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ESTUDOS BÍBLICOS

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DIRETOR RESPONSÁVEL
Ludovico Garmus
CONSELHO DE REDAÇÃO
Gilberto Gorgulho, Carlos Mesters, Ludovico Garmus, Ana Flora Anderson,
Milton Schwantes, José Comblin, Tércio Machado Siqueira.

RESPONSÁVEIS POR ESTE NÚMERO


Alberto Antoniazzi e Wolfgang Gruen

COLABORADORES
Região Sul
C. A. Dreher, F. E. Dobberahn, S. A. Gõrgen, F. M. de Oliveira, P. Kramer,
M. F. Giuliani, A. Burin, N. B. Pereira, U. Wegner, D. j. Walker, L. Z. Konzen.
Paraná
V. da Silva, J. P. T. Zabatiero, G. A. Wolff, I. Neutzling, O. Zanini, A. Paoli.
São Paulo
A. F. Anderson, G. Gorgulho, T. M. Siqueira, D. Zamagna, L. R. Alves, J. de
Santa Ana, M. Schwantes.
Minas Gerais
L. I. Stadelmann, C. Mesters, M. A. Couto, J. L. G. do Prado, A. Antoniazzi,
B. C. de Oliveira, E. M. de Oliveira, P. S. Soares, W. O. de Azevedo, A. J. da
Silva.
Rio de Janeiro
P. Lockmann, R. Porath, T. Cavalcanti, L. Weiler, M. L. Gorgulho, H. de
Ternay, L. Garmus.
Região Nordeste
S. A. G. Soares, M. A. Veloso da Silva, J. Comblin, I. Gebara, S. V. da Silva,
L. C. Araújo, J. P. Lima, A. V. de Melo, R. E. Oliveira, R. Guerre, M. de B.
Souza, E. Hoornaert.
Região Norte
E. Wambergue, S. Gallazzi, A. M. Rizzante Gallazzi, N. Masi, F. Rubeaux,
L. Mosconi, T. Frigerio, N. Soares, N. Farias, R. M. Rothe.
América Latina e outros países
P. Richard, N. K. Gottwald, E. Tamez, J. I. Alfaro, J. L. Caravias.

Assinatura anual: para o Brasil == Cr$ 2.300,00


para o exterior = U$ 20,00
Printed in Brazil
Estudos Bíblicos

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Métodos para 1er


a Bíblia
EMANUEL MESSIAS DE OLIVEIRA
JULIETA AMARAL DA COSTA
JACIR DE FREITAS FARIA
JOSÉ BATISTA DA SILVA
TIAGO LARA
CARLOS MESTERS
WALMOR OLIVEIRA DE AZEVEDO
JOHAN KONINGS
AIRTON JOSÉ DA SILVA
WOLFGANG GRUEN
JOSÉ LUIZ G. DO PRADO
GENILMA BOEHLER
WESTERN CLAY PEIXOTO
ALBERTO ANTONIAZZI

l. VOZES)
Petrópolis São Leopoldo
1991
® 1991, Editora Vozes Ltda.
Rua Frei Luís, 100
25689 Petrópolis, RJ
Brasil

Editora Sinodal
Rua Epifânio Fogaça, 467
93030 São Leopoldo, RS
Brasil

Editoração:
Otaviano M. Cunha

Diagramação:
Patrícia Florêncio
ESTE NtJMERO DE ESTUDOS BÍBLICOS É DEDICADO
AO
FREI CARLOS MESTERS

pelo decurso de seus sessenta anos de vida, em grande parte dedicados


a aprender a Bíblia com os pobres do Brasil
e da América Latina.

O presente número, consagrado aos métodos de leitura bíblica no Brasil,


é um eco da obra iniciada e animada entre nós por Frei Carlos, humilde "mestre"
que, vindo de longe, se pôs a escutar o nosso povo,
— para lhe mostrar quanto, a partir de sua vida, já sabia da Palavra. . .
— para o ajudar a articular sua experiência de Deus, que descobrimos por trás
das palavras;
— para ler a vida à luz da Bíblia e a Bíblia à luz da vida;
— para construir uma pedagogia e uma escola de leitura bíblica;
— para restituir ao povo de Deus o seu livro.
* * *

Que as presentes contribuições


sejam expressão de nossa gratidão
ao Frei Carlos,
e a Deus,
por causa dele.
Sumário

Editorial, 9
EMANUEL MESSIAS DE OLIVEIRA. Bíblia: Palavra de Deus em palavras
humanas, 12
JULIETA AMARAL DA COSTA. Leitura espontânea da Bíblia a partir dos
fatos da vida, 24
JACIR DE FREITAS FARIA e JOSÉ BATISTA DA SILVA. Leitura bíblica
através de símbolos e imagens, 27
TIAGO LARA. Leitura bíblica e leitura da nossa história — Uma experiência
de formação de agentes populares, 33
CARLOS MESTERS. A Bíblia lê a Bíblia — Sobre o fenômeno da releitura
dentro da Bíblia, 39
WALMOR OLIVEIRA DE AZEVEDO. O que é ler?, 46
JOHAN KONINGS. A leitura da Bíblia, 58
AIRTON JOSÉ DA SILVA. Leitura sociológica da Bíblia, 74
WOLFGANG GRUEN. Leitura libertadora também de textos não-libertadores
da Bíblia, 85
JOSÉ LUIZ G. DO PRADO. Traduzir: interpretar ou re-criar?, 89
GENILMA BOEHLER. Ler a Bíblia com olhos de mulher, 93
WESTERN CLAY PEIXOTO. A leitura bíblica nas Igrejas evangélicas, 98
CARLOS MESTERS. Reflexões sobre a mística que deve animar a leitura orante
da Bíblia, 100
ALBERTO ANTONIAZZI. Indicações bibliográficas, 105
Recensão, 107
Índice de 1991 (cadernos 29-32), 110
Editorial

O texto da Bíblia é um só, mas pode ser lido de vários modos. Do


assunto a nossa equipe já se ocupou no n. 9 de ESTUDOS BÍBLICOS, que
analisou várias leituras dos Dez mandamentos.
Agora retomamos de forma mais ampla e sistemática a questão dos
modos ou métodos de ler a Bíblia: leitura espontânea, popular, a partir da vida;
leituras científicas: histórico-críticas, estruturais, sociológicas; leituras a partir de
pontos de vista determinados. ..
O conjunto do caderno resultou bastante amplo e rico. E, mesmo
assim, haveria outras coisas a dizer e outros pontos de vista a Considerar. Mas
procuramos dar aos artigos uma ordem pedagógica, procedendo do mais fácil
para o mais complexo, do mais universal para o mais específico. A leitura dos
primeiros artigos ajudará a compreender os outros.
Especialmente alguns dos autores fizeram o esforço para colocar ao
alcance de um grande número de leitores os frutos de suas pesquisas especiali-
zadas. Não tem sentido reservar a um pequeno grupo de especialistas um conhe-
cimento que ê proveitoso para todos. Assim como, de outro lado, os exemplos
admiráveis de "leitura popular", aqui apresentados, são estímulo valioso também
para os especialistas. São estímulo a sair da cerca acadêmica, onde se perde
às vezes muito tempo com questões menores, para escutar e compreender as
grandes interrogações do povo e de sua história.

•k -k -k

A Bíblia é típalavra de Deus em palavras humanas". Num artigo in-


trodutório Emanuel Messias de Oliveira explica por que devemos levar a sério
o texto da Bíblia, exatamente porque através dessas palavras humanas ê Deus
que fala.
Um con]unto de três textos mostra três experiências de "leitura po-
pular" da Bíblia, onde sobressai o èsforço de confrontar a palavra bíblica com
a vida do povo hoje. Ê esta a primeira e principal forma de "levar a sério"
o texto da Bíblia. Julieta Amaral da Costa fala de "leitura espontânea da Bíblia";
Jacir de Freitas Faria e José Batista da Silva apresentam a "leitura bíblica através
de símbolos e imagens". Tiago Lara não apenas conta cinco anos de experiência
em cursos bíblicos para agentes de pastoral, mas explicita o sentido da metodo-
logia adotada, baseada no confronto entre a história do povo bíblico e a história
do povo brasileiro.
Carlos Mesters aborda o tema "A Bíblia lê a BíbliaNo decorrer da
história, face a novas situações de vida, os autores dos livros bíblicos mais
recentes são levados a "reler" o passado e a descobrir novos sentidos nos pri-
meiros livros da Bíblia e nos acontecimentos por eles narrados. Mesters toma
como exemplo a releitura da Bíblia feita na época do exílio e logo depois,
especialmente na segunda parte do livro de Isaías. À luz dessa releitura, feita
pela própria Bíblia, aparecem as condições de uma correta releitura da Bíblia
hoje.
Para aprofundar a questão da leitura, temos uma contribuição parti-
cularmente valiosa de Walmor Oliveira de Azevedo. Ele se pergunta: "o que
é ler?" Tanto na leitura da Bíblia como na leitura de outros textos, o ato de
ler se revela de grande riqueza:
— é a aprendizagem de uma arte, uma viagem à descoberta da poesia
e da capacidade criativa do ser humano;
— é uma experiência que educa a escutar o outro e a dialogar com ele;
— mais do que isto, é uma experiência em que descobrimos a nós
mesmos e as possibilidades de nossa transformação e libertação, de nosso cres-
cimento e de encontro com a verdade.
Suporte do diálogo entre o autor e o leitor é o texto, que não é mero
instrumento de informação, mas uma 'reserva de sentidos9 para a vida de ontem
e de hoje. O leitor pode ir à descoberta do sentido através de vários caminhos,
cujos nomes indicam outras tantas pistas que o estudo da Bíblia está percor-
rendo: hermenêutica, exegética, histórica e literária, estrutural, popular, antro-
pológica, sociológica. . .
Estes métodos de leitura da Bíblia são ilustrados, de forma clara e
didática, por Johan Konings. A "leitura sociológica9, de grande interesse no
Brasil, mas também motivo de polêmicas e divergências entre os biblistas, é
apresentada num artigo especial por Airton José da Silva, que abre pistas para
uma necessária discussão crítica.
Uma série de textos mais breves, mas não menos interessantes, conclui
o caderno. Wolfgang Gruen aborda a questão da 'leitura libertadora também
de textos não-libertadores da Bíblia", abordando com coragem o fato de que a
Bíblia apresenta textos "vingativos, discriminatórios, injustos*, nada libertado-
res... E propondo uma leitura fiel ao espírito da Palavra de Deus, encarnada
na pessoa de Jesus Cristo Libertador.
José Luiz Gonzaga do Prado aborda outra questão de interpretação:
aquela que se revela em todo ato de traduzir a Bíblia.
Genilma Boehler, da Igreja metodista, aborda a questão da leitura femi-
nina da Bíblia: como ler a Bíblia <(com olhos de mulher". Completando a parti-
cipação ecumênica em nosso caderno, Western Clay Peixoto nos informa sobre
a leitura bíblica nas Igrejas evangélicas.
Finalmente, Carlos Mesters, com sua mão de mestre — não apenas
de exegese bíblica, mas de vida espiritual — partilha conosco suas "reflexões
sobre a mística que deve animar a leitura orante da Bíblia".
Como já notamos, nem todos os aspectos da leitura bíblica foram con-
siderados. Em particular, não foi analisado o tema da leitura da Bíblia na his-
tória da teologia e do Magistério das Igrejas, nem a interpretação da Bíblia pela
autoridade eclesiástica na Igreja católica.
Acreditamos, porém, que o caderno contém estímulos e pistas muito
ricos para um aprofundamento da leitura da Bíblia, que todo cristão e todo
católico deve procurar. Como dizia o Concílio Vaticano II: aCom veemência e
de modo peculiar exorta o Santo Sínodo a todos os fiéis cristãos... a que,
pela freqüente leitura das divinas Escrituras, aprendam a *eminente ciência de
Jesus Cristo'. 'Porquanto ignorar as Escrituras é ignorar Cristo' (S. Jerônimo)"
(DV 25).
Acreditamos também que o caderno será um subsídio particularmente
útil para a formação de agentes pastorais e mesmo de futuros presbíteros.

Alberto Antoniazzi
Wolfgang Gruen
Bíblia:
Palavra de Deus em palavras humanas

Talvez o título predisponha o leitor para um tratado sobre a Inspi-


ração na Sagrada Escritura, mas não é esta a nossa pretensão. Nosso artigo é
muito simples; aborda o problema da inspiração, é verdade, mas nem chega
a usar a Palavra. Nosso caminho é o seguinte: iniciamos com uma distinção
entre Bíblia e Palavra de Deus para mostrar a importância tanto da Palavra de
Deus quanto do texto bíblico. No item 2 tratamos da origem do texto e suas
dificuldades por causa da distância no tempo e no espaço, por causa das línguas
e dos diversos modos de narrar as coisas, ou seja, por causa dos gêneros literá-
rios. A finalidade da Bíblia de informar sobre a ação de Deus no passado e
revelar os sinais de sua presença libertadora hoje é o assunto do item 3. Em
seguida, tratamos de como descobrir no texto bíblico a Palavra de Deus para
o hoje de nossa vida. Abordamos depois o modo de levar a sério o texto tanto
por parte do estudioso quanto por parte do leitor comum. E terminamos mos-
trando as características básicas dessas 2 leituras.

1. DISTINÇÃO ENTRE BÍBLIA E PALAVRA DE DEUS

1.1. Bíblia

Bíblia é o plural da palavra " livro" em grego. Bíblia significa, portanto,


livros. A Bíblia é o conjunto de 73 livros que, na fé, consideramos inspirados
por Deus para transmitir aos homens sua Palavra. Eles são a norma da fé e
da vida do povo de Deus. A Bíblia é portanto um texto escrito. É a expressão
da fé do povo de Deus do Antigo e do Novo Testamento. Na Bíblia temos a
história do povo de Deus e a história de Deus na vida do povo. Deus se revela
através dos acontecimentos da vida do povo. A Bíblia narra estes aconteci-
mentos à luz da fé. A Bíblia é assim "o resultado da percepção que os homens
tiveram da presença e da ação de Deus na sua vida e h i s t ó r i a " É o meio de
comunicação entre Deus e os homens". "É a cristalização em forma ç y i i n <fe
diálogo que Deus manteve com Israel e com os cristãos através de Jesus Crino*.1
A Bíblia está encerrada nos 73 livros que a compõem. Não se pode
aceitar mais nenhum outro livro como sendo bíblico, canónico, por mais edifi-
cante que seja. Só estes 73 livros é que formam o cânon bíblico2, a lista ém
livros inspirados. Só eles é que são normativos para a fé, mais nenhum ontxo.
Só eles é que são Bíblia, embora Deus continue falando na vida das comunidades.
É através do seu Espírito que Deus continua falando hoje nos acon-
tecimentos da vida do povo. "O Espírito de Deus está presente no texto reve-
lado, na vida do povo e na interpretação que o povo das comunidades faz da
Bíblia".3

1.2, A Palavra de Deus


Quando dizemos que a Bíblia é Palavra de Deus, estamos professando
a nossa fé em Deus como autor da Bíblia, embora saibamos que a Bíblia não
caiu do céu, mas foi escrita por homens inspirados por Deus.4
É por meio de homens e de maneira humana que Deus nos fala (cf.
D.V. 12: Hb 1,1). A Bíblia não apenas contém a Palavra de Deus, mas é
Palavra de Deus (D.V. 24), porém a Palavra de Deus vai além da Bíblia.
A Bíblia não fecha a boca de Deus, pelo contrário, é luz que nos ajuda a dis-
cernir, hoje, nos acontecimentos de nossa vida, a Palavra de Deus para nós.
Para descobrirmos no texto da Bíblia a Palavra de Deus para nós
hoje precisamos da força do Espírito Santo (cf. D.V. 12). Sem a presença ilu-
minadora do mesmo Espírito que inspirou os profetas e os escritores sagrados,
a Bíblia se torna para nós letra morta, um livro arqueológico, informando sobce
a vida de fé de um povo do passado, sem conseqüências para nos. E o Espánto
que dá vida, que faz da Bíblia Palavra de Deus para o povo de ontem c paia
o povo de hoje.
"A Palavra de Deus não é apenas uma informação religiosa, ama in-
formação sobre Deus; é Deus mesmo se autocomunicando, mais ainda se aofin-
revelando; ( . . . ) é Deus nos buscando".5
1. STORNIOLO, I. A comunicação entre Deus e os homens. Em: Vida Pestoni. jwlin tmum át
1981, ano XXII-99, p. 2-3.
2. Cânon significa a lista dos livros inspirados por Deus. A palavra canoa " r i f l f « — M U U ,
norma. "A Igreja, fixando o cânon bíblico, 'aceita como medida' ou 'critério' para 'saedír* am 'daaaaãa^ a
Palavra de Deus, um número determinado de livros bíblicos. Esses livros e nada mais qot d e s r*»*—» ac-
usados para discernir a Palavra de Deus. A Bíblia contém a Revelação de Deus e é * FALAI • de DOB,
mas ao mesmo tempo é, enquanto tal, critério de discernimento da Palavra Tira de Dcob <pr se icvdt
ao longo de todos os tempos". RICHARD, P. Leitura popular da Bíblia na Aaafoica Latina — r h . i i. •
da libertação. Em: AAVV. Leitura popular da Bíblia — Por uma hermenêutica da libertação aa 1 wmi • • Lanna
Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana (RIBLA), Petrópolis/São Paclo/Sio Lnfddo. Ycars/Meto-
dista/Sinodal, n. 1, 1988, p. 13.
3. Dom Luís Fernandes diz que "o mesmo Espírito que escreveu o frrro tagaâo estx ao UM^ÍU
deles (os integrantes das comunidades), para dizer-lhes a legítima interpretação* (cf. FÊENANDES. Dom L
Como se faz uma Comunidade Eclesial de Base. Petrópolis, Vozes, 1985, p. 64). Geado par VELEZ, N. A lei-
tura bíblica nas Comunidades Eclesiais de Base. Em: RIBLA, op. cit., p. 45.
4. "Antes de mais nada, sabei isto: que nenhuma profecia da EMJÍIIIE» resnlta de uaaa interpretação
particular, pois que a profecia jamais veio por vontade humana, mas o* hoaaes, Í^II liduj peio Espírito
Santo, falaram da parte de. Deus" (2Pd 1,20-21).
5. Cf. SCHÕKEL, L.A.—SICRE DIAZ, J.L. Profetas, Omemtmio — 1, Madri, Edícknes Cristiandad,
1980, p. 17-18.
Assim percebemos que sem a predisposição da fé, sem a abertura do
coração, provocada pelo Espírito de Deus, não podemos acolher a Bíblia como
Palavra de Deus, não podemos acolher o Deus que nos busca.
Para concluirmos este item vamos deixar a própria Bíblia descrever um
pouco a Palavra de Deus.
SI 33(32),4.6: "Pois a Palavra de Javé é reta, e sua obra toda é ver-
dade. ( . . . ) O céu foi feito com a Palavra de Javé, e seu exército
com o sopro de sua boca".
Is 40,8: "Seca-se a erva, murcha-se a flor, mas a Palavra do nosso
Deus subsiste para sempre".
Is 55,10-11: "Como a chuva e a neve descem do céu e para lá não
voltam sem terem regado a terra, tornando-a fecunda e fazendo-a ger-
minar, dando semente ao semeador e pão ao que come, tal ocorre com
a palavra que sai da minha boca: ela não torna a mim sem fruto;
antes, ela cumpre a minha vontade e assegura o êxito da missão para
a qual a enviei".
Hb 4,12-13: "Pois a Palavra de Deus é viva, eficaz e mais penetrante
do que qualquer espada de dois gumes; penetra até dividir alma e
espírito, junturas e medulas. Ela julga as disposições e as intenções
do coração. E não há criatura oculta à sua presença. Tudo está nu
e descoberto a seus olhos. É a ela que devemos prestar contas".

1.3. A Bíblia é Palavra de Deus na palavra humana

A Palavra de Deus foi transmitida primeiramente de forma oral. Esta


transmissão oral da Palavra de Deus durou muito tempo; e mesmo depois que
começou a tomar forma escrita, essa transmissão continuou tanto na comunidade
quanto na família.
A história do Povo de Deus começou com Abraão por volta do ano
1800 aC. As Escrituras Sagradas começaram a surgir no tempo de Salomão, mais
de 800 anos depois. Antes, pouca coisa tinha sido escrita.
A Palavra de Deus é fruto da inspiração divina e do esforço humano
na construção da vida, na luta pela justiça, na tentativa de se organizar como
povo fraterno e solidário.
O povo acreditava que Deus fazia história com ele, que Deus cami-
nhava à sua frente. Estas palavras que iam surgindo das lembranças da vida de
Deus com seu povo e da vida do povo com seu Deus iam sendo vistas como
luz na caminhada do povo. Palavras e acontecimentos eram lembrados e aos
poucos registrados. As ações litúrgicas eram os momentos fortes das recordações
dos gestos de Deus em favor do seu povo. Isto que era expressão de fé, era
também novo alimento para a vida de fé do povo. Nos momentos difíceis de
sua história o povo se lembrava que Deus era companheiro de caminhada e
que lhes era um socorro infalível. Suplicava a Deus o perdão de suas falam
e implorava-lhe a presença salvadora. Nos momentos de alegria eles cantavam
as glórias de seu Deus. Tudo isso ia, aos poucos, sendo registrado e ia se
tornando alimento para a fé do povo que se esforçava para ser fiel a seu Deus.
Que a Bíblia surge da vida e da caminhada do povo de Deus é muito
fácil de entender. Difícil é entender que estes livros são Palavra de Deus. Carios
Mesters explica isso direitinho primeiro citando um lavrador; depois citando o
profeta Isaías.
O lavrador dizia: "Deus fala misturado nas coisas: os olhos percebem
as coisas, mas a fé enxerga Deus que nos fala". Depois Mesters cita aquele texto
de Is 55,10-11 que transcrevemos acima. Em seguida vem uma explicação:
"A ação do Espírito de Deus pode ser comparada com a chuva: cai do alto,
penetra no chão e acorda a semente que produz a planta. A planta é fruto, ao
mesmo tempo, da chuva e do chão, do céu e da terra. A Bíblia é fruto, ao
mesmo tempo, da ação gratuita de Deus e do esforço suado dos homens. É a
palavra do Deus do povo e do povo de Deus".
Lembra ainda que o mesmo Espírito de Deus, que inspirou o povo a
escrever a Bíblia, também hoje continua a atuar em nós, quando lemos a Bíblia,
nos ajudando a ouvir e a praticar a Palavra de Deus. Só podemos descobrir a
Palavra de Deus na Bíblia, seu sentido para nós, com a ajuda do Espírito de
Deus. 6
A Palavra de Deus se torna palavra humana, ou em outros termos:
a palavra humana transmite a Palavra de Deus. Isto acontece no mistério da
fé do povo, que, em sua formação, organização, libertação, necessita de seu
Deus, e do Deus que, no seu amor, gratuitamente busca seu povo.
Há uma espécie de encarnação da Palavra de Deus. Enquanto a palavra
do homem ganha estatuto de Palavra de Deus, ela se torna forte, mas enquanto
a Palavra de Deus é veiculada pela palavra do homem, ela se enfraquece diante
das conseqüências da encarnação, porque assume todas as contingências e debi-
lidades, todas as limitações e fraquezas da realidade humana.
Deus não transforma o homem para ser veículo de sua Palavra, mas
o respeita em todos os sentidos na sua liberdade e capacidade. O profeta não
repete o que Deus dita, mas elabora o que Deus inspira. A Palavra de Deus
vem de fora, mas é fecundada no interior do profeta (cf. Ez 2,9—3,4). Ela
sai como Palavra de Deus, matizada, porém, pelas contingências humanas.7

2. O TEXTO BÍBLICO: ORIGEM E DIFICULDADES


A Bíblia foi escrita em parceria: Deus e os homens. E foi escrita de
um modo bastante diferente dos livros que conhecemos. Hoje um escritor se
6. Cf. MESTERS, C. Flor sem defesa — uma explicação da Bíblia a partir do povo. freuópolk, Voaes.
1983, p. 14.
7. Cf. SCHOKEL, L.A.—SICRE DIAZ, J.L., op. cit., p. 18-21. P»n todo a t e opátnlo sobre a
distinção entre a Bíblia e a Palavra de Deus, cf. MANNUCCI, V. Biblis, PéUvr* ie Dem — Cmno de
introdução à Sagrada Escritura. São Paulo, Paulinas, 1986, p. 196-209.
assenta, escreve, assina e coloca a data. Dentro de poucos meses, ou alguns
anos, o livro está pronto. A editora se incumbe de reproduzi-lo em quantidade.
A Bíblia foi feita em mutirão na lentidão dos séculos. Um único
autor esteve presente do início ao fim e continua presente na leitura daqueles
que querem descobrir na Bíblia a Palavra de Deus: O Espírito Santo. Os outros
autores só a conheceram em parte.
Vinte a quarenta séculos distante de nós no tempo, 12.000 km dis-
tante de nós no espaço, a Bíblia foi escrita por diversos tipos de pessoas de
todas as classes sociais, de lugares e tempos os mais diversos. Também de
cultura, maneira de pensar e formação bem diversificada; e de situação social,
econômica e política bastante variada. Também a língua não foi uma só. Em
hebraico escreveu-se a maior parte do Antigo Testamento. Em aramaico um
pouco; e ainda em grego culto. O Novo Testamento em grego popular.
Desta terra fértil brota a pergunta: É tão simples assim ler a Bíblia
com respeito e seriedade?
Além da diversidade de ambiente, cultura, situação econômica, social
e política, ainda devemos nos lembrar da variedade de modos de escrever que
os estudiosos chamam de gêneros literários. Na Bíblia temos histórias, estórias,
apocalipses, cartas, hinos, discursos, novelas, parábolas etc.
Como entender os evangelhos, se os considerássemos apenas como
uma narrativa histórica e não como uma forma literária para veicular a mensa-
gem salvífica? Como explicar a sobrevivência de Jonas no ventre da baleia, se
não considerássemos seu livro como uma novela através da qual o autor nos
transmite uma mensagem? 8

2.1. Mais uma palavrinha sobre o texto

Não temos o texto original; temos cópias nas línguas originais. E as


técnicas de escrever antigamente eram precárias. O hebraico não tinha vogais
como não tem hoje o hebraico moderno. Não havia sinais de pontuação; não
se usavam títulos orientadores; não se distinguia a prosa do verso, nem havia
sinais de recitação.9
Recompor assim o texto original não é fácil! Fazemos uso de tradu-
ções. Mas cada língua traduz a experiência de um povo. Colocada por escrito,
a experiência do povo bíblico perdeu um pouco o colorido vivo. A escrita pode
esfriar as emoções. Traduzida para uma outra língua pode haver até um conge-
lamento do fato. A experiência pode ser destituída de seus sentimentos originais.
Como vencer esta distância e aproximar a Bíblia de nossa realidade?
Há pouco fizemos uma pergunta: ,É tão simples assim ler a Bíblia com
respeito e seriedade? Agora trazemos uma outra pergunta parecida, mas muito
8. Cf. STORNIOLO, I., típ. cit., p. 3.
9. Cf. SCHOKEL, L.A.—SICRE DIAZ, J.L., op. cit., p. 26.
mais importante. Como descobrir no texto bíblico a Palavra de Deus para o
hoje de nossa vida?
Lúcia Weiler aponta um princípio hermenêutico importante: "a dialé-
tica da distância e da proximidade. O texto escrito só produz seu verdadeiro
sentido como Palavra do Deus vivo no encontro e na tensão destes dois pólos
históricos. Uma releitura fiel e engajada da Bíblia, a partir do Espírito que a
anima (cf. Jo 14,26), faz explodir o potencial criador da Palavra de Deus, fonte
geradora da verdadeira vida".10

3. A FINALIDADE DA BÍBLIA

2Tm 3,16: "Toda escritura divinamente inspirada é útil para ensinar,


para repreender, para corrigir, para educar na justiça, a fim de que o homem
de Deus seja perfeito e capacitado para toda boa obra".
A Bíblia traz um conteúdo variadíssimo. É a história de Deus na his-
tória do povo. O que não se encontra na história do povo? Carlos Mesters
compara a Bíblia a um álbum de fotografias da família de Deus, com tudo que
se possa imaginar dentro de uma família, que é de Deus, mas, também, profun-
damente humana e conturbada.
Mais importante é saber que a Bíblia não conta estas coisas pelo
simples gosto de escrever. Ela vai mostrando o dedo de Deus na história dos
homens. Ela vai esclarecendo como Deus escreve certo por linhas tortas. Ela
vai iluminando a caminhada da comunidade cristã na busca de uma transforma-
ção de estruturas desumanas e anticristãs. Ela vai revelando a Palavra de Deus
na vida do seu povo.
Aqui está a finalidade da Bíblia: revelar a Palavra de Deus na vida
do povo. "A Bíblia deve ser usada como critério de discernimento e meio de
comunicação da presença e revelação atual de Deus".11 Ela vai mostrando um
Deus que busca incessantemente o seu povo e ao mesmo tempo o povo que
tropeçando aqui, acertando acolá, está à procura do seus Deus.12
O povo, quando lê a Bíblia, não quer parar na Bíblia, mas quer usá-la
como ponte para chegar até à vida. A finalidade da Bíblia é a vida.
A Bíblia, no fundo, tem dupla finalidade:
1) Informar sobre as ações e ensinamentos de Deus no passado. É o estudo
da letra e da história. É a procura do sentido em si. É a busca do funda-
mento da nossa fé. — Isso é importante. O próprio Lucas se preocupa em
transmitir a solidez dos ensinamentos recebidos (Lc 1,4). Pedro quer que
saibamos a razão da nossa esperança (lPd 3,15). Com este estudo se ocupam
os exegetas e fazem uso das ciências históricas e sociais.

10. Cf. WEILER, L. A mulher na Bíblia. Em: Vida Pastoral, jan.-fev. de 1990 — ano XXXI-150, p. 2.
11. Cf. RICHARD, P., op. cit.f p. 11.
12. Cf. MESTERS, C., op. citp. 18.

S £R
1" Serv. ~ ...
2) A segunda finalidade é, a partir daquelas informações, revelar os sinais da
presença e da ação libertadora de Deus na vida do povo de hoje.
Condição fundamental aqui é a fé na ressurreição, é o engajamento
na vida da comunidade, é a vivência do Espírito de Deus. Só ele é capaz de
revelar o sentido-para-nós do texto bíblico. Só ele é capaz de revelar através
daquele texto antigo a Palavra de Deus para nós hoje.13

4. COMO DESCOBRIR NO TEXTO BÍBLICO A PALAVRA DE DEUS


PARA O HOJE DE NOSSA VIDA

Aqui passamos a palavra para Carlos Mesters: "Na interpretação da


Bíblia devem ser levados em conta 3 fatores misturados entre si: pré-texto da
realidade, con-texto da comunidade e o texto da Bíblia. Estimulado pelos pro-
blemas da realidade (pré-texto), o povo busca uma luz na Bíblia (texto), que
é lida e aprofundada dentro da comunidade (con-texto). O pré-texto e o con-texto
determinam o "lugar" de onde se lê e interpreta o texto*.14

4.1. Leitura que parte da realidade — pré-texto

Para levar a sério a Bíblia e descobrir nela a Palavra de Deus, a pri-


meira coisa a fazer é procurar ver no texto a realidade do povo que o gerou.
Isto se faz com a ajuda das ciências do social.
É só assim que se pode fazer o confronto indispensável para a vivência
da Palavra, confronto entre a problemática de hoje e a de ontem. A proble-
mática de ontem da Bíblia é revelada através do texto bíblico. A problemática
de hoje se percebe com um olhar crítico sobre a realidade do leitor e sua
comunidade. É sempre com os pés no chão da vida que devemos ler a Bíblia.
Ler a Bíblia sem considerar a realidade da vida da comunidade é como ir a um
museu e admirar as múmias do passado. Nossa! como este povo tinha fé! Como
seu Deus era Forte! Mas este povo somos nós. Aquele Deus é o nosso Deus
que se revelou em Jesus Cristo e continua atuando através do seu Espírito.
Deus escreveu a Bíblia apenas para iluminar a vida do povo.
A Bíblia só se torna Palavra de Deus para a comunidade quando ela
incide sobre a realidade de hoje. Que realidade vivemos boje no Brasil? Que
realidade nossa comunidade está vivendo? Que fatos mais marcantes estamos
presenciando? Sabemos que o texto bíblico foi luz para a realidade de ontem
do povo da Bíblia. Como este texto vai iluminar a realidade de hoje? Como
este texto bíblico vai se tornar para nós hoje Palavra de Deus?

13. Cf. MESTERS, C., op. cit., p. 64-67.


14. Cf. MESTERS, C., op. cit.} p. 42.
4.2. Leitura feita em comunidade — con-texto

A Bíblia é fruto do encontro de Deus que busca seu povo e deste


povo à procura do seu Deus. O povo procura seu Deus na luta da vida, na
busca da libertação, no esforço de superar suas crises à luz da fé. Na celebração
desta vida suada e esperançosa através das orações e cultos.
O ponto fundamental, o marco de referência, o pano de fundo da
leitura, aquilo que garante a caminhada é o gesto mais marcante de Deus em
favor de seu povo. Para o povo da Antiga Aliança, é a libertação do Egito
e Aliança do Sinai. Para o povo da Nova Aliança, é a cruz de Cristo e sua
ressurreição.
A Bíblia nasceu ao longo da caminhada do povo através de sua vivên-
cia comunitária à luz da fé no Deus que salva. É só à luz desta mesma fé, deste
contexto comunitário de vida que ela pode ser entendida. Se precisamos apelar
para estudos sérios para descobrirmos o que Deus falou ontem, mais importante
ainda é apelarmos para o Espírito Santo para descobrirmos o que Deus quer
nos falar hoje, através da comunidade de fé.
Qual o sentido que a Igreja, a comunidade de fé dá hoje à Bíblia,
ou através de qual con-texto devemos nos aproximar hoje da Bíblia?
Tendo como base fundamental, como atmosfera de vida, a vida, morte
e ressurreição do Cristo libertador, a Igreja Universal mostra seu modo de
pensar hoje através do Concílio Vaticano II e da palavra dos papas. A Igreja
na América Latina, através dos encontros de Medellín e de Puebla. A Igreja
do Brasil mostra seu modo de pensar através dos documentos da CNBB, natu-
ralmente em sintonia com a revelação bíblica, com o Concílio Vaticano II e
com as conferências latino-americanas. E na Igreja particular, respeitando todos
estes antecedentes, temos as diretrizes pastorais, frutos de assembléias diocesa-
nas que revelam a caminhada concreta do povo. É à luz deste ambiente con-
creto de vida comunitária que vamos ler a Bíblia.15

4.3. Leitura que leva a sério o texto

O texto da Bíblia é de suma importância, embora o mais importante


seja a vida.
Não se deve ler o texto para um puro conhecimento intelectual, mas
como instrumento de interpretação dos fatos da vida. Em outras palavras, o
mais importante na Bíblia é saber qual a mensagem que Deus quer nos trans-
mitir; qual é a vontade de Deus para nós aqui e agora. Só que esta mensagem
não aparece em estado puro numa frase isolada, mas dentro de toda a narração.
Portanto, para entender bem a mensagem é preciso ler o texto inteiro, o antes
e o depois do texto, ou seja, o seu contexto literário. Esta história de ler a
15. Cf. MESTERS, C., op. cit., p. 29.
Bíblia como galinha, bicando aqui e ali, não é a melhor maneira de dar atenção
à Palavra de Deus; não é o melhor modo de buscar a mensagem, de saber qual
é a vontade de Deus, transmitida através do texto.
Assim, para interpretar a Bíblia, o ponto de partida é o texto que
não foi escrito a esmo, mas a partir de uma realidade concreta do povo e dentro
de um con-texto preciso de fé.
Carlos Mesters nos ensina que é preciso ler as linhas, onde as coisas
são ditas mais abertamente, e também as entrelinhas, onde as coisas são ditas
de modo mais velado. Se não é fácil descobrir o que esta mais claro nas linhas,
como descobrir o que está oculto nas entrelinhas?
É claro que para levar a sério o texto o estudioso precisa de diversos
instrumentos de leitura.16

4.3.1. Como o estudioso leva a sério o texto?


O estudioso ou especialista em Sagrada Escritura é chamado de exe-
geta. Exegeta significa intérprete. O intérprete da Bíblia é aquele que vai usar
todos os recursos para uma correta interpretação do texto bíblico. Que recursos
são estes, ou quais os instrumentos de trabalho, ou o caminho que o exegeta
percorre para interpretar o texto?
Antes de mais nada ele precisa estudar as línguas bíblicas: hebraico,
aramaico e grego da Septuaginta (tradução grega da Bíblia hebraica) para o
Antigo Testamento; e o grego do Novo Testamento.
O estudioso deve usar o texto na língua original. Mas deste texto
existem diversas edições com pequenas variações. O especialista deve, através
da ciência chamada Crítica Textual, descobrir o texto que se aproxima mais
do original.
Estabelecido o texto, ele procura fazer uma tradução própria, a mais
fiel possível. Para isto ele precisa de dicionários, gramáticas, concordâncias etc.
Depois disso ele vai fazer uso de diversas ciências bíblicas ou que
dizem respeito à Bíblia. Exemplos:
— Estudos históricos — história geral antiga relacionada com os países
por onde o povo bíblico passou e com os povos com os quais o povo da Bíblia
conviveu como o povo egípcio, assírio, babilónico, persa, grego e romano.
— Estudos arqueológicos, que comprovam usos, costumes e fatos nar-
rados na Bíblia.
— As ciências do social, para descobrir a situação em que vivia o
povo quanto à vida econômica, social, religiosa e política.
— A hermenêutica, que é o estudo dos recursos para a interpretação.
16. Cf. MESTERS, C., op. citp. 27.
— As ciências literárias, para entender a articulação do texto, a im-
portância do uso deste ou daquele vocabulário, a repetição de frases; paca des-
cobrir os diversos gêneros literários. Aqui dentro dos estudos literários ele pode
estudar a história do texto, sua formação, sua redação, sua tradição. Tudo isto
é de capital importância para a correta interpretação da Bíblia. Naturalmente
o exegeta, ao estudar um texto, serve-se dos inúmeros comentários já existentes
sobre aquele assunto. É assim que o exegeta vai descobrir na Bíblia a Palavra
de Deus, sua mensagem para o povo daquele tempo.
O último trabalho do estudioso é a tentativa de atualização do texto;
procurar relacionar o texto com a nossa realidade e descobrir a mensagem de
Deus para o hoje da nossa vida.

4.3.2. Como o leitor comum pode levar a sério o texto?

O povo, além de não dispor de base e de instrumentos de trabalho,


muitas vezes tem até mesmo dificuldade de ler a própria língua. E então?
A Bíblia está fechada para ele? Não, pois o povo tem uma chave própria
para abrir a porta da Bíblia.
Primeiro ele conta com uma sede imensa da Palavra de Deus. Para
ele é importante o que o texto está dizendo hoje. Sua preocupação básica não
é o estudo do texto em si, mas a vida; não é o conhecimento, mas o alimento.
Existe uma certa co-naturalidade entre a vida e fé do povo da Bíblia e a vida
e fé do povo simples de hoje. Isso é muito importante.
Além da sede da Palavra de Deus, o povo possui, em razão de sua
fé simples e acolhedora, o Espírito que iluminou os escritores sagrados. Sem
o Espírito de Deus, o mais erudito dos estudiosos descobre tudo na Bíblia,
menos a vida.
Além desses pressupostos básicos, o leitor comum deve servir-se pri-
meiramente de uma leitura calma, atenta e repetida do texto. Deve ler as linhas
e tentar ler também as entrelinhas. Deve fazer perguntas sobre o texto: Quais
são os personagens? O que dizem? O que fazem? Qual sua função no texto?
Quais as referências históricas e geográficas? Qual a parte mais importante?
Quais são as palavras-chave? etc.
Deve aproveitar os recursos que a própria Bíblia traz como introdução
geral a cada livro, as notas ao pé da página, as referências a outros textos afins.
Deve esclarecer com a ajuda de dicionário ou com os colegas do grupo as
expressões e palavras difíceis. Deve valorizar as mensagens que vão aparecendo
no grupo, na certeza de que o Espírito de Deus está presente no meio deles.
Através de sua experiência de vida, através da sede da Palavra, através
de sua abertura para Deus, através dos poucos recursos científicos de que
dispõe, mas sobretudo através do Espírito de Deus, o povo podeauninhaiL^.
tranqüilo. Sast.3 fe,

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Mas o bom mesmo, para o povo e para o exegeta, seria a integração
dos dois tipos de leitura, a do povo e a do especialista. Pois o que falta no
povo sobra no estudioso, e o que, às vezes, falta no estudioso sobra no povo.

4.3.3. Leitura erudita e leitura popular da Bíblia

Como vimos, há dois modos de se aproximar da Sagrada Escritura:


um modo erudito e outro popular. Não devemos nos entusiasmar demais cano-
nizando um ou outro, mas tentar celebrar um casamento entre os dois.
Para ficar claro, vamos expor rapidamente as características básicas,
de cada um.
Uma leitura erudita — aproxima-se dos fatos bíblicos através dos
estudos, através da inteligência, com os diversos recursos da ciência, buscando
o sentido em si, o sentido histórico literal do texto, o sentido que tinha no
passado. Lê a Bíblia com os óculos da ciência. Usa um método lógico coerente,
reflexivo, objetivo, consistente. Preocupa-se com a doutrina.
É claro que o pressuposto básico para o exegeta é sua fé e a ilumina-
ção do Espírito. E hoje, cada vez mais, principalmente na América Latina, os
exegetas trabalham com o pé no chão da história, sentindo a dor do povo e
buscando na Bíblia sua luz libertadora.
Uma leitura popular — o povo se aproxima dos fatos bíblicos através
da co-naturalidade da sua vida sofrida com a vida do povo da Bíblia.
A preocupação do povo não é interpretar a Bíblia, mas interpretar a
vida com a ajuda da Bíblia. Assim, o povo procura ser fiel em primeiro lugar
ao sentido que ele descobre dentro do texto para a sua vida. Sua preocupação
é a Bíblia vivida; é o sentido-para-nós que está no texto. O povo lê a Bíblia
com os olhos da vida, buscando luz para esta vida sofrida caracterizada pela
luta em prol da justiça numa busca de libertação. Sem muitos recursos cien-
tíficos, sua chave de interpretação é o Espírito, o mesmo Espírito que escreveu
a Bíblia. O povo percebe com clareza que a importância da Bíblia não está
nela mesma, mas na vida. A Bíblia é fruto da vida do povo e ao mesmo tempo
alimento para a vida deste povo.
O "método" que o povo usa é o da livre associação de idéias e
imagens. Parece pouco consistente aos olhos do erudito; tem um outro tipo
de raciocínio e de coerência. O povo está preocupado com a vida, com o modo
correto de agir, com o que o Espírito diz no presente, com a Palavra de Deus,
com o alimento para a sua vida.17

17. Para este item final servimo-nos de afirmações espalhadas ao longo de todo o livro de Carlos
Mesters: Flor sem defesa... já citado diversas vezes.
CONCLUSÃO

Fizemos o esforço de mostrar no nosso artigo, com uma linguagem


bastante simples, que a Bíblia é Palavra de Deus em palavras humanas. A meta
é a transmissão da mensagem divina, mas é no nosso modo de falar que Deus
se expressa. Isto significa que o texto bíblico se reveste da maior importância
e por isso precisa ser levado a sério. É só com respeito e seriedade, com espí-
rito de fé e na luz do Espírito Santo que o texto nos alimenta como Palavra
de Deus, como luz na caminhada. Deve ser lido a partir da nossa realidade e
à luz da fé da comunidade. Há uma leitura erudita e outra popular que, se
um dia se casassem, nos proporcionariam uma compreensão bem mais profunda
da Palavra de Deus.

Emanuel Messias de Oliveira


Rua 10, n. 46 — Ilha dos Araújos
35020 Governador Valadares, MG
Leitura espontânea da Bíblia
a partir dos fatos da vida

Quando se fala em leitura espontânea da Bíblia corre-se o risco de


se pensar naquele espontaneísmo do "sorteio" de um texto bíblico para satis-
fazer necessidades pessoais, para encontrar resposta para uma situação individual
ou mesmo grupai. Com a hipótese de ainda ser decepcionado, de encontrar
textos até violentos e contrários do que se está buscando.
Outra maneira espontânea de ler a Bíblia é a aplicação imediata de
versículos conhecidos ou decorados a situações atuais, para conforto espiritual,
para edificação e até mesmo para moralizar.
Tudo isto revela, com certeza, uma busca, uma boa vontade, um
desejo de orientar a vida com as palavras bonitas e confortantes da Bíblia, mas
sem contextualizar os fatos, sem ligá-los à luta pela libertação, à realidade so-
cioeconómica e política da atualidade.
Outra coisa é a leitura ou a memória espontânea dos textos bíblicos,
feita em comunidade, a partir da realidade que se está vivendo, buscando nas
experiências do passado do povo uma luz que vem clarear o presente.
É a Palavra enraizada na história do povo de hoje, falada por ele
sem, às vezes, nem mesmo saber que aquilo está na Bíblia, textualmente. É a
Palavra brotando cheia de vida, se alastrando e produzindo frutos de libertação.
Para falar da leitura ou da memória espontânea da Bíblia, vou situar
uma experiência que vem florescendo há algum tempo: pequena cidade do Vale
do Jequitinhonha, Itinga está situada na região mais sacrificada e mais seca deste
Vale. Povo sugado pelo sistema opressor. Aqui a fome não é estranha para
quase ninguém. Povo sofrido, envelhecido antes do tempo, acostumado a todo
tipo de precisão.
A partir da reflexão e da vivência nas CEBs, de cara com a necessi-
dade, um pequeno grupo começa a se inquietar com a situação. O desafio foge
às possibilidades, mas alguma coisa tem que ser feita diante deste grito pela
sobrevivência. Surge a idéia de uma horta comunitária. Conseguimos o terreno
e a irrigação com ajuda de irmãos italianos. O povo se reuniu, discutiu a idéia,
fez o estatuto, começou a preparar a terra. Trinta e duas famílias plantaram
juntas e a experiência deu certo. Nas assembléias mensais, juntamente com a
discussão dos problemas, com a avaliação dos trabalhos, com a explicação do
valor nutritivo dos legumes e verduras colhidos na horta, brota, espontânea,
a memória da Palavra de Deus: "Quando o povo saiu do Egito, tinha também
o estatuto para orientar a vida na nova terra. Nós aqui fez o nosso: os dez
mandamentos da horta. O importante agora é o compromisso de cumprir o
que decidimos juntos" (Joaquim).

"Agora a gente tá vendo de perto como foi a vida dos primeiros


cristãos. Era tudo em comum e ninguém passava necessidade. Quando é que
beterraba e cenoura foi comida de pobre aqui em Itinga? A gente sai de lá
com a bacia cheia. Dá pra repartir com os vizinhos e até para vender" (Maria).
Passado um ano, chegando o tempo do novo plantio, o grupo se reúne
outra vez, agora acrescido. São quase cinqüenta famílias que se apresentam na
hora de repartir os canteiros. É apenas 1,2 ha de terra para plantar. Divididas
e numeradas as quadras, todos aguardam a hora do sorteio. Antes dele, a turma
se assenta no chão para recordar o estatuto do ano passado e ver algumas coisas
que precisam ser modificadas, como ficou claro na avaliação feita depois da
colheita passada.
É aí que D. Ana, 68 anos, do meio do grupo, lembra uma parte da
Bíblia que, segundo ela, está muito viva no coração desde que entrou ali no
terreno da horta: "é aquela parte que fala da multiplicação dos pães".
Tentei levar em frente, relembrando com o grupo o fato da Bíblia.
Foi fácil fazer a memória de todos os detalhes: cinco pães, dois peixes, muita
gente para ser alimentada, a organização em grupos, a bênção, a partilha, a
fartura.
Recomposto o fato, fiz a pergunta de ligação com o hoje: O que tem
a ver isto com o que estamos fazendo aqui agora? Aí foi difícil controlar a
palavra:
"É que o povo tava passando fome que nem nós aqui" (Totó).
"É que Jesus teve dó do povo precisado. Os companheiros dele
acharam que não podiam fazer nada. Pensaram em mandar o povo embora,
cada um pro seu canto" (Enedina).
"Lá Jesus perguntou o que eles tinha para apresentar. Arranjaram 5
pães e 2 peixinhos. Parecia que isso não ia adiantar nada para tanta gente.
E hoje, se ele perguntar pra nós o que nós tem pra apresentar?" (Maria).
"Nós temos nossos braços pra trabalhar e nossa vontade de união"
(Dió).
"Nós tem também a experiência do ano passado. Alguma coisa não
deu certo, mas já estamos vendo um jeito de consertar" (Marluce).
"Nós temos nossa Associação que não tinha no ano passado. A horta
foi a semente da Associação. Lá na Bíblia tava também aquela reunião em
grupo pra poder repartir o pão. Nosso pão aqui é folha e legume de todo jeito
que a gente comeu. Eu não conhecia nabo nem rabanete. Nem a metade da-
quelas folhas que nós plantou" (Ulisses).
"Lá sobrou e aqui também. Deu até pra gente sair vendendo mais
barato na rua. Aqui era só no sábado que a gente via alguma verdura na feira.
Agora é todo dia" (Rosa).
"Deu até pra gente pensar em fazer uma granja comunitária, que
está quase pronta, pra aproveitar as folhas que sobravam" (Eva).
Depois desta reflexão, que foi bem mais longe, combinamos todos,
os detalhes para a celebração do plantio, que seria no dia P de maio, com pas-
seata e tudo. Antes da turma se dispersar para procurar onde ficava a sua
quadra sorteada, D. Ana faz esta oração:
"Senhor Jesus, nós queremos agradecer a horta do ano passado. Temos
motivo para confiar que a semente que vamos plantar vai ser abençoada e vai
multiplicar outra vez. É o pão que vai continuar matando a fome de tanta gente.
Vai fortificar nossas crianças e fazer crescer a nossa Associação".
Este é um pequeno exemplo. Haveria muitos outros para contar. O fato
é que, quando o grupo vai caminhando na organização comunitária à luz da
Palavra de Deus, a ligação da Bíblia e da vida, da fé e da luta brota espon-
tânea, vibrante e profunda, carregada de espiritualidade e de compromisso.

A reflexão nas CEBs fez nascer a horta que gerou a Associação que
reanimou outra vez a horta que fez vir à memória a palavra geradora da orga-
nização e do pão que gerou a celebração que realimentou as CEBs.
A falta de pontuação é proposital. A gente não sabe o que foi pri-
meiro. O certo é que estas coisas se supõem. Geram e são geradas, outra vez,,
sempre com mais intensidade de novidade.

Julieta Amaral da Costa


Leitura bíblica
através de símbolos e imagens

"E o verbo de Deus se fez carne e armou tenda entre nós" (Jo 1,14).
O método de leitura da Bíblia com um olho no texto e outro na vida
está ganhando novos adornos. Os responsáveis primeiros por este processo são
os pobres, com especial destaque para os considerados "analfabetos". Mesmo
não sabendo decifrar a grafia, os pobres fazem uma leitura da Bíblia de forma
bastante singular. Se tivéssemos um gravador em cada uma das reuniões de
estudo da Bíblia que fazemos, com certeza escreveríamos com facilidade um
livro. E seria um livro para ninguém botar defeito! Na alma do nosso povo
sofrido está escondida a Palavra de Deus. Os pobres sabem ler a Bíblia de
modo simples e compreensível a todos. Eles fazem uma leitura que os intelectuais
não fazem. Os analfabetos quebram a Bíblia em miúdo. Duas coisas muito
simples têm possibilitado este tipo de leitura: a imagem e o símbolo. A imagem
e o símbolo são como chaves de leitura para entender a vida na Bíblia e a
Bíblia na vida. Para exemplificar o que estamos afirmando vejamos como um
ninho de galinha possibilitou uma profunda reflexão sobre os desafios e facili-
dades encontrados na leitura popular da Bíblia.

O NINHO QUE A BÍBLIA CHOCA

Havia chegado o dia de avaliação da caminhada da Escolinha Bíblica


de Senhora Santana. O José arranjou uma caixa grande de papelão. No fundo
da caixa ele colocou um ninho de galinha com uma Bíblia dentro. O grupo fez
uma caminhada pelo salão e José ia na frente com aquela caixa. Depois ele
colocou a caixa no meio do salão e todos chegaram perto para ver o que tinha
lá dentro. Em seguida, Tereza colocou esta pergunta no quadro: a O que tem
facilitado a compreensão da Bíblia em nossos dias?" E cada um quis dar a
sua opinião:
• "É porque a Bíblia deixou de ser privilégio dos intelectuais".
• "É porque a Bíblia agora está no meio do povo".
• "É porque devolveram a Bíblia para o seu ninho, que é no meio
do povo sofredor".
• "O ninho da galinha é feito de lixo, de resto de palha, de folhas
secas... A Bíblia também nasceu de um 'lixo' do povo que só servia para ser
escravo no Egito. E é da história triste do povo israelita que a Palavra de Deus
encontrou calor humano. Deus aninhou-se no meio de todo este sofrimento.
E deste aninhamento nasceu a Bíblia".
• "A Bíblia hoje está também aninhando no meio do povo sofredor.
E como ela está tirando muitos filhotes! Uns filhotinhos que já começam a
incomodar muita gente. E na medida em que surgem as incomodações, come-
çam a surgir em vários lugares alguns gambás, cachorros-do-mato e cuícas que-
rendo destruir o ninho da galinha. Eles procuram quebrar os ovos da galinha.
Só que não vão dar conta de quebrar todos os ovos. Existem muitas galinhas
chocadeiras espalhadas por todos os lados. A vantagem da galinha caipira é que
em todo fundo de quintal tem uma chocando. O trabalho de Bíblia nunca pode
ser feito na base de galinha de granja. A chocadeira de granja tem que ser
iluminada. Ela é cheia de frescuragem. Tira muitos pintinhos de uma só vez.
No entanto, nascem pintinhos bobos que precisam de muita comida, água cor-
rente e estufa para não morrerem todos. Estes pintinhos não sabem se virar.
Se o nosso trabalho bíblico seguir a linha da galinha caipira, nós iremos muito
longe. Sem frescuragem, sem mordomia e sem ficar exigindo muita coisa!"

• "Quando a Bíblia chega no meio do povo que passa fome, sem


terra, sem moradia, sem saúde e que sofre injustiças... Então podemos dizer
com certeza que aí a Bíblia chegou no seu ninho. E aí ela vai chocar alguma
coisa. Um novo vai nascer. É a Boa-Nova, a Boa Notícia anunciada por Jesus
Cristo em Lc 4,18-19: 'O Espírito do Senhor esta sobre mim, porque ele me
ungiu para evangelizar os pobres; enviou-me para anunciar aos aprisionados a
libertação, aos cegos a recuperação da vista, para pôr em liberdade os oprimidos,
e para anunciar um ano de graça do Senhor'
• "Desmancharam o ninho da galinha quando tiraram a Bíblia das
mãos do povo e a colocaram nas mãos dos intelectuais. Os intelectuais são
maravilhosos! Eles ajudam muito! Ai de nós se não fossem eles! Mas os inte-
lectuais não sabem fazer ninho e nem chocam. Todos são voltados para fazer
chocadeiras elétricas. E a Bíblia de chocadeira não serve para o povo".
• "A função de todo animador de escolinha bíblica é de ajudar a
fazer este aninhamento da Bíblia no meio do povo. Animador de comunidade
que não aninha a Bíblia não é digno deste nome".
A outra chave de leitura bíblica a que nos referimos anteriormente,
a imagem, é o eixo principal do "Cursinho popular da Bíblia" que o CEBI-Minas
Gerais publicou em co-edição com o CEBI-Nacional. Este curso consta de 5
etapas de estudo sobre a caminhada do povo de Deus da Bíblia de ontem e da
de hoje. As etapas são: 1) A libertação do povo e a conquista da terra; 2) Reis
e profetas; 3) O exílio e a reorganização do povo; 4) Jesus de Nazaré; 5) As
primeiras comunidades. A dinâmica de cada reunião baseia-se em comentar ima-
gens da vida de hoje presentes em cartazes e ligar a reflexão feita ao texto
da Bíblia.
Assim como apresentamos o resultado de uma reunião realizada com
a ajuda de um símbolo, queremos registrar o que pensou e refletiu um grupo
de mulheres vítimas da prostituição, em uma das muitas reuniões que elas têm
feito ajudadas pelos cartazes acima referidos.

"EU TAMBÉM ESTOU GRÁVIDA"

A reunião daquele dia teve início com um momento de oração. Fize-


mos memória das reflexões anteriores e partimos para a segunda etapa do "Cur-
sinho popular da Bíblia". Como imagem apresentamos um cartaz com o dese-
nho de uma mulher grávida. Neste cartaz havia duas bolas: uma menor, dentro
da barriga da mulher, com a palavra vida; outra maior, sobre sua cabeça, com
a palavra Javé. Desta última saíam raios.
Num primeiro golpe de vista sobre o cartaz, uma das mulheres, Cidão,
foi logo dizendo: "Isto é a bola da gravidez. Acho que eu também estou
grávida!" E a Rosana acrescentou: Os riscos são o sol que também significa
vida. A mulher está feliz e por isso ela está pedindo a Deus para ser feliz na
gravidez". Dona Dalila, uma senhora de mais idade, foi logo confirmando a
fala da Rosana: "Quando a gente está grávida, a gente fica tão devota". E aí
Cidão retomou a palavra: "Quando fiquei grávida pela primeira vez, fiquei
muito triste, pois não sabia o que ia acontecer com meu filho. A vida da gente
é muito sofrida! Mas meu filho disse que quando ele crescer ele vai me tirar
da zona". Neste momento perguntei pelo que estava escrito na "bola da gra-
videz". E foi quando a Maria percebeu que havia duas bolas iguais, uma na
barriga e outra em cima da cabeça da mulher. Foi fácil descobrir a palavra
"Vida" na barriga da mulher. Por outro lado custou muito descobrir a palavra
presente na outra bola. Foi preciso escrever as letras sobre a mão, soletrar. . .
Até que alguém exclamou: "É Ave! Vem de Ave Maria que rezamos e que
também estava grávida". Esta constatação não nos convenceu. Havia outra letra
para ser reconhecida. Depois de algum tempo descobrimos o nome Javé. E aí
perguntei pelo significado deste nome. Maria, que havia participado da Se-
mana Bíblica sobre as mulheres, logo respondeu: "Javé é uma mulher que
lutou!" Talvez ela estivesse se lembrando de Jael, presente no cântico de Dé-
bora, ou até mesmo de Débora, que lutou contra os poderosos, tendo Javé a
sua frente. De qualquer forma alguma coisa ficou na sua memória. Para tirar
sua dúvida, Cidão logo interrogou: "Javé é homem ou mulher?" E aí confirmei
a intuição das duas dizendo que Javé é homem e mulher. E foi quando fiquei
encantado com o silogismo de Cidão: "As bolas são iguais. Na bola da barriga
da mulher está escrito vida. A mulher está de braços abertos agradecendo a
Deus pela vida. Quem dá a vida é Deus. Então Javé só pode ser Deus!"
E Rosana confirmou: "Deus é vida e a vida está sendo gerada na barriga da
mulher". Neste instante, Dalila questionou: "Nós sempre pedimos as coisas
para Deus. Será que nós sempre agradecemos a Ele também pela vida?" E Maria
Aparecida afirmou: "Quando eu vou deitar sempre fico uns instantes em silên-
cio, penso no que eu fiz de errado e peço perdão a Deus. E também não esqueço
de agradecer a Deus pelas coisas boas. Apesar que elas são muito poucas...
Mas Deus é vida!" Neste momento perguntei pelos nomes das mulheres escritos
no cartaz. Cidão logo questionou: "Esta Ana é a mesma da Semana Bíblica?"
A Agente de Pastoral, Edilene, falou um pouco sobre a vida de Rose a partir
do filme que ela havia visto: "Uma Terra para Rose". Ela também falou um
pouco sobre a sindicalista Margarida Alves e Ana Dias. Depois de ouvir aten-
tamente estas explicações, Cidão concluiu: "Estas mulheres fizeram parte da
vida de Deus!" E Maria Aparecida acrescentou: "E elas estão de braços abertos
agradecendo a Deus pela vida de todas as mulheres que lutam".
Depois de todas estas considerações cantamos a música "Baião das
comunidades" e lemos lSm 2,1-10, que nos relata o cântico que Ana elevou
a Javé por ter tido a graça de gerar um filho. Ao ouvir o texto tínhamos
uma pergunta: "Por quais motivos a profetisa Ana fez uma prece de louvor
ao Senhor?" Rosana foi a primeira a dar a sua opinião: "Ana era uma mulher
muito pobre. Eia pediu um filho a Deus. Deus deu o filho para ela. E ela
então rezou: 4Não há santo, como tu és santo!' Deus deu por misericórdia.
Margarida, Rose lutaram para ver se conseguiriam alguma coisa. E os poderosos
vieram e massacraram o povo delas. E eles até riram delas, assim como o sa-
cerdote riu de Ana. A polícia matou Rose, mas Deus ouviu o clamor dela.
Deus continuou na luta do povo delas". Nesse momento Adélia resolveu dar
a sua opinião: "Ana teve um filho. As mulheres da zona criam os seus filhos
melhor que muitas mulheres. Ha mulheres que deixam de comer para alimentar
os seus filhos. Mas também há muito sofrimento. Ana deu seu filho para Deus.
Os nossos filhos ficam com os nossos filhos. É covardia misturada com amor".
Perguntei se, mesmo com tanto sofrimento, as mulheres vítimas da prostituição
podem louvar a Deus. E Dalila respondeu, enfática: "Mesmo com fome temos
que louvar a Deus, pois Ele sempre nos ouve". E aí todas as mulheres falaram
quase ao mesmo tempo sobre os motivos que temos para louvar: "Pela vida,
alimento, saúde, paz, amigos, filhos, natureza, inimigos, Pastoral da mulher margi-
nalizada, creche para os nossos filhos, escolinha de alfabetização das mulheres. . . "
A reunião terminou com um momento de louvor a Deus pelo que
foi dito anteriormente.

IMAGEM: O FATO DA VIDA

A imagem possibilita um "ad-mirar" de quem está na realidade e


olhando para ela. E é neste momento que começa a decodificação da realidade.
O povo simples e analfabeto reconstitui através da imagem a situação vivida
por eles mesmos ou por outras pessoas. O cartaz sempre é explorado ao máximo.
Todas as personagens ganham vida. Quando o desenho sugere uma realidade que
não é do seu "habitat", o povo inventa falas ou situações. A leitura do cartaz
é feita de forma comunitária. É uma leitura, às vezes, cômica e, é claro, com-
prometida com a luta pela transformação da sociedade. A ligação da fé com
a vida é condição básica deste tipo de leitura. A experiência tem demonstrado
que as imagens substituem com mais vigor os tradicionais "fatos da vida".
Quando os desenhos são bem entendidos, a leitura do texto da Bíblia parece até
que fica mais fácil. O povo simples ouve com atenção o texto da Bíblia e o
guarda com facilidade na memória. O mesmo acontece no momento de ligar o
texto refletido com a realidade percebida anteriormente. Este casamento Bíblia-
vida faz com que as pessoas se comprometam ainda mais com a transformação
das estruturas injustas da sociedade. E para não perder de vista este desafio, os
cartazes são afixados na parede. E em cada início de reunião se faz um "grande
mutirão da memória".

CONCLUINDO: DOIS OVOS GORARAM

A leitura bíblica, seja ela feita através de símbolos ou de imagens,


está nos ajudando a fazer com que a Bíblia esteja cada vez mais nas mãos do
povo. No entanto, toda caminhada precisa sempre ser avaliada. O surgimento
da munher nova e do homem novo depende de cada um de nós. A BíbHa é
um bom instrumento para conquistar a sociedade nova. A história que se segue
vai nos mostrar como uma comunidade avaliou a sua caminhada bíblica com a
ajuda de um símbolo. Vejamos o que aconteceu.
Foi no dia de revisão dos grupos de estudo bíblico da Comunidade
de Santo Antônio. A equipe de animação levou como símbolo uma cestinha
cheia de ovos e a colocou no meio da sala. Cada grupo pegou um ovo. No
final sobraram dois ovos na cesta. E foi quando o negócio esquentou. E ninguém
parava mais de falar. Disse o Antônio: "Olha, gente, não foram criados, de
uma só vez, dez grupos de reflexão bíblica aqui na comunidade?! Mas vocês
não perceberam que aqui na sala só tem oito grupos. Os outros dois grupos
não conseguiram nem fazer a primeira reunião. Os outros dois grupos não
chocaram. Goraram e eles estão bem representados nos dois ovos que sobraram"
Aí a Maria esquentou de vez: "Por que será que o ovo da galinha gora?" Cada
um quis dar a sua opinião:
• "É porque a galinha não esquentou bem os ovos".
• "E porque a galinha descuidou e deixou os ovos esfriar".
• "É porque a galinha ficou muito tempo fora do ninho".
• "É porque a galinha quis chocar muitos ovos de uma só vez".
• "É ninho mal feito".
• "É ovo gerado sem o galo".
• "É ninho feito em cima da terra".
• "É inexperiência da galinha".
Nesta altura já estavam praticamente entendidos os motivos que fize-
ram com que os outros dois grupos não dessem certo. Gorou tudo! Aí o comen-
tário foi bem mais prático ainda: ; ! c
• "Nestes dois grupos que goraram, ficou claro que faltou mesmo
foi a presença, o calor humano do animador. Aliás tem ou não tem animador
frio?"
• "O bom animador às vezes tem que, no bom sentido, chocar a
comunidade. Ele tem que ser presença".
• "Vocês não se lembram do povo de Moisés? Quando Moisés subiu
ao monte Sinai pra rezar e ficou lá por toda a vida. E o que aconteceu com
o povo? Não inventaram o bezerro de ouro e se corromperam? Foi ou não foi
a ausência dele no grupo? Quer dizer, assim como a galinha, se ela ficar muito
tempo fora do ninho, os ovos não tiram. A mesma coisa é nós. O bom ani-
mador de grupo é aquele qme sabe chocar a comunidade. Ele nunca vive açam-
barcando tudo. Pega pouca coisa, mas leva em frente".
• "Se a galinha não namora o galo, o ovo não tira. Se a gente
também não namorar bem a Bíblia, até mesmo casar com ela, nossa leitura vai
virar ovo de granja. O ovo de granja é muito bonitinho, mas é sem vida".
• "O bom animador não deixa a comunidade esfriar. Ele está sempre
mexendo, virando ela pra lá pra cá. Tem sempre coisa nova! E este calor é
adquirido através da leitura da Bíblia todos os dias. O cristão que não lê a
Bíblia é um cara frio. Como ele poderá esquentar os outros? Quem não tem
contato com a Bíblia não pode ser chamado de animador".
Nesse momento Dona Aparecida pegou uma Bíblia velha, colocou-a
perto da cesta e disse: "Olha, gente, eu também toda a vida fui muito fria
do ponto de vista religioso. Todos aqui sabem disto. O que me esquentou pra
valer foi o dia que comecei a participar dos círculos Bíblicos, uns oito anos atrás.
No começo era muito esquisito, mas depois eu tomei gosto pela leitura da
Bíblia. Hoje eu sou até animadora! Sinceramente o que mantém um animador
de grupo aceso e quente na comunidade é a Bíblia. Quem se mete a trabalhar
em comunidade sem Bíblia é a mesma coisa que dar varada n'água. Não vai
adiantar. Sem Bíblia gora tudo! A Bíblia quando chega no coração da pessoa
ela fica desassossegada. E tudo o que ela fizer será bem-sucedido".

Jacir de Freitas Faria


Caixa Postal 704
35160 Ipatinga, MG

José Batista da Silva


Caixa Postal 838
36001 Juiz de Fora, MG
Leitura bíblica
e leitura da nossa história

Urna experiência de formação


de agentes populares

A reflexão que pretendemos fazer baseia-se numa experiência que já


conta com cinco anos de existência.
Nosso grupo do CEBI de Uberlândia, Minas Gerais, em fins de 1984,
foi convidado pela Diocese a orientar e coordenar estudo bíblico. Na realidade,
na assembléia diocesana, tinha-se proposto um curso de teologia, para lideran-
ças cristãs, com a finalidade de prepará-las melhor para sua vivência religiosa e
para as suas atividades apostólicas. De nossa parte argumentamos sobre a difi-
culdade de se montar um estudo sistemático de teologia, e sobre a fundamental
importância de iniciarmos um estudo bíblico mais aprofundado do que aqueles
permitidos em encontros eventuais de fins de semana. Propusemos um curso
bíblico de grande duração é com caráter de continuidade.
A nossa contraproposta foi aceita.
Começamos logo a organizar o nosso trabalho. Após várias reuniões
tínhamos delineado o caráter do estudo que estava nas nossas expectativas.
Estabelecemos alguns princípios fundamentais:
1) O curso destinava-se a pessoas engajadas na vida das comunidades,
com o objetivo de capacitá-las para serem agentes bíblicos junto às mesmas.
2) A matrícula se faria por equipe. Cada comunidade indicaria uma
equipe de ao menos três pessoas e no máximo cinco. Essa regra espelhava uma
das nossas linhas metodológicas: estudo em comunidade, quer no ato de se
efetuar o curso, quer nas tarefas propostas para a semana, quer no trabalho
posterior (veja n. 3).
3) As equipes deveriam se comprometer a repassar o curso nas comu-
nidades de origem, trazendo depois para nós o resultado do seu trabalho. Visá-
vamos com isso: aprofundar a aprendizagem, pois a melhor maneira de aprender
é esforçar-se por ensinar, multiplicar os agentes bíblicos e levar as equipes a
experimentarem concretamente sua capacidade.
4) O curso, no ato de realizar-se, teria como regras metodológicas
fundamentais:
4.1) ser proposto e realizado sob coordenação, também ele, de uma equipe:
a dos membros do CEBI, com disponibilidade de tempo nas segundas-
feiras, à noite, mas sob a responsabilidade da totalidade do nosso grupo;
4.2) ser baseado na leitura direta de textos bíblicos de tal maneira que se levasse
à aprendizagem de como ler a Bíblia;
4.3) ser concebido não apenas como atividade intelectual, mas como contato
de fé com a Bíblia, o que implicava momentos de oração em cada encontro
e momentos celebrativos mais ricos, algumas vezes, ao longo da duração
do curso;
4.4) ser provocador de participação efetiva de cada equipe que se matriculasse
e de cada participante, através da produção de textos, cartazes, encenações
etc., de acordo com o estudo realizado.1
Em 1985, durante os meses de março a junho, e de agosto a novem-
bro, lemos o Evangelho de São Marcos. O relatório desse estudo saiu publicado
no número 32 de Por Trás da Palavra, CEBI, ano 6, 1986, p. 17-20.
Em 1986, em igual período de tempo, acabamos a leitura de São
Marcos, estudando os textos relativos à paixão, morte e ressurreição de Jesus,
e nos demos à leitura de textos dos Atos e das cartas paulinas relativas às
comunidades cristãs de Jerusalém, Antioquia e Corinto. O relatório das ativi-
dades saiu no número 39 de Por Trás ia Palavra, CEBI, ano 7, 1987, p. 27-30
Em 1987, ao longo de todo o ano, refletimos sobre os 15 primeiros
capítulos do Êxodo: a epopéia da Ebertaçio.
Em 1988, ao longo dos meses de marco a junho, refletimos sobre o
profetismo, lendo textos de Isaías e Miauâas. O relatório está no número 48
de Por Trás da Palavra, CEBI, ano 8, 1988, p. 14-16.
Em 1989, durante os meses de março a junho, lemos os onze primeiros
capítulos de Gênesis.
Õ trabalho desses anos levou-nos a estas conclusões: há um interesse
grande, por parte do povo, pela leitura bíblica; a matrícula por equipe foi um
verdadeiro achado; o método de leitura por nós adotado se mostrou eficiente;
no entanto, nós nos deveríamos preparar melhor para ele; a leitura bíblica não
é fim em si mesma, mas deve levar-nos, a todos nós, a descobrir a Deus que
se revela, não só na história do povo hebreu e das primeiras comunidades cristãs,
mas também através da história do nosso povo brasileiro.
1. Estas normas continuam a nos orientar ainda hoie, Há, no entanto, muitas deficiências na sua
execução, sobretudo no que di> respeito ao trabalho de equipe — também no nosso grupo de CEBI — e ao
repasse dos cursps nas comunidades. ^ -
Essas últimas conclusões desafiaram-nos. Sentimo-nos obrigados a inter-
romper o curso, no ano de 1990, ao menos na sua modalidade de extensivo,
a fim de dar-nos a um aprofundamento bíblico e ao estudo da formação do
povo brasileiro nas suas vertentes negras, indígenas e européias, em vista a uma
montagem de curso, no qual leitura bíblica e leitura da nossa história se inter-
penetrem. Ê o que estamos fazendo seriamente, durante este ano. Carlos Mesters
assessora-nos, tendo marcado três momentos preciosos de presença em nosso
meio: maio, setembro e novembro.
O grande desafio, em outros termos, situa-se no seguinte fato: estamos
percebendo que um dos grandes serviços que podemos prestar ao povo é aquele
de oferecer-lhe um espaço-tempo de compreensão da nossa história, como reve-
ladora do convite que Deus nos faz para construirmos uma convivência na
justiça e na fraternidade (a utopia do Reino) em oposição ao tipo de socie-
dade opressora (à maneira do Egito), que nos é imposta. A leitura da Bíblia,
unida à leitura religiosa da nossa história, se nos apresenta como instrumento
privilegiado de luta ideológica, na qual nos propomos inserir, a partir de uma
contribuição especificamente religiosa, mas historicamente comprometida, como
especificamente religiosa e historicamente comprometida foram a proposta e ati-
vidade de Jesus, na seqüela de toda a tradição bíblica.
À luz dessa experiência de cinco anos fomos nos convencendo, mais
e mais, de que a questão do método de leitura da Bíblia a partir da análise
das cümensões econômica, social, política e ideológica, nas quais o texto foi
produzido, nio é algo de acessório ou artificial. Ela vem de toda uma visão
a loficüu de como concebei a maneira de a Palavra de Deus tornar-se presente
e atnanie no processo da história do ser humano.

COMO NOS COMPORTAMOS NO CURSO

Nosso curso tem por base a leitura de um texto bíblico, previamente


escolhido, como respondendo às necessidades das comunidades. Esse texto é lido
inúmeras vezes, ao longo do ano ou do semestre. É lido de várias maneiras.
É inclusive lido de maneira celebrativa.
Há uma primeira leitura do texto na sua totalidade, por exemplo:
os onze primeiros capítulos do Gênesis ou os quinze primeiros capítulos do
Êxodo. Essa primeira leitura, feita em equipes nas segundas-feiras iniciais do
curso e, eventualmente, completada ao longo da semana por cada equipe, em
sua comunidade, não sofre interferência alguma por parte da equipe coordena-
dora. O resultado da compreensão dessa leitura é apresentado, em plenário,
quase sempre em forma de dramatização, cartazes, e, algumas vezes, jogral e
poesia. Evidencia essa apresentação a compreensão que os participantes do curso
já tinham do texto bíblico ou passaram a ter "espontaneamente pela leitura
feita.
A partir do resultado dessa leitura os participantes podem perceber as
perguntas que mais vêm à tona e os grandes problemas existenciais que estão
na base dçssas perguntas. A equipe coordenadora tem a tarefa de ajudar os
participantes a perceberem perguntas e problemas.
Do ponto de vista metodológico, essa primeira fase é fundamental
porque nos ^ leva, a nós, membros da equipe coordenadora, a certo conhecimento
dos participantes, como também de suas expectativas, de suas dificuldades, das
suas carências e até das suas curiosidades.
Numa segunda rodada de leitura, que vai cobrir boa parte das segun-
das-feiras, a equipe coordenadora, através de perguntas adequadas, procura dire-
cionar a releitura do texto, feita por etapas, com a finalidade de se detectarem
elementos esclarecedores da situação econômica, social, política e ideológica qüè,
por acaso, o texto possa revelar.
Esse é um momento cruciante. Cruciante por vários motivos:
1) Em geral, o leitor tradicional da Bíblia não costumava ver essas
realidades.
2) Quando as vê, julga-as irrelevantes.
3) Existe uma pressa para se chegar à interpretação religiosa. É aqui
que alguns recalcitram, não entendendo a importância do trabalho proposto, por
não perceberem a relação que isso possa ter com o questionamento religioso que
os motivou ao curso.
4) A descoberta de certos condicionamentos socioeconómicos, políticos
e ideológicos que envolvem a mensagem religiosa bíblica causam, à primeira
vista, espanto e até escândalo. Realmente alguns se angustiam.
Nossos cursos têm uma perseverança alta em torno dos 70%, em
relação à matrícula. Boa parte das desistências dão-se por motivo de doença,
troca de horário de trabalho, mudanças de bairro e perda de companhia para
as caminhadas da noite, falta ou dificuldade de transporte etc. As desistências
ideológicas, porém, se dão também. Alguns abandonam o curso porque dele
esperavam soluções imediatas dos questionamentos que tinham, ou conforto reli-
gioso (psicológico) que parece não chegar.
Temos estado atentos para não transformarmos essa etapa da desco-
berta das qMtro dimensões da concretitude histórica, na qual a Palavra de Deus
é ouvida, num estudo frio, sem dimensão religiosa. O desafio está justamente
em conciliar rigor científico, fugindo inclusive a estereótipos sociológicos, que
se repetem depois mecanicamente, com motivação religiosa fortemente vivenciadà.
Nenhum encontro, por mais que nele o conteúdo específico de estudo
seja a descoberta das estruturas socioeconómicas, políticas e ideológicas que cons-
tituem o horizonte humano, no qual a Palavra de Deus ecoou, pode reduzir-se
a uma atividade puramente intelectual. Trata-se de um encontro religioso. Os
cantos bonitos, engajados, bem ensaiados e cantados, os momentos de oração,
as trocas de notícias e informações entre as comunidades, criam um clima de
convivência marcadamente religiosa.
Após essa segunda rodada de leitura do texto, vem a terceira e última
fase, com a finalidade de evidenciar as grandes verdades religiosas que o texto
apresenta para nós, hoje. É muito interessante perceber como boa parte das
perguntas do início já foram "automaticamente" resolvidas ao longo das leituras
anteriores. Estavam ligadas à falta de compreensão da situação histórica, què
determinou a produção do texto ou influenciou nela. O contato direto e repe-
tido com uma totalidade significativa do texto bíblico, as referências a outros
textos bíblicos com os quais o texto lido se refere, a descoberta de que a
Palavra de Deus emerge na e da concretitude histórica do povo hebreu e das
primeiras comunidades cristãs, o confronto contínuo com a situação da vida
de fé nas comunidades cristãs e nas diversas situações da existência, como famí-
lia, trabalho, bairro etc., constituem elementos esclarecedores (interpretativos)
do significado da Palavra de Deus.

NOSSA REFLEXÃO FINAL (?)

É, antes de tudo, importante acentuar que o método da leitura bíblica,


a partir do trabalho de detectar as dimensões concretas da produção do texto,
não obedece a uma questão de moda, a uma mania socializante. Ler a Bíblia,
como, aliás, ler qualquer livro, é sempre um desafio de interpretação. Já não
cabe mais pensar que o texto é transparente, fale por si mesmo. Vale isso para
qualquer texto. A questão torna-se mais contundente quando o texto escrito já
é estratificação de uma fala viva anterior. Pensemos, por exemplo, nas pará-
bolas de Jesus. Vamos supor que elas tivessem sido escritas, tais quais Jesus
as pronunciou. Mesmo se isso fosse verdade, como traduzir no escrito o acento,
o ritmo, a modalidade, os silêncios significativos, os gestos que as acompanha-
vam, como acompanham qualquer fala? A fala se empobrece na hora em que
se solidifica no código da língua escrita. Ouvir Jesus, hoje, é uma tarefa de
interpretação. Sabemos muito bem disso quando se trata de um canto. Ele pode
ter interpretação diversa se mudarmos o cantor que se disponha a executá-lo:
mesmo texto, mesma melodia, mesma indicação de ritmo. Interpretações variadas.

Mas a questão da interpretação se coloca também para os textos que


foram gerados no próprio ato da escritura, sobretudo aqueles que retratam uma
outra cultura. O significado deles não repousa neles mesmos, fechados em si,
mas nas referências às situações históricas concretas que os tornaram necessários
ou os possibilitaram. Descobrir o significado dos textos é, inevitavelmente, refe-
renciá-los ao contexto existencial do qual brotaram.
Se agora nos colocarmos não do lado do texto, mas do leitor, a questão
se complica mais. A interpretação não repousa só nas condições objetivas mesmo
amplamente alargadas do texto, como acentuamos. Ela depende do ouvinte ou
do leitor do texto. Como ele pode entender um texto? Condição primeira é
que ele tenha uma pré-compreensão, uma espécie de alfabeto já sabido que lhe
permita a decodificação. Ora, esse alfabeto lhe é fornecido pela experiência de
vida. A vida concreta do ouvinte ou leitor, também da Palavra de Deus, esten-
de-se às mesmas dimensões a que aludimos. É aí, no jogo da economia, na
pressão do poder, nos choques e entrechoques dos relacionamentos sociais, é aí,
nos inúmeros símbolos culturais que a vida em sociedade lhe proporciona, que
ele encontra o alfabeto-base para compreensão de qualquer mensagem que queira
dizer respeito à vida.
Da parte do texto, e do ouvinte ou leitor do texto, não há como
fugir a esses condicionamentos econômicos, sociais, políticos e ideológicos. Aliás,
para nós cristãos, isso é não só questão epistemológica e metodológica; é tam-
bém questão teológica, pois professamos que o Verbo (palavra) se fez carne
(história).
Tiago Lara
Uberlândia, MG
A Bíblia lê a Bíblia

Sobre o fenômeno da releitura


dentro da Bíblia

Dentro da Bíblia existe um processo de releitura, tanto no Antigo


como no Novo Testamento. Grande parte da Bíblia é fruto deste processo. No
presente artigo vamos analisar como se fez a releitura na época do exílio e
logo depois do exílio. Temos dois objetivos: 1) descobrir, através da análise,
em que consiste a releitura; 2) verificar se a atual releitura ou interpretação
que fazemos da Bíblia está no prolongamento da tradição bíblica.1

1. A CAUSA DA RELEITURA: O DESAFIO DA NOVIDADE

Hoje como ontem, vivemos num contexto de desafio. Certezas antigas


estão sendo abaladas. Nunca em toda a história humana apareceu tanta novi-
dade, de uma só vez e em tão grande escala, como neste final de século. Como
ler e interpretar estes sinais dos tempos? A fé nos diz que Deus está presente
e atuante nesta novidade. Mas é uma presença tão nova e tão escondida que
não a percebemos nem a experimentamos por ora. Como ler e interpretar a
Bíblia, para que ela nos ajude a descobrir a palavra viva de Deus nesta novidade
e a transformá-la em Boa-Nova? Este é o desafio que leva à releitura, tanto
hoje como na época do cativeiro da Babilônia.
O cativeiro da Babilônia foi a maior crise da história do povo de
Deus. Perderam tudo o que, até aquele momento, tinha sido o apoio da sua fé:
a terra, cuja posse era a expressão da fidelidade de Deus às suas promessas;
o templo, onde Deus morava no meio de seu povo; os reis que, em nome de
Deus, guiavam o povo. Tudo foi destruído! A própria identidade do povo
quebrou como um prato que cai no chão. O povo ficou perdido: sem poder,
sem privilégio, sem rumo, disperso num imenso império. O cativeiro foi a ex-
1. No presente artigo utilizamos as idéias expostas na Conferência A Bíblia na Nova Evangelização,
pronunciada no encontro da FEBICAM (Federação Bíblica Católica Mundial), nõ dia 30 de junho de 1990,
e publicada nos Cadernos da CRB, n. 5.
periência da escuridão (Lm 3,2.6), do nada, do caos: trevas, águas, deserto
(Gn 1,2). Deus parecia ter rejeitado seu povo para sempre (Lm 3,43-45).
Nesta situação, já não havia mais palavra que pudesse dar uma espe-
rança ao povo. As antigas palavras dos profetas, transmitidas oralmente de
geração em geração, já não eram capazes de interpretar os acontecimentos. Pois
Deus parecia ter perdido o controle do mundo. O novo dono era a Babilônia,
que dizia: "Por todo sempre hei de ser senhora. Eu sou, e fora de mim não
há nada!" (Is 47,7.8). A ruptura com o passado parecia total, e o povo dizia:
"Acabou-se minha esperança que vinha de Deus" (Lm 3,18). "Já não sei mais
o que é ser feliz" (Lm 3,17). "Deus nos abandonou" (Is 49,14) . A filha de
Sião ficou viúva (Lm 1,1), perdeu o marido, ficou sem Deus (SI 22,2; Is 40,27).
A crise não era em torno de uma ou de outra verdade, mas em torno da raiz
de todas as verdades: Deus está ou não está no nosso meio? Por isso, as
palavras antigas sobre Deus ou vindas de Deus perderam a sua relevância e
sentido para a vida do povo. A lâmpada da palavra santa do passado continuava
pendurada na parede da vida, mas por falta de força já não acendia nem cla-
reava. O exílio apagou a luz!
Mas Deus não tinha abandonado seu povo (Lm 3,31). Ele continuava
presente com o mesmo amor de sempre (Is 49,15) , não so no povo, mas
também no mundo ao redor, onde estavam ocorrendo mudanças profundas com
á chegada de Ciro, rei dos persas (Is 45,1-7; 41,2-5). Ao povo, porém, falta-
vam os olhos para percebê-lo (Is 42,18-20; 43,8). Como ajudar o povo a ; des-
cobrir a Boa-Nova desta presença de Deus na vida? Presença tão nova e tão
escondida que era difícil percebê-la e aceitá-la (Is 45,15; 52,14—53,1).

2. A SEMENTE DA RELEITURA: A NOVA EXPERIÊNCIA DE DEUS

No meio daquele povo machucado e desintegrado do exílio viviam os


discípulos de Isaías. Mesmo sem os apoios tradicionais da fé, eles não desistiram
de crer. Á crise, em vez de levá-los à perda da fé, foi ocasião de purificação
e de renascimento* Eles redescobriram a novidade da presença escondida de
Deus e conseguiram transformá-la em Boa-Nova para o povo.
O alcance desta experiência de Deus ainda transparece nas imagens
que eles criaram. De um lado, imagens familiares que revelam um novo rela-
cionamento pessoal com Deus: Deus é pai (Is 63,16; 64,7); é mãe (Is 46,3;
49,15; 66,12-13); é padrinho2 (Is 41,14; 43,14; 44,6); é o marido do povo
(54,5; 62,5). De outro lado, imagens que revelam uma nova percepção da
presença e atuação de Deus na natureza, na história e na política: Deus é o
Criador do mundo (Is 40,28; 51,13; etc.) e do povo (Is 43,15; etc.); é
o Primeiro e o Ültimo (Is 41,4; 44,6; 48,2). Ele não quer o caos (Is 45,18-19),
mas o enfrenta e o vence com o poder criador da sua Palavra (Gn l,3s; Is 40,8).

2. A palavra padrinho traduz a palavra hebraica go'el, que tem várias traduções possíveis: vingador,
consolador (paíáclito), redentor, libertador, salvador, defensor, advogado. O go'el é o que alarga os laços
de família e socorre nos momentos difíceis (cf. Lv 25,23-55). > i
Os discípulos procuram comunicar esta experiência ao povo. Apontam
a natureza e dizem: "Levantem os olhos e vejam! Quem criou todas estas
estrelas?" (Is 40,26) Contam a história do êxodo (Is 43,16-17), mandam re-
frescar a memória (Is 43,26) e insistem: "Lembrem-se das coisas que aconte-
ceram muitos anos atrás!" (Is 46,9) Refletem sobre os fatos da política, ande
Ciro estava derrotando Nabucodonosor, e perguntam: "Quem é que faz tudo
isto?" (Is 41,2) E a resposta é sempre a mesma: "É Javé, o Deus do povo,
o nosso Deus!"
Assim, aos poucos, a natureza deixa de ser o santuário dos falsos
deuses; a história já não é mais decidida pelos opressores do povo; o mundo
da política já não é mais o domínio de Nabucodonosor. Por trás de tudo come-
çam â aparecer os traços do rosto de Javé, o Deus de sempre.
O mesmo Deus a quem chamam pai, mãe, padrinho, marido, e que
enche de sentido a vida pessoal de cada um, este mesmo Deus, agora, é redes-
coberto e experimentado como presente em toda parte, como criador do uni-
verso, como o primeiro e o último da história humana. Os discípulos descobrem,
assim, de maneira nova e surpreendente, que Javé, o Deus dos pais, é Javé,
Deus-conosco, em toda parte! Deus ultrapassou os limites do território, do
templo, da raça. É o Deus de todos!
Mas descobrem também que a casa preferida de Deus é e continua
sendo no meio do seu povo oprimido: "Eu estou contigo!" (Is 41,10); "Tu
tens muito valor para mim, eu te prezo, eu te amo. Troco tudo por ti!"
Us 43,4); "Deus não se encontra a não ser no meio de ti" (Is 45,14). É lá
no meio dos pobres que Ele se esconde (Is 45,15), e é lá que Ele deve ser
procurado (Is 55,6).
Diante desta presença tão vasta e avassaladora de Deus na vida, no
mundo, na história, na política e no próprio povo, os discípulos convocam o
povo e gritam: "Cegos, olhem! Surdos, ouçam!" (Is 42,18) O povo deve abrir
os olhos e acolher o seu Deus que vem avançando vitorioso: "Eis aqui o
Senhor Javé! Ele vem com poder!" (Is 40,9-10) Esta é a Boa-Nova que os
discípulos anunciam ao povo: "Teu Deus reina!" (Is 52,7). "Não estão vendo?"
(Is 43,19). E para que o povo descubra e assuma a sua nova missão, os discí-
pulos o ajudam a reler o passado e o presente e a entendê-los de um modo
diferente. Sem a experiência de Deus, a releitura não teria acontecido.

1. O CORAÇÃO DA RELEITURA: A NOVA LEITURA DO PASSADO

A nova experiência de Deus deu olhos novos para reler e entender


mdfooT o que Deus fez e ensinou no passado. De um lado, ajudou-os a perceber
m erros e as limitações, dentro dos quais eles mesmos tinham sido aprisionados
pda ideologia dominante do tempo dos reis. De outro lado, foi fonte de luz
e de criatividade para repensar, um por um, todos os valores do passado, liber-
tí4os das limitações e dos erros, adaptá-los à nova situação e, assim, abrir o
caminho para a redescoberta da própria identidade e missão na nova situação
do cativeiro e da diáspora.
Eis alguns exemplos de como os discípulos de Isaías releram ou rein-
terpretaram o passado na época do exílio. É aqui que tocamos o coração da
releitura:
1) O povo de Deus já não é uma raça, pois os estrangeiros podem
fazer parte dele (Is 56,3.6-7). 3
2) A terra será distribuída também aos estrangeiros residentes (Ez
47,21-23).
3) O templo já não será só para os judeus, mas para todos os povos
(Is 56,7).
4) O culto é universal e os estrangeiros dele participam (Is 56,6-7).
5) O sacerdócio já não é só de Levi ou de Sadoc, mas também dos
estrangeiros (Is 66,21). 4
6) O Reino já não é a monarquia de Davi, limitada a um território,
mas é o reino universal do próprio Deus que assumiu o seu poder e começou
a reinar (cf. Is 52,7; 43,15). 5
7) O Ungido (isto é, o messias) já não é o título do rei davídico,
mas sim de Ciro, o rei dos persas (Is 45,1). O povo inteiro recebe o mesmo
título (cf. SI 105,15). Ciro também é chamado pastor (Is 44,28).
8) A eleição já não é um privilégio, mas sim um serviço que o povo
de Deus deve prestar a todas as nações. O povo deve ser servo e cumprir uma
missão de justiça; ser "luz das nações" (Is 42,1-9; 41,8; 49,6).
9) A lei de Deus já não é o caminho exclusivo de Israel, mas é pro-
curada e observada por todos os povos que nela encontram luz para a sua
caminhada (Is 2,2-5; Zc 8,22-23). 6
10) A pureza já não vem da observância humana, mas sim da aceitação
divina, pois Deus aceita como puros os sacrifícios dos pagãos, "exatamente como
os filhos de Israel costumam trazer a oblação à casa de Javé em vasos puros"
(Is 66,20; cf. Ml 1,11).
11) Jerusalém já não é a capital de Judá, mas sim o centro do mundo,
para onde convergem todos os povos (Is 60,1-7).

3. Esta abertura representa uma volta às origens. O povo que saiu do Egito não era uma raça, mas
sim um grupo de tribos marginalizadas e oprimidas, unidas entre si, na luta pela libertação das garras do
faraóv Havia até egípcios no meio deles (Lv 24,10. Cf. Ex 12,38; Nm 11,4). Eles se constituíram povo
através da nova fé em Javé e através da nova organização social e comunitária que era exigência e expressão
desta fé em Javé.
4. Admitir a possibilidade de se abrir o sacerdócio para os estrangeiros era o mesmo ou até mais
que admitir hoje a possibilidade da ordenação sacerdotal para as mulheres.
5. Também aqui os discípulos de Isaías voltam às origens e retomam o ideal que vem desde o tempo
dos Juízes: "O Rei de Israel é Javé!" (cf. Jz 8,23; ISm 12,12; 8,7).
6. Zacarias diz que muitas nações virão até Jerusalém para "aplacar a face de Javé" (8,22). A face
de Javé é aplacada pela observância da lei.
Nestes poucos exemplos transparece a coragem e a abertura ecumênica
que os discípulos tiveram para repensar e reler o passado. Imitaram Deus.
Souberam ser criativos! Ultrapassaram as fronteiras do tradicional e, fiéis è
verdadeira tradição, sonharam com um mundo novo: "As coisas antigas já se
realizaram, agora vos anuncio estas coisas novas!" (Is 42,9) Queriam tudo
novo: novo céu e nova terra (Is 65,17), novo êxodo (Is 43,16-20; cf. 41,18-20),
nova aliança (Is 54,10; 55,3; 61,8), novo povo (Is 43,21), novo coração e novo
espírito (Ez 36,26), nova lei impressa no coração (Jr 31,33). "Eis que faço
novas todas as coisas!" (Ap 21,5).
Com esta visão do passado nascida da experiência de Deus, a novidade
do presente já podia ser acolhida como filha em casa, sem o risco de ser con-
denada em bloco, em nome da tradição, como estranha, bastarda e herética.
Mas nem todos eram capazes de acompanhar os discípulos nesta releitura do
passado, tão aberta para o novo que estava acontecendo. Todos viam os fatos,
mas nem todos percebiam o seu alcance (Is 42,20). Eram como cegos (Is
42,18-19). Fechavam-se no passado e, por isso, tornavam-se incapazes de perce-
ber a novidade de Deus acontecendo na história. Por esse motivo, os discípulos
chamavam a atenção e diziam: "Não fiqueis a lembrar coisas passadas, nem
vos preocupeis com acontecimentos antigos. Eis que vou fazer uma coisa nova.
Ela já vem despontando! Não estão vendo?" (Is 43,18-19). A novidade de
Deus que vinha chegando do futuro era mais antiga do que o passado defen-
dido pelos outros.
Fidelidade e liberdade caracterizam esta nova leitura do passado, pela
qual palavras-chave e valores centrais do passado são retomados em épocas
posteriores. É com o novo olhar, recebido da experiência de Deus e da nova
leitura do passado, que os discípulos começam a reler e tentam entender a
situação dolorosa que o povo estava vivendo naquele momento.

4. O RESULTADO DA RELEITURA: A NOVA LEITURA DA REALIDADE

A nova experiência de Deus deu olhos novos não só para reler o


passado, mas também para compreender melhor o sentido dos fatos dolorosos
do presente que questionavam a fé do povo. Vejamos:
Jerusalém estava destruída. Suas muralhas, desmanteladas, sem porta.
Cidade aberta, sem possibilidade de defesa. A terra já tinha sido distribuída
e estava parcialmente ocupada por outros (Jr 39,10). Outras pessoas ainda
já estavam fazendo culto no lugar do antigo templo (Jr 41,5). Os que tinham
voltado do exílio já não tinham rei. Não tinham poder político nem militar
para mudar esta situação. Eles eram apenas um pequeno grupo religioso, sem
nenhuma importância, perdido no império imenso dos persas. Culto, terra, cida-
de, rei. . . já não eram só deles! Querendo ou não, eles eram obrigados pelas
circunstâncias a conviver com os outros povos. Não havia outra alternativa
viável para poder sobreviver. Esta era a realidade: uma situação de cativeiro
e de diáspora. O que fazer: ignorá-la, combatê-la ou assumi-la?
Vista com os olhos antigos do tempo dos reis, esta situação era um
fracasso inaceitável. Daí que houve várias tentativas (fracassadas) para voltar
ao passado e restaurar a monarquia. Os discípulos, porém, esclarecidos peia
nova experiência de Deus e orientados pela nova leitura do passado, viram nesta
situação de cativeiro e de diáspora o início de uma nova etapa. Em vez de
lamentar o passado que perderam, saudaram o futuro que acabava de nascer
com tanta dor de parto. Não fizeram nenhum esforço para reeditar a monarquia
como queriam Zorobabel e Ageu, mas despertaram para a nova missão do povo
no mundo.
O vento da tempestade sacode a flor, espalha a sua semente e prepara,
assim, uma nova floração. Do mesmo modo, os fatos violentos do exílio sacudi-
ram o povo, espalharam-no como semente pelo mundo e o prepararam para
uma nova missão: ser luz das nações. Deus tirou a sua vinha do canteiro pro-
tegido da Palestina (Is 5,1-2; SI 80,9-17) e plantou-a no mundo para ser servo
de Deus para todos os povos (Is 41,8; 42,1.6; 49,6) e *fonte de bênção para
todas as famílias da terra" (Gn 12,3).
Deste modo, iluminada pela luz da experiência de Deus e pelas pro-
fecias do passado, a situação de cativeiro e de diáspora, que parecia um golpe
de morte no povo, tornou-se apelo de Deus e anúncio de esperança e vida
nova. Foi assim que Jesus fez a releitura de "Moisés e dos Profetas" no cami-
nho de Emaús. A Cruz, sinal de morte e motivo de descrença e desespero,
tornou-se sinal de vida e de ressurreição (cf. Lc 24,27).

5. A DINÂMICA DA RELEITURA: A LIÇÃO DO PASSADO

Tudo isto que vimos até agora mostra a profunda continuidade que
há entre o processo da releitura verificado na Bíblia e a interpretação que o
povo das Comunidades está fazendo da Bíblia. Além disso, permite tirar algumas
conclusões sobre o que vem a ser a releitura.
A releitura não é apenas um fenômeno literário que retoma e reinter-
preta algumas palavras do passado, mas tem a ver com o próprio processo de
crescimento e libertação do povo e com a sua caminhada através da história.
A releitura faz parte deste processo mais amplo, sem o qual não pode ser
compreendida adequadamente.
Com outras palavras, o desafio que provoca a releitura não é e nem
pode ser o desejo de restaurar o passado ou de repeti-lo como expressão de
nossa fidelidade a Deus, mas é a obrigação que temos de: 1) captar e experi-
mentar a novidade de Deus presente na história humana; 2) verbalizá-la e
transformá-la em Boa-Nova para o povo; 3) encarná-la e expressá-la em novas
formas de vida de tal maneira que, por meio dela, o povo possa perceber, nova-
mente, o seu alcance para a vida e despertar para a sua missão.
O processo de releitura é o esforço constante do povo de reler e de
reinterpretar o seu passado a fim de "escutar hoje a voz de Deus" (SI 95,7).
Em momentos de crise e de perda de rumo, o povo sempre volta às suas origens
para nelas descobrir luzes que lhe possam devolver a identidade, motivações
mais profundas que o ajudem a atravessar o deserto, elementos que contribuam
para elaborar um novo projeto de vida, e uma chave que lhe pdssa abrir o
futuro.
O passado é como uma fonte. O que a releitura pretende não é negar
o passado nem confundir os critérios do discernimento e as normas do com-
portamento, mas sim desobstruir a fonte, para que a sua água possa jorrar
novamente e matar a sede do povo. O passado, na sua originalidade, é sempre
novo e atual. É água cristalina da fonte. Tem uma riqueza inesgotável. É como
a velha árvore do fundo do quintal que nunca envelhece, pois, todo ano,
fornece frutos novos! Como já dissemos, a novidade de Deus que vem chegando
do futuro é mais antiga que o passado defendido pelos tradicionalistas.
Por isso, para entenda o processo da releitura dentro da Bíblia, não
basta estudar o fenômeno literário que aparece na superfície (pelo qual certas
palavras do passado são retomadas e reutilizadas em épocas posteriores). É ne-
cessário situar este fenômeno dentro do processo mais amplo da caminhada
do povo de Deus. Deste modo, a releitura que a própria Bíblia faz da Bíblia
revela a sua importância e atualidade, e se torna espelho do uso que o povo
das nossas comunidades está hoje da Bíblia.
Nova experiência de Deus, nova leitura do passado, nova consciência
da realidade: são os três pólos, inseparavelmente unidos entre si, que geraram
e continuam gerando a releitura das palavras sagradas que nos vêm do passado.

Carlos Mesters
CEBI
Rua Montes Claros, 214
30310 Belo Horizonte, MG
G que é ler?

Tem crescido — a constatação não é difícil de se fazer — o interesse


pela leitura da Bíblia. Este fenômeno está ocorrendo nas comunidades, nos
grupos de base. . . e pode ser constatado na criação das escolas bíblicas etc.
As razões e as demandas são as mais variadas. Não cabe aqui, agora, uma aná-
lise detalhada da questão. Contudo, ela contextualiza a importância deste tema:
O que é ler? Esta importância está no fato de se poder oferecer elementos,
perspectivas e horizontes para a "leitura" da Bíblia de modo que essa "leitura"
se constitua num adequado processo de apropriação do nascedouro e conse-
qüente processo de libertação. "Ler", situado no horizonte a ser delineado a
seguir, é pensar num processo que supera certos fechamentos e cegueiras que
impedem a realização dos milagres de uma boa leitura. O segredo de ler bem
liberta de fundamentalismos e de possíveis indiferenças ao verdadeiro sentido
daquilo que se lê.

A) A IMPORTÂNCIA DO "LER"

1. Ler é uma arte


Esta afirmação desveste toda pretensão de reduzir o "LER" a um
quadro de mera apropriação de vocábulos, expressões, sintaxe etc., num grau
maior ou menor de intimidade com a feição formal e gramatical da língua que
se fala ou na qual se lê.
Nesta direção, a arte de ler supõe, pelo menos teoricamente, situados
num mesmo estágio o conhecido como "letrado", "estudado", por ter um bom ou
razoável grau de escolaridade, e o simples alfabetizado. A arte de ler residirá,
propriamente, no manuseio dos elementos e articulações possíveis da inesgotável
"reserva de sentido" presente naquilo que se lê. Trata-se de fazer um percurso
com percepção em profundidade de horizontes de significação que ultrapassam
a compleição de sistema subjacente na estrutura material e formal da lfngna, e,
também, do gesto ou das circunstâncias. Ler, como arte, é beber na fonte c
conseguir saborear de modo que seja saciada a sede criando condições e forçai
para continuar o caminho.

2. A dimensão poética do ler

Ler é a realização de uma grande viagem que inclui perspectivas evo-


cativas e provocativas a partir daquilo que simplesmente é dito. A dimensão
poética do ler se configura na possibilidade de apreensão da riqueza de sentido
que se esconde e se situa para além dos limites da superfície do texto. É uma
possibilidade que dá ao leitor condições de fazer-se contemporâneo das circuns-
tâncias e dos personagens no nascedouro do texto mesmo. Esta contemporanei-
dade ultrapassa a simples informação, até metódica, sobre as circunstâncias e
personagens. Verifica-se uma inserção na dinâmica do dramático que caracteriza
o acontecimento de um fato, aquele que está na base de inspiração do texto
que está por nascer. O leitor se torna participante ativo, sentindo e vivendo
o acontecimento do fato. Daí a possibilidade de se entender e apropriar-se mais
adequadamente do sentido que se configurou no horizonte do próprio fato. Sem
esta poética não ocorrerá o adentramento nas articulações mesmas do fato, escri-
turado em texto, lugar de habitação, em multíplices matizes, do sentido que
faz ver com mais clareza o que é e apropriar-se do que se revela. Este processo
é riquíssimo e tem as variantes de possibilidades de apropriação e contempo-
raneidade quanto às inumeráveis e variadas posturas e regências de posiciona-
mentos do leitor. Um é mais prático. Outro, naturalmente, é menos. Conseqüen-
temente, aquele que é mais poético verá mais e se fará mais contemporâneo.
Esta dimensão de adentramento se compõe com aquela da volta e da busca
da própria contemporaneidade no tempo e no lugar em que se está. O mundo
da inserção do leitor será visto e lido diferentemente. Os olhos mudaram.
É possível ver outras coisas. Esta possibilidade gera a novidade de posturas e a
audácia transformadora de lidar, diferentemente, com a situação. Aqui nasce a
possibilidade de descoberta sapiencial de um caminho presente, mas escondido,
que só se desvela pela força do poético, embora tão aí, mas não visto e apro-
priado. A força do poético no ato de ler produz, simultaneamente, a possi-
bilidade de dois adentramentos e de suas contemporaneidades no que refete
às realidades do locutor e do leitor do texto. Em relação à realidade do locutor
(autor) verifica-se a experiência do encontro com o novo e o diferente qtie na
realidade do leitor adquire caráter de remodelação. A dimensão poética do ler
não se enquadra num simples procedimento científico e metódico. Este poderá
ter uma força na sua sustentação. O lugar, a inserção do leitor neste lugar, o
manuseio nas articulações da realidade e a relação com a vida mesmo escondem
grandes segredos da possibilidade de ler poeticamente.
3. Ler é uma experiência educativa de escutar

A experiência do "ler" constitui um canal de contato com o outro.


Este "outro" e a realidade, suas circunstâncias e aquele que se manifesta. Deste
modo, aquele que lê é chamado a estabelecer uma relação de escuta diante deste
"outro" que se manifesta.
Esta manipulação é uma fala de si enquanto apropriação do que se
é e de sua própria significação. Assim, ler enquanto escuta é a atitude simples
de saber que o "outro" diz de algo que se situa num horizonte diferente, numa
outra intimidade e perspectivas diferenciadas. Este aspecto, pois, ressalta a exis-
tência de uma riqueza não apropriada localizada nas circunstâncias e realidade
que estão falando àquele que lê. Este "outro" tem, pois, sempre algo a dizer,
que é novo para quem lê. Naturalmente, esta novidade se desvelará na medida
da apropriação funda que aquele que fala faz da própria significação, de sua
realidade e circunstâncias.
Poderá, assim, ocorrer quem fale sem novidade por não aprender a
fundo as articulações mais escondidas da própria significação.
A experiência de escuta da novidade que se situa no "outro" que
fala tem força pedagógica e educativa no processo de encontro e desvelamento
da verdade. A atitude de escutar por atribuir algo ainda não apropriado e loca-
lizado no locutor é a admissão de que a verdade não está só aqui ou ali, ou
só neste ou naquele. Supõe-se um processo de discernimento e busca que ultra-
passa um mero enquadramento na questão do poder por razões e configurações
que, por vezes, escondem a verdade ou não são a expressão mais autêntica e
genuína de suas feições.
O encontro com a verdade e a condição de possibilidade de sua ma-
nifestação supõem a experiência de escutar pelo estabelecimento da dinâmica
que explicita a sua inesgotabilidade enquanto revelação nas diversas realidades
e circunstâncias.

B) ELEMENTOS E QUESTÕES DA EXPERIÊNCIA DE "LER"

1. O que é um texto?

O texto é um discurso codificado em escritura. O discurso é a produ-


ção articulada da palavra, numa língua, que faz um locutor. Este locutor pro-
nuncia sua palavra de um lugar onde ela pode, de fato, nascer e se verificar.
O texto, pois, no quadro da escritura, tem a função de locução. Ele fala e trans-
mite sentidos do lugar do locutor que se torna autor do texto mesmo. O processo
de passagem da locução para a escrituração ocorre no uso dos sinais gráficos
regidos por uma sintaxe e uma gramática próprias do ambiente do locutor-autor.
a) Sua intenção i
A intenção mais original do texto reside na realização da palavra
pronunciada pelo locutor-autor. Aquilo que o locutor quer dizer se fixa pela
mediação da escritura.
A palavra daquele que se pronuncia torna presente com as circuns-
tâncias, situação, ambiente e articulações de sentido por ele feitos. A realidade
do locutor com suas peculiaridades de sentido^ apropriações e encaminhamentos
se oculta no processo de escrituração enquanto se torna texto.
Assim, o texto tem por intenção própria a locução do autor enquanto
locutor que transmite aquilo que ele quer dizer e enquanto expressão do modo
de ele se articular na realidade e os seus sentidos.
Deste modo o texto guarda sua identidade enquanto depósito que con-
figura o horizonte de significações do locutor-autor.

b) O processo de sua produção


O texto se produz, pois, enquanto processo que pela escritura codifica
a experiência da palavra vivida, articulada e proferida por um locutor, aquele
que se torna autor do texto, a partir do lugar de sua verificação na medida em
que é significação. Assim, o texto antes de ser texto é palavra proferida. Isto é,
um discurso que se articula pela localização e inserção do locutor na realidade.
Esta inserção inclui as articulações significantes produzidas nas mensagens en-
quanto formação de horizontes que englobam e presidem o processo de com-
preensão, interpretação e vivência.
O processo de produção do texto supõe, indispensavelmente, a refe-
rência ao seu nascedouro. Assim, imo se pode deixar de estar atento ao texto
na medida em que ele é um compêndio de manifestações vitais que articulam
modelos, processos e encaminhamentos regentes da dinâmica da realidade, nas-
cedouro do texto e da atuação daquele que se pronuncia como leitor, tornando-se
autor do texto.

c) Seu papel de interlocutor


O leitor, diante do texto, se torna alguém que se põe a escutar. Não
ocorre, contudo, uma verdadeira e própria interlocução no sentido estrito de
sua significação. Ora, não ha no ato um alguém que fala e um alguém que
responde. Na verdade, a ausência de locutor diante do leitor não possibilita a
verdadeira e própria interlocução. O autor do texto está ausente porque a codi-
ficação em escritura do próprio texto deixa o lugar de autor vago para ser
ocupado por aquele que lê enquanto ele próprio se torna autor. A interlocução
ocorrerá enquanto ele do lugar do autor, na pronúncia da palavra, disser a si
mesmo a locução que ele escuta do seu lugar de leitor.
Ora, por si mesmo é que, pronto o texto, ele já não pertence mais
e estritamente ao seu autor. Dele é dono quem lê, enquanto, também, se torna
autor. O autor primeiro, neste instante, está morto. Curiosamente, a interlo-
cução se verifica nesta dialeticidade do leitor que lê do lugar próprio de escuta
e fala a si do lugar próprio de quem pronuncia, aquele que originariamente não
é seu mas de quem ele se faz contemporâneo e por isso pode falar. Neste pro-
cesso reside uma grande força e segredo do ato de ler enquanto processo educa-
tivo e transformador.

d) Uma reserva de sentidos de ontem e para hoje

O texto escriturado é um poço de memória. Trata-se de uma memó-


ria eficaz. Esta eficácia se verifica no intercâmbio e envolvimento das subje-
tividades do autor e do leitor. É importante, pois, ter presente a dimensão
referencial do texto. Esta força de referência no texto articula as relações entre
linguagem e mundo possibilitando as idas e vindas pelos caminhos das signifi-
cações diversificadas e diferenciadas de quem fala (autor) e de quem escuta
(leitor). A função referencial do texto verificada nas frases e expressões do
linguajar articula uma dinâmica dos simbolismos que tem força de guardar os
sentidos de ontem e de gerar os sentidos para hoje. Aqui se localiza uma força
de transformação no processo de leitura. Assim, o texto não será nunca apenas
a feição que sua materialidade de escritura pode deixar transparecer. Deste modo,
ler é envolver-se num processo de desenvolvimento de uma reserva inesgotável
de sentido que envolve a subjetividade do autor e do leitor.
A reserva de sentidos de ontem é uma estratégia de atuação enquanto
modo de leitura e interpretação no nascedouro do texto. Esta estratégia, apreen-
dida como modelo pelo leitor, tem força de um processo de transformação e
libertação.

2. O "lugar" é um elemento determinante da produção do texto e de sua leitura

Esta afirmação tem um lugar singular nestas questões abordadas.


O "lugar", aqui, então, é pensado como o próprio da situação e da
localização do autor do texto, um pré-leitor, aquele que lê enquanto escreve,
e do leitor destinatário que lê, tornando-se autor e produtor, por sua vez, de
uma leitura. Cada um, portanto, tem nos seus óculos os reflexos das cores
advindas e próprias do "lugar" a partir do qual, inseridos, operam as suas
produções de leitura.
A compleição circunstancial do lugar ocupado dá um tom determi-
nante ao tipo de leitura que se pode produzir.
Quando se pensa no texto, o seu ponto de partida é uma experiência
vivida num "lugar" que se caracteriza por uma determinada mundividência,
significações, valores, tradições, práticas, opressão ou libertação etc.
O texto, então, que se produzirá pela leitura, se fará a partir de um
lugar e, conseqüentemente, de uma determinada perspectiva. Neste desenrolar
é que o sentido se produz e fica guardado na "reserva" que o texto passa a
possuir. E interessante observar a possibilidade clara de que um mesmo "fato"
pode ser lido diferentemente, e oferecer estágios diferentes de leitura, em termos
de profundidade, em razão da riqueza inesgotável de sentido que ele possui.
Do mesmo modo, o "lugar" no qual o leitor se insere e está para fazer a sua
leitura, como produção de sentido, tem, também, força determinante.
No processo de exploração que o leitor opera sobre o texto, o '"lugar"
é um instrumental inseparável enquanto forjador do tenor da leitura. Aliás,
é bom observar que o lugar do leitor, sem avaliar inicialmente se bem ou mal,
gerará a relevância do "adiante" do texto, possibilitando uma sintonia com o
seu próprio mundo. Esta ocorrência tem força libertadora. A relevância não
reside, pura e simplesmente, na dimensão histórica de um texto.
O "lugar", então, criará as condições de possibilidade no modo de
se lidar com o sentido, superando e exigindo a superação de toda rigidez e de
todo sentido único e fechado. É verdade, pois, que o modo e dinâmica de o
leitor/autor e do leitor/destinatário se situar e se articular na contextualidade
do seu lugar será fator determinante do tipo de leitura que se produzirá.

3. A leitura como exercício do diálogo

Este exercício do diálogo pela leitura não é um caso de diálogo na


modalidade de perguntas e respostas. Obviamente, também, não é, de modo pró-
prio, um diálogo com o autor enquanto se lê a sua obra. Neste sentido, o
texto esconde tanto o autor quanto o leitor.
O exercício do diálogo se verifica na medida em que as subjetividades
próprias de autor e leitor se encontram e se confrontam pela dinâmica de des-
locamento que o leitor é desafiado a fazer do seu lugar próprio ao lugar do
autor, e vice-versa.
O exercício do dialogo se configura, propriamente, enquanto se escuta
perspectivas dos horizontes de um lugar diferente, pelo deslocamento ocorrido
no lugar próprio da localização do leitor. Este processo toca dimensões diver-
gentes e diferenciadas que exercitam a referência ao que está guardado no ou-
tro lugar.
Assim, a leitura como exercício do diálogo não é pensada como pura
objetividade. Mas, trata-se do intercâmbio de dois pólos e da busca de supe-
ração da distância existente entre eles. A dimensão dialógica, propriamente dita,
se verifica no movimento duplo de trazer e traduzir o horizonte do texto, época,
mentalidade, significações, etc., ao nosso horizonte e vice-versa.

4. A leitura como produção de sentido

Esta questão já está referida anteriormente. Contudo, sua importância


no processamento da leitura pede que ela seja bem sublinhada. A intimidade
que o leitor estabelece com o texto o colocará num determinado momento no
lugar e na condição de escritor/autor enquanto produz sentido pela leitura
que faz.
Ora, o leitor se torna autor de tudo o que lê. Apodera-se do texto
que lê. O leitor reescreve o que está lendo, embora não esteja escrevendo, pro-
priamente. De tal modo que produzir sentido, enquanto se lê, é não deixar-se,
simplesmente, ser engolido pelo que o outro escreve.
Esta produção de sentido é, pois, o processo pelo qual o leitor se
compreende. A subjetividade do leitor entra em cena. Ocorre, assim, a possibi-
lidade de apropriação e de aplicação. O leitor se compreende diante do texto.
Não apenas tem as chances de compreender "a coisa do texto", segundo Gada-
riier, ou "o mundo da obra", segundo Ricoeur, mas a de compreender-se, na
medida em que lendo opera a produção de sentido.

5. A leitura como produção de "modelos dè ação"

O texto, na gênese própria de sua produção, contém uma estratégia


de atuação na medida em que ele compendia um modo de viver, experienciar,
reagir, e encaminhar situado num determinado horizonte de significações.
Ler o texto é entrar em contato direto com estas estratégias guarda-
das nas estruturas articuladas do texto.
Esta estratégia revela o como o autor lê, interpreta e se sente provo-
cado de maneira a atuar numa determinada direção e de um determinado modo.
Assim, todo texto guarda um modelo de ação, enquanto da com-
preensão e da interpretação operadas se configura uma força e uma dinâmica
para se atuar. O autor, pois, ao ler a realidade e acontecimentos produz o texto
enquanto produz um modelo de ação. Assim, também, o leitor destinatário
estabelece, ao ler, intimidade com a dinâmica deste modelo e dele se apropria
operando redescrições e fazendo descobertas.
Ao decifrar o modelo de ação presente no texto, o leitor destinatário
produzirá para si um "modelo de ação" enquanto, pela leitura, ele instaura
um processo novo de interpretação, compreensão e consequente atuação.

6. A leitura como processo de remodelação

A decifração do "modelo de ação" presente no texto e sua apropria-


ção toca o leitor no espaço de sua práxis. A dimensão teórica da apropriação
e contato com as dinâmicas presentes no modelo de ação do texto tem força
provocativa na práxis do leitor. A dimensão teórica funciona como interpretação
crítica. Esta interpretação crítica provoca, conseqüentemente, uma nova e neces-
sária configuração da práxis,
A leitura, deste modo, é responsável por um processo de remodelação.
Isto significa dizer que ao ler o leitor não permanecerá o mesmo na sua práxis.
Ela sofrerá remodelações.
7. Diferentes apropriações do texto enquanto reserva de sentido

a) Hermenêutica

Para além de pensar a hermenêutica como simples "interpretação",


parece oportuno, aqui com Gadamer, focalizar a hermenêutica como a arte de
entender-se enquanto processo que se dá com a interpretação de textos ou de
acontecimentos fixados na linguagem.
Neste processo de entrada na linguagem do texto a partir do modo
peculiar de linguajar do leitor é que se verificará a referida produção de sentido.
Deste modo, a hermenêutica abre um caminho por dentro da lingua-
gem do texto feito com os instrumentos da linguagem do leitor de maneira
a produzir sentido. Ocorre, pois, um movimento que parte da realidade do
leitor e vai ao texto, e à sua realidade retorna.
Este movimento é o ato hermenêutico de apropriação e produção de
sentido pela leitura que se £az.
Deste modo o ato hermenêutico garante a produção de sentido, gera
novas leituras criativas e evita histotkismos e fechamentos para o sentido.
A linguagem do leitor se intercambia com a linguagem do texto.
O leitor processa modificações no seu linguajar. As conseqüências são as relei-
turas do texto e da realidade do leitor.
O entendimento da linguagem do texto remete ao aprofundamento da
compreensão do linguajar do leitor, de onde parte o processo com suas per-
guntas e demandas.
Entender a linguagem do texto, enquanto responde às perguntas advin-
das da linguagem do leitor e a modifica, inclusive, é apropriar-se, hermeneutica-
mente, da reserva de sentido que esta no texto.

b) Exegética

A apropriação exegética é um processo que ocorre no sentido de com-


preender a produção do texto. Este texto é o resultado de um longo processo
hermenêutico que inclui toda uma práxis sócio-histórica, com uma conseqüente
produção de sentido. Assim, faz-se necessário e interessante um procedimento
de escutar e perscrutar dentro do texto mesmo para tentar uma sua explicitação
própria a partir, naturalmente, de suas perguntas próprias.
Este procedimento de leitura é o serviço de traduzir e transpor um
sistema lingüístico num outro. Isto inclui a gramática e a sintaxe, embora nelas
não se esgote. O processamento desta leitura inclui conhecimentos técnicos e
variados de línguas para oferecer uma adequada tradução e transposição nos
diferentes tempos e circunstâncias. O conhecimento da linguagem do texto na
sua feição própria supõe um procedimento técnico que explicita estruturas, gê-
neros, usos, expressões, elementos etc. de modo a facilitar ao texto a revelação
e comunicação de sua verdade mais própria. Ê uma possibilidade, por meio de
métodos, de descobrir as riquezas do texto que se ocultam à leitura. Bem assim,
o oferecimento de certas garantias, de modo a evitar interpretações desacertadas
com manipulações indevidas do texto na verdade própria e inesgotável. O trata-
mento da língua e da linguagem do texto, dado pela apropriação exegética da
reserva de sentido ali presente, é a possibilidade de abrir espaço na escuta que
é a leitura, a fim de que o texto, também, fale de si e se desvele na sua
verdade.

c) Histórica e literária
No procedimento exegético da leitura do texto incluem-se as apropria-
ções da reserva de sentido pelos caminhos da impôstação literária e histórica.
É importante o esforço de apropriar-se das formas usadas para se tra-
duzir e transpor a interpretação dos fatos e acontecimentos. Bem assim, é de
grande importância a caracterização do ambiente vital que exprime a contextua-
lidade do texto enquanto seu nascedouro. O desenrolar da história nas suas
dimensões econômica, política, social, religiosa e cultural expressa as linhas defi-
nitórias da identidade do texto na mensagem que ele oferta.
Por isso, a leitura, como processo de adentramento na realidade do
texto, inclui o conhecimento da história, que é o palco do acontecimento/fato
e chão que o texto expressa, e a decodificação das formas que medeiam e reve-
lação de sua feição.

d) Estrutural
Esta modalidade de leitura, no âmbito do procedimento exegético e
hermenêutico, busca descobrir as estruturas subjacentes na produção do texto,
enquanto articulação de uma lógica interna que oferece um sentido do texto
em si.
A operação deste procedimento inclui uma diversidade de métodos
que não vem ao caso ser tratada aqui. A atenção é requerida para que a análise
do texto na sua lógica interna não reduza o sujeito homem, como autor e
leitor, a objeto ou mesmo o elimine.
v A apropriação estrutural deve abrir espaço ao que há de criativo e
gerador no procedimento hermenêutico.

e) Popular
O povo lê e se apropria de sentidos no texto a partir de sua condi-
ção e do seu lugar próprios. Não, simplesmente, apropria-se do sentido enquanto
lhe é dado pela explicação que lhe é oferecida. Sai da passividade e participa
enquanto produtor de sentido a partir de sua condição e lugar que geram os
dinamismos necessários para esta produção. Aqui, ultrapassa-se o enquadramento
em uma série de conhecimentos e sistemas que situariam o povo fora da possi-
bilidade de apropriação de sentido por não trilhar caminhos e reger-se por dinâ-
micas que não são próprias de sua condição social, cultural etc. Quando, no
entanto, o povo encontra e define os registros de sua entrada no mundo do
texto, a partir do que lhe é próprio e ele sabe manusear com intimidade, se
registrará a apropriação na reserva de sentido do texto. Inclusive, verifica-se
o "milagre" de explicações, compreensões e aplicações de exatidão admirável.
Esta apropriação é um processo de grande força libertadora.

f ) Antropológica
A centralidade desta apropriação será a decodificação de uma com-
preensão do conceito de homem-mulher enquanto situados nas relações mútuas
e com outros personagens.
A leitura responderá à pergunta: Quem é e o que é o homem-mulher?
Na verdade, o texto se produz enquanto o autor, homem-mulher,
produz uma compreensão de si, do seu mundo e do seu caminho. Bem assim,
o leitor.
g) Sociológica
A leitura sociológica sublinhará as dimensões de enraizamento do autor
(grupos, comunidades, etc.) na realidade, suas modalidades, nuances, influên-
cias e interações. Isto explicitará as influências marcantes, no texto, da orga-
nização, concepção e encaminhamentos das estruturas sociais. Os processos sociais
presentes e contemporâneos ao texto provocam concepções, críticas e crises
próprias.

C) O CAMINHO NOVO A PARTIR DO "LER"

Todos estes aspectos e dimensões abordados na experiência do "ler"


apontam como sua conseqüência genuína e criativa a abertura de um caminho
novo para aquele que lê, como:

1. Processo dialógico
A leitura desencadeia um processo de diálogo do leitor com o texto
na busca interminável da verdade, por uma experiência de comunhão, segundo
a dinâmica de perguntas e respostas que ambos se fazem. O encontro, provo-
cação e fusão do horizonte do passado, aquele do texto, e do horizonte do leitor,
do presente, constitui a feição da força dialógica que provoca mudanças, trans-
formações e redimensionamentos globais e radicais.

2. Processo crítico
A leitura como desafio posto de lugares diferentes, aquele do autor/
texto e aquele do leitor, instaura um nível profundamente crítico de confron-
tação. Esta revela as diferenças, os esquematismos, fechamentos e limites exis-
tentes. Põe-se, fortemente, a necessidade de revisão, conquista de novos elemen-
tos, atualização e criatividade, patenteando que a verdade não se dá aqui de
modo a se esgotar. Permanentemente, o caminho de escuta e de confronto con-
tinuará a oferecer a garantia de, mesmo não a tendo encontrado definitivamente,
buscá-la se cessar.
A verdade não está toda aqui. É preciso sair para buscá-la.

3. Processo de remodelação
Ler, portanto, é engajar-se, pela escuta do outro, novo e diferente,,
num processo de remodelação. Conhecer as estratégias na realidade do texto que
se lê abre confrontos que incidem teoricamente na prática configurada no lugar
do leitor. Inevitavelmente, esta incidência processará uma releitura que remodela
na visão, na atuação e na constituição do horizonte de significações.

4. Processo de apropriação e informação


O caminho novo da leitura permite uma viagem ao coração de uma
realidade que, falando de si, mostra a novidade não presente de cá com o leitor
e/ou, ao mesmo tempo, desperta-o, como luz que focaliza, para aquilo que
ele é e tem e, contudo, não está bem localizado no nível da percepção e da
consciência. A novidade posta e apropriada gera o processo de conferência de
poder ser, escolher, produzir e encaminhar.

5. Processo intercultural

A experiência de escuta em que o leitor se põe no âmbito de um


horizonte que não é o seu, aquele do texto, sem perder referencial do seu
horizonte próprio, produz a grandeza do intercâmbio. A busca da verdade da
coisa, querida de cá e de lá, se processa, também, pela postura de receber as
indicações das descobertas e desvelamentos do processo por parte de uma outra
cultura, no segredo de não perder o próprio da sua cultura, onde, localizado
e situado o leitor, será garantido o encontro com a verdade que garante o
processo de libertação.

6. Processo de produção cultural

A conseqüência da leitura como interculturação, pelo dom de escuta


e de conservação da identidade, é a produção cultural no seio da cultura que
intercambia e criticamente se remodela.
A prodijção cultural é o encontro das feições que concretizam na práxis,
com valores, o termo da busca incessante que faz da verdade.

7. Processo de releitura e libertação

Enfim, ler é reler, num movimento de ir e vir, de modo que haja


quebra dos enclausuramentos, reducionismos e sombras que não deixam ver.
A releitura no âmbito da realidade do texto e no coração da realidade do leitor
garante um manuseio novo e uma articulação integradora das reservas de srnfidb
A conseqüência, sem dúvida, é o estabelecimento de um permanente
processo de libertação, enquanto enfatizado, e sublinha a necessidade perma-
nente de se estar a caminho.

CONCLUSÃO

Finalmente, na experiência de ler é preciso garantir a primazia do texto


sobre o comentário. O comentário, enquanto resultado e produto do caminho
de leitura feito por outro, não pode ser um véu que esconde a possibilidade
de uma ida ao encontro da verdade do texto, a verdade do outro e da própria
verdade do leitor.
O comentário poderá ser uma ajuda válida na medida em que assu-
mido como mediação. Dar, pois, primazia ao texto sobre o comentário é garantir,
também, a genuinidade do lugar insubstituível do leitor.

BIBLIOGRAFIA

CROATTO, J.S. Hermenêutica bíblica. São Paulo/São Leopoldo, Paulinas/Sino-


dal, 1986.
MESTERS, C. Por trás das palavras. Petrópolis, Vozes, 1977, p. 13-61.
ALONSO SCHOKEL, L. Hermenêutica de la Palabra, voi. I — Hermenêutica
bíblica. Madri, Cristiandad, 1986.
MANNUCCI, V. Bíblia, Palavra de Deus. São Paulo, Paulinas, 1986, p. 309-411.
GOTTWALD, N. Introdução socioliterária à Bíblia hebraica. São Paulo. Pauli-
nas, 1988, p. 19-45.
RICOEUR, P. Dal testo all'azione— Saggi di Ermeneutica. Milão, Jaca Book,
1983, p. 133-267.
— . Interpretação e ideologias. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1988,
p. 43-59.
ALVES, R. A importância do ato de ler. São Paulo, Cortez.

Walmor Oliveira de Azevedo


Rua Dom Silvério, 379
36020 Juiz de Fora, MG
A leitura da Bíblia

l. A CONVERSA COM A BÍBLIA

Em Ex 33,11 está que Deus falava com Moisés, na Tenda da Aliança,


como alguém fala a um companheiro. Colocando-nos na lógica das comunidades
bíblicas, que consideram a Bíblia ser "palavra de Deus", podemos talvez aplicar
a imagem de Ex 33,11 à leitura da Bíblia: seria como uma conversa de amigos:
cordial e com hombridade. Nada de mistificações!
E qual seria o assunto desta conversa de amigos? Moisés falava com
Deus, na Tenda, sobre os problemas dos israelitas no deserto. Parece-nos que,
do mesmo jeito, podemos falar com a Bíblia sobre a nossa vida. Esta seria a
verdadeira leitura da Bíblia, a leitura relevante.
Fomos até a Bíblia que veio até nós. Aconteceu um encontro! Um
encontro não é uma submissão de um ao outro. Não desistimos de nossa capa-
cidade mental diante da Bíblia, e nem vamos manipulá-la transformando-a em
panfleto de nossas idéias preconcebidas. Vamos deixar a Bíblia falar, como
alguém que vem até nós com autoridade — afinal, ela é referenciada por im-
portantes comunidades, que representam 3000 anos de história e 1/3 da hu-
manidade. .. Mas autoridade não significa imposição. Significa direito de tomar
a palavra, significa ter algo a dizer. À autoridade da Bíblia corresponde uma
atitude que os próprios textos bíblicos consideram como atitude adequada para
"encarar" Deus: a franqueza, parrêsía, a liberdade de falar, de conduzir um
diálogo com quem nos fala com autoridade.
Num diálogo, nada é decidido de antemão. Um novo sentido das
coisas surge do encontro. As duas palavras contribuem: a do texto e a minha.
Sem a minha palavra, a "conversa" com o texto não sai, e o que os antigos
me deixaram não consegue virar nosso. No fundo, tudo se resume em "eu, com
o texto, descobrir o sentido que é nosso (meu e dos antigos) ", aqui e agora.
Envolvo o texto em meu existir, e com isso fico envolvido com ele...
O texto não vem como um fenômeno isolado, um ser extraterreno.
É mais parecido com um índio que de repente sai do mato: do meio de um
contexto que o envolve, ele abre caminho para chegar até a mim. Dizemos que
o texto abre caminho, pois, desde que ele existe, ele produz no seu ambiente
um alastramento de referências significantes. Sua transmissão através da história
cria um rastro nas mentes e na linguagem. Este acontecer é uma história. Uma
tradição. Uma comunidade de pessoas que falam e se comunicam com as pala-
vras que o texto fornece. Uma comunidade de pessoas que vêem o mundo com
a perspectiva que ele abriu. Que sonham com o mundo num jeito para o qual
ele deu as palavras. E, dialogando com o texto, eu me coloco nesta comunidade,
neste diálogo.
Desde que Moisés proclamou os Dez Mandamentos, o mundo nunca
mais foi como antes; a estrutura do mundo foi se modificando num determi-
nado sentido, assim como a estrutura econômica do Brasil se modificou a partir
da primeira plantação de café em São Paulo: a vida econômica deslocou-se,
criou-se a "capital do café", que por sua vez atraiu outras formas de produção,
que fizeram dessa cidade, bem ou mal amada, o coração econômico do país,
mesmo depois que o café deixou de ocupar o primeiro lugar etc. Cada evento
— e o texto é um evento — cria um efeito, e este efeito se alastra mediante
novos fatos e palavras, modificando a história. Quando alguém fala uma pala-
vra, esta palavra puxa outras. Surge conversa, surgem novas palavras, que se
alastram em novos conceitos, com os quais a conversa pode continuar virtual-
mente até o infinito. Quando entro nesta conversa, assumo a estrutura que
ela criou. Pois não quero falar palavras soltas, fora da gramática e da sintaxe,
como os sons perdidos e sem sentido de um delirante. . .
Assim é a palavra da Bíblia. É preciso entrar no lastro criado pela
palavra bíblica. É o que chamamos: sintonizar. Ou talvez também: entrar na
roda. Modestamente, escutando qual é a conversa, até percebermos de que se
trata, e então fazer a conversa, junto com os outros — e fazê-la "nossa".
Quando a Bíblia me encontra, é porque de alguma maneira fui en-
volvido em seu lastro. E na medida em que assumo isso, posso entrar em
diálogo com ela como não me sendo estranha, para, neste diálogo, encontrar
novo sentido e missão para minha vida, em solidariedade com os outros seres
humanos.
A Bíblia nasceu da história de uma comunidade, nasceu na comuni-
dade e foi transmitida com muito carinho no seio de uma comunidade. Daí
que a primeira condição para ler a Bíblia, dentro da perspectiva que lhe é
própria, é sintonizar com esse caráter comunitário. Não captamos a freqüência
de ondas da Bíblia, se não a percebemos como expressão de uma comunidade.
Daí a importância de ler a Bíblia a partir de uma comunidade, na ótica de
uma comunidade que, de alguma maneira, tem sintonia com a palavra bíblica.
Se a mensagem da Bíblia se resume no mandamento do amor fraterno, como
entender isso sem experiência e "interesse" por uma comunidade, seja ela a
família, o círculo de amigos ou qualquer outra? Descobrindo o que a comu-
nidade significa em nossa vida, encontramos a pauta na qual podemos decifrar
as mensagens mais centrais da Bíblia. Sem esta pauta, ficam como notas musi-
cais desenhadas fora das linhas...
Ler a Bíblia exige uma certa "cumplicidade" com ela. Perceber a
razão daquido que ela narra, mesmo se nossa situação ou acomodação não nos
incentiva a agir do mesmo jeito... Como o velho aposentado passeando no
parque demonstrando um sorriso cúmplice para o garoto fazendo artes no gra-
mado: compreende, capta o sentido, mas não tem mais condições para fazer
o mesmo. Contudo, entra em diálogo, encoraja a criança, muda um pouco o
imundo... e, quem sabe, a si mesmo, voltando para casa um pouco mais
criança e mais "arteiro".
Para estabelecer este diálogo, os leitores da Bíblia desenvolveram mui-
tas maneiras, métodos até. Mas, virando o assunto por todos os lados, percebe-
se que a questão fundamental é sempre a mesma: "O que isso nos diz? Õ
que significa isso para nós, hoje?"

2. LEITURA E RELEITURA NAS COMUNIDADES DA BÍBLIA


Já no antigo judaísmo encontramos exemplos admiráveis deste "entrar
na conversa", deste continuar a frase falada e gravada anteriormente. Tomemos,
por exemplo, Os 2,4-25: a parábola da mulher infiel. Quando Oséias pronun-
ciou e;ssa parábola, ele se referia ao Reino do Norte, Israel, que se entregara
ao culto dos outros deuses (chamados baalim, "maridos").
Quando, 120 anos depois, o Profeta Jeremias ouve novamente estas
palavras, ele se pergunta: "O que significa isso para nós hoje, em Judá?" e
entra na conversa. Continua a parábola de Oséias. Como um ator representando
Javé Deus, Jeremias fala ao povo de Judá: "Eu me lembro ( . . . ) do amor de
tua juventude ( . . . ) . O que encontraram os vossos pais em mim de injusto,
para que se afastassem de mim e corressem atrás do vazio (os ídolos e os
poderes estrangeiros).(...). Tu, que te prostituíste com inúmeros amantes,
queres voltar a mim?" (Jr 2,2.5; 3,1). E continua a encenação, referindo-se
ao Reino de Israel, desaparecido há 120 anos: "E Javé me disse: A renegada
Israel é mais justa do que a infiel Judá. Vai, pois, proclamar estas palavras no
Norte; tu dirás: Volta, renegada Israel ( . . . ) ; não guardo rancor para sem-
pre ( . . . ) " (3,11-13).
Um quarto de século mais tarde, os dois textos — o de Oséias e o
de Jeremias — convidam o profeta Ezequiel a entrar na conversa também.
Retoma mais uma vez a parábola de Oséias sobre a mulher infiel, lembrando-se
porém de que Jeremias falou de duas "mulheres", Judá e Israel: elabora a
famosa alegoria histórica das duas irmãs Oolá e Oolibá, que realmente não
precisa de muita explicação (leia Ez '23)'. É assim que Ezequiel responde à
pergunta: "O que significa a parábola de Oséias para nós hoje, exilados em
Babilônia?"
Pouco depois, o 29 Isaías anuncia que Javé retomará sua esposa repu-
diada (Is 54,1-8), e o 39 Isaías, invertendo as palavras de Oséias, proclama:
"Já não te chamarão; Abandonada ( . . . ) . Como a alegria do noivo pela sua
noiva, tal será a alegria que o teu Deus sentirá em ti" (Is 62,4-5; cf. Os 2,25).
A história não termina aí. Seis séculos depois, Jesus de Nazaré, mestre
migrante, é criticado por não ensinar o jejum; Responde misteriosamente:
"Podem os amigos do esposo jejuar enquanto o esposo está com eles?" (Mc
2>19). E mais meio século depois, um discípulo conta como, à distância, ele
percebe a atuação deste Mestre, que considera ser o Messias. Conta que Jesus
realizou seu primeiro "sinal profético" em Caná, tornando-se presente numa
festa de bodas e fornecendo misteriosamente vinho bom e abundante, assumindo
assim misteriosamente o papel do esposo — que granjeia a equivocada admira-
ção do mestre-sala. . . (Jo 2,1-11). Para quem sabe ler a pauta traçada por
Oséias, Jeremias e Ezequiel, é claro que Jesus é o verdadeiro esposo, que veip
celebrar as núpcias da restauração messiânica do póvo. Assim, Paulo pode es-
crever aos cristãos de Corinto: "Empenho-me por vós com o zelo de Deus,
pois desposei-vos com um só esposo, querendo apresentar-vos a Cristo como
virgem intacta" (2Cor 11,2).
Poderíamos multiplicar às centenas tais exemplos de "continuação da
conversa": o êxodo, o maná, o Mar Vermelho, Adão, Abel, a Aliança; estes e
tantos outros temas tornaram-se, já dentro da Bíblia, objeto de contínua "re-
leitura". - - pois assim é que se chama esta leitura interpretativa "para nós
hoje". O ensinamento de Jesus deve ter sido permeado de tais releituras (Mt
5,20-48!). De toda maneira, era o método dé leitura e explicação bíblica dòs
rabinos de seu tempo. Estudavam a Lei para investigar (darash, de onde midrash,
midraxe) o que podiam significar no atual momento as palavras antigas, que
estruturaram a vida do povo. O que significava, p. ex., comer o cordeiro pascal?
Por que não quebrar-lhe os ossos? (Os cristãos viram nisso o sacrifício da vida
de Jesus: Jo 19,32-36). O que significava o "repouso" (shabat)? (Ver como
Dt 5,15 vem completar e interpretar a formulação, mais antiga, de Ex 29,8-11).
Quem é o "próximo" ao qual se deve "amar" conforme a Torá (Lv 19,18)?
(Veja a interpretação de Jesus: Lc 10,29-37). E âssita poir diante...
Leitura bíblica é re-leitura. É fazer reviver a antiga palavra, a partir
da tradição que ela criou para chegar até nós, na nova situação em que nós
nos encontramos. Assim é que os autores bíblicos recentes liam os seus prede-
cessores mais antigos (daí as numerosas citações de textos anteriores nos livros
ulteriores).
Assim é que Jesus e os rabinos do seu tempo liam a Bíblia, e assim
é que a liam as primeiras gerações de cristãos. O famoso Orígenes distinguia
entre o sentido "somático" ( = corporal: a narração exterior e verbal dos fatos)
e o sentido pneumático ( = espiritual, interior, escondido) ; e este último é o
sentido que o exegeta deve perseguir, naturalmente sem negligenciar o primeiro.
Este sentido espiritual é produzido pelo "Espírito" de Jesus Cristo, ativo na
comunidade dos fiéis, quando esta lê os textos que guardam a sua memória.
E S. Agostinho e muitos outros teólogos antigos e medievais seguiram o con-
selho de Orígenes.
Mas este método não é sem perigos, como logo vamos ver.
3. OS MÉTODOS DA CRITICA LITERÁRIA E HISTÓRICA

Autores como Orígenes e Agostinho eram eminentes conhecedores do


texto bíblico e até escreveram obras científico-analíticas sobre ele. Sabiam muito
bem o que os textos tinham significado na sua origem, mas procuraram cons-
cientemente um sentido novo, atual, que se convencionou chamar de sentido
"pleno", ou seja, desenvolvido a partir de sua potencialidade escondida, sua
* reserva de sentido".
Mais tarde, porém, começou a se negligenciar a atenção para o sentido
original. Na Idade Média, a leitura bíblica era, num certo sentido, espontânea
e pragmática. Lia-se a Bíblia procurando nela um pensamento que iluminasse
a vida, a doutrina, a moral, dentro da perspectiva do leitor ou de sua comuni-
dade; mas não se procurava — certamente não com critérios e métodos cientí-
ficos — o que o autor quis dizer para o contexto em que ele se encontrava.
Deste modo se corria o perigo de subjetivismo: lia-se na Bíblia o que já se tinha
na cabeça; forçava-se o texto a dizer o que se desejava que dissesse... E isso,
nem sempre para iluminar os desafios da vida, mas para acender a fogueira para
algum adversário teológico...
Contra este tipo de leitura, sujeita à manipulação e eventualmente atri-
buindo aos veneráveis autores aquilo que eles nunca quiseram dizer, surgiu a
atitude crítica em relação ao texto bíblico, comparável à reação de alguém a
quem as pessoas na rua informaram erroneamente o caminho: vai desconfiar
que as pessoas não sabem e decide investigar cientificamente, consultando a
planta da cidade. . . Tal atitude se convencionou chamar de "crítica", em opo-
sição à atitude ingênua ou espontânea da explicação bíblica corriqueira. A atitude
crítica não quer negar o que está na Bíblia. Quer apenas examinar.
Nos métodos da investigação critica da Bíblia, convém observar o
objetivo, a pergunta à qual eles querem responder e os critérios que eles usam,
sendo estes últimos de dois tipos: internos e externos. Os critérios internos são
os que se podem descobrir dentro do próprio texto considerado; os externos
são os que são encontrados fora do texto.

Crítica textual
1) Objetivo: reconstituição do texto assim como foi escrito originalmente pelo
autor. Isso é muito importante para textos antigos, que vieram até nós
somente através de cópias transcritas de cópias... Em cada transcrição po-
dem ter-se introduzido modificações, intencionais ou não.
A crítica textual não se interessa pelo sentido do texto, não é análise
literária do texto ou coisa semelhante. Apenas procura verificar a confiabilidade
das cópias do texto que chegaram até nós e reconstituir o texto na sua forma
mais confiável.
2) Pergunta: "Nos documentos que temos hoje encontra-se o texto que o autor
escreveu originalmente? Qual é o grau de confiabilidade de nossos documen-
tos (cópias) ? * '
3) Critérios para julgar qual das "leituras variantes" de determinado texto é
a mais provável:

a) externos:
• comparação de nosso texto com o dos antigos manuscritos bíblicos, lecioná-
rios litúrgicos, citações em outras obras antigas (teólogos dos primeiros sé-
culos) etc.;
• para executar bem esta comparação existem certas regras de mão: ver qual
é o valor global de determinado manuscrito (existem manuscritos simples-
mente mal copiados); ver que variante é seguida pela maioria dos manuscritos
reconhecidos como confiáveis, sobretudo se pertencem a diferentes "famílias"
ou "recensões", levando em conta o valor diferenciado destas últimas etc.

b) internos:
• entre diversas variantes apresentadas nos antigos manuscritos, em igualdade
de outros argumentos, deve-se escolher a mais difícil de compreender — desde
que ela não seja absurda —, pois os copiadores tendem a facilitar o texto
ao copiarem;
• a variante mais breve de um texto é preferível à mais longa, pois os copia-
dores e recensores têm tendência a acrescentar coisas no texto;
• ver se a variante oposta pode ser aceita ou, pelo contrário, se mostra ina-
ceitável, confirmando-se neste caso a variante considerada por primeiro;
• desconfiar de variantes tendenciosas, p. ex., que procuram tornar o texto
bíblico mais parecido com os dogmas proclamados ulteriormente;
• desconfiar de variantes que tornam diferentes textos bíblicos mais semelhan-
tes entre si ("harmonizações").

Crítica histórica
1) Objetivo: reconstituir os fatos narrados conforme sua objetividade histórica,
na medida do possível.
2) Pergunta: "O que a Escritura aqui conta, aconteceu mesmo? A palavra que
ela relata, foi falada de verdade?"
3) Critérios:
a) externos:

testemunhos arqueológicos;
• documentos
de tipo administrativo (contas, arquivos etc.)
de tipo literário (histórias, descrições etc.)
b) internos:
• p. ex. as contradições internas, a maior ou menor probabilidade do fato ou
discurso narrado, etc. (critério um tanto subjetivo: para um racionalista rab-
Mato, qualquer milagre é não apenas pouco provável, mas impossível e, por-
tanto, inverídico).
Com relação à Bíblia, a crítica histórica já foi mais importante do
que ela é hoje em dia. Pois percebeu-se que a Bíblia, embora contendo história,
e até história cientificamente comprovada, não é um "livro, de história", mas
um depoimento de experiência religiosa multifacetada, èxpressa nos mais diver-
sos gêneros literários. Para que a mensagem da Bíblia seja verdadeira, não é
preciso que tudo o que ela narra seja história cientificamente verificada. . .

Crítica literária
1) Objetivo: descobrir a intenção do autor, o que ele quis dizer, levando em
consideração as circunstâncias e modalidades da produção do texto, o estilo,
o destinatário etc.
Este tipo de pesquisa permitiu descobrir que muitos textos, na Bíblia, são
"compostos" (obra de diversas mãos), produzidos em diversas fases, até
com pensamentos internamente opostos etc. Demonstrou também a pseudo-
epigrafia, ou atribuição fictícia, generalizada (ex.: a "Carta de Paulo aos
Hebreus": nem carta, nem de Paulo, nem aos hebreus. . .).
2) Pergunta: "Por quem, onde, quando, como, para que, para quem, conforme
que estilo etc., foi escrito este texto?" -— "O que o autor quis comunicar,
a partir de que situação, em que ambiente, com que meios etc.?'' — "Como
apresenta-se seu texto, de que gênero é, qual é sua estrutura e composição,
para que o entendamos melhor?"

3) Critérios:
a) externos:
• testemunho de fontes arqueológicas (p. ex.: se se encontrasse uma inscrição
ou pintura do primeiro séc. confirmando que João escreveu o Apocalipse),
literárias, documentais, arquivísticas etc. (p. ex.: os cabeçalhos acrescentados
aos quatro evangelhos, comunicando o nome dos evangelistas; o "cânon de
Muratori" etc.).

b) internos:
• indícios internos na obra a respeito do autor, sua intenção etc.; p. ex.: o
prólogo de Lc e At (Lc 1,1-4 e At 1,1-2); a menção do autor no início das
cartas de Paulo, Pedro, Tiago, Judas; em Ap 1,9 etc.;
#
unidade de estilo, vocabulário e pensamento; a observação atenta destes ele-
mentos pode levar a confirmar ou a negar que tal obra é escrita por um
só autor, como uma só obra etc.
* probabilidade que tal estilo, tema ou vocábulo existissem na presumida época
de redação da obra.
As "ciências auxiliares"
O que acabamos de mencionar são apenas os princípios gerais da pes-
quisa histórico-literária. Na realidade, ela é tão complexa que chega a exigir
cinco a dez anos de estudo especializado para que alguém se possa apresentar
como perito neste campo.
Além de exaustivo conhecimento dos textos, exige conhecimento de
ampla literatura científica e de "ciências auxiliares", como sejam a arqueologia
— para quem quer pesquisai as fontes arqueológicas —, a paleografia ou ciência
das antigas formas de escrita, confecção de documentos etc.; a cronologia ou
ciência de calendários, datas etc. Sem esquecer a filologia ou ciência dos idio-
mas e suas literaturas, a lingüística ou ciência da linguagem como fenômeno
universal, a história, a geografia, a história comparativa das religiões. . . E mes-
mo, conforme o tipo de especialidade que se quer desenvolver, a biologia, a
medicina, a botânica (para distinguir bem os diversos tipos de plantas mencio-
nados, às vezes com conotação simbólica, nos livros bíblicos). Até a química
entra, para pesquisar as tintas dos antigos manuscritos; e a física nuclear, para
estabelecer mediante o teste do carbono 14 a antiguidade do papiro em que
foram escritos. . .
Isso tudo explica que a investigação crítica da Bíblia se tenha tornado
um templo inacessível para o comum dos mortais e, também, para muitos bi-
blistas. É necessário consultar e confiar nas pesquisas de outros. Ninguém con-
segue verificar tudo por conta própria. Bom biblista não deve ser sabichão.
Quem pretende saber tudo, provavelmente não sabe nada.

4. O ESTUDO HISTÓRICO-INTERPRETATIVO
Superando o historicismo
Ao observador não escapa que o supramencionado tipo de "crítica"
— em bom português seria melhor dizer: pesquisa ou investigação — nasceu
numa ótica historicista: quer reconstituir historicamente o manuscrito original,
os fatos, o texto original do autor e sua evolução até a redação final da obra.
A ótica historicista era inspirada por uma obsessiva desconfiança com relação
à origem do texto e das narrações bíblicas.
Ora, com o passar do tempo, percebeu-se que estas reconstituições
históricas não resolviam tudo e que o problema maior não estava nos fatos em
torno ao texto bíblico e sua transmissão. Inclusive, a investigação histórico-
literária nos ajudou a constatar que a história do texto bíblico é muito limpa
em comparação com outras literaturas antigas. A documentação manuscrita se
tornou até invejável, depois das descobertas de Qumran!
O problema está sendo enxergado agora muito mais no modo de ler
e interpretar. As incoerências que a "crítica" de cunho historicista encontra na
Bíblia são menos um problema da Bíblia do que de seus leitores. A Bíblia não
quer reconstituir fatos e palavras, mas possibilitar a memorização e a reescuta
de antigas palavras e tradições, renovando-lhes o sentido. A obsessão de verifi-
cação histórica de fatos e textos cede o lugar ao empreendimetno da leitura
interpretativa. É neste sentido que devemos compreender os novos métodos
da investigação da tradição, forma literária e redação dos escritos bíblicos pra-
ticados desde o segundo quartel do séc. XX. Embora nascidos na esteira da
crítica histórico-literária, demonstram uma ótica nova. Admite-se que não é
possível reconstituir até nos seus mínimos detalhes os fatos primitivos; e julga-se
que também não é preciso, pois podemos "entrar na conversa" com o texto
sem esgotar a pesquisa histórica. Estes métodos representam uma tentativa de
acompanhar o processo de releitura que se deu no próprio surgimento dos textos
bíblicos.

Estudo da tradição
Se na Bíblia encontramos a memória de uma comunidade, é impor-
tante saber como esta memória se formou; qual era sua tendência, seu inte-
resse; o que ela considerava como referência de sua identidade, que grupos
transmitiram o quê; se houve grupos concorrentes ou rivais; etc. Chama-se isto
a pesquisa da tradição, que está por trás dos textos bíblicos.
Este tipo de pesquisa nos ajuda a "ver melhor a floresta" quando
estamos no meio das árvores. Descobrimos que Israel transmitiu uma multidão
de prescrições, não para encher as horas do dia com ritos a observar, mas para
se lembrar de suas origens, para ter modelos em novas circunstâncias (p. ex.r
depois do exílio) etc. Descobrimos que uma tradição vem do Norte, outra
do Sul, uma do Templo de Jerusalém, outra de grupos campestres. Que nem
todas elas foram observadas simultaneamente por todos etc. Descobrimos que
falar em "Aliança" não faz parte das tradições mais antigas, e sim, das tradi-
ções em volta ao Deuteronômio, mais recente, que ensina Israel a "ler" sua
história como uma Aliança com Deus. Assim entendemos melhor a conversa na
qual queremos entrar...

Estudo dos gêneros e formas literárias originais


Em conexão com isso cresceu a sensibilidade pelas formas em que os
textos bíblicos se cristalizaram, mesmo antes de colocados por escrito. Conforme
a função que determinado elemento da memória exerce, sua "cristalização" lite-
rária — oral ou por escrito, pouco importa — vai ser diferente. Assim surgem
gêneros literários diferentes, que devem ser "decodificados" com chaves dife-
rentes, adequadas a cada gênero.
O gênero das "leis", desenvolvido ao longo de muitos séculos, pre-
tende dar continuidade à organização e estruturação inicial do povo como "povo
de Javé", desde o tempo do êxodo. Faz parte do gênero a atribuição da legis-
lação a Moisés, "fundador" de Israel, mesmo se a prescrição em questão é bem
mais nova que Moisés.
Outro gênero são as etiologias ou explicações de costumes, nomes,
ritos antigos etc. Sua função é cravar estes nomes e costumes na memória com
uma explicação que, se possível, contenha alguma lição moral. Que a explicação
seja cientificamente comprovada é uma preocupação menor, senão ausente.
Um gênero que foi muitas vezes mal entendido é o das narrativas
teológico-didáticas, como são a maioria das narrações das primeiras páginas da
Bíblia: Adão e Eva, Caim e Abel, o dilúvio, a torre de Babel etc. Antigamente
eram entendidas de modo ingênuo, e isso até não era ruim, porque não im-
pedia "tirar a lição" edificante, a moral da história. As crianças no primeiro
catecismo não perguntam se estas narrações são histórico-científicas ou se são
fábulas; ficam impressionadas com a lição — o orgulho de Adão, a inveja de
Caim etc. O historicismo é que faz com que entre um "ruído" nesta forma
de comunicação, tornando incompreensível a mensagem. Quer se saber se "foi
assim mesmo", e, se não foi, recusa-se a acreditar. Mas quem diz que estas
tradições quiseram ensinar que "foi assim mesmo", que naquela planície foi
iniciada uma torre para chegar até o céu, que naquela montanha parou a arca
de Noé etc.? Acredito que os narradores iniciais, com muito bom humor, teriam
admitido que poderia também ter sido numa outra montanha... Mas, de toda
maneira, a humanidade é orgulhosa, e de vez em quando leva uma surra por
causa disso!
Passados a inicial ingenuidade e o ulterior historicismo positivista,
começou-se a intitular estas narrações de "mitos", por causa de semelhança
com os mitos de outros povos. Não há dúvida de que os antigos israelitas
conheceram mitos, exatamente como seus primos da Fenícia, Aram e Babilônia.
Mas devemos ser prudentes em chamar as narrações teológicas da Bíblia de
mitos, pois elas foram desmitologizadas e transformadas em veículo lingüístico
de um conceito não-mítico, mas histórico-salvífico de Deus e do mundo.
Um gênero que merece atenção maior é o gênero sapiencial. Como
mostra uma primeira leitura, p. ex., do livro de Provérbios, este gênero pode
abranger sabenças do povo, colecionadas mais ou menos por tópicos. É evidente
que estas sabenças não primam pelo cuidado teológico. Às vezes parecem dis-
criminatórias para com a mulher, especialmente a estrangeira, ou cananéia, mo-
rando no território de Israel e capaz de induzir os israelitas em caminhos pagãos.
Mostram discriminação para com o mentalmente perturbado, ou até para com
o pobre etc. E isso, em contradição com as leis do Deuteronômio, que preci-
samente ensinam a proteção dos indefesos e desprotegidos. Além disso, as
sabenças recolhidas na literatura sapiencial são contraditórias entre si. Mas tudo
isso faz parte, exatamente, do gênero do provérbio, que quer ensinar de forma
sucinta e contundente uma observação empírica, não sistemática, mas real. . .
O provérbio não é um dogma ou conclusão teológica. Quer apenas fazer refletir.
Portanto, cuidado para não transformar um provérbio, mesmo bíblico, em argu-
mento dogmático! Respeite-se o gênero literário!

No caso do NT surgiu um tipo muito peculiar de investigação das


formas literárias, a assim chamada "crítica (ou história) das formas" — como
se traduz de modo servil o alemão Formkritik ou Formgeschichte. Chamemo-lo
simplesmente "estudo das formas literárias". Este estudo pretende não apenas
catalogar as diferentes formas (pequenos gêneros) em que as tradições dos fatos
e ditos de Jesus foram cristalizadas, mas ainda pesquisar o contexto vital das
comunidades, que se reflete na própria forma literária. Um exemplo evidente é
Mc 12,13-34, que mostra Jesus discutindo com as diversas categorias do ju-
daísmo: fariseus, herodianos, saduceus, escribas. A memória a respeito de Jesus
foi formulada aqui em forma de argumentos para as discussões que os cristãos
deviam travar com estas mesmas categorias. Este tipo de pesquisa nos permite
ver que já as primeiras comunidades, antes dos textos evangélicos escritos, "con-
tinuavam a conversa" de Jesus levando em consideração o novo contexto em
que elas viviam e atuavam.

O estudo da redação

Na mesma lógica, tornou-se preciso dedicar atenção ao momento em


que os textos foram definitivamente colocados por escrito pelos teólogos das
comunidades bíblicas, tanto do Antigo como do Novo Testamento. Vimos, neste
sentido, o grandioso trabalho realizado, depois do exílio, pela escola sacerdotal,
no Pentateuco, e pela escola deuteronomista, na historiografia deuteronomista.
São duas verdadeiras sínteses teológicas, embora em gêneros literários diferen-
tes. Neste nível, importa estudar a relação entre tradição e redação, ou seja,
entre a forma em que o "material" (narrações, ditos etc.) é recebido pelos
escritores bíblicos, e a forma em que eles o redigem e retransmitem, fazendo
uma nova releitura, "continuando a conversa" numa nova circunstância, para
um novo público e finalidade. Este estudo nos ajuda muitíssimo a descobrir
novas potencialidades do texto, também para nós hoje.

5. OS MÉTODOS SEMÃNTICO-ESTRUTURAIS
Os métodos históricos nos ajudam a conhecer melhor a realidade em
torno ao texto. Os métodos histórico-interpretativos ajudam a melhor perceber o
que os transmissores do texto bíblico, antes e no momento da redação, quiseram
dizer. Mas surge agora um novo problema. O texto esta aí, e tem capacidade
de significar muito mais do que presumimos que o autor quis dizer.
O autor está morto. Mas o texto está vivo! Ele está aí e nos diz
alguma coisa, porque ele está inscrito na estrutura que chamamos a linguagem
e que produz novas significações para nós, quando entramos em contato com
ela. Então devemos olhar não só o passado do texto — como e com que in-
tenção ele surgiu —, mas também o seu futuro — o que ele vai suscitar nas
pessoas. Não apenas o que ele quis dizer, mas o que ele está dizendo, graças
às leis da significação lingüística, que aos poucos vão sendo descortinadas na
semiótica ( = ciência dos signos).
Num mundo onde o sinal vermelho do trânsito significa perigo, e o
verde, passagem livre, estes sinais produzem sua significação independentemente
daquilo que um indivíduo ocasionalmente quer significar por meio deles. Ima-
ginemos só que um guarda, encarregado de controlar os sinais, queira significar
perigo com o verde e passagem livre com o vermelho. . . Vai haver um enorme
conflito entre o que ele quer expressar e o que os sinais de fato estão comuni-
cando aos motoristas.
Com o texto bíblico acontece coisa semelhante. Ele produz um signi-
ficado conforme as leis semióticas, sem que o autor esteja presente. E foi escrito
para isso: para que o autor, ou quem estava por trás dele — pois muitos escri-
tores escreveram como expoentes de um grande apóstolo ou de sua comunidade
— pudesse desaparecer e descansar em paz!
Existem na linguagem estruturas universais; p. ex.: a lei dos opostos.
Confirmar uma coisa é negar o oposto. A confirmação de uma coisa produz
necessariamente a negação do significado oposto etc. A semiótica analisa estas
leis, e a leitura semântico-estrutural aplica isso à Bíblia, como a qualquer outra
literatura. E chega a resultados interessantes. Pode constatar que uma narração
aparentemente primitiva e ingênua transmite muito bem seu efeito de sentido,
lá onde um filólogo tradicional fica decepcionado com o texto por estar escrito
em grego péssimo. É o caso do livro do Apocalipse.
Não podemos entrar aqui nos detalhes deste novo método, bastante
difícil, sobretudo por causa de seu caráter formal, quase matemático, mas que-
remos apontar sua proximidade com a racionalidade da era do computador e da
análise lógico-lingüística. Parece que este método, a longo prazo, vai expor à
luz a "competência" de transmissão de significados dos textos bíblicos, mos-
trando sua capacidade de gerar novas significações e evitando que se tire do
texto significações que de fato não contém. É um método construtivo, aberto.
Ele não leva a dizer: "Este é o sentido", e sim, a O texto é capaz de dizer isto,
e você pode continuar a conversa com ele nesta direção". Por isso, ajudará a
explicitar as virtualmente infinitas possibilidades do texto, de um modo objetivo
e não provocado por nossos desejos subjetivos, mas pela palavra que está aí.
Convém matizar um pouquinho a observação de que "o autor está
morto" e não está aí para explicar o que quis dizer. Os textos bíblicos são
comunitários. Foram produzidos no seio de uma comunidade e ajudam a repro-
duzir esta. A comunidade é, em certo sentido, guardiã do significado original
do texto ou, pelo menos, da continuidade entre o sentido original e sua her-
menêutica. Se o autor desapareceu, sua comunidade está aí, e possui inclusive
instituições para mostrar o sentido de sua auto-expressão: o magistério, o con-
senso das comunidades etc. Isso pode gerar conflitos entre os que lêem o texto
dentro da comunidade e os que não se sentem ligados a ela. Estes últimos
podem construir significações novas, que não têm sentido dentro da comunidade.
Mas, mesmo dentro dos limites da significação condizente com a comunidade,
a leitura construtiva é estrutural permite o desenvolvimento de muitos signifi-
cados novos, sem contradizer o sentido original. Portanto, para não matar a
criatividade e a vitalidade das próprias comunidades em dar sempre novo sen-
tido às palavras de sua fé, a função do magistério deve ser de excluir o que
for incompatível, e não de prescrever o que é permitido pensar.
6. A LEITURA SOCIOLOGICA

Já vimos sobejamente que as diversas maneiras de ler a Bíblia corres-


pondem a diversos contextos de atualidade, a diversas situações e prioridades
de ordem cultural, eclesial, social.
Hoje em dia, no Terceiro Mundo, ouve-se uma pergunta que desafia
a religião cristã e também a leitura da Bíblia: Se a Bíblia contém a verdade,
como é que entre os que apelam para ela existe tanta injustiça? Por que sua
mensagem não é mais eficaz? Por que ela é escondida ao povo que encontra
nela o eco de sua sede de justiça?
Novo desafio, nova desconfiança. Os racionalistas do século XVIII
desconfiavam que a Bíblia escondia a verdade científica. Visaram o alvo errado.
A Bíblia não é um livro de ciência. Mas o desafio serviu para descobrir melhor
a Bíblia e encontrar nela a memória de uma experiência comunitária do Deus
vivo.
Os movimentos revolucionários sociais do séc. XIX, sobretudo o so-
cialismo marxista, perguntaram se a Bíblia não abafa a luta pela justiça, por
causa de seu caráter de sublimação, "ópio do povo". Este desafio fez perceber
que é preciso descobrir as implicações sociológicas da Bíblia. Leu-se a Bíblia por
demais numa perspectiva de salvação individual e não de libertação comunitária.

Vimos que a Bíblia foi escrita em pauta comunitária. Pode-se assim


fazer uma leitura exatamente para realçar esta pauta. Então ficamos impressio-
nados por textos que anteriormente nos escapavam, ou eram diluídos numa vaga
leitura piedosa que não prestava atenção ao caráter incisivo de certos textos.
E assim como o índio do muito espreitar a caça no horizonte aguça o seu olhar,
assim também o treino nesta leitura sensível à dimensão sociológica pode tor-
nar-se um verdadeiro método científico para analisar os fatores sociais, políticos,
econômicos, ideológicos etc. que condicionam a comunidade e sua expressão.
De toda maneira, para a América Latina, filha da cristandade e contudo para-
digma de injustiça social, ele tem importância especial.
O que nos ensina, concretamente, este novo método? A perceber que
a comunidade de fé apresentada na Bíblia é integrada por pessoas que enfren-
tam o desafio de se organizar em comunidade social e política, no contexto
histórico da respectiva época, ao mesmo tempo em que elas procuram ficar fiéis
às percepções religiosas reveladas por Deus. O método sociológico nos ensina
a ler a Bíblia com os pés no chão. Assim, quando Jesus nos ensina a "dar a
César o que é de César e a Deus o que é de Deus" (Mc 12,17), isso não é
uma máxima que paira no ar, acima do tempo e do espaço, mas um posiciona-
mento histórico concreto, com raízes na situação material do povo. Coloca a
pergunta sobre o que "é de César" e, ao mesmo tempo, lembra a fidelidade
à Aliança com Deus, bem mais radical e revolucionária que a questão do imposto
romano.
O exemplo clássico da leitura sociológica é a história do êxodo do
Egito e subseqüente ocupação de Canaã. Esta história — ensina a leitura socio-
lógica — só se entende bem quando, por trás dela, se enxerga a iniciativa dos
habitantes localizados na área rural, para se libertarem da escravidão das cidades-
estados de Canaã, nos séculos XIV a XII aC.
Existem ainda muitos outros textos que ganham em concretude quando
são abordados com a pergunta: "Que realidade política, econômica, social ou
ideológica está por trás disso?" — a "leitura pelos quatro lados". Porém, é
preciso precaver-se do conceito mecanicista que atribui todas as mudanças his-
tóricas exclusivamente a fatores de ordem socioeconómica, considerando as outras
motivações (religiosas, culturais) como reflexos secundários dos fatores mate-
riais. A dimensão religiosa é tão "básica" no homem quanto a dimensão econô-
mica, e ela é a mola propulsora de não poucas revoluções.

7. EXEGESE E HERMENÊUTICA
Nesta altura estamos percebendo que algumas maneiras de ler a Bíblia
acentuam a busca do sentido que o autor original quis expressar para seu público
leitor imediato. Outras leituras focalizam o que as palavras que estão aí, inde-
pendentemente do autor, de fato dizem ou são capazes de dizer ao leitor de
hoje e de amanhã.
Atualmente indica-se a primeira abordagem — a busca do sentido
visado pelo autor no seu contexto (o sentido histórico) — com o termo
exegese (= explicação). Para a outra abordagem, o desenvolvimento de um
sentido para nós hoje, usa-se o termo hermenêutica (interpretação). Alguém
expressou a diferença entre as duas abordagens de maneira eloqüente: a exegese
histórico-literária procura o que fica para trás do texto: as circunstâncias que
condicionam o sentido que ele tinha no momento de sua produção; a hermenêu
tica considera o que fica à frente do texto: o que ele é capaz de dizer em
sempre novas circunstâncias.1
Para perceber a diferença entre sentido histórico de um texto e apli-
cação atualizante, podemos mencionar a ousada hermenêutica que Paulo, em
G1 4,21-25, faz da história de Agar e Sara. Faz de Agar, a escrava, mãe dos
árabes, o símbolo da Aliança do Sinai, que é o evento mais judaico que existe!
É evidente que este não é o sentido histórico do Gn 16,15s e 17,15s; mas
no momento em que Paulo escreve, o Monte Sinai é para ele símbolo daquilo
que ele chama a escravidão da Lei, e é neste sentido que ele lê e "aplica" o
texto. (Usa até o detalhe que o Sinai se encontra na Arábia).
Também hoje, muitas vezes, se lêem textos bíblicos num sentido que
o autor não tinha consciente, mas que não deixa de ser legítimo, porque ba-
seado numa mesma compreensão da vida. É o caso da leitura política de deter-
minados textos. Jesus não foi um ativista político, mas sua luta para libertar

1. A imagem vem de P. Ricoeur e se encontra explicada em J.S. CROATTO. Hermenêutica bíblica.


São Leopoldo, Ed. Sinodal, 1988.
D homem para a prática do amor ppde ser lida, por nós hoje, em pauta política;
pois, para encarnar o amor aos oprimidos hoje, é preciso articulação política.
A hermenêutica "amplia", por assim dizer, o sentido original do texto. Mas é
importante cuidar de ficar na mesma lógica e de permanecer no rastro que o
texto original abriu.
A hermenêutica fornece as significações do texto que são reais na prá-
tica hoje. Pois não é repetindo o sentido histórico que a gente percebe toda
sua significação. O sentido real só se entende por uma transposição da mensa-
gem em termos novos, relacionados com o novo contexto. É como uma equação
de frações, na aritmética: muda-se o denominador, deve-se mudar também o
numerador! Assim:
Sentido histórico (exegese) Sent. atualizado (hermenêutica)
Mensagem religiosa de Jesus Ética política cristã

Socied. religiosa do I séc. dC Socied. politizada hoje


O sentido histórico ajuda a compreender o sentido atual, e vice-versa.
Ambos são legítimos, mas diferentes, e a não-observância da diferença na abor-
dagem leva a muitos conflitos de interpretação.
Quando se fala de leitura popular da Bíblia, pensa-se antes no sentido
hermenêutico, mais acessível a partir da vida do povo, do que no sentido exe-
gético, que exige um mínimo de erudição histórica; embora, por outro lado,
os exegetas tenham o dever de imaginar didáticas simplificadas que permitam
ao povo das comunidades presenciar, por assim dizer, o surgimento histórico
dos grandes significados de sua fé. Mesmo se não é possível todos os dias, é
bom poder beber alguma vez na nascente mesma.

8. O POVO COMO SUJEITO DA LEITURA BÍBLICA

O que causa admiração em muitos europeus entrando em contato com


a realidade latino-americana é o fato de grupos populares se reunirem para o
estudo da Bíblia. De fato, o cristianismo tradicional do Primeiro Mundo foi mar-
cado por um afastamento entre o povo e a Bíblia. Isto é evidente no catolicismo,
que considerou durante muito tempo a Bíblia como coisa dos protestantes. Mas
também nas comunidades protestantes do Velho Mundo o contato com a Bíblia
é menos vivo que em muitas comunidades populares da América Latina, por-
que totalmente dominado por discussões teológicas e apologéticas ou, então,
pela parafernália dos doutores... 2
Foi exatamente a perspectiva sociológica que permitiu estabelecer um
diálogo entre as classes populares e a tradição bíblica. O povo simples percebeu
que muitos problemas de seu dia-a-dia eram também os problemas do povo
bíblico: luta pela terra, exploração, fome, injustiça social, discriminação do
2. Leia, a respeito, a parábola da porta, no primeiro capítulo de C. MESTERS. Por trás das palavras.
Petrópolis, Vozes, 1987. /
pobre, da mulher. . . Não eram problemas de teólogos, mas de todo o mundo.
Esta percepção levou as comunidades populares do Terceiro Mundo a superar
com alegria a barreira cultural que as separava da Bíblia: três mil anos de his-
tória e uma língua estranha. Claro que, para superar esta barreira, o povo pre-
cisou de esforço e organização: círculos bíblicos, realizados com um mínimo de
orientação por parte de especialistas sintonizados com os problemas do povo,
formação de agentes populares para estudo bíblico, publicações evitando o jargão
hermético do "clube dos entendidos", traduções numa linguagem que não criasse
obstáculos de ordem lingüística, sendo que basta a dificuldade intrínseca das
exigências bíblicas... E, sobretudo, uma experiência de uma vida comunitária
guiada pelo espírito da Bíblia: as Comunidades Eclesiais de Base e outras expe-
riências semelhantes de encarnação da fé na realidade cotidiana.
Para tais comunidades, a Bíblia volta a ser o que ela é na sua raiz:
a memória da comunidade, o livro de sua vida. Mas isso não deve ser enten-
dido num sentido fundamentalista, como se a Bíblia tivesse previsto concreta-
mente todas as circunstâncias do séc. XX, prescrevesse o que fazer com a AIDS,
desse orientação para a escolha da ideologia política etc. Tampouco quanto livro
de ciências, a Bíblia é livro de receitas.. . Por isso, é preciso entrar em diá-
logo com ela, continuar a sua conversa, pensar a partir dela para circunstâncias
que ela nunca previu, abrir o seu potencial de sentido, procurar seu "sentido
pleno", como diziam os antigos teólogos judeus e cristãos. E isto é possível,
porque no fundo, debaixo da superfície do texto, a Bíblia tem a mesma raiz que
a nossa vida de hoje. Ensina S. Agostinho que, quem não tem o livro da Bíblia,
sempre tem o livro da vida, escrito por Deus mesmo. Portanto, a leitura da
Bíblia só é verdadeira quando ela é ao mesmo tempo leitura de nossa vida.
A Bíblia é essencialmente a lembrança da fidelidade de Deus para
com seu povo, sem acepção de pessoas. Jesus de Nazaré foi incisivo neste ponto:
Deus é pai para bons e maus. E seu apóstolo, Paulo, insistiu: no âmbito do
evangelho de Jesus, as vantagens de ser judeu, varão e cidadão não têm mais
peso: "Não há mais judeu nem grego, escravo nem livre, homem nem mulher"
(G1 3,28; Cl 3,11). Qualquer tentativa de reservar o "privilégio" da solida-
riedade de Deus para uma classe, uma casta, uma cultura é contrária ao espírito
da Bíblia. Por isso, a Bíblia tem que ser restituída ao povo como sua Carta
de Liberdade.
Johan Konings
Caixa Postal 5047
30000 Belo Horizonte, MG
Leitura sociológica da Bíblia

Este artigo quer ser um guia para o leitor na aplicação do método


sociológico na leitura da Bíblia. Mas quer também discuti-lo, fundamentá-lo e
abordar as dúvidas e críticas a tal leitura. Procurei equilibrar a exposição teórica
com exemplos de aplicação do método. E, desde já, um alerta: apesar do título
estar no singular, não existe apenas uma leitura sociológica da Bíblia. Os enfo-
ques são variados e as leituras são múltiplas.
Por outro lado, a leitura sociológica da Bíblia não pretende ser a
única válida e possível. Ela é complementar a outras abordagens, das quais,
muitas vezes, constitui o primeiro passo.

1. O QUE É O DISCURSO SOCIOLÓGICO?


Entre os séculos XV e XVII acontecem dois deslocamentos no pensa-
mento humano na Europa.
O primeiro é a passagem da especulação escolástica à filosofia da
natureza. Esta, a natureza, passa a ser entendida e explicada experimentalmente.
Este fenômeno se dá com a ascensão da burguesia, na forma de capitalismo
mercantilista.
É importante observarmos que Galileu (1564-1642) destrói a anterior
concepção do universo como sistema imutável e hierarquizado, governado por
Deus. Reduz o universo a um mundo geométrico, a uma física mecanicista.
O segundo deslocamento se dá quando se passa da análise da natureza
para a análise da sociedade. Percebe-se, então, que a organização da sociedade
não é natural, mas histórica. Questionam-se, filosoficamente, os fundamentos da
sociedade, a partir da ótica da nova ordem burguesa. É uma crítica ao poder
absoluto, no qual Deus criava, organizava e geria o mundo, através da Igreja
e de suas leituras da realidade.
É de se notar: Descartes (1596-1650) descobre o sujeito pensante
autônomo, coloca a consciência como a medida e a forma do ser, marcando uma
definitiva virada antropocêntrica.
Mas se Descartes, no século XVII, representa a burguesia progressista
pela racionalização ("penso, logo existo"), é Kant, no século XVIII, quem in-
corpora ao racionalismo os elementos do empirismo inglês (existo como um
feixe de sensações organizadas), resultando que o homem pode ser feliz e orga-
nizar a sociedade com o uso de sua razão. Não é Deus (a Revelação) que ordena
a sociedade, mas é a própria Razão humana. O homem pode se dar os instru-
mentos políticos para organizar e alcançar a sua felicidade.
A. Comte (1798-1857) e E. Durkheim (1858-1917), entre outros,
transformam tal especulação filosófica em sociologia, procurando formular as leis
que regem a organização social.
Comte e Durkheim são pensadores positivistas. Ambos acreditam que
a sociedade possa ser analisada da mesma forma que os fenômenos da natureza.
A sociologia tem, assim, como tarefa, o esclarecimento de acontecimentos sociais
constantes e recorrentes. O papel fundamental da sociologia seria o de explicar
a sociedade para manter a ordem vigente.
Entretanto, o marxismo da um passo a mais: o conhecimento da rea-
lidade social é um instrumento político que pode orientar os grupos sociais na
sua luta pela transformação da sociedade. É no terreno da prática que se deve
demonstrar a verdade da teoria.
Daí não ser a função da sociologia o restabelecimento da ordem social
ou a determinação das normas do bom funcionamento da sociedade, como diziam
os positivistas. Ela deve, antes de tudo, contribuir para a mudança social. É aí
que reside sua função crítica, na medida em que apoia os movimentos de trans-
formação da ordem existente.
Este caminho pode parecer um pouco longo ao leitor, mas é preciso
considerar que a sociologia, hoje na boca de todos, nasce mesmo é como con-
seqüência das profundas transformações geradas pelas revoluções francesa e in-
dustrial. É a formação da sociedade capitalista "que impulsiona uma reflexão
sobre a sociedade, sobre suas transformações, suas crises, seus antagonismos de
classe".1
Ou seja: na Europa, duas condições precedem o aparecimento do pen-
samento sociológico:
P) uma secularização de atitudes e dos modos de compreender a natureza
humana, a origem e o fundamento das instituições;
2*) um processo de racionalização que projeta na esfera da ação coletiva a
ambição de conhecer, explicar e dirigir os acontecimentos e a vida social. 2

1. MARTINS. C.B. O que é sociologia. São Paulo, Brasiliense, 1982, p. 16.


2. Cf. FERNANDES, F. A sociologia no Brasil Petrópolis, Vozes, 1977, p. 25.
Com isto já conseguimos definir o discurso sociológico como aquele
que não se limita a descrever a história como uma sucessão de fatos e aconte-
cimentos, mas como um conjunto de situações, de normas, de usos, de instituições.
As questões sociológicas "ganham significação central também onde
se busca clarear as grandes transformações da história, suas revoluções e crises,
declínios e renascimentos, em ligação com as tensões estruturais".3
Assim foi que, de 1830 às primeiras décadas de nosso século, se
consolidaram os principais métodos e conceitos sociológicos.

2. A BÍBLIA E A LEITURA SOCIOLÓGICA

Quando se trata de aplicar à Bíblia o olhar sociológico, surgem algumas


dificuldades metodológicas. A meu ver, duas delas são fundamentais:
P) Como extrair afirmações sociológicas de textos religiosos antigos
que não foram produzidos levando em conta tal perspectiva? É o problema de
derivar afirmações sociológicas de enunciados não-sociológicos, mas de enuncia-
dos que são primordialmente religiosos.
2*) Qual teoria sociológica é a mais adequada para a leitura dos textos
bíblicos? É o problema das tendências sociológicas existentes hoje, muitas vezes
conflitantes entre si, e o papel que cada uma delas atribui à religião na sociedade.

2.1. Algumas abordagens possíveis

Para extrair dados sociológicos de textos religiosos, G. THEISSEN4,


estudando o movimento de Jesus, propõe três abordagens:
1) A abordagem construtiva, que consiste na interpretação de todas
as afirmações que contêm elementos sociológicos pré-cientíSeos. É o estudo da
origem, da posse e do status social dos indivíduos, e também dos programas,
da organização e do comportamento dos grupos mencionados num determinado
texto ou conjunto de textos.
Usando este método, W. A. MEEKS5, por exemplo, chega à conclu-
são de que o típico cristão paulino era o artesão livre e o pequeno comerciante,
gente dotada de alta mobilidade social, nas grandes cidades do Império Romano.
Não teriam pertencido às comunidades paulinas nem o topo da pirâmide social
da época (aristocratas donos de terras, senadores, cavaleiros etc.) e nem a base
3. THEISSEN, G. Sociologia da cristandade primitiva. Estudos. São Leopoldo. Sinodal, 1987, o. 9.
4. Cf. THEISSEN, G. Sociologia do movimento de Jesus. Petrópolis/São Leopoldo, Vozes/Sinodal,
1989, p. 101-120.
5. Cf. MEEKS, W.A. The First Urban Christians. The Social World of the Apostle Paul. New Haven,
Yale Univ. Éréss, 1983, p. 51-73; cf. também DA SILVA, A.J. Do campo para a cidade: o evangelho de
Paulo. Em: Vida Pastoral, 152 (maio-junho de 1990), p. 13-18. Naturalmente as conclusões de MEEKS não
são unanimemente aceitas, pois os dados dos quais se inferem tais resultados são em geral bastante vagos.
Para uma recensão do livro de MEEKS, cf. COMBLIN, J. Sociologia das comunidades paulinas. Em: Estudos
Bíblicos, 25, Petrópolis/São Bernardo do Campo/São Leopoldo, Vózes/Metodista/Sinodal, 1990, p. 58-64.
da pirâmide, constituída, então, pelos agricultores pobres, escravos agrícolas,
trabalhadores braçais da roça, entre outros.
2) A abordagem analítica, que estuda a realidade social pressuposta
nas afirmações poéticas, éticas e históricas. É importante conferir as afirmações
sobre eventos que se repetem, conflitos entre grupos, normas éticas e jurídicas etc.
A pergunta pelo conflito que, com freqüência, está escondido por trás
do texto é da maior importância.
Em Gn 1,3-5, por exemplo, a criação da luz é, de modo estranho, separada
da criação dos astros, sol, lua e estrelas, que de fato a produzem (Gn 1,14-19).
E mais: sol e lua não são chamados por seus nomes específicos, embora o he-
braico os conhecesse, mas são "luzeiros" colocados no firmamento do céu.
O que está em jogo aqui é o conflito entre os babilônios e os israelitas.
O texto bíblico afirma o senhorio de Javé sobre toda a criação, contra a divi-
nização dos astros feita pelos seus dominadores babilónicos. O texto foi escrito
no exílio e quer demitizar os poderes "divinos" que sustentam a opressão do
povo de Israel, feita pelo grande império.
Em Gn 22,1-19, o sacrifício de Isaac não se consuma, pela intervenção
divina que ordena a sua substituição por um animal, no último instante.
É evidente que em determinado nível do texto o escritor eloísta quer
demonstrar aos seus leitores a fidelidade absoluta de Abraão às ordens de Javé
e incentivá-lo a imitar a sua prática.
Mas, em outro nível, o texto está igualmente polemizando contra o
sacrifício de crianças que os reis de então realizavam para contentar e acalmar
a divindade. Este é o conflito básico que se oculta por trás desta belíssima
saga, que deslegitima as práticas reais de opressão dos camponeses, não exata-
mente na época de Abraão, mas na época de sua escrita, nos séculos IX/VIII aC.
Nas parábolas e milagres de Jesus aparecem claramente as condições
dramáticas em que vivia boa parte da população da Palestina no século I,
sob o domínio romano. E nas atitudes e na pregação de Jesus, a manifesta
denúncia dessa situação e a esperança de mudança são evidentes.
Quando no milagre da multiplicação dos pães Jesus abençoa o pouco
alimento que se tem e ordena que seja distribuído à multidão faminta, ele está
denunciando o sistema de mercado vigente, onde apenas os que têm dinheiro e
recursos se alimentam. E, ao mesmo tempo, ele está demonstrando que, na era
que agora se inicia, mesmo o pouco repartido sacia multidões e ainda sobra
muito. A partilha fraterna é a solução apresentada.
Ao recusar as tradicionais soluções oferecidas pela lei do divórcio em
Israel (Mc 10,1-12; Mt 19,1-9), Jesus está denunciando a posição de sub-
missão e opressão a que era submetida a mulher de seu tempo na sociedade
palestina.
3) A abordagem comparativa recorre a textos que não provêm da si-
tuação dos grupos diretamente em questão e não a descrevem, mas apresentam
analogias com esta situação. O estudo de movimentos análogos aos movimentos
estudados enriquece o nosso conhecimento das condições sociais de uma época.
No caso do movimento de Jesus, dá-se atenção especial aos movimen-
tos de renovação intrajudaicos, como os essênios e os zelotas. Mas também os
fariseus e os saduceus devem ser analisados nos seus posicionamentos religiosos,
políticos e sociais.
Já se discutiu muito, por exemplo, sobre a relação de Jesus com os
zelotas. E muitas vezes se caracterizou a posição de Jesus como de fuga ou
mesmo de reacionarismo frente à proposta revolucionária dos zelotas, à qual
ele não aderiu.
Mas o conhecimento mais profundo do movimento zelota leva-nos a
perceber que seu objetivo era a reconstrução de um Estado teocrático e a ma-
nutenção do poderio do Templo, quando fossem expulsos os romanos.
Ora, a posição de Jesus contra o Templo é muito mais radical e rea-
lista do que a dos zelotas. O Templo era, de fato, o intermediário, ou, pelo
menos, um dos intermediários da dominação romana. Mas não era apenas isso:
mesmo livre dos romanos, o Templo continuaria sendo eficaz recurso de domi-
nação da população judaica, como o fora desde os persas e mesmo durante a
monarquia.

2.2. A escolha da teoria sociológica

A segunda dificuldade metodológica consiste na escolha da teoria so-


ciológica mais adequada para analisar os dados isolados e freqüentemente
fragmentários.
Uma teoria nunca se baseia em dados empíricos somente, transcende-os
sempre. Por isso G. THEISSEN 6 assinala que diante de uma teoria podem ser
assumidas três atitudes:
a) A tolerância hermenêutica, a qual afirma que os objetos (sociais)
não existem em si mesmos, mas como possibilidade de compreensão para o
homem. A conseqüência disso é a de que qualquer interpretação seria verda-
deira. É o que ocorre na leitura existencialista quando ela diz ser a religião a
busca da autenticidade humana e a fé um salto no escuro. Qualquer interpreta-
ção dos textos bíblicos feita a partir deste pressuposto é verdadeira para as
pessoas ou os grupos que a fazem. Não há critério algum de objetividade científica.
b) A verificação crítica, também chamada de racionalismo crítico, ga-
rante, por sua vez, que a legitimidade de uma proposição depende de sua veri-
ficabilidade segundo um método científico. É preciso sempre confrontar a teoria
6. Cf. THEISSEN, G. Sociologia do movimento de Jesus, op. cit., p. 121-123.
com os dados da realidade para verificar a sua validade. Parece boa atitude, e
de fato o é do ponto de vista da objetividade da questão tratada. Mas certa-
mente corre-se o risco de permanecerem ocultas as opções éticas prévias e a
destinação histórica posterior dos resultados obtidos.
c) A percepção engajada já afirma que toda compreensão da realidade
é sempre feita segundo um ponto de vista específico, porque ela é determinada
por interesses que precedem a própria busca do conhecimento e condicionam o
seu desenvolvimento. Desta postura decorre que nem toda interpretação pode
ser verdadeira, por mais objetiva que possa parecer, mas somente aquelas que
têm claros seus objetivos sociais e humanos e deliberadamente os assumem.
E que tais objetivos sejam relevantes para a pessoa, grupo ou sociedade envol-
vida na busca em questão. Pois relevante para a sociedade humana é aquilo
que humaniza. Neste sentido, as categorias de transformação, totalidade e con-
tradição, pertencentes ao método dialético, podem ser fundamentais para a per-
cepção engajada:
• a transformação nos alerta para o fato de que nada existe de fixo ou esta-
belecido de uma vez por todas, sejam idéias, categorias, princípios ou estru-
turas sociais;
• a categoria de totalidade indica que, na análise de cada um dos elementos ou
dimensões da realidade social, não se pode perder de vista a sua relação com
o conjunto;
• já a contradição nos adverte que existe um conflito social permanente, levando
a enfrentamentos ideológicos, políticos, religiosos que, em última instância,
são os confrontos entre as várias classes sociais. "Uma análise dialética é
sempre uma análise das contradições internas da realidade".7

2.3. As tendências do pensamento sociológico

Por sua vez, a existência de interesses opostos e conflitantes na socie-


dade se manifesta igualmente no pensamento sociológico. Há diferentes tradições
sociológicas e modos diversos de entender o papel da religião na sociedade.
Os especialistas costumam dizer, certamente com certa simplificação, que as di
versas sociologias podem ser reconduzidas a três tendências básicas: funciona-
lista, weberiana e marxista.
1) A sociologia funcionalista é hoje uma das mais difundidas nas
sociedades capitalistas, em primeiro lugar nos Estados Unidos. O pensamento
de Durkheim8 foi retomado e desenvolvido especialmente por dois sociólogos
americanos, Merton e Parsons, sem dúvida os maiores responsáveis pelo desen-
volvimento do funcionalismo moderno. O funcionalismo busca a explicação das

7. LÕWY, M. Ideologias e Ciência Social. Elementos para uma análise marxista. São Paulo, Cortez,
1985, p. 16.
8. E. DURKHEIM defendia que a função da sociologia "seria a de detectar e buscar soluções para
os 'problemas sociais', restaurando a 'normalidade social* e se convertendo dessa forma numa técnica de con-
trole social e de manutenção do poder vigente", explica MARTINS, C.B. O que ê sociologia, op. cit., p. 50.
instituições sociais e culturais em termos de contribuição que estas fornecem
para a manutenção da estrutura social.
A sociologia funcionalista da religião privilegia assim a análise das
influências da religião sobre a sociedade. A sociologia da religião de P. BERGER,
por exemplo, sustenta que "em face da desordem (anomia) vivida e sofrida,
a religião expressa, sobretudo, a busca por uma nova ordem". 9 Ou seja: a reli-
gião integra o indivíduo na ordem social. Ela exerce o papel de internalizar e
legitimar a ordem social existente.
Ao estudar o profetismo em Israel, por exemplo, P. BERGER 10 sus-
tenta a idéia de que o carisma profético surge dentro das instituições tradi-
cionais e não em uma situação de marginalidade social. Sua leitura é funciona-
lista na medida em que salienta o caráter inovador e profético da instituição,
sem considerar suas contradições internas.
2) A sociologia interpretativa de M. WEBER trabalha com um ins-
trumento teórico chamado "tipo ideal". O tipo ideal é um conceito sociológico
construído e testado previamente, antes de ser aplicado às diferentes situações
onde se acredita que ele tenha ocorrido. É um modelo teórico fabricado a partir
de fenômenos isolados ou da ligação entre eles, e que é testado, em seguida,
empiricamente. Isto porque WEBER sabe que "nossos conceitos e teorias não
são um retrato da realidade, mas um instrumento para interpretá-la e analisá-la".11
Segundo a sociologia weberiana, a função da religião na sociedade é,
ao mesmo tempo, a de regular os conflitos econômicos, políticos e culturais
entre grupos diversos e de, atualizando estes conflitos, apresentar novas solu-
ções sociais.
A aplicação do método weberiano aos textos bíblicos tem sido bastante
freqüente e, de fato, tem dado alguns bons resultados.
3) A sociologia marxista12y por sua vez, parte do pressuposto de que
não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas é o seu ser
social que determina a sua consciência. Como a religião pertence ao nível ideo-
lógico da realidade, ao nível da consciência humana, é preciso, antes de mais
nada, analisar a influência dos fatores materiais de uma sociedade determinada
sobre a sua religião.
Para se compreender a Bíblia, portanto, devemos verificar a totalidade
do processo social ao qual ela pertence. Não são misteriosas inspirações nem
complexas psicologias dos autores que explicam os textos bíblicos. O que explica
um texto é sua mundivisão, sua maneira específica de ver a realidade, condi-
cionada pelas ideologias ds sua época e classe social.

9. THEISSEN, G. Sociologia da cristandade primitiva, op. cit., p. 33.


10. Cf. BERGER, P. Carisma e inovação religiosa. A localização social da profecia israelita. Em:
Profetismo, São Leopoldo, Sinodal, 1985, p. 86-106.
11. THEISSEN, G. Sociologia da cristandade primitiva, op. cit., p. 25. Theissen oferece bons exemplos
da aplicação do método weberiano ao estudo do cristianismo primitivo.
12. É uma simplificação grosseira falar de apenas um marxismo. O que, de fato, existe, são várias
tendências marxistas, desenvolvidas a partir da leitura de Marx. Há marxismos humanistas, existencialistas,
estruturalistas, neokantianos etc.
Compreender um texto bíblico implica, portanto, analisar as relações
complexas e indiretas — em geral, extremamente mediatizadas — entre este
texto e o mundo em que foi produzido e lido.
A aplicação das categorias do materialismo histórico à Bíblia tem sido
proveitosa. Como no estudo da estrutura da sociedade monárquica israelita, com
a utilização do conceito de "modo de produção tributário"; na questão das
origens de Israel, com a tese da "retribalização"; na crítica profética à idola-
tria, analisada a partir da categoria de fetichização; na análise da prática de
Jesus segundo o evangelho de Marcos etc.
De qualquer modo, o marxismo privilegia uma análise social a partir das
bases, denuncia o absurdo da existência dos oprimidos e desvenda os mecanis-
mos da opressão, sem deixar que nos esqueçamos de que vivemos em uma so-
ciedade extremamente conflitiva, em luta permanente. São características que
tornam a abordagem marxista bastante valiosa para a leitura bíblica feita nas
sociedades dominadas deste nosso Terceiro Mundo. A leitura sociológica crítica
na América Latina só pode ser aquela feita a partir dos oprimidos em luta
pela libertação.13

3. A LEITURA SOCIOLÓGICA E OUTRAS LEITURAS


A leitura sociológica da Bíblia se relaciona especialmente com os mé-
todos histórico-críticos e com a leitura popular.
Na medida em que toda abordagem sociológica de um texto histórico
é também uma abordagem histórica, a leitura sociológica tem colaborado, com-
plementado e corrigido a leitura histórico-crítica.
Especialmente importante é a percepção de que sua colaboração se
faz necessária quando a historiografia não se contenta em descrever as ações
dos grupos dominantes de determinada sociedade, mas a história se torna a
atividade de um povo total.
Neste sentido, a história de Israel não é a história de reis, sacerdotes
ou generais, mas é uma história popular: é a história dos feitos de Javé com
o seu povo, através do povo.
Do mesmo modo, a leitura sociológica fecha a porta, "firme e irrevo-
gavelmente, às ilusões idealistas e supernaturalistas que ainda impregnam e en-
feitiçam nossa perspectiva religiosa * 14 quando abordamos um texto bíblico.
Também a leitura popular que vem sendo feita entre nós se beneficia
das contribuições da sociologia. Por exemplo: no estudo do contexto em que
foram escritos os textos bíblicos costuma-se olhar quatro lados da situação:
econômico, social, político e ideológico. Esta é uma atitude sociológica, entre
outras que poderiam ser aqui citadas na leitura popular da Bíblia.
13. Cf. MADURO, O. Religião e luta de classes. Petrópolis, Vozes, 1981, p. 58-67.
14. GOTTWALD, N.K. As tribos de labweb. Uma sociologia da religião de Israel liberto 1250-1050 aC.
São Paulo, Paulinas, 1986, p. 709.
Gostaria de lembrar ainda outro aspecto: a análise sociológica vem
conseguindo responder satisfatoriamente a questões que a clássica "teologia bí-
blica" não conseguiu até agora, como bem o mostra N.K. GOTTWALD.15
A teologia bíblica é um movimento paralelo à neo-ortodoxia de Barth
e ao existencialismo de Bultmann, que surgiu após a I Guerra Mundial e atingiu
o seu apogeu na década de 50.
A teologia bíblica tenta harmonizar a descontinuidade histórica de
Israel, procurando demonstrar a unicidade religiosa do "pensamento bíblico".
E acaba falindo em tratar a religião de Israel como um fenômeno social. O que
era comum e o que era diferente em Israel em relação às culturas vizinhas?
Por que seria Javé diferente dos outros deuses? Por que Israel seria um "povo
eleito"?
A análise sociológica, sem precisar recorrer a supernaturalismos nem
a uma visão dualista da realidade, pode trazer real contribuição para a discussão
de tão difíceis questões.

4. ALGUMAS DIFICULDADES DA LEITURA SOCIOLÓGICA

Segundo G. THEISSEN 16, na virada do século XIX para o XX, per-


guntas sociológicas foram regularmente aplicadas ao texto bíblico. Mas, neste
século, aconteceu um retrocesso na pesquisa sociológica bíblica. Entre os mo-
tivos por ele enumerados, destacam-se especialmente:
1) A teologia dialética de K. Barth, que levou a exegese a refletir
sobre o conteúdo teológico dos textos, espiritualizando a pergunta pelo "Sitz
im Leben" (contexto social), que passou a ser apenas o "lugar vivencial" reli-
gioso. Os textos eram lidos primariamente como expressão da teologia da comu-
nidade e de sua fé. Diminuiu o interesse social e aumentou o religioso.
2) A hermenêutica existencial de Bultmann que, com sua tendência
individualizante, enfraqueceu mais ainda o interesse pela dimensão social dos
textos.
Passando a outro nível, uma dificuldade bem conhecida entre nós, na
aplicação do método sociológico, é o grande despreparo dos biblistas na área
das ciências sociais.
Com freqüência não se sabe que método sociológico escolher, mistu-
ram-se na análise as várias tendências, criando um método eclético que corre
o risco de oferecer uma belíssima solução para um problema inexistente ou mal
colocado.
Além do que, aconteceu a burocratização do trabalho do sociólogo a
partir da II Guerra Mundial e o comprometimento cada vez maior de seus
15. Cf. Idem, ibidem, p. 669-700.
16. Cf. THEISSEN, G. Sociologia da cristandade primitiva, op. cit., p. 9-14.
instrumentos teóricos com a defesa da sociedade capitalista contra a expansão
do socialismo. Passou-se a confundir a sociologia crítica, não-conservadora e não-
funcionalista, com um comunismo a ser combatido a todo o custo.
No Brasil, a coisa se agrava mais ainda, pois persiste uma ordem pa-
trimonial que sufoca o pensamento racional livre, considerado incompatível com
seus interesses. A justificação moral existente emanava, ainda há pouco, do poder
dos costumes, e a "explicação racional do comportamento humano e da origem
ou do funcionamento das instituições, como a sociológica, encontrava natural
resistência".17
A defesa do sistema tradicional e católico de concepção do mundo
é ainda um dos grandes obstáculos à leitura sociológica. Ao pretender estudar
racionalmente a religião, os seus textos fuundadores ou as instituições religiosas,
a sociologia crítica é vista como materialista, ímpia e desagregadora dos valores
cristãos.
Acusa-se, ainda hoje, a leitura sociológica de fechar as portas ao trans-
cendente e ao sobrenatural, na medida em que ela se reduz ao horizonte empí-
rico da Bíblia. A leitura sociológica seria reducionista, porque reduz fenômenos
religiosos a fatores não-religiosos e também porque determina fenômenos reli-
giosos por fatores não-religiosos.
Diz-se também que a leitura sociológica sujeita a Bíblia a contínua
reinterpretação dependente de estruturas sociopolíticas instáveis, e isto elimina o
magistério da Igreja e atropela as verdades eternas do cristianismo.18
Naturalmente tais críticas partem de um pressuposto epistemológico
específico, que costuma colocar do lado do "natural" uma série de conceitos
relativos ao mundo e à história, e do lado do "sobrenatural" tudo o que é rela-
tivo ao sagrado.
Este dualismo não pode ser sustentado, já que assim opomos como
duas grandezas iguais Deus e o homem, revelação e razão, graça e pecado. Ora,
teologicamente, o sobrenatural nada mais é do que o mesmo natural elevado
ao nível de sua destinação divina, pelo olhar da fé.
Entretanto, a persistência dessa visão dualista transforma a Salvação
no seu conhecimento. Conhecimento que é enunciado num conjunto doutrinal,
celebrado num rito e organizado numa instituição. Finalmente, esta visão opõe
Igreja e mundo, levando a prática dos cristãos ao sectarismo, ao clericalismo e
ao apolitismo.19

17. FERNANDES, F. A sociologia no Brasil, op. cit., p. 30.


18. Cf. TERRA, J.E.M. Como se lê a Bíblia na América Latina. Em: Rev. de Cultura Bíblica,
n. 45 e 46. São Paulo, Loyola/LEB, 1988, p. 40-56.
19. Cf. BOFF, C. Teologia e Prática. Teologia do Político e suas mediações. Petrópolis, Vozes,
1978, p. 175-237.
CONCLUSÃO
Na leitura sociológica da Bíblia, como em qualquer outra leitura, a
linha que divide o conhecimento científico da realidade das projeções ideológicas
de quem lê é muito tênue.
Por isso, gostaria de terminar este texto lembrando a reflexão da filó-
sofa MARILENA CHAU120 sobre a diferença entre saber e ideologia.
O saber se esforça para elevar à dimensão do conceito uma situação
de não-saber. A experiência imediata costuma ser obscura e indeterminada.
O saber determina esta indeterminação, tornando-a inteligível. Portanto, há um
risco a ser aceito no processo de saber, que é o risco da indeterminação que
faz nascer a reflexão.
A ideologia, por sua vez, recusa a indeterminação. Ela tem a preten-
são de coincidir com as coisas. Ela neutraliza a história, oculta as contradições,
desarma as interrogações. Ela unifica pensamento, linguagem e realidade. Ela
obtém uma imagem universalizada de todos os sujeitos sociais, que é a imagem
da classe dominante.
A ideologia torna-se dominante quando ela consegue conjurar o perigo
da indeterminação social e política que levaria a sociedade à interrogação. Ela
fixa previamente a ordem constituída. E domina as pessoas.
Mas no saber as idéias são históricas, porque são um produto de
um trabalho humano que nunca se cansa, apesar das dificuldades.

Airton José da Silva


Caixa Postal 30
14340 Brodosqui, SP

20. Cf. CHAUÍ, M. Cultura e democracia. O discurso competente e outras falas. São Paulo, Moderna,
19823, p. 3-5,
Leitura libertadora
também de textos não-libertadores da Bíblia

Nos últimos 25 anos, as bases populares da Igreja têm redescoberto


a Bíblia como seu livro: expressão adequada de suas vivências e, com a autori-
dade de Palavra de Deus, orientação para o seu caminhar.
À medida que o uso da Bíblia aumenta, os grupos populares não se
contentam mais em receber o "prato feito": quando possível, eles mesmos
passam a escolher suas leituras bíblicas. Esta emancipação traz novos estímulos
e alegrias, mas também novos questionamentos. Na impossibilidade de apro<
fundar aqui o assunto, gostaríamos de chamar a atenção para um problema
metodológico bastante freqüente: como abordar os numerosos textos "esquisi-
tos" da Bíblia — textos que acusam no seu autor humano uma consciência
dominada, quando não dominadora.

1. O FATO

Tanto no Antigo como no Novo Testamento há numerosos textos nada


libertadores: discriminatórios, vingativos, injustos. Passagens como:
• SI 137,8s: amargo sentimento de vingança.
• Dt 21,18-21: delação pelos pais e apedrejamento do filho rebelde.
• E c l o 33,25-29: dureza para com o escravo.
• Eclo 42,1.5c: idem.
• Eclo 38,24-34: discriminação do trabalhador braçal.
• Ecl 7,26-28: pessimismo amargo em relação à mulher.
• lCor 14,34s e lTm 2,11-14: discriminação da mulher.
• 2Jo 10: severidade com adversários, apesar da indignação por tratamento se-
melhante em 3Jo 9-11.
• Ap 18,6: lei do talião em dobro.
Às vezes, um texto que parece até bem consciente, lido com mais
atenção, revela sérias distorções. Exemplos:
• Pr 16,8: assim formulada, esta verdade esconde o verdadeiro problema.
• Pr 25,5: o rei está acima de qualquer suspeita.
• Dt 15,1-3: pretende defender o devedor; mas é válvula que mantém a viabi-
lidade de um sistema econômico gerador de pobreza.
Claro que há também o contrário. Assim, Pr 12,4 é sem dúvida andro-
cêntrico; mas, lido com atenção, sublinha quanto e em que profundidade o
homem depende da esposa.
Não é só, nem principalmente, questão de textos isolados. Boa parte
do AT é marcada por perspectivas com as quais hoje não nos podemos identificar:
• imagem patriarcal ou "monárquica" de Deus;
• forte exclusivismo religioso;
• soluções inadequadas para problemas de injustiça social.
E no NT?
• Continua o exclusivismo religioso, agora com características expansionistas;
• é freqüente a visão do mundo em preto e branco: nós os bons contra os
demais, que são maus;
• contra os adversários, vale tudo: caricaturas (p.e. da Tora), juízos genera-
lizantes (p.e. do farisaísmo), eliminação simbólica dos adversários (como
no Ap).
Que atitude tomar diante de textos assim?

2. SOLUÇÕES INSATISFATÓRIAS
O mais cômodo é deixar para lá textos que criam problemas, pin-
çando só os que interessam. Numa primeira fase da atividade com a Bíblia, é
compreensível que o grupo proceda assim. Continuar a fazê-lo é como censurar
a Bíblia; julgá-la, em vez de deixar-se julgar por ela.
Uma segunda saída insatisfatória é interpretar passagens bíblicas in-
cômodas de maneira arbitrária, forçando-as a dizer o que gostaríamos que dis-
sessem. Assim, certas exegeses querem a todo custo arrancar do texto uma
lucidez sociopolítica que ele simplesmente não alcançou, mas que se gostaria
de propor como bíblica. Sem dúvida, os textos da Bíblia têm grande reserva
de significação; novas situações de vida inspiram sempre novas leituras. Mas
que estas não violentem o texto. É a célebre "biscateação" ou "picaretagem"
hermenêutica que C. Boff já criticava nos anos 70. 1 Semelhante abordagem
continua tomando a Bíblia como livro de receitas e modelos de ação. Não con-
vence, podendo até tornar-se contraproducente. Não tenhamos medo: a verdade
não precisa de nossas mentiras, como diria Pio XI.
1. BOFF, Clodovis. Teologia e prática. Teologia do político e suas mediações, Petrópolis, Vozes, 1978,
408 p. Aqui, p. 245s.
Finalmente, uma terceira resposta insatisfatória consiste em apelar para
a imperfeição do AT, destinada a ser corrigida pelo Novo. Repetidas vezes, até
a Bíblia de Jerusalém recorre a esta evasiva. Na realidade, a coisa não é tão
simples: como vimos, também o NT contém textos que decepcionam, de homens
ao mesmo tempo santos e pecadores.

3. PISTAS
Toda leitura é diálogo entre leitor e texto. Neste diálogo, o texto,
uma vez publicado, não muda mais; a produção de sentido depende agora da
capacidade do leitor para, respeitando o texto, lê-lo de maneira sempre nova.
Por isso, diante de textos que acima chamamos de "esquisitos", não adianta
forçá-los a estarem, a todo custo, ao lado dos oprimidos — ou das nossas idéias.
Conversão forçada não liberta. Por que tanto esforço para colocar o autor do
nosso lado? Importa é de que lado nós estamos. Um leitor não convertido
tende a usar mal até bons textos; como os amigos de Jó, que colocaram refle-
xões bonitas a serviço de uma causa errada; ou como o demônio que, nas nar-
rativas sinóticas das tentações de Jesus, cita a própria Bíblia, mas mal.
Já um leitor convertido fará boa leitura de textos em si fracos ou
opressores. Como em qualquer diálogo franco: a uma colocação reacionária posso
responder de modo libertador. No caso da Bíblia, em que consistiria a leitura
libertadora mesmo de textos não libertos?
Pedagogicamente, pode-se proceder em três níveis: 2
1) Recordar as inevitáveis limitações de toda linguagem humana, mesmo quando
nos comunica Palavra de Deus. Com toda a sua fé, as pessoas que Deus
escolheu para escreverem a Bíblia estiveram sujeitas a condicionamentos his-
tóricos, psicossociais, econômicos, políticos, culturais, como qualquer ser
humano.
2) Procurar compreender o pano de fundo daquilo que nos parece estranho na
Bíblia:

gente dominada facilmente introjeta a dominação;
• um grupo acuado facilmente se torna agressivo;
• uma comunidade religiosa que se vê como alternativa para a sociedade em
que vive, facilmente cria mística de auto-exaltação.
3) Estaremos então mais preparados para ler não só o texto mas, através dele,
a realidade que ele ao mesmo tempo revela e esconde. A leitura de textos
não-libertadores pode tornar-se libertadora na medida em que soubermos:
• aprofundar os interesses e conflitos direta ou indiretamente presentes no
trecho;
• perceber como o trecho enfrenta esses interesses e conflitos;
• desmascarar o opressor embutido no trecho de maneira camuflada;
2. Cf. CNBB. Textos e manuais de catequese: elaboração, análise, avaliação. São Paulo, Paulinas, 1987
(Estudos da CNBB 53). Ver n. 68-70.
• reconhecer o quanto também nós estamos sujeitos a limitações; sim, pois a
Bíblia não é só retrato de um passado; é também espelho dó nosso presente:
ás deficiências que nela aparecem podem bem ser as nossas;
• enfim, ler o texto à luz da fé. Qual é o critério supremo para esta leitura
crente? É uma pessoa: Jesus Cristo, morto e ressuscitado, vivo na comuni-
dade cristã; este Jesus que se fez pobre e se posicionou diante da realidade
a partir dos marginalizados, em vista da salvação do homem, do Reino de
Deus.

4. CONCLUSÃO

A leitura libertadora justamente de textos não-libertadores torna-se


assim de especial utilidade: é a que melhor nos ensina a ler todo e qualquer
texto da Bíblia.
Tivemos que nos ater ao aspecto hermenêutico da leitura bíblica: à
interpretação libertadora. Seria preciso abordar igualmente outro aspecto meto-
dológico ligado ao que dissemos: como libertar também através de procedimen-
tos participativos e que promovam a interação entre a reflexão e a atuação
transformadora. Fica o lembrete.

Wolfgang Gruen
Caixa Postal 1178
30161 Belo Horizonte, MG
Traduzir: interpretar ou re-criâr? *

Não lembro mais o seu nome. Faz muito tempo. Perguntei-lhe como ia
indo o seu grupo de reflexão bíblica, e a resposta foi pronta: — Vai bem.
A única dificuldade grande que a gente encontrou foi quando o Evangelho disse
que Jesus entrou em Jerusalém montado no filho do jugo. Ninguém conseguiu
descobrir o que é isso. — Animal de carga, vocês entendem? — perguntei.
— É claro! Burro ou jumento! Daí passei a uma breve explicação do semitismo
de "filho", o indivíduo, o tal; e do desusado de "jugo" que a gente chama de
canga ou cangalha.
Traduzir não é simplesmente transpor o vocabulário de uma língua
para o vocabulário da outra. Isso um computador poderia fazer. Talvez seja
até possível quando se trata de um texto estritamente técnico ou científico.
Quando se trata de um texto literário, porém, e principalmente quando esse
texto é tão antigo e de gêneros tão diversos como a Bíblia, então traduzir
significa primeiro interpretar, e depois criar um novo texto literário. É preciso
coragem para assumir uma interpretação, mas é também preciso coragem para
tentar criar um outro texto, numa nova concepção literária. Interpretar só não
basta. Não basta escolher um dos possíveis sentidos do original e reproduzi-lo
numa linguagem fria, técnica e unívoca. E quando o original quer exatamente
ficar aberto a mais de uma possível interpretação?

O ERUDITO E O POPULAR

Literário não é sinônimo de erudito, muito menos de sofisticado ou


rebuscado. Até pelo contrário. A sofisticação do estilo e o requinte do vocabu-
lário não raro escondem falta de idéias e conteúdo. Texto literário, pelo con-
* Não tenho a menor pretensão de apresentar um estudo exaustivo ou tecnicamente acabado. Trago
apenas algumas observações anotadas quase que para uso pessoal. Não pretendo mais cjue partilhar.
trário, é aquele que com poucas palavras diz muito, diz tudo. As letras do
Chico Buarque, por exemplo, mesmo as mais elaboradas como a de "Constru-
ção", trabalham com vocabulário pobre, com expressões e ditos populares em
frases curtas, simples e diretas. Aí reside a sua arte e a sua grandeza. O mesmo
se pode dizer, por exemplo, do 49 Evangelho: vocabulário reduzido, períodos
simples, aparentemente repetitivos e até maçantes, porém. . .
O popular, sinônimo de simples e facilmente compreensível, pode e
deve ser literário. Pode e deve ter elegância, sonoridade e subtilidade. Princi-
palmente esta última. Um texto que não tenha um toque de malícia, de subti-
lidade, que não desafie a inteligência do leitor ou do ouvinte, é insosso e desin-
teressante. Não é preciso ser nenhum Guimarães Rosa para saber apreciar o
que só o povo sabe dizer, com arte, beleza e propriedade.

LINGUAGEM TÉCNICA X LINGUAGEM LITERÁRIA

A linguagem técnica, esta sim, podemos dizer que se opõe à literária.


Como a tecnologia se opõe à arte, como o pré-moldado dispensa a criatividade,
como a funcionalidade elimina a busca, e a mentalidade tecnocrática não com-
bina com o espírito lúdico.
Aí entramos em área delicada: a mentalidade. Aquilo que nos é mais
próprio e íntimo, os modos de pensar que vão se tornando uma segunda natu-
reza; critérios que, por eficientes e modernos, vão sendo aceitos sem crítica e
acabam passando para o subconsciente. A linguagem técnica é precisa, exata, não
deixa margem para dúvidas e oscilações, não admite sentido duplo. O vocabu-
lário técnico é definido por gênero e diferença específica, cabe com toda a exa-
tidão no computador, o grande herói dos tempos modernos. A linguagem técnica
é séria, não dá margem a mal-entendidos ou sub-entendidos. Não brinca em
serviço.
Enquanto isso, a linguagem literária é travessa, irônica e brincalhona.
Gosta dos sub-entendidos e dos mal-entendidos. Brinca com as palavras, com
as frases e até com os sons. Tira significado da cadência, do ritmo e das asso-
nâncias. Deixa muita coisa, o mais importante, para o leitor ou ouvinte concluir.
Tem a pretensão de não dizer tudo e desafia o leitor a buscar os significados
mal mostrados, escondidos e até não escondidos, mas encontráveis ou revelados
pelo próprio texto. A arte libera o subconsciente e o inconsciente.
A linguagem (e também a mentalidade) da Bíblia não é técnica, é
literária. Mas há a tentação de se vê-la como livro técnico e expressão exata
de conceitos teológicos. Aí, traduzir a Bíblia significaria basicamente interpretar
teologicamente o texto original e interpretá-lo na minha língua, de forma erudita
ou popular, mas sempre com conceitos certos, claros e unívocos, que tecnica-
mente não permitam qualquer outra interpretação. Se não é possível transpor
para a minha língua tudo o que diz o original, a gente escolhe o que julga
mais importante (aí a coragem para assumir uma interpretação) e deixa per-
der-se o resto. Importa é que não fiquem dúvidas ou ambigüidades.
Algumas perguntas me tomam de assalto: Será preciso desfazer ou
explicar os artifícios literários a fim de tornar clara a tradução? Claro é o
mesmo que unívoco? O povo não entende, por exemplo, as metáforas? Os arti-
fícios literários da Bíblia estão muito distantes da cultura do nosso povo? Ou
estão distantes da cultura dos intelectuais? Exemplo: poemas alfabéticos não
fazem o gosto dos eruditos. No entanto, a Bíblia tem vários e a literatura de
cordel está repleta deles.

"LINGUAGEM BÍBLICA'' E MUDANÇA CULTURAL

A tradução literal da Bíblia, especialmente as traduções da Vulgata,


criaram uma chamada linguagem bíblica. Por isso é que em muitas das estórias
populares de "quando Deus andava no mundo", os personagens, por exemplo,
empregam sempre a 2® pessoa do singular e mais ainda a 2^ do plural como
forma de tratamento. Uma série de palavras como ímpio, servo, maligno, en-
fermo, etc., só se usa na linguagem bíblica ou religiosa, que assimilou bastante
a primeira a ponto de um fiel pentecostal estar doente à procura de um médico,
mas enfermo à espera de uma bênção na casa de oração. Não é difícil encontrar
um genitivo epexegético ou hebraico, ou outros modos de dizer tipicamente
semitas, nas orações litúrgicas compostas originalmente em latim. Muitas vezes
a simples atualização do vocabulário e do fraseado basta para dar nova vida
ao texto.
Partir, então, para uma linguagem totalmente nova e atualizada que
procure reencarnar as palavras e o torneio das frases nas formas e expressões
que hoje comumente se usam? Em muitos casos, sim. Em outros, perder-se-ia
o que ficou tradicional, que passou a ser uma segunda natureza da entidade
que se identifica como Igreja. Essa é a razão da Linha 3 da CNBB (Catequese) ao
sugerir que a aprovação da Bíblia na Linguagem de Hoje esteja condicionada
ao emprego de "Aliança" em vez de "Acordo", e "Senhor" (Javé) em vez de
"o Eterno". Certas palavras trazem um mundo de ressonâncias, um eco que
atravessa gerações de fiéis e não se deve perder, seria um prejuízo grande e
inútil abafá-lo.

ATÉ ONDE RECRIAR?

Há formas literárias, palavras ou conceitos na Bíblia que não encon-


tram mais correspondentes em nossa cultura atual. Como fazer? O paralelismo,
por exemplo, para um eficiente ocidental é perda de tempo, repetição inútil da
mesma cantilena. Seria possível eliminar vocábulos ou até mesmo frases "inúteis"
ou meramente repetitivas? Ou o paralelismo apenas revela (e também condicio-
na) formas de observar, de pensar e de raciocinar diferentes das nossas. Vai
contornando a realidade aos poucos, raciocina em espiral ou em ziguezague, em
total contradição com a lógica linear e o vocabulário técnico da filosofia grega
e medieval ou da moderna informática. O raciocínio do povo também não é
tão linear. Ele também gosta de agredir o assunto pelas beiradas, como quem
come um prato de mingau quente. O paralelismo se encontra nos modos de
falar e de pensar do povo. Mesmo assim, seria possível tornar menos maçantes
e mais elegantes certos textos onde o paralelismo é explorado à exaustão como
em certos salmos?
Para o texto adquirir uma clareza cristalina é preciso explicar as me-
táforas, desembrulhar o bombom, jogar o papel fora e colocar o doce na boca
do leitor sem lhe dar qualquer trabalho. Será? Será possível falar sem metá-
foras? E quando a metáfora corre o risco de não ser entendida em vista da
defasagem cultural evidente? "Teu bastão e teu cajado, eles são o meu con-
forto" (SI 23[22],4) fica difícil de se entender. Será preciso traduzir só por
"Tu me proteges e me diriges"? Para explicar e desmontar tais metáforas seria
necessário explicar todo o Salmo, que é uma alegoria do pastor, figura estranha
à nossa cultura. Simplificação do vocabulário ("Tua vara e teu porrete são a
minha segurança") não bastaria? Ou seria possível recriar toda a metáfora, quem
sabe até todo o Salmo, como às vezes faz Cardenal?
Seria viável reproduzir no nosso alfabeto os poemas alfabéticos da
Bíblia? Em algumas estrofes, seria inevitável perder ou modificar um pouco o
sentido original. Mas por mais original que tenha sido o autor, ele não terá
também forçado o sentido e a poética, vez por outra? Não valeria mais a pena
manter o sentido do conjunto: o tema cantado por todos os ângulos, ou por
todas as letras?
E quando é o caso das assonâncias ou aliterações? Muitas vezes falam
mais que o próprio significado lexicográfico. Is 5,7, ao final do Cântico da
Vinha, diz: "Ele esperava pela Mishpat e aí está Mispah; pela Tsedaqá e aí está
Tse'aqá. O significado da peregrina Mispah e da pouco usada Tseaqá interessa
menos. Importa que signifiquem alguma coisa bem oposta à justiça e ao direito
(Mishpat e Tsedaqá), mas que principalmente tenham um som bem semelhante.
Acho que nesses casos seria necessário tentar recriar uma assonância. Só então
se conservaria o que o autor ironicamente diz: "Parece que vocês não ouviram
bem o que ele queria: 'Esperava o direito, aí o despeito; a justiça, aí a cobiça!' *

E há mais, muito mais. Aí o grande risco de tentar re-criar.

José Luiz Gonzaga do Prado


Caixa Postal 159
37800 Guaxupé, MG
Ler a Bíblia com olhos de mulher

Pediram-me para escrever sobre o método de leitura bíblica das mu-


lheres latino-americanas. Logo deparei com uma pergunta: Existe um método
próprio das mulheres lerem a Bíblia?
Suspeito que estamos a caminho. . . Caminho de elaborar um método
próprio. Isso enquanto mulheres que quebramos o silêncio sobre o feminino e
refazemos a coragem de sermos mulheres, inclusive recuperando a face de Deus
homem e mulher.
Neste processo de redescoberta da própria identidade feminina, tão
reprimida e oprimida, aproximamo-nos da tradição omitida. A tradição das
mães e irmãs da Bíblia que foram lutadoras e anunciadoras de libertação. Mulhe-
res corajosas que fizeram história e hoje são modelo positivo e esperançoso para
a nossa caminhada como mulheres.
Temos intuições e várias pistas que possibilitam organizar um modo
de ler próprio, mas não único, absoluto, pronto e acabado. São pistas que nos
levam a criar espaços alternativos. Não pretendem ser um método paralelo a
outros modelos libertadores já existentes. Mas é o modo de ler que faz com
que nós mulheres participemos nas tentativas de abrir novos caminhos, gerando
novas falas, novas compreensões de Deus, a partir do nosso contexto de pobres,
oprimidas, marginalizadas.

1. NOS DIVERSOS CORPOS DE MULHERES, A FACE DE DEUS

O nosso modo próprio de ler a Bíblia sistematiza-se a partir da vida


concreta, marcada por dores, sabores e cores, de corpos de mulheres afro-
índio-latinas.
Nesta tarefa não descartamos os instrumentais acadêmicos da exegese
e da hermenêutica bíblica. Ainda "não conseguimos ultrapassar os esquemas
recebidos", visto que o poder religioso cristão até hoje é monopolizado por
homens, ainda que sejam as mulheres a maioria ativa das Igrejas.
Queremos encontrar pistas possíveis para usar tais métodos em diálogo
com a tradição oral das mulheres latino-americanas.
Tanto as mulheres que fazem o caminho da elaboração escrita (biblistas,
teólogas. . .), como as mulheres ricas da tradição oral, falamos a partir do
nosso contexto: marcadas pela exploração econômica e sexual; marginalizadas
por nossa condição de empobrecidas, nosso sexo, nossa raça e cor; excluídas
das instituições de poder político e religioso.
Na nossa hermenêutica temos como mediação os nossos corpos que
deixam a marca no nosso modo de ler a Bíblia e de compreender Deus.
A origem do nosso método está na nossa imersão no conflito, na luta
por libertação de mulheres e homens, na superação do machismo, na nossa
experiência de fé.
Por isso, está nos corpos silenciados nas torturas, na repressão, na
miséria. . . nos corpos sexualmente sofridos. . . nos corpos que amam, que sen-
tem, que desejam e geram a vida. . . que acolhem a esperança. . . corpos refle-
xionantes! Geradores de uma nova reflexão bíblico-teológica que abrem espaços
para que mulheres e homens descubram uma nova face de Deus.

2. MULHER-BÍBLIA E BÍBLIA-MULHER

A. Dificuldades

Há pelo menos três elementos-chave entre as dificuldades que encon-


tramos na tarefa de reler a Bíblia tendo as mulheres como sujeitas:
1) O contexto histórico-cultural em que os textos bíblicos foram escritos.
A Bíblia foi escrita numa cultura patriarcal, onde o pai era supremo na
família, no clã, na nação. Legalmente a mulher e a criança eram depen-
dentes e inferiores.
2) "As tradições foram feitas por comunidades androcêntricas, ou seja, de
varões".
3) A linguagem sexista presente nas traduções e nas hermenêuticas masculinas,
condicionantes de muitas leituras. Entendemos o sexismo como um pecado
que divide a humanidade em superior e inferior. O mesmo ocorre no ra-
cismo e no classismo.
B. Desafios
1) Na Bíblia existem textos que tratam da fala e do testemunho de
mulheres. São textos importantes porque relatam a ousadia das ações de tantas
mulheres, a participação das mesmas na história do povo da Bíblia. .. e como
permaneceram na memória de resistência deste mesmo povo.
Tratamos de nos reapropriar destes textos, nos identificamos com as
mulheres presentes neles e sabemos que os mesmos "podem trazer chaves de
leitura para abrir o sentido de outros textos".
Lamentavelmente, quando se trata do nosso modo de ler a Bíblia,
as pessoas geralmente associam a nossa hermenêutica com tais textos. "Ficar
neste único aspecto é restringir muito a contribuição das mulheres".
2) Há outros textos que guardam a memória de situações vivenciais
que escapam do interesse masculino e que suspeitamos sejam relatos da pre-
sença anônima de grupos de mulheres. Neste caso, devemos perseguir alguns
"elementos estratégicos no modelo hermenêutico feminista", traçados por Fio-
renza: "conscientização e suspeita, reconstrução histórica, avaliação teológica e
apreciação, imaginação criativa e ritualização".
"A busca do sentido não se reduz ao literal, ao pensado, mas se lança
curiosa entre as omissões e opções do texto. Transita no impensado, no inter-
dito, abrindo alternativas do sentido". Reapropriamo-nos da memória de mulheres
anônimas que moldaram a história de libertação do mundo bíblico, objetivando
a nossa própria participação e libertação.
3) A maioria dos textos bíblicos trata de assuntos gerais que expli-
citam o pensamento e os valores da sociedade patriarcal. Não fugimos destes
textos. Tratamos de lê-los com a mente aberta, estabelecendo o contexto cultural,
social, econômico, político e ideológico. . . perguntando pela intenção do autor. . .
para desmascará-los e, em seguida, analisar a nossa realidade. Aqui também
vale a hermenêutica da suspeita.
4) O enfoque principal no nosso modo de ler é a interpretação e a
releitura não sexista da Bíblia, e supõe uma mudança radical que anuncia a
igualdade entre as pessoas.
Isso vale para qualquer texto e não é uma tarefa exclusivamente
nossa. Mas é tarefa de mulheres e homens. Precisamos transformar a nossa
linguagem, nossos símbolos e nossos conceitos com referência a Deus.
Ora, o machismo, o sexismo, estão presentes em nós como ideologia
que determina comportamentos e submissões. Por isso, a mudança de linguagem
exige a transformação da experiência humana e a consciência acerca da realidade.
Propomos "a revisão das imagens patriarcais de Deus, a releitura da
Escritura na tentativa de recuperar a 'memória subversiva' das mulheres do
passado e conseqüentemente a reabilitação da mulher como lugar da manifestação
do divino, tanto quanto o homem".
CONCLUSÃO

As hermenêuticas androcêntricas centram suas elaborações na imagem


do Deus masculino. Generalizam as falas acerca de Deus, excluindo as mulhe-
res. Reforçam e legitimam as divisões e dominações.
Ler a Bíblia com olhos de mulher supõe o resgate do Deus pleno,
que cria mulher e homem à sua imagem e semelhança. Sem dualismo entre
corpo e espírito. . . sem divisões de inferior e superior.
A nossa hermenêutica se faz "não só com a razão, mas com todo
material que a vida fornece: dor e alegria, angústia e esperança, corpo, mãos,
coração".
No eixo da nossa leitura estão os encontros, as narrações das histó-
rias, as partilhas, a produção coletiva... Sabedoras de que, como dominadas,
somos sujeitas da nossa libertação. Não são os homens que nos darão graciosa-
mente a liberdade. . . Conquistaremos! Em diálogo e em solidariedade com eles.
No nosso modo de ler a Bíblia, resgatamos a ação das parteiras egípcias
que burlaram a ordem do Faraó, defendendo a vida; a ação de Raab — pros-
tituta e pagã — em solidariedade com o povo de Israel sem terra e salvando
o clã de seu pai do massacre dos donos da terra; a ação da menina escrava de
Naamã, anunciadora do Deus que é doador de vida e saúde. . . de tantas outras
anônimas... e nomeadas: Ana, Débora, Isabel, Maria e Marias... e de todo
o povo oprimido. . . e compreendemos Deus encarnado na nossa história de
libertação.
Desta leitura emerge um Deus com outra face revelando-se a partir
da mulher índia e negra. . . das mães da América!

BIBLIOGRAFIA

BINGEMER, Maria C. Lucchetti. Chairete: Alegrai-vos (Lc 15,8-10) ou a


mulher no futuro da Teologia da Libertação. Em: REB, Petrópolis, Vozes,
vol. 48, fase. 191, setembro de 1988.
COUCH, Beatriz Melano. Hermenêutica desde la perspectiva de la mujer. Em:
Mujer: seminário 1987. Buenos Aires, Focopress, 1988.
DUSSEL, Enrique. Alienação e libertação da mulher na Igreja. Em: Virada do
século na América Latina, Puc-Estudos/4, São Paulo, Paulinas, 1984.
FIORENZA, Elisabeth S. Para uma teologia libertada e libertadora. Em: Con-
cilium/135, Petrópolis, Vozes, 1978.
GEBARA, Ivone. Desafios que o movimento feminista e a teologia feminista
lançam à sociedade e às Igrejas. Em: Estudos Teológicos, São Leopoldo, Fac.
de Teologia da IECLB, n. 2, 1987.
. (<Levànta-te e anda,} — Alguns aspectos da caminhada da mulher na
América Latina. São Paulo, Paulinas, 1989.
-. As incômodas filhas de Eva na Igreja da América Latina. São Paulo,
Paulinas, 1989.
PEREIRA, Nancy C. Solidariedade absoluta de Deus com as crianças. Em: Ca-
dernos Populares da Pastoral do Menor. São Paulo, Pastoral do Menor/CNBB,
n. 9, novembro de 1989.
TAMEZ, Elsa (ed.). Las mujeres toman la palabra. São José, DEI, 1989.

Genilma Boehler
Caixa Postal 5151
09735 São Bernardo do Campo, SP
A leitura bíblica nas Igrejas evangélicas

O ramo protestante do cristianismo é pluriforme quanto ao governo,


práticas e princípios de fé. Nem por isso ele é totalmente divergente quanto
à leitura bíblica. Há, nele, princípios convergentes de hermenêutica e exegese,
princípios estes com nuances particularizadas de acordo com cada denominação.
Para Lutero, Cristo é o centro da Bíblia, e a tradição, assim como
a ciência da interpretação, esta em segundo plano quando se trata de examinar
a Bíblia na busca do conhecimento da salvação. Já Melanchton fala do uso da
"gramática" seguida da teologia para a leitura bíblica. Calvino afirma que a
palavra é "ditada pelo Espírito Santo, e a leitura interpretativa da Bíblia se
destina ao ensino da doutrina da salvação; à letra nada mais há que acrescentar
senão a submissão à 'soberana decisão de Deus' ".
Com o advento do Pietismo (séc. XVII) a leitura bíblica se expandiu
na vida eclesial. Neste movimento os princípios de interpretação são: 1) Ênfase
na letra — significado original das palavras — e no temperamento manifesto
pelos escritores — que serve para admoestação prática. 2) A "analogia da fé",
mais fortemente ligada à doutrina da salvação pela ênfase na conversão da
pessoa. 3) A educação da vontade humana pelas propostas salvíficas expressas
no texto. João Wesley fala do entendimento de textos mais difíceis pelo sentido
literal dos textos mais claros quanto à doutrina da salvação. O sentido atual
do texto é buscado pela "inspiração direta" do Espírito Santo na letra e no
coração do intérprete. Wesley aconselha até a recorrer aos que "são mais expe-
rimentados nas coisas de Deus" para se afirmar a ortodoxia da interpretação e
da doutrina. Destes elementos eclodem as principais raízes do fundamentalismo;
a exegese escrava da dogmática e o literalismo.

Pode-se dizer então que o protestantismo tem três ênfases básicas de


interpretação: 1) A prioridade da Escritura sobre a tradição. 2) A leitura interpre-
tativa objetivando a conversão. 3) A Bíblia interpretando-se a si mesma.
No entanto, a Reforma protestante popularizou a Bíblia e abriu o texto
bíblico ao povo colocando-o em línguas nativas, estimulando o acesso direto
da pessoa ao texto, fortalecendo a liberdade pessoal da interpretação — acesso
este até então nas mãos do clero. No entanto, o princípio da liberdade de inter-
pretação é negado pela prática, pois a doutrina da "analogia da fé", consumada
em "confissões e credos", restringirá a abordagem ao texto pelas afirmações de
fé da denominação.
Uma conferência ecumênica realizada em Oxford em 1949 procurou
traçar alguns elementos comuns de interpretação. São eles: 1) O texto bíblico
está acima dos métodos e opiniões particulares. 2) A mensagem da salvação
pela graça é o eixo hermenêutico central da Bíblia. 3) A "comunidade redi-
midaw é o lugar a partir do qual a Bíblia deve ser interpretada. 4) Os fatos
descritos no texto bíblico estão em desconexão com a vida atual, embora haja
certa correspondência (vê-se aqui que se procura superar o concordismo) . 5 ) O
texto bíblico está acima da razão e da lei natural; a Igreja deve corrigir-se pelo
texto, e não o inverso.
Esta conferência reconhece o trabalho exegético histórico-çrítico e a
leitura histórico-salvífica do texto, priorizando o texto em relação à vida atual,
mantendo a tensão doutrinal entre o Reino de Deus e os reinos deste mundo,
e coloca a Bíblia como ponto de partida para a unidade da Igreja.
Estas linhas interpretativas do protestantismo chegam até os membros
das Igrejas através da doutrina e da catequese. Com isso a leitura bíblica é
acondicionada, ora ao literalismo ora ao dogmatismo, cujas conseqüências são
o divisionismo — por motivos práticos, doutrinários e estruturais — e o fun-
damentalismo, este centrado na conversão e na "reta doutrina".

Western Clay Peixoto


Caixa Postal 1466
30161 Belo Horizonte, MG
Reflexões sobre a mística que deve animar
a leitura orante da Bíblia

1) Ao iniciar a leitura orante da Bíblia, você não vai estudar; não


vai ler a Bíblia para aumentar o seu conhecimento nem para preparar algum
trabalho apostólico; não vai ler para ter experiências extraordinárias. Mas vai
ler a Palavra de Deus para escutar o que Deus lhe tem a dizer, para conhecer
a sua vontade e, assim, poder viver melhor o Evangelho de Jesus Cristo. Em
você deve estar a pobreza; deve estar também a disposição que o velho Eli
recomendou a Samuel: "Fala, Senhor, que teu servo escutar (lSm 3,10).
2) Poder escutar a Deus não depende de você nem do esforço que
fará, mas só e unicamente de Deus, da sua decisão gratuita e soberana de entrar
em contato com você e de fazer com que você possa ouvir a sua voz. Para isto
é necessário que você se prepare, pedindo que Ele mande o seu Espírito. Pois
sem a ajuda do Espírito de Deus não é possível descobrir o sentido que a
Palavra de Deus tem para nós hoje (cf. Jo 14,26; 16,13; Lc 11,13).
3) É importante criar um ambiente adequado que favoreça o recolhi-
mento e a "escuta" atenta da Palavra de Deus. Para isto você deve colocar-se
na presença de Deus e permanecer atento a ela durante todo o tempo da lectio
divina. E lembre-se: uma boa e digna posição do corpo favorece o recolhimento
da mente.
4) Abrindo a Bíblia, você deve estar bem consciente de que está
abrindo um livro que não é seu, mas da comunidade. Fazendo a sua leitura
orante, você está entrando no grande rio da tradição da Igreja que atravessa
os séculos. A leitura orante é o barquinho que nos carrega pelas curvas deste
rio até o mar. O clarão luminoso que nos vem do mar já clareou a "noite
escura" de muita gente. Mesmo fazendo sozinho a sua leitura orante da Bíblia,
você não está só, mas estará unido aos irmãos e às irmãs que, antes de você,
procuraram "meditar dia e noite na lei do Senhor" (SI 1,2).
5) Uma leitura atenta e proveitosa da Bíblia tem três passos. Gu seja,
do começo ao fim, ela deve estar marcada por três atitudes:
V Passo ou atitude: antes de tudo você deve ter sempre a preocupação de
investigar: "O que o texto diz em si?" Isto exige que faça silêncio. Dentro
de você tudo deve silenciar, para que nada o impeça de escutar o que
o texto tem a dizer, e para que não aconteça que você leve o texto a dizer
só aquilo que você gosta de escutar.
2? Passo ou atitude: você também deve ter sempre a preocupação de se per-
guntar: "O que o texto diz para mim, para nós?" Neste segundo passo,
você entra em diálogo com o texto, para que o sentido se atualize e penetre
a sua vida. Como Maria, rumine o que escutou (Lc 2,19.51), para que,
assim, a Palavra de Deus habite abundantemente na sua boca e no seu
coração.
39 Passo ou atitude: além disso, você deve estar sempre preocupado em des-
cobrir: "O que o texto me jaz dizer a Deus?" É a hora da prece, o mo-
mento de vigiar em orações. Até agora, Deus falou para você; chegou a
hora de você responder a Ele.
6) O resultado, o 49 passo, o ponto de chegada da leitura orante é a
contemplação. Contemplação é:
a) ter nos olhos algo da "sabedoria que leva à salvação" (2Tm 3,15);
b) é começar a ver o mundo e a vida com os olhos dos pobres, com
os olhos de Deus;
c) é você assumir sua própria pobreza e eliminar do seu modo de
pensar aquilo que vem dos poderosos;
d) é tomar consciência de que muita coisa, da qual você pensava que
fosse fidelidade a Deus e ao Evangelho, na realidade nada mais era do que
fidelidade a você mesmo e aos seus próprios interesses e idéias;
e) é saborear, desde já, algo do amor de Deus que supera todas as
coisas;
f) é mostrar pela sua vida que o amor de Deus se revela no amor ao
próximo;
g) é dizer sempre: "faça-se em mim segundo a tua Palavra" (Lc 1,38).
Assim, tudo o que deve ser feito, será feito de acordo com a Palavra do Senhor.
7) Para que a sua leitura orante não fique entregue só às conclusões
dos seus próprios sentimentos, pensamentos ou caprichos, mas tenha firmeza
maior e seja realmente fiel, é importante você levar em conta três exigências
fundamentais:
1® Exigência: confrontar o resultado da sua leitura com a comunidade a que
você pertence, com a fé da Igreja viva. Do contrário, poderia acontecer que
o seu esforço não o leve a canto nenhum (G1 2,2).
2Ç Exigência: confrontar aquilo que você lê na Bíblia com a realidade que hoje
vivemos. Quando a lectio divina não alcança o seu objetivo na nossa vida, a
causa nem sempre é falta de oração, falta de atenção à fé da Igreja, ou falta
de estudo crítico do texto. Muitas vezes, é simplesmente falta de atenção à
realidade nua e crua que hoje vivemos, aqui na América Latina. Quem vive
na superficialidade, sem aprofundar sua vida, não pode atingir a fonte de onde
nasceram os Salmos, dizia Cassiano.
3Ç Exigência: confrontar as conclusões da sua leitura com os resultados da
exegese bíblica que investiga o sentido da Letra. A lectio divina — é verdade —
não pode ficar parada na letra; ela deve procurar o sentido do Espírito (2Cor
3,6). Mas querer estabelecer o sentido do Espírito sem fundamentá-lo na letra
é o mesmo que construir um castelo no ar (S. Agostinho). É cair no engano
do fundamentalismo. Hoje em dia, em que tantas idéias novas se propagam,
é muito importante ter bom senso. O bom senso se alimenta do estudo crítico
da letra.
8) O apóstolo Paulo dá vários conselhos de como ler a Bíblia. Ele
mesmo foi um bom intérprete. Eis algumas das normas e atitudes recomendadas
e observadas por ele.

Quando você for ler a Bíblia:


a) considere-se destinatário do que está escrito, pois tudo foi escrito para a
nossa instrução (ICor 10,11; Rm 15,4); a Bíblia é o nosso livro;
b) procure ter nos olhos a fé em Jesus Cristo, pois é só pela fé em Jesus que
o véu cai e que a Escritura revela o seu sentido e nos comunica a sabedoria
que leva à salvação (2Cor 3,16; 2Tm 3,15; Rm 15,4);
c) lembre-se: Paulo falava de "Jesus Cristo crucificado" (ICor 2,2), "escân-
dalo para uns e loucura para outros"; foi este Jesus que lhe abriu os olhos
para perceber como, no meio dos pobres da periferia de Corinto, a loucura
e o escândalo da cruz estavam confundindo os sábios, os fortes e os que
pensavam ser alguma coisa neste mundo (ICor 1,21-31);
d) misture o eu e o nós; nunca só o eu, e nunca só o nós! O apóstolo também
misturava, pois recebeu sua missão da comunidade de Antioquia e falava
a partir dela (At 13,1-3);
e) tenha presente os problemas da sua vida pessoal, da sua família, das comu-
nidades, da Igreja, do povo a que você pertence e serve; foi assim que
Paulo relia e explicava a Bíblia: a partir dos problemas das comunidades
por ele fundadas (ICor 10,1-13).
9) Ao ler a Bíblia tenha bem presente que o texto da Bíblia não
é só uma janela por onde você olha para saber o que aconteceu com os outros
no passadd; é também um espelho, um "símbolo" (Hb 11,19), onde você olha
para saber o que está acontecendo hoje com você (ICor 10,6-10). A leitura
orante diária é como a chuva mansa que, aos poucos, vai amolecendo e fecun-
dando o terreno (Is 55,10-11). Entrando em diálogo com Deus e meditando
a sua lei, você cresce como a árvore plantada à beira dos córregos (SI 1,3).
Você não vê o crescimento, mas perceberá o resultado no encontro renovado
consigo, com Deus e com os outros. Diz o canto: "É como a chuva que lava,
é como o fogo que arrasa, tua Palavra é assim, não passa por mim, sem deixar
um sinal".
10) Um último ponto a ser levado em conta. Quando você hz leitura
orante, o objetivo último não é interpretar a Bíblia, mas sim interpretar a vida.
Não é conhecer o conteúdo do Livro Sagrado, mas sim, ajudado pela Palavra
escrita, descobrir a Palavra viva que Deus fala hoje em sua vida, na nossa vida,
na vida do povo, na realidade do mundo em que vivemos (SI 95,7); é crescer
na fé e, como o profeta Elias, experimentar, cada vez mais, que "vivo é o
Senhor, em cuja presença estou!" (lRs 17,1; 18,15).

DEZ PONTOS PARA ORIENTAR A LEITURA ORANTE,


PESSOAL E DIÁRIA DA BÍBLIA

Atitude do discípulo fiel


"Para saber levar uma palavra de conforto a quem está desanimado".
"Toda manhã Ele me desperta, sim, desperta o meu ouvido, para que
eu o ouça como um discípulo" (Is 50,4).
1) Iniciar, invocando o Espírito Santo.
2) Leitura lenta e atenta do texto.
3) Momento de silêncio interior, lembrando o que leu.
4) Ver bem o sentido de cada frase.
5) Atualizar e ruminar a Palavra, ligando-a com a vida.
6) Alargar a visão, ligar o texto com outros textos bíblicos.
7) Ler de novo, rezando o texto e respondendo a Deus.
8) Formular um compromisso de vida.
9) Rezar um salmo apropriado.
10) Escolher uma frase como resumo para memorizar.
"O Senhor Javé abriu-me os ouvidos e eu não fui rebelde, não recuei.
Ofereci o meu dorso aos que me batiam. O Senhor Javé virá em meu socorro.
Eis por que não me sinto humilhado. Perto de mim está aquele que defende
minha causa" (Is 50,4-8).

SETE SUGESTÕES PARA ORIENTAR


A LEITURA ORANTE FEITA EM GRUPO
Jesus apresentou-se no meio deles e disse: "A paz esteja com vocês!"
Em seguida, abriu-lhes a mente para que entendessem a Escritura (Lc 24,36.45).
E disse ainda: "O Espírito Santo que o Pai enviará em meu nome, vos ensinará
tudo e vos recordará tudo o que eu vos disse. Ele vos conduzirá à verdade
plena" (Jo 14,26; 16,13).
1) Acolhida, oração
a) Acolhida e breve partilha das expectativas.
b) Oração inicial, invocando a luz do Espírito Santo.
2) Leitura do texto
a) Leitura lenta e atenta, seguida por um momento de silêncio.
b) Ficar calado, para que a Palavra possa calar em nós.
c) Repetir o texto em mutirão, tentando lembrar tudo o que foi lido.
3) O sentido-em-si do texto
a) Trocar impressões e dúvidas sobre o sentido do texto.
b) Se necessário, ler novamente e esclarecer-se mutuamente.
c) Um momento de silêncio para assimilar tudo c que foi ouvido.
4) O sentido-para-nós
a) Ruminar o texto e descobrir o seu sentido atual.
b) Aplicar o sentido do texto à situação que hoje vivemos.
c) Alargar o sentido, ligando-o com outros textos da Bíblia.
d) Situar o texto no Plano de Deus que se realiza na história.
5) Rezar o texto
a) Ler de novo o texto com toda a atenção.
b) Momento de silêncio para preparar a resposta a Deus.
c) Rezar o texto, partilhando as luzes e forças recebidas.
6) Contemplar, comprometer-se
a) Expressar o compromisso ao qual a leitura orante nos levou.
b) Resumir tudo numa frase para levar consigo durante o dia.
7) Um salmo
a) Achar um salmo que expresse tudo o que foi vivido no encontro.
b) Rezar o salmo para encerrar o encontro.
"Depois disto, todos elevaram a voz a Deus, dizendo: 'Senhor, tu
criaste o céu, a terra, o mar e tudo que existe neles. Por meio do Espírito Santo
disseste através do teu servo Davi, nosso pai: Por que se amotinam as nações,
e os povos planejam em vão? Os reis da terra se insurgem e os príncipes
conspiram unidos contra o Senhor e contra o seu Messias. Agora, Senhor, olha
as ameaças que fazem e concede que os teus servos anunciem corajosamente
a tua palavra' " (At 4,24-26.29).
"Quando terminaram a oração, estremeceu o lugar em que estavam
reunidos. Todos, então, ficaram cheios do Espírito Santo e, com coragem, anun-
ciavam a Palavra de Deus" (At 4,31).
Carlos Mesters
CEBI
Rua Montes Claros, 214
30310 Belo Horizonte, MG
Indicações bibliográficas

Uma obra clássica, ainda sem equivalente em português, sobre os métodos


histórico-críticos de estudo da Bíblia (melhor: do NT) é:
— Heinrich ZIMMERMANN. Los métodos histórico-críticos en el Nuevo
Testamento. Madri, BAC, 1969, 306 e 6 il. (tradução do alemão).
Na mesma área, situam-se três cadernos (todos traduzidos do alemão), da
coleção Entender a Bíblia das Edições Paulinas:
— Gerhard LOHFINK. Agora entendo a Bíblia. S. Paulo, 1978, 172 p. (ed.
original alemã, 1973; trata-se da "crítica das formas").
— VÁRIOS AUTORES. Como ler a Bíblia. "Laboratório" da ciência bíblica:
métodos, técnica, interpretação. S. Paulo, 1983 (ed. alemã, 1976).
— Diego ARENHOEVEL. Assim se formou a Bíblia. Para você entender o
Antigo Testamento. S. Paulo, 1978, 164 p. (3* ed., 1989).
Sobre a análise estrutural, em português estão traduzidas (do francês) duas
obras bastante difíceis:
— VÁRIOS AUTORES. Iniciação à análise estrutural. S. Paulo, Ed. Pauli-
nas, 1984, 102 p.
— C. CHABROL — L. MARIN. Semiótica narrativa dos textos bíblicos. Rio
de Janeiro, Forense Univ. 1980, 134 p.
Sobre a leitura sociológica e a leitura "materialista" da Bíblia, veja a resenha
A Bíblia recolocada na história onde nasceu, Estudos Bíblicos n. 1, p. 50-66
(3* edição, 1986).
Sobre a hermenêutica (além das obras citadas no artigo de Walmor Oliveira
de Azevedo, neste caderno):
— J. Severino CROATTO. Hermenêutica Bíblica. S. Paulo, Ed. Paulinas,
76 p.
Sobre a "leitura orante":
— VÁRIOS AUTORES. A leitura orante da Bíblia. S. Paulo/Rio, Loyola/
CRB, 1990, 80 p.
Sobre o magistério católico:
— Como ler e entender a Bíblia hoje. Textos oficiais da Igreja. Petrópolis,
Vozes, 1982, 56 p.
Sobre a leitura popular, veja toda a coleção de Estudos Bíblicos e as publi-
cações do CEBI e de frei Carlos Mesters.
Para uma crítica da tendência anterior, cf. os cadernos 43-44 (1987) e 45-46
(1988) da Revista de Cultura Bíblica, coordenada por João Evangelista Mar-
tins TERRA, S.J.
Em outras línguas, obras práticas e acessíveis são:
— G. FLOR SERRANO — L. ALONSO SCHÕKEL, Dicâonario termino-
lógico de la ciência bíblica. Madri, Ed. Cristiandad, 1979, 146 p.
— Wilhelm EGGER, Metodologia dei Nuovo Testamento. Bolonha, Ed.
Dehoniane, 1989, 264 p.

Alberto Antoniazzi
Caixa Postal 417
30161 Bdo Horizonte, MG
Recensão

E R. GALBIATI — A. ALETTI. Atlas histórico da Bíblia e do Antigo Oriente.


Petrópolis, Vozes, 1991.

Os avanços que a Palavra de Deus tem feito no Brasil, e os esforços


sempre crescentes para conhecê-la, são agora premiados com esta publicação que
favorecerá a entrada no mundo bíblico através da história e da geografia. A ca-
rência de um Atlas Bíblico de grande porte, denso e completo, era já uma
lacuna, agora muito bem preenchida.
Neste gênero o público brasileiro só tinha acesso a obras menores,
como o Atlas ilustrado do mundo bíblico, de Joseph Rhymer, traduzido pela
Melhoramentos, em 1985, ou ainda o Pequeno atlas bíblico, de H.H. Rowley,
em edição da ASTE, além do Atlas da Bíblia, Paulinas, 1986, de tamanho ainda
menor, e dos grandes Mapas bíblicos, da mesma editora. Portugal produziu um,
de J. Machado Lopes, Atlas Bíblico, Lisboa, Difusora Bíblica, 1981, mas que
não foi comercializado no Brasil.
Este reúne a experiência de um doutor em ciências bíblicas, GAL-
BIATI, e ALETTI, especialista em história e geografia bíblica. Traduzido de
seu original italiano, o Atlas abrange todo o arco histórico, da pré-história à
queda de Jerusalém no ano de 70 dC. Alguns períodos da história recebem
atenção mais detalhada, como a época dos Macabeus e a resistência judaica ao
domínio romano. Mas a história toda é vista de forma linear, passando da
Bíblia para os demais documentos, e voltando daí para a Bíblia, de modo har-
monioso e global. Ricas páginas de introdução ampliam os horizontes do leitor,
e não faltam mesmq informações, no final, sobre o cristianismo no mundo
contemporâneo.
Trata-se de uma "Bíblia Geográfica" (p. 238), no sentido que vai
mapeando toda a Bíblia, sua fonte principal. Depois segue Flávio Josefo. Como
o enfoque geral da obra é histórico, não há lugar para Gn 1—11 ou sapienciais,
no AT (p. 17-18), nem para as cartas católicas, no NT.
Do ponto de vista didático a obra possui ótima disposição gráfica, com
os mapas à direita e as explicações à esquerda, mantendo "constante e estreita
integração entre o texto e as ilustrações" (p. 11).
No total são 71 ilustrações, cada qual contendo outros mapas menores,
para esclarecer detalhes de um mesmo acontecimento histórico. É possível seguir,
desta forma, o roteiro de toda a história bíblica, acompanhando as mudanças
territoriais, as alterações dos nomes, ou as variações de povos e culturas. Os
mapas são ilustrados com itinerários claros, em cores distintas, indicando traje-
tórias de personagens ou exércitos. Mapas de cunho físico ou arqueológico são
impressos em relevo. Há além disso plantas de cidades, templos e palácios.
A tradução dos nomes bíblicos, pedra de tropeço para todas as versões,
segue em geral a Bíblia Vozes, com os critérios literários de nossa língua, sendo
transcritos do hebraico, aramaico, ou grego, quando necessário, e sendo farta-
mente explicados na introdução metodológica (p. 14-16). Os diversos índices,
no final, facilitam a identificação de qualquer localidade, mesmo que esta tenha
sofrido variações, seja pelas mudanças históricas, seja pelas variantes de tradução.
O Atlas satisfaz professores e estudiosos da Bíblia, dada a abundância
de informações que contém, mas pode ser também uma porta de entrada para
os iniciantes, pois começa ensinando o modo de citar ou de ler uma citação
bíblica (p. 12).
Alem da introdução metodológica, informando sobre o uso do Atlas e
sobre a Escritura em geral, segue-se a introdução histórica, com a problemática
Bíblia-história e vários documentos da época dos reis, uma introdução geográ-
fica, com descrição física relativamente breve, de toda a Terra Santa, e uma
introdução arqueológica, muito rica, contendo a história, listas e descrições das.
principais localidades arqueológicas da Palestina e Oriente Médio.
Muito acertadamente o Atlas faz entrar na Palestina pela pré-história
(p. 51), e na seqüência dá grande espaço aos vários impérios da Mesopotâmia,
relativizando o Egito, como opção metodológica explícita, "para a compreensão
das numerosas relações de Israel com os povos do Antigo Oriente" (p. 11).
Contudo, a síntese histórica relativa ao Antigo Egito, bem como a lista e a clara
localização das dinastias (p. 60-62), além da localização dos hicsos, hititas e
outras potências do Oriente Próximo (p. 73-75) facilitam a compreensão do
Êxodo e da conquista.
O período dos Juízes segue mais o estilo esquemático do livro de
Josué, com a distribuição da terra ligada à liderança do próprio Josué, na esteira
da tradição mosaica. A monarquia, em compensação, é tratada com muitos deta-
lhes, e a emaranhada cronologia dos dois reinos destrinchada com elencos, esque-
mas e quadros cronológicos. Também a importância dada ao Império persa situa
muito bem o exílio (p. 142-144), e a história dos Diádocos fornece as bases
para compreender o helenismo e a história dos Macabeus. A resistência maca-
baica, por sinal, é um dos pontos altos de todo o livro, unindo à precisão his-
tórico-geográfica o calor e a emoção da arte narrativa.
Todo o período que precede a vinda de Jesus é amplo e detalhado,
favorecendo assim a oatieta compreensão de sua mensagem dentro dos quadros
da dominação romana. Este aspecto é tanto mais válido quanto menos menções
faz a própria Bíblia ao século que precede o NT.
As narrativas evangélicas são todas levadas em conta, harmonizadas
numa espécie de sinopie dos quatro Evangelhos, com todos os títulos e citações.
A última semana de Jcsos pode ser seguida passo a passo. Do itinerário de
Jesus à missão dos Apóstolos e à expansão do cristianismo, vai-se através do
livro dos Atos, com mençm a algnmas passagens paulinas.
A partir daí (p. 220), refaz toda a guerra judaica, ano por ano, de
66 a 73, narrando os fatos com marnila e incluindo detalhes pitorescos. Novos
mapas-resumo, elencos e índices completam a proposta bem-sucedida.
Ao longo do Atlas, as diversas fases históricas são concluídas com um
comentário sobre o "valor religioso" de quase todas. Deste modo a historio-
grafia bíblica é vista também como História da Salvação.

Vdmor dã Silva
Índice de 1991 (cadernos 29-32)

(O número em negrito corresponde ao número do caderno, os outros


correspondem às páginas).

ARTIGOS

ANTONIAZZI, A. Indicações bibliográficas 32 105-106


AZEVEDO, W.O. O que é ler? 32 46-57
BAILÀO, M.P. Evangelizar é criar uma nova sociedade — A
formação da nação Israel como anúncio do Reino de Deus 31 18-26
BOEHLER, G. Ler a Bíblia com olhos de mulher 32 93-97
COSTA, J.A. Leitura espontânea da Bíblia a partir dos fatos
da vida 32 24-26
DIETRICH, L.J. Jó: uma espiritualidade para sujeitos históricos 30 32-43
FARIA, J.F. — SILVA, J.B. Leitura bíblica através de sím-
bolos e imagens 32 27-32
FRIGERIO, T. A mulher faz teologia 29 79-90
GALLAZZI, A.M.R. — GALLAZZI, S. Templo x mulher 29 64-78
GRUEN, W. Leitura libertadora também de textos não-liber-
tadores da Bíblia 32 85-88
JESUS, J.P.T. Evangelização e resistência — Uma leitura de
Daniel 1 31 35-46
KONINGS, J. A leitura da Bíblia 32 58-73
LARA, T. Leitura bíblica e leitura da nossa nistória — Uma
experiência de formação de agentes populares 32 33-38
LAZIER, J.A. A espiritualidade de Paulo em ICoríntios 30 59-66
MESTERS, C. A Bíblia lê a Bíblia — Sobre o fenômeno da
releitura dentro da Bíblia 32 39-45
. Reflexões sobre a mística que deve animar a leitura
orante da Bíblia 32 100-104
NOGUEIRA, P.A.S. Apocalíptico sim! Alienado não! 31 71-78
OLIVEIRA, E.M. Bíblia: Palavra de Deus em palavras humanas 32 12-23
PEIXOTO, W.C. A leitura bíblica nas Igrejas evangélicas 32 98-99
PETRY, Z.L. As mulheres: testemunhas do Reino 30 44-51
PRADO, J.L.G. Traduzir: interpretar ou re-criar? 32 89-92
ROCHA, M.O.F. Pesquisa sobre a mulher 29 9-14
RODRIGUEZ, J.L. A Bíblia e os conquistadores — Aspectos
do uso ideológico da Bíblia no século XVI, por ocasião da
invasão da América 31 9-17
ROSSI, L.A.S. Espiritualidade dos hebreus versus espirituali-
dade do Faraó 30 26-31
RUBEAUX, F. A situação da mulher hoje 29 15-25
SANTIN, J. O evangelista-trabalhador 31 59-70
SCHWANTES, M. Jonas — "Os ninivitas creram em Deus" 31 27-34
SILVA, A.J. Leitura sociológica da Bíblia 32 74-84
SILVA, M.J. O poço concentra a vida e marca os aconteci-
mentos (Gn 21,25) 29 91-95
SILVA, S.S. — BARBOSA, R.F. — MORAIS, Z.R. Débora
e Jael: mulheres que fazem história 29 59-63
TOMITA, L.E. A autoridade das mulheres na evangelização
primitiva 31 47-58
ULRICH, CJ5. Marta e Maria: as mulheres dão sinais da vi-
vência de uma nova espiritualidade 30 52-58
VÁRIOS. A defesa do projeto na memória das mulheres 29 26-32
. As parteiras: "As mulheres hebréias são cheias de
vida!" (Ex 1,15-22) 29 33-39
-. Pesquisa preliminar sobre Raab (Js 2,1-21; 6,17-25) 29 40-53
Raab: revekção do projeto 29 54-58
ZABATIERO, J.P.T. Conflitos de espiritualidade — Reflexões
sobre a memória espiritual do povo de Deus no AT 30 9-25
. Reescrever a espiritualidade na vida — Uma proposta
para a leitura de Romanos 5—8 30 67-73

LIVROS RECENSEADOS

PIXLEY, J. A história de Israel a partir dos pobres. Petrópo-


lis, Vozes, 1990, 2* ed. 29 96-102
PURY, A. (ed.) Le Ventateuque en question. Les origines et
la composition des cinq premiers livres de la Bible à la
lumière des recherches récentes. Genebra, Éditions Labor et
Fides, 1989. 30 74-78
GALBIATI, E.R. — ALETTI, A. Atlas histórico da Bíblia e
do Antigo Oriente. Petrópolis, Vozes, 1991. 32 107-109

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