade de interpretação múltipla admitida pelo
código da fala/escrita, mas também pelos desvios que o texto permite, como uma estrutura
viva em constante processo de transformação.
Além desses fatores, temos a reiteração da mensagem poética, que pode ser imediata
ou não, mas que toma a forma de propriedades facilmente reconhecíveis na poesia.
A ruptura da poesia experimental com os ditames dos processos tradicionais
provoca o surgimento de um novo modelo, por necessidade de se expressar uma nova visão
particular do artista acerca da realidade, o que gera um grau de recusa muito grande, de
uma enorme luta, até que esse experimentalismo se imponha ao modelo cultural por meio
da criação de um novo padrão de sensibilidade, padrão esse que a partir do agir do leitor,
promova interpretações de acordo com sua capacidade criativa.
No seguinte trecho do poema A vida pessoal e subjetiva na segunda metade do
século XX, a experimentação está na confrontação das duas colunas separadas, onde os
textos da coluna esquerda são citações, e os da coluna da direita são criações da autora:

Abro a boca
caio
atravesso-te
Quero Ser Ser
A vida interior diluo
reverbera com as me tremo
vozes dos outros te
perscruto (HATHERLY, 2004, p. 250)

Para Ana Hatherly o processo de criação poética da poesia experimental é sem


dúvida alguma a insistente experimentação, e através das tentativas de acerto e erro do
poeta é que esse processo se torna sistemático. Para a autora, a criação é um ato lúdico
usado pelo poeta de forma consciente, a partir de regras criadas por ele e cujo resultado é o
poema.
Falando sobre a poesia concreta, Ana Hatherly proporciona uma reveladora
contribuição da consciência do uso e do desgaste das formas de comunicação verbal,
destacando o esgotamento de mensagens comunicadas e comunicáveis e já apontando para
novos caminhos, direções e modelos:

A utilização de linguagens não verbais em sobreposição (ou não) à


linguagem verbal veio alargar notavelmente o campo da leitura para fora dos
âmbitos geralmente aceitos pela tradição. (HATHERLY, 1979, p. 110)
O caminho de pesquisa privilegiado por Ana Hatherly pauta-se pela experimentação
e pela investigação discutindo o papel das textualidades na conformação do espaço textual
de suas criações. Buscando em suas releituras, atualizar temas, a autora não deixa todavia
de apontar conseqüências importantes advindas desses "perturbantes paralelos", afirmando
que esse tipo de texto do passado "convida a uma confrontação expressa com a experiência
do presente" (HATHERLY, 1995, p. 106) e para explicar a natureza e também o
funcionamento dos labirintos barrocos , ela diz:

torna-se por vezes bastante evidente a espécie de repetição ordenada que o


ciclo da invenção parece percorrer e em que está sempre presente o conceito
de jogo: a noção de rigor implícita no risco.(HATHERLY, 1995, p. 106)

Com a redescoberta do barroco e da surpreendente afinidade técnica no trabalho


com a palavra, feita através do jogo lúdico, Ana Hatherly está à procura do bem dizer,
eliminando assim a discursividade rebuscada e prolixa em favor da síntese, fazendo a
aproximação com o modernismo. Com isso, a autora parece colocar em cena um elemento
importante na história da literatura, isto é, a possibilidade de uma abordagem cíclica da
renovação literária. No caso, em tais momentos, as restrições construtivas da literatura
assumiriam ainda mais evidentemente sua face lúdica.
Segundo Ana Hatherly, somente modernamente começou-se a pensar o problema da
leitura como uma experiência semelhante à atividade do tradutor, a questão da transferência
do significado e sua aproximação da mensagem original, que é o intuito da tradução,
sempre se deturpa ou ao menos se altera na comunicação. As linguagens, bem como as
línguas, apesar de funcionarem em circuito fechado, formam um circuito tão labiríntico e
vasto que na transposição, na tradução, de palavra para figura, de uma língua para outra, do
texto para o leitor, apresentam vastíssimas possibilidades combinatórias.
Quando comenta After Babel17, de George Steiner, Ana Hatherly observa que “os
aspectos da inevitabilidade histórica da comunicação” (HATHERLY, 1979, p. 108) advêm de

17
– Nessa obra, Steiner trata do problema da tradução ou decodificação da leitura, chegando mesmo a definir
significado como “uma função do antecedente sócio-histórico e da resposta partilhada”. (STEINER, 1975).
modelos que possibilitam um ponto de contato possível, promovendo a identificação entre
épocas, povos e culturas e constituindo um padrão de sensibilidade ao qual nos
identificamos podendo-se ainda negar as estruturas particulares nossas ou de nossa
civilização. Daí podermos concluir que a história da civilização “é a história da
imaginação dos povos, ela é também e sobretudo a história do seu vocabulário”
(HATHERLY, 1979, p. 108), como diz Ana Hatherly citando Steiner, uma história de
modelos e formulários aperfeiçoados, modificados, repetidos e esgotados pelas inúmeras
reinterpretações.
Devido à multiplicidade da natureza dos signos empregados, à maneira como são
dispostos, as cores usadas (que permitem leituras várias), a leitura final de um poema visual
pode, às vezes, ser pouco acessível. No entanto, percebe-se que, com o uso de uma certa
tradição da narração, com o uso de figuras de fácil reconhecimento, há uma facilitação da
leitura, levando a uma eficácia desta leitura.
Essa dupla visão da leitura decorre da diversidade de interpretação e decodificação,
pois os elementos precisam ser plenamente entendidos e recriados para serem totalmente
fruídos, e essa recriação dá-se a cada novo contato do leitor com o texto, sem prejuízo de
um dado núcleo comum um tanto cristalizado.

2.3 – Poesia visual como jogo

A principal tendência da poesia experimental, incluindo aí a poesia visual, consiste


em explorar ao máximo as possibilidades estruturais de um dado material artístico
independentemente de qualquer intenção significativa, implicando numa renovação do
texto, o que para Ana Hatherly essa subversão é o jogo que os poetas utilizam para jogar
com os múltiplos elementos da comunicação.
Através dos poemas visuais, Ana Hatherly busca cumprir um dos pressupostos da
Poesia Experimental, que é uma proposição de significação a partir da visualidade do texto,
trabalhando o espaço poético de forma concreta, isto é, ocupando-o com imagens, sejam
elas desenhos ou letras. A poesia experimental portuguesa trabalha no nível da intervenção
política – vide a obra O Escritor18, composta numa época de censura rigorosa – juntando a
economia da frase e da experimentação gráfica no poema como forma de fazer a crítica do
contexto social.
Ao explicar O Escritor, uma de suas obras-ícone de poesia visual, Ana Hatherly diz
que a leitura desse texto visual deveria ser feita segundo normas nele propostas, sem que
seja necessário “traduzi-lo”, pois essas poesias visuais continham a possibilidade de
inúmeras leituras. Apesar de desejar uma interpretação livre para a obra, numa entrevista a
um programa transmitido pela RTP [Rádio e Televisão Portuguesas], Ana Hatherly sugeriu
que a narrativa poderia ser dividida em quatro capítulos, quais sejam: o nascimento do
texto, os problemas da escrita refletindo os problemas do autor, a solidão do escritor e a
lápide ou estrela funerária dos modelos da cultura.
Ainda falando sobre O Escritor, há nele um fio de meada a ser seguido, pois em
suas diferentes partes narrativas observa-se um visualismo que poderíamos chamar de
didático, que guia obra, mantendo o sentido tradicional, com letras e figuras facilmente
reconhecíveis. É um trabalho em que Ana Hatherly, através do resultado da sua
experiência, retratar um percurso e a petrificação no texto, onde o discurso e a linguagem
imperam pondo lado a lado signos variados e liberdade. A respeito desse trabalho, a autora
explica:

O Escritor, elaborado entre 1967 e 1972, pode-se dizer


particularmente característico da fase difícil que atravessaram alguns
escritores portugueses da geração da autora em que o desânimo e a
descrença e, por outro lado, a revolta e a repulsa, ao mesmo tempo que os
impelia a prosseguir minavam o seu trabalho. Nesse aspecto é também
uma representação necessária dum estado de repressão prolongado.
(HATHERLY, 1975, p. 75)

No tocante a isso, outra emblemática obra, Mapas da imaginação e da memória,


pode ser considerada uma síntese do movimento de Poesia Experimental. Criada a partir de
uma investigação sobre escrita arcaica chinesa, “interiorizando-a como gesto que se auto-

18
– O Escritor datando dos anos sessenta, só foi publicado em 1975, depois da queda da ditadura salazarista,
e como diz a autora é “uma narrativa visual em vinte e seta fases, onde cada imagem é um pictograma (...)
cujo significado é posto em movimento pela leitura”, assim é que essa associação de imagens-signos associa-
se a uma reinvenção da leitura.
conceptualiza – ou, como então eu disse, até a minha mão se tornar inteligente”
(HATHERLY, 2004, p. 108), a autora procura conceitualizar sua busca, uma conceitualização
feita dentro dos modos de agir no âmbito da linguagem, para enfim transferir a
aprendizagem para a escrita ocidental. Com isso, Ana Hatherly, buscou apropriar-se do
modo chinês arcaico, que percebe e registra o mundo através da “escrita” ideogramática, o
que contrasta com o modo ocidental, gráfico e não ideográfico. Um processo cheio de
riscos, que poderia ser bem sucedido ou não, e que se justifica, porque “para o
experimentalismo o processo, o percurso da experimentação é já um valor em si”
(HATHERLY, 2004, p.108).
Ao dominar esse modo de escrita, Ana Hatherly fez combinações da lógica do modo
de escrita chinesa arcaica com a do modo ocidental. E isso, a seu ver, desautomatizou seu
agir perceptivo, escritural e poético, dando-lhe liberdade para experimentação, assim Ana
Hatherly se diz “livre para utilizar ou não qualquer dos seus elementos constituintes, de
uma forma prevista ou não nos códigos vigentes” (HATHERLY, 2004, p. 108). E as duas
alternativas, “utilizar ou não”, “prevista ou não”, sugerem a liberdade buscada pela autora
em sua poesia.
O estilo experimental da poesia de Ana Hatherly é desenvolvido principalmente, em
seus textos visuais, onde se encontram jogos combinatórios e permutacionais, que segundo
a autora, já apareciam nos antigos anagramas e labirintos do barroco. Nos textos visuais, o
que está em jogo é, a escrita como objeto, a quebra do vínculo tradicional entre significante
e significado, o jogo lúdico.
Vemos que a obra visual de Ana Hatherly é marcada por um caminho muito
próprio, onde escrita, escritor, artista e objeto visual se encontram, se fundem ou se
desconstroem, (re)inventando e (re)criando universos, códigos e linguagens. Devido à sua
apurada formação musical, seus poemas, sejam ou não visuais, têm a marca da
musicalidade19, tal como preconizado por Mallarmé.

Sobe o sabor do saber


Acima da indiferença

19
– Essa marca da musicalidade deve-se a seus estudos de música barroca, que lhe ensinaram disciplina e
rigor. Como a própria autora diz: “Ao assimilar-se o rigor, está-se livre para brincar ou não” (HATHERLY,
2004, p. 149).
Por onde passa
o saber
passa
o sabor da diferença (HATHERLY, 2004, p.263)

A partir do movimento Experimental, Ana Hatherly foi levada a uma investigação


histórica do texto-visual, quando então pôde comprovar a surpreendente afinidade técnica
entre algumas de suas criações literárias dos anos 1960 e algumas composições medievais e
barrocas, períodos que serviram de inspiração para suas releituras. Deve-se destacar que,
como fenômeno europeu, e até mesmo mundial, a poesia visual antiga era pouco conhecida
e estudada. A motivação que levou Ana Hatherly a pesquisar essa poesia, não foi como
poderia parecer um desejo de justificar a poesia visual do século XX por ela praticada, mas
desejar conhecer suas raízes.
Em suas reflexões sobre o ato poético, pensado à luz do experimentalismo, algumas
das regras básicas do experimentalismo dos movimentos de vanguarda poderiam
perfeitamente ser aplicadas aos movimentos do passado, principalmente se pensarmos que
a marca da poesia contemporânea é o “neo-arcaico”, que ganha estatuto de gosto de ser
atual e capaz de promover uma experiência contemporânea.
Diferentemente de muitos autores europeus e mesmo norte-americanos, que nas
décadas de 1960 e 1970 faziam poesia–visual como imitação de textos barrocos, medievais
e até mesmo alexandrinos, para Hatherly o conhecimento destes textos e sua
disponibilidade no horizonte poético podem tornar-se o ponto de partida para que sejam
trazidos ao convívio da poesia contemporânea, reinventados, reinterpretados e renovados.
A tradição, que é forte marca da cultura portuguesa, também pode ser vista como
um continuum memorial, através da fusão da tradição existente, de um aprofundamento da
memória o poeta integrado ao momento histórico–cultural transmite de forma peremptória
o que está implícito em sua relação com o mundo. A proposta estética da poesia espacial ou
visual é o reconhecimento de que a condição da arte é um estado conceitual e clama a
particularidade de assentimento em ser vanguarda, o que transforma a qualidade da arte
poética experimental numa experiência, e mais do que qualquer outra coisa, “indica não ter
ela perdido entre os portugueses a posição de outsider” (MOTTA, 2004, p. 18).
Essa aceitação está diretamente ancorada numa possível apreensão do movimento
do ato experimental como busca de conceituação da opção estética através de uma certa
relevância satisfatória, onde o gosto de ser vanguarda postula: “isto é arte portuguesa”
(MOTTA, 2004, p. 14), mesmo que se saiba que o pioneirismo alardeado é uma constante na
cultura portuguesa.
Num texto publicado em Lisboa no Diário Popular de 25-5-67, e posteriormente
incluído na coletânea de textos PO.EX., com o título Estrutura, Código, Mensagem, a
autora afirma:

O poeta define-se pela atividade criadora, a qual se define a si própria


como ato lúdico. O poeta joga com o código jogando-se nele. Toda a
criação é um jogo cuja utilidade nem sempre é imediatamente apreensível,
dadas as limitações do código. (HATHERLY, 1981, p.137)

Ao aceitar o poeta como um criador de mensagens, Ana Hatherly também o aceita


como o criador, ao qual cabe o papel de conscientizar, de despertar a comunidade, pois a
arte é sempre uma reflexão sobre o código, um “metacódigo” que chama a tenção para a
automatização deste.
A autora diz aceitar o estruturalismo de modo incondicional. Mas o que surpreende
é que ela, ao atribuir ao poeta um labor lúdico, num processo de utilidade, dentro dos
limites estabelecidos pelo código de linguagem, está demonstrando um sentido contrário ao
que preconiza. Isto é, a poesia não precisa ser pensada em relação à perda da sua evidência
lúdica anterior, através de modificações de jogadas criadoras feitas pelo sujeito de acordo
com as possibilidades concretas de comportamento e dos procedimentos dados ao seu
discurso.
No ato lúdico, essa promessa de uma atividade criadora deixa à margem a força que
o ato artístico desencadeia contra seu próprio conceito, isto é, de que a poesia seja poesia. E
aí é que se encontra o que escapa à poesia Experimental Portuguesa, a questão da
visualidade do espaço poético e o predomínio da temática sobre as estratégias de
composição, apesar de saber, ou parecer que sabe, dos múltiplos experimentos no domínio
da arte.
Simuladora, a poesia dá ares de pertencer à ação lúdica, consolidando a idéia de que
carece de explicação em outros saberes, como se houvesse alguma possibilidade de evitar o
seu saber ou adiar o reconhecimento da herança literária da modernidade: a poesia é a sua
própria teoria, joga sem jogador.
A Poesia Experimental afirma que o sujeito criador é passível de reverter a perda do
seu domínio poético, a partir de um impulso lúdico que se integra no ponto de partida
subjetivo para o mundo da informação. Mas ao pensar nos experimentos de Mallarmé,
apesar dos procedimentos experimentais, eles se encontram organizados subjetivamente,
colocando por terra a crença de que a poesia se esquivaria através daqueles procedimentos à
subjetividade do criador e de que a poesia não faz mais do que blefar.
Ainda assim, a poesia depois de Mallarmé, saiu da fortaleza que era sua forma,
deixou a estabilidade representada pelo tempo histórico, para ingressar na instabilidade do
espaço a poesia saiu do discurso para virar constelação, como diz Ana Hatherly em seu
texto Algures – O espaço da significação:

A palavra agora circula no espaço da página, desliga-se do cordão


umbilical do tempo, progride na imponderabilidade perigosa (où rien ne pèse
ni pose), mergulha no seu próprio espaço de dissolução e nascença.
(HATHERLY, 1979, p. 49)

E é aí que a categoria de jogo usada por Hatherly enuncia que o objeto funcional, a
poesia visual, tem origem no objeto mágico. No entanto, essa categoria traz por vezes
equívocos, pois como diz a autora tudo na vida é jogo, no sentido metafísico.
Essa questão do novo, para uma cultura tão afeita à categoria do gosto, brota
forçosamente do próprio objeto artístico. Isto quer dizer que a feitichização do novo
exprime o paradoxo de toda arte desde o início da modernidade, que a poesia realizada deve
ser feita por si mesma. Mas esse paradoxo se desfaz ao se observar as múltiplas investidas,
ainda românticas, da apreensão subjetiva da atividade criadora. Essa dicotomia entre o fazer
e o pensar é evidente em um texto de Ana Hatherly na Casa das Musas, que diz:
Pela variedade de modos como tem sido posta em prática pelos
diferentes experimentalistas de todo o mundo, a Poesia Visual viu o âmbito
de tal maneira alargado que hoje engloba a produção dum vasto grupo
de textos e/ou objetos que, nem sempre tendo a ver com poesia de tipo
tradicional (dependente de certas regras rítmicas e certos recursos
retóricos), sempre tem a ver com o discurso, mesmo quando este deixa de
ser verbal. (HATHERLY, 1995, p. 68)

Quando, em Texto e visualidade, de 1979, a escritora discute a dificuldade de


estabelecer o início e o término do poema visual historicamente, ela a compara à
dificuldade de se estabelecer também historicamente o começo e o fim da obra poética, e a
isso deveria se juntar também a questão do que é ou não escrita, do que é ou não
reinvenção, do que é ou não leitura. Essa questão é mais um ponto de convergência entre os
textos–visuais do experimentalismo do século XX e do Barroco, e a “identificação
progressiva entre o texto literário e o texto visual torna-se cada vez mais acentuada”
(HATHERLY, 1979, p. 96), observando-se um continuum que promove uma ligação entre o
novo e o velho, o antigo e o moderno, reconhecendo-se e identificando-se como de uma
mesma família. E, para Ana Hatherly, esse continuum faz parte do jogo, como o afirma na
Casa das Musas:

“O continuum que eu descobri era o continuum do ato criador como


processo, de que é preciso tomar-se consciência a fim de se jogar
eficazmente”.(HATHERLY, 1995, p. 73.).

Quando falamos da ruptura que o Movimento Experimental trouxe para a poesia do


século XX, temos que levar em conta que esta ruptura nos cânones poéticos e sintagmáticos
não foi igual, e sequer do mesmo nível da empreendida pelo Futurismo, o qual postulando
um desligamento total com o passado, sobrevalorizava o futuro. O Experimentalismo, ao
assumir e intervir no presente contesta no passado o que ele tem de acadêmico e de
imobilizante:

Durante esse período, o Movimento da Poesia Experimental


Portuguesa foi assumido por aqueles poucos poetas que tiveram a coragem
de por seu talento e sua energia ao serviço dessa causa ingrata, e
ingrata porque em parte se destinou a funcionar como campanha
de desmistificação dum discurso retrógrado que então parecia querer
dominar um largo setor das nossas letras, em reflexo dum meio que vivia
ancorado na acomodação e no marasmo. (HATHERLY, 1995, p. 98)

Ao fazer esta afirmação, em A casa das musas, Ana Hatherly, corrobora a idéia de
que era preciso a chegada do novo, mesmo que como um simulacro de novo, para despertar
da letargia a cena cultural portuguesa, onde a poesia estava a declinar o sentimento de sua
impotência latente. Ao usar a categoria de jogo, a poeta atribui a origem da poesia concreta
ao objeto mágico. Mas, se colocarmos na categoria de jogo o poeta contemporâneo,
moderno, barroco ou medieval, ele é aquele que destrói o instante nas compulsões da
jogada, sem que se possa dizer que ele é um jogador. E “quanto mais hermeticamente
fechado na jogada, sem a feição de que é ele quem joga, mais sua poesia se reduz à
subsistência do sublime ordinário” (MOTTA, 2004, p. 21).
Alguns textos representativos do estilo barroco português tardio, incluídos num
antigo tipo de poesia laudatória visual, e que supostamente tem origem no Panegírico a
Constantino Magno, composto durante o século VI, podem ser incluídos na categoria dos
Labirintos, uma vez que representam possibilidades de leituras múltiplas, num jogo de
visualidade, independentemente do assunto tratado. Tal como nos poemas visuais de Ana
Hatherly, essas obras apresentam letras dispostas de forma técnica na tentativa de facilitar a
apreensão do texto. Há também os que apresentam em forma de pirâmide, cujo conteúdo
está disposto graficamente a fim de construir uma figura designada por Pirâmide Literária,
que apresenta uma leitura diferente para cada tipo de intenção, uma simbologia própria e
pode ter como tema louvar a vida, celebrar o nascimento de um príncipe, lastimar a ruína e
a morte ou laudatória, em intenção a algum santo.
Quando se conhece o funcionamento das bases teóricas dos labirintos e anagramas,
bem como em textos onde era usado o processo combinatório, percebe-se a importância
dada ao cumprimento de um programa de composição, o que constituía um valor por si
mesmo. Algumas das características desses textos, como recursos de técnica de combinação
e de permuta os aproxima do Movimento Experimental do século XX.
Embora trouxessem em si o desejo de comunicação imediata com o leitor, os textos
experimentais e visuais, em alguns casos, tornaram a poesia verdadeiramente ilegível. No
entanto, com o passar do tempo e com a sua constante divulgação, a aceitação do texto-
imagem passou a integrar antologias em que os autores eram levados a, além de publicarem
suas obras, repensarem-nas escolhendo-as e selecionando-as como que a fazer uma crítica
histórica de sua própria obra.
A fragmentação ou a cegueira é o castigo para o atrevimento que a palavra atualiza.
O poeta não domina a linguagem sendo antes dominado por ela. Ao consagrar-se à palavra
ele oficia a sua rendição. Não está aqui a explicação para o inebriamento que acomete o
poeta no instante da possessão pela palavra? Neste sentido, a poesia é o mais radical dos
jogos (em especial a poesia experimental), abeira-se do aniquilamento para que a palavra
renasça com um ímpeto insuspeito. Ao subverter a mortalidade, o poeta incorre no maior
dos perigos com a inocente perfídia de um jogador compulsivo.

o poeta é um guardador

guarda a indiferença
guarda da indiferença

no incerto
guarda a certeza da voz (HATHERLY, 2004, p. 264)

2. 4 – Texto, leitura e experimentação

O texto é um objeto empírico, inacabado, com estrutura em permanente mutação, é


um complexo de significação. O significado de um texto é guiado por linhas de força que
dão o curso do significado. Quando um autor cria um texto, seja ele em prosa ou verso, ele
recorrer a uma seleção de vocábulos, dentro da língua.
Para Ana Hatherly, o criador é sempre um experimentador, já que ela considera que
ela considera que experiência e experimentação são indissociáveis num processo criativo.
Através da experimentação o artista explora novos territórios que vão lhe proporcionar
novas descobertas, e isso a autora procura fazer em seus textos poéticos.
Quando Ana Hatherly fala da necessidade que todo artista tem de criar, ela descreve
sobre sua própria experiência na poesia experimental, onde ela se coloca como “poeta-
pintora ou pintora-poeta” (Hatherly, 2004, p. 103), como disse na palestra. As imagens das
palavras e as palavras das imagens. Essa referência é uma clara alusão à sua atividade de
poeta, criadora de imagens, pois o poeta projeta-se através da linguagem, e esta se
apresenta em duas vertentes: a linguagem da fala e a linguagem da escrita, que juntas
compõem o texto.
Para Ana Hatherly a escrita é uma fala muda que desperta o imaginário, evocando
no leitor uma infinidade de imagens. Assim, juntos, escritor e leitor apóiam-se na força da
imaginação para operar a codificação/ decodificação das imagens, que podem ser
apresentadas através de todo e qualquer tipo de escrita, visual, sonora ou gestual, e havendo
a decodificação a comunicação se estabelece, “mesmo que essa comunicação deseje
comunicar a sua incomunicabilidade”. (HATHERLY, 2004, p.104).
No trabalho da autora, o desenho surge como a pura evidência do processo criativo
nos seus automatismos, imediatismos e surpresas são mapas de sinais com uma existência
paralinguística que propõe uma maneira impressionante de trilhar os caminhos da poesia
experimental. As técnicas utilizadas por Ana Hatherly na composição de seus poemas
apresentam uma prática de escrita com uma perspectiva globalizante, isto quer dizer que,
além de transformar os significados já fixados a priori em significantes que produzem
novos sentidos, ela defende que sua obra pretende mostrar as diversas modulações do
grafismo.
Sua poesia é feita de percursos, nos quais nada é linear e ao pretender romper com o
imobilismo, “apoiada num espírito experimental baseado no princípio do acerto e do erro
que permite avançar para o desconhecido” (HATHERLY, 2004, p.108), é que Ana Hatherly
investiga, improvisa e cria:

perseguindo uma forma de pensamento que corresponde a uma ascese, uma


forma de pensamento que obriga o experimentador que eu sou, a manter-se
sempre vigilante. (HATHERLY, 2004, p. 108).

Isso quer dizer que a experimentação poderá produzir em seus leitores uma intensa
emoção, e com seu pendor ao jogo de palavras, a exploração de certos tipos de sonoridade,
dão indícios do lúdico que Ana Hatherly costuma explorar em suas composições. Ao
investigar os limites da escrita, a autora procura por à prova as diferentes facetas icônicas e
plásticas que compõem os elementos da escrita, e ao intervir nesse território, atinge as áreas
da plasticidade, ultrapassando as fronteiras tradicionais, principalmente no que se refere à
questão dos códigos das mensagens. Em suas próprias palavras, “foi o que me propus e
proponho ainda fazer com as minhas pinturas verbais” (HATHERLY, 2004, p.108).

um
primeiro
um
após
um
primórdio
um
primário
um
primícia
um
preceito
um
proposta
um
receio
um
resposta
um
retido
todos : tudo : sobre o destruído
(HATHERLY, 2001, p.350)

Essa experiência com as palavras surge para violar as leis e regras previamente
estabelecidas, provocando a ilegibilidade transgressora, em exercícios diários feitos pelo
poeta para arriscar-se na singularidade dos textos criativos.
O poeta não quer duplicar o mundo
não quer fazer dele uma cópia:

Luta com a palavra


como Jacob lutou com o anjo
mas a escada que ele sobe
conduz a outras alturas
a outras planuras

É assim que o poeta


palavra por palavra
como pedra sobre pedra
constrói o edifício do poema

E a sua mão
robótico instrumento comandado
pela algébrica lógica do sentido oculto
produz
deve produzir
o que o mundo não tem
o que o mundo não diz
o que o mundo não é
(HATHERLY, 1998)
3 – A produção Poética

Para examinar a produção poética de Ana Hatherly, a opção foi por um recorte em
sua obra, uma escolha dentre inúmeras opções, de que resultou a análise, bastante
impressionista, de três poesias que considero mais representativas do seu engajamento com
a Poesia Experimental, e de sua pesquisa sobre do conceito de escrita. Quando se fala de
escrita no sentido gráfico visual, obviamente estamos nos referindo a um estágio já bem
avançado da história da escrita. Em relação a isso, a autora comenta:

A nossa escrita de hoje, mesmo a produzida eletronicamente,


continua a ser uma forma de aprisionar a voz – é uma escrita da voz – mas o
desenho-pintura-de-signos que a escrita fisicamente é revela e transmite todo
um mundo que excede o da fala, uma vez que os elementos que a constituem
são formas, formas-objetos, e não apenas representações inertes de coisas,
idéias, sensações, etc. (HATHERLY, 2004, p. 99).

Portanto, o trabalho de pesquisa de Ana Hatherly, com formas antigas de escritas, a


levou ao experimentalismo gráfico, que é a marca de sua poesia visual, e que expressa o
caráter de um complexo pensamento. Este, exigindo um código para ser decifrado põe em
prática a função de reinvenção da leitura, que reconhece ser o leitor também um criador,
mesmo que de outro ângulo. Discorrendo sobre isso, Ana Hatherly nos diz:

Quando o poeta não apenas escreve mas pensa a escrita, penetra no


âmago da sua própria criação, e o leitor, refazendo esse percurso, torna-se
também, de certa maneira, um criador, repondo no texto a presença do autor
que a escrita oblitera. (HATHERLY, 2004, p.101).

Assim sendo, a poesia de Ana Hatherly está sempre propondo ao leitor novas
descobertas e significações. Acreditando que a poesia é sempre experimental porque busca
conotações insuspeitadas, o experimentalismo de Ana Hatherly a coloca no fio da espada,
quer dizer, mesmo quando faz poesia com palavras, e não com imagens, ela as trabalha para
obter um efeito visual, colocando palavras soltas na página como se dançassem um ritmo
ditado por Mallarmé. Essas palavras ora dialogam com Álvaro de Campos, o heterônimo
pessoano comprometido com a modernidade, ora reproduzem um mote camoniano,
desenvolvendo variações que funcionam como processos de permutação, tão caros ao
experimentalismo.
A criatividade de Ana Hatherly está assentada em um complexo de apreensões de
sucessivas descobertas. Seu trabalho resulta de uma meditação sobre a escrita e o ato
criador interessando-lhe especialmente o mistério da criatividade:

A criatividade surge, assim, como uma forma de reinvenção, de


remanipulação, algo que tem por detrás todo um saber herdado, ou se
quisermos, mesmo uma arqueologia do saber, inclusive do “saber fazer”, a
que dantes se chamou arte e hoje geralmente se chama cultura, ofício,
metier, técnica, mas também todo um saber ver, um saber sentir e um saber
entregar-se. (HATHERLY, 2004, p. 93).

Em seus textos poéticos, no tocante à escrita e à criação literária, a intertextualidade


se realiza através da busca por uma interlocução com o passado, que a leva a releituras e
diálogos, extraindo da literatura portuguesa o que há de mais simbólico, a modernidade de
Fernando Pessoa e a tradição representada por Camões.
As poesias escolhidas são: Eros Frenético, Noite Canto-te Noite e Leonorana. Esses
são poemas do livro Eros Frenético, que foi publicado em Lisboa em 1968. Mais tarde
esses poemas integram a coletânea Um calculador de improbabilidades, 2001.
Dois desses poemas, Noite Canto-te Noite e Leonorana, têm como característica
comum o princípio de tema e variações, usando processos combinatórios e técnicas de
composição musical com o material verbo-visual.
Ao se dizer uma poetisa experimental, Ana Hatherly escreve uma série de textos
teóricos para tentar definir o que é experimentalismo poético. Entretanto, é óbvio, que essa
insistência em querer teorizar para dar conta do processo de criação não esgota as questões
e as interpretações de suas poesias. Pois não parece haver dados para dizer que um autor,
um poeta possa realizar-se por inteiro na sua teoria poética, assim como também não creio
que consiga explicar sua composição poética inteiramente pela teoria.
Mudar o mundo através da linguagem é sempre utópico. Ana Hatherly parece
buscar essa utopia experimentando diferentes formas de dizer, convocando diferentes vozes
de diferentes épocas, para diferentes práticas poéticas, experimentando diferentes
possibilidades de expressão. O convite para que vozes de poetas de diferentes épocas, como
Camões e de Fernando Pessoa, venham dialogar, engendra dois procedimentos: um em
relação à forma (sintaxe) e o outro em relação ao sentido (semântico), a partir da
experimentação, valendo-se de artifícios ela cria poemas metalingüísticos, onde explora as
possibilidades expressivas e o valor atribuído as palavras.
Ao fazer um trabalho intertextual, Ana Hatherly se apropria de um poema
sensacionista de Álvaro de Campos e de um mote usado por Camões para fazer uma leitura
moderna. Isso é experimentalismo. Reproduzir ou mesmo reescrever, produzindo assim
uma nova significação. E ao glosar motes alheios, que já foram glosados pelos poetas do
século XVI, Ana Hatherly usa a intertextualidade para promover um diálogo que pela via
da escrita, quebra as barreiras do tempo.

3.1 – “Noite Canto-te Noite” – “Vem Noite Antiqüíssima e Idêntica”

Fernando Pessoa tinha profunda consciência das diversas personalidades que


habitavam dentro dele, chegando mesmo a dizer que os vários heterônimos o faziam sentir-
se plural:

Por qualquer motivo temperamental que não me proponho analisar,


nem importa que analise, construí dentro de mim várias personagens
distintas entre si e de mim, personagens essas a que atribuí poemas vários
que não são como eu, nos meus sentimentos e idéias, os escreveria (PESSOA,
1976, p.87).

Sinto-me múltiplo. Sou como um quarto com inúmeros espelhos


fantásticos que torcem para reflexões falsas uma única anterior realidade que
não está em nenhuma e está em todas. (PESSOA, 1976, p. 81).

Álvaro de Campos, o criador de Vem, Noite antiqüíssima e idêntica é um poeta que


admira a inovação e a criação. Em estilo modernista privilegiando a sensação e o
movimento, ele implora a chegada da noite para lhe dirigir a eterna pergunta do homem:
“–Tu que me conheces – / quem eu sou...” (PESSOA, 1977, p. 314).
Sem dúvida, a figura da noite propicia múltiplas sensações. A violenta diminuição
dos sinais externos de vida; o império da solidão; a suspeita da inconsciência do sono; a
perda de definição das formas pela escuridão; a impenetrável rede dos sonhos que coloca
em cena vivos e mortos, próximos e distantes, ansiados e indesejáveis; o aleatório das
digressões noturnas, onde o que se persegue é a procura da verdade, tudo parece liberto da
transitória presença das formas diurnas.
Desse manancial de sentimentos e sensações que inspiraram todas as literaturas,
Fernando Pessoa dá seu testemunho:

Vem, Noite antiqüíssima e idêntica,


Noite Rainha nascida destronada,
Noite igual por dentro ao silêncio, Noite
Com as estrelas lantejoulas rápidas
No teu vestido franjado de Infinito (PESSOA, 1977, p. 311)

Na poesia de Fernando Pessoa, alguns dos altos momentos de lirismo são aqueles
em que o poeta canta a noite. Operando a fusão entre o objetivo e o subjetivo, fazendo com
que a noite se torne o ponto de partida para o sonho e para a libertação. Mas a noite é
também enigma sem decifração. É pela noite que o poeta ultrapassa a noção do objetivo. A
noite realiza a unidade entre a realidade e a fantasia. Tudo perde as arestas e as cores. A
noite é o espaço privilegiado do sonho, oferecendo um mundo onírico que é próprio da
transcendência. Noite é uma das palavras mágicas da língua portuguesa.
A noite se reveste de incerteza, tornando-se símbolo de vida e morte. Assim a noite
simboliza simultaneamente o nascimento e a morte, a criação e a destruição. Através da
poesia da noite, as imagens são o caminho dos sonhos vividos em espírito, descrevendo
trajetórias de movimento da alma, numa perpétua oscilação das exaltações líricas.
Ana Hatherly também explora a noite em seu poema Noite Canto-te Noite. Três
versões da poesia são apresentadas. A autora organiza o texto como se fosse uma partitura
musical, uma sinfonia, uma clara alusão à poesia criada e difundida por Mallarmé. A
presença do silêncio, como esclarece a autora, se faz pelas lacunas que o texto cria, e que
vão aumentando gradualmente, até que na terceira versão, apenas a palavra noite é
proferida, a eliminação de todo o texto que a envolve, funciona como suporte para a
emoção poética.
O poema Noite Canto-te Noite, vem precedido de um programa em que a autora
apresenta e explica o texto, dando algumas direções para a leitura. Esse programa funciona
como um roteiro elucidativo que visa mostrar a relação entre teoria e prática. Ou seja, uma
relação entre criação e leitura. O roteiro não só indica uma leitura, mas também aponta para
o desejo da autora ser compreendida pelos leitores. Essa atitude corrobora a teoria de que o
poeta experimental reinventa e recria a leitura por desejar ser entendido pelos leitores, ainda
que para isso tenha de “orienta-los”.
Ana Hatherly explora os múltiplos sentidos da “noite”, levando em conta os
significados que essa figura tem nas culturas do ocidente e também do oriente. Trata-se de
um poema rico e complexo, onde a “noite” se apresenta como símbolo do mistério
insondável da existência humana. Usar o tema “noite”, não é novidade e foi feito por
inúmeros poetas, Ana Hatherly utiliza a mesma referência simbólica de Fernando Pessoa,
quer dizer, a “noite” como metáfora dos mistérios do mundo, a noite pura magia, noite
como partida para o sonho, noite do oriente e do ocidente. Enquanto, na poesia de Pessoa, a
noite evocada é “antiqüíssima e idêntica”, quer dizer, é uma noite que se inscreve no tempo
e, justamente por isso, tem história. Mas também é uma noite que está aquém e além da
história, porque se apresenta como idêntica a si mesma. Assim, mudando-se a maneira de
ver a noite, os sentidos se alteram, mas o referente, a noite como objeto, permanece fixa.
O título do poema Noite Canto-te Noite apresenta as aliterações de /t/, que são secas
e afirmativas. Aqui, o canto, que se faz escrita, que cria a noite como conceito.

Noite
Canto-te para que tu definitivamente
existas (HATHERLY, 2001, p.135)

“Existir”, esse é o sinônimo de criar. Logo é preciso nomear a “noite” para que ela
possa realmente ser, existir.
“Canto o teu nome porque só as coisas cantadas” – a relação entre cantar/criar e
existir remete para a própria origem da poesia, pois na há verbo mais poético do que o
verbo cantar. E a própria poesia nasce do canto dos bardos, dos menestréis, do cantor ritual
em tribos perdidas no tempo.
“realmente são e só o nome pronunciado” –a constante reafirmação de que é preciso
pronunciar o nome para que a noite possa definitivamente existir, remetendo para a função
criadora da palavra. Ou seja: segundo Jacques Lacan, “faz surgir a coisa mesma, que não é
nada senão o conceito” (LACAN, 1979, p. 275)
“inicia a mágica corrente” – o que é a “mágica corrente” senão o mais-além que
sustenta a palavra? E o que seria esse mais além?

Toda palavra tem sempre um mais-além, sustenta muitas funções,


envolve muitos sentidos. Atrás do que diz um discurso, há o que ele quer
dizer, e, atrás do que quer dizer, há ainda um outro querer-dizer, e nada será
nunca esgotado. (LACAN, 1979, p. 275)

Repare-se que até aqui, a autora usou vocábulos e idéias de criação através da
palavra dita, da palavra proferida, para que a “noite” fosse criada, para que ela existisse,
remetendo à função do poeta, criar o mundo através da palavra. Com isso, Ana Hatherly
nos diz com todas as letras que a palavra se inscreve no universo semântico, que é o da
linguagem. Podemos também pensar no sagrado, na palavra divina, na criação do mundo,
feita por Deus por meio da palavra substantiva, do verbo ativo do sopro divino como está
dito nas Sagradas Escrituras cristãs. Logo, o poeta cria a sua matéria como um deus, usando
a palavra criadora, ordenando a criação através dela, e a poesia é o universo do poeta e o
universo criado pelo poeta.
Ana Hatherly mostra que, só a partir da existência da palavra, a noite como metáfora
se torna símbolo dos mistérios do mundo (e que por isso mesmo nunca será apreendida por
completo), seja ela em termos de linguagem poética ou não poética, permanece indefinida,
justamente porque o ser humano nunca esgota o seu verdadeiro sentido.
No mundo das metáforas, a noite pode ser ao mesmo tempo sinônimo de ente e do
tempo. Ana Hatherly percebe a noite como um ente, como uma criatura, relembrando
outras noites. A autora o faz convocando outras vozes que cantaram a noite. Isto quer dizer
que, apesar do muito que se fala da noite, ela continua complexa. Assim, cada vez que se
canta a noite, aumenta não só a complexidade da própria noite, mas também aponta para
alguma coisa para além do próprio canto.
A palavra, bem como o desejo, deixa sempre um resto para tudo de novo começar.
E mesmo muito explorada, a linguagem poética, nunca realiza de todo o sentido que se
pretende, “pois o desejo que nunca se realiza por completo” (SOBRAL, 2003, p. 323). Ana
Hatherly mostra essa não apreensão como características do ser humano, em sua
diversidade e limitação. Dizer tudo é impossível. E essa impossibilidade, essa restrição
como marca do ser humano quanto a tudo compreender, a autora evidencia como questão
essencial, e se faz presente nas sucessivas repetições de “noite”, até o uso do “além”, a
última palavra do poema, sinalizando para algo que está completamente fora do seu alcance
e compreensão.

Canto o teu nome como o homem antigo fazia eclodir


o fogo do atrito das pedras (HATHERLY, 2001, p.135)

O homem antigo, mitológico, que criava o fogo é Prometeu, mas é também o


homem primitivo assumindo o mundo, participando do processo da criação de algo novo e
que transforma sua vida.

Canto o teu nome como o feiticeiro invoca


A magia do remédio (HATHERLY, 2001, p.135)

Nesses versos, Ana Hatherly trata da invocação da noite como algo misterioso e a
que se devem respeito e veneração.

Como os animais pequenos bebem nos regatos depois


Das grandes feras – a idéia de respeito ainda permanece.
Canto-te noite
E tu definitivamente existes nos meus olhos (HATHERLY, 2001, p.135)

Aqui há uma retomada, pois a autora dirige-se novamente à “noite” e temos todo o
efeito do ato poético, porque, depois de ser cantada, agora, a noite existe realmente aos
olhos de quem a invocou e a canta.
“sempre abertos porque é sempre noite e os meus olhos” – a noite com o sentido de
mistério, desconhecido, trevas.
“são os olhos da criança que somos nós sempre” – os olhos de criança aqui como
sinônimo de curiosidade tanto do poeta, quanto a curiosidade de todos nós, a curiosidade
que inspira a criação poética.
“diante da imensidão do teu espaço” – a imensidão é a volta ao cosmos, ao sagrado,
mas é também um plano opressor, pois é inapreensível.
“e os meus olhos sempre abertos são a pergunta” – a expressão, “sempre abertos”,
retira o sentido de curiosidade, como indagação, pergunta, mistério.
Ana Hatherly busca alterar o referente ao evocar uma multiplicidade de noites.
Explorando mais o som do /t/, oclusiva alveolar surda, como se vê no título: “Noite Canto-
te Noite”. E assim ela reduz a dolência, explorando um sentido mais ativo e ao mesmo
tempo de difícil realização. O que há de sui generis na carga semântica de noite, é o
mistério, o desconhecido, a divindade como sua habitante. E o mistério e o desconhecido
são os sentidos que mais se destacam da palavra noite, e Ana Hatherly explora tudo isso e
conclui o poema com o sintagma “definitivamente além”.
Em Ana Hatherly assim, o lirismo é mais tênue, ao contrário de Álvaro de Campos,
porque ao explorar a expressividade, ela destaca os procedimentos com que o faz: as
repetições e as afonias personificando a noite, os versos meta-poéticos, e insere esse lírico
na história, ao invocar, por exemplo, Oriente e Ocidente. Ela vê a noite de modo complexo,
quase personificada, e ao mesmo tempo como construção poética, como por exemplo, em:

de nunca mais haver noite


e nada mais haver que noite
Noite
Noite
Oh tu noite definitivamente além (HATHERLY, 2001, p.138)

A última frase do poema é antecedida por duas negativas; a oclusiva, ativa, forte, /t/
se destaca, e “além” quebra mais ainda o ditongo /oi/, destacando o /t/. Ana Hatherly traz os
habitantes da noite, fera, mito, espíritos, etc. A magia da noite vem pela união entre
mistério e conhecimento, entre o eu e os outros, noite coisa, noite palavra comum, noite
poesia, noite sempre inapreensível. É assim que a palavra, a posse da palavra pelo poeta,
aproxima-o dos deuses. A associação da palavra à criação é o sinal da revolta humana face
ao esquecimento e a morte, e pela palavra o poeta usurpa o futuro aos deuses (mas nunca
definitivamente).
Nesse sentido, a poesia é o mais radical dos jogos e, como tal, aproxima-se tanto do
aniquilamento quanto da criação, para que a palavra renasça com um ímpeto insuspeito.
Certo de ascender ao mistério do mundo, o poeta faz unidade com ela, a ela adere, e,
subjugado por seu poder de criar e destruir sentidos, lança a palavra em vôo, como um
pássaro liberto ou como uma seta sem destino.
É pela experimentação que Ana Hatherly extrai novos sentidos, novos modos de ver
o mundo e a linguagem. Isto ela faz ao recorrer a tantos meios para mostrar a complexidade
da noite, na vida em seu tratamento poético. E ela repete no final que, apesar de tudo, a
noite, concreta e poética, sempre escapa à apreensão completa. A noite então se torna
metáfora da própria condição humana: o inacabamento, a incompletude, a falta, a carência,
a limitação, mas essa não apreensão da noite, não apaga os esforços poéticos do ser
humano.

3 .2 – Eros Frenético

Ler o poema Eros Frenético propõe uma impressiva maneira de perceber como a
expressão poética, a partir de uma interpretação pessoal da realidade, transforma os
significados socialmente fixados pelo código em significantes produtores de outros sentidos
que, num aparente paradoxo, retornam mediante a leitura do próprio ambiente social. Há
uma prática de escrita que se inscreve no corpo, trata-se de uma escrita íntima, sexual. Um
corpo assim, eros frenético, assim movido e assinalado às avessas, é um corpo em estado de
alarme.
Numa zona, antes ambivalente e agora pluralizada, esse poema se apropria e requer
para si uma área de transição, que é, no fundo, a expressão mais feliz que Ana Hatherly
encontra para falar – e ao dizer, instaurá-lo – do prazer do sexo com o outro. É nessa zona a
um só tempo fatal e vital, local do encontro do sujeito consigo mesmo, com o outro e com
os discursos que interpretam o mundo e lhe são acessíveis, que a poesia de Ana Hatherly
inscreve uma revolução nos instrumentos de estilo e composição, ditando à sua maneira a
moda que lhe é contemporânea: ler o escrito e escrever o lido através de uma
intertextualidade.
No século XX, os movimentos que promovem a aproximação entre palavra e
imagem, imagem plástica e escrita são a tentativa de criar um discurso que seja a síntese da
nova imagem do humano. Eros Frenético está no limiar desse encontro.
Trata-se de um poema narrativo que, de fato, introduz a questão da desumanização e
da técnica. Sua composição lembra o roteiro de um moderno filme de ficção científica, e
até evoca imagens de um tal filme, embora nele estejam reunidos e vivos para sempre,
versos perfeitamente burilados, harmoniosamente irregulares, com uma musicalidade
intensa, marcos da presença irredutível do humano. Marcos também da pintura capaz de
conciliar os contrários, e que verdadeiramente assume o indizível, onde o mistério da cor e
da luz dão forma ao pensamento da autora. A imagem poética e a imagem plástica são
portadoras de múltiplos sentidos que podem ser encarados como representação do visível,
ou aceitação do visível no invisível.
Se a máquina induz ao desumano, o humano que dela fala a reinstaura em seu
devido lugar: aos pés do eros, do frenesi humano inadministrável que o poema apresenta
com sua curiosa construção. Em Eros Frenético, Ana Hatherly faz uma crítica às
representações conformistas da desumanização e um trabalho de linguagem e estruturação
que mostra aspectos que a linguagem automatizada não consegue mostrar.

Na noite absolutamente não se via nada na terra


e no céu um só satélite. (HATHERLY, 2001, p.130)

Fazendo um jogo de palavras, a autora nos convida a entrar em um labirinto, onde


os sentidos codificados se confundem nesse encontro entre amantes, num clima de
estranhamento.

As máquinas dormiam.
Suas bocas caladas exalavam o cheiro acre do
combustível muito quieto aguardando as próximas
violentas combustões.
As máquinas repousavam suas válvulas escuras (HATHERLY, 2001, p.130)

Os termos usados trazem ao leitor a lembrança de máquinas, a tal ponto que em uma
primeira leitura custa-se a perceber que se trata de um casal de humanos, ou seja, pessoas
transformadas em máquinas.

Eles estavam sentados em cadeiras e apoiavam seus


braços sobre o tampo da mesa placa de madeira que
assentava na extrema fragilidade das suas quatro
patas provisórias.
Eles estavam sentados em cadeiras placas de madeira
assentando em igualmente provisórias patas que singularmente
davam origem a uma excrescência vertical e
rendilhada uma espécie de cauda aberta rígida que
aqui se chamava singularmente costas. (HATHERLY, 2001, p.130)

Essa combinação de termos, transformando significados mediante o uso de


metáforas, essa reflexão a respeito do corpo que em um momento se confunde
cauda/costas, conduzem o leitor a um estado de imaginação e de transição onde tudo é
possível. A realidade nem sempre é o que está escrito/mostrado.

Seus motores internos tinham ali sido colocados


com o fim específico de darem notícia do que encontrassem
em sua trajectória no tempo espacial nunca esquecendo
que interesse significa distância. (HATHERLY, 2001, p.131)
Ao descrever um encontro amoroso entre seres humanos como se estes fossem
máquinas, robôs, Ana Hatherly toca num ponto nevrálgico do mundo contemporâneo: a
robotização dos humanos e a “individualização” da máquina, sua inteligência artificial,
tornando-a quase humana, enquanto o ser humano se torna maquinal.

Eles cumpriam seu ciclo evolutivo seu ciclo


do carbono que se acumulava brilhantemente negro nas
camadas mais fundas da terra onde as florestas agora
esperam o momento de voltarem a superfície em forma
de chama e renovarem seu ciclo evolutivo gráfico e
frenético. (HATHERLY, 2001, p.131)

Usando palavras da biologia para narrar esse embate amoroso, a autora faz uma
reflexão a respeito do ciclo da vida, do amor e da condenação humana à reprodução.

Na noite absolutamente não se via nada na terra


...
Ergue-se a noite do seu leito de não se ver (HATHERLY, 2001, p.130-133)

Entre esses dois versos desenrola-se uma história de amor e sexo, em que a autora
procura transmitir a emoção frenética dos corpos dos amantes, através de um discurso
igualmente frenético, de modo intencional.
Novamente temos a evocação da noite, como símbolo de libertação do mundo e de
si próprio, como um processo de catarse, facilmente encontrado na fluência da linguagem
poética, mas visível, sobretudo na noite. Não só pelo poder sugestivo da sua componente
fônica, a que a dolência do ditongo /oi/ não é alheia, como também pela ambivalência sui
generis da sua carga semântica, é que há magia na palavra “noite”.
No primeiro verso, a noite, traz uma conotação de paz, de descanso, mas a
proporção que o ritmo da poesia, e as reações corpóreas tornam-se frenéticas, a noite passa
a não ter nada de pacificadora nem de protetora. Ana Hatherly, nesse poema, procura
transmitir uma intensa emoção recorrendo a um discurso, aparentemente, alucinado, usando
termos científicos para descrever as reações do corpo, entendido como mecanizado, aos
estímulos eróticos. Alma e corpo conduzidos por uma nova ponte. Trata-se de uma poética
de provocação de si mesma, de desafiar-se a chafurdar no lodaçal da própria existência,
desafiar-se a mostrar onde se ocultam o mistério e o erotismo que anunciam as imagens que
saltam magicamente de seus versos, repletos de evocações e sensações, jogando com
palavras que pulsam intensamente, envolvidos por uma mescla de sentimentos não
limitados pelas convenções do tempo-espaço. Este poema, apesar de erótico, trata o corpo
como se ele fosse realmente uma máquina, mas uma máquina que sofre e que enfrenta a
solidão porque deseja.

E eles estavam ali em frente um do outro


no silêncio de sua morte
ocupando diferentes espaços (HATHERLY, 2001, p. 133)

Ana Hatherly usa sua erudição e domínio do vocabulário para brincar com as
palavras, para falar do ser humano como robô, criando uma obra poética como ficção
científica, dando-nos a sensação de que as pessoas estão se transformando em máquinas, e
propondo ao mesmo tempo a exposição dessa exposição como forma de a isso resistir.

4.3 – Leonorana

Descalça vai para a fonte


Leonor pela verdura
Vai formosa não segura
CAMÕES

O poema Leonorana é constituído por trinta e uma variações temáticas a partir de


um mote encontrado em um poema de Luís de Camões. De certa forma, a referência a
Camões é uma maneira de resgatar um diálogo com vozes do passado, mas tão presentes
em nossos corações e mentes.
Ao escolher dialogar com a poesia camoniana, e transformar em poema
experimental o mote medieval, Ana Hatherly corrobora as premissas do concretismo, que
pregam um retorno às origens e aos clássicos. A leitura para ela é uma questão de
intertextualidade e de intersubjetividade. Assim, a autora cita, evoca, remete, dialoga,
mostrando que sempre se lê a partir de uma dada posição. Ana Hatherly busca resgatar pela
escrita a interlocução oral perdida, trazendo para o presente vozes do passado. A busca da
oralidade perdida e do interlocutor perdido é uma busca só, a da ressonância do eu no outro.
Com isso, Ana Hatherly, parece estar dialogando ao mesmo tempo com as
possibilidades de sentido que o texto camoniano admite para uma leitora-autora como ela,
em sua posição específica hoje, e explorando as possibilidades expressivas da língua
portuguesa, do século XV, época de Camões, até os dias de hoje. A autora não desconstrói
o mote camoniano diretamente, mas o constrói a partir desse diálogo, de interpretações que
o texto admite e outras que o texto, ao ser lido hoje, permite, mas sempre respeitando o que
de fato está escrito. Estabelecendo esse diálogo, Ana Hatherly, não só resgata Camões
como interlocutor, mas também lhe confere atualidade. Partir da época de Camões e de sua
própria época, construindo possibilidades e enriquecendo o texto de Camões, é uma forma
de valorizá-lo, além de dialogar com a forma literária daquela época, propondo a
reinterpretação de uma forma clássica, no âmbito da poesia experimental.
As variações fazem “eco de processos combinatórios barrocos” (HATHERLY, 2001,
p. 19), com a musicalidade aprendida com Mallarmé e com as técnicas da poesia visual,
alcançando dessa forma uma série de leitores/interlocutores em diferentes níveis. Por outro
lado, a forma estética apurada busca desautomatizar as percepções, fazendo com que o
leitor comum, aquele não iniciado, certamente sinta impacto.
Nessas variações, o aspecto lúdico da poesia se faz presente em uma brincadeira, a
autora conecta o nome da donzela do mote camoniano, Leonor, ao seu, Ana, fazendo um
jogo com as duas palavras e explorando a sonoridade daí resultante. Em Leonorana, o que
está em jogo são experimentos de uma escrita que toma a outra escrita como objeto. Assim
não só se explicita a quebra do laço entre significado e significante, estabelecido pelo
código da língua, mas também se lança mão do jogo lúdico com a palavra, a qual é
explorada em todas as suas dimensões: imagem, som e sentido.
Esse conjunto de composições revela uma autora com voz própria, singular e
inquieta. Utilizando-se de recursos vários, dialogando com o passado, Ana Hatherly
realizou uma fusão onde ficam evidentes imagens sonoras e visuais, que não raro
perturbam, dissolvendo o sentido aparente em curiosas associações de termos, muitos
trazidos, muitos deles, do passado mais remoto. O trabalho de Ana Hatherly é exemplo de
uma relação entre escrita e imagem, que desde o início do século XX, tem redefinido a
condição da poesia, como obra de arte. A letra, a palavra, a frase e o texto, freqüentemente
espacializados liberam a escrita do princípio da linearidade do signo verbal.
Das trinta e uma variações compostas de diferentes formas, algumas foram
escolhidas para serem lidas com mais atenção, uma vez que o tema apresenta inúmeros
desdobramentos e inúmeras leituras.
A Variação I é apresentada como o primeiro desenvolvimento do tema. Nela, Ana
Hatherly conta a história de Leonor, desenvolvendo o mote, em versos sem rimas,
apresentando um encadeamento como se fosse uma prosa. Ao conceber esse poema, a
autora apropria-se de certos processos combinatórios do barroco bem como de técnicas de
composição musical. Um poema relativamente longo, sem pontuação, necessita que o leitor
estabeleça, ele mesmo, o ritmo, criando assim para cada leitura/leitor um ritmo diferente, e
conseqüentemente um poema “diferente”. Por se tratar de um discurso sem interferência, a
tensão provocada tem a ver com a necessidade de desmontar o mito Camões, ao expor o
erotismo existente no singelo mote:

e leonor treme e seus nervos estremecem até o registro


das sensações e a mensagem da verdura está na origem de
seus nervos motores transmitirem ordens por seu corpo
e os belos músculos flectem em sua perna para trás
em sua coxa para cima em seu ventre para dentro
em seus ombros para diante e em sua cabeça para baixo
e os músculos orbiculares recebem a mensagem da verdura
e quase cerram as suas belas pálpebras
e sua pupila se contrai e um arrepio
em seus seios endurece a rosada floração de seus mamilos
(HATHERLY, 2001, p. 197)

Esse erotismo visa deliberadamente causar estranheza no leitor, já que se trata de


transportar para a atualidade um tema tratado pelo trovadorismo.
A variação II é composta por versos cujos vocábulos lembram ironicamente a
tradição. O jogo de palavras põe em destaque duas palavras constantes: “verdura” e
“formosura”. A insistente rima com terminação “ura”, além de explorar o lúdico, introduz a
derrisão da aura do amor, o que não deixa de ser cômico.
quando Leonor pela manhã estava nua
acorda e sente essa verdura irmã da
formosura das fontes e da verdura
estende o pé e pisa o chão descalça
e treme de verdura pela formosura da (HATHERLY, 2001, p.198)

Ao fazer uso repetidamente das palavras “verdura” e “formosura”, Ana Hatherly nos
faz pensar nas rígidas formas de versificação parnasiana que, por tanto tempo, estiveram
vigentes, bem como sugere uma pobreza de vocabulário e de recursos. Mas, ao mesmo
tempo, o efeito criado sugere que a autora brinca com as palavras, brinca como a criança
brinca com seus objetos, mudando-os de lugar, de acordo com uma lógica toda própria do
universo infantil.
Na variação V, a criatividade e a experimentação da poesia de vanguarda levam a
autora a fazer uma síntese das variações anteriores, com economia e justaposição das
palavras, criando e explorando as possibilidades da língua portuguesa. Com isso, os três
versos, que dançam na página, resumem todos os elementos do tema. Ou seja, a relação
entre tradição e invenção está claramente ilustrada nessa Variação.
Ao romper com a tradição, destruindo para criar, e por isso de fato sem apagar a
tradição, Ana Hatherly apresenta na Variação VI a fragmentação temática e formal do mote
camoniano, ou seja, ela está re-inventando um tema já há muito conhecido, e esse re-
nascimento implica uma ruptura, uma mudança do sistema de valores. O deslocamento dos
vocábulos na organização desse poema, substituindo a forma anteriormente estabelecida do
mote, almeja a renovação do discurso ultrapassado a fim de substitui-lo por uma nova
ordem.
A Variação XII e a Variação XIII permitem inúmeras leituras:

Variação XII

leonor pela verdura não a fonte vai descalça


não formosa para segura pela formosa
e não vai não
para a fonte vai Leonor
pela e não
(HATHERLY, 2001, p.208)
Variação XIII

vai
fonte d para
e
leonor s a
c
verdura a pela
l
formosa ç e
segura a não
vai (HATHERLY, 2001, p.209)

A princípio, devido a complexidade dessas variações, poderíamos por a síntese em


oposição á discursividade. O segmento central que aparece na Variação XII reunido aos
outros segmentos, tanto vertical como horizontal, junto com todas as combinações verbais e
visuais, resume um processo de desconstrução de Leonor, da poesia, da visualidade, do ato
de criação no existir do mundo. Cada coluna vertical produz sentidos em si e em
combinação, o mesmo acontece no plano horizontal, em que são criados sentidos diversos,
mas que combinam entre si. Dessa maneira, os segmentos vertical e horizontal acabam por
combinar tanto visual como semanticamente.
Nas duas variações, as palavras dispostas na página, criam sentidos que vão além da
linearidade do verbal, bem como da disposição dos elementos gráficos verbais evocando
formas visuais que vão além de colunas e linhas, sugerindo desenhos, criando um sentido
lúcido. O trecho final do poema apresenta um dado curioso, nele, a desconstrução final é
expressa justamente por um segmento que parece ser mais verbal que visual, sendo mais
fechado, compacto, mas que, na verdade, exprime um paralelismo verbal e visual, com a
repetição de palavras e estruturas, dispostas simetricamente umas sobre as outras, unindo os
dois planos, horizontal e vertical.

vai
para a não formosa
para a não descalça
para a não verdura
para a não fonte
para a não leonor (HATHERLY, 2001, p. 209)
Nessa desconstrução final, há uma forte carga de erotismo: a força das palavras do
segmento central vertical pode ser entendida como um orgasmo, em que Leonor se desfaz
em todas as suas negativas.
Na Variação XIII o arranjo e a combinação entre as palavras do tema proporcionam
um forte apelo visual, lembrando igualmente uma forte tensão sexual, que aparece
destacada pelo segmento vertical.
A Variação XV tem como principal característica a visualidade pelo uso de cores, e
o desenho em forma de seta mostra a condição erótica do poema. As cores do texto, a
disposição geral dos elementos da Variação, o tipo e o tamanho da letra são utilizados para
produzir inúmeros efeitos de leitura.
A composição poética começa com LIANOR em estado normal, com sua escrita
tradicional, depois passa por vários estágios de excitação, até chegar ao orgasmo. Então há
uma recomposição do elemento vocabular que volta a ser LIANOR, para a seguir continuar
com sua decomposição até acabar num orgasmo com igual intensidade à da excitação
inicial. E mais uma vez há a recomposição agora já fundida com o orgasmo, através da
sucessão de letras “a a”, que se transformam em “a n”, sugerindo mais intensidade. Por
outro lado, a montagem ANOR parece sugerida por ANA, que é a combinação criada pelo
“a” e pelo “n”, que aparece em alguns momentos do poema. As cores que destacam o clima
orgástico, aparecem circundadas pelos “a a” que sugerem a entrega de Lianor a esse clima,
embora mantenha o controle da situação, aparecendo composta no início, meio e fim do
poema, como é apercebido pelas letras maiúsculas e em tamanho maior com que a autora
escreve o nome Lianor.
À primeira vista, a Variação XVI parece um amontoado de letras totalmente
desconexo. Mas a “semantização visual” , como é chamada pela autora essa Variação,
apresenta os vocábulos do mote totalmente reformulados e fragmentados, destacando-se as
letras desses vocábulos, sem as quais o poema seria totalmente incompreensível. Nele Ana
Hatherly utiliza-se de meios extralingüísticos para sua realização, e através da composição
visual procura cativar o leitor. O agrupamento das letras segue uma lei plástica, parte de
uma forma geométrica simples, quer dizer, a autora partindo do nome Leonor, o decompõe,
fracionando-o de acordo com as leis gráficas, obtendo assim, na página em branco, uma
síntese visual do mote que provoca ou sugere uma pluralidade de leituras.
O silêncio, representado na variação XVII, considerado pela autora como um
“afastamento por imagem absoluta”, mostra que a palavra poética obstinadamente
convocada é levada a sua total anulação. Isso nos leva a pensar na concepção de “silêncio
do mistério” expressa por Ana Hatherly:

A escrita é uma fala muda, reproduz o silêncio do mistério que o iniciado


penetra através da leitura. Os antigos compreenderam o significado profundo
desse processo e por isso equipararam o entendimento do mundo a leitura de
um livro, cuja interpretação competia aos iniciados que deveriam empenhar-
se tanto na descoberta como na preservação dos seus enigmáticos segredos.
(HATHERLY, 2004, p. 101).

E são esses enigmas do passado que a autora quer resguardar, deixando que a
donzela cantada por Camões, permaneça acessível apenas para os iniciados, guardando no
silêncio da página em branco seus enigmáticos segredos.
A Variação XIX e a Variação XX apresentam a letra como traço de escrita, isso
quer dizer que Ana Hatherly faz uma investigação da escrita, no sentido de síntese, apoiada
num espírito experimental. Desse modo, a ininteligibilidade por semantização precisa ser
interpretada de acordo com determinadas regras e, nesse caso, as variantes usadas foram
apenas o nome Leonor escrito de modo ilegível, mas identificável. O fenômeno poético,
assim, tenta escapar ao rigor da linguagem, tornando-se um objeto independente que
proporciona uma multiplicidade de possibilidades perspectivas. No entanto, quanto mais
depurada a escrita, mais rigorosa e autônoma ela se torna, oferecendo ao leitor variadas
percepções de leitura.
Como investigação de escrita, Ana Hatherly trabalha utilizando a desconstrução dos
elementos constituintes, quer dizer, ela usa o processo da experimentação, onde as
variações caligráficas passam a constituir algumas das possíveis reelaborações do nome
Leonor. Essas variações pressupõem não um rompimento com o tema, mas uma contínua
releitura dele, com o firme propósito de manter a inventividade na poesia. O que se
encontra nessas variações é o trabalho de investigação desenvolvido por Ana Hatherly no
campo teórico. Este trabalho funciona como suplemento do seu trabalho poético. Ao falar
da sua experiência no campo da pesquisa histórica das raízes da poesia visual ela diz:
crer que a revelação desse passado pode desempenhar um papel importante
numa fase de renovação do texto, pois a pesquisa histórica vem trazer de
novo para o conhecimento geral uma enorme variedade de formas e de
concepções do funcionamento da escrita criativa que abrirão certamente,
para muitos, perspectivas até agora insuspeitadas. (HATHERLY, 1995, p.115).

Essa releitura do nome Leonor e a atomização do experimentalismo poético


demonstram, na poesia, essa abertura de perspectivas, a qual a autora se refere. Essas duas
variações fazem parte da sua investigação das estruturas poéticas, que apresentam um alto
grau de radicalização.
As variações XXVII, XXVIII e XXIX apresentam permutas sistemáticas sobre a
palavra-chave do tema, com propostas inovadoras de leitura. Mas o rigor construtivista e o
ludismo dessas variações, dispostas na página formando desenhos, apresentam uma forma
visual cujo enunciado já é o próprio mecanismo de leitura. Com isso, Ana Hatherly nos
possibilita a configuração de uma poesia em aberto, quer dizer, as linhas programáticas
estabelecidas a priori pela autora, não funcionam como uma camisa de força para essas
Variações.

Variação XXVII

LEO nor LEN oor LON eor EON lor OLO ren NER olo
ELO nor ELN oor OLN eor OEN lor LOO ren ENR olo
LOE nor LNE oor LNO eor ENO lor OOL ren NRE olo
OLE nor NLE oor NLO eor NEO lor OOL ren RNE olo
EOL nor ENL oor ONL eor ONE lor LOO ren ERN olo
OEL nor NEL oor NOL eor NOE lor OLO ren REN olo

Variação XXVIII

ooeLnr loeNor nooRel


oeoLnr oleNor onoRel
eooLnr eolNor oonRoe
rooLen rloNeo lnoRoe
oroLen lroNeo nloRoe
oorLen olr Neo onlRoe
nooLre oloNre enoRlo
onoLre looNre neoRlo
oonLre oolNre oneRlo
Variação XXIX

Leonor
eLonor
eoLnor
eonLor
eonoLr
eonorL

Numa perspectiva temporalmente distanciada, observamos que Ana Hatherly é


capaz de “esconder”, revelando, uma palavra no poema. Essas variações podem ser lidas e
funcionam como um registro da sua atividade criadora, através dos quais, podemos
vislumbrar o interesse da autora pelas possibilidades da lógica combinatória, que
permearam tanto o barroco como o estruturalismo dos anos 1960 e 1970.
I
O pavão negro da escrita
Abre um leque de opções
Exibe o luxo
Do seu traje-cárcere
Babel silente
No vazio da página
Prende o tumulto da voz
Fixa o assalto da mão

Última instância rebelde


É jogo
Luta
Luto
Grito calado
(HATHERLY, 2004)
Conclusão

O trabalho do artista contemporâneo, em especial do poeta, está ligado ao do


teorizador, já que ele é levado a avaliar as implicações e os aspectos do seu trabalho.
Ao situar o movimento da Poesia Experimental no contexto histórico da segunda
metade do século XX, compreende-se que lutar foi a posição escolhida pela maioria dos
artistas, já que esse movimento pretendia romper o imobilismo principalmente em um país
retrógrado como Portugal. Quando Ana Hatherly diz em A casa das musas, que:

O poeta vê, ouve, sente, pensa, imagina e depois recria o que


experimentou. Mas o objeto produzido, quando lido, cria a sua própria
realidade. (HATHERLY, 1995, p. 53).

Ela expressa o que foi constatado em nosso estudo sobre o movimento da Poesia
Experimental em Portugal. Ao refletir sobre a poesia de Ana Hatherly, compreendi que o
pressuposto fundamental da sua obra é a idéia de que a poesia se desenvolve ao nível da
experimentação e da leitura. Diz a autora:

O espírito experimental será, portanto, estimulado por uma


esperançosa confiança numa receptividade desconhecida, essencialmente
utópica. (HATHERLY, 2004, p.109).

Os poemas escolhidos, Noite Canto-te Noite, Eros Frenético e Leonorana (apenas


algumas variações) mostram que a procura da origem se faz presente, uma vez que ela
estabelece um diálogo com os dois mais emblemáticos poetas lusitanos: Luís de Camões e
Fernando Pessoa. Essa escolha resgata uma interlocução perdida. O estudo um pouco mais
detalhado de alguns poemas tornou-se um procedimento necessário, já que o objetivo é
justamente assinalar o quanto da teoria difundida por Ana Hatherly aparece corroborado em
sua produção poética. Os poemas escolhidos, que pertencem ao período do
experimentalismo, indicam que o trabalho com a espacialização e com a visualização,
libertando a palavra do verso, cria uma sintaxe e uma semântica que inauguram uma nova
estrutura, onde o leitor é convidado pelo autor a participar do processo de criação.
Ao traçar um panorama dos movimentos de vanguarda durante o século passado e
mais especificamente na segunda metade do século XX, observa-se que a escrita lírica se
manteve como matriz das poesias, apesar da convulsão e do emaranhado de idéias
vanguardistas.
O experimentalismo propôs explorar possibilidades de libertação da palavra.
Quando Mallarmé usou a página em branco para conceber o poema como um jogo de
dados, demonstrou que esses dados nunca esgotam as possibilidades do acaso, da vida e do
autor. E sendo cada poema um retorno ao começo é também um trabalho de reinvenção do
mundo. De fato a poesia concreta, que surgiu como um modo diferente de realização do
poético, pretendia operar essa reinvenção através de imagens, de símbolos e de metáforas
que se equilibravam lado a lado a uma corrente sonora de ritmos, de rimas, de melodias e
de séries de sons. É um tipo de poesia que não é apenas para ser lida e ouvida, mas também
ser vista.
Num processo de mutação, onde o descritivo foi substituído pelo plástico e o
auditivo pelo visual, o poema visual inaugurou uma nova forma de inserção da poesia na
cultura numa tendência que vem de longe, a poesia concreta incorporou elementos da
cultura popular, da linguagem dos jornais, das histórias em quadrinhos, da publicidade,
enfim das inúmeras técnicas de meios de comunicação de massa à tradição erudita, fazendo
com que os objetos e as atividades que fazem parte do cotidiano fossem incorporados ao
seu universo, fazendo com que a poesia, e mais genericamente a obra de arte,
redescobrissem o mundo.
Uma das tendências da poesia de vanguarda é a discussão que se implantou ao
longo do seu desenvolvimento sobre a distinção entre “leitura” e “interpretação”. A leitura
deve ser compreendida como uma apresentação inicial, que tem como função a descoberta.
A interpretação é o que a ultrapassa essa leitura, trabalho a ser realizado pelo leitor que é
convidado a participar de todo o processo criativo. É nesse sentido que Ana Hatherly
trabalha, buscando e convidando o leitor para uma aproximação. Essa interação entre autor
e leitor visa também a dessacralização da aura do artista e da obra de arte.
Ana Hatherly fala em seus textos teóricos reiteradamente do lúdico como uma das
formas de escrever, e isso se evidencia em algumas variações que compõem o poema
Leonorana, onde a autora brinca com a disposição das palavras na página, como num jogo
de dados. Para a autora, “o mundo da escrita é o mundo do silêncio que a leitura anima”
(HATHERLY, 2004, p. 101). Esse silêncio aparece em inúmeros de seus poemas como o
espaço que ela obrigatoriamente usa, seja pela supressão de palavras, seja pela ordenação
delas.
A poesia experimental portuguesa não era de todo novidade, pois o
experimentalismo já vinha sendo feito em outras artes desde o início do século XX. Mas ele
só explodiu com o que se chama de vida moderna, sinônimo de velocidade, de imediatismo,
de superficialidade. A cara da poesia experimental é a transgressão, buscando a velocidade
da comunicação imediata, mas é também criadora e investigativa. Como diz Ana Hatherly,
“As manifestações de vanguarda têm que ser diferentes em diferentes épocas.” (HATHERLY,
2004, p.140)
A poesia concreta/experimental foi, sem dúvida, um marco na literatura ocidental,
conquistando uma liberdade que rompeu as fronteiras entre as artes, permitindo ao artista
transitar em vários campos, tais como artes plásticas e o cinema, oportunidade essa
aproveitada por Ana Hatherly que se inscreve no universo multimídia, por participar de
exposições de desenhos e pinturas, cartazes e filmes.
Da “poesia-desenho”, Ana Hatherly chega ao que se poderia denominar “imagem-
poesia”, “som-poesia”, uma síntese entre modernidade e tradição, experimentação e
pesquisa, um intenso esforço de superar a automatização das leituras e interpretações que
mostra o novo onde só se percebia o corriqueiro.
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Fonte iconográfica

Red circle square – Ana Hatherly

Mapas da imaginação e da memória – 1973 – Ana Hatherly

A bigger splash – David Hockney

Angelus novus – Paul Klee

Inédito – 1971 – Ana Hatherly


I –Noite Canto-te Noite

Noite
Canto-te noite para que tu definitivamente
existas
Canto o teu nome porque só as coisas cantadas
realmente são e só o nome pronunciado inicia
a mágica corrente
Canto o teu nome como o homem antigo fazia eclodir
o fogo do atrito das pedras
Canto o teu nome como o feiticeiro invoca
a magia do remédio
Canto o teu nome como um animal uiva
de noite
Como os animais pequenos bebem nos regatos depois
das grandes feras
Canto-te noite
e tu definitivamente existes nos meus olhos
sempre abertos porque é sempre noite e os meus olhos
são os olhos da criança que nós somos sempre
diante da imensidão do teu espaço
noite
Canto-te noite
e os meus olhos sempre abertos são a pergunta
instante pendente de eu te interrogar
noite
e interrogo as coisas em seu ser nocturno
em seu estar sombriamente presentes na tua claridade
obscura
E como é sempre noite
meus olhos abertos perscrutam-te
noite
símbolo de tudo o que me foge
como apertar o ar dentro das mãos
e querer agarrar-te
noite
oh substância
Canto-te noite
com a fragilidade de tudo o que existe perante
uma eternidade demasiado nocturna para os nossos
olhos infantis perante a tua antiguidade
futura
E a nossa voz é uma pequena onda no dorso
de teu oceano de matéria
Um leve arrepio apenas na espantosa espessura
de teu éter
Ah no ar é que tudo acontece
no ar nocturno das idades esquecidas
que previamente desconheceremos
No espaço é que tudo acontece
e o espaço é uma grande noite muito quieta
onde os nossos olhos penetram
no não sabermos até onde
ali
além
no além onde tudo acontece
Oh noite
oh espaço de tudo ser tão ligeiro e impalpável
e sermos nós a respiração da noite
teu bafo ritmado
imperceptível distância
Oh noite augusta majestática dignidade do silêncio
Oh impassibilidade da tua mecânica celeste
Oh organismo primeiro de todos os fins secretos
da compreensão das coisas
Oh inorgânico organismo dos seres
que se devoram
Oh noite diz
a quem servimos nós de pasto
Canto-te noite
como quem pronuncia o Mantra esotérico do teu nome
Canto-te e grito
para que a poeira que se infiltra em todas as
coisas se erga de ti como um plâncton
Oh Madre
matriz das criaturas inferiores que rastejam
a teus pés cobertas de pó
esse pó que a cada momento ameaça submergir-nos
Noite
Noite
Oh aranha enorme tecendo tua teia de pó
Oh noite que desintegras tudo e tudo tu constróis
Ah noite com nós lambemos tuas duras mãos
Oh noite que fustigas nossos olhos com tua sombra
enorme
Oh noite
Noite que deixas tanto espaço para o silêncio
Noite das mil pétalas
Noite dos mil braços esplendorosos em seu abandono
Noite dos murmúrios
Noite dos afagos
Noite sangue derramado sobre o mundo
Oh noite noite
Porque és sempre tão premente?
Porque sempre estás ausentemente
longe na tua constância em todas as coisas?
Noite
Oh sono
Oh noite morte tão desejada e longa
Noite mágica povoada de átomos
milhões de espírito enchem o teu sopro
E penetras em nós como uma bala
E tudo morre quando tu chegas
E tudo se dilui e se transforma em ti
Noite alada presciência de tudo acontecer
tão longe de nós e tão antigamente
de tudo nos ultrapassar com soberana indiferença
ante os nossos olhos cegos pelo teu negrume
Oh noite
Brilha para dentro de mim
Acende teus luzeiros em meus olhos
Ergue teus braços oh noite prenhe de tudo
Oh vaso
Oh via Láctea de nos amamentares com teu leite
de sombra
Oh noite úbere e pródiga
Aleita tua ninhada faminta
Noite
Noite
Grande fera luzidia
Grande mito
Grande deus antigo
Oh noite urna onde todos dormimos
Oh noite
Meus olhos choram já de tanto perscrutar-te noite
E canto-te
Canto-te
Para que tu existas
E eu não veja mais nada além de ti
E nada mais deseje senão que venhas outra vez
levar-me para dentro do teu ventre
de nunca mais haver noite
e nada mais haver que noite
Noite
Noite
Oh tu noite definitivamente além
Eros Frenético

Na noite absolutamente não se via nada na terra


e no céu um só satélite.
As máquinas dormiam.
Suas bocas caladas exalavam o cheiro acre do
combustível muito quieto aguardando as próximas
violentas combustões.
As máquinas repousavam suas válvulas escuras e os
lubrificantes cumpriam seu trabalho lento de estarem
ali nos interstícios da matéria sinóvia escorregadia
macia e totalmente aderente.
Eles estavam sentados em cadeiras e apoiavam seus
braços sobre o tampo da mesa placa de madeira que
assentava na extrema fragilidade das suas quatro
patas provisórias.
Eles estavam sentados em cadeiras placas de madeira
assentando em igualmente provisórias patas que singularmente
davam origem a uma excrescência vertical e
rendilhada uma espécie de cauda aberta rígida que
aqui se chamava singularmente costas.
Sobre o tampo da mesa eles apoiavam seus braços
mutação provisória das barbatanas peitorais que
tendo talvez passado pela fase da membrana alar eram
agora obsoletos meios de locomoção.
Suas pernas poisavam sobre o chão provisórias patas
muito bem arrumadas junto das patas das cadeiras e
o todo formava um curioso engenho de dezasseis
patas assentando na terra onde não se via nada porque
a noite estava absolutamente sem satélites e as
galáxias digo as gala áxias estavam todas com suas
cabeças escondidas debaixo das asas.
Todas as máquinas estavam dormindo o que é o mesmo
que dizer que estavam em seu ser aparente em seu
estar entretanto enquanto a entropia esperava
lambendo o focinho.
Eles estavam ali sentados em frente um do outro
e no silêncio dos xilemas do tampo da mesa alimentavam
a provisória vida dos seus corpos aparentes
cuja particularidade trágica consiste em não lhes
ser possível ocupar simultaneamente o mesmo espaço.
Seus corpos mecanicamente equivaliam os satélites
que certamente percorriam o espaço.
Seus motores internos tinham ali sido colocados
com o fim específico de darem notícia do que encontrassem
em sua trajectória no tempo espacial nunca esquecendo
que interesse significa distância.
O seu interesse era avaliar a distância que separa
todos os corpos e todas as coisas umas das outras
de modo que o espaço deixando de ser o incomensurável
pudesse tornar-se mensuravelmente fasto para as
interessadas trocas gasosas digo frenéticas
etimologicamente espirituais ou etéreas.
Eles estavam ali sentados em frente um do outro e
suas trocas gasosas se cumpriam regularmente.
Digo freneticamente.
Porque era de noite e como o processo da fotossíntese
estava suspenso em todos os organismos vegetais
havia sobre a terra uma exalação acre de dióxido de
carbono de todas as máquinas em seu trabalho nocturno
de repouso da luz.
Eles cumpriam seu ciclo evolutivo seu ciclo
do carbono que se acumulava brilhantemente negro nas
camadas mais fundas da terra onde as florestas agora
esperam o momento de voltarem a superfície em forma
de chama e renovarem seu ciclo evolutivo gráfico e
frenético.
Eles estavam ali aparentemente sentados em frente
um do outro e seus corações trabalhavam bem.
Seus ventres estremeciam regularmente aos movimentos
peristálticos das suas digestões e os seus milhares
de células abriam e fechavam suas ignoradas bocas.
Seu sangue percorria o mapa das veias sem nenhum
engano e tudo se passava absolutamente de uma forma
nocturna em que não se via nada.
Eles estavam ali como dois corpos porções delimitadas
de matéria frenética sentados em frente um do outro
e entre eles estava só a noite sob forma de espaço
onde não se via absolutamente nada enquanto a entropia
sacudia uma pata.
Eles estavam ali absolutamente suspensos de seus
corpos distintos na noite demasiado indistinta
das formas acabadas prontas para a consumação do fim
único absoluto da indistinção do espaço onde a
entropia é um animal incompleto a que falta tudo o
que está pra ser no oceano das partículas negativas
de toda a criação provisória.
Estavam em frente um do outro.
Sobre a mesa apoiavam seus braços.
Estendem agora suas mãos que se tocam e sente-se uma
pausa brusca no movimento da circulação da
noite.
Alguma coisa se suspende instante para logo iniciar
um movimento rápido uma aceleração de válvulas de
combustíveis uma aceleração de bocas ingurgitadas
um entumescimento de fibras um tremor de
membranas.
Suas mãos agora juntas apertam-se convulsas seus
peitos se aproximam suas bocas entreabertas
projectam-se ao encontro do beijo em sua escuridão
húmida.
Seus corpos vão-se enleando
a mesa cai sobre o flanco.
Suas patas voltam-se emaranhadas nas patas das cadeiras
emaranhadas nas patas provisórias dos corpos caídos
sobre o flanco enquanto ressoa o trabalho nocturno
das ondas do oceano material correndo para a praia
de nunca haver limite para a voracidade de dois
corpos quererem ocupar o mesmo espaço dentro
da máquina do corpo do outro onde tudo é noite
e as línguas se confundem e os braços e as pernas
confundidos sobre o flanco escancarado dos corpos
freneticamente esquecidos da entropia que se prepara
para abrir a boca e dar uma gargalhada enorme
quando os corpos se encontram julgando perder a
propriedade mágica da coesão da matéria na vertigem
de entrarem no turbilhão do espaço totalmente ocupado
pelo hálito acre dos ilimites da grande máquina da noite.
Eles estão ali caídos sobre a terra sacudidos
pelo estertor do encontro e enquanto seus corpos
se confundem por dentro freneticamente devorando
dentro de cada um o espaço escuro da noite de vivermos
separados
Ergue-se a noite do seu leito de não se ver
absolutamente nada e de repente acordam todas as
máquinas e nesse instante
Eles estavam ali sentados apoiando seus braços
sobre o tampo da mesa
E eles estavam ali em frente um do outro
no silêncio da sua morte
ocupando diferentes espaços
Vem, Noite Antiqüíssima e Idêntica

Fernando Pessoa

Vem, Noite antiqüíssima e idêntica,


Noite Rainha nascida destronada,
Noite igual por dentro ao silêncio, Noite
Com as estrelas lentejoulas rápidas
No teu vestido franjado de Infinito.

Vem, vagamente
Vem, levemente
Vem sozinha, solene, com as mãos caídas
Ao teu lado, vem
E traz os montes longínquos para o pé das árvores próximas,
Funde num campo teu todos os campos que vejo,
Faze da montanha um bloco só do teu corpo,
Apaga-lhe todas as diferenças que de longe vejo,
Todas as estradas que a sobem,
Todas as várias árvores que a fazem verde-escuro ao longe.
Todas as casas brancas e com fumo entre as árvores,
E deixa só uma luz e outra luz e mais outra,
Na distância imprecisa e vagamente perturbadora,
Na distância subitamente impossível de percorrer.

Nossa Senhora
Das coisas impossíveis que procuramos em vão,
Dos sonhos que vêm ter conosco ao crepúsculo, à janela,
Dos propósitos que nos acariciam
Nos grandes terraços dos hotéis cosmopolitas
Ao som europeu das músicas e das vozes longe e perto,
E que doem por saber que nunca os realizaremos...
Vem, e embala-nos,
Vem e afaga-nos.
Beija-nos silenciosamente na fronte,
Tão levemente na fronte que não saibamos que nos beijam
Senão por uma diferença na alma.
E um vago soluço partindo melodiosamente
Do antiqüíssimo de nós
Onde têm raiz todas essas árvores de maravilha
Cujos frutos são os sonhos que afagamos e amamos
Porque os sabemos fora de relação com o que há na vida.

Vem soleníssima,
Soleníssima e cheia
De uma oculta vontade de soluçar,
Talvez porque a alma é grande e a vida é pequena,
E todos os gestos não saem do nosso corpo
E só alcançamos onde o nosso braço chega,
E só vemos até onde chega o nosso olhar

Vem, dolorosa,
Mater-Dolorosa das Angústias dos Tímidos,
Turris-Erburnea das Tristezas dos Desprezados,
Mão fresca sobre a testa em febre dos humildes,
Sabor de água sobre os lábios secos dos Cansados.
Vem, lá do fundo
Do horizonte lívido,
Vem e arranca-me
Do solo de angústia e de inutilidade
Onde vicejo.
Apanha-me do meu solo, malmequer esquecido,
Folha a folha lê em mim não sei que sina
E desfolha-me para teu agrado,
Para teu agrado silencioso e fresco.
Uma folha de mim lança para o Norte,
Onde estão as cidades de Hoje que eu tanto amei;
Outra folha de mim se lança para o sul,
Onde estão os mares que os Navegadores abriram;
Outra folha minha atira ao Ocidente,
Onde arde ao rubro tudo o que talvez seja o Futuro,
Que eu se conhecer adoro;
E a outra, as outras, o resto de mim
Atira ao Oriente,
Ao Oriente donde vem tudo, o dia e a fé,
Ao Oriente pomposos e fanático e quente,
Ao Oriente excessivo que eu nunca verei,
Ao Oriente budista, bramânico, sintoísta,
Ao oriente que tudo o que nós não temos,
Que tudo o que nós não somos,
Ao oriente onde – quem sabe? – Cristo talvez ainda hoje viva,
Onde Deus talvez exista realmente e mandando tudo...

Vem sobre os mares,


Sobre os mares maiores, sobre os mares sem horizontes precisos,
Vem e passa a mão pelo dorso da fera,
E acalma-o misteriosamente,
Ó domadora hipnótica das coisas que se agitam muito!

Vem, cuidadosa,
Vem, maternal,
Pé ante pé enfermeira antiqüíssima, que te sentaste
À cabeceira dos deuses das fés já perdidas,
E que viste nascer Jeová e Júpiter,
E sorriste porque tudo te é falso e inútil.

Vem, noite silenciosa e estática


Vem envolver na noite manto branco
O meu coração...
Serenamente como uma brisa na tarde leve,
Tranq6uilamente como um gesto materno afagando.
Com as estrelas luzindo nas tuas mãos
E a lua máscara maravilhosa sobre a tua face.
Todos os sons soam de outra maneira
Quando tu vens.
Quando tu entras baixam todas as vozes,
Ninguém te vê entrar.
Ninguém sabe quando entraste,
Senão de repente, vendo que tudo se recolhe,
Que tudo perde as arestas e as cores,
E que no alto céu ainda claramente azul
Já crescente nítido, ou círculo branco, ou mera luz nova que vem.

A lua começa a ser real.


Descalça vai para a fonte

Luís de Camões

Descalça vai para a fonte


Lianor pela verdura;
Vai fermosa, e não segura.

Leva na cabeça o pote,


O testo nas mãos de prata,
Cinta de fina escarlata,
Sainho de chamelote;
Traz a vasquinha de cote,
Mais branca que a neve pura.
Vai fermosa e não segura.

Descobre a touca a garganta,


Cabelos de ouro entrançado
Fita de cor de encarnado,
Tão linda que o mundo espanta.
Chove nela graça tanta,
Que dá graça à fermosura.
Vai fermosa e não segura.
y
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