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DIRETOR RESPONSÁVEL
Ludovico Garmus
CONSELHO DE REDAÇÃO
Gilberto Gorgulho, Carlos Mesters, Ludovico Garmus, Ana Flora Anderson,
Milton Schwantes, José Comblin, Tércio Machado Siqueira.
COLABORADORES
Região Sul
C. A. Dreher, F. E. Dobberahn, S. A. Gõrgen, F. M. de Oliveira, P. Kramer,
M. F. Giuliani, A. Burin, N. B. Pereira, U. Wegner, D. j. Walker, L. Z. Konzen.
Paraná
V. da Silva, J. P. T. Zabatiero, G. A. Wolff, I. Neutzling, O. Zanini, A. Paoli.
São Paulo
A. F. Anderson, G. Gorgulho, T. M. Siqueira, D. Zamagna, L. R. Alves, J. de
Santa Ana, M. Schwantes.
Minas Gerais
L. I. Stadelmann, C. Mesters, M. A. Couto, J. L. G. do Prado, A. Antoniazzi,
B. C. de Oliveira, E. M. de Oliveira, P. S. Soares, W. O. de Azevedo, A. J. da
Silva.
Rio de Janeiro
P. Lockmann, R. Porath, T. Cavalcanti, L. Weiler, M. L. Gorgulho, H. de
Ternay, L. Garmus.
Região Nordeste
S. A. G. Soares, M. A. Veloso da Silva, J. Comblin, I. Gebara, S. V. da Silva,
L. C. Araújo, J. P. Lima, A. V. de Melo, R. E. Oliveira, R. Guerre, M. de B.
Souza, E. Hoornaert.
Região Norte
E. Wambergue, S. Gallazzi, A. M. Rizzante Gallazzi, N. Masi, F. Rubeaux,
L. Mosconi, T. Frigerio, N. Soares, N. Farias, R. M. Rothe.
América Latina e outros países
P. Richard, N. K. Gottwald, E. Tamez, J. I. Alfaro, J. L. Caravias.
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l. VOZES)
Petrópolis São Leopoldo
1991
® 1991, Editora Vozes Ltda.
Rua Frei Luís, 100
25689 Petrópolis, RJ
Brasil
Editora Sinodal
Rua Epifânio Fogaça, 467
93030 São Leopoldo, RS
Brasil
Editoração:
Otaviano M. Cunha
Diagramação:
Patrícia Florêncio
ESTE NtJMERO DE ESTUDOS BÍBLICOS É DEDICADO
AO
FREI CARLOS MESTERS
Editorial, 9
EMANUEL MESSIAS DE OLIVEIRA. Bíblia: Palavra de Deus em palavras
humanas, 12
JULIETA AMARAL DA COSTA. Leitura espontânea da Bíblia a partir dos
fatos da vida, 24
JACIR DE FREITAS FARIA e JOSÉ BATISTA DA SILVA. Leitura bíblica
através de símbolos e imagens, 27
TIAGO LARA. Leitura bíblica e leitura da nossa história — Uma experiência
de formação de agentes populares, 33
CARLOS MESTERS. A Bíblia lê a Bíblia — Sobre o fenômeno da releitura
dentro da Bíblia, 39
WALMOR OLIVEIRA DE AZEVEDO. O que é ler?, 46
JOHAN KONINGS. A leitura da Bíblia, 58
AIRTON JOSÉ DA SILVA. Leitura sociológica da Bíblia, 74
WOLFGANG GRUEN. Leitura libertadora também de textos não-libertadores
da Bíblia, 85
JOSÉ LUIZ G. DO PRADO. Traduzir: interpretar ou re-criar?, 89
GENILMA BOEHLER. Ler a Bíblia com olhos de mulher, 93
WESTERN CLAY PEIXOTO. A leitura bíblica nas Igrejas evangélicas, 98
CARLOS MESTERS. Reflexões sobre a mística que deve animar a leitura orante
da Bíblia, 100
ALBERTO ANTONIAZZI. Indicações bibliográficas, 105
Recensão, 107
Índice de 1991 (cadernos 29-32), 110
Editorial
•k -k -k
Alberto Antoniazzi
Wolfgang Gruen
Bíblia:
Palavra de Deus em palavras humanas
1.1. Bíblia
3. A FINALIDADE DA BÍBLIA
10. Cf. WEILER, L. A mulher na Bíblia. Em: Vida Pastoral, jan.-fev. de 1990 — ano XXXI-150, p. 2.
11. Cf. RICHARD, P., op. cit.f p. 11.
12. Cf. MESTERS, C., op. citp. 18.
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2) A segunda finalidade é, a partir daquelas informações, revelar os sinais da
presença e da ação libertadora de Deus na vida do povo de hoje.
Condição fundamental aqui é a fé na ressurreição, é o engajamento
na vida da comunidade, é a vivência do Espírito de Deus. Só ele é capaz de
revelar o sentido-para-nós do texto bíblico. Só ele é capaz de revelar através
daquele texto antigo a Palavra de Deus para nós hoje.13
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Mas o bom mesmo, para o povo e para o exegeta, seria a integração
dos dois tipos de leitura, a do povo e a do especialista. Pois o que falta no
povo sobra no estudioso, e o que, às vezes, falta no estudioso sobra no povo.
17. Para este item final servimo-nos de afirmações espalhadas ao longo de todo o livro de Carlos
Mesters: Flor sem defesa... já citado diversas vezes.
CONCLUSÃO
A reflexão nas CEBs fez nascer a horta que gerou a Associação que
reanimou outra vez a horta que fez vir à memória a palavra geradora da orga-
nização e do pão que gerou a celebração que realimentou as CEBs.
A falta de pontuação é proposital. A gente não sabe o que foi pri-
meiro. O certo é que estas coisas se supõem. Geram e são geradas, outra vez,,
sempre com mais intensidade de novidade.
"E o verbo de Deus se fez carne e armou tenda entre nós" (Jo 1,14).
O método de leitura da Bíblia com um olho no texto e outro na vida
está ganhando novos adornos. Os responsáveis primeiros por este processo são
os pobres, com especial destaque para os considerados "analfabetos". Mesmo
não sabendo decifrar a grafia, os pobres fazem uma leitura da Bíblia de forma
bastante singular. Se tivéssemos um gravador em cada uma das reuniões de
estudo da Bíblia que fazemos, com certeza escreveríamos com facilidade um
livro. E seria um livro para ninguém botar defeito! Na alma do nosso povo
sofrido está escondida a Palavra de Deus. Os pobres sabem ler a Bíblia de
modo simples e compreensível a todos. Eles fazem uma leitura que os intelectuais
não fazem. Os analfabetos quebram a Bíblia em miúdo. Duas coisas muito
simples têm possibilitado este tipo de leitura: a imagem e o símbolo. A imagem
e o símbolo são como chaves de leitura para entender a vida na Bíblia e a
Bíblia na vida. Para exemplificar o que estamos afirmando vejamos como um
ninho de galinha possibilitou uma profunda reflexão sobre os desafios e facili-
dades encontrados na leitura popular da Bíblia.
2. A palavra padrinho traduz a palavra hebraica go'el, que tem várias traduções possíveis: vingador,
consolador (paíáclito), redentor, libertador, salvador, defensor, advogado. O go'el é o que alarga os laços
de família e socorre nos momentos difíceis (cf. Lv 25,23-55). > i
Os discípulos procuram comunicar esta experiência ao povo. Apontam
a natureza e dizem: "Levantem os olhos e vejam! Quem criou todas estas
estrelas?" (Is 40,26) Contam a história do êxodo (Is 43,16-17), mandam re-
frescar a memória (Is 43,26) e insistem: "Lembrem-se das coisas que aconte-
ceram muitos anos atrás!" (Is 46,9) Refletem sobre os fatos da política, ande
Ciro estava derrotando Nabucodonosor, e perguntam: "Quem é que faz tudo
isto?" (Is 41,2) E a resposta é sempre a mesma: "É Javé, o Deus do povo,
o nosso Deus!"
Assim, aos poucos, a natureza deixa de ser o santuário dos falsos
deuses; a história já não é mais decidida pelos opressores do povo; o mundo
da política já não é mais o domínio de Nabucodonosor. Por trás de tudo come-
çam â aparecer os traços do rosto de Javé, o Deus de sempre.
O mesmo Deus a quem chamam pai, mãe, padrinho, marido, e que
enche de sentido a vida pessoal de cada um, este mesmo Deus, agora, é redes-
coberto e experimentado como presente em toda parte, como criador do uni-
verso, como o primeiro e o último da história humana. Os discípulos descobrem,
assim, de maneira nova e surpreendente, que Javé, o Deus dos pais, é Javé,
Deus-conosco, em toda parte! Deus ultrapassou os limites do território, do
templo, da raça. É o Deus de todos!
Mas descobrem também que a casa preferida de Deus é e continua
sendo no meio do seu povo oprimido: "Eu estou contigo!" (Is 41,10); "Tu
tens muito valor para mim, eu te prezo, eu te amo. Troco tudo por ti!"
Us 43,4); "Deus não se encontra a não ser no meio de ti" (Is 45,14). É lá
no meio dos pobres que Ele se esconde (Is 45,15), e é lá que Ele deve ser
procurado (Is 55,6).
Diante desta presença tão vasta e avassaladora de Deus na vida, no
mundo, na história, na política e no próprio povo, os discípulos convocam o
povo e gritam: "Cegos, olhem! Surdos, ouçam!" (Is 42,18) O povo deve abrir
os olhos e acolher o seu Deus que vem avançando vitorioso: "Eis aqui o
Senhor Javé! Ele vem com poder!" (Is 40,9-10) Esta é a Boa-Nova que os
discípulos anunciam ao povo: "Teu Deus reina!" (Is 52,7). "Não estão vendo?"
(Is 43,19). E para que o povo descubra e assuma a sua nova missão, os discí-
pulos o ajudam a reler o passado e o presente e a entendê-los de um modo
diferente. Sem a experiência de Deus, a releitura não teria acontecido.
3. Esta abertura representa uma volta às origens. O povo que saiu do Egito não era uma raça, mas
sim um grupo de tribos marginalizadas e oprimidas, unidas entre si, na luta pela libertação das garras do
faraóv Havia até egípcios no meio deles (Lv 24,10. Cf. Ex 12,38; Nm 11,4). Eles se constituíram povo
através da nova fé em Javé e através da nova organização social e comunitária que era exigência e expressão
desta fé em Javé.
4. Admitir a possibilidade de se abrir o sacerdócio para os estrangeiros era o mesmo ou até mais
que admitir hoje a possibilidade da ordenação sacerdotal para as mulheres.
5. Também aqui os discípulos de Isaías voltam às origens e retomam o ideal que vem desde o tempo
dos Juízes: "O Rei de Israel é Javé!" (cf. Jz 8,23; ISm 12,12; 8,7).
6. Zacarias diz que muitas nações virão até Jerusalém para "aplacar a face de Javé" (8,22). A face
de Javé é aplacada pela observância da lei.
Nestes poucos exemplos transparece a coragem e a abertura ecumênica
que os discípulos tiveram para repensar e reler o passado. Imitaram Deus.
Souberam ser criativos! Ultrapassaram as fronteiras do tradicional e, fiéis è
verdadeira tradição, sonharam com um mundo novo: "As coisas antigas já se
realizaram, agora vos anuncio estas coisas novas!" (Is 42,9) Queriam tudo
novo: novo céu e nova terra (Is 65,17), novo êxodo (Is 43,16-20; cf. 41,18-20),
nova aliança (Is 54,10; 55,3; 61,8), novo povo (Is 43,21), novo coração e novo
espírito (Ez 36,26), nova lei impressa no coração (Jr 31,33). "Eis que faço
novas todas as coisas!" (Ap 21,5).
Com esta visão do passado nascida da experiência de Deus, a novidade
do presente já podia ser acolhida como filha em casa, sem o risco de ser con-
denada em bloco, em nome da tradição, como estranha, bastarda e herética.
Mas nem todos eram capazes de acompanhar os discípulos nesta releitura do
passado, tão aberta para o novo que estava acontecendo. Todos viam os fatos,
mas nem todos percebiam o seu alcance (Is 42,20). Eram como cegos (Is
42,18-19). Fechavam-se no passado e, por isso, tornavam-se incapazes de perce-
ber a novidade de Deus acontecendo na história. Por esse motivo, os discípulos
chamavam a atenção e diziam: "Não fiqueis a lembrar coisas passadas, nem
vos preocupeis com acontecimentos antigos. Eis que vou fazer uma coisa nova.
Ela já vem despontando! Não estão vendo?" (Is 43,18-19). A novidade de
Deus que vinha chegando do futuro era mais antiga do que o passado defen-
dido pelos outros.
Fidelidade e liberdade caracterizam esta nova leitura do passado, pela
qual palavras-chave e valores centrais do passado são retomados em épocas
posteriores. É com o novo olhar, recebido da experiência de Deus e da nova
leitura do passado, que os discípulos começam a reler e tentam entender a
situação dolorosa que o povo estava vivendo naquele momento.
Tudo isto que vimos até agora mostra a profunda continuidade que
há entre o processo da releitura verificado na Bíblia e a interpretação que o
povo das Comunidades está fazendo da Bíblia. Além disso, permite tirar algumas
conclusões sobre o que vem a ser a releitura.
A releitura não é apenas um fenômeno literário que retoma e reinter-
preta algumas palavras do passado, mas tem a ver com o próprio processo de
crescimento e libertação do povo e com a sua caminhada através da história.
A releitura faz parte deste processo mais amplo, sem o qual não pode ser
compreendida adequadamente.
Com outras palavras, o desafio que provoca a releitura não é e nem
pode ser o desejo de restaurar o passado ou de repeti-lo como expressão de
nossa fidelidade a Deus, mas é a obrigação que temos de: 1) captar e experi-
mentar a novidade de Deus presente na história humana; 2) verbalizá-la e
transformá-la em Boa-Nova para o povo; 3) encarná-la e expressá-la em novas
formas de vida de tal maneira que, por meio dela, o povo possa perceber, nova-
mente, o seu alcance para a vida e despertar para a sua missão.
O processo de releitura é o esforço constante do povo de reler e de
reinterpretar o seu passado a fim de "escutar hoje a voz de Deus" (SI 95,7).
Em momentos de crise e de perda de rumo, o povo sempre volta às suas origens
para nelas descobrir luzes que lhe possam devolver a identidade, motivações
mais profundas que o ajudem a atravessar o deserto, elementos que contribuam
para elaborar um novo projeto de vida, e uma chave que lhe pdssa abrir o
futuro.
O passado é como uma fonte. O que a releitura pretende não é negar
o passado nem confundir os critérios do discernimento e as normas do com-
portamento, mas sim desobstruir a fonte, para que a sua água possa jorrar
novamente e matar a sede do povo. O passado, na sua originalidade, é sempre
novo e atual. É água cristalina da fonte. Tem uma riqueza inesgotável. É como
a velha árvore do fundo do quintal que nunca envelhece, pois, todo ano,
fornece frutos novos! Como já dissemos, a novidade de Deus que vem chegando
do futuro é mais antiga que o passado defendido pelos tradicionalistas.
Por isso, para entenda o processo da releitura dentro da Bíblia, não
basta estudar o fenômeno literário que aparece na superfície (pelo qual certas
palavras do passado são retomadas e reutilizadas em épocas posteriores). É ne-
cessário situar este fenômeno dentro do processo mais amplo da caminhada
do povo de Deus. Deste modo, a releitura que a própria Bíblia faz da Bíblia
revela a sua importância e atualidade, e se torna espelho do uso que o povo
das nossas comunidades está hoje da Bíblia.
Nova experiência de Deus, nova leitura do passado, nova consciência
da realidade: são os três pólos, inseparavelmente unidos entre si, que geraram
e continuam gerando a releitura das palavras sagradas que nos vêm do passado.
Carlos Mesters
CEBI
Rua Montes Claros, 214
30310 Belo Horizonte, MG
G que é ler?
A) A IMPORTÂNCIA DO "LER"
1. O que é um texto?
a) Hermenêutica
b) Exegética
c) Histórica e literária
No procedimento exegético da leitura do texto incluem-se as apropria-
ções da reserva de sentido pelos caminhos da impôstação literária e histórica.
É importante o esforço de apropriar-se das formas usadas para se tra-
duzir e transpor a interpretação dos fatos e acontecimentos. Bem assim, é de
grande importância a caracterização do ambiente vital que exprime a contextua-
lidade do texto enquanto seu nascedouro. O desenrolar da história nas suas
dimensões econômica, política, social, religiosa e cultural expressa as linhas defi-
nitórias da identidade do texto na mensagem que ele oferta.
Por isso, a leitura, como processo de adentramento na realidade do
texto, inclui o conhecimento da história, que é o palco do acontecimento/fato
e chão que o texto expressa, e a decodificação das formas que medeiam e reve-
lação de sua feição.
d) Estrutural
Esta modalidade de leitura, no âmbito do procedimento exegético e
hermenêutico, busca descobrir as estruturas subjacentes na produção do texto,
enquanto articulação de uma lógica interna que oferece um sentido do texto
em si.
A operação deste procedimento inclui uma diversidade de métodos
que não vem ao caso ser tratada aqui. A atenção é requerida para que a análise
do texto na sua lógica interna não reduza o sujeito homem, como autor e
leitor, a objeto ou mesmo o elimine.
v A apropriação estrutural deve abrir espaço ao que há de criativo e
gerador no procedimento hermenêutico.
e) Popular
O povo lê e se apropria de sentidos no texto a partir de sua condi-
ção e do seu lugar próprios. Não, simplesmente, apropria-se do sentido enquanto
lhe é dado pela explicação que lhe é oferecida. Sai da passividade e participa
enquanto produtor de sentido a partir de sua condição e lugar que geram os
dinamismos necessários para esta produção. Aqui, ultrapassa-se o enquadramento
em uma série de conhecimentos e sistemas que situariam o povo fora da possi-
bilidade de apropriação de sentido por não trilhar caminhos e reger-se por dinâ-
micas que não são próprias de sua condição social, cultural etc. Quando, no
entanto, o povo encontra e define os registros de sua entrada no mundo do
texto, a partir do que lhe é próprio e ele sabe manusear com intimidade, se
registrará a apropriação na reserva de sentido do texto. Inclusive, verifica-se
o "milagre" de explicações, compreensões e aplicações de exatidão admirável.
Esta apropriação é um processo de grande força libertadora.
f ) Antropológica
A centralidade desta apropriação será a decodificação de uma com-
preensão do conceito de homem-mulher enquanto situados nas relações mútuas
e com outros personagens.
A leitura responderá à pergunta: Quem é e o que é o homem-mulher?
Na verdade, o texto se produz enquanto o autor, homem-mulher,
produz uma compreensão de si, do seu mundo e do seu caminho. Bem assim,
o leitor.
g) Sociológica
A leitura sociológica sublinhará as dimensões de enraizamento do autor
(grupos, comunidades, etc.) na realidade, suas modalidades, nuances, influên-
cias e interações. Isto explicitará as influências marcantes, no texto, da orga-
nização, concepção e encaminhamentos das estruturas sociais. Os processos sociais
presentes e contemporâneos ao texto provocam concepções, críticas e crises
próprias.
1. Processo dialógico
A leitura desencadeia um processo de diálogo do leitor com o texto
na busca interminável da verdade, por uma experiência de comunhão, segundo
a dinâmica de perguntas e respostas que ambos se fazem. O encontro, provo-
cação e fusão do horizonte do passado, aquele do texto, e do horizonte do leitor,
do presente, constitui a feição da força dialógica que provoca mudanças, trans-
formações e redimensionamentos globais e radicais.
2. Processo crítico
A leitura como desafio posto de lugares diferentes, aquele do autor/
texto e aquele do leitor, instaura um nível profundamente crítico de confron-
tação. Esta revela as diferenças, os esquematismos, fechamentos e limites exis-
tentes. Põe-se, fortemente, a necessidade de revisão, conquista de novos elemen-
tos, atualização e criatividade, patenteando que a verdade não se dá aqui de
modo a se esgotar. Permanentemente, o caminho de escuta e de confronto con-
tinuará a oferecer a garantia de, mesmo não a tendo encontrado definitivamente,
buscá-la se cessar.
A verdade não está toda aqui. É preciso sair para buscá-la.
3. Processo de remodelação
Ler, portanto, é engajar-se, pela escuta do outro, novo e diferente,,
num processo de remodelação. Conhecer as estratégias na realidade do texto que
se lê abre confrontos que incidem teoricamente na prática configurada no lugar
do leitor. Inevitavelmente, esta incidência processará uma releitura que remodela
na visão, na atuação e na constituição do horizonte de significações.
5. Processo intercultural
CONCLUSÃO
BIBLIOGRAFIA
Crítica textual
1) Objetivo: reconstituição do texto assim como foi escrito originalmente pelo
autor. Isso é muito importante para textos antigos, que vieram até nós
somente através de cópias transcritas de cópias... Em cada transcrição po-
dem ter-se introduzido modificações, intencionais ou não.
A crítica textual não se interessa pelo sentido do texto, não é análise
literária do texto ou coisa semelhante. Apenas procura verificar a confiabilidade
das cópias do texto que chegaram até nós e reconstituir o texto na sua forma
mais confiável.
2) Pergunta: "Nos documentos que temos hoje encontra-se o texto que o autor
escreveu originalmente? Qual é o grau de confiabilidade de nossos documen-
tos (cópias) ? * '
3) Critérios para julgar qual das "leituras variantes" de determinado texto é
a mais provável:
a) externos:
• comparação de nosso texto com o dos antigos manuscritos bíblicos, lecioná-
rios litúrgicos, citações em outras obras antigas (teólogos dos primeiros sé-
culos) etc.;
• para executar bem esta comparação existem certas regras de mão: ver qual
é o valor global de determinado manuscrito (existem manuscritos simples-
mente mal copiados); ver que variante é seguida pela maioria dos manuscritos
reconhecidos como confiáveis, sobretudo se pertencem a diferentes "famílias"
ou "recensões", levando em conta o valor diferenciado destas últimas etc.
b) internos:
• entre diversas variantes apresentadas nos antigos manuscritos, em igualdade
de outros argumentos, deve-se escolher a mais difícil de compreender — desde
que ela não seja absurda —, pois os copiadores tendem a facilitar o texto
ao copiarem;
• a variante mais breve de um texto é preferível à mais longa, pois os copia-
dores e recensores têm tendência a acrescentar coisas no texto;
• ver se a variante oposta pode ser aceita ou, pelo contrário, se mostra ina-
ceitável, confirmando-se neste caso a variante considerada por primeiro;
• desconfiar de variantes tendenciosas, p. ex., que procuram tornar o texto
bíblico mais parecido com os dogmas proclamados ulteriormente;
• desconfiar de variantes que tornam diferentes textos bíblicos mais semelhan-
tes entre si ("harmonizações").
Crítica histórica
1) Objetivo: reconstituir os fatos narrados conforme sua objetividade histórica,
na medida do possível.
2) Pergunta: "O que a Escritura aqui conta, aconteceu mesmo? A palavra que
ela relata, foi falada de verdade?"
3) Critérios:
a) externos:
•
testemunhos arqueológicos;
• documentos
de tipo administrativo (contas, arquivos etc.)
de tipo literário (histórias, descrições etc.)
b) internos:
• p. ex. as contradições internas, a maior ou menor probabilidade do fato ou
discurso narrado, etc. (critério um tanto subjetivo: para um racionalista rab-
Mato, qualquer milagre é não apenas pouco provável, mas impossível e, por-
tanto, inverídico).
Com relação à Bíblia, a crítica histórica já foi mais importante do
que ela é hoje em dia. Pois percebeu-se que a Bíblia, embora contendo história,
e até história cientificamente comprovada, não é um "livro, de história", mas
um depoimento de experiência religiosa multifacetada, èxpressa nos mais diver-
sos gêneros literários. Para que a mensagem da Bíblia seja verdadeira, não é
preciso que tudo o que ela narra seja história cientificamente verificada. . .
Crítica literária
1) Objetivo: descobrir a intenção do autor, o que ele quis dizer, levando em
consideração as circunstâncias e modalidades da produção do texto, o estilo,
o destinatário etc.
Este tipo de pesquisa permitiu descobrir que muitos textos, na Bíblia, são
"compostos" (obra de diversas mãos), produzidos em diversas fases, até
com pensamentos internamente opostos etc. Demonstrou também a pseudo-
epigrafia, ou atribuição fictícia, generalizada (ex.: a "Carta de Paulo aos
Hebreus": nem carta, nem de Paulo, nem aos hebreus. . .).
2) Pergunta: "Por quem, onde, quando, como, para que, para quem, conforme
que estilo etc., foi escrito este texto?" -— "O que o autor quis comunicar,
a partir de que situação, em que ambiente, com que meios etc.?'' — "Como
apresenta-se seu texto, de que gênero é, qual é sua estrutura e composição,
para que o entendamos melhor?"
3) Critérios:
a) externos:
• testemunho de fontes arqueológicas (p. ex.: se se encontrasse uma inscrição
ou pintura do primeiro séc. confirmando que João escreveu o Apocalipse),
literárias, documentais, arquivísticas etc. (p. ex.: os cabeçalhos acrescentados
aos quatro evangelhos, comunicando o nome dos evangelistas; o "cânon de
Muratori" etc.).
b) internos:
• indícios internos na obra a respeito do autor, sua intenção etc.; p. ex.: o
prólogo de Lc e At (Lc 1,1-4 e At 1,1-2); a menção do autor no início das
cartas de Paulo, Pedro, Tiago, Judas; em Ap 1,9 etc.;
#
unidade de estilo, vocabulário e pensamento; a observação atenta destes ele-
mentos pode levar a confirmar ou a negar que tal obra é escrita por um
só autor, como uma só obra etc.
* probabilidade que tal estilo, tema ou vocábulo existissem na presumida época
de redação da obra.
As "ciências auxiliares"
O que acabamos de mencionar são apenas os princípios gerais da pes-
quisa histórico-literária. Na realidade, ela é tão complexa que chega a exigir
cinco a dez anos de estudo especializado para que alguém se possa apresentar
como perito neste campo.
Além de exaustivo conhecimento dos textos, exige conhecimento de
ampla literatura científica e de "ciências auxiliares", como sejam a arqueologia
— para quem quer pesquisai as fontes arqueológicas —, a paleografia ou ciência
das antigas formas de escrita, confecção de documentos etc.; a cronologia ou
ciência de calendários, datas etc. Sem esquecer a filologia ou ciência dos idio-
mas e suas literaturas, a lingüística ou ciência da linguagem como fenômeno
universal, a história, a geografia, a história comparativa das religiões. . . E mes-
mo, conforme o tipo de especialidade que se quer desenvolver, a biologia, a
medicina, a botânica (para distinguir bem os diversos tipos de plantas mencio-
nados, às vezes com conotação simbólica, nos livros bíblicos). Até a química
entra, para pesquisar as tintas dos antigos manuscritos; e a física nuclear, para
estabelecer mediante o teste do carbono 14 a antiguidade do papiro em que
foram escritos. . .
Isso tudo explica que a investigação crítica da Bíblia se tenha tornado
um templo inacessível para o comum dos mortais e, também, para muitos bi-
blistas. É necessário consultar e confiar nas pesquisas de outros. Ninguém con-
segue verificar tudo por conta própria. Bom biblista não deve ser sabichão.
Quem pretende saber tudo, provavelmente não sabe nada.
4. O ESTUDO HISTÓRICO-INTERPRETATIVO
Superando o historicismo
Ao observador não escapa que o supramencionado tipo de "crítica"
— em bom português seria melhor dizer: pesquisa ou investigação — nasceu
numa ótica historicista: quer reconstituir historicamente o manuscrito original,
os fatos, o texto original do autor e sua evolução até a redação final da obra.
A ótica historicista era inspirada por uma obsessiva desconfiança com relação
à origem do texto e das narrações bíblicas.
Ora, com o passar do tempo, percebeu-se que estas reconstituições
históricas não resolviam tudo e que o problema maior não estava nos fatos em
torno ao texto bíblico e sua transmissão. Inclusive, a investigação histórico-
literária nos ajudou a constatar que a história do texto bíblico é muito limpa
em comparação com outras literaturas antigas. A documentação manuscrita se
tornou até invejável, depois das descobertas de Qumran!
O problema está sendo enxergado agora muito mais no modo de ler
e interpretar. As incoerências que a "crítica" de cunho historicista encontra na
Bíblia são menos um problema da Bíblia do que de seus leitores. A Bíblia não
quer reconstituir fatos e palavras, mas possibilitar a memorização e a reescuta
de antigas palavras e tradições, renovando-lhes o sentido. A obsessão de verifi-
cação histórica de fatos e textos cede o lugar ao empreendimetno da leitura
interpretativa. É neste sentido que devemos compreender os novos métodos
da investigação da tradição, forma literária e redação dos escritos bíblicos pra-
ticados desde o segundo quartel do séc. XX. Embora nascidos na esteira da
crítica histórico-literária, demonstram uma ótica nova. Admite-se que não é
possível reconstituir até nos seus mínimos detalhes os fatos primitivos; e julga-se
que também não é preciso, pois podemos "entrar na conversa" com o texto
sem esgotar a pesquisa histórica. Estes métodos representam uma tentativa de
acompanhar o processo de releitura que se deu no próprio surgimento dos textos
bíblicos.
Estudo da tradição
Se na Bíblia encontramos a memória de uma comunidade, é impor-
tante saber como esta memória se formou; qual era sua tendência, seu inte-
resse; o que ela considerava como referência de sua identidade, que grupos
transmitiram o quê; se houve grupos concorrentes ou rivais; etc. Chama-se isto
a pesquisa da tradição, que está por trás dos textos bíblicos.
Este tipo de pesquisa nos ajuda a "ver melhor a floresta" quando
estamos no meio das árvores. Descobrimos que Israel transmitiu uma multidão
de prescrições, não para encher as horas do dia com ritos a observar, mas para
se lembrar de suas origens, para ter modelos em novas circunstâncias (p. ex.r
depois do exílio) etc. Descobrimos que uma tradição vem do Norte, outra
do Sul, uma do Templo de Jerusalém, outra de grupos campestres. Que nem
todas elas foram observadas simultaneamente por todos etc. Descobrimos que
falar em "Aliança" não faz parte das tradições mais antigas, e sim, das tradi-
ções em volta ao Deuteronômio, mais recente, que ensina Israel a "ler" sua
história como uma Aliança com Deus. Assim entendemos melhor a conversa na
qual queremos entrar...
O estudo da redação
5. OS MÉTODOS SEMÃNTICO-ESTRUTURAIS
Os métodos históricos nos ajudam a conhecer melhor a realidade em
torno ao texto. Os métodos histórico-interpretativos ajudam a melhor perceber o
que os transmissores do texto bíblico, antes e no momento da redação, quiseram
dizer. Mas surge agora um novo problema. O texto esta aí, e tem capacidade
de significar muito mais do que presumimos que o autor quis dizer.
O autor está morto. Mas o texto está vivo! Ele está aí e nos diz
alguma coisa, porque ele está inscrito na estrutura que chamamos a linguagem
e que produz novas significações para nós, quando entramos em contato com
ela. Então devemos olhar não só o passado do texto — como e com que in-
tenção ele surgiu —, mas também o seu futuro — o que ele vai suscitar nas
pessoas. Não apenas o que ele quis dizer, mas o que ele está dizendo, graças
às leis da significação lingüística, que aos poucos vão sendo descortinadas na
semiótica ( = ciência dos signos).
Num mundo onde o sinal vermelho do trânsito significa perigo, e o
verde, passagem livre, estes sinais produzem sua significação independentemente
daquilo que um indivíduo ocasionalmente quer significar por meio deles. Ima-
ginemos só que um guarda, encarregado de controlar os sinais, queira significar
perigo com o verde e passagem livre com o vermelho. . . Vai haver um enorme
conflito entre o que ele quer expressar e o que os sinais de fato estão comuni-
cando aos motoristas.
Com o texto bíblico acontece coisa semelhante. Ele produz um signi-
ficado conforme as leis semióticas, sem que o autor esteja presente. E foi escrito
para isso: para que o autor, ou quem estava por trás dele — pois muitos escri-
tores escreveram como expoentes de um grande apóstolo ou de sua comunidade
— pudesse desaparecer e descansar em paz!
Existem na linguagem estruturas universais; p. ex.: a lei dos opostos.
Confirmar uma coisa é negar o oposto. A confirmação de uma coisa produz
necessariamente a negação do significado oposto etc. A semiótica analisa estas
leis, e a leitura semântico-estrutural aplica isso à Bíblia, como a qualquer outra
literatura. E chega a resultados interessantes. Pode constatar que uma narração
aparentemente primitiva e ingênua transmite muito bem seu efeito de sentido,
lá onde um filólogo tradicional fica decepcionado com o texto por estar escrito
em grego péssimo. É o caso do livro do Apocalipse.
Não podemos entrar aqui nos detalhes deste novo método, bastante
difícil, sobretudo por causa de seu caráter formal, quase matemático, mas que-
remos apontar sua proximidade com a racionalidade da era do computador e da
análise lógico-lingüística. Parece que este método, a longo prazo, vai expor à
luz a "competência" de transmissão de significados dos textos bíblicos, mos-
trando sua capacidade de gerar novas significações e evitando que se tire do
texto significações que de fato não contém. É um método construtivo, aberto.
Ele não leva a dizer: "Este é o sentido", e sim, a O texto é capaz de dizer isto,
e você pode continuar a conversa com ele nesta direção". Por isso, ajudará a
explicitar as virtualmente infinitas possibilidades do texto, de um modo objetivo
e não provocado por nossos desejos subjetivos, mas pela palavra que está aí.
Convém matizar um pouquinho a observação de que "o autor está
morto" e não está aí para explicar o que quis dizer. Os textos bíblicos são
comunitários. Foram produzidos no seio de uma comunidade e ajudam a repro-
duzir esta. A comunidade é, em certo sentido, guardiã do significado original
do texto ou, pelo menos, da continuidade entre o sentido original e sua her-
menêutica. Se o autor desapareceu, sua comunidade está aí, e possui inclusive
instituições para mostrar o sentido de sua auto-expressão: o magistério, o con-
senso das comunidades etc. Isso pode gerar conflitos entre os que lêem o texto
dentro da comunidade e os que não se sentem ligados a ela. Estes últimos
podem construir significações novas, que não têm sentido dentro da comunidade.
Mas, mesmo dentro dos limites da significação condizente com a comunidade,
a leitura construtiva é estrutural permite o desenvolvimento de muitos signifi-
cados novos, sem contradizer o sentido original. Portanto, para não matar a
criatividade e a vitalidade das próprias comunidades em dar sempre novo sen-
tido às palavras de sua fé, a função do magistério deve ser de excluir o que
for incompatível, e não de prescrever o que é permitido pensar.
6. A LEITURA SOCIOLOGICA
7. EXEGESE E HERMENÊUTICA
Nesta altura estamos percebendo que algumas maneiras de ler a Bíblia
acentuam a busca do sentido que o autor original quis expressar para seu público
leitor imediato. Outras leituras focalizam o que as palavras que estão aí, inde-
pendentemente do autor, de fato dizem ou são capazes de dizer ao leitor de
hoje e de amanhã.
Atualmente indica-se a primeira abordagem — a busca do sentido
visado pelo autor no seu contexto (o sentido histórico) — com o termo
exegese (= explicação). Para a outra abordagem, o desenvolvimento de um
sentido para nós hoje, usa-se o termo hermenêutica (interpretação). Alguém
expressou a diferença entre as duas abordagens de maneira eloqüente: a exegese
histórico-literária procura o que fica para trás do texto: as circunstâncias que
condicionam o sentido que ele tinha no momento de sua produção; a hermenêu
tica considera o que fica à frente do texto: o que ele é capaz de dizer em
sempre novas circunstâncias.1
Para perceber a diferença entre sentido histórico de um texto e apli-
cação atualizante, podemos mencionar a ousada hermenêutica que Paulo, em
G1 4,21-25, faz da história de Agar e Sara. Faz de Agar, a escrava, mãe dos
árabes, o símbolo da Aliança do Sinai, que é o evento mais judaico que existe!
É evidente que este não é o sentido histórico do Gn 16,15s e 17,15s; mas
no momento em que Paulo escreve, o Monte Sinai é para ele símbolo daquilo
que ele chama a escravidão da Lei, e é neste sentido que ele lê e "aplica" o
texto. (Usa até o detalhe que o Sinai se encontra na Arábia).
Também hoje, muitas vezes, se lêem textos bíblicos num sentido que
o autor não tinha consciente, mas que não deixa de ser legítimo, porque ba-
seado numa mesma compreensão da vida. É o caso da leitura política de deter-
minados textos. Jesus não foi um ativista político, mas sua luta para libertar
7. LÕWY, M. Ideologias e Ciência Social. Elementos para uma análise marxista. São Paulo, Cortez,
1985, p. 16.
8. E. DURKHEIM defendia que a função da sociologia "seria a de detectar e buscar soluções para
os 'problemas sociais', restaurando a 'normalidade social* e se convertendo dessa forma numa técnica de con-
trole social e de manutenção do poder vigente", explica MARTINS, C.B. O que ê sociologia, op. cit., p. 50.
instituições sociais e culturais em termos de contribuição que estas fornecem
para a manutenção da estrutura social.
A sociologia funcionalista da religião privilegia assim a análise das
influências da religião sobre a sociedade. A sociologia da religião de P. BERGER,
por exemplo, sustenta que "em face da desordem (anomia) vivida e sofrida,
a religião expressa, sobretudo, a busca por uma nova ordem". 9 Ou seja: a reli-
gião integra o indivíduo na ordem social. Ela exerce o papel de internalizar e
legitimar a ordem social existente.
Ao estudar o profetismo em Israel, por exemplo, P. BERGER 10 sus-
tenta a idéia de que o carisma profético surge dentro das instituições tradi-
cionais e não em uma situação de marginalidade social. Sua leitura é funciona-
lista na medida em que salienta o caráter inovador e profético da instituição,
sem considerar suas contradições internas.
2) A sociologia interpretativa de M. WEBER trabalha com um ins-
trumento teórico chamado "tipo ideal". O tipo ideal é um conceito sociológico
construído e testado previamente, antes de ser aplicado às diferentes situações
onde se acredita que ele tenha ocorrido. É um modelo teórico fabricado a partir
de fenômenos isolados ou da ligação entre eles, e que é testado, em seguida,
empiricamente. Isto porque WEBER sabe que "nossos conceitos e teorias não
são um retrato da realidade, mas um instrumento para interpretá-la e analisá-la".11
Segundo a sociologia weberiana, a função da religião na sociedade é,
ao mesmo tempo, a de regular os conflitos econômicos, políticos e culturais
entre grupos diversos e de, atualizando estes conflitos, apresentar novas solu-
ções sociais.
A aplicação do método weberiano aos textos bíblicos tem sido bastante
freqüente e, de fato, tem dado alguns bons resultados.
3) A sociologia marxista12y por sua vez, parte do pressuposto de que
não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas é o seu ser
social que determina a sua consciência. Como a religião pertence ao nível ideo-
lógico da realidade, ao nível da consciência humana, é preciso, antes de mais
nada, analisar a influência dos fatores materiais de uma sociedade determinada
sobre a sua religião.
Para se compreender a Bíblia, portanto, devemos verificar a totalidade
do processo social ao qual ela pertence. Não são misteriosas inspirações nem
complexas psicologias dos autores que explicam os textos bíblicos. O que explica
um texto é sua mundivisão, sua maneira específica de ver a realidade, condi-
cionada pelas ideologias ds sua época e classe social.
20. Cf. CHAUÍ, M. Cultura e democracia. O discurso competente e outras falas. São Paulo, Moderna,
19823, p. 3-5,
Leitura libertadora
também de textos não-libertadores da Bíblia
1. O FATO
2. SOLUÇÕES INSATISFATÓRIAS
O mais cômodo é deixar para lá textos que criam problemas, pin-
çando só os que interessam. Numa primeira fase da atividade com a Bíblia, é
compreensível que o grupo proceda assim. Continuar a fazê-lo é como censurar
a Bíblia; julgá-la, em vez de deixar-se julgar por ela.
Uma segunda saída insatisfatória é interpretar passagens bíblicas in-
cômodas de maneira arbitrária, forçando-as a dizer o que gostaríamos que dis-
sessem. Assim, certas exegeses querem a todo custo arrancar do texto uma
lucidez sociopolítica que ele simplesmente não alcançou, mas que se gostaria
de propor como bíblica. Sem dúvida, os textos da Bíblia têm grande reserva
de significação; novas situações de vida inspiram sempre novas leituras. Mas
que estas não violentem o texto. É a célebre "biscateação" ou "picaretagem"
hermenêutica que C. Boff já criticava nos anos 70. 1 Semelhante abordagem
continua tomando a Bíblia como livro de receitas e modelos de ação. Não con-
vence, podendo até tornar-se contraproducente. Não tenhamos medo: a verdade
não precisa de nossas mentiras, como diria Pio XI.
1. BOFF, Clodovis. Teologia e prática. Teologia do político e suas mediações, Petrópolis, Vozes, 1978,
408 p. Aqui, p. 245s.
Finalmente, uma terceira resposta insatisfatória consiste em apelar para
a imperfeição do AT, destinada a ser corrigida pelo Novo. Repetidas vezes, até
a Bíblia de Jerusalém recorre a esta evasiva. Na realidade, a coisa não é tão
simples: como vimos, também o NT contém textos que decepcionam, de homens
ao mesmo tempo santos e pecadores.
3. PISTAS
Toda leitura é diálogo entre leitor e texto. Neste diálogo, o texto,
uma vez publicado, não muda mais; a produção de sentido depende agora da
capacidade do leitor para, respeitando o texto, lê-lo de maneira sempre nova.
Por isso, diante de textos que acima chamamos de "esquisitos", não adianta
forçá-los a estarem, a todo custo, ao lado dos oprimidos — ou das nossas idéias.
Conversão forçada não liberta. Por que tanto esforço para colocar o autor do
nosso lado? Importa é de que lado nós estamos. Um leitor não convertido
tende a usar mal até bons textos; como os amigos de Jó, que colocaram refle-
xões bonitas a serviço de uma causa errada; ou como o demônio que, nas nar-
rativas sinóticas das tentações de Jesus, cita a própria Bíblia, mas mal.
Já um leitor convertido fará boa leitura de textos em si fracos ou
opressores. Como em qualquer diálogo franco: a uma colocação reacionária posso
responder de modo libertador. No caso da Bíblia, em que consistiria a leitura
libertadora mesmo de textos não libertos?
Pedagogicamente, pode-se proceder em três níveis: 2
1) Recordar as inevitáveis limitações de toda linguagem humana, mesmo quando
nos comunica Palavra de Deus. Com toda a sua fé, as pessoas que Deus
escolheu para escreverem a Bíblia estiveram sujeitas a condicionamentos his-
tóricos, psicossociais, econômicos, políticos, culturais, como qualquer ser
humano.
2) Procurar compreender o pano de fundo daquilo que nos parece estranho na
Bíblia:
•
gente dominada facilmente introjeta a dominação;
• um grupo acuado facilmente se torna agressivo;
• uma comunidade religiosa que se vê como alternativa para a sociedade em
que vive, facilmente cria mística de auto-exaltação.
3) Estaremos então mais preparados para ler não só o texto mas, através dele,
a realidade que ele ao mesmo tempo revela e esconde. A leitura de textos
não-libertadores pode tornar-se libertadora na medida em que soubermos:
• aprofundar os interesses e conflitos direta ou indiretamente presentes no
trecho;
• perceber como o trecho enfrenta esses interesses e conflitos;
• desmascarar o opressor embutido no trecho de maneira camuflada;
2. Cf. CNBB. Textos e manuais de catequese: elaboração, análise, avaliação. São Paulo, Paulinas, 1987
(Estudos da CNBB 53). Ver n. 68-70.
• reconhecer o quanto também nós estamos sujeitos a limitações; sim, pois a
Bíblia não é só retrato de um passado; é também espelho dó nosso presente:
ás deficiências que nela aparecem podem bem ser as nossas;
• enfim, ler o texto à luz da fé. Qual é o critério supremo para esta leitura
crente? É uma pessoa: Jesus Cristo, morto e ressuscitado, vivo na comuni-
dade cristã; este Jesus que se fez pobre e se posicionou diante da realidade
a partir dos marginalizados, em vista da salvação do homem, do Reino de
Deus.
4. CONCLUSÃO
Wolfgang Gruen
Caixa Postal 1178
30161 Belo Horizonte, MG
Traduzir: interpretar ou re-criâr? *
Não lembro mais o seu nome. Faz muito tempo. Perguntei-lhe como ia
indo o seu grupo de reflexão bíblica, e a resposta foi pronta: — Vai bem.
A única dificuldade grande que a gente encontrou foi quando o Evangelho disse
que Jesus entrou em Jerusalém montado no filho do jugo. Ninguém conseguiu
descobrir o que é isso. — Animal de carga, vocês entendem? — perguntei.
— É claro! Burro ou jumento! Daí passei a uma breve explicação do semitismo
de "filho", o indivíduo, o tal; e do desusado de "jugo" que a gente chama de
canga ou cangalha.
Traduzir não é simplesmente transpor o vocabulário de uma língua
para o vocabulário da outra. Isso um computador poderia fazer. Talvez seja
até possível quando se trata de um texto estritamente técnico ou científico.
Quando se trata de um texto literário, porém, e principalmente quando esse
texto é tão antigo e de gêneros tão diversos como a Bíblia, então traduzir
significa primeiro interpretar, e depois criar um novo texto literário. É preciso
coragem para assumir uma interpretação, mas é também preciso coragem para
tentar criar um outro texto, numa nova concepção literária. Interpretar só não
basta. Não basta escolher um dos possíveis sentidos do original e reproduzi-lo
numa linguagem fria, técnica e unívoca. E quando o original quer exatamente
ficar aberto a mais de uma possível interpretação?
O ERUDITO E O POPULAR
2. MULHER-BÍBLIA E BÍBLIA-MULHER
A. Dificuldades
BIBLIOGRAFIA
Genilma Boehler
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09735 São Bernardo do Campo, SP
A leitura bíblica nas Igrejas evangélicas
Alberto Antoniazzi
Caixa Postal 417
30161 Bdo Horizonte, MG
Recensão
Vdmor dã Silva
Índice de 1991 (cadernos 29-32)
ARTIGOS
LIVROS RECENSEADOS