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Ética e política no pensamento de Kierkegaard


Jorge Miranda de Almeida1

Resumo
Discutir as implicações entre ética e política no interior da Filosofia da Existência,
tendo como eixo nodal, Kierkegaard e as bases para a fundamentação da ética da
alteridade (Levinas) e da ética da responsabilidade (Hans Jonas). Retomar a
concepção originária da ética como condição fundamental para a realização dos
finda da política.

Palavras chave: ética; política; dialética; ética-segunda; ética da alteridade.

O vazio ético que se espalha rápida e violentamente como as ondas


contaminadas do oceano em direção ao continente, representa o maior perigo no
alvorecer do século XXI. Vazio que se cristaliza na despolitização e no
desinteresse em relação à participação na vida política, como lugar fundamental
para se discutir, planejar e construir mediações políticas em direção ao Bem
Comum e à dignidade humana.
O vazio ético se constata na sociedade de espetáculo e na vulgarização da
subjetividade como subjetivismo e subjetivação do espaço público reduzido aos
shows produzidos pelos mass media que reduzem por um lado, a individualidade
da pessoa humana a indivíduos atomizados e alienados em uma aldeia global e
por outro, a inversão da verdade em mentira, da análise em sensacionalismo, da
ética em notícias plantadas com o objetivo de se vender mais e obter maior lucro.
O vazio ético está presente no individualismo e na dissolução da identidade
de grupo; no anonimato e na dissolução da pessoa humana, reduzido a um mero
expectador e consumidor passivo e escravo da própria passividade e por isso
mesmo legitimador do totalitarismo que se apresenta em todas as cidades,
estados e nações, disfarçados em democracia, em direitos humanos, em
comunhão com a defesa da alteridade. O que se prega nos discursos oficiais está
1
  Prof.   Dr.em   Filosofia.   Prof.   Adjunto   UESB/DFCH.   Prof.   Faculdade   Juvêncio   Terra,   Presidente   da 
SOBRESKI   –   Sociedade   Brasileira   de   Estudos   Kierkegaardianos.  E­mail:  mirandaj@uol.com.br; 
jorgemiranda@sobreski.pro.br 
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longe de se exercer nesses mesmos espaços; a dicotomia entre o discurso e a


ação, entre a teoria e a prática, entre a ética e as decisões políticas revelam-se
como a falência do que constituiria a essência da pessoa humana, porque ela só
se constitui em pessoa no interior da ética, uma vez que tornar-se pessoa é
tornar-se responsável por si e pelo totalmente outro; é assumir a causa do Tu, é
concretizar-se a si mesmo e ao mesmo tempo colocar-se como o espaço para a
realização do outro. De outra forma: negando o espaço ético-político, nega-se
fundamentalmente a condição original do tornar-se que acontece no interior da
relação ética e política desde que concebidos em sua situação original: política
como o espaço da construção e da responsabilidade para com o Bem Comum e a
ética como o caráter, a virtude, a autenticidade, a responsabilidade, a
transparência, necessários à concretização na diversidade da pessoa humana e
da comunidade onde ela está inserida.
É no interior do vazio ético e da falência das políticas neoliberal que a
proposta da ética da alteridade torna-se fundamental. E a condição original da
alteridade é em sua essência política, porque pressupõe o respeito, o
engajamento, a valorização, a construção do espaço real para que o Tu possa
realizar-se como pessoa, e não existe realização verdadeira se não houver
dignidade e não existe dignidade se as condições fundamentais da existência
como moradia, trabalho, lazer, educação, alimentação, transporte, arte, não forem
concretizadas com qualidade.
O presente artigo quer propor uma nova interpretação para a relação entre
ética e política e o faz a partir das sugestões de um pensador que é considerado
por muitos como apolítico, como incentivador do individualismo, como um
pequeno burguês neoliberal. Esse pensador é Sören Kierkegaard (1813-1855).
Ilustre desconhecido do público brasileiro e por isso mesmo, passível de tantas
distorcidas e preconceituosas interpretações. E a mais gritante é a ausência da
dimensão política em sua obra. Dessa forma o artigo pretende cumprir duas
tarefas, uma no interior da outra, isto é, a primeira refletir sobre novas
possibilidades da relação entre ética e política e a segunda, desconstruir a visão
sobre Kierkegaard e ao desconstruí-la, apresentar o Sócrates nórdico ao público
brasileiro e demonstrar que sua produção é, eminentemente ético-político.
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Hannah Arendt em sua obra intitulada Lições sobre a Filosofia política de


Kant, na primeira lição, questiona a pouca importância que os filósofos têm dado
a dimensão política na filosofia de Kant. Segundo a filósofa: a literatura a respeito
de Kant é enorme, mas poucos livros sobre sua filosofia política e, dentre estes,
apenas o Kant’ s Weg vom Krieg zum Frieden, de Hans Saner, merece estudo
(Arendt, 1993). Em relação a Nietzsche Armand Colin em La politique de
Nietzsche e Keith Ansell-Pearson na obra Nietzsche como pensador político
espantam-se diante da pouquíssima reflexão existente em torno da dimensão
política na filosofia de Nietzsche.
E quanto a Kierkegaard? Em primeiro lugar, Kierkegaard como pensador
profundo que foi não poderia estar alienado dos acontecimentos político-sociais
existentes na Europa no século XIX. O que estamos assistindo na aldeia global é
exatamente a concretização da crítica realizada por Kierkegaard na metade do
século XIX: “t odos nós é ninguém”. Na padronização das relações humanas
realizadas estrategicamente pelos meios de comunicação de massa, cria-se o
vazio existencial caracterizado como inautenticidade, e esta, como a decadência
e a falta de sentido, analisados com muita propriedade por Heidegger em Ser e
Tempo: “a de-cadência, a curiosidade e ambigüidade freqüentemente possuem o
caráter de perder-se na public-idade do impessoal” (Heidegger, 1993). O tempo
atual da decadência se caracteriza ainda segundo Heidegger como “a lienação e
auto-aprisionamento”.
A primeira condição para pensar novas possibilidades políticas é avaliar
criteriosamente a sociedade onde se está inserido e Kierkegaard o fez com muita
propriedade. A ordem estabelecida - Det Bestaaende representa o “t riunfo
completo da mentira e a queda mais profunda da humanidade”. A ordem
dominante é a classe dominante que nega possibilidades reais de transformações
das estruturas iníquas necessárias à libertação do empobrecido, do miserável, do
estrangeiro. É ela a principal responsável e a principal beneficiada pela política do
panis et circensis. É a ordem estabelecida que finalmente induz e conduz a
pessoa humana a fragmentar-se em indivíduo e viver no acidental e no reino da
inautenticidade.
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Ora viver no acidental é negar-se, é viver de aparência, de fantasia e na


inautenticidade que é a forma mais cruel de negar a existência do outro, e por
extensão negar a própria ética enquanto doação, compromisso e amor. A ética
necessária à libertação da pessoa humana deixa de ser formal e torna-se um ato
de amor em Kierkegaard e Levinas pois somente quando se vive em amor e no
amor se vive a “ve rdadeira ética” (Kierkegaard, 2001) e se supera os vícios, a
amoralidade e o sensual que fazem com que os homens vivam na insensatez do
imediato e de uma aparente felicidade; e a vida em animalidade e bufonaria. A
degradação da dignidade humana pode ser percebida na “e stupidez, insolência,
imoralidade e uma miopia que prospera nas cidades e que vão ao encontro de
sua dissolução” (KIERKEGAARD, 2001).
A inautenticidade corresponde ao acidental que na sua indiferença e
cegueira legitima “a mais torturante forma de tirania, a mais insossa,
absolutamente o ocaso de toda coisa grande e sublime; e por isto se torna a
verdadeira imagem do inferno” (Kierkegaard, 2001). No interior desta constatação
se demarca a necessidade de uma nova concepção e conteúdo para a ética. Se a
mola de todo o imenso edifício da existência para Kierkegaard “é a mola pela qual
cada indivíduo se torna, como os anéis de uma cadeia, é a personalidade. Tudo é
personalidade (no mundo da natureza) e cada um é personalidade no mundo do
espírito” (Kierkegaard, 2001). A questão essencial é: como educar eticamente,
como existir eticamente em um mundo privado de si mesmo?
O nivelamento ético na aldeia global e do estado de espetáculo se faz por
baixo, não se educa o indivíduo singular, mas o número, a massa, a multidão,
todos sinônimos de impessoal,

“ essa condição que pretende desmoralizar os Indivíduos, invocando “ a


humanidade” ou categorias sociais que dependem do fantástico; essa
confusão pretende ensinar o ímpio desprezo pela primeira condição,
que consiste em ser um homem individual. Só é possível opor-se a esta
confusão levando os homens, se possível, à consciência da sua
individualidade. Todo o espírito um pouco sério instruído a cerca do que
é a edificação, toda pessoa séria, seja ela qual for, de elevada ou
humilde condição, sábia ou simples, homem ou mulher, dar-me-á
inteiramente razão de que é impossível edificar ou ser edificado en
masse, mais ainda do que ser “ amado en quartre” ou em masse: a
edificação refere-se ao Indivíduo mais categoricamente ainda do que o
amor (KIERKEGAARD: 1986).
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A vida se tornou uma mascherata, uma inexaurível fonte de distração, onde


nenhuma pessoa se revela ou se deixa conhecer por outra, sempre repleta de
enganos e composta de “n inguém”, onde todos são “d issolvidos em uma
multiplicidade atroz e onde se perde o que se tem de mais íntimo, a própria
personalidade” (Kierkegaard, 2001). A constatação tem um alcance filosófico no
contexto kierkegaardiano, mas de extrema importância no contexto atual, pois
como educar concretamente para a alteridade, a paz, a justiça, em um mundo que
concretamente nega e despreza essas qualidades?
O estar fora de si mesmo e no meio da multidão, decididamente impede a
realização “d a tarefa ética” porque a “é tica é e continuará sendo a tarefa suprema
que é colocada para cada indivíduo” (Kierkegaard, 1993). A ética deve ser
estudada em si mesmo, por isto, é preciso desenvolver as categorias existenciais
para que o indivíduo tenha um centro, porque somente no interior de si mesmo
“e le pode estudá-la com segurança; a ética é interioridade” (Kierkegaard,1993) .
Só quando o indivíduo ciente de si mesmo e de sua responsabilidade como o
eleito que escolhe ser o eleito, poderá assumir a ética, como expressa Levinas
em Entre Nós: “só eu é que posso, sem crueldade, ser designado como vítima. O
eu é aquele que, antes de toda decisão, é eleito para carregar a responsabilidade
do mundo” (LEVINAS: 1993).
Kierkegaard é consciente que se a ação ética não provém da interioridade,
ela se torna uma abstração. Eis a sua análise:

a grande confusão em termos éticos, é aquela de crer que a ética


encontra a sua concretização na história universal e que a tarefa do
existente seja a agir nesta concretude. O momento ético não se torna mais
originário, mas, sobretudo, uma abstração daquilo que é vivido na história
universal. A geração contemporânea quer enfim a vida natural e agir em
conformidade... e dessa forma a ética é deixada de lado de forma que seu
ensinamento seja deixado aos seminaristas e sacristãos (KIERKEGAARD,
1993)

É interessante como na metade do século XIX, Kierkegaard já


prognosticava a partir da experiência vivenciada na pequena Copenhague a
banalização do ser humano e a comercialização das relações, onde virtude e vício
têm o mesmo preço, dependendo da ocasião e da perspectiva que se concebe
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um e outro. A quantidade de anônimos, “e ssa massa de homens que circulam na


Capital, seja moeda falsa, nenhum se preocupa em tornar-se homem, onde cem
homens valem menos do que uma vaca, pelo menos a vaca conta para qualquer
coisa” (KIERKEGAARD, 1980).
O que fizemos de nós mesmos, de nossa tarefa, de nossa existência? O
que é que nos impede de nos tornar plenamente transparente a nós mesmos?
Porque esta insensibilidade e esta indiferença perante a existência? O simples
fato de colocar-se interiormente estas questões revela a necessidade de pensar e
repensar o conteúdo e a prática de uma nova ética. Por que se chegou a este
nível de degeneração? Quem, como, onde, porque permitiram esta decadência,
este eterno baile de máscaras que se tornou a civilização ocidental, a civilização
da tecnologia e da descartabilidade, onde um ser humano vale menos do que
uma moeda de um centavo?
Uma descrição semelhante da decadência existencial do homem
contemporâneo é encontrada magistralmente no Assim Falava Zaratustra de
Nietzsche:

...e vi homens sumirem-se numa grande aflição. Os melhores


cansaram-se de suas realizações. Anunciou-se uma doutrina e com ela
difundiu-se uma crença: tudo é oco, tudo é igual, tudo passou! É
verdade que temos colhido; mas porque apodreceram-se e
enegreceram-se os nossos frutos? O Nosso trabalho foi em vão; o
nosso vinho tornou-se veneno; o mau olhado amareleceu-nos os
campos e os corações. Secamos por completo, e se caísse fogo em
cima de nós, as nossas cinzas voariam como pó. Sim, cansamos o
próprio fogo. Todos os mananciais secaram para nós e o mar afastou-
se. Todos os solos querem fender-se, porém os precipícios não nos
querem devorar. Na verdade, já nos cansamos demais para morrer;
agora continuamos a viver acordados em cúpulas funerárias
(NIETZSCHE: 1993).

Nos parece que a fotografia descreve a nossa realidade com muita


propriedade. Diante deste quadro não temos alternativa senão lançar o grito
kierkegaardiano de enten-eller, ou seja: continuar vivendo como um vegetal, como
faz o indivíduo que não assume a existência em primeira pessoa e passa pela
vida como um “n inguém”, um supérfluo; ou por outro lado, orientado pelo tornar-
se da liberdade que exige sempre uma práxis, um agir responsável, colocar-se
contra todo e qualquer princípio que impeça o existir em toda sua força e
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originalidade, mesmo que para isto tenha que se colocar contra os valores
dominantes, quer religiosos, quer políticos ou econômicos.
Excesso de ingenuidade ou responsabilidade radical? A resposta não é
uma máxima afirmativa, não consiste em “a crobacias dialéticas” que transforma a
inteira existência em uma rede de reflexões, mas que tolhe o sentido e a
verdadeira existência. A resposta é o engajamento, é o “p articipar sem reservas”
(Kierkegaard, 1993) nos dramas existenciais que envolvem o Tu, porque “a
perfeição pessoal consiste em participar sem reservas na totalidade”
(Kierkegaard, 1993). A partir do exposto, a tarefa ética deve ser assumida pela
pessoa humana e não pela espécie, embora cada indivíduo-singular assumindo
em primeira pessoa, conseqüentemente todo o gênero humano será ético.
A revolução ética não é teórica, mas não terá êxito sem a paixão, como
afirma o próprio Kierkegaard: “a revolta da paixão é elementar” (Kierkegaard,
1994), é ela que permite ao indivíduo singular lutar, viver e morrer por uma causa
e não ser transformado “e m tudo e por tudo em um ente abstrato”. A crítica ao
princípio básico do comunismo enquanto nivelamento e uniformização é tão forte
quanto, a negação do princípio de coletividade do capitalismo hodierno:

hoje em dia, o idolatrado princípio positivo do socialismo é próprio o


fator corrosivo e corrompente que em um regime de escravidão
reflexiva, faz das mesmas virtudes, vitia splendida. O nivelamento não é
um ato de um indivíduo singular, mas um jogo de reflexão em mãos de
uma potência abstrata (KIERKEGAARD: 1994).

Kierkegaard tem consciência que existir eticamente é colocar-se em guerra


contra os poderes dominantes e as armas para este confronto não podem ser
outras que não sejam as permitidas pela própria ética. O campo de treinamento e
as estratégias de batalha são as categorias existenciais. Por isto, embora não
explicite o conteúdo das categorias da ética-segunda, deixa implícito através dos
seus pseudônimos que somente a ética pode vencer a ética; somente a educação
ética pode tornar o indivíduo singular para que este seja apto a vencer-se a si
mesmo e então estar habilitado a vencer o mundo.
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É legítima a postura de Kierkegaard que a virtude deve ser ensinada, mas


não a maneira acadêmica, porque ela não é uma doutrina, é um poder, um
executar, um existir, uma transformação existencial (Kierkegaard, 1980). Se cada
homem é o artífice de seu destino é a partir de suas escolhas que ele se torna o
que estava potencialmente destinado a ser. Concordamos que o justo e o vil ou o
infame não são por natureza, mas por educação ou falta de educação; que o
caráter ou a falta de caráter não depende de classe social, grau de instrução, cor,
sexo ou religião, mas, fundamentalmente da forma como cada indivídualidade se

coloca diante da vida. 


Em várias passagens do Diário, da Recensão Literária, nos volumes da
Revista O Instante e do Ponto de vista explicativo de minha atividade de escritor,
ele argumenta quanto aos perigos de qualquer forma de sociedade planificada, de
uma sociedade que na prática não é senão uma forma de “cru eldade organizada”
(Kierkegaard, 1980), em um “d espotismo” esclarecido que corrompe até a medula
como ocorreu em Copenhague: “co mo é possível uma cidade como Copenhague,
corromper-ser em um modo tão profundo e horrível e ninguém se sentiu em
autoridade de testemunhar o contrário?”(KI ERKEGAARD, 1980).
Em uma nota capital do Diário de 1848, Kierkegaard escreve: “d e todas as
tiranias “u m governo do povo” é a mais tormentosa, a mais insossa,
absolutamente, o declínio de toda coisa grande e sublime...no governo de povo
quem governa é o “i gual”. ..um governo do povo é a verdadeira imagem do
inferno” (Kierkegaard, 1980). E numa descrição contundente, ele denuncia os
anti-valores e o comportamento da sociedade de sua época:

(...) dor pelo pecado do mundo e pela impiedade, dor pelo fato de que
o mundo jaz no Maligno, dor em virtude de uma tão profunda queda do
homem, dor pelo fato de que o ouro é a virtude, que o poderio é a
justiça, que a coroa é a verdade, que apenas a mentira prospera, que
somente o mal triunfa, que só o amor-próprio é amado, que não mais
do que a mediocridade é aclamada, que apenas a esperteza é
estimada, que somente a balança enganosa é elogiada, e
exclusivamente a mesquinharia obtém sucesso. (KIERKEGAARD:
2001).
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Com uma crítica desse quilate não é possível continuar ignorando a


dimensão do pensamento ético e político de Kierkegaard. Ainda mais em função
da efervescência de sua época. Época que nos permite traçar um paralelo entre a
produção de Kierkegaard e Marx. É importante ressaltar que Kierkegaard e Marx
caminhavam paralelamente e embora não tivessem contato, as respectivas
produções tinham o mesmo objetivo e se moviam com a mesma paixão: o homem
em sua realidade concreta.
A diferença era que Marx visava modificar o homem concreto a partir das
estruturas, enquanto Kierkegaard afirmava que as mudanças estruturais só
poderiam ocorrer a partir da transformação qualitativa da personalidade individual,
da mudança de mentalidade, do tornar-se único, singular, ser de exceção capaz
de doar-se até o extremo, capaz de sacrificar-se pela promoção do totalmente TU,
tese que será fundamental na construção da ética da alteridade em Levinas. É
possível estabelecer um paralelo na produção de Kierkegaard (1813-1855) e Marx
(1818-1883).
Ambos conhecem Feuerbach e criticam o comunismo utópico de Fourier e
Phoudhon. Ambos em 1841 defendem as respectivas teses contra a pretensão da
conclusividade do sistema de Hegel. Kierkegaard em 29 de setembro, com o título
sobre o Conceito de Ironia e Marx em 15 de abril sobre a Diferença entre a
Filosofia da Natureza de Demócrito e Epicuro. Em 1843 iniciam a crítica explícita a
dialética hegeliana: Marx com a Kritik der Hegelschen Rechtsphilosophie,
Kierkegaard com Enten-eller. Em 1844, Kierkegaard ataca o hegelianismo com as
Migalhas Filosóficas e o Conceito de Angústia, enquanto Marx opera a inversão
do hegelianismo na Formação do Materialismo Histórico e na Sagrada Família.
Em 1846, Kierkegaard publica o Post-Scriptum conclusivo não científico às
migalhas filosófica, e Marx publica A Ideologia alemã; Em 1847, Kierkegaard
publica As Obras do Amor, enquanto Marx publica as Teses sobre Feuerbach e o
Manifesto Comunista. Durante o período da Revolução de 1848, Kierkegaard
publica A Doença para a Morte e a Prática do Cristianismo (1849-1959) e Marx
em 1873 publicará a primeira parte do Capital. O paralelo termina em 1855
quando Kierkegaard com 42 anos vai, como Sócrates, ao encontro da Divindade:
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(...) eis a razão de não me causar pena o fato de minha morte; morrer
tendo a esperança de que há ainda alguma coisa depois desta vida e de
que segundo a velha tradição, os bons serão melhor tratados que os
maus. (...) Deixa-o, respondeu Sócrates, mas já é tempo que vos
exponha, a vós que sois meus juízes, as razões que me persuadem de
que um homem que se tenha dedicado a vida interia à Filosofia, deve
morrer tranqüilo e com firme esperança de que gozará, ao sair desta
vida, infinitos bens... Os homens ignoram que os verdadeiros filósofos
trabalham durante toda sua vida na preparação de sua morte e para
estar mortos, sendo assim, seria ridículo que, depois e ter perseguido
este único fim, sem descanso, retrocedessem e tremessem diante da
morte (PLATÃO, 1977).

Muitos interpretes kierkegaardianos rejeitam a dimensão política de sua


obra, porque, permanecem presos a um texto e deixam de lado a conjuntura, as
contradições e a inclonclusividade do pensamento kierkegaardiano. Kierkegaard
mesmo complica ao afirmar no Ponto de vista explicativo de minha atividade de
escritor: “e sta pequena obra propõe-se, pois, dizer o que sou verdadeiramente
como autor, que fui e sou um autor religioso, que toda a minha obra de escritor se
relaciona com o cristianismo, com o problema de tornar-se cristão”. E num outro
momento: “a ação política e aquela religiosa se relaciona inversamente”, porque,
“a política moderna é egoísmo disfarçado sob a máscara do amor: satanás em
forma de anjo – uma caricatura da religião” (KIERKEGAARD, 1980).
Mas, consoante o próprio Kierkegaard, é preciso colocar-se ao interno da
reduplicação dialética, para entender a dimensão da relação ética e política como
concretização da utopia religiosa e desta como a concretização da política, como
ele exprimiu em uma notável passagem do Diário:

a questão à volta da qual o comunismo faz tanto barulho é considerada


pelo cristianismo como evidente: todos os homens são iguais perante
Deus, portanto, essencialmente iguais. Mas o cristianismo estremece
diante da abominação que pretende abolir Deus e pôr no seu lugar o
medo da multidão, da maioria, do povo, do público (KIERKEGAARD:
1980).
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A reduplicação dialética concretiza o sonho do comunismo e do


cristianismo, da ética e da política, da filosofia e da educação, porque ela é a
coerência entre o discurso e a prática, o sermão e a ação, o conhecimento e a
transformação da realidade, é em última instância a atitude fundamental da ética-
segunda. Na obra Etapas do Conhecimento Diante da Vida, é possível
demonstrar o que Kierkegaard entende por reduplicação dialética:

(...) por meio de toda reflexão mais profunda que o torna mais velho
que o momento e o permite agarrar o eterno, o indivíduo assegura a si
mesmo uma relação real com o mundo, e conseqüentemente essa
relação não pode ser um mero conhecimento sobre este mundo e sobre
si mesmo como parte dele...; mas almeja outra espécie de
conhecimento, um conhecimento que não permanece como
conhecimento por um só momento mas é transformado em ação no
momento em que é adquirido. (KIERKEGAARD, 1951)

O objetivo de Kierkegaard era o de colocar-se como corretivo e


desenvolver uma tática para com o indivíduo singular para que a partir da opção
fundamental de cada existente, as estruturas dominantes pudessem ser
superadas, porque elas representavam “a corrupção fundamental dos nossos
tempos que consiste no haver abolido a personalidade” (Kierkegaard, 1980). A
estratégia utilizada por Kierkegaard pôde ser notada ainda em vida por Villads
como o “ma ior peripatético de Copenhague” e Goldschimidt quando o chamou de
“f ilósofo ambulante”. A estratégia era oposta a utilizada pelos grupos dominantes.
Ele preferia uma comunicação indireta, uma comunicação de um eu a um outro
eu, por isso poderia, ser encontrado nas praças, mercado e ruas; lugares por
excelência das relações interpessoais, dos contatos éticos e políticos, da extra-
oficialidade em oposição a oficialidade representada pela Igreja e Estado.
Kierkegaard com orgulho afirmava:

Eu experimentava uma alegria muito cristã, em pensar que, na


falta de outro, havia pelo menos em Copenhague um homem a
quem todo o pobre podia, sem mais cerimônia, confiar-se e falar
na rua; que, na falta de outro, havia aqui um homem que,
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freqüentando também as mais distintas sociedades, não se


esquivava, mas conhecia toda a empregada, todo o criado, com o
qual, aliás, se relacionava... existia um homem que tentava
praticar um pouco a doutrina do amor ao próximo. Kierkegaard era
consciente da época em que vivia: “ conheço muito bem o defeito
da nossa época, o seu ser sem caráter, tudo até um certo
ponto...Eu compreendo bem, e como não poderia compreender,
eu que, sendo conhecido de todos, sou conhecido até dos
meninos da rua, que me chamam de aut-aut? (KIERKEGAARD:
1986)

A dimensão ético-política de Kierkegaard pode ser extraída das citações


extraídas do Diário: “e m nosso país e noutras partes, os comunistas lutam pelos
direitos do homem. Muito bem, também eu. É precisamente por isso que combato
ao medo do homem...” (Kierkegaard, 1980); “a reflexão ética é o ponto decisivo na
vida. Ela fornece a autorização e a medida da existência humana” (Kierkegaard,
1980); e no Ponto de vista explicativo de minha atividade de escritor:

pelo meu lado, julgaria indigno ter vivido numa época de semelhante
desmoralização sem empreender uma ação decisiva...porque o
contágio estendia-se por todo o lado e alcançava a intimidade da vida
privada, o asilo da escola, o santuário da Igreja, vomitando mentiras,
calúnias, insolências, desaforos, e tudo isto para servir funestas paixões
e uma vil avareza...Compreendi que este meio de servir a minha idéia
foi o verdadeiro, e não hesitei; as conseqüências que ninguém, então,
pensou em disputar comigo, reivindico-as na história como minha
propriedade legítima, cujo valor para o futuro os meus olhos descobrem
sem dificuldades.(kierkegaard: 1986)

Diante da corrupção generalizada da sociedade dinamarquesa,


Kierkegaard se coloca como o corretivo e como estratégia ou tática contribuir para
a construção da personalidade autêntica contra a ordem estabelecida. Como ele
afirma em relação à ordem estabelecida “a minha tática era a de portar um
corretivo com relação a Ordem estabelecida, não de realizar qualquer coisa de
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novo que deveria abater ou eliminar a Ordem estabelecida” (KIERKEGAARD,


1980).
Ora, se os objetivos de Kierkegaard consistiam em denunciar a
inautenticidade das instituições que alimentavam e justificavam a inversão do
sentido da existência, esses objetivos eram essencialmente éticos e políticos. A
tese é que a Ordem estabelecida- Det Bestaænde corrompe a personalidade
individual ao estabelecer como critério de participação dos benesseres o jogo de
favores, o interesse mesquinho, a negação do bem comum. A estratégia utilizada
pela Ordem estabelecida “é fator de corrupção”, “d e desregramento”, “d a
desmoralização que transforma os seres humanos em uma“h umana mediocridade
e em uma humana velhacaria”. Os valores éticos em uma sociedade de
conveniência foram “f alsificados, invertidos e esta é uma questão criminal”
(KIERKEGAARD: 2001).
A postura acadêmica que se mantém pretensamente neutra e que
permanece fechada em uma torre de marfim, discutindo os princípios e não
submetendo os princípios à coerência da reduplicação dialética, coloca a filosofia
diante de um impasse que determina sua razão de ser ou sua absoluta
insignificância: ou a Filosofia se encarna no interior destas contradições e assume
que sua missão não é apenas pensar e discutir os princípios, alegando que o
número, a estatística, pertencem a outros campos do saber, e permanecendo
pretensamente neutra, ela se compromete com a dominação existente; ou ela,
assume a postura de denúncia onde não existe a paz, a justiça; onde os direitos
básicos da vida são diariamente negados e se compromete com a verdade, com o
direito e com a vida.
Do contrário a Filosofia é absolutamente inútil, pois também ela, se coloca
a serviço da burguesia, se tornando um instrumento da classe dominante, a
serviço da própria dominação e, dessa forma negando seus princípios
fundamentais, que é a busca da sabedoria para dar um sentido a vida e conduzir
o homem, a uma vida digna, ao exercício do direito e da justiça que se traduzem
na concretização da felicidade e do bem comum. Somos convictos que não existe
um saber neutro, quer para a ciência e quer para a Filosofia; no fundo, todo e
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qualquer saber, e o saber filosófico por excelência, reflete uma perspectiva de


classe e a defesa dos respectivos interesses ideológicos.

Referências
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1993.

KIERKEGAARD, S. Diario. Brescia: Morcelliana, 1980.

. Opere. Milano: Sansoni Editore, 1993.

.Enten-eller. Milano: Adelphi Edizioni, 2001

. Due epoche. Roma: Parrini, 1994.

. Ponto de vista de minha atividade de escritor. Porto:


Edições 70, 1994.

LEVINAS, Emmanuel. Entre nós: ensaios sobre a alteridade. Petrópolis: Rio


de Janeiro, Vozes, 1997.

NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. São Paulo: Hemus, 1993.

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