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CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA

[Textos inéditos para uso exclusivo nos Programas


de Pós-Graduação em Filosofia e Letras da PUCRS.]

Ricardo Timm de Souza

2020

CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA


SEMINÁRIO - 2020
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Sumário
Sumário ............................................................................................................................................ 2
Prefácio ............................................................................................................................................ 3
Introdução .......................................................................................................................................... 5
I – A inclinação ancestral ................................................................................................................... 9
II - Adoecimento da linguagem: fórmulas da idiotia .......................................................................... 21
III – Adoecimento da vida, adoecimento da morte............................................................................. 37
IV - Totalidade e devoração do Outro ............................................................................................... 52
V - Reação à realidade, medo do Outro, Totalidade e totalitarismo .................................................... 65
VI - A idolatria material e a verdadeira face de Mamon ..................................................................... 84
VII – O abismo da Necroética ......................................................................................................... 103
Notas ............................................................................................................................................ 120

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Prefácio

Cada linha que conseguirmos publicar hoje – não importa quão incerto seja
o futuro a que nós a entregamos – é uma vitória arrancada das mãos dos
poderes da escuridão.

W. BENJAMIN1

Em um mundo doente, com evidentes e crescentes tendências suicidas, a crítica


filosófica da contemporaneidade encontra-se em um certo estado de suspensão. O arsenal
crítico da tradição ressoa pouco em um universo de ideias, imagens e atos como que
ensandecidos em processo de rotação contínua no afã de transformação contínua de
qualidades em quantidades que, combinada com uma situação geral de medo
aterrorizante, acaba por usurpar o pensamento e a linguagem de suas posições originais,
integrando-os ao maquinismo de metamorfose obsessiva do Outro em inimigo. A
incapacidade crônica do pensamento sofisticado em estabelecer vias de contato claras
com as urgências de sua época assume uma feição aguda de dissintonia aparentemente
definitiva. O recurso à denúncia do status quo ocupa mormente o lugar que deveria ser
da análise radical do estatuído em sua cronologia histórico-filosófica de consolidação.
Conceitos e categorias perigosos, que em outras eras passaram por inofensivos, assumem
sua verdadeira face de fecundidade macabra e acabam por serem sequestrados pelo poder
puro e simples e suas modalidades de exercício – é o caso, notadamente, da categoria de
Totalidade. Os sintomas regressivos de resistência ao pensamento, quer dizer, ao tempo,
ocupam uma dimensão crescente no imaginário contemporâneo. As consequências
naturais do estabelecimento paulatino de resistência – em sentido tanto filosófico quanto
psicanalítico – à Alteridade se evidenciam com crescente clareza. Sua modalidade
privilegiada é a proliferação de movimentos idolátricos. É a idolatria que floresce ao
termo de uma gestação contaminada por promessas vazias de conciliação e felicidade e
por retóricas condescendentes para com o limítrofe e o insuportável, para com a “soberana
crueldade”, à revelia da facticidade do real, ou seja, do que realmente conta para a vida,
a protege e a promove. Thanatos – também assumindo a forma do horror à multiplicidade
e à diversidade da vida – apresenta-se, como nunca, tentador, pois constitui a medula de
toda e qualquer idolatria. Oportunidade, portanto, para a proposição explícita de uma
crítica da razão idolátrica, para a qual o presente livro pretende contribuir.

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Introdução

A transcendência da idolatria reluz no saber ao qual aporta a serenidade da


teoria. Essa transcendência idólatra em um mundo em repouso é um estado de
coisas que não se apoia no empírico.
E. LEVINAS2

Pensar significa transpor.


E. BLOCH3

Urge que se aborde o tema da idolatria no mundo contemporâneo. Pois, longe de


se ater a uma determinada área do conhecimento ou campo de interesse teórico, a
idolatria, a adoração idolátrica é – tese principal do presente livro – uma forma geral de
funcionamento das sociedades contemporâneas, em todas as dimensões e níveis da vida
social, e com consequências ainda, em boa parte, intangíveis, porém indubitavelmente
com potencial destrutivo de difícil alcance e previsão. Mas, para os efeitos de uma crítica
procedente, a transformação crescente do mundo em um posto avançado do inferno para
boa parte da humanidade e da vida que habita o planeta terra, essa transformação ou
degeneração inegável, é mais que suficiente.
Pois – e este é o ponto de partida –, entre as infinitas características que se
multiplicam na vida contemporânea, muitos dos seus analistas excitados parecem
descurar a principal. Vivemos a era por excelência da idolatria, no sentido consagrado
por Flusser: “Idolatria: incapacidade de decifrar os significados da ideia, não obstante
a capacidade de lê-la, portanto, adoração da imagem”4. Idéias tomam formas
cambiantes, elevam-se publicamente em sua platitude, metamorfoseiam-se em seu
contrário, projetam tentáculos hipnóticos, ocupam toda sorte de espaço privilegiado,
traduzem-se em linguagens constrangedoramente simplórias, muitas de sua própria
invenção; ninguém deixa vê-las e lê-las com a habilidade que uma criancinha demonstra
ao desconectar sílabas de uma palavra complexa sem ter a menor idéia do significado de
tal palavra. Insinuam-se imageticamente – magicamente – no campo da percepção. São
sempre definitivas, vivem de sua morte. Pois vivemos um tempo de glória da
mediocridade, ou seja, de desvalia da inteligência. A sociedade administrada conquistou
uma de suas metas, no objetivo maior de nivelar todas as culturas e sociedades em seu
mais baixo nível para poder vender o que ninguém necessita: transformar a argúcia em
capricho perigoso. A inteligência é ofensiva, só sua pretensão – ou seja, sua paródia – é
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admirada. Ocorre a grande interdição não-dita, típica de toda idolatria: não pensar (pensar
é perigoso), não criticar (criticar é destrutivo). A esperteza viceja em meio a essa penúria
simultânea do esprit de géometrie e do esprit de finesse, conjugados na mesma execração.
Essa inversão corresponde de forma estranhamente paralela àquela das imagens “de
mapas do mundo a biombos”, no sentido da descrição de Flusser:

Imagens são mediações entre homem e mundo. O homem “existe”, isto é, o mundo
não lhe é acessível imediatamente. Imagens têm o propósito de lhe representar o
mundo. Mas, ao fazê-lo, entrepõem-se entre mundo e homem. Seu propósito é serem
mapas do mundo, mas passam a ser biombos. O homem, ao invés de servir das
imagens em função do mundo, passa a viver em função de imagens. Não mais decifra
as cenas da imagem como significados do mundo, mas o próprio mundo vai sendo
vivenciado como conjunto de cenas. Tal inversão da função das imagens é idolatria.
Para o idólatra – o homem que vive magicamente -, a realidade reflete imagens.
Podemos observar, hoje, de que forma se processa a magicização da vida: as imagens
técnicas, atualmente onipresentes, ilustram a inversão da função imaginística e
remagicizam a vida.5

O homem, ao invés de se servir da inteligência em função do mundo, passa a viver


em função de pretensas imagens que uma inteligência misteriosa e mágica – a da
sociedade administrada, da indústria cultural, de seus superabundantes marionetes e de
seus pululantes factoides – gera e revigora constantemente, transformando autonomia em
maquinismo, tentando realizar a utopia de que nenhuma utopia tenha ainda espaço no
mundo habitado por cérebros opacos. Um espécie de “mundo sem cabeça” ao melhor
estilo de Canetti6. Somos todos Fischerles ocupados em reproduzir um penoso simulacro
de vida no qual habitarmos e fixados nos delírios privados que nos alçam a alturas
pateticamente elevadas, já que o mundo se empenha em nos derribar constantemente,
quanto mais não seja pela multiplicação desenfreada do horror em direção a uma
necroética. A constatação cabal é que o mundo contemporâneo, em seu veio principal e
por exigência do tardo-capitalismo, - do neoliberalismo – é de facto um imenso e infernal
maquinismo de transformação contínua de qualidades, singularidades, em quantidades,
generalidades, ou seja, de transformação do diferente em indiferenciado, através da
transformação do Outro em Inimigo – uma forma ideal de necropolítica.
E, todavia, tal constatação não nos basta. Há que decifrar as artimanhas
intelectuais que se ocultam na ob-scena; há que perceber que estilo de racionalidade
sustenta essa miragem tão sólida da contemporaneidade. Tal se dá a partir do que temos
chamado articulação entre a razão ardilosa (a esperteza programática) e a razão vulgar
(a obtusidade corrente)7.

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A razão vulgar é, literalmente, a razão indiferente uniformemente distribuída, na


qual todas as violências se combinam com a anestesia advinda da massa obtusa de
acontecimentos que se precipitam e povoam o imaginário de gente igualmente obtusa,
dando à homogeneização violenta do real a aparência de variedade infinita dos
significantes, aparência que não é senão jogo infindo de espelhos que se refletem
mutuamente, mas que não são senão imagens falsas, pois a verdade, aquela que
Schopenhauer descreveu tão bem – “a verdade não depende de nenhum favor ou desfavor
e não precisa pedir autorização a ninguém; ela se mantém sobre os próprios pés, o tempo
é seu conterrâneo, sua força é irresistível, sua vida, indestrutível” 8 – se sente intrusa no
espaço inóspito da totalização, da Totalidade fática; retira-se então para ceder espaço à
“pós-verdade”. As máquinas, em seu ressoar automatizado mimetizam cérebros
igualmente automatizados percorridos por sangue suficiente apenas para mantê-los
pulsando num arremedo de vida, cérebros que não conseguem perceber senão a esfera
parda, acrítica, da qual constituem o centro geométrico do que são capazes de perceber e
conceber. É a razão idiota em sentido etimológico. Razão servil, a razão vulgar é o campo
de concentração do pensamento, onde são agrupados os estímulos incapazes de
sobreviver à dinâmica feroz da dialética dos interesses; seu único argumento é não ter
argumento nenhum, e disso se orgulhar. Esse é seu narcisismo de morte.
Há, pois, em nome do discernimento mais elementar e para compreender a
idolatria contemporânea, de estabelecer uma crítica da razão vulgar. Para isso, porém,
tem de ser levado em consideração o fato de que não existe razão vulgar sem uma razão
mais sofisticada que a sustente, pelo mero dado de que a coesão precária da razão vulgar,
sua volatilidade que flutua nos níveis mais rasos de qualquer coisa remotamente
semelhante à idéia de autonomia em sentido kantiano, não seria possível sem algum tipo
de alicerce mais sólido, sem alguma estrutura de legitimação do obtuso que somente pode
se prestar a este serviço se, por sua vez, nada tiver de obtusa, ou seja, se sua essência for
a astúcia; a este contraponto especulativo, esta outra razão não-obtusa, esperta, sutil,
perspicaz na persecução de seus interesses, denominamos no presente contexto razão
ardilosa. Imbuída da difícil tarefa de sustentar a violência e vulgaridade do mundo, a
razão ardilosa é e tem de se mostrar astuta; pois só pode se expressar por detrás das idéias
que cria, para retomar Flusser. Sua violência, seu modus operandi circular, consiste em
dispensar a moral em nome da técnica 9. A razão ardilosa, contraponto exato da razão
vulgar e, simultaneamente, sua outra face, sabe exatamente em que consiste e a que veio;
mas sua subsistência depende de sua simultânea habilidade em escamotear tanto suas
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razões reais quanto suas reais finalidades, ou seja, em escamotear a realidade: existe, em
suma, para esconder a verdade.

A razão ardilosa apresenta, assim, todas as razões possíveis para que a vulgaridade
da razão vulgar permaneça em seu devido lugar; seu arsenal de ferramentas destinadas a
esterilizar o novo é enorme, pois disso depende seu sucesso. Jogo de poder, finge-se de
oferta de conciliação; estratégia de violência, mimetiza-se de “sutileza intelectual”;
recurso de cooptação, estende seus tentáculos a cada escaninho do ainda-não, para que
nada de novo sobreviva.

Assim, esse é o modelo de razão hegemônico nas altas esferas do pensamento


bem-comportado a serviço do poder e do estatuído, onde se gestam os ídolos e se
administra a idolatria ministrada como mitologia à razão vulgar. Em outros termos,
chamamos “idolatria” a resposta massificada à articulação perfeita entre razão vulgar
e razão ardilosa.

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I – A inclinação ancestral

Fará o homem para si deuses, que contudo não são deuses?


Jr 16,19s.

Mamon surpreende por seu grande poder e sua enorme influência, que supera
em muito a de Baal ou de qualquer outra divindade pagã.
SICRE, J. L.10

Além de seu sentido literal, parece-me que (o segundo mandamento) sugere


outra ideia muito valiosa para promover a moralidade: condena duramente
os amantes do dinheiro, que buscam moedas de ouro e prata por todas partes
e atesouram seus bens como uma imagem divina em um santuário,
considerando-os fontes de toda classe de bendições e de felicidade.
FÍLON DE ALEXANDRIA11

A idolatria é um dos temas ancestrais do Ocidente, pois se encontra em alguns de


seus textos fundadores ao longo de toda sua herança. De fato, “grande parte da literatura
bíblica é dedicada à luta contra a idolatria, esforçando-se para desmascarar o seu absurdo
e desacreditá-la aos olhos de seus adeptos”12. Entender isso é fundamental, não apenas
para a compreensão do Judaísmo ao longo dos séculos, mas, igualmente, para que se
perceba a que ponto tal herança se estende e se desenvolve no Cristianismo primitivo e
chega até hoje em suas múltiplas derivações, de formas por vezes abertas, por vezes
veladas e subentendidas, e, por certo, não apenas no âmbito de crenças religiosas
específicas – porém oriundas, em boa parte, das configurações do profetismo bíblico 13.
Há algumas pré-condições, porém, para que se entenda que, mesmo na tradição hebraica,
o tema da idolatria nunca é considerado de forma leviana ou indiferenciada; de fato

(...) Quando este material é examinado (escritos bíblicos, R.T.S.), parece que a) nunca se diz
que os deuses, os quais os pagãos acreditam habitarem o céu e a terra, não existem; b) em
nenhuma parte a crença em mitos ou a sua narração são proibidas; c) nenhum autor bíblico
utiliza motivos mitológicos em sua polêmica (...).14

Portanto, a questão não é, e nunca se apresenta ou se conforma como algum tipo


de disputa entre deuses diversos ou do estabelecimento de algum códex de interdições ou
index de narrativas ou leituras proibidas – tal não é, em absoluto, uma questão que
preocupe os críticos da idolatria. Outras crenças ou religiões são apenas consideradas na
medida em que signifiquem a animação artificial, ou magia, de objetos ou fragmentos da
natureza feitos pelo homem ou por ele investidos de poderes mágicos. Esse é o ponto que
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Kaufmann chama de “único argumento polêmico (a saber) que a idolatria é a definição


sem sentido de imagens de madeira e de pedra”15. A crítica surge apenas e na medida em
que emerge a manifestação presumida de algum tipo de “encantamento” perpetrado por
alguém que, ou investe um objeto sem sentido de sentido divino, ou reconhece tal sentido
divino em algo que produz, através de magias ou ritualísticas especiais, que se
acompanham da necessidade de algum tipo de investidura ou poder especial que traz a
divindade à tona. De fato, “a Bíblia concebe a idolatria como a crença de que os poderes
divinos e mágicos são inerentes a certos objetos naturais ou feitos pelo homem, e de que
o homem pode ativar esses poderes através de rituais fixos.” 16, ou seja, “o único
argumento aventado contra a religião pagã é que ela é uma adoração fetichista de ‘madeira
e pedra’”17. E tais objetos não são altares, templos ou moradias de deuses, mas deuses
eles mesmos18. Tal percepção é de grande importância para a pretensão de uma crítica
consequente da idolatria, tal como se anuncia desde suas remotas manifestações
ancestrais. A falácia central, tal como expresso em Hb 2, 18-20, é lógica: trata-se da
crença de que o vazio possui conteúdo, ou seja, de que algum tipo de presença se simule
exatamente na ausência de toda verdadeira presença. Esses vazios enganadores são os
“deuses das nações”. É à ilusão enganadora que se dirige a ira dos profetas, e não às
mitologias alheias ou quadros explicativos da realidade de outros povos, e muito menos
às divindades alheias em si:

Esta visão expressa-se claramente nas polêmicas proféticas contra a idolatria. (...) A profecia
literária levou a religião de Iahweh ao seu clímax. Capítulo após capítulo registra a denúncia
proferida a Israel apóstata por bandear-se para os deuses das nações. Se alguma vez houve
uma luta contra os mitos pagãos e as concepções mitológicas de divindade, deveríamos
esperar encontrar teus traços aqui. Mas procuramos em vão: os profetas não dizem uma
palavra que seja sobre as crenças mitológicas, e sequer uma vez as repudiam. Deixam não
apenas de estigmatizar os deuses pagãos como demônios ou sátiros, mas até de negar
claramente sua existência. Em resumo, os profetas ignoram o que conhecemos como
paganismo autêntico. Sua condenação total gira em torno do escárnio do fetichismo. (grifo
meu, R. T. S.)19

“Sua condenação total gira em torno do escárnio do fetichismo”, e por uma boa
razão: pela tentação permanente em que esse se constitui. A questão propriamente dita,
para os profetas, é a permanente tentação que o fetichismo em suas várias acepções –
especialmente como formas e metamorfoses da idolatria – exerce sobre os povos de Israel,
ou seja, o Israel apóstata. A tentação da idolatria – a inclinação a objetos de atração
idolátrica – é a tentação ancestral.

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Ainda: segundo o que nos chegou, desde o início a verdadeira questão estava além
de discussões abstratas sobre o tema basilar (e extremadamente complexo) do
monoteísmo versus o politeísmo, que costuma abundar nas interpretações eruditas dessa
época histórica ao longo dos séculos; ressalta, antes, a posição digna de condenação de
se auto-atribuir algo como poderes divinos ou mágicos, projetando-os em manufaturas:

Amós, o primeiro profeta literário conhecido, apenas menciona a crença em deuses. Em 8,14,
fala de Asima da Samaria; em 5,26, cita deuses que os israelitas “fizeram” para si. Deste
modo, o profeta, que é considerado por muitos o primeiro que chegou ao monoteísmo puro,
deixa completamente de se externar sobre a natureza do politeísmo que, como se alega,
abandona.20

É agora fundamental destacar que já em Amós, “o primeiro profeta literário


conhecido”, a essentia da questão da idolatria se configura como congruência entre
adoração desmedida da riqueza e da opulência, a vontade inaudita de sempre querer mais
(pleonexia) e a crueldade como expressão de injustiça: nasceu Mamon.

A leitura de Amós nos ensina muito sobre o tema que estamos estudando (idolatria, R. T. S.).
Em primeiro lugar, que não é preciso estar falando continuamente do dinheiro para deixar
claro que é ele que domina os setores mais diversos da sociedade (proprietários de terras,
comerciantes, juízes) e é quem define por completo a vida de muitas pessoas. (…) Neste
sentido, não cabe dúvida de que para Amós existe um deus que domina a classe alta de
Samaria e a quem esta rende culto: é o dinheiro. Amós nunca personifica os bens deste
mundo, nunca usa a palavra cobiça; mas seus oráculos desenham, pincelada a pincelada, o
quadro de una sociedade dominada totalmente pelo desejo de ter mais e pelo deus da
riqueza.21

E de fato, é nessa trilha que profetas mais conhecidos seguem suas agudas
admoestações, no estilo histórico e peculiar de cada herança, admoestações sempre
temperadas pelo escárnio à queda na tentação por parte de Israel, ridicularizando uma tal
fraqueza. Mesmo o poderoso Baal é tratado nesse sentido por Oséias:

Os três primeiros capítulos de Oséias refletem a adoração a Baal da época de Jezebel, quando
os círculos da corte, na Samaria, eram influenciados pelo culto importado da rainha sidônia.
O Capítulo 2 retrata poeticamente Baal como um amante ilegítimo que substituiu Iahweh nos
afetos da “prostituta” Israel. Mesmo aqui, porém, não são mencionadas quaisquer das feições
mitológicas distintas do Baal cananeu. A prosperidade é uma dádiva de Iahweh que Israel
falsamente atribuiu a Baal (versículos 7-11). Nos capítulos posteriores, 4-14, o culto a Baal
(9,10; 13,1) é apenas um entre os vários pecados do passado, e a maneira pela qual o profeta
concebe Baal é vista de modo bem claro em 11,2, onde os “Baales” são semelhantes a
“imagens esculpidas”. Israel está “unido aos ídolos” (4,17), fez um bezerro fundido de prata,
“a obra de artífices” (13,2), não entendendo que “foi um artista que o fez; ele não é um deus!”
(8,6). Quando Israel se reconciliará com seu Deus? Quando disser “A Assíria não nos
salvará... não diremos mais ‘Nosso Deus’ à obra de nossas mãos” (14,4). A idolatria nada
mais é do que a adoração da “obra de mão”.22

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O grande Isaías segue no mesmo sentido:

É a mesma visão que temos em Isaías, que fala da idolatria como o pecado da humanidade
em geral. A idolatria introduziu-se em Israel junto com o advento do ouro e da prata, cavalos
e carros. À medida que estes aumentam, “também se enche a sua terra de ídolos; todos
adoram a obra de suas mãos, aquilo que seus próprios dedos fizeram” (2,7s.). Quando o
Senhor humilhar o orgulho do homem em sua grande teofania final, “o homem jogará fora
seus ídolos de prata e seus ídolos de ouro, que fizera para si para cultuar ...” (2,20). O
Götterdämmerung de Isaías é, deste modo, o crepúsculo das imagens de prata e ouro; ele não
faz alusões às crenças politeístas.23

Isaías aparece inteiramente na sua agudez profética na famosa passagem: “Ai


daqueles que decretam decretos iníquos e prescrevem com entusiasmo normas vexatórias
para violar o direito dos débeis e deixar sem justiça os pobres do meu povo”. 24
E ainda Miquéias: “no dia do Juízo Final, ‘as imagens esculpidas’ da Samaria
‘serão despedaçadas... e destruirei todos os seus ídolos’ (1,7); ‘E tirarei todas as imagens
esculpidas e seus pilares de teu meio; e não mais adorarás a obra de tuas mãos...’ (5,12).25
Ainda: “os adoradores do dinheiro insistem em sua atitude religiosa: ‘conhecem’ a
maneira de atuar de Deus, consideram-se justos, afirmam que Deus está no meio deles” 26
Chegamos ao grande Jeremias, do qual Kaufmann recorta uma plêiade de
advertências contra a idolatria que se tornam especialmente interessantes de analisar:

Jeremias fala da idolatria mais do que todos os seus predecessores. Menciona “outros deuses”
anônimos (11,10) que são impotentes (11,12), os quais Israel não conhecia (19,4); representa-
os como os deuses das terras estrangeiras (16,13). Afirmou-se que Jeremias reconhecia a
existência de outros deuses, fazendo objeção apenas ao seu culto em Israel. Mas Jeremias
expõe amplamente a sua concepção da religião pagã: ela é o culto da madeira e da pedra
(2,27) ou das estrelas do céu (8,2). Os “outros-deuses” não são os seres mitológicos do
paganismo autêntico, nem mesmo demônios, mas a obra de homens (1,16), “pedra e madeira”
(3,9), “imagens esculpidas e vaidades estranhas” (8,19), “não-deuses” (2,11,5,7), e assim por
diante. No dia em que as nações se arrependerem do pecado da idolatria, dirão: “Nossos pais
só herdaram mentiras, vaidade e coisas para as quais não havia proveito. Fará o homem para
si deuses, que contudo não são deuses?” (16,19s.). Quando os homens deixarem de adorar
“não-deuses” fetichistas, a idolatria acabará.27

Deuses “anônimos”, “impotentes”, “desconhecidos de Israel”, “de terras


estrangeiras”, “madeira e pedra”, “estrelas”, “imagens esculpidas”, “vaidades estranhas”,
“obras dos homens”, “não-deuses”. Não se trata aqui, como destaca Kaufmann mais uma
vez, de aspectos de mitologias estrangeiras ou figuras pertencentes a tais universos
culturais, mas sempre de “ídolos” construídos com a exata finalidade de se constituírem
em tais ou constituídos a tais a partir de algum tipo de apropriação de figuras naturais
(“estrelas do céu”), inalcançáveis mas presentes de algum modo aos povos (haverá aqui
alguma indicação àquilo que povos vizinhos exerciam com maestria, a observação das
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estrelas e astros celestes?). De qualquer modo, o que aqui assumem de comum todas essas
figurações de imagens idolátricas é a capacidade de levarem homens a hipotecar a elas
sua confiança a partir de promessas, aos olhos do profeta, vazias e enganadoras. E o
destaque cabe aos produtos das próprias mãos humanas, investidas de capacidades
mágicas ao engendrar objetos de adoração.
Em Ezequiel, a questão se amplifica e se complexifica. Não estamos mais lidando
apenas com engendramentos relativamente neutros investidos de magia, mas de “bolas
de excremento” que acompanham a vida da nação a cada passo, a cada momento se
mostra, revestida de novos traços emocionais, eróticos, afetivos, promitentes, símbolos
imorredouros da “prostituição de Israel”, os quais, inclusive, exigiram sacrifícios de “seus
filhos e filhas”. “Atirarão à rua a prata, terão o ouro por imundície; nem seu ouro nem sua
prata poderão salvá-los no dia da ira do senhor, porque foram sua pedra de tropeço e seu
pecado” (Ez 7,19)28.
A notar que se trata de uma das primeiras narrativas nas quais os ídolos não
permanecem neles mesmos, magicamente constituídos na literatura bíblica, mas são alvos
de oferendas humanas. Esse relevante detalhe terá grande importância na decodificação
posterior de alguns aspectos complexos da lógica da racionalidade idolátrica, que teremos
oportunidade de adiante examinar. De qualquer modo, por agora, é de se constatar que
Ezequiel

(...) [nem] uma vez sequer argumenta contra a mitologia pagã. Apesar do fato de polemizar
frequente e acaloradamente contra a idolatria, não diz nada a respeito dos mitos de Tamuz ou
qualquer outro deus, nem jamais emprega um argumento baseado num motivo mitológico.
Também ele caracteriza a religião pagã como fetichismo. Seu epíteto favorito para os deuses
é gillulim (bolas de excremento); a prata e o ouro de Israel, dos quais “fizeram eles próprios
suas imagens abomináveis e coisas repugnantes”, foram seus obstáculos (7,19s.). Nos
capítulos 16, 20 e 23, o profeta descreve a apostasia de Israel em visões e alegorias
pormenorizadas; Israel fez “imagens masculinas” de ouro e prata, deu-lhes oferendas, até
sacrificou a elas seus filhos e filhas. Adotaram o culto a ídolos de seus vizinhos ao longo de
toda a sua história, desde a permanência no Egito em diante. A imagem retórica é sensual e
erótica; o motivo dominante são as imagens-ídolo, aqueles parceiros ilegítimos da
prostituição de Israel – os soldados armados ilegítimos da prostituição de Israel, dos quais o
profeta prontamente passa aos homens vigorosos das nações estrangeiras – os soldados
armados da cabeça aos pés – com os quais Israel também se prostituiu.29

Chegamos ao ponto em que, em lugar de apenas denunciar o sem-sentido de


alguém ou algum povo adorar – idolatrar – algo por ele mesmo construído ou apropriado
de alguma parte do mundo natural, a narrativa se empenha em literalmente ridicularizar
uma tal pretensão, de forma obstinada e criativa, e, mesmo em tradução, literariamente
sugestiva e bela, denunciando obstinadamente a desrazão que habita um tal sentimento

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ou tentação, característica ao que parece exclusiva de alguém “sem conhecimento nem


inteligência”, que olha, porém não vê, que contempla mas não decifra:

A clássica polêmica contra a idolatria encontrada no Segundo Isaías expressa a concepção


bíblica do culto pagão em sua forma mais vívida. Nenhum profeta anterior jamais denunciou
a idolatria, nunca a cobriu de insultos com tanto zelo e persistência. E, no entanto, este ataque
incessante, esta torrente de escárnio e zombaria, toca num tema apenas: a loucura monstruosa
de acreditar que ídolos possam ser deuses. Quanta energia e talento poético são dedicados
para provar este único ponto!

Os artífices de ídolos são todos ridículos, suas imagens bem-amadas não


servem para nada...

O carpinteiro estende a régua sobre a madeira, modela-a com o almagre,


aplaina-a com o cepilho, marca-a com compassos, e fá-la à semelhança de um
homem, com uma beleza como a de forma humana – para ficar numa casa!

O homem corta para si um cedro, ou toma um cipreste ou um carvalho, ou


apanha uma outra árvore da floresta... Toma parte dela e aquece-se, acende
fogo e assa pão; depois faz um deus e venera-o, molda uma imagem e prostra-
se diante dela. Metade dela queima no fogo, e em suas brasas tosta carne... E
do resto faz um deus – seu ídolo! – prostra-se perante ele, adora-o e reza,
dizendo, “Salva-me, pois tu és meu deus!”

Eles não têm conhecimento e inteligência; pois seus olhos estão untados de
modo que não podem ver, e suas mentes estão embotadas de modo que não
podem entender... (44,9-18). 30

O que aqui está em jogo, além da denúncia religiosa e moral que o culto idolátrico
significa, é também a lógica de decadência que se segue à aceitação de uma tal inclinação.
Já não cabem apenas exortações morais contra a idolatria, mas a exposição crua ao
ridículo de sua efetivação, pois ela, a idolatria, nunca permanece o que simplesmente é,
porém se rebaixa continuamente a níveis indescritíveis de baixeza e irracionalidade. Há
uma historicidade na idolatria, e ela não aponta à superação e à vida, mas à efetivação do
sempre pior, a abominações cultuais naturalizadas. Veja-se a respeito a descrição de
Nachman Krochmal, referindo-se à historicidade dos povos e dos judeus em particular,
no caso, “o povo de Canaã e suas famílias e os filisteus e os ‘filhos de Cam’”: “(...) E já
estavam corrompidos pela idolatria, e por práticas e crenças malsãs, até que em pouco
tempo chegaram a abominações (isto é, tal foi sua decadência moral que praticaram atos
que a alma aborrece e diante dos quais recua, como a imolação dos filhos, a prostituição
sagrada, a tortura de estrangeiros” 31. A questão da idolatria nunca se dá como um episódio
isolado ou um acontecimento fixo, e sim como um processus de decadência.
Examine-se, enfim, a summa da questão idolátrica no discurso de um intelectual
– Moses Mendelssohn – que, mais que um pensador-chave da Hascalá, foi um judeu

CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA


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erudito e piedoso de primeira grandeza, em pleno século das Luzes, e em sua – muito
provavelmente – maior obra: Jerusalém. Em lugar de considerar a questão idolátrica
como alguma recaída menor em narrativas supersticiosas, pontua exatamente o ponto de
clivagem que tal recaída significou. Não se trata, portanto, de tratar a idolatria, a tentação
ou a inclinação idolátrica, como algo acessório do corpus ético-intelectual essencial do
judaísmo, mas, sim, como algo que habita desde sempre as profundidades de sua
significação histórico-ética e que se encontra a mínima distância, perigosamente
próxima, daquilo que de mais preciso essa tradição contém, exigindo um trabalho
pedagógico de reconstrução da integridade da crença que se mostra histórica e
intelectualmente – eticamente – intenso, contínuo e fatigante:

Já nos primeiros dias da maravilhosa legislação recaiu a nação na pecaminosa ilusão dos
egípcios, exigindo uma imagem de animal (...). Falavam apenas de um ser divino, que os
conduzisse em lugar de Moisés que, segundo acreditavam, teria abandonado o seu posto.
Aarão não conseguiu resistir por mais tempo à insistência do povo e fundiu-lhes um bezerro
e, a fim de retê-los no propósito de não venerar divinamente esta imagem, mas apenas a Deus,
clamou: Amanhã haverá uma festa em louvor do eterno! Mas no próprio dia da festa, na
dança na orgia, o populacho fez ouvir palavras bem diferentes: estes são os teus deuses, Israel,
que te conduziram para fora do Egito! Agora a lei fundamental fora transgredida, desfeito o
laço da nação. Admoestações razoáveis raramente frutificam num populacho amotinado, uma
vez irrompida a desordem, e bem sabemos a que drásticas medidas precisou decidir-se o
legislador divino a fim de reimpor a obediência ao poviléu sublevado. 32

Uma peculiar combinação de estupidez com loucura, um vício da inteligência,


característica do “poviléu sublevado”, incapaz de pensar por si mesmo e, principalmente,
incapaz de prever as consequências de suas ações, é o que se aponta na tão famosa
expressão de Dt 4, 28: “Qual é a loucura da idolatria? Que seus deuses ‘não veem, não
ouvem, não comem nem cheiram’” 33. Essa é a síntese do resultado da inclinação
idolátrica, da tentação de uma entrega a um determinado objeto de uma confiança
imerecida por esse objeto, confiança advinda de uma peculiar fraqueza de espírito, que
não consegue refletir sobre o contexto de realidade na qual se dá e que é causada pela
combinação indigesta entre determinado grau de estupidez com determinado grau de
insanidade. No exercício da idolatria, a combinação de estupidez decadente com
insanidade irresponsável, em graus dificilmente discerníveis uma da outra, e mesmo
variáveis, é uma constante que vai se repetir em inúmeras narrativas, nem de longe se
atendo apenas à literatura bíblica das primeiras épocas.

***

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16

É na esteira desta tradição que o Cristianismo, em constante diálogo com o


Judaísmo, como expressão evidente de sua herança, não apenas em termos explícitos e
visíveis, mas, igualmente – a uma leitura mais profunda – em termos de ancestralidade
definidora, terá de se haver com as formas idolátricas que, agora, assumem modalidades
crescentemente concretas e aliciadoras de energia votiva dos fiéis. Tal é demonstrado pelo
perfeito paralelismo das admoestações de Elias e de Jesus:

(...) A idolatria abrange dois aspectos fundamentais, os rivais de Deus (proibidos pelo
primeiro mandamento) e a manipulação do Senhor (condenada pelo segundo) (...). Sempre
existirá o duplo perigo de que surjam novos rivais de Deus ou de tentarmos rebaixá-lo à
categoria de um ídolo. Com efeito, assim o viram os profetas, Jesus e Paulo, que aplicaram
as exigências destes dois preceitos a realidades novas, atuais para seu tempo. Que Jesus e
Paulo adotaram esta postura não precisa de demonstração. O primeiro afirma que não se pode
prestar culto a Deus e a Mamon, estabelecendo a mesma disjuntiva estabelecida por Elias no
monte Carmelo entre Javé e Baal. “Não terás outros deuses diante de mim” (Ex 20,3; Dt 5,7),
reza o primeiro mandamento. “Até quando andareis com duas bengalas? Se Javé é o deus
verdadeiro, segui-o; se é Baal, segui a Baal”, grita Elias no monte Carmelo (1Rs 18,21). “Não
podes servir a Deus e a Mamon”, ensina Jesus a seus discípulos (Mt 6,24). Definitivamente,
o primeiro mandamento é um problema de alternativas, de rivais que vão surgindo para Deus
ao longo da história.34

Esse paralelismo é notável não apenas pelo que obviamente significa – a


perduração da tentação da idolatria ao longo dos séculos – como também porque, como
se verá, ocorre uma enorme intensificação de poder de Mamon em relação a Baal, o que
terá profundo significado na compreensão do próprio conceito de idolatria. Mais uma vez,
deparamo-nos com a crescente intensificação e naturalização da potência idolátrica. O
exemplo privilegiado é a congruência crescentemente perceptível entre idolatria e
riqueza, já presente de forma cabal desde a origem da literatura sobre o tema da idolatria,
como bem mostra Sicre:

Assim como no caso da política, a relação entre a riqueza e a idolatria é muito diversificada.
Às vezes trata-se de uma relação extrínseca, como mostra o exemplo das pessoas que
fomentam cultos pagãos por puro interesse econômico. No Antigo Testamento podemos citar
o caso dos sacerdotes de Bel, que encontraram neste ídolo seu meio de subsistência (cf. Dn
14,1-22). A mesma coisa acontece com os ourives de Éfeso que fabricam as estatuetas de
Ártemis (At 19,24-27). (...) Existe também uma relação extrínseca no caso contrário, quando
os próprios bens são postos a serviço dos deuses pagãos, ou são destinados a construir
imagens suas. Poderíamos talvez incluir neste parágrafo a fabricação do ídolo de Micas (Jz
17); mas não é certo que naquele tempo essa ação fosse considerada um pecado de idolatria.
Em todo caso, os livros proféticos falam deste fato. Oseias condena seus contemporâneos
porque “com sua prata e seu ouro fabricaram para si ídolos” (8,4), afirmação muito
semelhante à de 2,10, embora neste caso pareça tratar-se de uma glosa. Também Ezequiel
diz que “com suas esplêndidas joias fabricaram estátuas de ídolos abomináveis” (Ez 7,20). 35

CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA


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Está-se aqui às voltas com a complexidade que se desenha desde a origem do


estabelecimento de comunidades e sociedades relativamente complexas, que tiveram
seguramente por motivação a eliminação da penúria alimentar e de bens necessários à
vida, tão comuns em sociedades nômades e agrupamentos menores ou mais transitórios.
A bênção da abundância assume, uma vez estabelecidas tais novas sociedades, ou nesse
novo estilo de convivência humana, uma nova configuração acumulativa e “pessoal”,
doravante chamada “riqueza”, objeto de tentação original; Sicre avança ao ponto de
estabelecer mesmo uma relação causal original entre “riqueza” e algo como “idolatria”
ou mesmo “proto-idolatria” na Bíblia, o que nos parece uma concepção perfeitamente
pertinente do problema, haja vista a literatura disponível:

Em outras ocasiões os textos bíblicos falam de uma relação muito mais íntima entre riqueza
e idolatria, como entre causa e efeito. Trata-se daqueles casos em que a riqueza leva ao
esquecimento de Deus e às práticas idolátricas. É o que denuncia Os 10,1:

Israel era uma vinha frondosa, dava frutos;


Quanto mais frutos, mais altares;
Quanto melhor ia o país, melhores estelas.

Este é um dos pontos capitais da mensagem de Oseias. Poderíamos defini-lo como a


condenação do esquecimento dentro de uma concepção sacral. Porque seus contemporâneos,
mais do que amar a Baal, amam os bens materiais: água, lã, linho, pão, óleo. Se recorrem
aos deuses cananeus é porque os consideram seus grandes dispensadores. A mensagem de
Oseias tem um grande pano de fundo econômico, mas esta atividade de enriquecimento e a
preocupação com os bens terrenos se movem dentro de uma concepção sacral do mundo. Os
contemporâneos deste profeta não se deram conta de que, para enriquecer, não é preciso
invocar nenhum deus do céu. Existem meios mais sutis e produtivos que nada têm a ver com
o culto. (grifo nosso, R. T. S.)36

Na época cristã, porém, algo de novo aparece, não em termos de uma nova
divindade, mas em termos de uma reescrita do próprio conteúdo da idolatria, anunciado
in nuce desde os tempos remotos. Pois adentra a história, de modo efetivo e definitivo, a
figura de Mamon, desde sempre de algum modo presente, porém agora como que
deslocado de uma figuração em segundo plano, como que implícita e disfarçada em meio
a rituais e tradições diversas, ou sob nomes diferentes; torna-se a figura dominante que
catalisa a fé de seus adoradores com exclusividade, aquela exclusividade expressa nas
famosas frases de Elias e de Jesus já citadas e que os levou a propor a alternativa definitiva
a seus ouvintes. Baal, todavia, não passa de uma pálida figura ante a potência de Mamon.
Pois:

Mamon surpreende por seu grande poder e sua enorme influência, que supera em muito a de
Baal ou de qualquer outra divindade pagã. Baal limitava-se a conceder a chuva, a fecundidade
da terra, a abundância de frutos. É fundamentalmente um deus de camponeses e de

CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA


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necessidades primárias. Mamon proporciona as mesmas coisas e muito mais. Concede ter
grandes palácios, objetos caros, banquetear-se esplendidamente, comer os melhores bezerros
do rebanho, beber vinhos finos, ungir-se com excelentes perfumes (cf. Am 6,4-6). Numa
palavra: “viver com luxo e levar uma boa vida” (Tg 5,5). Ao mesmo tempo, sua influência
social é maior. Abre todas as portas e dobra todas as vontades, inclusive a de muitos “zelosos
javistas”. Influi nos oráculos dos profetas e na instrução dos sacerdotes; diante dele se
inclinam os juízes e as testemunhas mudam suas declarações; domina sobre reis, proprietários
de terras e comerciantes.37

Destaque-se, ainda, que se trata de algo novo que assume um nome próprio e
inconfundível; não se trata mais de uma visão geral da abjeção idolátrica que povoa o
imaginário antigo e assume múltiplas formas e nomes:

(...) um rápido lembrete bíblico. Mamon só aparece no Novo Testamento, três vezes em
Lucas (Lc 16,9. 11.1.3) e uma vez em Mateus (Mt 6,24), e sempre na boca de Jesus. Ora,
Jesus fala aramaico, a língua ou dialeto popular. E Mamon é precisamente um termo
aramaico. Há fortes indícios de que tenha sido, na linguagem popular, um insulto — sob a
forma de um nome de ídolo — contra os ricos. Por isso perde-se algo da força da expressão
quando Mamon é traduzido sem mais por Dinheiro, porque Mamon significa "Dinheiro
adorado". A frase chicoteante "Não podeis servir a Deus e a Mamon" (Mt 6,24 e Lc 16,13)
evocava inevitavelmente nos ouvintes de Jesus a contraposição, muito frequente nos textos
do Antigo Testamento, entre servir a Yahwe e servir a outros deuses (por exemplo, Dt 6,13;
7,16; 10,20). Também São Paulo destaca o aspecto cultuai do dinheiro quando fala da
"ganância (cobiça), que é idolatria" (Ef 5,5; Cl 3,5).38

Mamon é o verdadeiro rival de Deus, pois se desdobra desde o núcleo em


expressão de injustiça.39. Mamon deixa agora a condição de ídolo como qualquer outro,
ou de “deus pagão” sobre o qual nem se fazia necessário dissertar, para se configurar em
um deus mesmo, com as suas características, entre as quais evidentemente se destaca, na
tradição judaica e cristã, a exclusividade de sua existência divina, em frontal
contraposição ao primeiro Mandamento. O denunciado desde as primícias da cultura
judaico-cristã torna-se fato cabal:

Estamos acostumados a pensar que foi Jesus quem denunciou mais claramente e pela
primeira vez este fato. Ao personalizar os bens deste mundo e apresentá-los como um senhor
que domina e escraviza o homem, ele deixou claro que se trata de um rival de Deus, tão
perigoso como pode ter sido Baal séculos antes. E Paulo, seguindo suas pegadas definiu a
cobiça como idolatria (Cl 3,5) e o cobiçoso como idólatra (Ef 5,5). Mas, onde encontramos
pela primeira vez esta mentalidade é nos profetas. A partir de seus oráculos de denúncia
social podemos descrever esta segunda forma de idolatria.40

Mamon foi definitivamente divinizado.41 Aquilo que os profetas viam e anteviam


em seu legado à sua época e à posteridade, a tentação maior, tomou corpo e forma
definitivos. A releitura histórica e literariamente informada da mensagem profética por
alguém que viveu ainda, de certo modo, nos alvores do cristianismo (século V), é

CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA


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eloquente neste sentido e sumariza magistralmente uma percepção que se tornará


crescentemente evidente a uma longa série de intelectuais – não apenas religiosos, não
apenas filósofos, dos séculos vindouros até hoje:

O que os profetas pensavam sobre o enorme poder de Mamon podemos expressá-lo com
umas palavras bastante retóricas do Boca de Ouro (Pedro Crisólogo): “Manda nos povos,
decide nos reinos, ordena guerras, compra mercenários, vende o sangue, causa mortes, destrói
cidades, submete povos, assedia fortalezas, humilha os cidadãos, preside os tribunais, apaga
o direito, confunde o justo e o injusto e, firme até à morte, põe em crise a fé, viola a verdade,
dissipa a honradez, rompe os vínculos do afeto, destrói a inocência, sepulta a piedade,
destroça o carinho, desmantela a amizade. O que mais? Este é Mamon, senhor da iniquidade,
que domina iniquamente tanto o corpo como o espírito dos homens”.42

De fato, estamos às voltas com uma entidade que apresenta os mais diversos
aspectos de uma onipotência aparentemente incontestável e, todavia, é exatamente nesse
ponto fulcral de constatação de realidade que irrompe, aos olhos de críticos muito
abalizados, exatamente a outra face do poder e da promessa mamônicos, algo como sua
miséria subterrânea, o outro lado de sua capacidade invasiva da vida, da cultura, da
realidade; uma fraqueza que se oculta por detrás de tanta opulência proclamada e
efetivada, a eterna indigência e finalmente fragilidade de toda Totalidade constituída em
razão de si mesma, em sua solidão constituída, finalmente, como resultado de uma
modalidade especial de auto adoração.

No entanto, os profetas não se deixam enganar por este poder manifesto do dinheiro.
Jeremias, numa linha muito semelhante à da tradição sapiencial, diz que as riquezas
“abandonam a pessoa na metade de sua vida” (17,11). Sofonias, seguido por Ezequiel, afirma
que o ouro e a prata não podem salvar, não constituem uma garantia suprema de segurança
nesta vida. Amós, Isaías e Miqueias veem na corrida para os bens deste mundo uma corrida
para a destruição do próprio país, especialmente das capitais. Com palavras diferentes, os
profetas concordam com os sábios que Mamon é um deus enganoso, incerto, traiçoeiro. Tão
falso como os deuses pagãos, tão inseguro como as grandes potências. (...) O culto ao dinheiro
é uma da forma mais clara de alienação (...) Uma tradição profética reflete muito bem esta
ideia. Trata-se de 1Rs 21, onde se narra uma das injustiças mais famosas da história de Israel,
o assassinato de Nabot. Depois da morte deste, o rei Acab vai “tomar posse da vinha” (v. 16);
ele pensa ter aumentado suas posses com este terreno que tanto desejava. Mas o prejudicado
não foi apenas Nabot. É também, e sobretudo, o próprio rei como lhe mostra Elias ao dizer-
lhe: “tu te vendeste” (v. 20), ideia que se repetirá no juízo final sobre Acab (v. 25). Este
contraste entre “tomar posse” e “vender-se” reflete com profunda ironia a tragédia dos que
decidem servir a Mamon. 43

O culto idolátrico, desde sempre expresso no exemplo modelar do culto divino a


Mamon, essa “grave enfermidade” (Fílon de Alexandria), a pleonexia insana, é a
expressão de um drama que expressa algo de muito profundo no coração humano, uma
tentação eterna, uma inclinação sorrateira, que apenas espera a oportunidade para se
manifestar em toda tua voracidade exponencial que é também, de algum modo, suicida.

CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA


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Não é apenas o outro que sofre sob esse deus inclemente – o próprio Mesmo, que se adora
ao adorá-lo, ao finalmente implodir suas razões de existência que lhe sugam a energia
através de uma singular paralisia da temporalidade, em sua idiotia auto-referida, acaba
por sucumbir a essa tragédia indescritível, que oculta sua verdade – sua realidade e suas
garras – até a hora derradeira. Eis um legado precioso da análise da idolatria por parte de
figuras fundamentais do Judaísmo e do Cristianismo 44 – aqui expostos como exemplos
privilegiados desse modus interpretativo: o culto à idolatria é sempre, de um modo ou de
outro, um culto à morte.

CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA


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II - Adoecimento da linguagem: fórmulas da idiotia

Quanto mais nos aprofundamos na gênese psicológica do caráter totalitário,


tanto menos nos contentamos em explicá-lo de forma exclusivamente
psicológica, e tanto mais nos damos conta de que seus enrijecimentos
psicológicos são um meio de adaptação a uma sociedade enrijecida.

T. ADORNO45

O nazismo se embrenhou na carne e no sangue das massas por meio de


palavras, expressões e frases impostas pela repetição, milhares de vezes, e
aceitas inconsciente e mecanicamente.
V. KLEMPERER46

A formação do caráter é uma questão nitidamente menor: dominar o corpo é


mais importante do que receber educação.

V. KLEMPERER47

Ocorre uma correlação direta entre a atrofia da linguagem como potência vital
nomeadora da realidade, ou seja, como verbo dos acontecimentos ou realidade
verbalizada para além da pretensão de onipotência totalizante do Eu – o esvaziamento de
responsabilidade de sentido que um tal movimento necessariamente significa 48 - e a
instalação, no vazio criado por essa ausência povoada pelo estático, de um crescente
potencial idolátrico.

A famosa crônica de Hannah Arendt sobre o julgamento de Otto Adolf


Eichmann49 é extremamente rica, seja na própria interpretação de Arendt, seja na letra
dos depoimentos de Eichmann, em termos de exemplificação cabal do resultado final de
um tal esvaziamento de peso de realidade, ou seja, de sentido propriamente de linguagem,
da linguagem.
A pontuação inicial de uma postulação de linguagem em termos verticais, não
significativa à comunicação, mas à denominação ao molde de etiquetagens num universo
estático de acontecimentos novos, ou seja, nos quais os acontecimentos se adaptam a
estruturas prévias especialmente em termos de ordenações hierárquicas, é característica
de todos os depoimentos de Eichmann, como Arendt bem destaca. Já de início, o que se
tem é uma entidade metafísica absoluta, o “mais alto portador de sentido” (“Höher
Sinnesträger”) a partir da qual tudo o demais é medido em termos de caracterizações e
ações. Eichmann era um “crente de Deus” ou “crente em Deus” (“Gottgläubiger”) que
abjurara o cristianismo. O que, à primeira vista, parece um movimento de iconoclastia ou
CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA
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a expressão de uma vontade consciente, logo após deixa transparecer sentidos mais
evidentes e menos complexos, no sentido da “verticalização” atrás referida:

Segundo suas crenças religiosas, que não haviam mudado desde o período nazista (em
Jerusalém, Eichmann declarou-se um Gottgläubiger, termo nazista usado para aqueles que
haviam rompido com o cristianismo, e recusou-se a jurar sobre a Bíblia), esse acontecimento
(os temas em pauta, R. T. S.) devia ser atribuído a um “Portador de sentido superior, uma
entidade de certa forma identificada com o “movimento do universo”, à qual a raça humana,
em si isenta de “sentido superior”, deveria estar sujeita. (A terminologia é bastante sugestiva.
Chamar Deus de Höher Sinnesträger significa, linguisticamente, dar a ele um posto na
hierarquia militar, uma vez que os nazistas haviam transformado o “recebedor de ordens”,
o Befehlsträger, num “portador de ordens”, um Befelsträger, indicando assim, como no
antigo termo “portador de más notícias”, a carga de responsabilidade e de importância que
devia pesar sobre aqueles que executavam ordens. Além disso, Eichmann, como todo mundo
ligado à Solução Final, também era oficialmente um “portador de segredos”, um
Geheimnisträger, coisa que em termos de vaidade não era de se desprezar). (grifo meu) 50

A estruturação de uma hierarquia de realidade que aproxima uma cosmologia


particular do universo mais prosaico da lógica militar não é sem consequências. O que se
pode observar aqui é o afunilamento do sentido de realidade da realidade no ponto de
união entre uma entidade metafísica máxima, o Höher Sinnesträger, e o ponto lógico
absoluto do qual deriva toda a atividade vital, em uma dimensão, como apontamos,
perfeitamente verticalizada. Não há espaço para movimento, nem tempo para
acontecimentos novos ou inesperados; a vida se resume, finalmente, no receber e passar
adiante o que chega desde o absoluto, numa espécie de paradoxal movimentação estática.
O que, agora, contrasta retintamente com uma tal “ordem pré-ordenada” e
assumida é a forma como Eichmann integrou-se ao partido Nazista. Não uma expressão
de vontade, não uma revelação superior, mas uma precipitação involuntária de
acontecimentos incontroláveis que desembocou nessa antítese improvável: de alguém a
quem o partido Nazista era inicialmente “completamente indiferente” a alguém que se
tornou uma de suas expressões práticas mais notórias e destacadas pelas funções que
ocupou e exerceu, na lógica de seus superiores, a pleno contento:

De toda forma, não entrou para o Partido por convicção nem jamais se deixou convencer por
ele – sempre que lhe pediam para dar razões, repetia os mesmos clichês envergonhados sobre
o Tratado de Versalhes e o desemprego; antes, conforme declarou no tribunal, “foi como ser
engolido pelo Partido contra todas as expectativas e sem decisão prévia. Aconteceu muito
depressa e repentinamente”. Ele não tinha tempo, e muito menos vontade de se informar
adequadamente, jamais conheceu o programa do Partido, nunca leu Mein Kampf.
Kaltenbrunner disse para ele: Por que não se filia à SS? E ele respondeu: Por que não? Foi
assim que aconteceu, e isso parecia ser tudo.51

CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA


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Mais uma vez, a questão presta-se a uma interpretação muito significativa. O que
se expressa nesse episódio é, na verdade, menos estranho do que parece. Eichmann está
confessando, desde o início, que o pensamento sempre lhe foi alheio52. Desde o início,
fica claro que suas escolhas não foram suas, mas daquilo que ele chamou de História ou
Movimento. Ele se confessa um joguete nas mãos do destino, que assumiu tarefas pelas
quais não tinha apreço por uma necessidade externa que não lhe deixava nenhuma outra
hipótese de ação.

Evidentemente, isso não era tudo. O que Eichmann deixou de dizer ao juiz presidente durante
seu interrogatório foi que ele havia sido um jovem ambicioso que não aguentava mais o
emprego de vendedor viajante antes mesmo de a companhia de Óleo a Vácuo não o aguentar
mais. De uma vida rotineira, sem significado ou conseqüência, o vento o tinha soprado para
a História, pelo que ele entendia, ou seja, para dentro de um Movimento sempre em marcha
e no qual alguém como ele – já fracassado aos olhos de sua classe social, de sua família e,
portanto, aos seus próprios olhos também – podia começar de novo e ainda construir uma
carreira. 53

A ideia, o Movimento, a própria História o engolfaram sem lhe deixar escolha


alguma. Havia, porém, uma característica prévia que o constituiu tão incapaz de tomar
atitudes mais complexas: Arendt: “(...) uma falha mais específica, e também mais
decisiva, no caráter de Eichmann era sua quase total incapacidade de olhar qualquer coisa
do ponto de vista do outro”. 54 Seu mundo se reduzia à pobreza extrema de percepção,
isolado em um mundo como que auto-referido, que o fez um tão bom funcionário do
sistema. Incapaz de imaginar, vivia em um mundo mágico, na exata definição de idolatria
de Flusser. Esse mundo mágico não permite criação, já que tudo se encontra desde sempre
já criado para si mesmo. Pois a magia, considerada aqui em sua significação rudimentar
e encantatória, nada cria, a não ser ilusões.
A próxima evidência é a de que a visibilidade de uma tal redução da realidade à
magia se expressa perfeitamente no estreitamento da linguagem, até que esta se constitua
em uma espécie de prisioneira de si mesma em seus elementos mais toscos e vulgares.
Um universo extremamente restrito de significações acaba por se auto-aprisionar em um
invólucro pré-constituído, sem possibilidade de alternativa ou escapatória. O não-
pensamento, a incapacidade de conceber perspectivas diferentes no que se relaciona a
uma posição fixa em um dado mundo no qual todo sentido se esgota no estático, acaba
por determinar o aprisionamento das ideias em fórmulas derivadas da semântica mais rasa
– ou mais obliterada, no sentido etimológico da palavra idiota – da língua como expressão
de linguagem, que culmina na expressão clichê:
CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA
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O texto alemão do interrogatório policial gravado, realizado de 29 de maio de 1960 a 17 de


janeiro de 1961 (...), constitui uma verdadeira mina de ouro para um psicólogo – contanto
que ele tenha a sabedoria de entender que o horrível pode ser não só ridículo como
rematadamente engraçado. Parte do humor não pode ser transmitido em outra língua, porque
está justamente na luta heroica que Eichmann trava com a língua alemã, que invariavelmente
o derrota. É engraçado quando ele usa o termo “palavras aladas” (geflügelte Worte, um
coloquialismo alemão para designar citações famosas dos clássicos) querendo dizer frases
feitas, Redensarten, ou slogans, Schlagworte. Era engraçado quando, durante a inquirição
sobre os documentos Sassen, feita em alemão pelo juiz presidente, ele usou a frase “kontra
geben” (pagar na mesma moeda), para indicar que havia resistido aos esforços de Sassen para
melhorar suas histórias; o juiz Landau, desconhecendo evidentemente os mistérios dos jogos
de cartas (de onde provém a expressão), não entendeu, e Eichmann não conseguiu achar
nenhuma outra maneira de se expressar. Vagamente consciente de uma incapacidade que
deve tê-lo perseguido ainda na escola (...) ele pediu desculpas, dizendo: “Minha única língua
é o oficialês [Amtssprache]”. Mas a questão é que o oficialês se transformou em sua única
língua porque ele sempre foi genuinamente incapaz de pronunciar uma única frase que não
fosse um clichê.(grifo meu, R. T. S.).55

A linguagem se empedra. Esse é o indício de sua morte próxima, quando tudo o


que sobrar serão gritos e murmúrios inarticulados, repetição espasmódica de fórmulas,
clichês revestidos de tonalidades impróprias e com ridícula pretensão de aparecerem
como verdades definitivas. A linguagem petrificada é incapaz de reconhecer o
desvanecimento do seu tempo interno, evadido com sua vida própria, ou seja, com sua
verbalidade, sem a qual ela não se constitui em nada senão em eco mecânico do tilintar
de coisas que se chocam umas com as outras. De fato, ocorre algo como uma
mecanização, uma maquinização extrema do discurso, que se torna em ferramenta
utilizável em contextos nos quais se esperaria mais do que um mero monólogo
idiotizado56.
Arendt bem observa que nada como palavrório mecânico que retorna a si mesmo – eterno
retorno do Mesmo – para proteger do poder desagregador de que dispõe uma única
palavra verdadeira, ou seja, estribada no além do círculo mágico constituído pelo idiota
para sua proteção contra o perigo da vida. No palavrório não subsiste uma única palavra
real, pois tudo se transformou em fórmula circular que reenvia constantemente para o
adiamento de um possível sentido, pois é do sentido que o palavrório pretende
precisamente escapar. A asserção do absoluto, condensada no epicentro do palavrório,
interdita absolutamente a comunicação em todos os seus sentidos; não se trata de um
vazio a ser preenchido, mas de uma repleção que ocupa todos os espaços e tempos, o
proferir monumentalizado 57, aquilo que pretende se constituir em uma espécie de centro
tantalizante de um círculo auto-refletido: ausência de linguagem pela presença excessiva
de seus símiles. A língua idiota não pretende nada senão ser si mesma, por isso

CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA


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desconcerta, em uma primeira aproximação, qualquer expectativa de diálogo, ou mesmo


de monólogo do qual algum significado mais ou menos oculto possa ser haurido:

Sem dúvida, os juízes tinham razão quando disseram ao acusado que tudo o que dissera era
“conversa vazia” – só que eles pensaram que o vazio era fingido, e que o acusado queria
encobrir outros pensamentos que, embora hediondos, não seriam vazios. Essa ideia parece
ter sido refutada pela incrível coerência com que Eichmann, apesar de sua má memória,
repetia palavra por palavra as mesmas frases feitas e clichês semi-inventados (quando
conseguia fazer uma frase própria, ele a repetia até transformá-la em clichê) toda vez que se
referia a um incidente ou acontecimento que achava importante. Quer estivesse escrevendo
suas memórias na Argentina ou em Jerusalém, quer falando com o interrogador policial ou
com a corte, o que ele dizia era sempre a mesma coisa, expressa com as mesmas palavras.
Quanto mais se ouvia Eichmann, mais óbvio ficava que sua incapacidade de falar estava
intimamente relacionada com sua incapacidade de pensar, ou seja, de pensar do ponto de
vista de outra pessoa. Não era possível nenhuma comunicação com ele, não porque mentia,
mas porque se cercava do mais confiável de todos os guarda-costas contra as palavras e a
presença de outros, e, portanto, contra a realidade enquanto tal. (grifo meu, R. T. S.)58

Arendt é precisa, igualmente, no próximo passo, aquele que aproxima até a


identificação entre incapacidade de falar e incapacidade de pensar. O círculo idiótico,
ao estabelecer uma muralha suficientemente densa em defesa contra a possibilidade de
penetração da realidade enquanto tal, significa nitidamente o horror ao pensamento, ou
seja, a alguma forma de testemunho de contato com o externo; a realidade postiça da auto-
referência ocupa todos os espaços possíveis de permuta e mesmo de percepção
relativamente ao externo a ela; poderíamos evocar aqui a ideia de um delírio paranoico
lato senso que habita não um indivíduo ou um psiquismo “particular”, mas uma atmosfera
de existência que se substitui a uma sociedade propriamente pensante e ativa na
consciência de sua origem e perduração, numa espécie de onirismo paralisado 59.
Ao empedramento da linguagem, acompanha o empedramento da memória. Nada
tem sentido memorável, a não ser aquilo que possa pretensamente fazer “sentido” (i. e.,
reforçar a carapaça isolante) à auto-referência idiótica. Isso não é coincidência; o contato
com a realidade inclui necessariamente a deriva de elementos restantes, rastros, traços do
que aconteceu, do que foi considerado significativo e não-significativo; a exacerbação de
uma espécie de esquecimento mecânico é, portanto, necessária para desativar o poder
potencialmente desagregador desses rastros e traços.

Sua memória resultou bem pouco confiável a respeito do que realmente aconteceu; num raro
momento de exasperação, o juiz Landau perguntou ao acusado: “O que você consegue
lembrar?” (se não se lembrava das discussões na chamada Conferência de Wannsee, que
debateu os vários métodos de morte), e a resposta, claro, foi que Eichmann se lembrava
bastante bem dos momentos decisivos de sua carreira, mas isso não coincidia,
necessariamente, com os momentos decisivos da história do extermínio dos judeus ou, na

CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA


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verdade, com os momentos decisivos da história. (Ele sempre teve dificuldades para se
lembrar da data exata do começo da guerra e da invasão da Rússia.) Mas o xis da questão é
que ele não esqueceu nem uma única frase daquelas que em algum momento lhe deram uma
“sensação de ânimo”.60

“Apesar de todos os esforços da promotoria, todo mundo percebia que esse


homem não era um ‘monstro’, mas era difícil não desconfiar que fosse um palhaço.” 61 A
realidade é que, à corte ali reunida em tão grave empreendimento – julgar um dos maiores
genocidas da II Guerra mundial –, os problemas de interpretação da figura ali postada e
daquilo que nele se apresentava como linguagem eram complexos e desafiadores, muito
mais do que se poderia esperar inclusive na lida com um impostor esperto. Onde juiz,
promotores e defensores procuravam dissimulação e artimanhas diversionista,
encontravam apenas uma parede aparentemente impenetrável e não dissimulada. 62 Entre
essas dificuldades, uma especialmente se destaca na linguagem idiótica (e, destaquemos
desde já, por óbvio, não apenas nesse famoso caso Eichmann, mas em inúmeras outras
circunstâncias, por vezes aparentemente completamente afastadas de uma tal situação-
limite): a naturalidade espantosa com a qual lida com contradições primárias como se
essas não existissem, ou não significassem o que expressam, ou seja, mútua exclusão de
sentido. Trata-se, para um raciocínio primário, inferencial, ou que meramente se inspira
na ideia coloquial de causa e efeito, de uma ofensa escancarada, expressa com uma
naturalidade desconcertante e que fecha qualquer acesso a um diálogo com algum sentido.
Ao que parece, trata-se de um subproduto da degeneração do tempo real em um tempo
meramente lógico, constituído de peças soltas continuamente rearranjáveis de acordo com
a arbitrariedade que sustenta o construto da linguagem idiótica. Em todo caso, aparece
aos interlocutores como uma eterna novidade a cada vez que aparece, desencorajando
qualquer esperança de avanço na interação que se procura estabelecer:

O que fazer com um homem que primeiro declarou com grande ênfase que a única coisa que
aprendeu numa vida desperdiçada foi jamais fazer um juramento (“Hoje em dia, nenhum
homem, nenhum juiz poderia me convencer a fazer uma declaração sob juramento, a declarar
alguma coisa sob juramento como testemunha. Eu recuso, eu recuso por razões morais. Como
minha experiência me diz que, ao ser leal a seu juramento, o sujeito um dia terá de pagar as
consequências, decidi definitivamente que nenhum juiz no mundo, nem nenhuma outra
autoridade nunca será capaz de me fazer jurar, ou prestar testemunho sob juramento. Não
farei uma coisa dessas voluntariamente e ninguém conseguirá me forçar”), e então, depois de
ser informado explicitamente que, se quisesse testemunhar em sua própria defesa, poderia
“fazê-lo com ou sem juramento”, declarou sem mais delongas que preferiria testemunhar sob
juramento? Ou como alguém que garantiu à corte (...), que a pior coisa que ele poderia fazer
seria tentar escapar de suas verdadeiras responsabilidades para lutar por seu pescoço ou
implorar misericórdia – e depois, aconselhado por seu advogado, apresentou um documento
escrito à mão com um pedido de misericórdia?63

CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA


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Esse jogo de contrários inconciliáveis constantemente postos em cena é


característico da atrofia do sentido de linguagem da linguagem. Como nada tem peso,
tudo é intercambiável. Os termos e categorias da compreensão não valem mais a partir de
suas distinções qualitativas originais, mas somente em termos de ocuparem um
determinado espaço na dimensão mais elementar de algo que se poderia considerar –
remotamente – uma paródia da ideia de comunicação. A fragmentação da organicidade
do complexo significante é sem retorno, o que faz com tais episódios enunciativos,
opostos e contraditórios entre si, avessos a toda lógica de exclusão e a toda dialética
possível, apareçam como testemunhos eloquentes de tal fragmentação. Por isso,
aparentam ser suportáveis no que se apresenta como sendo expressão de linguagem e que,
todavia, expressa apenas a dissolução da qualidade da linguagem que faz valer cada uma
de suas diferenças constitutivas em uma coleção de quantidades na qual, como dissemos,
cada parte é completamente isolada de cada outra, cada fragmento sobrevive
isoladamente em desconexão completa com um espectro maior de sentido e cujo prazo
de validade coincide com a duração da pretensão de enunciado, algo breve demais para
poder ser tomado a sério. A lógica reificante da quantificação ilimitada do mundo assume
aqui sua expressão incontornável; essa paródia da linguagem configurada a partir de
fragmentos mutuamente excludentes de ideia lançadas ao ar reflete, com fidelidade, um
mundo configurado por átomos a rigor completamente isolados um do outro e
aparentemente independentes entre si. As mônadas esvoaçantes não configuram uma
complexidade coesa para que se perceba uma verdadeira relação para além do solipsismo
do enunciado, que emula em proporção menor a atomização do real em “indivíduos” –
indivisíveis – cuja auto-referência é infinitamente mais importante do que qualquer
relação real no campo histórico ou social. A linguagem é extremamente pobre porque a
ideia de vida que a ela subjaz assim o é; a atrofia da linguagem não é um infeliz acidente,
mas a consequência necessária da atrofia do mundo. Um mundo que se inclina à morte
pelo esgotamento, pela impossibilidade de comunicação, da própria ideia de
comunicação. Tal configuração de coisas não poderia desembocar senão em um universo
cadavérico, pelo triunfo antecipado da morte, que se expressa pela “obediência
cadavérica”:

Era assim que as coisas eram, essa era a nova lei da terra, baseada nas ordens do Führer; tanto
quanto podia ver, seus atos eram os de um cidadão respeitador das leis. Ele cumpria o seu
dever, como repetiu insistentemente à polícia e à corte; ele não só obedecia a ordens, ele
também obedecia à lei. Eichmann tinha uma vaga noção de que isso podia ser uma importante
distinção, mas nem a defesa nem os juízes jamais insistiram com ele sobre isso. As moedas
CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA
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bem gastas das “ordens superiores” versus os “atos do Estado” circulavam livremente;
haviam dominado toda a discussão desses assuntos durante os julgamentos de Nuremberg,
pura e simplesmente por dar a ilusão de que algo absolutamente sem precedentes podia ser
julgado de acordo com precedentes e seus padrões. Eichmann, com seus dotes mentais
bastante modestos, era certamente o último homem na sala de quem se podia esperar que
viesse a desafiar essas ideias e agir por conta própria. Como além de cumprir aquilo que ele
concebia como deveres de um cidadão respeitador das leis, ele também agia sob ordens –
sempre o cuidado de estar “coberto” –, ele acabou completamente confuso e terminou
frisando alternativamente as virtudes e os vícios da obediência cega, ou a “obediência
cadavérica” (kadavergehorsam), como ele próprio a chamou.64

À “obediência cadavérica” segue-se a filiação a Kant e ao seu imperativo


categórico:

A primeira indicação de que Eichmann tinha uma vaga noção de que havia mais coisas
envolvidas nessa história toda do que a questão do soldado que sempre cumpre ordens
claramente criminosas em natureza e intenção apareceu no interrogatório da polícia, quando
ele declarou, de repente, com grande ênfase, que tinha vivido toda a sua vida de acordo com
os princípios morais de Kant, e particularmente segundo a definição kantiana do dever. Isso
era aparentemente ultrajante, e também incompreensível, uma vez que a filosofia moral de
Kant está intimamente ligada à faculdade de juízo do homem, o que elimina a obediência
cega. O oficial interrogador não forçou esse ponto, mas o juiz Raveh, fosse por curiosidade,
fosse por indignação pelo fato de Eichmann ter a ousadia de invocar o nome de Kant em
relação a seus crimes, resolveu interrogar o acusado. E para surpresa de todos, Eichmann deu
uma definição quase correta do imperativo categórico: “O que eu quis dizer com minha
menção a Kant foi que o princípio de minha vontade deve ser sempre tal que possa se
transformar no princípio de leis gerais” (o que não é o caso com roubo e assassinato, por
exemplo, porque não é concebível que o ladrão e o assassino desejem viver num sistema legal
que dê a outros o direito de roubá-los ou matá-los). Depois de mais perguntas, acrescentou
que lera a Crítica da razão pura, de Kant. E explicou que, a partir do em que fora encarregado
de efetivar a Solução Final, deixara de viver segundo os princípios kantianos, que sabia disso
e que se consolava com a ideia de que não era mais “senhor de seus próprios atos”, de que
era incapaz de “mudar qualquer coisa”. 65

O ponto de chegada é, sempre, o estático absoluto. “A culpa é sempre


indubitável”, diz o oficial ao explorado em A colônia penal, de Kafka66. O sequestro pelo
absoluto esgota imediatamente qualquer sentimento ou expressão possível de autonomia;
ocorre a mais completa robotização do sequestrado: mesmo um kantiano convicto tem
agora outro senhor, ao qual não cumpre questionar, mas obedecer, pois nele repousa a
própria realidade do subordinado, que é, também, seu admirador mais extremo 67. Nesse
momento, aparece com plena clareza o mecanismo redutivo fático que acompanha o
afunilamento atrofiante das possibilidades de linguagem e de expressão em geral. Arendt
destaca bem esse outro aspecto decisivo desse fenômeno que temos chamado “sequestro
pelo absoluto”. O foco aqui é na onipresença e na onipotência absolutas da Lei.

Em Jerusalém, confrontado com provas documentais de sua extraordinária lealdade a Hitler


e à ordem do Führer, Eichmann tentou muitas vezes explicar que durante o Terceiro Reich
CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA
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“as palavras do Führer tinham força de lei” (Führerworte haben Gesetzkraft), o que
significava, entre outras coisas, que uma ordem vinda diretamente de Hitler não precisava ser
escrita. Ele tentou explicar que, por isso, nunca havia pedido uma ordem escrita a Hitler
(nenhum documento relativo à Solução Final jamais foi encontrado; provavelmente nunca
existiu nenhum), mas havia pedido para ver uma ordem escrita de Himmler. Sem dúvida era
um estado de coisas fantástico, e bibliotecas inteiras de comentários jurídicos “abalizados”
foram escritas demonstrando que as palavras do Führer, seus pronunciamentos orais, eram a
lei do mundo. Dentro desse panorama “legal”, toda ordem contrária em letra ou espírito à
palavra falada por Hitler era, por definição, ilegal. 68

“Führerworte haben Gesetzkraft” – a característica aglutinadora da língua alemã


acaba por colaborar, aqui, com o assumir de uma cegueira ainda mais profunda. “Palavras
do Führer” tornam-se uma só – “Führerworte” – e essas assumem a condição de “força
de lei”, de lei absoluta, no sentido de anterior à linguagem, à ponderação, à descrição ou
à hermenêutica de algum sentido que não refulja no próprio jargão como uma revelação
imediata e eterna. E tratam-se de palavras do Führer, quer dizer, de fulgurações não
atreladas a algo remotamente semelhante a uma tradição escrita ou afim, mas, antes, que
remetem a uma espécie de paródia do “fundamento místico da autoridade” na linhagem
de Benjamin e Derrida, com a diferença fundamental em relação à compreensão da
questão por esses autores que se constitui na absoluta impossibilidade de interpretação
histórica, uma vez que pretende decorrer em momento absoluto, a-histórico, ou fora do
tempo, no ponto singular da promulgação de culpa do prisioneiro na Colônia Penal: o
momento da própria emissão da ordem pelo Führer. 69
O resultado cabal de uma tal fixação no absoluto das ordens do Führer, como é de
conhecimento histórico geral, foi o exercício contínuo e obsessivo de uma espécie de
imperativo categórico kantiano invertido.70 A Morte venceu, em todos os sentidos
imagináveis dessa expressão. A pulsão de morte achou seu caminho e abriu suas sendas
através do que se conhecia como “civilização”, deixando heranças das quais as décadas
seguintes não têm conseguido se livrar. A idiotia da linguagem é a formalização – ou
formulização – da atrofia da vida, quer dizer, um pesadelo de Eros, isso que tão bem
caracteriza nazismo e fascismo.
A síntese final de Arendt é magistral, e destaca, ainda uma vez, a questão
fundamental da atrofia da imaginação, ou da capacidade imaginativa, como condição para
a imersão total no universo fechado da linguagem – e dos atos – que aqui temos chamado
idióticos:
Eichmann não era nenhum Iago, nenhum Macbeth, e nada estaria mais distante de sua mente
do que a determinação de Ricardo III de “se provar um vilão”. A não ser por sua
extraordinária aplicação em obter progressos pessoais, ele não tinha nenhuma motivação. E
CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA
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essa aplicação em si não era de forma alguma criminosa; ele certamente nunca teria matado
seu superior para ficar com seu posto. Para falarmos em termos coloquiais, ele simplesmente
nunca percebeu o que estava fazendo. Foi precisamente essa falta de imaginação que lhe
permitiu sentar meses a fio na frente do judeu alemão que conduzia o interrogatório da
polícia, abrindo seu coração para aquele homem e explicando insistentemente como ele
conseguira chegar só à patente de tenente-coronel da SS e que não fora falha sua não ter sido
promovido. Em princípio ele sabia muito bem do que se tratava, e em sua declaração final à
corte, falou da “reavaliação de valores prescrita pelo governo [nazista]”. Ele não era burro.
Foi pura reflexão – algo de maneira nenhuma idêntico à burrice – que o predispôs a se tornar
um dos grandes criminosos desta época. E se isso é “banal” e até engraçado, se nem com a
maior boa vontade do mundo se pode extrair qualquer profundidade diabólica ou demoníaca
de Eichmann, isso está longe de se chamar lugar-comum. Certamente não é nada comum que
um homem, diante da morte e, mais ainda, já no cadafalso, não consiga pensar em nada
além do que ouviu em funerais a sua vida inteira, e que essas “palavras elevadas” pudessem
toldar inteiramente a realidade de sua própria morte. Essa distância da realidade e esse
desapego podem gerar mais devastação do que todos os maus instintos juntos – talvez
inerentes ao homem; essa é, de fato a lição que se pode aprender com o julgamento de
Jerusalém. (último grifo meu, R. T. S.)71

***

Pensar é uma forma de castração. Por isso, a cultura é suspeita na medida em


que é identificada com atitudes críticas.
ECO, U.72

Ao desejar justificar atos considerados até então como condenáveis, mudar-


se-á o sentido ordinário das palavras.
TUCÍDIDES73

A proximidade do ponto onde as linguagens tocam suas verdadeiras alavancas


não é em parte alguma mais forte do que no momento em que foi forjada uma
formulação: Estado Total. Esta tem data de nascimento e autor: no ano de
1931, Carl Schmitt.
J.-P. FAYE74

No Reich, 31 de dezembro, um artigo de Goebbels, “O Führer”, uma


glorificação tão desmedida que o título bem poderia ser: “O Redentor”. “Se
o mundo realmente soubesse o que ele tem a lhe dizer e oferecer, e como seu
amor pertence profundamente à humanidade toda, muito além do amor ao seu
próprio povo, então no mesmo instante o mundo abandonaria os seus falsos
deuses e lhe renderia suas homenagens”.

V. KLEMPERER75

É Victor Klemperer quem estabelece, ao longo e logo após a segunda Guerra


mundial, uma via de acesso privilegiada às metamorfoses da linguagem promovidas pelo
Nazismo como movimento de colonização de corações e mentes. 76 O professor e linguista

CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA


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vê-se tomado por uma conjuntura histórica que o obriga a uma situação de escrever – e
des-crever – para sobreviver. Seus famosos Diários testemunham essa necessidade vital.
São sua herança ao longo da horrenda tempestade do fascismo, do nazismo e da guerra.
Escrever, que podia a cada momento significar sua morte, o manteve vivo. Escrever como
testemunho, tal como o próprio Klemperer muitas vezes acentuou77. Reencontrar a escrita
a cada dia, numa renovação do tempo ainda uma vez, e outra.
Sobrevivente, Klemperer lega à posteridade uma obra notabilíssima, que
testemunha, na combinação erudita de conhecimento, observação e vivência, o processo
de atrofia e idiotização da linguagem alemã ao longo do domínio nazista, acima
examinada. Aqui serão destacados alguns excertos dessa obra que contribuem não apenas
para a compreensão dos processos de linguagem no âmbito de regimes totalitários mas,
também, na era da indústria cultural e suas derivações tardo-capitalistas, que serão
examinadas mais adiante na presente obra.
Um primeiro elemento notável que cumpre relevar é a lógica de maquinização do
intelecto que se processa através do deslocamento das faculdades cognitivas para as
habilidades corporais na nova hierarquia do projeto nazista. O projeto de estatuir a
realidade, da somática individual à social, como uma máquina, ou talvez antes como um
maquinismo auto-referido semelhante à máquina que imprime a sentença no corpo do
condenado em Na colônia penal já está dado no escrito programático do nazismo, e de
modo inequívoco. É necessário deslocar a preocupação para a força, o controle físico e o
automatismo, o pensar – essa função que distingue, pretensamente, os seres humanos dos
brutos – é alvo de grande desconfiança; a instalação que pode proporcionar é altamente
desconfortável para cada objetivo totalitário. Na mentalidade totalitária, o pensamento é
sempre alvo de ataque:

Em Mein Kampf, Hitler, ao tratar de educação, coloca o preparo físico em primeiríssimo


lugar. Sua expressão predileta é körpeliche Ertüchtigung [capacitação física], que ele tomou
emprestada do léxico dos conservadores de Weimar. Ele valoriza o Exército do imperador
Guilherme como a única organização saudável e vital de um Volkskörper [corpo do povo]
apodrecido. Vê no serviço militar, sobretudo ou exclusivamente, uma educação para o
desempenho físico. A formação do caráter é uma questão nitidamente menor: dominar o
corpo é mais importante do que receber educação. Nesse programa pedagógico, a formação
intelectual e seu conteúdo científico ficam por último, sendo admitidos a contragosto, com
desconfiança e desprezo. A todo momento se expressa o temor diante do ser pensante e o
ódio contra o pensar. Quando Hitler fala de sua própria ascensão, das primeiras grandes
manifestações e de seu enorme poder de oratória, ele elogia também a capacidade de combate
dos homens que formam sua guarda, aquele pequeno grupo que deu origem às SA. Essas
braunen Sturmabteilungen [tropas de assalto marrons] tinham uma função meramente braçal:
atacar e enxotar os opositores.78

CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA


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O horror ao pensamento é uma característica fundamental de toda configuração


idolátrica. O esforço do pensar é substituído pelo esforço corporal; a perigosa dúvida do
que pode ser a realidade propriamente é substituída por algum tipo de culto a algum
heroísmo antigo, ou remoto, impalpável, mas reiterado por retóricas renovadas de
glorificação esportiva ou sacrificial – “não é o espírito que será vencedor”:

Esses são seus cúmplices verdadeiros, ao lado dos quais disputa o coração do povo; são seus
primeiros heróis, autênticos exemplos do heroísmo demonstrado nas lutas: mesmo banhados
de sangue, são capazes de vencer adversários mais numerosos. Nos relatos de Goebbels sobre
a luta por Berlim encontramos as mesmas descrições, a mesma forma de pensar e o mesmo
vocabulário. Não é o espírito que será vencedor. Não se trata nem de convencer nem de
burilar a retórica da nova doutrina, pois o que conta é o heroísmo dos antigos combatentes,
"os primeiros homens das SA".79

O que vemos, então, é o deslocamento de uso de uma palavra como kämpferisch


– combativo, lutador, beligerante, sempre pronto à disputa – ao centro da referência
linguística, substituindo e ampliando o mais corrente kriegrisch – guerreiro –, de escopo
mais delimitado e não generalizável. O foco agora é um universo de referência belicoso,
e o modus vivendi passa a ser assumir essa belicosidade no dia a dia da sociedade,
aderindo as características do belicismo àquelas do “heroísmo”:

Durante doze anos, o conceito e o vocabulário linguístico do heroísmo estiveram entre os


termos prediletos, usados com maior intensidade e seletividade, visando a uma coragem
belicista, a uma atitude arrojada de destemor diante de qualquer morte em combate. Não foi
em vão que uma das palavras prediletas da linguagem nazista foi o adjetivo kämpferisch
[combativo, agressivo, beligerante], que era novo e pouco usado, típico dos estetas
neorromânticos. Kriegerisch [guerreiro] tinha um significado muito limitado, fazia pensar
somente em assuntos de Krieg [guerra]. Era também um adjetivo claro e franco, que
denunciava a vontade de brigar, a disposição agressiva e a sede de conquista. Kämpferisch é
outra coisa! Reflete de maneira mais generalizada uma atitude de ânimo e de vontade que em
qualquer circunstância visa à autoafirmação por meio de defesa e ataque, e não aceita
renúncia. O abuso da palavra kämpferisch corresponde ao uso excessivo, errado e impróprio
do conceito de heroísmo.80

Robert Alter relata que, muito embora a língua natal de G. Scholem, o alemão,
fosse muito querida por ele, ela havia sido relegada a um plano secundário a partir da sua
emigração para a Palestina e que, “ao visitar a Alemanha em 1946, mais de vinte anos
depois (da emigração), descobre que nesse meio tempo, (...) a sua língua natal tinha se
transformado em algo feio e estranho”81. “Algo”, “something”, alguma coisa outra que
uma língua normal, algo diferente da forma clássica de transmissão de cultura. A
reificação da linguagem, a transformação do mundo linguístico, verbal por sua essência,
em uma coisa dominável e explorável é ínsita aos processos de idolatrização da realidade.

CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA


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Klemperer nos oferece a seguir uma espécie de guia mais esmiuçado do itinerário
da língua alemã em direção à sua atrofia e empobrecimento. Entenda-se empobrecimento,
aqui, essencialmente como embrutecimento, redução a dimensões rudimentares. O
regime sabia do potencial perigo da verdadeira linguagem; por isso, em um primeiro
passo, cumpria exercer um controle tão estrito quanto possível sobre sua formatação e
difusão, de acordo com o modus operandi do nazismo como programa político de controle
absoluto82. O passo seguinte era reduzi-la a jargões, clichês e gritos, sem distinguir entre
a leitura de um texto e a vociferação pregadora de pretensas verdades eternas:

Para ela (a LTI), tudo era discurso, arenga, alocução, invocação, incitamento. O estilo do
ministro da Propaganda não distinguia a linguagem do discurso e a linguagem dos textos,
razão pela qual era tão fácil declamá-los. Deklamieren [declamar] significa literalmente falar
alto sem prestar atenção ao que se diz. Vociferar. O estilo obrigatório para todos era berrar
como um agitador berra na multidão.83

Nesse ponto, expressa-se uma característica evidente do caráter idolátrico da


lógica de domínio da vida do terceiro Reich. Trata-se da redução de elementos variados
a uma pretensa fonte única de sentido, a um foco de luz que a tudo ofusca e que pretende
a tudo cooptar. Não apenas a língua, mas a própria dimensão imagética da realidade se
reduz a elementos primários, tão pouco numerosos quanto possível, imagens que, na
verdade, não passam de clichês visuais, e cuja única função é dirigir a atenção à simbólica
da dominação da realidade: “Sempre a mesma combinação de força física, intenso
fanatismo, musculatura, cenho duro e ausência de sinais de atividade mental” 84 –
transformação de vida em esculturas e efígies “retratadas” que repetem sempre uma
mesma silhueta e que, diferentemente de uma escultura, imagem ou fotografia viva,
expressam-se através de sua falta de expressão própria – “ausência de sinais de atividade
mental” – pois sua finalidade não é estabelecerem alguma linguagem possível com o
espectador ou observador, mas, exatamente, desviar sua atenção para além delas, para a
simbólica exclusiva da totalidade de sentido promulgada. O momento desse processo de
absorção do real por algo – evidentemente, um projeto de Totalidade – que não admite
diversidade da realidade ou mesmo algo fora de si é igualmente bem captado por
Klemperer, ao descrever como, nesse contexto tratado, a língua autorizada infla sua
presença e se coloca, da posição de pars pro toto, em perspectiva de absoluto:

Surge aqui uma nova explicação, bem mais profunda, para a pobreza da LTI. Ela não era
pobre só porque todos se viam forçados a obedecer a um único padrão de linguagem, mas
especialmente porque, por meio de uma limitação autoimposta, só permitia expor um lado

CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA


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da natureza humana. (grifo meu, R. T. S.) (...) A LTI pretende privar cada pessoa da sua
individualidade, anestesiando as personalidades, fazendo do indivíduo peça de um rebanho
conduzido em determinada direção, sem vontade e sem ideias próprias, tornando-o um átomo
de uma enorme pedra rolante”85.

Veja-se ainda uma vez a característica da “ausência de sinais de atividade mental”;


esse dado é fundamental para a compreensão do plano de naturalização idolátrica não só
do regime do Terceiro Reich, mas de todo e qualquer sistema totalitário ou totalizante em
sentido político, social ou econômico. Trata-se, na verdade, de uma pré-condição a ser
atingida para que a naturalização da conjuntura se efetive, ou seja, para que o histórico se
transforme em “natural” – ou supernatural. Todo sistema de “pensamento” único, toda
ideologia de implantação de alguma lógica de violência, controle ou domínio total, em
qualquer âmbito da cultura, pretende sempre, já desde o seu início, paralisar o pensamento
por algum tipo de enfeixamento energético que conduza as potências da vida a um só foco
– o foco da Totalidade ou, no presente caso, o foco idolátrico. Trata-se do que temos
chamado de combinação entre um modelo de racionalidade ardilosa e uma expressão de
racionalidade vulgar86, que acaba resultando na racionalidade idolátrica. Ocorre uma
aparência de pensamento já pensado, que interdita o questionamento e, por óbvio, a
consideração realista do que realmente se passa. Não é nenhum acaso que todo modelo
totalizante de sociedade ataque imediatamente a tradição cultural das línguas, da história,
da geografia e, especialmente, da filosofia – ou seja de tudo que pode deslocar
suficientemente o estatuído para expor, pela radicalização – pelo ir às raízes – onde
verdadeiramente assentam os alicerces do projeto totalitário/totalizante e de seus aparatos
de legitimação. Por evidente, isso ocorreu de forma modelar no Terceiro Reich:

Quem pensa não quer ser persuadido, mas sim convencido; é bem mais difícil convencer
quem está habituado a pensar sistematicamente. Por isso a LTI detesta a palavra filosofia,
mais ainda do que a palavra sistema. A LTI dá uma conotação nociva ao termo "sistema”:
mas o emprega com frequência; não pronuncia jamais a palavra filosofia, sempre substituída
por Weltanschauung [visão de mundo].87

Uma ideologia se configura quando um modelo de pensamento ou um projeto


filosófico é detido em meio a seu desenvolvimento com o objetivo de legitimar alguma
causa, tornando-se auto-referente, idiota; nesse sentido, como em tantos outros, o
Nazismo foi uma ideologia perfeita que se consubstanciou de forma espetacular durante
seu período de vigência pela habilidade com que seus arquitetos souberam conduzir uma
quantidade de variáveis que obliterou a consciência de algo mais profundo do que ele
mesmo por parte daqueles não diretamente atingidos por suas lógicas de violência – grupo
CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA
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no qual se inclui uma boa parte dos alemães de então, e da imensa maioria dos
estrangeiros. E é de se notar que se constitui em tarefa desmesurada ou impossível
distinguir entre os alheios aqueles que realmente ignoravam o que ocorria e aqueles a
quem a ignorância funcionou como estilo de convivência hipócrita e, em certos casos,
mesmo como estratégia de sobrevivência no calor dos acontecimentos; essa indistinção é
característica de épocas psiquicamente perturbadas de uma determinada cultura, na qual
a paranoia se instala como elemento ambíguo que assume a dupla tarefa de amplificador
de medos reais e propagador de angústias difusas a serviço da instilação de dimensões
paralisantes nas lógicas elementares da vida88. “Não pronuncia jamais a palavra
filosofia”.
Essas são condições prévias de ativação de elementos inconscientes e
subconscientes (e aqui destacamos o embrutecimento da linguagem, ou sua crescente
ausência daquilo que, socialmente, se apresenta como sendo ela) que irão permitir a
idolatrização de alguma figura que pretende se constituir, ou encarnar, a totalidade de
sentido. Tivemos, assim, no Terceiro Império, a configuração de uma idolatria particular,
aquela de Hitler mesmo. O que pode soar extravagante e insano a uma leitura epocalmente
deslocada testemunha exatamente a que ponto um tal aparato mental pode se instalar em
uma multidão de dimensões dificilmente apreciáveis e em todas as suas expressões vitais,
e mesmo entre alguns dos melhores entre elas, gente refinada, da qual não se esperaria a
precipitação em tal abismo de delírio:

(...) Mas o Führer não pode nem deve falar todos os dias. A divindade tem de ocupar um
trono sobre as nuvens, e seus pronunciamentos devem ser feitos mais pela boca dos
sacerdotes do que pela própria. No caso de Hitler, essa é uma vantagem adicional, pois seus
amigos e servidores podem erigi-lo em salvador de maneira ainda mais firme e com maior
desenvoltura, venerando-o ininterruptamente e em coro. De 1933 a 1945, até mesmo depois
da queda de Berlim, dia após dia houve essa elevação do Führer à categoria divina, essa
identificação de sua pessoa e suas ações com o salvador e com a Bíblia, e “tudo funcionou
sempre às mil maravilhas”. Sob a prepotência reinante, ninguém pôde contradizê-lo jamais.
(...) Citarei alguns exemplos dos casos absurdos de endeusamento. Em julho de 1934, Göring
diz diante da Câmara Municipal de Berlim: Wir alle, vom einfachsten SA-Mann bis zum
Ministerpräsidenten, sind von Hitler und durch Hitler [Todos nós, desde o mais simples
membro das SA até o primeiro ministro, somos de Adolf Hitler e por Adolf Hitler]. (...)
Baldur von Schirach transforma Braunau, cidade natal de Hitler, em local de peregrinação da
juventude alemã. Publica também Das Lied der Getreuen [Cântico dos fiéis], “versos da
juventude hitlerista austríaca anônima durante os anos da perseguição de 1933 a 1937, em
que consta: Es gibt so viele, die dir nie begegnen und denen trotzdem du der Heiland bist
[Tanta gente que nunca te viu, mas sempre te amou, nosso divino salvador, nós austríacos
perseguidos]. (...) Nessa altura, todos invocavam a Providência, não somente aqueles que
pela origem social e a formação pudessem ser considerados mais sugestionáveis e que
facilmente ficariam deslumbrados. Também Kowalewski, o magnífico reitor da Universidade
Técnica de Dresden, conceituado professor de matemática, escreveu: Er ist uns von der
Vorsehung gesandt [Foi-nos enviado pela Divina Providência]. Pouco antes do ataque à

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Rússia, Goebbels retorna com mais força ao tema do endeusamento. No discurso de votos de
felicidades para o 20 de abril de 1941, ele diz: Wir brauchen nicht zu wissen, was der Führer
will - will glauben an ihn [Não precisamos saber que o Führer deseja – acreditamos nele].89

Victor Klemperer, testemunha privilegiada dos acontecimentos, sobreviveu à


loucura, como seu famoso primo refugiado, Otto Klemperer, grande maestro. Mas a
loucura está sempre ante portas; quem olvida tal fato terá muito provavelmente de prestar,
em algum momento, contas à história.

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III – Adoecimento da vida, adoecimento da morte

Velho e nu, exposto aos infortúnios deste desafortunado mundo, vejo-me


andando a esmo num carro indiscutivelmente real, puxado por cavalos
indiscutivelmente sobrenaturais.
F. KAFKA90

Alguém que morre: um rosto que se converte em máscara.


E. LEVINAS91

A angústia é uma vertigem do possível.


S. KIERKEGAARD92

Adoecimento da vida

Eu sou início ou fim.


F. KAFKA93

Em Blumfeld, um solteirão de meia-idade94, de Franz Kafka, apresenta-se uma


das figuras recorrentes do escritor praguense no que se refere a alguém que porta
interminavelmente uma exaustão da (de) vida, que se desdobra em todos os sentidos e
dimensões do coloquial, recaindo numa rotina automática, com breves hesitações no
decorrer dessa naturalidade falsa:

Blumfeld, um solteirão já meio idoso, subia uma noite ao seu apartamento, o que era uma tarefa
cansativa, pois morava no sexto andar. Enquanto subia, ia pensando – como fazia com frequência
nos últimos tempos – que aquela vida totalmente solitária era bastante penosa, que agora tinha
de subir os seis andares em absoluto segredo para chegar, lá em cima, aos seus aposentos vazios;
uma vez ali, outra vez em completo silêncio, vestir o roupão, acender o cachimbo, ler um pouco
a revista francesa que, fazia anos, tinha assinado, bebericar enquanto isso a aguardente de cereja
preparada por ele mesmo e finalmente, meia hora depois, ir para a cama, não sem antes precisar
arranjar de novo, de cabo a rabo, a roupa de cama que sua empregada, refratária a toda instrução,
dispunha de qualquer jeito, seguindo sempre o seu humor. Qualquer acompanhante, qualquer
espectador dessas atividades teria sido muito bem-vindo a Blumfeld. Já havia pensado se não
devia adquirir um cachorrinho. Um animal como esse é engraçado e principalmente grato e fiel;
um colega de Blumfeld tinha um cachorro assim; ele não se dá com ninguém a não ser com o
dono, e se passa alguns instantes sem vê-lo recebe-o logo com grandes latidos, com os quais
evidentemente quer expressar sua alegria por ter encontrado o dono, esse benfeitor
extraordinário.95

Em outros termos, Blumfeld é uma das características figuras de Kafka


aprisionada nessa teia de tensões inexauríveis, figuras que existem na medida em que
viver é, de algum modo, sobreviver em meio à exaustão da existência, e que acabam por

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perceber que, eventualmente, com um pequeno rearranjo, poderiam temperar sua vida
com algo mais de tolerabilidade, porém que até mesmo tal rearranjo lhes está vedado.
Figuras de gostos modestos, relativamente enclausuradas, perambulando entre sobras e
crepúsculos, recolhidas em sua vida privada, em quartos confortáveis em andares altos de
pensões conduzidas por estranhos (a semelhança de Blumfeld com Joseph K. é patente
nesse teor); solitários, sem por isso se mortificarem, gostariam de alterar, ainda que
levemente, o ritmo rotineiro de seu existir. Um cachorrinho significaria uma novidade
considerável; uma companhia engraçada e fiel, uma alteração clara na rigidez de gestos e
rotinas quase mecânicos que devoram, pelo menos quando está em seus aposentos, os
dias de Blumfeld.
Porém a breve tentação da mudança é logo interrompida; considerações as mais
diversas, de ordem prática e do desconforto que a própria alteração da rotina por si só
significaria, acabam por povoar compactamente os pensamentos do solteirão “já meio
idoso”96; especialmente a figuração de sua própria decadência refletida no olhar do animal
já velho parece decisiva para a manutenção do solitário status quo do presente 97 . Acima
de tudo, a sujeira que atualmente é a muito custo afastada se tornaria inevitável; Blumfeld
tem, como muitos personagens kafkianos, o hábito maníaco da assepsia (reflexo do Kafka
naturista?), e viver consiste para ele, em boa medida, em tornar-se e se manter
existencialmente tão asséptico quanto possível, como que flutuando num mundo que
passa velozmente. Sabemos que os personagens kafkianos costumam pagar caro por essa
sua obstinação por limpeza; passar incólume por um mundo contaminado é praticamente
impossível; e Blumfeld, com sua vida bem arranjada, já não desejaria surpresas e tumultos
em seus domínios que, com imenso custo, faz manter limpo ao seu feitio. E, não obstante,
apesar de afastar a ideia de ter um cão, tal ideia retorna recorrentemente: é a tentação da
vida por ela mesma98.
Esse itinerário especulativo, porém, à chegada nos aposentos, é interrompido pelo
inusitado que se anuncia. Duas entidades de difícil classificação vêm exigir atenção; nada
que alguém possa entender ou esperar é a mensagem que sua despreocupada existência
saltitante traduz. As tentativas de Blumfeld de alinhar o que infere apenas pela audição,
esse arranjo normal da racionalidade que é apresentada ao absolutamente estranho,
acabam por se provarem logo vãs:

Quando está lá em cima, diante da porta de entrada, tira a chave do bolso; percebe um ruído que
vem de dentro: é um rumor especial, de guizos, muito vivaz, muito regular. Como Blumfeld tinha
acabado de pensar em cães, o barulho lembra-lhe o que produzem as patas dos animais, quando
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batem alternadamente no chão. Mas não há patas que imitem o chacoalhar de guizos: não se trata
de patas. Abre às pressas a porta e acende a luz elétrica. Porém não estava preparado para aquela
visão. É uma bruxaria – duas pequenas bolas de celuloide, brancas, com estrias azuis, saltam
sobre o assoalho, uma ao lado da outra e de cá para lá; quando uma bate no solo, a outra está no
alto e assim, incansáveis, executam o seu jogo. Certa vez, no curso secundário, Blumfeld viu,
durante uma conhecida experiência elétrica, bolinhas saltarem de forma semelhante, mas em
comparação com aquelas, são esferas relativamente grandes; elas saltam no aposento livre e
ninguém está realizando um experimento elétrico. Blumfeld agacha-se para observá-las melhor.
São sem dúvida bolas comuns, provavelmente contêm em seu interior outras menores e são estas
que produzem o barulho de guizos. Blumfeld passa a mão no ar para verificar se elas não pendem,
por acaso, de fios; não, elas se movem com completa autonomia. Pena que Blumfeld não seja
um menino, duas bolas assim teriam sido uma alegre surpresa para ele, ao passo que agora tudo
aquilo lhe causa uma impressão acima de tudo desagradável.99

Blumfeld não é um menino: não pode viver apenas o maravilhoso ou brincar com
o inaudito, mas deve antes lidar com o desagradável fato de que algo se intrometeu na
pretensa naturalidade de sua intimidade vital. As pequenas bolas não pendem do teto, não
estão ligadas a nada; saltitam prisioneiras apenas do ritmo que se auto-impõem; nada as
explica, e sua atividade consiste na sua própria existência; o retorno ao universo pueril,
quando uma “bruxaria” seria considerada apenas uma “maravilha”, é interditado; nunca
há, em Kafka, caminho para trás ou espaço e tempo para retorno. “São sem dúvida bolas
comuns”: ligá-las a alguma pretensão de causalidade não causa senão desconforto; tal
como Odradek, aparecem sem estardalhaço, apenas com seu ruído compassado e não
exagerado. Enfim, existências moderadas, porém não negligenciáveis, que causam a
Blumfeld uma impressão “acima de tudo desagradável”.
Segue a racionalização; algum elemento de paranóia, de verdadeira “vergonha
existencial”, está sempre presente nesta como em geral nas obras de Kafka, mas as
bolinhas simplesmente estão lá, em sua atividade contínua e sem sentido perceptível. Mas
as bolinhas trazem consigo a puerilidade em sua forma mais elementar: ao que parece,
querem brincar.100
“No momento parece-lhe aviltante tomar medida como essa contra duas pequenas
bolas”: Blumfeld retorna à racionalidade que ainda possui, e que não é desprovida de tudo
aquilo que essa existência maquínica das bolas parece dispensar: sentido de proporção,
sentido de realidade mais ou menos forte, razoabilidade, enfim. As bolas, com seu ruído
ilocalizável, um murmúrio de coisas sólidas envolto pela tênue cobertura de celuloide, o
obrigam a tentar com toda a racionalidade disponível, sem frestas, num anúncio típico de
Kafka de um desespero com sordina, achar um sentido, ainda que insignificante ou
desprezível, para tudo aquilo.
Assim, as bolinhas não apenas não substituem, com sua caricatura de vivacidade,
qualquer ser vivo – como o sonhado cachorrinho ou uma outra companhia qualquer –
CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA
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como sua existência é uma espécie de atestado obsedante, reiterado, de ausência de vida;
seu remexer-se, seus espasmos, sua sincronia sem sentido, porém, perfeitamente
funcional em seu saltitar simétrico em alternância, conseguem apenas exasperar quem as
tenta entender ou com elas se relacionar de algum modo. E – importante – por trás de sua
aparente fragilidade, nada têm de frágeis; o tosco material de que aparentam ser feitas trai
– até ele – qualquer expectativa racional que Blumfeld ainda pudesse alimentar. As
bolinhas não são amigas nem inimigas – são só um estorvo à mera ideia de ordem ou de
razão, assemelhando-se, ao fim dos esforços de Blumfeld, muito mais a uma paralisia
automática da própria ideia de racionalidade, invadida e como que aniquilada agora por
essa existência pura, gemelar e saltitante. Sua forma – seu frenetismo rítmico – é seu
conteúdo inteiro. Nisso consiste sua essência mais profunda: em jogar um jogo idiota,
uma contradança sem sentido, e cujo próprio “sem sentido” vai como que sugando as
energias, não apenas racionais, mas existenciais, de Blumfeld:

Blumfeld se despe calmamente, arruma as roupas no armário; costuma verificar sempre se a


empregada deixou tudo em ordem. Uma ou duas vezes olha por cima do ombro para as bolas,
que agora, livres da perseguição, parece até que o perseguem; avizinharam-se e saltam bem atrás
dele. Blumfeld coloca o roupão e faz menção de ir até a parede do lado oposto para apanhar um
dos cachimbos que estão pendurados ali num suporte. Involuntariamente, antes de se voltar, dá
uma passada para trás com um dos pés, mas as bolas conseguem se desviar e não são atingidas.
Quando então vai buscar o cachimbo, as bolas logo o acompanham; ele arrasta as chinelas, realiza
passos irregulares, mas cada passo, quase sem pausa, é seguido por um golpe das bolas, que
acertam a marcha com ele. Blumfeld vira-se inesperadamente para ver como elas se comportam.
Mas mal havia se virado as bolas descrevem um semicírculo e já estão de novo atrás dele; isso
se repete todas as vezes que ele se volta. Como se fossem acompanhantes subalternos, procuram
não se deter diante de Blumfeld. Até esse momento, ao que parece, ousaram somente apresentar-
se, mas agora já entraram em serviço.101

Assim, dado o incontornável do existente, não resta a Blumfeld senão ensejar


esforços para suavizar ao máximo a estranha dor e o opaco desconforto que a situação lhe
causa; seu cérebro está exausto de procurar saídas para a situação configurada à revelia
de sua vontade e de tudo o que pudesse conceber ou entender. Como fica evidente no
detalhismo descritivo, Blumfeld não deixa escapar nada de razoável em sua observação
e nada tem, em princípio, de néscio; é momento do aprendizado relativo à difícil
convivência conviver com ela. Estamos às voltas com a recorrente aparição dos “dois
ajudantes” ou “dois discípulos”, tão presentes nas obras kafkianas. Afinal, como no caso
de ajudantes ou discípulos, o que aparentou fragilidade trai quem o observa e mostra sua
verdadeira força; a existência do inusitado é testemunho de seu próprio poder, e sobre
isso nada pode razão alguma. 102 O cachorro seria agora fundamental para acabar com as

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bolas – ao que parece, Blumfeld não percebe que há uma incompatibilidade total e
mutuamente excludente entre aquilo que nasce, cresce, vive e morre e aquilo que, como
as bolas, simplesmente existe. “Chega cansado, à noite, do trabalho, e justo nessa hora,
quando necessita de repouso, fazem-lhe essa surpresa”. 103
“Fazem-lhe essa surpresa” – indeterminação absoluta. Quem faz o quê? O que
sobra da mais inútil das perguntas é o mais pesado dos cansaços, o cansaço vital, o
cansaço que obriga a adiar a vida – temática kafkiana recorrente – ou seja, o momento de
destruição das bolas – para o “dia seguinte”. Retorna a racionalidade, agora em outro
feitio: moderada, afundada em sua própria impotência e inutilidade ante a opacidade dos
acontecimentos, contenta-se em constatar que tudo poderia ser ainda pior, caso as
bolinhas realmente tivessem má intenção. O próximo passo é a inteligência se rebaixar
ao fulcro do instante onde algo pode ser obtido e uma intenção completada, sem
absolutamente nenhuma esperança de transcender as contingências. 104 Até mesmo os atos
se tornam passivos. “Blumfeld literalmente desmorona” 105. Nenhum recurso é possível
contra o ardil da esperteza absoluta que se esconde por detrás da máquina obtusa. Agora
são as bolinhas que adquirem algum tipo de vida, “talvez estejam cansadas e com sono”,
talvez algo da vitalidade que sugaram, pelo seu incômodo existir, de Blumfeld. É o
momento exato em que sonho e realidade se fundem para Blumfeld, ou, talvez melhor
dito, em que a realidade se transforma em cacofonia, em susto, ao qual só pode responder
um “bocejo mudo”: o instante prévio à queda que, de algum modo, já é o do
desmoranamento106. Aqui surge, por detrás do ridículo episódio, uma outra sua face, um
manto ameaçador que segue a limpidez das formas perfeitamente esferoidais, com cores
bem definidas, o azul e branco; agora é a intranquilidade, o sobressalto que nunca se
configura em ameaça palpável, pois se confunde com a noite e o sono; o inusitado foi
apenas anúncio, ao que parece, de algo maior que entrará pela porta, que nela baterá sem
delicadeza nem puerilidade alguma. E não obstante, tal situação se repete em um número
“monstruoso” de vezes, o que o desanima até mesmo a arrolar as vezes que acontece o
sobressalto, seguido por algo “pequeno e repulsivo”, batidas que constituem a escolta de
algo poderoso. De qualquer modo, ainda que desejasse tomar alguma atitude, vê-se na
mesma situação de Gregor Samsa ao acordar certa noite de sonhos intranquilos: era tarde
demais para pegar o trem certo, e mesmo que se esforçasse loucamente, talvez não
conseguisse nem ao menos apanhar o trem atrasado. Para Gregor então, como para
Blumfeld agora, é simplesmente “tarde demais”: a vida atrasou-se definitivamente, pois
está moribunda.
CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA
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O universo de Kafka se modifica levemente a cada obra, mas permanece,


essencialmente, o mesmo: um mundo sem tempo – assim se pode denominar uma
temporalidade mortalmente doente, ou uma dialética entre esses dois estados de coisas 107
– no qual restolhos humanos claudicantes têm de se confrontar continuamente com
expressões dessa ausência de temporalidade que assumem forma inumana ou
aparentemente humana e expressam exatamente, nos mínimos detalhes, cada aspecto da
mediocridade do mundo que representam. Essa é a condenação eterna: a vida doente, a
vida eternamente à beira da morte.
Relembremos Gregor Samsa: “ – Ah, meu Deus, pensou. – Que profissão
cansativa eu escolhi. Entra dia, sai dia – viajando. A excitação comercial é muito maior
que na própria sede da firma e além disso me é imposta essa canseira de viajar, a
preocupação com a troca dos trens, as refeições irregulares e ruins, um convívio humano
que muda sempre, jamais perdura, nunca se torna caloroso. O diabo carregue tudo
isso!”108
Está dado assim, no quinto parágrafo da obra, o contraponto definitivo, perfeita
tradução da tensão original: o absurdo não é tão absurdo quanto parece, assim como o
normal não é tão naturalmente normal quanto se apresenta – desde que nenhuma de suas
dimensões, do “absurdo” como do “normal”, seja suavizada em uma inteligibilidade
parcial, ou seja, por uma indiferenciação. O bloco da realidade, a hiper-realidade,
comporta todas estas dimensões (e ainda outras), e estas dimensões se tornaram ou
tendem a se tornar crescentemente indisfarçáveis no tempo presente, o tempo da crescente
quantificação em detrimento da qualidade. Este é o contraponto existencial, tal como é
vivido no desatino do tempo contemporâneo, da globalização ilimitada e do frenesi das
imagens: vida esmagada entre pressões materiais e burocráticas, comerciais ou de mera
sobrevivência. Cem anos atrás, Kafka já se enfrenta com os desafios de um mundo
“virtual” – que, na verdade, nada mais é do que a outra face da realidade maciça e
humanamente intolerável, pois essencialmente indiferenciado – o que é intrinsecamente
insuportável ao humano, pois esse se distingue exatamente por sua diferença em relação
a todo o resto, por sua qualidade de singular, irredutível singularidade. A obra de Kafka,
antecipando em decênios os arroubos da “virtualidade” ilimitada e da violência asséptica,
controlada remotamente e invadindo a profundidade das intimidades e dos corpos na
expressão da “vida nua” – “nacktes Leben”, é a história desta indisfarçabilidade, o ponto
de partida desta indisfarçabilidade, a entrada real no mundo real da contemporaneidade
em suas cores mais próprias: a vida – semimorta, semiviva – danificada109. O mesmo
CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA
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mundo que Adorno, não por acaso, em uma de suas mais conhecidas obras, assim
classifica em seu subtítulo: Minima moralia – reflexões desde a vida danificada
(beschädigt)110. Vida morrendo.

***

Chiaroscuro

Em suma, todos os elementos constitutivos das teorias anteriores das pulsões


nada mais são do que subconjuntos reunidos por uma função idêntica: a defesa
e a realização da vida por Eros contra os efeitos devastadores das pulsões de
morte.

A. GREEN111

André Green localiza na questão do narcisismo um ponto de apoio central para, a


partir da obra de Freud em sua lógica interna e histórica 112, não apenas acompanhar o
desenvolvimento de seu pensamento que culminará em Além do princípio do prazer
(1921), especialmente no que tange à crescente preocupação do fundador da psicanálise
relativamente às dimensões de agressividade humana 113, envolvendo um modelo razoável
de unificação de teoria das pulsões que pudesse ser suficientemente bem articulado para
servir ao trabalho teórico e clínico 114 (o qual, porém, não foi desenvolvido em detalhes
por Freud), como, também, para estabelecer elos mais propriamente conectivos –
necessários – entre a questão do narcisismo e o Todestrieb – “há, portanto, uma
articulação necessária a ser encontrada entre o narcisismo e a pulsão de morte, da qual
Freud não se ocupou e que ele nos deixou para descobrir” 115.
Há que se entender que o narcisismo em seus termos mais genéricos e
compreendido na historicidade psíquica constitucional do indivíduo é reconhecidamente
fundamental para o estabelecimento de uma mônada psíquica (normalmente denominada
“Eu”) que se permita desenvolver a si em suas relações, ou seja, que se constitua de modo
tal que a capacidade de relação constitutiva não lhe seja vedada (desejo do Outro), o que
lhe permitirá apropriar-se da vida possível de ser vivida de modo que esta não a reduza a
um joguete casual de circunstâncias incontroláveis. Sem essa dose narcísica fundamental,
o que restaria seriam destroços irrealizados da autonomia que o embrião traz
potencialmente ao nascer.

CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA


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Todavia, não há como ignorar a possibilidade da constituição de falhas ulteriores,


quando a mônada psíquica, sólida o suficiente para se lançar ao mundo, envolve-se em
algo como um jogo de espelhos – jogo mimético – que acaba por minar qualquer
esperança de autonomia nascente. Da expectativa de retorno ao exterior, agora não mais
mera ameaça de aniquilação mas possibilidade de encontro com aquilo que assume o
sentido de realidade, deriva paradoxalmente a realidade de uma refração esvaziada
relativamente ao Desejo mesmo (ou seria uma perversão, no sentido de desvio de objeto
ou de significado primário, do Desejo?), que se constitui finalmente em uma espécie de
“desejo de não-desejo”, nas palavras de Green. Ocorre então algo como uma espécie de
habitar as luzes-sombras de uma atmosfera rarefeita que é tomada como uma gratificação
fantasmagórica, advinda de um pré-acontecimento nunca acontecido, uma espécie de
imagem de imagem:

O narcisismo oferece (...), a ocasião para uma mimese do desejo através da solução que
permite evitar que o descentramento obrigue a investir o objeto detentor das condições de
acesso ao centro. O Eu adquiriu uma certa independência transferindo o desejo do Outro para
o desejo do Um. Esta mimese pode inclusive se inverter, anular as injunções do modelo do
desejo quando a realização unitária do narcisismo falha. Torna-se mimese do não-desejo,
desejo de não-desejo. Aqui a procura do centro é abandonada, por supressão deste. O centro,
como objetivo de plenitude, tornou-se centro vazio, ausência de centro. A procura da
satisfação prossegue então fora de qualquer satisfação – como se esta tivesse realmente
ocorrido – como se tivesse encontrado seu bem no abandono de toda busca de satisfação. 116

Possibilidade de conjunção de vida e morte, morte como simulacro de vida, objeto


morto pela morte prematura da capacidade abortada de relação.

É aqui que a morte adquire sua figura de Ser absoluto. A vida torna-se equivalente à morte,
pois é alívio de todo desejo. Será que esta morte psíquica camuflaria o desejo de morte com
respeito ao objeto? Seria um erro acreditar nisto, pois o objeto já foi morto na aurora deste
processo que deve ser atribuído ao narcisismo de morte.117

O sofisticado conceito de narcisismo de morte torna-se plenamente operativo ao


desviar de tentações simplistas, duais, que acabam por conduzir a algum tipo de reflexo
espelhado ou par, em última análise, complementar. “Não é o desprazer que substituiu o
prazer, é o Neutro” – significa: ocorreu algum tipo de evasão do universo vital, o da luta
pela vida.

A realização alucinatória negativa do desejo tornou-se o modelo que governa a atividade


psíquica. Não é o desprazer que substituiu o prazer, é o Neutro. Não é na depressão que
devemos pensar aqui, mas na afanise, no ascetismo, na anorexia de viver. É este o verdadeiro
sentido de “Além do princípio do prazer”. A metáfora do retorno à matéria inanimada é mais

CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA


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forte do que se pensa, pois esta petrificação do Eu visa a anestesia e a inércia na morte
psíquica. É apenas uma aporia, mas é uma que permite compreender o objetivo e o sentido
do narcisismo de morte.118

Adeus à morte gloriosa. Em seu lugar, assume Odradek e sua paródia de


respiração, “semelhante a um farfalhar de folhas secas”. Kafka, o pintor das silhuetas
vazias, nos apresenta ao longo de sua obra inúmeros exemplos de personagens incapazes
de morrer porque incapazes de viver. O Artista da fome que se confunde com a palha
onde se deita em sua jaula, Georg Bendemann que se deixa cair (atividade passiva) na
ponte para se afogar, Gregor Samsa que se confunde finalmente com o pó e a imundície
do cômodo no qual vegetava, Josefina cuja voz se esfuma na escalada da redenção, pois
seu povo não cultiva a história, Josef K., morto “como um cão” e não como gente, K.
como que dissolvido na atmosfera do Castelo, e finalmente Gracchus, o caçador, como
ainda veremos: espectros, todos, que se encontram no universo do tempo doente119,
paralisado, no qual, a rigor, nada acontece no espaço entre a infinita tradição e o
inominável futuro. Reinado tirânico do Neutro:

O Neutro ergue-se então de toda sua altura, desafiando o pensamento. Tudo se complica
quando temos que tomar consciência de que o Neutro é também a realidade indiferente à
agitação das paixões humanas. O Neutro é a área desta imparcialidade do intelecto que Freud
invocava quando postulou a existência da pulsão de morte. O narcisismo é um conceito, não
uma realidade. Pois esta, mesmo quando vem com o nome de clínica, é sempre de uma
complexibilidade quase inapreensível. Hipercomplexa, se diz hoje em dia.120

“Neutro” significa, finalmente, Totalidade. Conceito, enquanto substantivo,


logicamente inviável, pois uma Totalidade só pode ser definida em relação ao que não é
ela, e, não obstante, seu nome envia inclusive ao que não é ela, ou a Totalidade não seria
total. Isso não impede que o psiquismo, na expressão do “desejo primário”, seja
apoderado pelo “desejo do Um”, “morte e negação da morte ao mesmo tempo”, ou seja,
trofismo de pretensões absolutas, do qual até mesmo a morte e a vida estão ausentes, e
isso exatamente por sua pretensão de presença absoluta, ou seja, “total”.

O narcisismo primário não pode ser compreendido como um estado, mas sim como uma
estrutura. A maioria dos autores não apenas tratam-no como um estado, mas também só falam
dele como um narcisismo de vida deixando em silêncio – o próprio silêncio que o habita – o
narcisismo de morte presente sob a forma da abolição das tensões até o nível zero. (...) O
narcisismo do Eu será então, como diz Freud, narcisismo secundário furtado dos objetos –
ele implica o desdobramento do sujeito, garantindo a continuidade do autoerotismo como
situação de autossuficiência. Nesta perspectiva, o narcisismo primário é Desejo do Um,
aspiração a uma totalidade autossuficiente e imortal onde o auto-engendramento é a
condição, morte e negação da morte ao mesmo tempo.121

CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA


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A essentia, em sentido spinozano 122, do conceito de narcisismo negativo, é aqui


perfeitamente percebida por Green como “busca do não-desejo do Outro”, em
congruência perfeita com a essentia da categoria “Totalidade”. Filosofia e psicanálise se
encontram a partir de uma determinada inflexão de realidade que as faz convergir ao
factum brutum que invade o campo perceptivo e racional e obriga à reescrita categorial
nos limites, ou mesmo nas margens, do exprimível. Pois “Totalidade” é um conceito que
a si mesmo não entende, e supõe uma lida com a especificidade de um trofismo que nunca
se completa, muito embora se poste, pretensamente, para além de sua completação ao se
auto-designar como tal123. O que sobra, para nossas finalidades nesse momento, é
perceber que algo descritivamente inusitado, tal como a “busca do não-desejo do Outro”
não só existe, como abre a possibilidade de compreensão de todo um universo de sentido
que envolve as questões primárias da existência – vida e morte em seus jogos de luzes e
sombras.

(...) Penso ser impossível nos limitarmos às formulações explícitas de Freud sobre o
narcisismo situando-o inteiramente do lado das pulsões de vida. Ao narcisismo positivo
devemos unir seu duplo invertido que proponho chamar de narcisismo negativo. (...) É o que
me parece lógico inferir daquilo que se torna o narcisismo depois da última teoria das pulsões.
Além do despedaçamento que fragmenta o Eu e o faz retornar ao autoerotismo, o narcisismo
primário absoluto anseia pelo repouso mimético da morte. É a busca do não-desejo do Outro,
da inexistência, do não-ser, outra forma de acesso à imortalidade.124

***

A doença da morte

Em O caçador Graco125, Kafka conduz o leitor às próprias regiões do limbo, mas


não a um espaço que merecesse este nome devido às sombras indefinidas que ali reinam,
e sim à situação de indefinição de um determinado tempo inacabável e simultaneamente
inabitável126. O tempo de nossos tempos: a incapacidade de objetivar a insegurança, a
expressão exata do “limbo” pelo qual navega o caçador; a impossibilidade de escapar à
errância destituída de sentido que, na interpretação do caçador, originou-se em
antiquíssima falha – uma falha eterna –, a qual consistiu, em condená-lo a uma solidão
definitiva que não escolhera e que impede tanto que viva quanto que morra
definitivamente.

CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA


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Um dia comum parece desenrolar-se na cidade de Riva. Entretanto, em meio ao


descanso ou à labuta quotidiana de seus habitantes, uma novidade incomum se anunciava:

Uma barcaça se encaminhava para o pequeno porto, como se estivesse sendo impelida sobre
a água por alguma força invisível. Um homem vestindo uma camisa azul saltou para a terra
e passou uma amarra pela argola do moitão. Atrás do barqueiro surgiram dois outros homens,
vestindo blusões escuros com botões prateados, que carregavam um ataúde, no qual, sob um
manto de seda com ornamentos florais, devia estar estendido um corpo.127

O ataúde é conduzido então à sede da prefeitura, onde vai encontrá-lo o


Burgomestre, em trajes de luto. À luz das velas que não chegam a separar a escuridão da
claridade, no chiaroscuro melancólico, o ataúde é despido do manto que o cobria,
“permitindo que se visse o corpo de um homem que se poderia tomar por caçador... Ali
jazia imóvel, de olhos fechados, sem respiração aparente; no entanto, apenas suas vestes
indicavam que provavelmente estivesse morto”128. A morte, tão adornada por adereços e
cadências fúnebres, é apenas provável; a imobilidade, a falta de respiração aparente, os
olhos fechados – todos signos de um mero estado de probabilidade.

Esse estado, porém, nada indica da realidade. Na verdade, um drama diferente de


uma cerimônia fúnebre se anuncia, sob a forma de um cerimonial privado, porém grave:

O cavalheiro de luto chegou ao lado do esquife, pousou uma das mãos na testa do homem,
ajoelhou-se e rezou. O barqueiro fez sinal para que os carregadores deixassem a sala. Eles se
foram, fecharam a porta e afastaram os meninos que se haviam reunido na varanda. Mas o
cavalheiro demonstrou que ainda faltava alguma providência. Deitou um olhar ao piloto, que
o entendeu logo e retirou-se por uma porta lateral para o quarto contíguo.129

A linguagem morta-viva, despida de tudo que não seja a denotação mais evidente
– vedando qualquer arroubo patético ou inconveniência de respiração, brota desse
primeiro contato.

Imediatamente, o homem deitado no ataúde abriu os olhos, voltou com esforço a cabeça para
o cavalheiro vestido de preto, e perguntou-lhe: - Quem é o senhor? Sem demonstrar a menor
surpresa, o cavalheiro ergueu-se da posição genuflexa e respondeu – Sou Burgomestre de
Riva.130

Um saber eterno assoma sempre, obnubilado por uma consciência que emerge das
profundezas com o esforço cansado de uma paródia de acontecimento:

Eu já sabia, senhor Burgomestre, mas, nos primeiros instantes depois de recobrar a


consciência, tenho sempre a cabeça vazia, tudo gira diante de meus olhos, e mais vale
perguntar, mesmo quando sei tudo. O senhor também deve saber, com certeza, que eu sou
Graco, o caçador.131

CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA


SEMINÁRIO - 2020
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Estamos assim em um outro nível de entendimento, onde o verbo “saber” não


reivindica sentido usual. Graco sabe tudo; nem por isso deixa seu estado de semimorte,
semivida. De nada lhe adianta sua sabedoria. Sua consciência não é um bem que preze,
mas uma inação que aparece na forma de consciência. E também o Burgomestre vem a
saber o necessário, ainda que de forma simbolicamente inusual:

- Sem dúvida, respondeu o Burgomestre. Tive notícia de sua chegada esta noite. Estávamos
dormindo há horas quando, lá pela meia-noite, minha mulher me chamou: ‘Salvatore! – este
é o meu nome – olha aquela pomba ali na janela’. Era de fato uma pomba, mas grande como
uma galinha. Ela voou até mim e me disse ao ouvido: ‘Graco, o caçador que morreu, chegará
amanhã. Receba-o em nome da cidade’.132

Tais, portanto, os fatos: o caçador morreu realmente – é o caçador que morreu que
chegará – e os pombos o sabem. Todos sabem. Mais do que estes fatos, incontestes na
trama do texto neste preciso momento, é inútil, desnecessário e impossível saber – como
bem o prova a linguagem absolutamente clara com que os fatos são narrados. O saber já
dado é absoluto. A linguagem sugere a clareza meridiana que ela mesma portará no
instante imediatamente seguinte; e a categorização apressada e descabida de algo como
inverossímil simplesmente perde peso frente à transparência do diálogo, ou melhor,
transforma-se por sua vez em elemento estranho e desagradável – muitas vezes, até como
que ofensivo – à linearidade de sentidos que se constrói na lógica do texto em processo
de auto-expressão que só pode se dar em uma literatura absolutamente soberana e que
não necessita senão de si mesma. Não há surpresas; provável e improvável, possível e
impossível são em si totalmente irrelevantes, não fazem mais do que curtos papéis na
grande peça teatral da reconstrução do sentido do saber ancestral; sua essência é, enfim,
fátua como as posições que ocupam nas lógicas e tramas relativas e subsidiárias de um
universo incomensuravelmente maior.

O caçador acenou a cabeça, passou a ponta da língua pelos lábios, confirmou: - Sim, os
pombos sempre me precedem. Mas o senhor acredita, Burgomestre, que eu deva permanecer
em Riva? – Não posso dizer, por enquanto. Afinal, o senhor morreu, ou não? – Sim,
respondeu o caçador. O senhor pode bem ver que sim. Faz tempo, muitos, muitíssimos anos,
que eu caí de um precipício na Floresta Negra – na Alemanha, está visto – quando caçava
camurças. Estou morto desde então – Mas continua vivo também, disse o Burgomestre.133

Temos aí a instalação completa e final nesse espaço intermédio sem morte nem
vida, ou com ambas. Neste mundo de sombras – um espaço singular e universal–, o
caçador tanto efetivamente morreu como efetivamente continua vivo: um preciso e
CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA
SEMINÁRIO - 2020
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recorrente decaimento de conceitos consagrados, a falência do estático na lógica


implacável da expressão. Assim, este particular espaço de validade da ambiguidade está
suficientemente pronunciado. Como aconteceu, agora, uma tal situação lamentável em
um determinado ponto não meramente do espaço, mas exatamente do tempo? Trata-se,
pois, de uma situação que, atemporal em sua aparência, teve um começo muito definido,
não há pouco ou mesmo ontem, mas “há muitos, muitíssimos anos”: uma pequena marca,
uma falha, uma refração deslocadora ínfima, um desvio original da ordem esperada das
coisas pela ingenuidade dos saberes.

À pergunta do Burgomestre se Graco continuava vivo:

De certa maneira, sim, respondeu-lhe o caçador. De certa maneira, continuo vivo. A minha
barca da morte perdeu o rumo. Teria sido por um giro inadequado da roda do leme, uma
distração do piloto, um desejo de regressar à minha linda terra natal? Sei lá qual foi a causa...
Somente sei que, a partir daí, permaneci na Terra, e minha barca navega sempre por todas as
águas do globo. Assim eu, que jamais pretendera deixar minhas montanhas queridas, hoje
viajo depois da morte por todas as nações... Estou permanentemente nas escadarias que levam
[ao outro mundo]... Passo o tempo em seus degraus imensos, ora subindo um pouco, ora
descendo um pouco, às vezes pela esquerda, outras pela direita, mas sempre em
movimento...134

Movimento que é circularidade, antiteleologia, antifinalidade, anti-história:


movimento que trai a essência de um tempo agônico e inútil. Vida-morte rotativa, sem
margens.

[...] estou sempre em movimento. No entanto, quando me atiro a um esforço supremo, e já


vejo brilhar diante de mim a grande porta lá nas alturas, sempre acordo na minha velha barca,
ainda à deriva em algum deplorável oceano ou mar terrestre. O erro fundamental de minha
morte em hora incerta vem debochar de mim em meu camarote 135.

O tempo da naturalidade da morte travou a si mesmo. Tornou-se impossível


morrer.

Tudo se passou na ordem previsível: corri atrás do animal, caí, esvaí-me em sangue numa
ravina, e morri. Esta barca da morte devia ter-me transportado para o Além. Lembro-me da
satisfação que tive ao estender-me pela primeira vez neste leito de madeira... Deitei-me e
fiquei à espera. Foi aí que aconteceu o infortúnio. – Que coisa terrível! Disse o Burgomestre,
elevando o braço como num gesto de defesa... – Mas, de quem é a culpa afinal?136

Culpa: expressão de medo inconsciente da realidade, ou realidade condicionadora


de toda loucura? Um tal estado de indefinição exige a apuração de responsabilidades. Ele
é profundamente desumano, inexplicável e injusto, injustificado à luz de qualquer razão

CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA


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com saudades da normalidade do saber que não sabe, ou seja, de um anti-despertar. Teria
de ser corrigido, bem explicado, modificado – algo que aliviasse sua situação de
inexorabilidade, uma redenção ao precário estado ao qual se encontra condenado – “a
culpa é sempre indubitável” – o caçador.

De quem é a culpa?

Do barqueiro, respondeu o caçador. Mas ninguém ligará para o que lhe conto agora, ninguém
virá socorrer-me. Se tivessem a obrigação de fazê-lo, todas as casas se fechariam, todas as
portas, todas as janelas. Todas as pessoas se enfiariam em suas camas, as cabeças sob as
cobertas, e a Terra se transformaria em uma imensa estalagem. E não deixariam de ter razão,
pois ninguém me conhece e, se tivessem alguma ideia a meu respeito, de certo não saberiam
onde me encontrar; por outro lado, se me encontrassem, não saberiam como tratar-me, sendo
incapazes de me darem ajuda. A ideia de me auxiliarem passa a ser como uma doença, e é na
cama que ela deve ser tratada... Para afastar tais pensamentos (de ajuda), basta-me, no
entanto, olhar em torno para descobrir onde estou, onde – posso assegurá-lo – tenho estado
há centenas de anos.”137

A culpa – seu reconhecimento e sua fixação – não é adversária à altura da


inexorabilidade do fático que embrenhou-se pelo limbo do inusitado e que conduziu o
caçador, sob o selo de uma eternidade quase ridícula, por entre as fronteiras entre a vida
e a morte. O pecado é sempre mortal; e, no caso, consiste em ser, paradoxal e
precisamente, semi-mortal.

Mas eis, portanto, as consequências mais práticas do desvio. Eis o rumo


inexorável a que levou o desvio original no ritmo humano de vida e morte: a uma
definitiva e incontornável solidão, da qual o caçador não pode nem ao menos sonhar em
sair, mergulhado que está em uma errância de má eternidade. A existência se sugere em
uma estranha tripartição, nas palavras do caçador: vida, morte, e limbo solitário; limbo
este onde o humano – a vida e a morte – está totalmente ausente e, portanto, incapaz de
qualquer atividade, de qualquer encontro real consigo mesmo ou com alguém, de
qualquer tangibilidade que sugerisse que a criatura que ali flutua pudesse ter sido, uma
vez, remotamente humana. A não-solidão do caçador seria como uma doença a ser tratada
na cama. A solidão extrema deste limbo não pode ser atingida nem pela vida nem pela
morte; nada há a fazer, senão abandonar-se ao mau infinito:

- É extraordinário!, exclamou o Burgomestre. – Extraordinário! E, agora, pensa ficar conosco


aqui em Riva? – Não, não penso nisso, respondeu o caçador com um pálido sorriso, pousando
a mão no joelho dele como que para desculpar-se. – Estou aqui neste instante, nada mais
posso acrescentar, nem sei para onde vou... Minha barca não tem leme e é tocada pelos ventos
que sopram nas regiões mais profundas da morte.138

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Talvez mais profundas do que a morte.

O tempo em processo de fuga de si mesmo e de autonegação, abandonado ao


automatismo do sentido que não tem vida nem morte, Odradek claudicante, é uma barca
sem leme, uma deriva definitiva – segundos mortos que se sucedem –; dá-se sem se dar,
e move-se com as brisas que sopram de uma morte mais profunda que a própria morte:
aquela onde não há inscrição no real e, portanto, nem vida nem morte reais. Mero
espectro, pálida fantasmagoria, mero oscilar por entre a infinidade das circunstâncias de
um real que escarnece do conceito de realidade. Esse tempo patologizado entende-se
apenas como solidão, ou seja, predefiniu tanto a sua realidade como qualquer outra,
exatamente uma espécie de vácuo que tem como característica a circularidade que já se
anuncia na falha básica em que consiste o mergulho na própria solidão: nenhum sentido
se dá na sucessão dos instantes, porque nenhum instante tem espaço para o sentido: apenas
para si mesmo. E desta tautologia fugiu até mesmo a mais remota das capacidades de
autorreflexão139 – nada a preenche senão um desespero sem voz e um solitário absurdo
sem leme, “movido pelos ventos mais profundos da morte” e sem a menor esperança de
que seu destino pudesse ser diferente, pois ali não há “diferente”.

A morte, incapaz de morrer, adoeceu.

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IV - Totalidade e devoração do Outro

A obra hegeliana, onde confluem todas as correntes do espírito ocidental e


onde se manifestam todos os seus níveis, é simultaneamente uma filosofia do
saber absoluto e do homem satisfeito.
E. LEVINAS140

O mundo contemporâneo, científico, técnico e gozador se vê sem saída (...)


não porque tudo é permitido e, pela técnica, tudo possível, mas porque nele
tudo é igual.
E. LEVINAS141

A compreensão da categoria “Totalidade” desde uma via de acesso


metafenomenológica142 é essencial para a compreensão deste termo no presente contexto
e se constitui também em uma chave de leitura fundamental para a percepção da
articulação de um tal conceito com a temática das condições de sustentação intelectual –
ao longo dos séculos, mas, especialmente, desde a modernidade em suas expressões
culturais e sociais hegemônicas – das condições de configuração e manutenção de lógicas
de racionalidade idolátrica.
O tema, porém, não será aqui abordado em detalhes teóricos, o que já fizemos em
várias outras ocasiões e segundo diferentes espectros analíticos 143; cumpre, nesse ponto e
para as finalidades desse capítulo, apenas destacar as linhas gerais do assunto em sua
complexidade e significância a partir de um prisma específico de leitura.
Um modelo rico e intelectualmente interessante de abordagem do tema da
Totalidade já se dá no título de uma obra central de E. Levinas: Totalidade e infinito –
ensaio sobre a exterioridade144. Esse título estabelece uma oposição metodológica entre
dois conceitos-chave para a compreensão de uma determinada cosmovisão de uma dada
cultura ou civilização; de fato, a forma como uma sociedade concebe, por exemplo, o
“seu” conceito de “infinito” é um modo de acesso privilegiado ao arsenal conceitual que
sustenta sua visão de cultura, história e temporalidade, como já intentamos demonstrar
alhures145. Desse modo, inverteremos procedimentalmente, aqui, o hábito ex negativo de
descrição filosófica do “infinito” e utilizaremos tal conceito em uma circunscrição
particular e que nos franqueará o acesso ao tema da “totalidade” no sentido aqui relevado.
Nesse texto serão abordadas, assim, as linhas gerais e que consideramos decisivas
sobre o tema do infinito tal como Hegel o pensou – e, por extensão, do Geist vigente na
atmosfera intelectual de vários expoentes do Idealismo Alemão –, para que se possa

CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA


SEMINÁRIO - 2020
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chegar a uma circunscrição razoável do tema da Totalidade no sentido que aqui nos
interessa.
Dada a sistematicidade da obra hegeliana, este tema está solidamente articulado
com temas anteriores, conforme será apresentado mais adiante. Isto significa que o
infinito hegeliano não pode ser trabalhado isoladamente: o seu próprio estudo pressupõe
o conhecimento do locus que este tema ocupa na obra hegeliana como um todo, ou seja,
sua compreensão pressupõe a compreensão dos elementos dos quais surge como questão
filosófica. Não pode ser simplesmente destacado dos livros de Hegel e trabalhado como
se se fundamentasse unicamente nele mesmo, em termos conceituais. Hegel é uno, como
una é sua obra; exige uma percepção una – embora, obviamente, não fechada – de seu
conteúdo, tanto quanto possível, para se mostrar exequível em termos de uma abordagem
profícua. Assim, muito embora Hegel tenha falado do infinito em muitas de suas obras, a
compreensão geral do tema em seu pensamento exige acima de tudo contato com pelo
menos duas de suas obras principais: a Fenomenologia do Espírito e a Ciência da Lógica.
É a partir destas obras que será aqui, sob a forma de uma abordagem inicial, desenvolvido
o tema em questão. Acima de tudo, porém, tentaremos não perder a conexão entre o
assunto enfocado e o sentido geral da obra e do autor.
O tema do infinito em Hegel encontra-se bem desenvolvido na Ciência da Lógica,
seu escrito, segundo nossa consideração, mais denso e importante146. Este assunto é
apresentado, em forma principal, no primeiro Volume da Ciência da Lógica (“Lógica
Objetiva”), o qual, escrito em Nürnberg e publicado pela primeira vez em 1812, foi
atentamente revisado pelo autor no fim da vida 147; esta reelaboração, que se consagrou
postumamente, apresenta, portanto, ao que nos é dado avaliar, a visão totalmente madura
de Hegel a respeito do assunto148.
O infinito é, em primeiro lugar, apresentado em contraponto com a Finitude, e são
ambos divisões do segundo Capítulo (“Das Dasein”) da primeira parte (“Qualität”) do
primeiro livro (“Die Lehre vom Sein”) do primeiro Tomo (“Die Objektive Logik”) da
Wissenschaft der Logik. Ou seja, foi assunto considerado pelo pensador suficientemente
importante e basilar para ser inscrito já no início de sua obra mais importante; além disso,
dada a organicidade geral da obra, o contato com este tema é pressuposto e define a
compreensão dos assuntos a seguir desenvolvidos, inclusive a segunda apresentação do
infinito, que ocorre na segunda Parte (“Qualität”) do primeiro Livro. Em verdade, na
primeira apresentação já diz Hegel o que entende por “infinito em geral” (“Das
Unendliche überhaupt”), a partir do qual se entra propriamente no tema, sendo mesmo o
CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA
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aspecto mais importante para sua consideração geral. Aí apresenta já o autor o que
entende por “mau infinito” e por “infinito verdadeiro” – a dualidade distintiva
fundamental que estabelece para a compreensão do tema, em um alto nível de abstração.
Neste capítulo, nossa preocupação fundamental, como já exposto, é apresentar a
questão de forma inteligível em termos de “sentido” nos contextos tanto da obra filosófica
explícita como no das realidades implicitamente experienciadas; em suma, a seguinte
breve análise levará em consideração, além da literalidade do texto, aquilo que não está
escrito e transcende, por sua atualidade, qualquer enquadramento puramente intelectual.
A máxima generalidade de apresentação é suficiente para isso, pois aí já está dito o que
realmente interessa e é fundamental; todavia, para que não sobre algum aspecto
importante disperso em meio a notas explicativas, também estas serão consideradas com
atenção e valorizadas.
Hegel inicia a Lógica trabalhando a noção fundamental do Ser (Sein). Isto após
haver explicado o que será a Lógica: “...deve ser compreendida como um sistema da razão
pura, como o reino do pensamento. Este reino é a verdade, tal como ela é nela mesma e
para ela mesma, sem véu”149. Ou seja, a Lógica é nada menos do que a Verdade que se
mostra, des-velada, tal qual é. E, segundo Hegel, pode-se dizer que a Lógica é a
explanação da essência de Deus antes da criação da natureza e de algum espírito finito 150.
Há portanto a preocupação explícita de superar o aspecto de aparecimento – fenomênico
– do Espírito à consciência (o tema da Fenomenologia), para surpreender a verdade
“antes” de seu reflexo consciente. Além disso, o sistema da lógica é o mundo das
essências simples, libertadas de qualquer concreção sensível151. Portanto, o que realmente
interessa é a realidade radical, não contaminada pelas determinações da concretude dela
subsidiária, este “reino das sombras” ao qual a inteligência não está acostumada.
Ademais, a lógica objetiva (a que trata da doutrina do Ser, em oposição à subjetiva, que
trata dos Conceitos) é, em contraste com a Crítica kantiana, verdadeira crítica, na medida
em que critica seu próprio conteúdo, no entender de Hegel152.
É de posse destes elementos, aspectos que permitem, ao nosso ver, uma correta
aproximação da Lógica, que se pode partir para a compreensão do ser em geral hegeliano
– aliás, em perfeita consonância com a tradição ocidental153. Não está, portanto, na
escolha do “ponto de partida” de reflexão a inovação hegeliana na lógica, mas na maneira
de como este ponto de partida é compreendido. O ser é o “imediato indeterminado”
(“Umbestimmte Unmittelbare”), aquele que, enquanto “puro” (“reines Sein”), é também
pura indeterminação. E, enquanto indeterminado, não se diferencia de nada, porque não
CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA
SEMINÁRIO - 2020
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se pode opor uma sua determinação a uma determinação que lhe seja externa. Assim, não
é nada e não se diferencia também do Nada puro – não é „nada mais, nada menos“ que
“reine Nichts”154.
Se este é o Ser, o que é o Nada, segundo Hegel? “Trata-se da igualdade simples
com si mesmo... Indiferenciação em relação a si mesmo” 155. O puro Nada é o
absolutamente indiferenciado e, enquanto puro, indiferenciável – como o puro Ser156. São
também entre eles indiferenciáveis – identificam-se pura e simplesmente.
Onde está, portanto, o elemento real disto tudo, a Verdade? A Verdade não é nem
o Ser nem o Nada, mas o Ser no Nada e o Nada no Ser... cada qual desaparecendo em seu
contrário (...) o Devir 157. A raiz de toda verdadeira realidade é, portanto, movimento: ser
e nada que desaparecem um no outro, em uma dinâmica potente. O Devir é a real
expressão deste movimento. A realidade é puro dinamismo.
Cumpre agora notar que, de posse da ideia clara do que seja o Devir (“das
Werden”) hegeliano, temos a chave inicial para a compreensão do que possa ser a sua
dialética – a qual é tudo, menos uma tríade rígida e invariável. A dialética se aproximaria
muito mais de um “movimento intrínseco” que evidencia a contradição – base e condição
da Aufhebung158. A contradição só aparece no efetivo exercício do “movimento” da coisa.
O que importa é que ocorre, em uma primeira instância, um “sair fora” da realidade
movente em relação àquilo pelo qual fora entendida anteriormente como realidade;
escapa, por seu movimento, de si mesma; enxerga-se e se deixa enxergar em sua íntima
contradição. A realidade é pelo que não é; vê-se além de suas fronteiras, atira-se para
frente de si mesma, pelo movimento. Ela se alimenta de sua não-realidade e cresce,
dialeticamente, ou seja, helicoidalmente: ela é seu movimento. E o movimento, em
sentido eminente considerado, chama-se Dialética159. Portanto, o Devir é a “unidade”, a
confluência dinamicamente dialética do Ser e do Nada, expressão legítima de vida, que
não se deixa cristalizar, e que é negando-se a cada momento.
Com o Devir, tem-se subsídios para se avançar na exploração da realidade do Ser.
O Ser, por seu movimento de “integração” consigo mesmo – a relação frutífera Ser-Nada
– acaba por se determinar como “Ser existente” (Dasein). Ser existente é ser
determinado160. “O ser-aí é, segundo seu devir, Ser com Não-ser, de tal modo que este
Não-ser é incorporado com o Ser em uma unidade simples“161 – o ser, o ente, surge do
devir, sua realidade é subsidiária da realidade do devir. A existência é uma espécie de
“unidade movimentada” do ser e do nada, e tudo o que existe é e não é simultaneamente,
ou seja, é e não é sendo. E este “sendo” é a própria expressão da concretude do
CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA
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existente162; a realização do Devir, e sua condensação em um “resultado sereno” 163. A


partir de agora, tem-se um polo de referência para a especulação: algo (Etwas) existe, e
este “algo existente” traz em sua determinação toda riqueza dos processos já
desenvolvidos e superados, que se conservam ainda, todavia, nesta superação. É,
portanto, suficientemente consistente para fornecer dados de aproximação às noções de
Finitude e Infinito. A cadeia lógica de conceitos que conduzem a estas duas ideias está
bem esboçada.
O próximo passo é tentar compreender o que entende Hegel por “Finitude”
(Endlichkeit) – ponto de partida para que se possa compreender a noção hegeliana de
infinito; pois, como já se disse, Hegel trabalha a infinitude (Unendlichkeit) em
contraponto com a Finitude164.
Hegel supõe ser “a própria finitude algo de negativo e o positivo em relação a ela
é o Infinito... o qual desde tempos remotos se identificou com o absoluto e que as épocas
mais diferentes corroboraram tenazmente esta identificação”165. Há aqui, portanto, a clara
decorrência lógica de uma ideia gestada no período helênico da Filosofia e aperfeiçoada
ao longo dos séculos, conforme nos demoramos em tentar demonstrar alhures166, cujas
épocas sucessivas “corroboraram tenazmente” simplesmente porque se entendiam a partir
dela. É sobre estes pressupostos que Hegel vai trabalhar, completando a ideia tradicional
de infinito em si mesma, identificando-o com a culminância de realidade de todas as
realidades possíveis – o Absoluto, no sentido hegeliano do termo167. O infinito hegeliano
é, pois, desde sempre, pré-condicionado pela tradição na qual o autor se insere e entende
e à qual legitima; e, por isto, é absolutamente fundamental, para a compreensão desta
tradição, a prévia compreensão de sua “realização total” – o infinito consubstanciado no
Absoluto168. O infinito em geral é, assim, a realização do Ser, a sua própria realização,
que se completa e se justifica.
Mas como fundamenta Hegel a especulação acerca do infinito? Como já se disse,
previamente ao infinito apresenta a finitude e suas características. O local onde se pode
inicialmente surpreender a finitude é no Ser determinado, no Dasein em sua existência169.
A determinação é, em si, limitação; o determinar-se significa “separar-se de”, “encontrar-
se diferente de”170. A finitude não é, portanto, um atributo das coisas como outro
qualquer; é, antes, a realidade propriamente dita das coisas existentes, o real constitutivo
desta existência. Existir é ser limitado. Cada existente é, assim, limitado em relação a
outro existente, porque cada um existe enquanto limitado (em relação a outro existente).
Mas a limitação entende-se não como realmente heteronomamente referenciada, e sim
CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA
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como inerente à própria existência do existente171. O existente não pode senão se entender
em relação a si mesmo. Os limites são os seus, ele se limita “para si”. Isto porque, embora
tudo o que é uma “coisa em si” seja também “fora dela” (“para-outro”), o outro existente
tem, enquanto tal, a ver com o “mesmo” existente; a sua mútua determinabilidade
desemboca no fato de que cada um, enquanto determinado, tem em si a identidade do
“ser-em-si” e do “ser–para–outro” (“Sein–für–sich e Sein–für–Anderes”) 172. Assim, em
última análise, o outro, em sua “determinação”, não é mais que uma determinação,
enquanto outro, do mesmo em relação ao mesmo. Tudo acontece, em último sentido, no
âmbito fechado da identidade (a qual pode ser tão ampla quanto se queria anúncio de
Totalidade); a identidade resolve o problema da real heteronomia, e a diferença é
“subsumida” da realidade do (mesmo) existente173. O “outro”, seja o que for, está desde
sempre atrelado à realidade própria e incisiva do (mesmo) existente; é, enquanto
“existente”, pretexto para sua própria ultrapassagem. Sua realidade própria é sua
superação enquanto “existente” – enquanto “diferente”. Sua diferença é sua falência, sua
vida é sua identidade com sua negação, em um processo dialético 174. Na lógica do
desenvolvimento da Realidade, tudo é atraído para a intimidade da tautologia realizada
do mesmo; as sombras externas se desvanecem ao se encontrarem no “ninho” que já as
conhecia. Prova-se a elas e elas provam a si mesmas que não são, em realidade profunda,
mais do que aquilo que delas já se conhece. A limitação é pretexto para que isto se torne
indubitável, porque “o algo e o outro têm sua existência mais além daquilo que lhes é
comum, do limite”175; e o limite, fator de mútua exclusão, é a “limpeza do terreno” para
que se possa processar o seguimento natural de seu surgimento: a integração real entre os
dois elementos (mesmo e outro) que previamente, pelo limite, negaram-se incisivamente.
E a integração é tanto mais profunda quanto mais forte havia sido a negação 176, porque
segue a verdadeira diretriz básica da dialética hegeliana 177. A totalização – integração
efetiva do Outro ao Mesmo – não se dá com Hegel à maneira de outros filósofos menos
argutos, a saber, tentando negar a cisão e a diferença (conforme as entendiam) para
afirmar a Unidade: Hegel afirma a diferença, não para seduzi-la ao canto de sereia
fundamental-ontológico, como a diferença ontológica heideggeriana 178, mas, exata e
explicitamente, para superá-la; a limitação, longe de ser elemento de transtorno para a
lógica da totalidade, é elemento fundamentalmente pressuposto para tal, condição para a
sua afirmação. A razão não mais teme, a partir de Hegel, qualquer desagregação pela
diferença; sente-se suficientemente forte para entender-se mais íntegra do que qualquer
diferença (intra ou extra-racional), e isso antes mesmo do brotar da diferença. O jogo de
CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA
SEMINÁRIO - 2020
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afirmar negando e negar afirmando é a descoberta crucial para que a razão se perceba
definitivamente autônoma; esta torna-se simplesmente dona de si mesma e da realidade,
porque – em um estranho encontro entre autonomia e ser, entre Kant e Parmênides - a
realidade é, em última análise, ela mesma.
A finitude é, portanto, condição de superação dela mesma, é de certa forma a
“contradição” (Widerspruch) materializada. E esta contradição se expressa também pela
desigualdade entre o limite (Schranke) e o dever superar o limite (Sollen), “momentos”
próprios do infinito. A partir do limite, surge o dever de superá-lo como condição
necessária de existência; mas este dever “eleva” o infinito para além de si 179. A superação
da finitude inicia no próprio finito, pois este é, como se disse, contradição em si 180. O
“fruto” desta contradição, que em seu movimento totalizante é identidade (negação da
negação), é o outro do finito – o Infinito181. Esta é a “passagem” do finito “ao” infinito.
„O Infinito, em seu conceito simples, pode ser inicialmente concebido como uma
nova definição do Absoluto“182. Para início e fim da pesquisa há que se ter presente,
portanto, que o infinito hegeliano se identifica com o absoluto (no sentido, evidentemente,
também hegeliano). Todavia, a maneira como isto se dá não é discursivamente simples e
exige uma consideração atenta. Porque, para começar, „o principal é distinguir o
verdadeiro conceito de Infinito do mau Infinito, o Infinito da razão do Infinito do
entendimento; ...este último é o Infinito finitizado...“183. Há assim um “mau infinito”, cuja
própria ocorrência traz consigo seu perecimento; há que diferenciá-lo do “infinito
verdadeiro”.
“O Infinito é; nesta imediatez, ele é igualmente a negação de um Outro, do
finito”184. Mas esta forma de superação do infinito é de certa forma também “finita”, pois
é entendida primeiramente a partir da noção de “progresso” (realização do “dever ser” do
infinito) 185. Assim, este tipo de infinito (de constante superação do finito) é um infinito
que não chega ao infinito propriamente dito; está desde sempre manietado pela
inalcançabilidade essencial do progresso pelo qual é entendido. A ideia de progresso
impede o infinito de alcançar a si mesmo 186. Este infinito é “mau” por ter um vício de
origem: negou sua condição de infinito ao se manifestar como “proporcional” ao finito
que se lhe refere; é uma “coisa como outra coisa qualquer”; “opõe-se à finidade, mas ele
próprio permanece na finidade” 187.
O que é, assim, o infinito verdadeiro? É aquele que não se entende para si mesmo
como inalcançável para si mesmo, ou seja, é o que possui essencialmente a si mesmo: a
Totalidade. “Sendo os dois, finito e infinito, momentos do processo, são em comum o
CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA
SEMINÁRIO - 2020
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finito, e negando também em comum, e no resultado, este resultado, como negação da


finidade de ambos, chama-se com verdade o infinito”188. O finito está, por seu
movimento, no infinito; dele não se separa ao fim da dialética, mas a ele se une para
afirmá-la conjuntamente com ele no Absoluto. Sua realidade consiste em não se negar
somente enquanto “puro” infinito; pois assim não se “perde” em sua referência de si para
si mesmo. O infinito verdadeiro é real, acontece mesmo no âmbito da existência; está
presente, presentificado em si mesmo – a inefabilidade não é uma de suas
características189. Sua realidade se determina além da essência, do conceito, da ideia – do
que lhe é, em sentido profundo, secundário 190. Esta realidade o é em sentido eminente –
não se trata de uma realidade formal, mas da realidade “real”, com conteúdo concreto 191.
O infinito, que parecia em sua versão “má” distante e mesmo inalcançável, inefável ou
grandiosos demais para ser atingido – exatamente como a compreensão “normal” de
infinito na tradição -, em sua versão verdadeira provou estar tão próxima que a realidade
se entende nele e, mais exatamente, por ele. “O caráter ‘afirmativo’ de semelhante infinito
consiste em que é o real propriamente dito, em contraste com o finito, que está afetado
pela negação. E o finito – que para o entendimento ingênuo parece ser o real – mostrou-
se como o ‘ideal’”192 (porque o infinito verdadeiro encontra-se e é encontrado na
realidade, enquanto o finito apenas se encontra na idealidade da superação de seus limites
conaturais). O mau infinito figura-se por uma reta ilimitada, inacabada; o infinito
verdadeiro, por sua vez, figura-se no círculo – “a linha que tem de se alcançar a si mesma,
fechada e completamente presente, sem ponto inicial e sem fim” 193. Ao que tudo indica,
nada de novo nesta configuração em relação a representações gregas consagradas194. A
verdade é que o infinito está à mão; sua realidade é sua proximidade da existência, sua
congruência com a realidade em si. O infinito verdadeiro de Hegel é o Absoluto, a raiz
de toda realidade possível. “O mundo está nele”, só se entende por ele. O finito, pelo
infinito, renuncia à ideia de progresso, contenta-se com sua situação de finito do infinito.
O infinito está, por si, acabado em si; completou-se no seu encontrar-se. O seu reflexo de
si para si mesmo é a referência absoluta de sua própria realidade; pois somente ele mesmo
é por si capaz de se refletir. O círculo fecha-se pela integração do infinito com a sua
própria infinitude.
De posse das noções atrás examinadas, vejamos a dimensão empírica – ou
experiencial – de tal concepção de realidade. Aí ela mostra o que realmente é, qual o seu
sentido, o que dela se pode esperar para o mundo – e qual o mundo que se encontra nela.
A articulação do pensamento dá lugar à articulação das relações vitais legitimadas pela
CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA
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primeira. O mundo “dispensa” o pensar para “agir” este pensamento; dispensa a abstração
porque dela já hauriu o que tinha sentido para ele. O pensamento adequado passou a fazer
parte da “atmosfera” vital da cultura – não mais precisa ser pensado, no sentido estrito
deste termo. Como diria Hegel, realiza-se em sua própria negação (enquanto puro
pensamento). Pela superação de suas intrincações lógicas, cai no intrincado ontológico
do qual é simultaneamente “pai” e “filho”, no qual encontra seu significado.
O que faremos agora será simplesmente acompanhar o infinito hegeliano em sua
aventura meta-especulativa, em seu encontrar-se consigo mesmo fora de sua afirmação
estrita. Em outros termos, será examinado preliminarmente o exercício de seu poder, no
desenrolar de sua potência propriamente dita, na síntese ontológica de seus pressupostos
lógicos. O infinito hegeliano sai da letra para se encontrar na ambiência que fez com que
a letra surgisse como tal (ambiência, aliás, da qual somos todos de certa forma herdeiros).
Ora, uma das características mais notáveis de Hegel é ter oportunizado esta
transferência pensamento-realidade de uma maneira extremamente profunda e coerente.
Hegel foi um filósofo maximamente “consequente”; nenhuma de suas teses principais
deixou de sair de sua abstração para espraiar-se pelas diversas instâncias da realidade,
porque nenhuma de suas teses principais foi haurida de outro lugar senão, exatamente, da
realidade195. O mundo ocidental é, de um modo ou de outro, implícita ou explicitamente,
“hegeliano” (e é sempre surpreendente observar de como este fato é esquecido ou
ignorado), no sentido em que se entendeu referência de realidade, polo de sentido para
toda realidade possível, encarregado de levar o Absoluto a se encontrar consigo mesmo
pela superação da Diferença 196.
Para que isso fosse possível, porém, não se poderia tolerar inconsistências no
arsenal teórico justificador de ações, representado por cada um de seus constitutivos. E
um de seus constitutivos mais importante é sem dúvida o infinito; a instância onde, em
última análise, tudo se deve resolver197.
Pois bem, o infinito hegeliano presta-se admiravelmente para sua auto–
justificação. Ao apresentar-se como real e absoluto, encontra em si a máxima referência
para sua efetividade. O absoluto se pertence em sua Totalidade, porque, como foi dito, o
verdadeiro infinito é aquele que não se entende como inalcançável para si mesmo, ou seja,
do qual ele mesmo é o último sentido, e que é para si mesmo completo e palpável. A raiz
primigênia de sua auto-compreensão como infinito está na sua completude, na sua
“saturação” de realidade. Não só ele se entende por ele, mas tudo se entende por ele. Ele
engendra, na prática, o infinito espectro de suas possibilidades, e completa-as uma por
CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA
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uma: esgota-as com sua realidade. Transborda do simples intelecto apreensivo para
desembocar na razão universal. Em outros termos, o infinito hegeliano verdadeiro é total:
afirma-se de uma tal maneira que não pode sobrar nada fora dele; o absoluto ao qual chega
a razão e que a alimenta apresenta como sua principal premissa de sustentabilidade o fato
justamente de poder sustentar-se por si; dispensa, de uma maneira explícita, qualquer
influxo externo que não o dialeticamente metabolizado. O infinito verdadeiro hegeliano
é, assim, a síntese realizativa de todos os esforços da especulação. Início e fim da pesquisa
que atinge a verdade, pois é, em sentido pleno, a verdade em sua realização própria. Uma
vez atingindo este estágio de realização, a verdade faz com que abandonemos o amor pelo
saber, para nos instalarmos e nos deixarmos penetrar pelo saber mesmo 198 em sua
efetivação indubitável, porque absoluta. Em outras palavras: é muito provavelmente a
primeira vez que um sistema de filosofia se realiza em sua Totalidade.
O bom infinito hegeliano significa, portanto, completação. Respira o ar que ele
mesmo fornece, em seu pulsar vital; é uma espécie de “moto contínuo” do entendimento
que consegue penetrar em sua razão profunda – a Razão absoluta. Trata-se da substituição
de todas as religiões pela religião como Absoluto, ou do Absoluto como religião 199
A partir daí, pode-se começar a tirar conseqüências práticas deste fato. A pesquisa
terminou; o pensamento atingiu praticamente o seu objetivo, “achou a si mesmo fora de
si mesmo”200, superou-se ao se completar. Transformou a dualidade lógica “pensamento”
e “realidade”, entendendo-a como tal; “transbordou” dos limites que tinha, na verdade,
apenas funcionalmente imposto. Qualquer “mundo” pode entendê-lo como propriamente
seu, no sentido de que não precisa pensá-lo. O pensamento fez-se realidade em sentido
eminente, pois deu à realidade sentido de realidade. A realidade se entende como tal por
ele; legitima-se praticamente por ele. A ação foi previamente pensada, sua realização
(ato) é a realização “de sua essência” enquanto ação. A síntese hegeliana constitui-se em
uma espécie de “conjunção” especulativa-totalizante de todas as energias dispersas pelo
mundo ocidental predominante desde a origem do pensamento filosófico. O homem
moderno libera totalmente suas energias, pois esta liberação é justificativa de si mesma.
Pode ocupar, em nível máximo, a liberdade que não tem “vergonha” de sua realização
completa, pois é foco de sentido de sua própria realização. A liberdade é boa porque é
livre, “recolhe” toda a referência para si mesma no descobrir de sua i-limitação201. O
homem pode dominar, matar ou aniquilar, pois percebeu ser ele quem “encarna” o
sentido, através da razão feita auto-consciência, de seus atos; pois a razão está nele, e ela
é o critério único de seu (próprio) valor202. O mundo fechou-se. Nada de novo se pode
CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA
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esperar que já não esteja, a rigor, previamente apreendido; pois este novo é na verdade o
velho para a razão que já conhecia de antemão todas as possibilidades, pois estas
justamente nela repousam. A liberdade trilha e abre seu próprio caminho por entre suas
possibilidades sempre intrínsecas ao signo de sua rotação potente. A razão absoluta funda
o sentido de seu próprio possível no momento de sua realização meta-racional,
pesadamente empírica. O homem totalizado justifica o “compreender” a respeito de
qualquer mundo pelo exercício de seu simples “brotar” (como “razão encarnada”) nele.
Afasta, por seu surgimento, qualquer outra possibilidade; retroage, por seu aparecer, à
raiz mesma da “possibilidade” em si. Coloca-se como assimétrico em relação a qualquer
instância de julgamento (dele e de sua realização) não imanente ao seu próprio exercício
de realização. Fere em seu evoluir porque não fere a si mesmo ou à razão que o sustenta.
Mata porque a morte, por não ser sua, é “não-existente” enquanto “propriamente” morte.
Engloba os “restos” de sua ação em um todo que ele encarna e para quem os restos
legitimam, pela univocidade de sentido possível, o sentido de sua própria condição de
“restos”. Abandona as sobras à sua ínsita condição de não-reais, pois com isso realiza
pretensamente a verdadeira realidade. Justifica tudo isto a partir da injustificabilidade de
sua própria justificação. Instala-se na totalidade que tem origem em sua própria
totalização; surpreende a totalidade inteira antes que esta se perceba realmente como tal,
porque sua vontade é a vontade da ideia onipresente. Sabe antes de saber, e conquista, a
ferro e fogo, o saber que quer saber. Dispensa a heteronomia antes que esta possa se
manifestar como tal, ao atestar-lhe praticamente o estatuto efetivo (wirklich) de não-
existente. Enrijece seus anelos de auto-satisfação (que acabam geralmente por convergir
para a prática da auto e heterofagia na totalidade indisfarçada da guerra, onde tudo se
destrói para existir). Fecha-se, enfim, em si, por si e para si. Totaliza-se203.
Assim, a filosofia pode e deve substituir o “amor pelo saber” tradicional pelo saber
real ou verdadeiro da especulação 204. Com a especulação verdadeira, o Mundo se
completa naquilo que o constitui, volta-se totalmente para dentro de si, entende-se em si
mesmo como mais além de si – vale-se somente de si mesmo para si. O conhecimento
torna de fato a si mesmo seu objeto. A realidade da razão é seu próprio reflexo nela
mesma; sua hesitação é sua superação. A liberdade justifica-se por si mesma, pois é, em
última análise, a liberdade da ideia se realizando. Do tumulto se salva o que deve se salvar,
no mundo se sustém o que pode e deve se sustentar, o que se justifica na Totalidade, como
se justifica. Esta é propriamente a realidade da realidade: o que é subsumido
(“aufgehoben”) na realidade mais alta e que a constitui ao negar-se. O perecimento das
CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA
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“sobras” da realidade se justifica porque se torna vida na Efetividade do real mais pleno.
O mundo se legitima, portanto, com tudo o que tem nele; se a história efetiva é a Razão,
até o inaceitável se torna aceitável. Esse é o motivo pelo qual consideramos que, em
qualquer hipótese, concessões racionais à potência totalizante da Totalidade acabam por
retrair finalmente o que se dispersa ao movimento trófico que a tudo une – ou pretende
unir – na promulgação do Todo, expressando a Totalidade para além das sutilezas
dialéticas que se possam desenvolver especulativamente; em uma feição
metafenomenológica ou mesmo benjaminiana, ou seja, recaída no concreto anterior à
lógica de qualquer “organização intelectual”, o que se evidencia faticamente ao logo da
História e das histórias é a configuração de uma energia unificante que denuncia a
História como julgadora do real (inclusive das histórias) – pois tanto a
metafenomenologia quanto a compreensão benjaminiana do real que julga
compreenderão, através da “história dos vencidos”, que deve-se partir de um outro
conceito de “filosofia da história” que aquele de Hegel – exatamente, um conceito (ou
mesmo, um meta-conceito) que compreende que a Totalidade em nenhum momento se
apresenta realmente senão no exercício da Wirklichkeit prática, que realiza toda a
complexidade das interações dialéticas na materialidade do mundo, e em nenhum outro
lugar – e, por boa vontade que reste, povoa o universo ético de restos, traços, sulcos, ecos
“de vozes que já emudeceram”.
Em suma, Totalidade é o exercício efetivo da dinâmica da imanência em seu
desdobrar-se - conquista mesma da imanência em si, por si e para si. É a síntese realizativa
de todas as energias integradoras do diferente de si: incorporação de tudo na coesão
concêntrica que a tudo integra desde um fulcro energético absolutamente preponderante
e tautológico em sua origem, finalidade e destino. Os grandes impérios mundiais nunca
fizeram mais, a rigor, do que incorporarem a si o que em princípio a si não se reduz e não
se poderia reduzir. Os mais fortes e vencedores preponderam e se reservam o sagrado
direito de definir efetivamente a sua Verdade, sua Justiça, seu Bem - dos quais sua Lei e
sua Ordem (e as de seus lacaios) constituem o posto avançado. Crescem e se impõem,
com violência aberta ou disfarçada, sobre tudo o que, em lhes sendo diferente, não lhes é
indiferente. Esta é sua lógica real, sua Verdade; e sua Verdade é sua Totalidade.
Totalidade não é, portanto, algum conceito abstruso incubado em alguma torre de
marfim... é, isto sim, o resultado do acoplar-se ao decorrer do Tempo da vontade de poder
em realização - a lógica efetiva de desenvolvimento de todo o crescimento ocidental e de
tudo o que o toma como modelo ideal em suas infinitamente multiplicadas dinâmicas.
CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA
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Está, enquanto processo em curso e ideia “reguladora”, nos fundamentos, seja da


acumulação tresloucada de dinheiro e poder, seja na depredação da natureza, seja na
sofisticação crescente das armas da morte... justifica tudo, mas, acima de tudo, justifica a
si mesma e a si mesma se afirma como boa: vive sua solidão total.
O bom infinito hegeliano não é mais do que a completação sumamente hábil de
uma ideia de infinito esboçada já nos tempos pré-socráticos205, e que significa a conjunção
da vontade de cognoscibilidade com a sua própria efetivação. A incisiva substancialidade
do bom infinito hegeliano, sua sólida estrutura interna, acaba por permitir que se perceba
sua necessária promulgação interna de limites; e por fora, para além de toda razão
autônoma, pode continuar a cintilar a inefável insubstancialidade do que não existe para
o infinito que já chegou a seus limites. Paradoxo radical da Totalidade. A tautologia se
fecha, mas ainda não tem a mais plena consciência deste fato. Esta é uma história que
apenas se insinua, mas da qual o século XIX saberá cobrar seus frutos – frutos sem os
quais os séculos XX e XXI são ininteligíveis206. Os séculos XX e XXI são,
eminentemente, séculos de vigência da totalização; a desagregação da Totalidade se
anuncia de modo ainda não perceptível à atmosfera perceptiva comum da época, porém
suficientemente eloquente para que seus sintomas – o que ocorre nas profundidades e
deixa marcas na existência do presente – não possa mais ser ignorado207.

CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA


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V - Reação à realidade, medo do Outro, Totalidade e totalitarismo

Para a era sem porvir, só o passado tem futuro.


N. B. PEIXOTO; M. C. OLALQUIAGA 208

Como uma rebelião contra a civilização, o fascismo não é simplesmente a


recorrência do arcaico, mas sua reprodução na e pela própria civilização.
T. ADORNO209

As massas têm o direito de exigir a mudança das relações de propriedade; o


fascismo permite que elas se exprimam, conservando, ao mesmo tempo, essas
relações. Ele desemboca, consequentemente, na estetização da vida política.
W. BENJAMIN210

Num desenvolvimento sadio, a fusão das pulsões de vida e de morte se dá sob


a égide da pulsão de vida, e a pulsão de morte desviada – a agressividade –
está a serviço da vida. Lá onde a pulsão de morte predomina, a libido está a
serviço da pulsão de morte.
H. SEGAL211

O desejo psicológico inconsciente de auto-aniquilação reproduz fielmente a


estrutura de um movimento político que, em última instância, transforma seus
seguidores em vítimas.
T. ADORNO212

A psicologia totalitária reflete o primado de uma realidade social que produz


seres humanos já tão insanos quanto ela própria.

T. ADORNO213

O empobrecimento psíquico e emocional, o esvaziamento de conteúdo social e


cultural significativo de um determinado campo de referências civilizacionais, uma
situação crescente de disforia existencial, o soerguimento portentoso e maciço do medo
des-recalcado por detrás de pretensas bases sólidas e sempre nostálgicas ou imaginárias
de segurança, todos esses sintomas confluem na configuração de uma crescente crise de
sentido de realidade, crise essa percebida em termos conscientes apenas a partir de um
certo ponto de intensificação e consolidação de suas estruturas e que se expressa tanto nas
profundidades de consciências individuais como em um amplo arco civilizatório de uma
abrangência dificilmente divisável214. Uma tal crise, perfeitamente observável na
atualidade em suas múltiplas manifestações, exemplifica claramente o período
transicional entre os séculos XX e XXI nos seus mais diferentes aspectos, em termos
globais. É fundamental, porém, observar que o que apenas agora se torna candente e
incontornável à percepção – que vai de situações diversas de desastre ambiental e social
CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA
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que agitam o planeta em sua totalidade e em proporções inimagináveis a esvaziamentos


subjetivos em indivíduos desprovidos de conteúdo próprio configurando-se e existindo
apenas enquanto membro de uma multidão de consumidores ou de não-consumidores
descartáveis –, tem suas raízes imediatas em tempos algo anteriores, e que o século XX
(o século “esquizofrênico”, no qual avanços técnicos de toda ordem que puderam
prolongar a vida, erradicação de doenças, etc., convive com a morte em sentido extremo,
redução do Outro a nada – bomba atômica, extermínios coloniais, Shoah, etc.) funcionou
até certo ponto como balão de ensaio para o que hoje aparece em sua palpável e inegável
realidade do presente215.
Os totalitarismos políticos, especialmente em suas dimensões históricas e em sua
feição condutora a estados de guerra, extermínio e loucura genocida e suicida,
representam simultaneamente um sintoma e um momento extremamente grave de uma
determinada situação de reação ao sentido de realidade que a realidade – ou seja, sua
infinita e intimidadora diversidade e expressão temporal e espacial – suscita em um
corpus social no qual o pensamento nunca assumiu a posição de maturidade necessária
para lidar com o Outro, ou seja, nunca conseguiu lidar com as convulsões internas e
externas de um psiquismo exposto à sua própria fragilidade e cronicamente inábil ou
interditado na lida com seus próprios impulsos interiores, subterrâneos, perigosos: um
momento exponencial do Todestrieb que assume o controle de massas, corações e mentes,
e um momento em que a palavra de potencial ordem “viva la muerte!” assume realidade
e toma para si a condução dos destinos individuais e fragmentários216.
Não se entende tal hipoteca de si ao delírio, que significa, como dizia Eichmann,
“ser tomado pelo Movimento”, sem se entender previamente as lógicas e ardis postos em
movimento pelos funcionários dos espasmos totalizantes que prometem o paraíso da
segurança absoluta à custa da entrega de vestígios de desejos ainda saudáveis nas
mônadas individuais que configuram uma comunidade global profundamente adoentada.
É absolutamente essencial compreender que “a psicologia totalitária reflete o primado de
uma realidade social que produz seres humanos já tão insanos quanto ela própria”. 217
É exatamente Adorno, em meados do século passado, procede a uma cuidadosa
revisão de mecanismos manipulatórios de consciências por parte de agitadores fascistas
norte-americanos, que configuram seus diversos ensaios sobre psicanálise e psicologia
social218. Utilizando-se da potência da psicanálise, a “única (forma de psicologia) que
investiga seriamente as condições subjetivas da irracionalidade objetiva”219 característica
do fascismo em suas diversas expressões, e a partir da especificidade de sua recepção de
CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA
SEMINÁRIO - 2020
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Freud e de sua herança220, Adorno amplia o escopo da própria psicanálise, evidenciando


a que ponto ela pode e deve ser considerada uma possibilidade hermenêutica de primeira
escolha para contextos sociais e culturais específicos.
Assim,

Durante a última década, a natureza e o conteúdo dos discursos e panfletos dos agitadores
fascistas norte-americanos foram submetidos a uma intensa pesquisa por cientistas sociais.
(...). O quadro geral obtido caracteriza-se por dois aspectos principais. Primeiro, (...), o
material de propaganda fascista nesse país preocupa-se pouco com questões políticas
concretas e tangíveis. A esmagadora maioria dos pronunciamentos de todos os agitadores é
direcionada ad hominem. Eles baseiam-se obviamente mais em cálculos psicológicos do que
na intenção de angariar seguidores através da colocação racional de fins racionais. O termo
“incitador da turba” [rabble rouser] (...) é adequado na medida em que exprime a atmosfera
de agressividade emocional e irracional propositalmente promovida por nossos pretensos
Hitlers. Se é um descaramento chamar as pessoas de “turba” [rabble], é precisamente o
objetivo do agitador transformar essas mesmas pessoas em “turba”, isto é, multidões
tendentes à ação violenta sem nenhum fim político sensato, e a criar a atmosfera do pogrom.
O propósito universal desses agitadores é instigar metodicamente o que, desde o famoso livro
de Gustave Le Bon, é comumente conhecido como “a psicologia das massas”.221

“Agressividade emocional e irracional” – eis aí a condição básica da manipulação


das massas. A emergência de emoções reprimidas, regressivas ou primitivas é conditio
sine qua non de qualquer manobra que tenha como finalidade conduzir indivíduos
maciçamente agrupados a determinadas convicções e atitudes, pois é necessário esgotar
a vida anímica de tal modo que o pensamento – a hesitação – não tenha chance alguma
de ocupar espaço no frenetismo. A figuração de uma pessoa que age como uma máquina
descontrolada de destilação e expressão objetivamente caricata de emoções confusas e
sempre extremas, como notou Victor Klemperer no que concernia à figura pública de
Hitler durante os anos da guerra222, é o modelo recorrente do agitador populista que,
mesmo falando, está gritando, ou seja, usurpando toda e qualquer possibilidade de
atenção de seu público para qualquer coisa que não seja o pretenso conteúdo de verdade
absoluta que seu discurso sem intervalos exprime. É evidente que tal discurso só
conseguirá acolhida em um ambiente de completa indigência emocional, no qual os
impulsos de morte estejam completamente à flor da pele social. E. Rechardt traduz tal
estado coletivo de ânimo psicanaliticamente através da noção de “libido não ligada”,
carreadora de ímpetos auto e heterodestrutivos:

A libido não ligada e sem finalidade é perturbadora. As relações quantitativas, o fator tempo
ou ritmo, são, por isto, significativos. Quando a qualidade de libido mal ligada ultrapassa a
capacidade que cada indivíduo tem de a ela se acomodar num determinado momento, em
virtude, por exemplo, de um aumento brutal, isto será vivido como uma perturbação. Isto

CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA


SEMINÁRIO - 2020
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intensifica muito os diversos derivados da pulsão de morte. Quanto mais o caos e a


impotência são ameaçadores, mais estes derivados correm o risco de serem graves. 223

Tal discurso fascista se constitui assim, necessariamente, em um feixe anárquico


de enunciados terminantes, indubitáveis sempre, exatamente como é a sempre indubitável
a culpa expressa de uma vez por todas pelo Oficial sobre o prisioneiro que será supliciado
na máquina de A colônia penal224. A linguagem, nesse nível de mobilização de massas
(“psicologia de massas”), nunca contém dúvidas, apenas certezas; o discurso é
completamente saturado por certezas definitivas, configurando um bloco compacto e sem
fissuras que é continuamente impelido na direção dos expectadores.
Tais expectadores, porém, se configuram em um arranjo particular, do qual sua
singularidade foi retirada, ou nunca lhes esteve presente, no sentido em que nunca dela
puderam dispor para se construírem a si mesmos em um plano de autonomia mínimo tal
como expresso por Kant nos dias inaugurais da Aufklärung, ou seja, superar, por sua
própria coragem, a condição de “minoridade” – ausência de pensamento e linguagem
(Unmündigkeit) autônomos –, assumindo a responsabilidade pela própria linguagem , ou
seja, pelo pensamento autônomo que se expressa no tempo 225.
Essa configuração específica é o que faz necessário que outras lógicas de coesão
entre as mônadas seja mobilizada, e é exatamente no aproveitamento da imaturidade
psíquica de cada mônada, na condição de fragmento de um todo social não organizado,
que se constitui a possibilidade de enfeixa-las em um sentido de pretensa “verdade”:

Uma vez que o vínculo libidinal entre membros das massas obviamente não é de natureza
sexual não inibida, surge o problema de quais mecanismos psicológicos transformam a
energia sexual primária em sentimentos que mantêm as massas coesas. Freud lida com o
problema analisando os fenômenos cobertos pelos termos “sugestão” e “sugestionabilidade”.
Ele reconhece a sugestão como o “abrigo” ou “véu” que oculta “relações amorosas”. É
essencial que a “relação amorosa” por trás da sugestão permaneça inconsciente. Freud insiste
no fato de que em grupos organizados, tais como o exército ou a igreja, não há menção ao
amor de qualquer tipo entre os membros, ou é expresso somente de forma sublimada e
indireta, através da mediação de algumas imagens religiosas em cujo amor os membros se
unem e cujo amor universal se supõe que eles imitem em sua atitude recíproca. 226

O amor é, sempre, tabu; o psiquismo desenvolve diversionismos infinitos para que


um tal sentimento radicalmente subversivo, imparável, destruidor da rigidez do mundo,
possa aflorar de outro modo do que coberto pelos mil véus simbólicos e mediatizantes,
aos quais, por sua vez, o amor – ou algo que o emula ou se lhe assemelha – pode se

CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA


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entregar. Trata-se de um mecanismo primitivo e recorrente, que já se encontra presente


na aurora das expressões idolátricas227. Só existe idolatria quando inexiste amor.

Parece significativo que na sociedade de hoje, com suas massas fascistas integradas
artificialmente, exclui-se quase completamente referência ao amor. Hitler recusou o papel
tradicional do pai amoroso e o substituiu integralmente pelo negativo da autoridade
ameaçadora. O conceito de amor foi transferido para a noção abstrata de Alemanha e
raramente mencionado sem o epíteto de “fanático”, através do qual até mesmo este amor
obteve um círculo de hostilidade e agressividade contra aqueles que estão fora dele. Um dos
princípios básicos da liderança fascista é manter a energia libidinal primária em um nível
inconsciente, de modo a desviar suas manifestações de uma forma adequada a fins políticos.
Quanto menos uma ideia objetiva, tal como a salvação religiosa, desempenha um papel na
formação de massas e quanto mais a manipulação de massas se torna o único fim, tanto mais
o amor completamente não inibido precisa ser recalcado e transformado em obediência. Há
muito pouco no conteúdo da ideologia fascista que poderia ser amado.228

No fascismo, especificamente – mas não somente nele – ocorre uma característica


inversão: de amor a autoritarismo. O notável é perceber que, em um nível de análise mais
sutil, trata-se de trazer à tona a eterna tentação combinatória da amálgama entre amor e
autoridade suprema – como bem expressaram alguns grandes teólogos medievais, que se
aproximavam de Deus cum amore et horrore. No jogo complexo de projeções e
consequências dessas para a mônada psiquicamente imatura ou indigente, amar se
metamorfoseia em obedecer. E todo obedecer, nesse sentido, conduz finalmente à
naturalização do autoritarismo.

O padrão libidinal do fascismo e toda a técnica dos demagogos fascistas são autoritários. É
aqui que as técnicas do demagogo e do hipnotizador coincidem com o mecanismo
psicológico através do qual os indivíduos são levados a se submeter às regressões que os
reduzem a meros membros de um grupo.229

O resultado final é que o pensamento está como que definitivamente afastado da


arena da realidade, despossuído de sua capacidade de intervenção na constituição dessa
mesma realidade, pois representaria a subversão extrema. A propaganda fascista “é
psicológica por causa de seus objetivos irracionais e autoritários, que não podem ser
alcançados por meio de convicções racionais, mas somente através do despertar
habilidoso de ‘uma parte da herança arcaica do sujeito’”230, e tem por meta final a
recolocação no centro de referência do imaginário (agora extirpado de seus potencias
traços racionais) “o pai primitivo onipotente e ameaçador”.231 O que aqui está em jogo são
processos identificatórios fracassados e bem-sucedidos em seu desenrolar232, cuja luta,
sem vencedores, acaba por desembocar em lógicas idealizantes, ou melhor,
mitologizantes.233 “trata-se de uma promessa de salvação – “isso, mais uma vez,
CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA
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corresponde à semelhança da imagem do líder com um engrandecimento do sujeito: ao


fazer do líder seu ideal, ele ama a si mesmo, por assim dizer, mas se livra das manchas de
frustração e mal-estar que desfiguram a imagem de seu próprio eu empírico”234.
Porém, nenhuma mônada psiquicamente imatura ou perturbada sobrevive
isoladamente; constituir-se em aglomerado é condição necessária à sua própria
sobrevivência235, de modo que o fascismo, por evidente, expressa essa mesma lógica:

Este padrão de identificação através de idealização, caricatura da solidariedade verdadeira e


consciente, é, entretanto, coletiva. Ele é efetivo em grande quantidade de pessoas com
disposições caracterológicas e tendências libidinais semelhantes. A comunidade do povo
fascista corresponde exatamente à definição por Freud de um grupo como sendo “um número
de indivíduos que colocaram um e o mesmo objeto no lugar de seu ideal do eu e,
consequentemente se identificaram reciprocamente em seu eu” (...). A imagem do líder, por
sua vez, toma de empréstimo, por assim dizer, da força coletiva sua onipotência primitiva
paterna.236

E, na figura do líder, tais condições necessitam assumir uma posição de


visibilidade, ou seja, de referência possível ao aglomerado frágil das mônadas que
desejam hipotecar a ele seu desejo:

Uma das características mais conspícuas dos discursos dos agitadores, a saber, a ausência de
um programa positivo e de qualquer coisa que eles pudessem “dar”, como também a
paradoxal prevalência de ameaça e recusa, são assim explicadas: o líder somente pode ser
amado se ele mesmo não amar. Por outro lado, Freud está consciente de outro aspecto da
imagem do líder que aparentemente contradiz o primeiro. Embora apareça como super-
homem, o líder precisa, ao mesmo tempo, operar o milagre de aparecer como uma pessoa
mediana, tal como Hitler posava como uma união de King Kong e barbeiro suburbano. Isso
também é explicado por Freud através de sua teoria do narcisismo. (grifo nosso). 237

Temos então o protótipo do “homem comum”, do “homem médio”, do “pequeno


grande homem”, mobilizado continuamente pelas lideranças fascistas para,
pretensamente, resolver a estranha confusão criada pela combinação entre o homem
medíocre, de um lado, e o super-homem, do outro – entre “King Kong e barbeiro
suburbano” – que se cria entre esses dois extremos:

Assim, até mesmo os impressionantes sintomas de inferioridade do líder, suas semelhanças


com atores canastrões e psicopatas associais são antecipados na teoria de Freud. Em prol
daquelas partes da libido narcísica do seguidor que não foram investidas na imagem do líder,
pois permanecem ligadas ao eu do próprio seguidor, o super-homem precisa ainda refletir o
seguidor e aparecer como sua “ampliação”. Consequentemente, um dos dispositivos básicos
da propaganda fascista personalizada é o conceito do “pequeno grande homem”, uma pessoa
que sugere tanto onipotência quanto a ideia de que é apenas mais um do povo, um norte-
americano pleno e viril, não malucado por riqueza material ou espiritual. A ambivalência
psicológica auxilia a operar o milagre social. A imagem do líder satisfaz o duplo desejo do
seguidor em se submeter à autoridade e ser ele mesmo a autoridade. Isso convém a um mundo

CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA


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em que o controle irracional é exercido ainda que tenha perdido sua evidência interna devido
ao esclarecimento universal. As pessoas que obedecem aos ditadores também percebem que
estes são supérfluos. Elas reconciliam essa contradição ao assumirem que elas mesmas são o
opressor brutal. (grifo nosso) 238

A manutenção de um tal imaginário, porém, não é exatamente fácil. Tal


manutenção depende de uma dupla e obstinada recorrência discursiva e comportamental;
por um lado, cumpre liquidar o Outro de qualquer modo, ou seja, ocorre a necessidade
imperiosa de mobilizar forças contínuas da massa fascista contra os de baixo e os de fora
– contra o Outro, contra todos os Outros: “a tendência de pisar nos de baixo, que se
manifesta de forma tão clara na perseguição das minorias fracas e desamparadas, é tão
franca quanto o ódio contra quem está de fora. Na prática, ambas as tendências muito
frequentemente estão juntas”239.
Por outro lado, a única possibilidade de manutenção de uma certa coesão estável
na multidão fixada em seus mitos é enfatizar continuamente as formas em detrimento dos
conteúdos, reforçando a cada momento o conhecido ditado popular: “quanto maior a
forma, menor o conteúdo”. Entram aqui em combinação pelo menos duas categorias
essenciais para a compreensão psicanalítica da realidade: a compulsão à repetição e a
questão sadomasoquista:

Os fascistas, até o último e menor dos demagogos, enfatizaram continuamente cerimônias


ritualísticas e diferenciações hierárquicas. Quanto menos se legitima a hierarquia na
constituição de uma sociedade industrial altamente racionalizada e quantificada, tanto mais
hierarquias artificiais sem nenhuma raison d’être [razão de ser] objetiva são construídas e
impostas rigidamente pelos fascistas por razões puramente psicotécnicas. Pode-se
acrescentar, entretanto, que esta não é a única fonte libidinal envolvida. Assim, estruturas
hierárquicas se coadunam com desejos de caráter sadomasoquista. A famosa fórmula de
Hitler, Verantwortung nach oben, Autorität nach unten [“responsabilidade para com os de
cima, autoridade para com os de baixo”] racionaliza muito bem esta ambivalência do
caráter.240

A análise permite inferir que, no fundo, o fascismo como movimento de massas é


essencialmente um chafurdar em sofrimentos e desejos, conduzindo-os, enfeixados, em
uma direção que possa ser útil aos donos do poder, como veremos no próximo capítulo.
Tal tarefa de enfeixamento e manipulação é “facilitada pelo quadro mental de todos
aqueles extratos da população que sofrem de frustração sem sentido e, portanto,
desenvolvem uma mentalidade mesquinha e irracional”241. Afinal,

Pode muito bem ser o segredo da propaganda fascista que ela simplesmente tome os homens
pelo que eles são: verdadeiros filhos da cultura de massa padronizada de hoje, em grande

CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA


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parte subtraídos de sua autonomia e espontaneidade, em vez de se colocar metas cuja


realização transcenderia o status quo psicológico não menos que o social.242

E, em sendo verdadeira tal hipótese, o processo de aglutinação fascista pode se


aproveitar desse elemento facilitador que, aliás, corresponde ainda uma vez às lógicas de
tautologia e compulsão à repetição que lhe são inerentes,

A propaganda fascista precisa apenas reproduzir a mentalidade existente para seus próprios
propósitos – ela não precisa induzir uma mudança –, e a repetição compulsiva, que é uma de
suas características mais importantes, irá se coordenar com a necessidade por sua reprodução
contínua.243

...visto que “ela se apoia absolutamente na estrutura total, bem como em cada traço
particular do caráter autoritário, que é ele mesmo o produto de uma internalização dos
aspectos irracionais da sociedade moderna.”244

Em suma, na expressão do fascismo reencontramos a tensão entre pulsão de vida


e pulsão de morte, ora recobertas por inúmeras camadas culturais e discursivas que
cumpre desvelar, agudamente expressa em um modelo que, numa voragem totalizante e
mobilização de forças tanáticas – na qual se unem as dimensões tautológicas, repetitivas,
fixadas, hipertróficas, de uma percepção de mundo –, se empenha no processo de
estabelecer uma espécie de atalho irracional do contingente apavorante ao absoluto da luz
total, que coincide com o absoluto da sombra total, numa Totalidade unitária ou unidade
total do real.

Quando os líderes se tornam conscientes da psicologia de massas e a tomam em suas próprias


mãos, ela deixa de existir em certo sentido. Essa potencialidade está contida no construto
básico da psicanálise, na medida em que, para Freud, o conceito de psicologia é
essencialmente negativo. Ele definiu o âmbito da psicologia pela supremacia do inconsciente
e postula que o isso deve se tornar eu. A emancipação do homem em relação às leis
heterônomas de seu inconsciente seria equivalente à abolição de sua “psicologia”. O fascismo
impele a essa abolição no sentido oposto, por meio da perpetuação da dependência em vez
da realização da potencial liberdade, através da expropriação do inconsciente pelo controle
social, em vez de tornar os sujeitos conscientes de seu inconsciente. Isso porque, enquanto a
psicologia sempre denota algum aprisionamento do indivíduo, ela também pressupõe
liberdade no sentido de certa autossuficiência e autonomia do indivíduo. (grifo nosso) 245

O exame dessas condições e circunstâncias de realidade, de “fraternidade de


humilhação geral”246, que mostra logo a seguir o abismo de insegurança, sofrimento,
medo e depressão que povoa as mônadas desesperadas que hipotecaram a si mesmas a
uma lógica da vida falsa, quer dizer, da falsa promessa de felicidade a partir da renúncia

CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA


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a toda possibilidade de felicidade – “é provavelmente a suspeita desse caráter fictício de


sua própria “psicologia de grupo” que torna as multidões fascistas tão impiedosas e
inalcançáveis. Se elas parassem para refletir por um segundo, toda a encenação se
despedaçaria e elas entrariam em pânico”247 – que configura finalmente um cenário de
horror – uma figura de Totalidade – cuja substantia é a falsidade.
Em conferência realizada na Universidade de Viena em 1967 e recentemente
publicada na forma de livro, Adorno retorna à temática do fascismo real e potencial, “uma
vez que sua condição primeira, a concentração do capital, segue em plena vigência” 248.
Retoma a questão do ponto de vista do desejo inconsciente das massas por “catástrofe e
desgraça”249; aponta a recriação de termos panfletários e estigmatizantes e que servem a
manobras ideológicas250 e aponta novamente para a característica essencial do fascismo,
a propaganda no sentido de uma técnica de psicologia das massas251. Mais de cinquenta
anos depois, em uma atmosfera tóxica e doentia de uma sociedade ensandecida que se
alimenta de um ideal vulgar de realidade, “Vulgäridealismus”252 - não temos porque
duvidar da precisão de tais diagnósticos.
Enfim, um teatro sempre prestes a pegar fogo: essa é a realidade de facto da
situação fascista ao longo de sua existência, com seus antecedentes e consequentes. É
possível que, no mais profundo extrato de uma leitura social-filosófica do fenômeno do
fascismo, nos deparemos ainda uma vez com nosso velho conhecido, o Todestrieb
original, o impulso ou pulsão de morte, que assume agora, em uma atmosfera doentia e
mitológica, as roupagens e paramentos arcaicos do Hades, do Geena, do Inferno e
assemelhados: um lugar no qual toda e qualquer promessa de vida verdadeira fracassou
definitivamente e a morte, incapaz de morrer completamente, se autotortura no
emaranhado doente de desejos abortados e esperanças desvanecentes.

***

Embora apareça como super-homem, o líder precisa, ao mesmo tempo, operar


o milagre de aparecer como uma pessoa mediana, tal como Hitler posava
como uma união de King Kong e barbeiro suburbano

T. ADORNO253

(...) uma certa conformidade com o mundo – ou, ainda, o uso do mundo -, que,
neste início de século, consiste em não querermos saber de nada senão de nós.
Este processo obedece a uma genealogia e tem um nome: a corrida para a

CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA


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separação e para a ruptura. Esta desenvolve-se num cenário de angústia e de


aniquilação. Muitos são efetivamente aqueles que, hoje em dia, estão
assustados. Receiam ter sido invadidos e estar à beira da extinção. Povos
inteiros sentem que se esgotaram os recursos necessários para continuarem a
assumir a sua identidade. Pensam que já não há exterior e que, para se
protegerem da ameaça e do perigo, é preciso multiplicar clausuras. Fazendo
os possíveis para não se lembrarem de nada, sobretudo dos seus próprios
crimes e maldades, fabricam maus objectos que, efetivamente, acabam depois
por assombrá-los, e dos quais tentam de imediato e violentamente
desembaraçar-se.
A. MBEMBE 254

“O senhor se comporta pior que uma criança. O que quer, afinal? Quer
acabar logo com seu longo e maldito processo discutindo conosco, guardas,
sobre identidade e ordem de detenção? Somos funcionários subalternos que
mal conhecem um documento de identidade e que não têm outra coisa a ver
com seu caso a não ser vigiá-lo dez horas por dia, sendo pagos para isso. É
tudo o que somos, mas a despeito disso somos capazes de perceber que as altas
autoridades a cujo serviço estamos, antes de determinarem uma detenção
como esta, se informam com muita precisão sobre os motivos dela e sobre a
pessoa do detido. Aqui não há erro. Nossas autoridades, até onde as conheço,
e só conheço seus níveis mais baixos, não buscam a culpa na população, mas,
conforme consta na lei, são atraídas pela culpa e precisam nos enviar – a nós,
guardas. Esta é a lei. Onde haveria erros?”
F. KAFKA255

Embora as condições sociais e objetivas para o surgimento e manutenção do


fascismo sejam de grande complexidade, envolvendo um arco de fatores de ordens
diversas que se conjugam no resultado final, é possível estabelecer algumas invariantes
que se manifestam em cada momento, situação e região no qual o fascismo se mostra
como tal, ou que constituem o caldo de cultura ideal para uma tal ocorrência. Umberto
Eco, numa famosa conferência na Columbia University, em 25 de abril de 1995 – “O
fascismo eterno” –, arrolou algumas dessas invariantes e destacou, a cada vez, o que de
mais decisivo e marcante as constitui. Ele vai chamar o “fascismo eterno” de Ur-fascismo,
utilizando a partícula alemã “Ur”, que significa proto-origem ou ancestralidade absoluta.
Destaca, então, na primeira característica presente no “fascismo eterno”, justamente essa
nota de culto ao antigo, ao indatável, à tradição:

1. A primeira característica de um Ur-Fascismo é o culto da tradição. O tradicionalismo é


mais velho que o fascismo. Foi típico também do pensamento contrarreformista católico
depois da Revolução Francesa, mas nasceu no final da idade helenística como uma reação ao
racionalismo grego clássico. (...) Na bacia do Mediterrâneo, povos de religiões diversas
(todas aceitas com indulgência pelo Panteão romano) começaram a sonhar com uma
revelação recebida na aurora da história humana. Essa revelação permaneceu longo tempo
escondida sob o véu de línguas então esquecidas. Havia sido confiada aos hieróglifos
egípcios, às runas dos celtas, aos textos sagrados, ainda desconhecidos, das religiões
asiáticas. Essa nova cultura tinha que ser sincretista. "Sincretismo" não é somente, como
CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA
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indicam os dicionários, a combinação de formas diversas de crenças ou práticas. Uma


combinação assim deve tolerar contradições. Todas as mensagens originais contêm um
germe de sabedoria, e quando parecem dizer coisas diferentes ou incompatíveis, é apenas
porque todas aludem, alegoricamente, a alguma verdade primitiva.256

Ou seja, aquilo que se conforma como que ao natural ao longo do surgimento,


consolidação e, inclusive, desaparecimento das culturas, a multiplicação de origem que
apenas remete a uma origem única na condição de heranças diversas dessa origem única,
herança que necessariamente irá se diferenciar do “original” ou pretenso original, no
melhor sentido do termo “sincretismo”, deve se situar e obter validade na condição de
uma alusão alegórica à proto-origem, à origem das origens. “Tolerar contradições” é uma
das condições essenciais para a tradição se constituir em verdadeira tradição, uma vez
que a multiplicidade de recepções ao longo do tempo necessariamente divergirá de
qualquer ponto de referência fixo e se enriquecerá com o passar da história que também
é, assim, a história da tradição, a história de uma tradição. Quando tal história é negada,
através da fabulação de uma possibilidade de acessar de um salto a origem “limpa”, pura,
intocada, perfeita, o que temos é a revelação indireta de um temor relativamente ao
próprio decorrer da história, ou das histórias. Tal temor da história, das tradições diversas,
do tempo – da realidade – é característico de qualquer mentalidade fascista. A tradição
se petrifica em tradicionalismo e abre as portas a processos regressivos de denegação da
cultura. O paradoxal é que, para manter acesa a chama dessa tradição fabulosa, é
necessário arquitetar, exatamente, um arcabouço sincretista ad hoc que, de algum modo,
valide à audiência a proposta de leitura do passado que está sendo oferecida, tal como
caracteriza Eco:

Como consequência, não pode existir avanço do saber. A verdade já foi anunciada de uma
vez por todas, e só podemos continuar a interpretar sua obscura mensagem. É suficiente
observar o ideário de qualquer movimento fascista para encontrar os principais pensadores
tradicionalistas. A gnose nazista nutria-se de elementos tradicionalistas, sincretistas, ocultos.
A mais importante fonte teórica da nova direita italiana, Julius Evola, misturava o Graal com
os Protocolos dos Sábios de Sião, a alquimia com o Sacro Império Romano. O próprio fato
de que, para demonstrar sua abertura mental, a direita italiana tenha recentemente ampliado
seu ideário acrescentando De Maistre, Guénon e Gramsci é uma prova evidente de
sincretismo. (...) Quem percorrer as prateleiras das livrarias americanas que trazem a
indicação "New Age" encontrará até mesmo Santo Agostinho, o qual, que eu saiba, não era
fascista. Mas o próprio fato de juntar Santo Agostinho e Stonehenge, isto é um sintoma de
Ur-Fascismo.257

O que temos, então, é um novo estilo de sincretismo, que se expressa como


combinação improvável de elementos não apenas diversos, mas, muitas vezes,

CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA


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mutuamente excludentes. A condição outrora conhecida como “pós-moderna” teve, sem


dúvida, correntes alimentadas por essas fontes, hoje difusas e facilmente encontráveis.
Decorre daí, então, como consequência absolutamente lógica em termos de
movimentação história, uma nova cisão improvável, artificialmente mantida conjugada,
entre tecnicismo e arcaísmo; é exatamente esse ponto que caracteriza a diferença entre o
fascismo, o nazismo e os movimentos românticos em geral258. A técnica, a máquina, o
“futurismo” como movimento artístico e cultural, sempre contaram com a predileção de
nazistas e fascistas, mas apenas no nível de visibilidade e funcionalidade. É o que destaca
Eco na segunda das características do Ur-fascismo:

2. O tradicionalismo implica a recusa da modernidade. Tanto os fascistas quanto os nazistas


adoravam a tecnologia, enquanto os pensadores tradicionalistas em geral a rejeitam como
negação dos valores espirituais, tradicionais. Contudo, embora o nazismo tivesse orgulho de
seus sucessos industriais, seu elogio da modernidade era apenas o aspecto superficial de uma
ideologia baseada no "sangue" e na "terra" (Blut und Boden). A recusa do mundo moderno
era camuflada como condenação do modo de vida capitalista, mas referia-se principalmente
à rejeição do espírito de 1789 (ou de 1776, obviamente). O iluminismo e a idade da razão
eram vistos como o início da depravação moderna. Nesse sentido, o Ur-Fascismo pode ser
definido como "irracionalismo".259

E o Ur-fascismo, que também pode ser definido como irracionalidade e culto à


irracionalidade, faz jus a tal epíteto através de uma de suas mais marcadas características:
o ódio ao intelecto, ou seja, ao pensamento, à dúvida e à hesitação 260. Afora o linguajar
permanentemente defensivo e agressivo – nesse caso sinônimos – com relação ao
pensamento, o fascismo se utiliza do culto do agir absoluto, ou seja, do agir que ocupa
todas as energias e espaços possíveis e se valida por si só desde si:

3 - O irracionalismo depende também do culto da ação pela ação. A ação é bela em si e,


portanto, deve ser realizada antes de e sem nenhuma reflexão. Da declaração atribuída a
Goebbels ("Quando ouço falar em cultura, pego logo a pistola") ao uso frequente de
expressões como "porcos intelectuais", "cabeças-ocas", "esnobes radicais", "as universidades
são um ninho de comunistas", a suspeita em relação ao mundo intelectual sempre foi um
sintoma de Ur-Fascismo. Os intelectuais fascistas oficiais estavam empenhados
principalmente em acusar a cultura moderna e a inteligência liberal de abandono dos valores
tradicionais.261

Nesse sentido, o intelectual é eminentemente reacionário, ou seja, é reacionário


antes de ser intelectual, ou apenas é intelectual porque é reacionário. Está de tal modo
investido de sua causa, que sua apologia desta é permanente e toda consideração de ordem
lógica é relegada a um plano secundário. Essa é possivelmente a razão pela qual se ouve,
de espíritos em princípio cultos e refinados, paradoxos e contradições completamente

CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA


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discordantes do que se esperaria; não é o que é dito que importa, mas, antes, para que o
dito é dito. Por isso, ocorre ainda uma vez uma espécie de salto mortal, do conteúdo
intelectual das ideias ao presumido conteúdo moral das ações. Por isso, todo
reacionarismo – e o fascismo – é essencialmente moralista – ou seja, não é apenas por
causas instrumentais ou de mobilização inconsciente que o moralismo habita seus porta-
vozes, mas sim porque o moralismo, na posição de estratégia de fuga do pensamento em
direção ao absoluto de uma pretensa condição pura, é uma condição de sobrevivência do
reacionarismo e do fascismo.

4. Nenhuma forma de sincretismo pode aceitar críticas. O espírito crítico opera distinções, e
distinguir é um sinal de modernidade. Na cultura moderna, a comunidade científica percebe
o desacordo como instrumento de avanço dos conhecimentos. Para o Ur-Fascismo, o
desacordo é traição.262
É evidente que, por trás de todo este mecanismo defensivo, a tentativa de defesa
se dirige contra o que é pretensamente a possibilidade de pura destruição: a diferença – o
Outro. Todo fascismo é expressão de ódio-medo ao Outro.

5. O desacordo é, além disso, um sinal de diversidade. O Ur-Fascismo cresce e busca o


consenso utilizando e exacerbando o natural medo da diferença. O primeiro apelo de um
movimento fascista ou que está se tornando fascista é contra os intrusos. O Ur-Fascismo é,
portanto, racista por definição.263

O Ur-fascismo, como fenômeno de expressão sociocultural disfórica que se


traveste de roupagens eufóricas numa sociedade doente264 consegue se desenvolver
através da combinação de frustrações individuais daqueles a quem anteriormente
chamamos de “mônadas psíquicas” confrontadas com fragilidades internas e externas das
quais provém grande sofrimento e que, portanto, são mobilizáveis através de promessas
de redenção; as “classes médias” são o ovo de serpente no qual o totalitarismo pode
sempre surgir ou ressurgir, uma vez que socialmente frágeis e historicamente irrelevantes
praticamente in toto de um ponto de vista de protagonismos políticos decisivos ao longo
da história.

6. O Ur-Fascismo provém da frustração individual ou social. Isso explica por que uma das
características típicas dos fascismos históricos tem sido o apelo às classes médias frustradas,
desvalorizadas por alguma crise econômica ou humilhação política, assustadas pela pressão
dos grupos sociais subalternos. Em nosso tempo, em que os velhos "proletários" estão se
transformando em pequena burguesia (e o lumpesinato se autoexclui da cena política), o
fascismo encontrará nessa nova maioria o seu auditório.265

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E, nesse contexto, tal mobilização recorre novamente, ou de um modo mais


sofisticado, a teorias de conspiração, o lado sombrio da falsa euforia proativa da ação pela
ação. Assim como não existe Ur-fascismo sem o medo como fonte principal e remota,
igualmente não existe sem a formulação de estruturas, movimentos ou indivíduos que
possam encarnar um inimigo poderoso e conspirador. O mais clássico é o “comunismo”,
embora, ao longo do tempo e conforme as variações da história, uma série de outros
construtos tenham vindo a ocupar esse espaço essencial do imaginário fascista.

7. Para os que se veem privados de qualquer identidade social, o Ur-Fascismo diz que seu
único privilégio é o mais comum de todos: ter nascido em um mesmo país. Esta é a origem
do "nacionalismo". Além disso, os únicos que podem fornecer uma identidade às nações são
os inimigos. Assim, na raiz da psicologia Ur-Fascista está a obsessão da conspiração,
possivelmente internacional. Os seguidores têm que se sentir sitiados. O modo mais fácil de
fazer emergir uma conspiração é fazer apelo à xenofobia. Mas a conspiração tem que vir
também do interior: os judeus são, em geral, o melhor objetivo porque oferecem a vantagem
de estar, ao mesmo tempo, dentro e fora. Na América, o último exemplo de obsessão pela
conspiração foi o livro The New World Order, de Pat Robertson.266

Mais uma contradição extrema se insinua na produção desses construtos


conspiratórios, algo só possível dada a feição abertamente irracional agora assumida
pelos discursos e mensagens: a união paradoxalmente congruente entre força e fraqueza,
entre potência e indigência, que na verdade, como tudo no fascismo, só é possível a partir
de uma determinada “racionalização do irracional”. Veja-se a precisa análise de Karl
Polanyi a respeito da ascensão do fascismo histórico:

Um país que se avizinhava da fase fascista revelava sintomas e entre eles não era necessária
a existência de um movimento fascista propriamente dito. Entre esses indícios importantes
estavam a difusão de filosofias irracionais, estéticas raciais, demagogia anticapitalista,
opiniões heterodoxas sobre a moeda, crítica do sistema partidário, a depreciação amplamente
difundida do “regime”, ou qualquer que seja o nome dado ao conjunto democrático
vigente.267

Tal só foi e é possível pela característica das linguagens fascistas, sua volatilidade
instrumental e seu contorcionismo congênito, tal como bem demonstram os testemunhos
de Eichmann e as análises de Klemperer 268.

8. Os adeptos devem sentir-se humilhados pela riqueza ostensiva e pela força do inimigo.
Quando eu era criança, ensinavam-me que os ingleses eram o "povo das cinco refeições":
comiam mais frequentemente que os italianos, pobres, mas sóbrios. Os judeus são ricos e
ajudam-se uns aos outros graças a uma rede secreta de assistência mútua. Os adeptos
precisam, contudo, ser convencidos de que podem derrotar o inimigo. Assim, graças a um
contínuo deslocamento de registro retórico, os inimigos são, ao mesmo tempo, fortes demais
e fracos demais. Os fascismos estão condenados a perder suas guerras, pois são
constitucionalmente incapazes de avaliar com objetividade a força do inimigo.269
CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA
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79

Eco destaca, a seguir, um elemento central que traz novamente à cena a expressão
do Todestrieb; a esse aparecimento, ou reaparecimento, denomina muito argutamente de
Armagedom ou solução final. Ressurge o dito “viva la muerte!” com todo o seu peso. As
promessas de uma paz subsequente são evidentemente vazias, pois a Totalidade da guerra
total, consequência da “vida para a luta”, ou seja, da vida para a morte, se expressa na
destruição absoluta, ação de todas as ações:

9. Para o Ur-Fascismo, não há luta pela vida, mas antes “vida para a luta”. Logo, o pacifismo
é conluio com o inimigo; o pacifismo é mau porque a vida é uma guerra permanente.
Contudo, isso traz consigo um complexo de Armagedom: a partir do momento em que os
inimigos podem e devem ser derrotados, tem que haver uma batalha final, depois da qual o
movimento assumirá o controle do mundo. Esta solução final implica uma sucessiva era de
paz, uma idade de ouro que contestaria o princípio da guerra permanente. Nenhum líder
fascista conseguiu resolver essa contradição.270

Também característico do Ur-fascismo, e analisado por Adorno na seção acima, o


desprezo pelos fracos – o “autodesprezo”, na linguagem dos constitutivos psíquicos reais
– é aspecto inerente a toda e qualquer expressão fascista. É um dos momentos em que
lógicas de projeção entram em cena de modo impressionantemente eloquente, e se
verifica como sintoma claro em cada indivíduo particular que toma para si essa máxima
como princípio de vida: todas essas mônadas psíquicas são fascistas que ainda não
encontraram, ao contrário de Eichmann, o Movimento que os redimisse.

10. O elitismo é um aspecto típico de qualquer ideologia reacionária, enquanto


fundamentalmente aristocrática. No curso da história, todos os elitismos aristocráticos e
militaristas implicaram o desprezo pelos fracos. O Ur-Fascismo não pode deixar de pregar
um "elitismo popular". Todos os cidadãos pertencem ao melhor povo do mundo, os membros
do partido são os melhores cidadãos, todo cidadão pode (ou deve) tornar-se membro do
partido. Mas não podem existir patrícios sem plebeus. O líder, que sabe muito bem que seu
poder não foi obtido por delegação, mas conquistado pela força, sabe também que sua força
se baseia na debilidade das massas, tão fracas que têm necessidade e merecem um
“dominador”. Dado que o grupo é organizado hierarquicamente (segundo um modelo
militar), qualquer líder subordinado despreza seus subalternos e, por sua vez, cada um deles
despreza os seus subordinados. Tudo isso reforça o sentido de elitismo de massa.271

Retorna então, requalificada, a promessa tanática – igualmente fanática272 – da


morte como aspiração final de uma partícula social – um indivíduo multiplicado na
multidão fascista, que “encontra” a si mesmo apenas nessa massa de fragilidade:

11. Nesta perspectiva, cada um é educado para tornar-se um herói. Em qualquer mitologia,
o "herói" é um ser excepcional, mas na ideologia Ur-Fascista o heroísmo é a norma. Este
culto do heroísmo é estreitamente ligado ao culto da morte: não é por acaso que o mote dos
CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA
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falangistas era: "!Viva la muerte!" Para a gente normal, a morte é desagradável, mas é preciso
enfrentá-la com dignidade; para os crentes, é um modo doloroso de atingir à felicidade
sobrenatural. Mas o herói Ur-Fascista, ao contrário, aspira à morte, anunciada como a melhor
recompensa para uma vida heroica. O herói Ur-Fascista espera impacientemente pela morte.
Note-se, porém, que sua impaciência provoca com maior frequência a morte dos outros.273

Eco destaca então a coincidência entre a aspiração à guerra – heroica -, os jogos


hierárquicos, a rigidez interna de um restolho de vida metamorfoseado em puro
sofrimento, encobrimento permanentemente sua disforia por assim dizer com uma euforia
retórica desmedida, sempre pronta a explodir em espasmos, e um constitutivo essencial
na manutenção coletiva desse estado de coisas, ou seja, da ausência de amor, acima
apontada: a invidia penis, sempre pronta a se mostrar real através de suas manifestações
de violência:

12. Como tanto a guerra permanente quanto o heroísmo são jogos difíceis de jogar, o Ur-
Fascista transfere sua vontade de poder para questões sexuais. Esta é a origem de seu
machismo (que implica desdém pelas mulheres e uma condenação intolerante de hábitos
sexuais não conformistas, da castidade à homossexualidade). Como o sexo também é um
jogo difícil de jogar, o herói Ur-Fascista joga com as armas, que são seu Ersatz fálico: seus
jogos de guerra se devem a uma invidia penis permanente.274

No Ur-fascismo, a ausência de qualidades do “homem comum”, do “homem


médio”, do “pequeno grande homem” – a ausência de distinção em meio à massa, a
ausência de talento intelectual capaz de permitir que alguém se reconstrua psiquicamente
ou intelectualmente a partir da aceitação madura de suas frustrações, debilidades e medos,
a ausência de talentos que possam conduzir a um reconhecimento social adequado – tudo
isso se transforma, como por milagre, em mais um salto irracional, em qualidade, na
ficção da “qualidade de povo” que o líder interpreta – um construto extremamente frágil,
porém, mais uma vez, essencial para que o estado de coisas fascista – ou proto-fascista –
possa perdurar.

13. O Ur-Fascismo baseia-se em um "populismo qualitativo". Em uma democracia, os


cidadãos gozam de direitos individuais, mas o conjunto de cidadãos só é dotado de impacto
político do ponto de vista quantitativo (as decisões da maioria são acatadas). Para o Ur-
Fascismo, os indivíduos enquanto indivíduos não têm direitos, e "o povo" é concebido como
uma qualidade, uma entidade monolítica que exprime "a vontade comum". Como nenhuma
quantidade de seres humanos pode ter uma vontade comum, o líder se apresenta como seu
intérprete. Tendo perdido seu poder de delegar, os cidadãos não agem, são chamados apenas
pars pro toto, para assumir o papel de povo. O povo é, assim, apenas uma ficção teatral. Para
ter um bom exemplo de populismo qualitativo, não precisamos mais da Piazza Venezia ou
do estádio de Nuremberg.275

CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA


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81

E tudo isso se baseia em uma destilação de “narrativas” apropriadas ad hoc. Mais


uma vez, o que temos são retorções da linguagem, ditos absolutos, enunciados
indubitáveis que ocupam o lugar do tempo da linguagem, ou seja, da verbalidade do
verbo. A doença da linguagem, da qual tratamos acima 276, se configura, agora, em uma
realidade não só palpável, mas inescapável; é asfixiante, pois tudo, no Ur-fascismo como
no fascismo explícito em suas manifestações, se constitui em um processo de asfixia da
vida enquanto vida.

14. O Ur-Fascismo fala a "novilíngua ". A "novilíngua" foi inventada por Orwell em 1984,
como língua oficial do Ingsoc, o socialismo inglês, mas certos elementos de Ur-Fascismo são
comuns a diversas formas de ditadura. Todos os textos escolares nazistas ou fascistas se
baseavam em um léxico pobre e em uma sintaxe elementar, com o fim de limitar os
instrumentos para um raciocínio complexo e crítico. Devemos, porém, estar prontos a
identificar outras formas de novilíngua, mesmo quando tomam a forma inocente de um talk
show popular. (...) O Ur-Fascismo ainda está ao nosso redor, às vezes em trajes civis. 277

Lembremos e acentuemos, ainda, uma característica sine qua non do fascismo,


que lhe é essencial e sem a qual não pode absolutamente ser explicado: ele se constitui
em um baluarte de pânico induzido contra possíveis mudanças econômicas e sociais em
um determinado estado ou sociedade; é a única forma que tem de cooptar gente que em
nada aproveitará de sua vigência e que não possui condições cognitivas mínimas para
avaliar claramente sua própria situação individual ou comunitária em tal dado estado ou
sociedade, aqueles segmentos da população que tradicionalmente se tem denominado de
“pobres de direita”, o que inclui não apenas pobres, mas também amplas camadas da
classe “média” ou remediada. Essas populações constituem exatamente a massa de
manobra, a quantidade de votos real ou virtual de que o fascismo se utiliza para se
imiscuir nos círculos oficiais de poder inclusive de democracias formais, tal como
aconteceu na Alemanha a partir de 1929 e em vários lugares já neste século XXI. Karl
Polanyi esclarece definitivamente tal núcleo críptico do fascismo histórico, e sua análise
é perfeitamente válida no que concerne às variadas reconfigurações contemporâneas de
fascismos, Ur-fascismos e protofascismos, que nisso não se alteram historicamente com
o passar do tempo e o renascer da tentação totalitária (críptico, acentuemos, pois é
evidente que nunca poderia ser claramente enunciado em programas ou propaganda que,
no fascismo, apenas alguns ganham: os ganhadores de sempre):

Uma falácia (...) enganava aqueles críticos do fascismo – e eles eram a grande maioria – que
o descreviam como uma extravagância isenta de qualquer ratio político. Mussolini alegava
ter evitado o bolchevismo na Itália, dizia-se, mas as estatísticas comprovaram que a onda de

CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA


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greves já havia diminuído mais de um ano antes da Marcha sobre Roma. Trabalhadores
armados haviam ocupado as fábricas em 1921, admitia-se, mas seria essa uma razão válida
para desarmá-los em 1923, quando eles já haviam abandonado, há muito, os muros onde
montavam guarda? Hitler sustentava ter salvo a Alemanha do bolchevismo. Mas não se podia
demonstrar, então, que o fluxo de desemprego que precedera a sua ascensão a chanceler já
havia diminuído antes mesmo da sua subida ao poder? Alegar que ele havia impedido aquilo
que não mais existia quando ele apareceu, como se argumentava então, era contrário à lei de
causa e efeito que também deve contar na política. (...) Na verdade, tanto na Alemanha quanto
na Itália, a história do período imediato pós-guerra provou que o bolchevismo não tinha a
mais remota possibilidade de sucesso. Mas ele provou também, conclusivamente, que, numa
emergência, a classe trabalhadora, seus sindicatos profissionais e partidos podiam abandonar
as regras do mercado que estabeleciam a liberdade do contrato e a santidade da propriedade
privada como algo absoluto (...) A fonte do medo latente que, numa conjuntura crucial, se
transformou no pânico fascista, não foi o perigo ilusório de uma revolução comunista, mas
o fato inegável de que as classes trabalhadoras estavam em posição de forçar intervenções
possivelmente ruinosas (ao status quo, R. T. S. Grifo nosso).278

Fascismo e capitalismo constituem uma Janus sempre rediviva, ou compartilham


de uma mesma essentia spinozana, e a mágica de seus respectivos ideólogos tem sido
tentar mostrar que seriam entidades mutuamente excludentes, pois a visão de uma face
oblitera a visão de outra. Todavia, como em tudo no fascismo – e no tardo-capitalismo –
tal pretensão não resiste a uma investigação minimamente séria. Tal quimera é fruto de
tempos perturbados, momentos agudos de doença civilizatória. Tal corpo de crenças é
expressão do delírio tanático no qual a cultura dos séculos XX e XXI se viu e se vê
imersa.

***

O fascismo, em qualquer de seus tipos, do Ur-fascismo aos protofascismos


onipresentes, é, sempre foi e sempre será o eterno refúgio dos medíocres e idólatras. Essa
é sua promessa de felicidade. A incapacidade de perceber a realidade se transforma em
álibi para a criação de uma espécie de realidade paralela, a qual, porém, não subsiste à
menor reflexão que se desvie um milímetro que seja de seu delírio auto-referente. Ao
longo da história, interesses diversos têm se aproveitado dessa (in)capacidade fabuladora,
com as consequências que a história conhece. Uma doença cultural, uma proliferação
fúngica do Todestrieb em um universo de seres incapazes de perceber o suicídio que
pretendem e cometem pelo assumir críptico ou explícito de “Viva la muerte”, ou seja, que
sofrem em um tal nível de profundidade que nem ao menos são capazes de perceber o

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quanto sofrem – eis o Ur-fascismo, eis o fascismo hoje e sempre, eis uma expressão
eloquente da Totalidade da morte.

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VI - A idolatria material e a verdadeira face de Mamon

Manda nos povos, decide nos reinos, ordena guerras, compra mercenários,
vende o sangue, causa mortes, destrói cidades, submete povos, assedia
fortalezas, humilha os cidadãos, preside os tribunais, apaga o direito,
confunde o justo e o injusto e, firme até à morte, põe em crise a fé, viola a
verdade, dissipa a honradez, rompe os vínculos do afeto, destrói a inocência,
sepulta a piedade, destroça o carinho, desmantela a amizade. O que mais?
Este é Mamon, senhor da iniquidade, que domina iniquamente tanto o corpo
como o espírito dos homens.
PEDRO CRISÓLOGO, séc. V d. C.279

Todas as riquezas descendem da injustiça e sem que um haja perdido o outro


não pode ganhar. Por isso me parece verdadeiro aquele provérbio comum: “O
rico ou é injusto ou é herdeiro da injustiça”.
SÃO JERÔNIMO, séc. V d. C.280

Diga-me, de onde vem tua riqueza? De quem a recebeste? E esse, de quem a


recebeu? Do avô, dirás, do pai. E poderás, ao longo da árvore genealógica,
demonstrar a justiça daquelas posses? Certamente não poderás, pois
necessariamente seu princípio e sua raiz foram as injustiças.
SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, séc. IV d. C. 281

Há uns quatro anos que, para acabar de perder esta terra, se descobriu uma
boca do inferno pela qual entra grande quantidade de gente, que a cobiça dos
espanhóis sacrifica a seu deus, e é uma mina de prata que se chama Potosí.
DOMINGOS DE SANTO TOMÁS (1550)282

O mistério de uma estranha persistência do núcleo mítico da economia


continua praticamente indevassado.
H. ASSMANN; F. HINKELAMMERT283

Ao denunciar o princípio da produção visando lucro “como não natural ao


homem”, por ser infinito e ilimitado, Aristóteles estava apontando, na
verdade, para o seu ponto crucial, a saber, a separação de uma motivação
econômica isolada das relações sociais nas quais as limitações eram
inerentes.
K. POLANYI284

A economistas e não-economistas, a perduração do chamado “núcleo mítico” da


economia capitalista liberal e, especialmente, neoliberal, aparece continuamente como
um mistério. Como uma profissão de crença em uma justificativa objetivamente falsa de
um argumento imaginário – “o mito da economia autorregulada está, hoje, praticamente
extinto”285 – que ocupa o epicentro do universo de circulação de dinheiro, posses e bens,
que domina o mundo, que aglutina poder e violência, culto inaudito ao capital – fixação
que já era execrada por Adam Smith (“os rendimentos e o lucro devoram os salários, e as
classes superiores da nação oprimem a inferior”286) –, cuja tendência totalizante e

CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA


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destruidora da biosfera e da vida já era denunciada em 1820 por nada menos que J.-B de
Lamarck287, ideia cujo núcleo é incapaz de conviver com qualquer categoria de felicidade,
sendo antes um obstáculo a ela 288, que cultiva em seu ventre os horrores potenciais e reais
do fascismo, na denúncia poética – intraduzível, a rigor –, de B. Brecht289, que é
insustentável do ponto de vista da análise de milhares de economistas e especialistas das
mais diversas áreas – e que, salvo raríssimas exceções, apenas desfruta de defensores
entre os funcionários e fantoches do capital, bem pagos exatamente para sustentar
“teoricamente” o mito oco do mercado autorregulado 290, que acabaria por espalhar
riqueza a todos -, como tal ideia ou ideologia pode manter, ainda hoje, uma pretensão de
narrativa coerente? Como, após as análises fundamentais de Marx 291, as derivações
keynesianas, o fracasso objetivo de sua aplicação observado invariavelmente em tantos
lugares nos quais foram impostas, as crises especulativas maiores de 1929 e 2008, tais
ideias ainda atinjam um certo público para além dos poucos legitimamente interessados
em tal fábula que não resiste nem a fatos nem a argumentos? Como subsistem ideias
incapazes de lidar com o fato de que “...hoje, não se conta com base intelectual respeitável
para a proposição de que os mercados, por si, produzem resultados eficientes, para não
falar em equitativos”292? Como, no arco das análises de T. Piketty, pelo menos desde A
economia da desigualdade (1997) a O capital no século XXI (2013), ainda há quem
conteste frontalmente dados cabalmente objetivos por ele apresentados, não obstante o
imenso abalo nas crenças que sua obra já apresentou e que só tende a crescer com seu
recente Capital et Idéologie (2019) e suas propostas “escandalosas” de um verdadeiro
processo de redistribuição de renda?
É evidente, portanto, que estamos aqui não às voltas com uma disputa racional em
torno a fatos e ideias – como o provam milhares de obras sérias já escritas sobre o assunto
–, mas, sim, com uma profissão de fé absoluta em algo impalpável que assume uma
pretensa solidez apenas e na medida em que é adorado por todos os meios e
circunstâncias imagináveis e que, portanto, exclui a priori qualquer consideração
racional, dúvida ou questionamento de validade: uma espécie de religião fundamentalista
sans trêve et sans merci. Se, nos capítulos anteriores, as dimensões da idolatria se
mostram bastante fugazes e por vezes sutis, subterrâneas, abscônditas, disfarçadas em um
determinado conjunto de ideias e acontecimentos de difícil penetração, no presente
capítulo temos uma situação bastante diversa: é exatamente porque a questão da idolatria
– no caso, adoração incondicional de Mamon – assume uma posição de absoluto relevo
no panorama a ser analisado, que suas derivações podem ser inferidas com extrema
CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA
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segurança, permitindo a possibilidade de sua reconstituição histórica ao longo dos tempos


até hoje, sem a qual as presentes condições tenebrosas de vida e de morte na terra não
podem ser realmente compreendidas.
Nosso objetivo no presente capítulo é rastrear como o capitalismo paulatinamente
se impõe como absoluto ao longo dos últimos séculos desde seu surgimento nas origens
da modernidade e, especialmente, como chega ao ponto que hoje ocupa, na pretensão de
colonização total da matéria e do espírito, ou seja, a expressão mais cabal da Totalidade.
E isso no sentido de evidenciar que tal colonização total da matéria e do espírito não é um
fenômeno inusitado ou algum tipo de loucura generalizada, mas a consequência
estritamente lógica da essentia spinozana do capitalismo como tal. Em outros termos,
trata-se de mostrar que o capitalismo, de suas origens ao tardo-capitalismo atual, mais
conhecido como neoliberalismo, não poderia se desenvolver senão como o fez, pois se
trata de uma especificidade trófica da categoria atrás examinada de Totalidade.

***

Para que fique claro o conceito de “neoliberalismo”, no formato histórico-social


de “ordem neoliberal social”, com o qual estaremos trabalhando ao longo deste capítulo,
utilizamos, em termos gerais, a circunscrição estabelecida por Duménil e Lévy:

A ordem neoliberal internacional – conhecida como globalização neoliberal – foi imposta a


todo o mundo, desde os principais países capitalistas do centro até os países menos
desenvolvidos da periferia, geralmente ao custo de severas crises, como na Ásia e na América
Latina durante as décadas de 1990 e 2000. Como em todos os estágios do imperialismo, os
principais instrumentos dessas relações internacionais de poder, além da violência econômica
direta, são a corrupção, a subversão e a guerra. E o principal instrumento político é sempre a
instalação de um governo local pró-imperialista. A colaboração das elites do país dominado
é fundamental, bem como, no capitalismo contemporâneo, a ação de instituições
internacionais, como a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), o Fundo
Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial e a Organização Mundial do Comércio
(OMC). Economicamente, o objetivo dessa dominação é a extração de “excedentes” pela
imposição de preços baixos aos recursos naturais e investimentos no exterior, seja ele em
bolsa ou o investimento externo direto. O fato de os países da periferia desejarem vender seus
recursos naturais e receber investimentos externos não altera a natureza das relações de
dominação, assim como, no interior de um país, os trabalhadores se dispõem a vender sua
força de trabalho, a fonte última de lucro. 293

É-nos igualmente fundamental a exposição das entranhas sociais e psicológicas


desse movimento econômico-metafísico tal como elas realmente se dão nas sociedades
contemporâneas:

CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA


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Nesta zona intermediária entre uma etapa difusa do capitalismo e uma teoria econômica bem
definida, propomos que o neoliberalismo é uma forma de vida. Enquanto tal, ele compreende
uma gramática de reconhecimento e uma política para o sofrimento. Ao passo que liberais
clássicos, descendentes de Jeremy Bentham e Stuart Mill, consideravam que o sofrimento,
seja do trabalhador, seja do cidadão, é um problema que atrapalha a produção e cria
obstáculos para o desenvolvimento e para o cálculo da felicidade como máximo de prazer
com mínimo de desprazer, a forma de vida neoliberal descobriu que se pode extrair mais
produção e mais gozo do próprio sofrimento. Encontrar o melhor aproveitamento do
sofrimento no trabalho, extraindo o máximo de engajamento no projeto com o mínimo de
fidelização recíproca da empresa, torna-se regra espontânea de uma vida na qual cada relação
deve apresentar um balanço. Dessa forma não existem zonas protegidas “fora do mercado”,
e quem é contra isso é contra o neoliberalismo, e quem é contra o neoliberalismo é a favor
do Estado. Tudo é mercado. Educação é investimento. Saúde é segurança. Relações são
networking. Imagem é marketing pessoal. Cultura é entretenimento. Pessoa é o
empreendedor de si mesmo.294

E ainda, expresso de forma lapidar, “o neoliberalismo é uma ordem social


destinada a gerar rendimentos para as faixas superiores de renda, não para investimento
na produção, muito menos para o progresso social”295.
J. Stiglitz, analisando as linhas gerais do clássico de K. Polanyi A grande
transformação – as origens de nossa época296, destaca a circunscrição geral da falácia
constitutiva da essência fabulosa (ideologia) que habita o coração do tardo-capitalismo:

A análise de Polanyi deixa claro que as doutrinas populares da economia do gotejamento


(tricke-dow economics) – segundo a qual todos, inclusive os pobres, se beneficiam com o
crescimento – têm pouca base histórica. Ele também esclarece a interação entre ideologias e
interesses particulares: como a ideologia do livre mercado foi subsidiária dos novos
interesses industriais, e como esses interesses exploraram essa ideologia de forma seletiva,
invocando a intervenção governamental quando necessária para a consecução dos próprios
interesses.297

De fato, a obra de Polanyi destaca uma metamorfose central na concepção de


mundo e de sociedade – a transformação a que ele se refere – que permitiu que,
historicamente, uma tal ideologia se inscrevesse no núcleo da concepção de realidade
vigente hoje em dia:

Nossa tese é que a ideia de um mercado autorregulável implicava uma rematada utopia. Uma
tal instituição não poderia existir em qualquer tempo sem aniquilar a substância humana e
natural da sociedade; ela teria destruído fisicamente o homem e transformado seu ambiente
num deserto. Inevitavelmente, a sociedade teria que tomar medidas para se proteger, mas,
quaisquer que tenham sido essas medidas, elas prejudicariam a autorregulação do mercado,
desorganizariam a vida industrial e, assim, ameaçariam a sociedade em mais de uma maneira.
Foi esse dilema que forçou o desenvolvimento do sistema de mercado numa trilha definida
e, finalmente, rompeu a organização social que nela se baseava. (...) As civilizações, como a
própria vida, resultam da interação de um grande número de fatores independentes, os quais,
como regra, não se reduzem a instituições circunscritas. Na verdade, procurar traçar o
mecanismo institucional da queda de uma civilização pode parecer uma tarefa irrealizável.
CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA
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(...) Todavia, é isto o que estamos nos propondo. Ao fazê-lo, estamos conscientemente
ajustando nosso objetivo à extrema singularidade do assunto. A civilização do século XIX
foi única, de fato, precisamente porque ela se centralizou num mecanismo institucional
definido. (...) Nenhuma explicação poderá satisfazer se não levar em conta a rapidez do
cataclisma. Como se as forças da mudança estivessem sendo contidas durante um século,
uma torrente de acontecimentos se precipita sobre a humanidade. Uma transformação social
de alcance planetário é coroada por guerras de um tipo sem precedente, nas quais uma série
de estados entra em colapso e os contornos de novos impérios se delineiam num mar de
sangue. Entretanto, esse fato de violência demoníaca é apenas sobreposto numa corrente
rápida e silenciosa de mudança que engole o passado muitas vezes sem sequer uma marola
na superfície. Uma análise racional da catástrofe deve levar em conta tanto a ação
tempestuosa como a tranquila dissolução. 298

O que Polanyi aqui aponta é a base de sua teoria geral. O que ele mostra em suas
análises é que, de um elemento interno e necessário às sociedades e comunidades, das
mais rudimentares às mais complexas, a mercancia, a troca de mercadorias, a utilização
primitiva do dinheiro, evoluirá ao longo da modernidade – o tempo per definitionem da
sociedade burguesa-capitalista expressa em seu apogeu nos países centrais a partir da
segunda metade do século XIX299, em suas derivações até hoje. E isso em um ritmo
extraordinário, e o mercado, originalmente expressão interna de uma determinada
sociedade e que a ela servia em última análise, sofre uma metamorfose hipertrofiante (a
grande transformação) e acaba por involucrar a própria sociedade de onde proveio,
transformando-se num seu reflexo com dimensões concretas – a revolução industrial, a
lógica do liberalismo clássico em suas expressões materiais, a produção crescente de bens
e produtos, culminando nos sistemas de produção em massa, e dimensões abstratas – a
retomada de elementos clássicos em narrativas de justificação do estatuído e a legitimação
recorrente da sociedade baseada no livre mercado identificando-a com a ideia de
sociedade tout court.

Isto nos leva à nossa tese (...): que as origens do cataclisma repousam na tentativa utópica do
liberalismo de estabelecer um sistema de mercado autorregulável. Uma tese como esta parece
investir esse sistema de poderes quase místicos; implica, nem mais nem menos, que o
equilíbrio-de-poder, o padrão-ouro e o estado liberal, esses elementos fundamentais da
civilização do século XIX, em última análise, foram todos eles modelados por uma matriz
comum, o mercado autorregulável. (...) A afirmativa parece extrema, ou pelo menos chocante
em seu materialismo crasso. Todavia, a peculiaridade da civilização cujo colapso
testemunhamos foi, precisamente, o fato dela se basear em fundamentos econômicos. (...)
Somente a civilização do século XIX foi econômica em um sentido diferente e distinto, pois
ela escolheu basear-se num motivo muito raramente reconhecido como válido na história
das sociedades humanas e, certamente, nunca antes elevado ao nível de uma justificativa de
ação e comportamento na vida cotidiana, a saber, o lucro. O sistema de mercado
autorregulável derivou unicamente desse princípio. (...) (grifo nosso) 300

CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA


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89

***

Nas definitiones de sua Ethica, Spinoza define o que vem a ser, segundo seu
entendimento, essentia:

Digo pertencer à essência de uma certa coisa aquilo que, se dado, a coisa é necessariamente
posta e que, se retirado, a coisa é necessariamente retirada; em outras palavras, aquilo sem o
qual a coisa não pode existir nem ser concebida e vice-versa, isto é, aquilo que sem a coisa
não pode existir nem ser concebido.301

A essentia do capitalismo se constitui, desde sempre, no lucro. Em outros termos,


o lucro é a ética radical do capitalismo no sentido estrito do termo, ou seja, aquilo que,
antecedendo algo em tudo e em todos os termos, materiais e temporais, permite que este
algo seja o que é na apreensão presente daquilo que se mostra como é, num
desdobramento da ideia de ethica qua prima philosophia de E. Levinas302. E isso pela
simples razão de que em termos de expressão de realidade, essentia e ética radical
apresentam-se como racionalmente congruentes. A percepção empírica de tal fato é
extremamente simples e até mesmo autoevidente; de fato, o lucro é o que permite que o
capitalismo sobreviva, pois, sem ele, não se pode dar o trofismo essencial do capitalismo,
o crescimento através do reinvestimento – que só o lucro proporciona.
A questão que então se coloca é perceber, historicamente, um duplo movimento.
Por um lado, nenhum capitalismo sem lucro; por outro, a crescente absolutização do
lucro, que culmina na involucração da sociedade pelo mercado, destacada por Polanyi,
precipita a dimensão de autofagia do próprio capitalismo, que passa a dispensar tudo o
que não é o lucro em si, recaindo numa espécie de tautologia autodevoradora303. Desse
modo, percebe-se uma lógica estrita na substituição crescente e intempestiva do
capitalismo industrial, em suas diversas formas, pelo capitalismo financeiro, cada vez
mais dominante e determinante nas últimas duas ou três décadas, em termos globais. Tal
lógica é clara e compreensível quando se leva em conta a evolução histórica do fenômeno
de concentração fundamental no lucro como essentia permanentemente revalidada em
sua autoafirmação e objeto de sentido absoluto, semelhante a uma “dialética do espírito
absoluto”, na qual objetos, construções, gente, vida, etc., é dispensado de existência,
passando de uma condição de e condição para a uma condição de estorvo ao crescimento
absoluto, ou seja, a sua auto-totalização, quando tudo o demais é por assim dizer
CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA
SEMINÁRIO - 2020
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aufgehoben na pureza sintética do absoluto – ou seja, do lucro.304 É um passo, portanto,


como já dissemos, que nada tem de acidental e nem poderia ser diferente, pois segue a
expressão trófica do processo de totalização da Totalidade meramente pensada; exprime-
se como momento necessário e, por evidente, ínsito ao próprio germe do capitalismo
florescente na velha Holanda que apresenta a primeira de todas as crises capitalistas – a
crise especulativa do mercado de tulipas – que se repetem sazonalmente e o têm mantido
em seu movimento de automanutenção ao longo dos últimos séculos, permitindo a
sobrevivência do próprio capitalismo numa lógica schumpeteriana avant la lettre.
Polanyi é arguto ao destacar a complexidade do progresso dos instrumentos de
produção – a expressão lídima da revolução industrial – em sua significação por assim
dizer, social estrito senso. Ele aborda de modo histórico e objetivo aquelas temáticas tão
caras a Walter Benjamin, Charles Dickens, Victor Hugo e tantos quantos perceberam a
grandeza da tempestade em curso, traduzindo-a em diferentes linguagens que, hoje,
constituem a possibilidade de sua compreensão.

No coração da Revolução Industrial do século XVIII ocorreu um progresso miraculoso nos


instrumentos de produção, o qual se fez acompanhar de uma catastrófica desarticulação nas
vidas das pessoas comuns. (...) Tentaremos desenredar os fatores que determinam as formas
dessa desarticulação, que teve a sua pior fase na Inglaterra há cerca de um século. Que
"moinho satânico" foi esse que triturou os homens transformando-os em massa? Quanto pode
se atribuir, como causa, às novas condições físicas? E quanto se pode atribuir às dependências
econômicas, que funcionavam sob novas condições? Qual foi o mecanismo por cujo
intermédio foi destruído o antigo tecido social e tentada, sem sucesso, uma nova integração
homem-natureza? (...) A filosofia liberal jamais falhou tão redondamente como na
compreensão do problema da mudança. Animada por uma fé emocional na espontaneidade,
a atitude de senso comum em relação à mudança foi substituída por uma pronta aceitação
mística das consequências sociais do progresso econômico, quaisquer que elas fossem. As
verdades elementares da ciência política e da arte de governar foram primeiro desacreditadas,
e depois esquecidas. Não é preciso entrar em minúcias para compreender que um processo
de mudança não dirigida, cujo ritmo é considerado muito apressado, deveria ser contido, se
possível, para salvaguardar o bem-estar da comunidade. Essas verdades elementares da arte
de governar tradicional, que muitas vezes refletiam os ensinamentos de uma filosofia social
herdada dos antepassados, foram apagadas do pensamento dos mestres do século XIX pela
ação corrosiva de um utilitarismo cru, aliada a uma confiança não crítica nas alegadas
propriedades autocurativas de um crescimento inconsciente. (...) O liberalismo econômico
interpretou mal a história da Revolução Industrial porque insistiu em julgar os
acontecimentos sociais a partir de um ponto de vista econômico. (grifo nosso) 305

A sua tese aparece aqui, então, já bastante demarcada. O ponto de vista econômico
se absolutiza e, assim, permite a absolutização expressa do que constitui o essencial – a
essentia – da movimentação econômica capitalista então em curso: o lucro. A sociedade
passa a ser vista desde o prisma da economia, e não o contrário. Porém, o principal é o

CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA


SEMINÁRIO - 2020
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modo como tal aconteceu tal fenômeno. Não se trata, em nenhuma hipótese, de alguma
lógica derivada de um corpo de ideias aplicado às novas condições de produção de bens.
Trata-se, antes, de uma configuração de realidade que toma corpo através de novas formas
de interação entre as pessoas e a realidade, crescentemente intermediadas por
máquinas.306

Calculamos que uma avalanche de desarticulação social, superando em muito a que ocorreu
no período dos cercamentos, desabou sobre a Inglaterra; que esta catástrofe foi simultânea a
um vasto movimento de progresso econômico; que um mecanismo institucional inteiramente
novo estava começando a atuar na sociedade ocidental; que seus perigos, que atacaram até a
medula quando primeiro apareceram, na verdade jamais foram superados, e que a história da
civilização do século XIX consistiu, na sua maior parte, em tentativas de proteger a sociedade
contra a devastação provocada por esse mecanismo. A Revolução Industrial foi apenas o
começo de uma revolução tão extrema e radical quanto as que sempre inflamavam as mentes
dos sectários, porém o novo credo era totalmente materialista, e acreditava que todos os
problemas humanos poderiam ser resolvidos com o dado de uma quantidade ilimitada de
bens materiais. (...) A história já foi contada inúmeras vezes: como a expansão dos mercados,
a presença do carvão e do ferro, assim como de um clima úmido propício à indústria do
algodão, a multidão de pessoas despojadas pelos novos cercamentos do século XVIII, a
existência de instituições livres, a invenção das máquinas e outras causas interagiram de
forma tal a ocasionar a Revolução Industrial. Já se demonstrou, conclusivamente, que
nenhuma causa única merece ser destacada da cadeia e colocada à parte como a causa daquele
acontecimento súbito e inesperado. (...) Mas como pode essa mesma Revolução ser definida?
Qual foi sua característica básica? Será que foi o aparecimento de cidades fabris, a
emergência de favelas, as longas horas de trabalho das crianças, os baixos salários de certas
categorias de trabalhadores, o aumento da taxa populacional, ou a concentração das
indústrias? Imaginamos que todos esses elementos foram apenas incidentais em relação a
uma mudança básica, o estabelecimento da economia de mercado, e que a natureza dessa
instituição não pode ser inteiramente apreendida até que se compreenda o impacto da
máquina numa sociedade comercial. Não pretendemos afirmar que foi a máquina que causou
esta mudança, mas insistimos que quando as máquinas complicadas e estabelecimentos
fabris começaram a ser usados para a produção numa sociedade comercial, começou a
tomar corpo a ideia de um mercado autorregulável. (grifos nossos) 307

Essa intermediação crescentemente naturalizada das máquinas se constituindo


como intermediárias das situações de vidas das pessoas, de produtores e compradores, de
ser humano e terra, de ser humano e sociedade, de ser humano e cultura, acaba então por
desembocar em uma nova categoria generalizante, aquela de mercadoria. O que era parte
perfeitamente delimitada da vida de relação social e vital, um determinado conteúdo de
existência demarcado e definido no interior de um universo maior, se transforma
crescentemente numa espécie de entidade metafísica-concreta total que transforma
continuamente tudo nela mesma.

Na verdade, a produção das máquinas numa sociedade comercial envolve uma


transformação que é a da substância natural e humana da sociedade em mercadorias.
CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA
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Embora fantástica, a conclusão é inevitável – nada menos do que isto servirá os seus
propósitos. Obviamente, a desarticulação causada por tais engenhos deve desorganizar as
relações humanas e ameaçar de aniquilamento o seu habitat. (grifo nosso) 308

Aqui se demonstra a confusão fatal, ou melhor, o nascimento de um mito ou de


uma “ficção”, no dizer de Polanyi, que sustentará a ideologia defendida pelos defensores
do “mercado total”309, ou seja, que fará com que a expressão de algum modo visível do
foco único da realidade capitalista e tardo-capitalista, agora onipresente – a mercadoria,
que, por evidente, remete à essentia “invisível” que a sustenta – o lucro –, assuma a
posição de hipóstase indiscutível de toda realidade envolvida em sua elaboração,
fabricação, distribuição, etc.: trabalho, terra, dinheiro – enfim, vida em geral.

É com a ajuda do conceito de mercadoria que o mecanismo do mercado se engrena aos vários
elementos da vida industrial. As mercadorias são aqui definidas, empiricamente, como
objetos produzidos para a venda no mercado; por outro lado, os mercados são definidos
empiricamente como contatos reais entre compradores e vendedores. Assim, cada
componente da indústria aparece como algo produzido para a venda, pois só então pode
estar sujeito ao mecanismo da oferta e procura, com a intermediação do preço. Na prática,
isto significa que deve haver mercado para cada um dos elementos da indústria; que nesses
mercados cada um desses elementos é organizado num grupo de oferta e procura. Esses
mercados - e eles são numerosos, são interligados e constituem Um Grande Mercado. (...) O
ponto crucial é o seguinte: trabalho, terra e dinheiro são elementos essenciais da indústria.
Eles também têm que ser organizados em mercados e, de fato, esses mercados formam uma
parte absolutamente vital do sistema econômico. Todavia, o trabalho, a terra e o dinheiro
obviamente não são mercadorias. O postulado de que tudo o que é comprado e vendido tem
que ser produzido para venda é enfaticamente irreal no que diz respeito a eles. Em outras
palavras, de acordo com a definição empírica de uma mercadoria, eles não são mercadorias.
Trabalho é apenas um outro nome para atividade humana que acompanha a própria vida que,
por sua vez, não é produzida para venda, mas por razões inteiramente diversas, e essa
atividade não pode ser destacada do resto da vida, não pode ser armazenada ou mobilizada.
Terra é apenas outro nome para a natureza, que não é produzida pelo homem. Finalmente, o
dinheiro é apenas um símbolo do poder de compra e, como regra, ele não é produzido mas
adquire vida através do mecanismo dos bancos e das finanças estatais. Nenhum deles é
produzido para a venda. A descrição do trabalho, da terra e do dinheiro como mercadorias
é inteiramente fictícia. (...) Não obstante, é com a ajuda dessa ficção que são organizados os
mercados reais do trabalho, da terra e do dinheiro. Esses elementos são, na verdade,
comprados e vendidos no mercado; sua oferta e procura são magnitudes reais, e quaisquer
medidas ou políticas que possam inibir a formação de tais mercados poriam em perigo, ipso
facto, a autorregulação do sistema. (grifos nossos) 310

O que se observa, então, é que algo completamente fátuo e desconectado da raiz


empírica de seu próprio conceito – a mercadoria em relação ao conceito empírico de
mercadoria – assume uma solidez inaudita, ocupando todos os espaços de vida das
relações sociais e naturais, e, com isso, determinando o valor de realidade de cada coisa,

CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA


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objeto, existência ou ação; por óbvio, tal valor de realidade é atribuído segundo os
critérios que se espera de uma mercadoria mesma, o que significa que o que existe ou
existe na configuração atribuída de mercadoria, ou não existirá.311 Marx já havia
antecipado tal fenômeno na sua análise clássica do dinheiro:

Como o dinheiro não leva na fronte o que com ele se compra, tudo, seja ou não mercadoria,
se converte em dinheiro. Tudo se pode comprar e vender. A circulação é como uma grande
retorta social na qual se lança tudo, para sair dela cristalizado em dinheiro. E dessa alquimia
não escapam nem os ossos dos santos nem outras res sacrosanctae extra commercium
hominum muito mais toscas. Como no dinheiro desaparecem todas as diferenças qualitativas
das mercadorias, esse nivelador radical elimina, por sua vez, todas as diferenças.312

Polanyi, por sua vez, mostra a lógica de uma crescente indistinção entre o (antigo)
dinheiro e a (nova) mercadoria, já que o dinheiro se transforma em uma forma de
mercadoria:

A ficção da mercadoria, portanto, oferece um princípio de organização vital em relação à


sociedade como um todo, afetando praticamente todas as suas instituições, nas formas mais
variadas. Isto significa o princípio de acordo com o qual não se pode permitir qualquer
entendimento ou comportamento que venha a impedir o funcionamento real do mecanismo
de mercado nas linhas de ficção da mercadoria. (...) Ora, em relação ao trabalho, à terra e ao
dinheiro não se pode manter um tal postulado. Permitir que o mecanismo de mercado seja o
único dirigente do destino dos seres humanos e do seu ambiente natural, e até mesmo o
árbitro da quantidade e do uso do poder de compra, resultaria no desmoronamento da
sociedade. (grifo nosso)313

O uso do futuro condicional – “resultaria” – é de Polanyi, nos meados do século


XX. A nós cumpre observar a assustadora atualidade de sua asserção. É o que observamos
atualmente: a desagregação crescente das lógicas sociais, o adoecimento crescente das
relações, a devastação social e ambiental, a incapacidade cognitiva de percepção, por
parte das massas, exatamente dos processos suicidas em termos ambientais e sociais nos
quais hoje vivemos, são sintomas eloquentes da ameaça iminente do “desmoronamento
da sociedade”, ou seja, da desagregação de uma poderosa e hegemônica expressão de
Totalidade314. E isso pelas razões seguintes, cuidadosamente expostas por Polanyi:

Esta suposta mercadoria, “a força de trabalho”, não pode ser impelida, usada
indiscriminadamente, ou até mesmo não utilizada, sem afetar também o indivíduo humano
que acontece ser o portador dessa mercadoria peculiar. Ao dispor da força de trabalho de um
homem, o sistema disporia também, incidentalmente, da entidade física, psicológica e moral
do “homem” ligado a essa etiqueta. Despojados da cobertura protetora das instituições
CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA
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culturais, os seres humanos sucumbiriam sob os efeitos do abandono social; morreriam


vítimas de um agudo transtorno social, através do vício, da perversão, do crime e da fome. A
natureza seria reduzida a seus elementos mínimos, conspurcadas as paisagens e os arredores,
poluídos os rios, a segurança militar ameaçada e destruído o poder de produzir alimentos e
matérias-primas. Finalmente, a administração do poder de compra por parte do mercado
liquidaria empresas periodicamente, pois as faltas e os excessos de dinheiro seriam tão
desastrosos para os negócios como as enchentes e as secas nas sociedades primitivas. Os
mercados de trabalho, terra e dinheiro são, sem dúvida, essenciais para uma economia de
mercado. Entretanto, nenhuma sociedade suportaria os efeitos de um tal sistema de grosseiras
ficções, mesmo por um período de tempo muito curto, a menos que a sua substância humana
natural, assim como a sua organização de negócios, fosse protegida contra os assaltos desse
moinho satânico. (...) A extrema artificialidade da economia de mercado está enraizada no
fato de o próprio processo de produção ser aqui gozado sob a forma de compra e venda.
Numa sociedade comercial, não é possível outra forma de organizar a produção para o
mercado. (grifo nosso) 315

A descrição cristalina de Polanyi é tão claramente inteligível que apenas se pode


sustentar em outra ordem de realidade que aquela de racionalidades em diálogo. E, de
fato, não se trata de uma questão de racionalidade, mas de fé, como destaca M. Friedman:
“Na realidade, a causa principal das objeções à livre economia é precisamente o fato de
que realiza tão bem suas funções. Dá às pessoas o que realmente querem, e não o que um
grupo determinado pensa que deveria querer. No fundo de todas as objeções contra o livre
mercado há uma falta de fé na liberdade humana.” 316 O próprio discurso contraditório faz
parte do argumento. Não se trata de perguntar por que, se a livre economia funciona tão
bem, há objeções a ela, mas sim de afirmar que, de algum modo, quem morre de fome
por efeito colateral da livre economia está a pagar por sua “falta de fé na liberdade
humana”. Simultaneamente, a reificação absoluta de toda realidade é vista como
necessidade na economia do mercado total, segundo pretende Friedman, pois tudo é
capital: “Embora reconheçamos que todas as fontes de serviços produtivos possam ser
consideradas como capital, nossas instituições políticas e sociais levam a admitir que é
importante a distinção, para muitos problemas entre duas amplas categorias de capital: o
humano e o não-humano”.317 A diferença entre os tipos de capital é que o capital humano
não oferece a segurança de retorno do investimento que outras aplicações oferecem:

... as áreas rurais têm uma vantagem comparativa para a produção de capital humano como
também para a produção de alimentos; pois a população das zonas rurais se dedica, por assim
dizer, a duas indústrias que se exercem conjuntamente – a produção de alimentos e a de
capital humano – e mantém exportações de ambos para a cidade”. (...) Uma importante
diferença entre este e outros bens de capital está no grau em que a pessoa que faz o
investimento de capital inicial possa-se apoderar dos rendimentos da mesma. (grifo nosso)318

E, infelizmente para Friedman,


CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA
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O fato de que as fontes de capital humano não se possam nem comprar nem vender em nossa
sociedade significa (...) que o capital humano não proporciona em situações de dificuldade
uma reserva tão boa como o capital não-humano. (...) O indivíduo que investe numa máquina
pode ser dono da máquina e assim assegurar-se a obtenção da remuneração por seu
investimento. A pessoa que investe em outra pessoa não pode obter esse tipo de segurança.
(...) Devido ao marco institucional e devido às imperfeições do mercado de capitais, não
podemos esperar que o capital humano responda a pressões e incentivos econômicos da
mesma forma que o capital material.319

Portanto, com a execrável expressão “capital humano” Friedman não está


elaborando metáforas, mas designando de forma absolutamente clara que o humano é
uma espécie de capital, do qual devem derivar rendimentos como de qualquer outro
investimento. Para que melhor se compreenda a que ponto a coisificação do humano é
essencial para o pensamento neoliberal, vejamos esse outro exemplo de Friedman, na
análise de Hinkelammert:

(Segundo Friedman) “A oferta de trabalho a curto prazo para todos os usos é perfeitamente
inelástica: a oferta de trabalho disponível diariamente, se prescindirmos das correções pelas
diferentes qualidades de trabalho, é igual a 24 horas multiplicadas pelo número de pessoas”.
Nem nos piores tempos do capitalismo a oferta de trabalho foi de vinte e quatro horas, porque
isso é fisiologicamente impossível. Mas o que Friedman quer dizer não é que o homem dispõe
vinte e quatro horas por dia. O que ele quer dizer e que o homem se oferece a si mesmo vinte
e quatro horas por dia, este mesmo homem se compra essas horas diariamente a si mesmo. A
interioridade do homem transformou-se num mercado no qual o homem estabelece relações
mercantis entre dois sujeitos internos, os quais em última análise nada têm que ver um com
o outro. Um destes sujeitos é dinâmico e efetua decisões. Friedman chama-o a carteira, e
efetivamente é a interiorização, por parte do sujeito, de sua carteira de dinheiro. Esse sujeito-
carteira compra do outro sujeito, que tem preferências suas vinte e quatro horas por dia e as
atribui entre as preferências segunda a intensidade relativa destas. Dessa forma o sujeito das
preferências oferece ao sujeito-carteira vinte e quatro horas e recebe do sujeito-carteira o
que corresponde a elas. Mas como o sujeito-carteira não tem nada por si mesmo, a não ser
sua iniciativa privada, vende uma parte dessas vinte e quatro horas no mercado. Com isso
recebe um salário que agora usa para comprar as horas de ócio não trabalhadas; e devolve-as
ao sujeito das preferências com algo adicional, que são os bens de consumo que o sujeito das
preferências consome durante as vinte e quatro horas do dia. Dessa forma, o sujeito-carteira
é intermediário entre dois mercados. Um interior, no qual negocia com o sujeito das
preferências; e outro exterior, no qual negocia com outros sujeitos-carteiras, para combinar
fatores de produção.320

O que podemos observar, portanto, é que já na década de 1930-40 Polanyi


detectava perfeitamente um fenômeno usualmente entendido como característico dos fins
do século XX e início do século XXI: a colonização do espírito e do mundo da vida pela
cosmovisão capitalista a partir da compreensão da realidade como multiplicidade
infindável de mercadorias. Ou, visto de outro ângulo, o mundo totalizou-se em

CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA


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mercadoria. Por isso, o neoliberalismo e o fascismo são, de certo modo, expressões de


uma mesma lógica totalitária: são totalitarismos. Isso explica a constante presença
fascista ou proto-fascista em momentos de tensão do capitalismo, como aquele vivido nas
décadas de 1920/30 e no momento atual. O fascismo se posta como uma estrutura de
recrudescimento ideológico totalizante em torno ao capitalismo ameaçado:

Se jamais existiu um movimento político que correspondeu às necessidades de uma situação


objetiva, e que não foi resultado de causas fortuitas, ele foi o fascismo. Ao mesmo tempo, o
caráter degenerativo da solução fascista era evidente. Ela oferecia um escape a um impasse
institucional que era essencialmente semelhante em grande número de países e, no entanto,
se esse remédio fosse aplicado em todo lugar ele teria produzido uma doença que levaria à
morte. Esta é a maneira na qual perecem as civilizações (...) A solução fascista do impasse
atingido pelo capitalismo liberal pode ser descrita como uma reforma da economia de
mercado, alcançada ao preço da extinção de todas as instituições democráticas, tanto no
campo industrial como no político. O sistema econômico, ameaçado de ruptura, poderia ser
revitalizado, mas os povos ficaram sujeitos a uma reeducação que se propunha a
desnaturalizar o indivíduo e torná-lo incapaz de funcionar como unidade responsável do
corpo político. Essa reeducação, que abrangia o dogma de uma religião política que negava
a ideia da fraternidade do homem em todas as suas formas, foi alcançada através de um ato
de conversão de massa, imposta aos recalcitrantes por métodos científicos de tortura. 321

Tal aproximação, portanto, nada tem de inusitada; é antes uma estratégia de


sobrevivência do sistema. Na verdade, como já destacamos, a própria expressão da
essentia do capitalismo em sua infinita multiplicação de formas empíricas daria
necessariamente lugar a uma tal onipresença, pois se trata de um processo trófico –
hipertrófico – de um modelo ou configuração de realidade em termos de afirmação de um
modelo de totalização e de Totalidade, cuja desagregação, embora de certo modo
concomitante ao seu próprio desenvolvimento, não era, nem de longe, captável pela
imensa maioria dos “sismógrafos espirituais” da época, porém que mobilizou dimensões
inconscientes das massas medrosas em uma dimensão inaudita, o que permitiu a
tempestade fática fascista-nazista – contra a expectativa racional de alguns dos maiores
gênios da época (Freud, Husserl, etc.).322
O fato é que, exatamente nessa época conturbada do “curto século XX”
(Hobsbawm), povoada de espasmos destrutivos nos formatos de guerras centrais –
especialmente a segunda guerra mundial – e distúrbios periféricos de mesma índole,
frutos tardios da geopolítica colonialista, com a subsequente transformação geopolítica
do mundo pós-guerra e tudo o que a isso acompanha, a percepção econômica das lógicas
de realinhamento geopolítico estava necessariamente imbricada com fatores diversos de
ordens aparentemente muito diferentes, tais como a massificação central de produção
tardo-industrial, expansão do capitalismo periférico em ex-colônias de nações centrais e
CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA
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multiplicação da produção e consumo da cultura de massa. Tudo isso faz com que seja
bastante difícil a captação clara de tais lógicas econômicas em toda sua potência. É apenas
a partir dos anos 1970 do século XX que cresce a possibilidade de inteligibilidade
histórica e cultural da verdadeira relevância autonomizadora do (agora já) tardo-
capitalismo – novos modelos de organização do trabalho, e “...como a organização do
trabalho é apenas um outro termo para as formas de vida do povo comum, isto significa
que o desenvolvimento do sistema de mercado seria acompanhado de uma mudança na
organização da própria sociedade. Seguindo este raciocínio, a sociedade humana tornara-
se um acessório do sistema econômico.”323 O que se segue é um retomado e gigantesco
esforço de legitimação dessa nova “consciência” da realidade a partir da naturalização da
situação vigente em termos universais324. Isso significa a justificação reiterada, em termos
ideológicos, da possibilidade de convivência no âmago do paradoxo principal da ordem
capitalista, percebido já em seus inícios porém agudizado rapidamente desde os fins do
século XX e bem entrado o século XXI – “Para espanto dos pensadores da época, uma
riqueza nunca vista passou a ser a companheira inseparável de uma pobreza nunca vista”:

Em 1834 o capitalismo industrial estava prestes a se iniciar, e foi então introduzida a Poor
Law Reform. A Speenhamland Law, que havia resguardado a Inglaterra rural e, portanto, a
população trabalhadora em geral, contra o funcionamento total do mecanismo de mercado,
devorara parte da medula da sociedade. Na ocasião que foi revogada, grandes massas da
população trabalhadora pareciam mais espectros de um pesadelo do que seres humanos. Mas,
se os trabalhadores estavam fisicamente desumanizados, as classes dominantes estavam
moralmente degradadas. A unidade tradicional de uma sociedade cristã cedia lugar a uma
negação de responsabilidade por parte dos ricos em relação às condições dos seus
semelhantes. As Duas Nações assumiam a sua forma. Para espanto dos pensadores da época,
uma riqueza nunca vista passou a ser a companheira inseparável de uma pobreza nunca
vista. Os estudiosos proclamavam, em uníssono, a descoberta de uma nova ciência que
colocava além de qualquer dúvida as leis que governam o mundo dos homens. Em obediência
a essas leis, a compaixão não habitava mais os corações e a determinação estoica de renunciar
à solidariedade humana, em nome da maior felicidade para um número maior de pessoas,
adquiriu a dignidade de uma religião secular. (...) O mecanismo do mercado defendia seus
direitos e reivindicava seu acabamento: o trabalho humano teve que transformar-se em
mercadoria. O paternalismo reacionário tentara em vão resistir a essa necessidade. Fugindo
aos horrores da Speenhamland, os homens correram cegamente para o abrigo de uma utópica
economia de mercado.” (grifos nossos). 325

Portanto, chegamos logicamente à situação destacada por Hinkelammert:

Do ponto de vista da economia política clássica, o depauperamento e a miséria da classe


operária são evidentemente uma irracionalidade econômica, embora se sustente que é
CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA
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inevitável. Do ponto de vista da teoria econômica neoclássica não o é. Seu problema é a


eleição econômica. Que o capital tenha a sua reposição, é algo que sem dúvida esta ciência
pode afirmar. A reposição do capital é exigência da racionalidade econômica. Mas a
reposição da força de trabalho não o é. Quanto à vida humana, essa racionalidade econômica
não se ocupa dela. (...) Somente através de um longo processo a teoria econômica chega à
afirmação nítida desse desprezo pela vida humana. (grifo nosso) 326

Não se ocupa e nem poderia se ocupar da vida humana, do ambiente, ou da vida


em geral, pois é autorreferente, como todo processo de totalização. Expressão de um
paradoxo que é fruto do próprio trofismo do capitalismo. Uma síntese de tal processo de
coisificação na prática do mundo agora reduzido a um jogo de forças econômicas é
magistralmente apresentado por Hinkelammert:

É preciso saber por que se trata de transformar todos os problemas humanos em decisões de
um cálculo que um sujeito-carteira toma de frente a um sujeito de preferências. Se não serve
para explicar nada, é preciso perguntar para que serve. Uma resposta possível é que serve
para mostrar o alcance total e sem limites das relações mercantis. Trata-se de desenvolver
uma visão do mundo, na qual qualquer fenômeno está sujeito ao fenômeno mercantil sem
nenhuma zona livre, nem no interior nem no exterior da pessoa. O cálculo mercantil trata
de absorver tudo; e onde não pode estabelecer relações mercantis efetivas, estabelece-as
pelo menos de maneira imaginária. Trata-se de um totalitarismo mercantil sem limite algum,
ao qual já nada e ninguém pode escapar. Toda a depreciação humana, contida em tal
redução absoluta de todos os fenômenos humanos a uma expressão mercantil, não exprime
mais do que a depreciação que essas relações mercantis significam. São depreciação
somente do ponto de vista daquele que resiste a tal mercantilização. Do ponto de vista do
autor (Friedman, R. T. S.) não se trata de denegrir ninguém. Ele somente reduz o humano ao
mercantil e considera essa ação científica. E se a ciência denigre, o autor não tem culpa
disso. Desaparece, pois, por trás dessa ciência. Ora, para poder denegrir, seria necessário ter
uma dignidade acima do ato de denigração. Mas esta não existe. A depreciação se exerce
sobre outros exatamente no mesmo grau em que é interiorizada. (grifos nossos). 327

Assim, a criatura determina o criador – a característica central da idolatria:

Tudo isso, leva a negar uma diferença específica, sob o ponto de vista econômico, entre a
máquina e o homem. Como resultado o homem é sujeito, porque as instituições o recolhem
como tal, e não como na teoria liberal dos séculos XVIII-XIX, na qual as instituições
recolhem a subjetividade do homem anteriormente a elas. Como as instituições são as que
garantem as relações mercantis, o homem – como Friedman o vê – é sujeito enquanto é
reconhecido como tal pelo movimento das relações mercantis. O que implica que o homem
é “a criatura” das relações mercantis e não seu criador.328

Ainda:

Friedman, portanto, não pode perguntar até que ponto é necessária a mercantilização. Ele
pergunta até que ponto ela é possível. E é preciso levá-la a qualquer campo onde seja possível.
Para ele é incômodo pensar que se veja o sol, um bosque ou um parque sem pagar cada olhar.
Pergunta, pois, até que ponto seria possível pôr em tudo isso não somente um preço

CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA


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imaginário mas também um preço real. O uso de todas as ruas, estradas e parques, deveria
ter determinado preço. O fato de que isso seja impossível produz nele horror.329

A promessa do capitalismo em sua forma extrema é a promessa de um bom infinito


na tradição hegeliana, ou seja, que se auto sustente em seu processo trófico coincidindo
perfeitamente consigo mesmo em sua forma ideal acabada e materialmente estabelecida.
Quando tal não acontece – e não pode acontecer – é porque houve algum tipo de
perturbação na perseguição desse telos absoluto.
Tratamos aqui da verdadeira metafísica da contemporaneidade. Uma espécie de
“capitalismo como religião” simultaneamente tosco e ultrassofisticado, como destaca
Hinkelammert330. Uma metafísica fantasmagórica, halo invisível porém efetivo daquilo
que constitui o essencial da transformação contínua de quantidades em qualidades, o
processo que permitiu, exatamente, que “tudo” – independentemente de suas qualidades
– se transformasse em mercadorias, ou seja, em objetos comerciáveis porque
pretensamente demarcáveis quantitativamente; a vida, a morte, a dignidade, nada ficou
de fora dessa exacerbação máxima desse modelo positivístico:

O resultado é este: para chegar à liberdade, renuncia-se à aplicação da força física no


exercício da liberdade de assassinar. No caso de falta de fé na liberdade, torna-se a recorrer
a uma força física para chegar à decisão. A liberdade deve ser assegurada independentemente
da vontade das pessoas ou das maiorias. A liberdade de assassinar se transforma, portanto,
no ponto central de sua argumentação. (...) Friedman toma essa posição básica como ponto
de partida para a discussão do sujeito econômico e o resultado do processo de produção. Mas
em vez de explicar esses objetivos, constrói fantasmas em torno deles.331

E, evidentemente, nunca faltaram os pensadores que delinearam o destino de tal


trofismo dessa ideia, ou, o que dá na mesma, da Ideia 332. A corrente hegemônica do
pensamento filosófico na modernidade, nas origens da filosofia política moderna, é um
exemplo brilhante de rol de ilustres autores que se enquadram nesta linha. E aí aparecerão
estranhas contradições, como J. Locke, liberal e inspiração constante dos liberais, mas
que defendia a tortura, a escravidão e a morte aos inimigos da nova ordem do mundo:

Essa dupla metafísica – a da ordem burguesa e a do caos de qualquer alternativa da ordem


burguesa – está na raiz do caráter sumamente violento do pensamento burguês. Aberta ou
ocultamente, o pensamento burguês encerra em si mesmo uma justificação ilimitada da
violência e da violação dos direitos humanos frente a qualquer grupo capaz de substituir a
sociedade burguesa. Não há barbaridade que não se possa cometer em nome dessa metafísica
(...). Basta fixar-se nos tipos de tratamento que Locke recomenda para os opositores da
sociedade burguesa. São especialmente três: a tortura, a escravidão, e a morte. Isso explica
por que na história humana não existiu uma legitimação tão descarada da escravidão como
a do pensamento liberal de John Locke, nem uma afirmação tão grosseira da violação dos
CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA
SEMINÁRIO - 2020
100

direitos humanos em todos os âmbitos como precisamente nesse autor. Considera os


opositores como “feras”, “bestas”, “animais selvagens”, e recomenda constantemente tratá-
los como tais. (grifo nosso).333

***

Quem tem ouro é dono e senhor de tudo o que apetece. Com ouro pode-se até
fazer almas entrarem no paraíso.
C. COLOMBO334

Ouro? Ouro precioso, vermelho, fascinante?


Com ele se torna branco o negro, e o feio formoso,
virtuoso o mau, jovem o velho, valente o covarde, nobre o ruim.
... E retira o travesseiro de quem jaz enfermo,
e afasta do altar o sacerdote.
Sim, esse escravo vermelho ata e desata
vínculos consagrados; bendiz o maldito;
torna amável a lepra; honra o ladrão
e lhe dá categoria, importância e influência
no conselho dos senadores; conquista pretendentes
para a viúva anciã e encurvada.
... Oh, maldito metal,
vil prostituta dos homens!
W. SHAKESPEARE335

Como muitos já notaram, a inovação no capitalismo consiste na simulação


contínua do novo, enquanto na prática as relações de poder e de controle
permanecem as mesmas.
J. CRARY336

Dado que o capitalismo não pode impor limites a si mesmo, a ideia de


preservação ou conservação é uma impossibilidade sistêmica.
J. CRARY337

Hoje vivemos (...) um tempo de acirrada "luta dos deuses" e de incrível


produção de ídolos. É inegável que o capitalismo, definitivamente
transnacionalizado e em crise de "governabilidade", invoca seus fetiches com
um culto idolátrico cada vez indisfarçado.

ASSMANN, H.; HINKELAMMERT, F.338

A versão iluminista da flexibilidade de Smith imaginava que ela enriqueceria


tanto ética quanto materialmente as pessoas; seu indivíduo flexível é capaz de
súbitas explosões de simpatia pelos outros. Uma estrutura de caráter bastante
diferente surge entre os que exercem o poder dentro desse complicado regime
moderno. Eles são livres, mas é uma liberdade amoral.

R. SENNET339

CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA


SEMINÁRIO - 2020
101

Uma vez compreendido o percurso histórico e as metamorfoses sociais que


levaram à onipresença do tardo-capitalismo neoliberal – entendendo-o como realmente é,
ou seja, como uma expressão trófica contemporânea de uma lógica de totalização que se
constitui em uma constante e complexa imbricação entre ideias levadas a seus limites –
Ideia subterrânea que vem à tona como expressão ou promessa de Totalidade – e
realidade concreta de uma luta de poder que remonta às mais remotas origens do
pensamento ocidental340 –, cumpre agora apontar ao menos uma crítica interna (e apenas
uma, entre as inúmeras possíveis) às lógicas correntes de criação, justificação e
manutenção categoriais de tal estado de coisas, ou seja, aquilo que permite a percepção
da transformação ou evolução de uma forma de concepção de existência construída em
uma forma de concepção de existência absolutizada: a transformação em uma forma de
conceber o mundo e a realidade em idolatria propriamente dita. Como toda idolatria, a
idolatria de Mamon é essencialmente – em termos de essentia – falsa: não cumpre o que
promete a seus adoradores, não corresponde a nada necessariamente sem o qual não possa
ser concebida, pois seus adoradores se tornaram vazios de vida ao depositarem nela todo
o sentido inclusive de sua própria realidade; não existe em si, pois é vazia, a não ser na
projeção idolátrica de seus adoradores. Trata-se de uma hybris, uma quimera material. A
forma mais facilmente perceptível de tal inexistência essencial de algo que se projeta
como existência absoluta, em termos de efeitos empíricos efetuados na realidade, na
medida em que, como toda idolatria, nada mais é do que uma forma sofisticada de geração
de sofrimento e morte, é destacar um determinado paradoxo lógico que caracteriza, desde
sempre, esse modelo ideológico.
É exatamente ao coração desse paradoxo (“contradição lógica fundamental”) de
extremos de riqueza e pobreza – que, evidentemente, não são nunca meros conceitos,
porque definem a possibilidade ou não de viver – que se dirige o livro de T. Piketty O
capital no século XXI, bem sintetizado na expressão “A contradição central do
capitalismo: r > g”, na conclusão da obra, em que “r” é “taxa de rendimento privado do
capital” e “g” é “taxa de crescimento da renda e da produção”:

A lição geral de minha pesquisa é que a evolução dinâmica de uma economia de mercado e
de propriedade privada, deixada à sua própria sorte, contém forças de convergência
importantes, ligadas sobretudo à difusão do conhecimento e das qualificações, mas também
forças de divergências vigorosas e potencialmente ameaçadoras para nossas sociedades
democráticas e para os valores de justiça social sobre os quais elas se fundam... A principal
força desestabilizadora está relacionada ao fato de que a taxa de rendimento privado do

CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA


SEMINÁRIO - 2020
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capital r pode ser forte e continuamente mais elevada do que a taxa de crescimento de renda
e de produção g. (...) A desigualdade r > g faz com que os patrimônios originados no passado
se recapitalizem mais rápido do que a progressão da produção e dos salários. Essa
desigualdade exprime uma contradição lógica fundamental. O empresário tende
inevitavelmente a se transformar em rentista e a dominar cada vez mais aqueles que só
possuem sua força de trabalho. Uma vez constituído, o capital se reproduz sozinho, mais
rápido do que cresce a produção. O passado devora o futuro”. (grifo nosso).341

“O passado devora o futuro”. O que tentamos demonstrar nesse capítulo foi que
tal situação não é acidental, porém essencial ao próprio capitalismo enquanto tal – é a
essentia de Mamon, essa sim verdadeira, para além das quimeras de seus adoradores –, e
isso não (ou não apenas) pelas clássicas razões macroeconômicas bem aventadas pela
quase totalidade de seus críticos, mas pelas razões, por assim dizer, ainda além da
colonização do espírito e da “metafísica” universal no qual se transformou. Em outros
termos, o (tardo)capitalismo se transformou – ou assim se mostrou finalmente, nessa sua
fase espasmódica – crescentemente numa espécie de monstro que gera e devora seus
filhos – seus ídolos – na medida em que se desenvolve, tal qual um ensandecido Chronos
redivivo, em uma Totalidade idolátrica em permanente gestação e geração materiais (e
não apenas ideológicas ou privadas) de novos frutos, sequestrando a vida e a realidade
como possibilidade de um mundo de vida; dando origem à multiplicação infinita de
imagens idolatráveis, por exemplo, nas artérias e veias do mundo virtual contemporâneo
e, finalmente, reproduzindo-se a si mesmo em si mesmo, na idiotia absoluta da
Totalização – nesse caso, Totalização precisamente idolátrica, que conduz, de algum
modo, “à escravidão”, à tortura e à morte”, ainda que em suas figurações tardo-modernas
que se multiplicam na contemporaneidade. Assim, habita o núcleo do tardo-capitalismo
em permanente expansão exatamente a mesma contradição original denunciada já pelos
profetas pré-exílicos há tantos séculos: criam-se coisas e ideias e se as adoram como se
os adoradores fossem frutos das coisas criadas por eles mesmos. Eis a essência da
idolatria, de qualquer lógica ou racionalidade idolátrica, imutável ao longo do tempo,
multiplicando-se infinitamente como infinitos são seus servos, aqueles que hipotecam
toda sua realidade àquilo em que projetam toda sua existência, ou, em termos
psicanalíticos, que apenas habitam seu narcisismo de morte. Por isso, idolatria e morte
são irmãs gêmeas. E a verdadeira face de Mamon é a Totalidade, ou seja, a morte.

CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA


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VII – O abismo da Necroética

“Viva la muerte!”342

Não é acidental que o século XIX foi a grande era do pensamento psicológico.
Em uma sociedade completamente reificada, em que virtualmente não há
nenhuma relação direta entre os seres humanos, e na qual cada pessoa foi
reduzida a um átomo social, a uma mera função da coletividade, os processos
psicológicos, embora ainda persistam em cada indivíduo, não mais aparecem
como as forças determinantes do processo social.
T. ADORNO343

No que concerne ao narcisismo, o objeto, fantasiado ou real, entra em relação


conflitiva com o Eu. A sexualização do Eu tem como efeito transformar o
desejo pelo objeto em desejo pelo Eu. A isto chamei o desejo do Um com
apagamento da marca do desejo do Outro. O desejo mudou, portanto, de
objeto, pois é o Eu que se tornou seu próprio objeto de desejo; é este
movimento que convém esclarecer.
A. GREEN344

A reificação chegou ao ponto de exigir que o indivíduo invente uma concepção


de si que otimize ou viabilize sua participação em ambientes e velocidades
digitais.

J. CRARY345

Todos os esforços para estetizar a política convergem para um ponto. Esse


ponto é a guerra.
BENJAMIN, W.346

Se no capítulo anterior se pôde compreender que a metafísica contemporânea do


tardo-capitalismo hoje onipresente é uma expressão peculiar e poderosa de idolatria e
como uma tal metafísica se constitui, no presente capítulo serão examinadas as razões
pelas quais tal não somente pôde acontecer, mas, aventamos dizer, aconteceria
necessariamente, a partir da semente trófica da raiz do pensamento ocidental
hegemônico.347 De fato, se se compreende que a tentação da Totalidade é, de facto, a
tentação da morte, pode-se perceber porque necessariamente qualquer modelo de
idolatria, dos denunciados pelos profetas bíblicos aos apregoados urbi et orbi pelos
fantoches ideológicos do tardo-capitalismo neoliberal, que têm necessariamente em seu
germe o impulso trófico absolutizador da realidade solitária que em tudo habita e a tudo
colonializa em sofisticados sistemas projetivos no sentido psicanalítico do termo 348, é,

CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA


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ainda uma vez dito, necessariamente tanático, ou seja, vertido ab ovo à morte, ou seja,
essencialmente adverso à vida e à vitalidade. O Um é a destruição.
A constatação empírica cabal de tal fato se mostra historicamente consistente e,
simultaneamente, tremendamente ameaçadora. Pois entre as derivações contemporâneas
desse universo melancólico de vida transformada em coisa, objeto, mercadoria, no qual
os simulacros de vida parecem possuir mais vida – e infinitamente mais importância –
que a vida mesma, novas lógicas de mortificação – de morte – se insinuam no universo
das sobrevivências, e necessitam, assim, ser expostas em seu real efeito corrosivo.

***

Um mundo sem sombras, iluminado 24/7, é a miragem capitalista final da pós-


história – do exorcismo da alteridade, que é o motor de toda mudança
histórica.

J. CRARY349

O pensamento ocidental teve de lidar, desde sempre, com a dialética extrema da


temporalidade. Se, por um lado, o tempo gera, é a própria geração da realidade, é anterior
ao próprio pensamento que o pensa, por outro é a sombra permanente e efetiva da
degradação, corrupção e desaparecimento. Uma das maiores e mais profícuas conquistas
do logos foi a configuração de conceitos suficientes que, ao exprimirem coisas,
funcionariam como realidade mais real que as coisas mesmas das quais derivam, com a
vantagem de não poderem ser consumidas pela totalidade. De fato, o Teorema de
Pitágoras é exatamente igual a quando o filósofo o pensou; nada o atinge nem o desgasta;
evadiu-se da corrosão que afeta todo o empírico. Assim são os conceitos suficientes, que
têm perdurado ao longo da história do pensamento e deram possibilidade, de maneiras
diversas, ao nascimento das ciências, as verdadeiras grandes instituições de nossa época.
As leis matemáticas e físicas da tradição são inatingíveis pela lógica da vida e da morte.
Assim, localizamos nesse modelo preponderante de episteme a conjugação de dois
universos: por um lado, o universo da possibilidade de desenvolvimento de derivações
oriundas dos conceitos, a descoberta das “leis da natureza”, a invariabilidade, sob certo
espectro de observação, de certos efeitos a partir de certas causas do passado, a
previsibilidade de certas causas a partir de certos efeitos no futuro, etc. Uma tal lógica de
compreensão do mundo natural ocupará papel lógico central no arco racional não apenas

CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA


SEMINÁRIO - 2020
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da quase totalidade dos cientistas da modernidade até hoje, como também de filósofos tão
diferentes entre si como Spinoza, Kant, Schopenhauer e Marx, entre inúmeros outros.
Por outro lado, como consequência derivada, tal modelo científico de conhecer
oferece ao ser racional o modelo mais sofisticado daquilo que se pode chamar de
exorcismo da temporalidade real e de seus efeitos no mundo da vida. Efetivamente, o
universo dos conceitos, na forma de kósmos noetós, de mundo das ideias ou mundo da
Ideia, de quadro categorial do conhecimento – não apenas desde Bacon e Kant, mas desde
Aristóteles, todas as diferenças dos respectivos pensamentos consideradas –, esse
universo ideal ou conceitual, intocado pela temporalidade real que gera e corrói tudo o
que empiricamente se dá, se constitui em um verdadeiro refúgio de segurança para esse
ser precário e desamparado chamado humano, nascido contingentemente e
permanentemente saudoso de eternidade.
Temos aí, portanto, uma espécie de paradoxo bastante complexo: se, de um modo
pertinente e consequente, o mundo lógico – o mundo científico – permite intervenções na
realidade vivida como se esta pertencesse ao seu âmbito estrito exclusivamente, de outra
parte essa restrição cognitiva exclusivista que significa, em princípio, que tudo o que
existe é explicável – isto é, resolúvel – pelo mundo lógico-causal a partir de conceitos
suficientes, desvestido de qualquer aspecto que não seja, de alguma forma, e utilizando
um jargão contemporâneo, computável, tornada regra geral, acaba por esvaziar o sentido
do fazer, tornando-o órfão de Lebenswelt, para evocar, agora, um termo clássico.350
O que temos estudado até aqui no presente livro evidencia, também, que os
processos de idolatrização da realidade irão depender do ressecamento do conteúdo vital
que habita os seres vivos e, de um ponto de vista vigorosamente ético-estético, todas as
coisas e aspectos da realidade ou das realidades em que vivemos. Efetivamente, o
processo de idolatrização é uma pretensa atribuição de vida a algo não-vivo, ou não teria
sentido para o idólatra; é um investimento “vital”, na direção de um “sentido absoluto”,
– que tomará nomes diversos, conforme o prisma através do qual se o observe, tais como
inflação narcísica, na Psicanálise 351 ou totalização de sentido, na Filosofia. Ora, só se
pode “vitalizar” o não vivo; por isso, o processo de idolatrização pressupõe a
consideração da realidade circundante como um universo de coisas “mortas”, que só
adquirirão “vida” pela lógica de idolatrização, implícita ou explicitamente considerada 352.
O que aqui nos interessa é que não apenas o ponto de chegada da idolatria é a morte, mas
que, igualmente, o ponto de partida dos processos de idolatrização, por mais diversos que
sejam entre si, é, igualmente, a morte.
CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA
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O que queremos expressar aqui é uma tese que corre o risco de soar, à primeira
vista, extravagante, e cuja lógica de sustentação pressupõe a totalidade dos exemplos e
argumentos do presente livro, a saber: a idolatrização necessita radicalmente pressupor,
para existir, que a existência em todas as suas manifestações, que a realidade em todas
as suas versões, que o mundo em todos os seus estados, são expressões de entidades
mortas, que só adquirirão vida – no sentido idolátrico do termo – pelo próprio processo
de idolatrização. Seu mundo é o mundo da Necroética, da ética necro-lógica. Trata-se da
radicalização absoluta da solidão. O Um não é apenas destruição ao fim de seu processo
de auto-encontro e de auto-unificação identificatória, mas é também, congenitamente,
extinção da realidade que não aquela fictícia, projetada num deserto habitado apenas por
fatuidades reflexivas ao infinito, tal como o interior de um cubo iluminado e internamente
totalmente espelhado, no epicentro do qual paira o indivíduo que soçobra à tentação
idolátrica, indivíduo este que considera que a infinitude dos próprios reflexos é o infinito
limite para sua obra de engendramento de coisas significantes para ele, ou seja, para ele
“vitais” – uma Totalidade na sua expressão mais paródica possível, porque ilusão total de
si mesma. Uma espécie de “caverna de Platão” em versão plastificada, ou de “sono
dogmático” no sentido de Kant, mas em versão idiota. O que poderia arrancá-lo de seu
torpor mesmerizado nesse antro de ausência de tempo na ilusão iluminada do espaço – “o
Outro ou, o que dá no mesmo, o tempo” (Rosenzweig) – está a priori afastado de qualquer
consideração, pois o próprio tempo e, por consequência, o pensamento – está suspendido
nessa espécie de “bom infinito” que só percebe e conhece a si mesmo. Portanto, “Viva la
muerte!”.

***

A contemporaneidade assiste à crescente imbricação (por vezes já


indistinguibilidade) entre tecnologia – tecnociência – e mundo biológico. No âmbito do
presente estudo, as análises de J. Crary sobre a vigília forçada no âmbito das novas
tecnologias de submissão de pessoas a interesses que vão dos militares à dos promotores
do consumo ilimitado e contínuo são esclarecedoras no que se refere a novas formas de
absolutização do que já foi conhecido como “controle dos corpos” e hoje assume
crescentemente a forma de controle da vida total, ou transformação da vida em elemento
de jogos algorítmicos-sociais.

CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA


SEMINÁRIO - 2020
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Ainda uma vez, destaque-se a posição privilegiada que a tortura, hoje tão em voga
em todo mundo, assume no que diz respeito à interdição artificial do sono:

A privação de sono como forma de tortura é aplicada há muitos séculos, mas seu uso
sistemático coincide historicamente com a disponibilidade de luz elétrica e a facilidade para
amplificar o som de modo contínuo. Utilizada rotineiramente pela polícia de Stálin nos anos
1930, em geral era a primeira etapa do que os torturadores da NKDV [Comissariado do Povo
para Assuntos Internos] chamavam de “esteira rolante” – a sequência ordenada de
brutalidades, da violência gratuita que danifica irreparavelmente os seres humanos. Em
experimentos, ratos morrem depois de três semanas de insônia. Em humanos, basta um
período relativamente curto para tal prática induzir à psicose; após algumas semanas, surgem
danos neurológicos. A falta de sono acarreta um estado de extremo desamparo e submissão
– é impossível extrair informações relevantes da vítima, que confessará ou inventará qualquer
coisa. A negação do sono é a desapropriação violenta do eu por forças externas, é o
aniquilamento calculado de um indivíduo.353

Crary destaca, igualmente, a centralidade do uso da tortura em lugares onde o


avanço tecnológico é preponderante, acompanhada pela crescente aceitabilidade das
massas em relação à sofisticação de suas execuções, pelo menos “em algumas
circunstâncias” – o que equivale, faticamente, a uma abolição entre as fronteiras que
distinguiriam o aceitável do inaceitável.

Sabe-se que os Estados Unidos estão envolvidos há tempos na prática de tortura, diretamente
ou por meio de governos fantoches. O período pós-11 de setembro, porém, notabilizou-se
pela naturalidade com que se escancarou a prática, tida como apenas um dentre outros
procedimentos. Pesquisas de opinião revelam que a maioria da população norte-americana
aprova a sevícia em algumas circunstâncias. As discussões na grande imprensa são unânimes
em não qualificar como tortura a privação de sono; ao contrário, considera-se uma forma de
persuasão psicológica tão aceitável quanto a alimentação forçada de prisioneiros em greve
de fome. (...) Vale lembrar que o tratamento dos assim chamados prisioneiros de “alto
interesse” em Guantánamo e em outros lugares combinava métodos explícitos de tortura com
controle absoluto sobre a experiência sensorial e perceptiva. Os detentos, encarcerados em
celas permanentemente iluminadas, sem janelas, eram obrigados a usar vendas nos olhos e
tampões nos ouvidos. Assim, luz e som estavam sempre bloqueados quando os indivíduos
eram conduzidos para fora, de modo a impedir que soubessem se era dia ou noite, ou que
pudessem discernir algo que identificasse seu paradeiro.354

O que aqui se torna relevante em relação à linha expositiva que estamos seguindo
é o estabelecimento de uma linha de continuidade, claramente delineada por Crary, entre
os processos de tortura por privação de sono acima descritos e a naturalização de modelos
de condicionamento de realidade nos quais, de certo modo, a dinâmica de privação do
sono é não apenas tolerada como cultivada em todos os sentidos possíveis, em função de
interesses que estão muito além da saúde e da vida do ponto de vista biológico-social do

CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA


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universo dos humanos entendidos doravante – na trilha dos mais desvairados ideólogos
do capitalismo total – exclusivamente como consumidores, o prisma único de
indiferenciação que acabará por pretender tornar, na expressão de Z. Bauman, os próprios
consumidores, idealmente, nos mais desejáveis produtos de consumo, já que isto constitui
a integralidade da compreensão de realidade de uma tal cosmovisão – “Numa sociedade
de consumidores, tornar-se uma mercadoria desejável e desejada é a matéria de que são
feitos os sonhos e os contos de fadas” 355.
E aqui cumpre destacar o tema recorrente da totalização unitária, que, num
paradoxal e violento processo de utilização do princípio da coincidentia oppositorum,
passa a significar, na lógica das vinte e quatro horas dos sete dias da semana de
disponibilidade total ao universo das mercadorias, pela abolição formal do tempo:

Tal constelação de eventos recentes pode nos servir de prisma para entender algumas das
consequências da globalização do neoliberalismo e dos processos a longo prazo da
modernização ocidental. Longe de atribuir a esse conjunto de fatos um significado
explicativo em particular, procuro tomá-lo como acesso temporário a alguns dos paradoxos
de um mundo onde o capitalismo do século XXI conhece uma expansão ilimitada –
paradoxos que são inseparáveis das configurações intermitentes que revestem sono e vigília,
luminosidade e escuridão, justiça e terror, e das formas de exposição, desamparo e
vulnerabilidade. Pode-se contestar que eu tenha privilegiado fenômenos excepcionais ou
extremos; ainda assim, tais fenômenos estão desvinculados do que hoje, em qualquer lugar,
rege certas trajetórias e condições de vida. Por exemplo, a inscrição generalizada da vida
humana na duração sem descanso, definida por um princípio de funcionamento contínuo. É
um tempo que não passa mais, apartado do relógio. (grifo nosso)356

Um tempo que não passa mais é um tempo absoluto, ou seja, nada. A crono-logia,
ao acoplar o louco deus Chronos ao lógos, testemunhava ainda a esperança de que, através
de relógios e calendários, o mundo se reinventasse ciclicamente, ou seja, que os
acontecimentos fossem, de algum modo, novamente revestidos de significação quando
do retorno do calendário ao dia inicial ou do relógio à hora zero. O que se tem agora,
porém, é algo completamente diferente; Crary a denomina acertadamente de
“redundância estática”, o que significa a radicalização extrema da ausência da
possibilidade de experiências, no sentido benjaminiano da expressão. Trata-se de uma
“celebração da alucinação da presença, de uma permanência inalterável, composta de
operações incessantes e automáticas” 357. E, como todo absoluto, se constitui em matéria-
prima de ilusão; ilude a quem pensa que o que temos é uma reconfiguração social em um
novo formato de convivência, mas o que se evidencia é, mais uma vez, uma paródia vazia
da realidade. Não são pessoas que habitam esse novo mundo do estático infinito, mas sim

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quimeras fragmentadas no processo inelutável e massificante de constituição de uma


máquina moto perpetuo cuja única referência é ela mesma em sua solidão absoluta.

Para além da vacuidade do slogan, a expressão 24/7 é uma redundância estática que
desautoriza qualquer imbricação com as tessituras rítmicas e periódicas da vida humana.
Evoca um esquema arbitrário e inflexível de uma semana de duração, esvaziado de quaisquer
desdobramentos de experiências, cumulativas ou não. (...) Muitas instituições no mundo
desenvolvido funcionam há décadas em regime 24/7. Más só recentemente a elaboração, a
configuração da identidade pessoal e social foi reorganizada para ficar conforme à operação
ininterrupta de mercados, às redes de informação e outros sistemas. Um ambiente 24/7
aparenta ser um mundo social, mas na verdade é um modelo não social, com desempenho
de máquina – e uma suspensão da vida que não revela o custo humano exigido para sustentar
sua eficácia. (grifo nosso) 358

Este modelo suspenso no nada temporal e que pretende conter tudo o que é
concebível faz convergir a si mesmo uma miríade de elementos que, em princípio,
poderiam aparecer como completamente dissociados uns dos outros. Essa é sua lógica, a
da quantificação absoluta, da superabundância de entidades diferentes submersas na
rotação desenfreada da máquina de indiferenciação, na qual necessariamente toda e
qualquer qualidade ou distinção desaparece. As exigências vitais da sobrevivência
humana e da vida sobre a terra não passam de inconveniências a serem superadas tão logo
quanto possível. Em outros termos, para esta proposta de realidade, a vida não conta:

O tempo 24/7 é um tempo de indiferença, ao qual a fragilidade da vida humana é cada vez
mais inadequada, e onde o sono não é necessário nem inevitável. Em relação ao trabalho,
torna plausível, até normal, a ideia do trabalho sem pausa, sem limites. É um tempo alinhado
com as coisas inanimadas, inertes ou atemporais. Como slogan publicitário, institui a
disponibilidade absoluta – e, portanto, um estado de necessidades ininterruptas, sempre
encorajadas e nunca aplacadas. A ausência de restrições ao consumo não é simplesmente
temporal. Foi-se a época em que a acumulação era, acima de tudo, de coisas. Agora nossos
corpos e identidades assimilam uma superabundância de serviços, imagens, procedimentos
e produtos químicos em nível tóxico e muitas vezes fatal. A sobrevivência do indivíduo, a
longo prazo, é sempre dispensável, se para tanto seja preciso contar, mesmo que
indiretamente, com a possibilidade de interregnos sem compras ou sem fomento delas. Da
mesma forma, o imperativo 34/7 é inseparável da catástrofe ambiental, em sua exigência de
gasto permanente e desperdício sem fim, e na interrupção falta dos ciclos e estações dos
quais depende a integridade ecológica do planeta.(grifos nossos) 359

O processo é sempre o mesmo das lógicas de destruição: a transformação da


diferença como distinção lógica e evidente por si mesma em indiferença moral e anti-
vital, tal como as próprias palavras “diferença” e “indiferença”, coloquialmente, já
evocam isoladamente e independentemente de sutilezas analíticas. Trata-se, como é fácil

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de perceber, do mundo sonhado por M. Friedman, a metafísica do ser humano que só se


compreende como compra e venda contínua de si mesmo e que não existe – ou é
faticamente irrelevante – se não se constituir exatamente dessa forma de escravidão
absoluta a essa ideia, à qual, interessantemente, ele denomina “liberdade” 360. A feliz
expressão “universo aceso, cujas tomadas se perderam”, de sutil evocação kafkiana,
aponta precisamente para esse mundo tão absolutamente iluminado que ofusca a mera
ideia de alguma sombra:

Ainda que o 24/7 possa ser provisoriamente caracterizado por como uma palavra de ordem,
sua força não vem da exigência a uma obediência efetiva ou da submissão a sua natureza
incontestável. Sua eficácia reside mais na incompatibilidade que desvela, na discrepância
entre um “mundo da vida” humano e a evocação de um universo aceso, cujas tomadas se
perderam. É claro que ninguém pode fazer compras, jogar games, trabalhar, escrever no blog,
fazer downloads ou enviar mensagens de texto num regime de 24/7. No entanto, uma vez que
não existe momento, lugar ou situação na qual não podemos fazer compras, consumir ou
explorar recursos da rede, o não tempo 24/7 se insinua incessantemente em todos os aspectos
da vida social e pessoal. Já não existem, por exemplo, circunstâncias que não podem ser
gravadas ou arquivadas em imagens ou informações digitais. A disseminação e a adoção de
tecnologias wireless, que aniquilam a unicidade dos lugares e dos acontecimentos, é
simplesmente um efeito colateral de novas exigências institucionais. Ao espoliar as tessituras
complexas e as indeterminações do tempo humano, o 24/7 nos incita a uma identificação
insustentável e autodestrutiva com suas exigências fantasmagóricas; ele solicita um
investimento sem prazo, mas sempre incompleto, nos diversos produtos que facilitam essa
identificação. (grifos nossos)361

A legitimação ideológica de tal realidade é, de certo modo, efetivada exatamente


pelo transbordamento contínuo de “novidades” que justificam o seu surgimento desde si
mesmas, numa espécie de contínuo “kairós” anunciado, que faz com que os adoradores
das coisas que se renovam continuamente sem verdadeiramente mudar façam longas filas
em frente a lojas nos quais essas novidades vêm à luz, às vésperas de seu lançamento
anunciado. O mantra da evolução tecnológica irrevogável em todos os seus aspectos (e
não apenas naqueles que poderiam significar um aumento de qualidade em detrimento da
quantidade, ou que são efetivamente destrutivos e incompatíveis com a sobrevivência) é
proclamado continuamente através da voz sem palavras das imagens; a indigência da
linguagem de um Eichmann se apresenta em toda sua nudez como expressão exemplar
daquilo que, de fato, sempre esteve contido nela. Quando a linguagem se retira, entra a
luz absoluta, e, seguindo o ritmo da linguagem que se empedra, a racionalidade se
idiotifica irrevogavelmente.

CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA


SEMINÁRIO - 2020
111

A concepção da mudança tecnológica como um processo semiautônomo, impulsionado por


um processo de autopoiesis ou de auto-organização, permite que se aceitem como
circunstâncias necessárias, inalteráveis – quais fatos da natureza – muitos aspectos da
realidade social contemporânea. A inserção, equivocada, dos produtos e ferramentas mais
visíveis numa linhagem explicativa que inclui a roda, o arco ogival, o tipo móvel e assim por
diante, omite as técnicas mais importantes inventadas nos últimos 150 anos: os diversos
sistemas para administração e controle de seres humanos. (grifo nosso) 362

A ideia de idolatria assume agora, no presente contexto, a responsabilidade


precisa de fornecer dados para que se possa proceder a uma renovada investigação das
metamorfoses da tékhne, em uma primeira instância, ao logo da história e, mais
incisivamente, ao longo dos “últimos 150 anos”. Seu universo transcende qualquer
individualismo ou aspecto parcial de religiosidade e assemelhados; trata-se, em última
análise, da máquina subterrânea – ou voadora, no caso dos drones onipresentes do atual
processo de dronificação do mundo – que promove e legitima a totalização da realidade,
tendo como objetivo e finalidade última uma Totalidade da qual a vida estará ausente.

***

Ninguém pode reproduzir em sua própria imaginação a dor alheia. Até aí


chega a apercepção transcendental.
T. ADORNO363
.

Não mais, portanto, vigiar e punir, mas vigiar e aniquilar.


G. CHAMAYOU364

O estado de exceção, hoje, atingiu exatamente seu máximo desdobramento


planetário.
G. AGAMBEN365

A vontade totalitária criou um enorme número de organizações, descendo até


o nível dos Pfimpfe (meninos), não, o nível dos gatos: eu não tinha mais o
direito de pagar à Sociedade Protetora os Animais minha contribuição para
os gatos, pois a Deutsches Katzenwesen (Entidade dos Gatos Alemães) (...)
tornara-se um órgão do partido e não havia mais lugar para artvergessene
Kreaturen (criaturas racialmente perdidas), que viviam com judeus. Depois,
tiraram e mataram nossos animais domésticos – gatos, cachorros e até mesmo
canários. Não foi um caso isolado, uma infâmia, mas uma intervenção oficial
e sistemática.
V. KLEMPERER366

Os sinais que devem ser observados em doenças agudas são os seguintes.


Primeiramente estude o rosto do paciente.... Quanto mais anormal ele estiver,
pior ele está. A aparência terminal pode ser descrita deste modo: nariz
pontudo, olhos fundos, as têmporas caídas, as orelhas frias e retraídas com os
lóbulos retorcidos, a pele do rosto dura, esticada e seca, e a cor da face pálida
e sombria... E se não há melhora dentro do tempo recomendado, deve-se
reconhecer que este sinal prenuncia a morte.
HIPÓCRATES, Prognose367
CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA
SEMINÁRIO - 2020
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Após milênios de esclarecimento, o pânico abate-se de novo sobre uma


humanidade cuja dominação sobre a natureza tornada dominação sobre os
homens excede em horror tudo o que em qualquer época pudessem temer na
natureza.
T. ADORNO368

A tecnociência se desenvolve num ritmo extremamente rápido, e isso não é


exceção na contemporaneidade por definição tecnificada. G. Chamayou tem o mérito, em
sua obra Teoria do drone, de mostrar de modo meridianamente claro o desenvolvimento
acelerado de uma dimensão de tecnificação – a dronificação – que assume crescente
importância na geopolítica contemporânea. Sua abordagem é aquilo que se apresenta
como uma nova feição do controle de pessoas e de populações através não somente de
uma nova arma de guerra, mas de uma nova configuração ou expressão da própria noção
de guerra. Como bem destaca, também o conceito de “guerra” se encontra atualmente em
crise.

Começarei com estas perguntas: de onde vem o drone? Qual é a sua genealogia técnica e
tática? Quais são, com base nisso, suas características fundamentais? (...) Essa arma prolonga
e radicaliza os procedimentos existentes de guerra a distância, resultando na supressão do
combate. Mas, com isso, é a noção de mesma de “guerra” mesma que está em crise. Um
problema central coloca-se então: se a “guerra dos drones” não é mais exatamente a guerra,
a que “estado de violência” corresponde?369

Pois, de fato, a guerra drônica é unilateral; seria como que um retorno à época
pré-guerra, quando apenas havia caçadores e caçados. Qualquer resquício das lógicas
antigas de batalhas, ou heroísmo, está a desaparecer rapidamente, na medida em que os
drones são substituídos por novas gerações sempre mais sofisticadas e confiáveis de
novos drones, ou seja, em outras palavras, quando a lógica capitalista tradicional de
produção, consumo, obsolescência e descarte passa a ocupar a linha de frente das armas
de ataque ao inimigo – melhor, caça ao inimigo, ou pretenso inimigo – na
contemporaneidade370. Obviamente, em toda história, novas armas de guerra sempre
substituíram as antigas, sendo as novas cada vez mais eficientes, baratas ou
transportáveis. Porém, nunca como agora dois fatores se articularam de modo tão
indissolúvel em um único objeto, o drone guerreiro controlado a imensas distâncias. Por
um lado, sua eficácia como arma de destruição e, por outro, sua potência como objeto de
observação. Na prática, o que se tem atualmente é a visibilidade cabal das técnicas de

CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA


SEMINÁRIO - 2020
113

localização e controle de preferências 24/7, onipresente em todas as redes digitais e no


universo paralelo onde tudo se compra e se vende, no formato de um sofisticado objeto
específico: o drone. Nesse sentido, o drone conecta o mundo do controle da vida – as
lógicas biopolíticas tradicionais – à capacidade de destruir a vida direta ou indiretamente,
de modo remoto, em mais um paradoxo típico dos tempos atuais: a mais completa das
armas, que reúne em um só constructo objetos diversos elementos de destruição que em
outros tempos necessitavam de complexos aparatos mobilizados em estrita ordem
cronológica – aviões de observação, planejamento do ataque, colocação em operação de
aviões bombardeiros e de caça (e, mais tarde, mísseis) – é considerada a mais
“humanitária” arma já conhecida e, obviamente, mobiliza em sua defesa os porta-vozes
tradicionais da sua vontade de sucesso:

(...) Isso não impede que seus defensores a proclamem a arma mais ética que a humanidade
jamais conheceu. Operar essa conversão moral, essa transmutação dos valores é a tarefa à
qual se atrelam hoje filósofos que lidam com pequeno campo da ética militar. O drone, dizem
eles, é a arma humanitária por excelência. Seu trabalho discursivo é essencial para garantir
a aceitabilidade social e política dessa arma. Nesses discursos de legitimação, os “elementos
de linguagem” próprios de comerciantes de armas e de porta-vozes das forças armadas veem-
se reciclados, por meio de grosseiros processos de alquimia discursiva, em princípios
norteadores de um novo tipo de filosofia ética – “necroética”, cuja crítica é urgente.371

A preocupação aqui, não obstante o que possam argumentar os apologetas dessa


nova técnica de observação e extermínio, não tem nada em comum com a preservação da
vida ou trato humanitário nem no que diz respeito, obviamente, aos alvos excelentes ou
colaterais das novas armas, nem a quem as manobra ou as controla, pois tais funcionários
não agem senão em função do assumir a responsabilidade por uma engrenagem específica
de poder, isolada de toda materialidade, ou em função da gamificação da vida atualmente
em curso, que não significa nada mais do que a aplicação ou replicação, na vida real, da
abolição do tempo, da distância e dos escrúpulos, numa espécie de inversão do
movimento de virtualização da realidade observada nas primeiras eras da internet. Agora,
explicitamente, trata-se da virtualidade do controle que se aplica à vida material. Temos,
assim, entre o universo do consumo permanentemente aceso dos 24/7 e o universo da
transformação de gente em alvos reais, ainda que estejam do outro lado do mundo, um
paralelismo perfeito, pois, no fundo, trata-se de dois aspectos de um mesmo fenômeno, a
dronificação-necrotificação de toda forma de vida.

CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA


SEMINÁRIO - 2020
114

Portanto, estamos no ponto de evolução, ou reconfiguração, das formas de


biopolítica e “controle dos corpos” que remontam aos inícios da modernidade e têm em
J. Bentham com seu panopticum seu ponto mais alto – caso consideremos as derivações
dessa ideia como estágios progressivos de uma mesma lógica, o que é perfeitamente
aceitável – na direção de uma necropolítica – ou, consideramos esse termo mais
abrangente e preciso – uma necroética, tal como aponta Chamayou. 372

Essa realidade necroética não se cinge a lugares e lógicas de alta tenologia


aplicada, com disponibilização de recursos ilimitados em favor da preparação e efetivação
de guerra, mas antes está estabelecida globalmente, adquirindo formas variáveis em
função das regiões variadas nas quais seus instrumentos são mobilizados. Em outros
termos, trata-se de um movimento totalmente globalizado, com infinitas faces. A.
Mbembe aponta acertadamente para a complexa característica de imbricação entre guerra,
terror e mercado:

Governar pelo terror já não tem tanto a ver com reprimir e disciplinar, mas sobretudo com
matar, seja em massa ou em doses mais contidas. A guerra já não opõe necessariamente
exércitos uns aos outros ou Estados soberanos a outros. Os actores da guerra são,
aleatoriamente, os Estados propriamente instituídos, formações militares que agem ou não
sob a máscara do Estado, exército sem estado que controlam territórios muito distintos,
estados sem exércitos, empresas ou companhias concessionárias encarregues da extracção de
recursos naturais que, por outro lado, se arrogam o direito de guerra. A regulação das
populações passa por guerras que, por si, equivalem cada vez mais a processos de apropriação
de recursos económicos. Em tais contextos, a guerra, o terror e a economia estão de tal modo
imbricados que já não se pode falar de uma economia de guerra. Ao criarem novos mercados
militares, guerra e terror transformaram-se, tout court, em modos de produção.373 .

Esse é o jogo, a gamificação da guerra, no qual a virtualidade social e a realidade


efetiva da caça estão perfeitamente imbricadas; não é mais possível, atualmente, exercer
efetivamente a localização e a destruição do inimigo sem que haja uma complexa
tabulação de dados, uma “topografia das conexões” que as sustentem. Ocorre uma
crescente indiferenciação entre o sangue real da morte e o sangue virtual da alta
probabilidade de sucesso da empreitada.

A relação de hostilidade reduz-se então, como num esconde-esconde, a “uma competição


entre os que se escondem e os que procuram”. A primeira tarefa já não é imobilizar o inimigo,
mas identificá-lo, localizá-lo. Isso envolve todo um trabalho de detecção. A arte do
rastreamento moderno baseia-se no uso intensivo das novas tecnologias, combinando
vigilância área por vídeo, interceptação de sinais e traçados cartográficos. A atividade dos
caçadores de homem tem hoje seu jargão tecnocrático: “A topografia das conexões é uma
extensão da prática generalizada da análise das redes sociais utilizada para desenvolver os

CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA


SEMINÁRIO - 2020
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perfis dos indivíduos de grande valor [...] Os mapas topográficos das conexões traçam
‘fóruns’ sociais ou ambientes que ligam os indivíduos uns aos outros”.374

E isso porque, nessa guerra de nova estirpe, altamente tecnificada, virtualizada e


crescentemente assemelhada à lógica primitiva da caça a animais ou a outros seres
humanos, a dimensão de controle máximo, a estratégia “preventiva” num mundo
transformado inteiramente num deserto inóspito no qual tudo o que não sou eu é
potencialmente, ou até prova em contrário, meu inimigo mortal, é o que realmente conta;
todo o demais não faz senão sustentar ideologicamente uma tal concepção de realidade.

Nesse modelo, o indivíduo inimigo não é mais concebido como um elo na cadeia de comando
hierárquico: é um nó ou um “node” inserido em redes sociais. De acordo com o conceito de
guerra em rede (Network Centric Warfare [NCW]) e de operações baseadas nos efeitos
(Effects Based Operations [EBO]), postula-se que, ao apontar eficazmente os nodes-chave
de uma rede inimiga, esta pode ser desorganizada a ponto de ser praticamente aniquilada. Os
proponentes dessa metodologia afirmam que “a identificação de um node-chave [...] tem
efeitos secundários, terciários, de categoria n e que esses efeitos podem ser calculados em
exatidão”. É nessa pretensão de cálculo preditivo que se baseia a política de eliminação
profilática que tem nos drones caçadores-matadores seus instrumentos privilegiados. Pois a
estratégia da caça ao homem militarizada é essencialmente preventiva. Não se trata tanto de
replicar ataques determinados, mas sim de prevenir a eclosão de ameaças emergentes pela
eliminação precoce de seus potenciais agentes: “Detectar, inibir, quebrar, prender ou destruir
as redes antes que possam causar prejuízos”. E isso independentemente de qualquer ameaça
direta iminente.375

E, mais uma vez, a uma análise mais acurada, temos como evidente à percepção
que tais fenômenos, que parecem possuir uma especificidade localizada nos núcleos
centrais de decisão e alta tecnologia, na verdade se constituem em um fenômeno global,
no qual as periferias – como no caso do Chile de Pinochet e a implantação do capitalismo
em sua forma extrema neoliberal – têm sido o balão de ensaio há não pouco tempo. Na
verdade, ocorre uma relação direta entre abundância de recursos naturais valiosos para a
indústria de transformação em um determinado espaço e a conversão deste preciso espaço
em “espaço privilegiado de guerra e morte”, guerra e morte que, por sua vez,
retroalimentam modelos econômicos locais, porém “altamente transnacionais”:

O fluxo controlado e a demarcação dos movimentos de capital em regiões das quais se


extraem recursos específicos tornaram possível a formação de “enclaves econômicas” e
modificam a antiga relação entre pessoas e coisas. A concentração de atividades relacionadas
à extração de recursos valiosos em torno desses enclaves tem, por sua vez, convertido esses
enclaves em espaços privilegiados de guerra e morte. A própria guerra é alimentada pelo
crescimento das vendas dos produtos extraídos. Consequentemente, novas relações surgem
entre a guerra, as máquinas de guerra e a extração de recursos. Máquinas de guerra estão
implicadas na constituição de economias locais ou regionais altamente transnacionais. Na
maioria dos lugares, o colapso das instituições políticas formais sob a pressão da violência

CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA


SEMINÁRIO - 2020
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tende a conduzir à formação de economias de milícia. Máquinas de guerra (nesse caso,


milícias ou movimentos rebeldes) tornam-se rapidamente mecanismos predadores
extremamente organizados, que taxam os territórios e as populações que os ocupam e se
baseiam numa variedade de redes transnacionais e diásporas que os proveem com apoio
material e financeiro.376

Ainda a destacar que se pode observar, também nesse ambiente de baixa


“densidade tecnológica”, uma radicalização das manifestações de controle e domínio
ativo das populações colonizadas; de fato, se antes se tinha tentativas de “integrar”
populações subalternas a lógicas das metrópoles – o que se chamou, costumeiramente, “
civilizar os nativos” – vide especialmente os impérios coloniais britânico e francês –, o
que agora temos é a inscrição da vida “na ordem da economia máxima”, pela dispensa
pura e simples da vida mesma – o seu “massacre” direto ou indireto.

Essa forma de governabilidade difere do comando (commandement) colonial. As técnicas de


policiamento e disciplina, além da escolha entre obediência e simulação que caracterizou o
potentado colonial e pós-colonial, estão gradualmente sendo substituídas por uma alternativa
mais trágica, dado o seu extremismo. Tecnologias de destruição tornaram-se mais táteis, mais
anatômicos e sensoriais, dentro de um contexto no qual a escolha se dá entre a vida e a morte.
Se o poder ainda depende de um controle estreito sobre os corpos (ou de sua concentração
em campos), as novas tecnologias de destruição estão menos preocupadas com a inscrição de
corpos em aparatos disciplinares do que em inscrevê-los, no momento oportuno, na ordem
da economia máxima, agora representada pelo “massacre”.377

E neste universo mutante, de crescente explicitude das diferentes formas de


manifestação da violência, o que realmente se tem é a totalização da guerra, ou seja, da
morte. É como se, no inconsciente da história e da sociedade, retornasse a resposta à
famosa questão proposta em tom peremptório por Hitler no momento de explosão real da
segunda guerra mundial: “Wollt Ihr den totalen Krieg?” – “Quereis a guerra total?”. A
resposta, como sabemos, foi um ensurdecedor Ja! (sim!). Esse “sim!” habita os
subterrâneos do universo visível, despido de disfarces e da hipocrisia acomodativa que se
percebe amiúde nos países centrais, sempre os mais interessados nos resultados da
exploração de recursos. Ele corresponde à essentia da Totalidade e, por isso, não poderia
deixar de ocorrer.
Assim, do ponto de vista da análise, o que está em jogo é, ainda uma vez, uma
determinada evolução categorial, a bem de uma mais adequada demarcação do mundo
em estado de morte. Mbembe bem o ressalta logo ao início de seu mais conhecido texto:

Este ensaio pressupõe que a expressão máxima da soberania reside, em grande medida, no
poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer. Por isso, matar ou
deixar viver constituem os limites da soberania, seus atributos fundamentais. Ser soberano é

CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA


SEMINÁRIO - 2020
117

exercer controle sobre a moralidade e definir a vida como a implantação e manifestação de


poder. (...) Pode-se resumir nos termos acima o que Michel Foucault entende por biopoder:
aquele domínio da vida sobre o qual o poder estabeleceu o controle. Mas sob quais condições
práticas se exerce o poder de matar, deixar viver ou expor à morte? Quem é o sujeito dessa
lei? O que a implantação de tal direito nos diz sobre a relação que opõe essa pessoa a seu
ou sua assassino/a? Essa noção de biopoder é suficiente para contabilizar as formas
contemporâneas em que o político, por meio da guerra, da resistência, ou da luta contra o
terror, faz do assassinato do inimigo seu objetivo primeiro e absoluto? A guerra, afinal, é
tanto um meio de alcançar a soberania como uma forma de exercer o direito de matar. Se
consideramos a política um a forma de guerra, devemos perguntar: que lugar é dado à vida,
à morte e ao corpo humano (em especial o corpo ferido ou massacrado)? Como eles estão
inscritos na ordem do poder? (grifo nosso) 378

Todos os caminhos levam à morte, a um estado geral de morte. A necropolítica se


expressa, em suma, na concretude da necroética como forma de existência. É a esse ponto
que a nova crítica deve se dirigir.379 Nesse conceito se subsume, no presente, a longa
corrente de indignação biopolítica que se segue das análises de manipulação e reificação
da vida e do vital. Longa e dolorosa história, a história do Ser ou, o que dá no mesmo, a
configuração do mal:

Um pouco por todo o lado vão ressurgindo a lei do sangue, a lei da retaliação e o dever da
raça – os dois suplementos que constituem o nacionalismo atávico. A violência das
democracias, até agora mais ou menos disfarçada, vem à superfície, desenhando um círculo
mortífero que aprisiona a imaginação e do qual é cada vez mais difícil sair. Um pouco por
todo o lado, a ordem política reconstruiu-se enquanto forma de organização para a morte.
Pouco a pouco, um terror de essência molecular e pretensamente defensivo procura legitimar-
se, turvando as relações entre a violência, o homicídio e a lei, a fé, o comando e a obediência,
a norma e a excepção, ou ainda a liberdade, a perseverança e a segurança. Já não se trata de
excluir o homicídio, por direito e justiça, da consideração da vida em comunidade. Sempre
que possível, arrisca-se o cenário supremo. Nem o terrorista nem o homem aterrorizado, os
novos substitutos do cidadão, renunciam a matar. Pelo contrário, uma vez que só acreditam
na morte (dada ou recebida), tomam-na pele derradeira garantia de uma história inscrita a
ferro e fogo – a história do Ser. (grifos nossos) 380

“Ser é mal” (Levinas). O resto é o ainda-não.

***

A. Mbembe descreve uma particular configuração da estética da morte. Trata-se


da ossificação da paisagem do massacre. A morte leva à indistinção, a uma generalidade
homogênea, ainda uma vez testemunho da quantidade de restos que substituiu a
qualidade dos ex-viventes. Pura presença, pura ocupação de espaço, a estética ossificada
permanece como um campo povoado por enigmas abortados – é o limite, a situação-
limite “do que vemos, do que nos olha” (Didi-Huberman). No calor do sol africano, a
CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA
SEMINÁRIO - 2020
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frieza absoluta das ossadas infinitamente multiplicadas resplandece como um Outro que
não chega.

As maneiras de matar não variam muito. No caso particular dos massacres, corpos sem vida
são rapidamente reduzidos à condição de simples esqueletos. Sua morfologia doravante os
inscreve no registro de generalidade indiferenciada: simples relíquias de uma dor inexaurível,
corporeidades vazias, sem sentido, formas estranhas mergulhadas em estupor. No caso do
genocídio de Ruanda – em que um grande número de esqueletos foi preservado em estado
visível, quando não exumados -, o surpreendente é a tensão entre a petrificação dos ossos,
sua frieza (coolness) estranha, por um lado, e por outro lado seu desejo persistente de produzir
sentido, de significar algo.381

A literalidade desse deserto ossificado, estranhamente congruente com o “vale dos


ossos secos” de Ezequiel antes da intervenção divina, estabelece um elo entre todos os
tempos, agora mortos na imagem estática das sobras que refletem a visão no espelho de
um testemunho impossível. Existências dissecadas, mineralizações, silhuetas contorcidas
por linhas sobrepostas em meio à atmosfera vaga do inóspito, da inospitalidade.

***

(...) a estranha noção de uma razão suspeita não surgiu de um discurso


filosófico que simplesmente se deixou levar por suspeitas ao invés de produzir
provas. Seu sentido impõe-se no “deserto que cresce”, na miséria moral
crescente da era industrial. Sentido que significa no gemido ou no grito
denunciador de um escândalo, ao qual a Razão – capaz de pensar como ordem
um mundo onde se vende o “pobre por um par de sandálias” – ficaria
insensível sem esse grito. Grito profético, mal apenas discurso; voz que brada
no deserto; revolta de Marx e dos marxistas para além da ciência marxiana.
Sentido dilacerante como um grito, que não é assimilado pelo sistema que o
absorve e onde não cessa de ressoar com voz diferente daquela que o discurso
coerente manifesta. Não é sempre verdadeiro que o não-filosofar é ainda
filosofar!

E. LEVINAS382

A tentação ancestral da Totalidade, a tentação de Thanatos, levam o ser humano


a entregar-se ao que supõe ser seu desejo, uma magia auto-referente; fixado na imagem
da ideia, não a compreende, não compreende nem imagem, nem ideia; mergulhado na
angústia do real da existência, tenta substituí-la por algo mais suportável, um absoluto
privado; constrói as condições para esse absoluto, o qual engendra por atos e gestos de
fantasia que configuram uma muralha de proteção contra o mundo; compraz-se com os
resultados, retroalimentados pela ilusão; sonha com o Total; plastifica seus medos

CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA


SEMINÁRIO - 2020
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expelindo de seu universo o tempo, a verbalização e a linguagem; encontra seu todo nas
tentações que alimenta e que adoecem pela endogenia, adoecendo quem as possui;
transforma sua reação ao horror da realidade transformando esse horror em lei universal;
cria uma vida paralela, não-perigosa nem vida; resseca tudo o que toca e atira-se ao
abismo de Thanatos; já não consegue viver nem morrer.
Idiotifica-se e projeta no Outro a causa de todas as suas misérias, sem perceber
que apenas existe porque veio de Outros; enlouquece pela atração do poder que o dinheiro
e assemelhados significam e tenta obsessivamente transformar tal loucura numa lei
universal, a ferro e fogo; implode nos espasmos de seu próprio sofrimento e adquire uma
repulsa definitiva a toda ideia de felicidade que exclua o horror no qual vive.
Idolatrando um mundo destilado por sua insanidade, idolatra a si mesmo, ou seja,
idolatra a Totalidade impossível. Pensa que vive. Conjura um modus operandi que
transforma a violência e a morte na finalidade última – “viva la muerte!”. Cria a
necroética.
Atira-se ao abismo de seus horrores.

CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA


SEMINÁRIO - 2020
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Notas
1
Apud ALTER, R., Anjos necessários – tradição e modernidade em Kafka, Benjamin e Scholem, p. 31.
2
Dios, la muerte y el tempo, p. 198.
3
O princípio esperança, I, p. 14.
4
Filosofia da caixa preta, p. 18.
5
FLUSSER, V. Filosofia da caixa preta, p. 23-24.
6
CANETTI, Elias. Auto de fé, p. 235 ss.
7
Cf. SOUZA, R. T., “O nervo exposto – por uma crítica da razão ardilosa desde a racionalidade ética”, in:
SOUZA, R. T., Ética do escrever – Kafka, Derrida e a literatura como crítica da violência, 43-54.
8
Sobre a vontade na natureza, p. 52.
9
“O uso da violência é mais eficiente e menos dispendioso quando os meios são submetidos a critérios
instrumentais e racionais e, assim, dissociados da avaliação moral dos fins… todas as burocracias são boas
nesse tipo de operação dissociativa. Pode-se mesmo dizer que dele provém a essência da estrutura e do
processo burocráticos e, com ela, o segredo desse tremendo crescimento potencial mobilizador e
coordenador da racionalidade e eficiência de ação, alcançados pela civilização moderna graças ao
desenvolvimento da administração burocrática. A dissociação é, de modo geral, resultado de dois processos
paralelos, ambos centrais ao modelo burocrático de ação. O primeiro é a meticulosa divisão funcional do
trabalho (enquanto adicional à – e em suas conseqüências distinta da – linear graduação do poder e
subordinação); e o segundo é a substituição da responsabilidade moral pela técnica”. (BAUMAN, Z.,
Modernidade e holocausto, p. 122).
10 Introdução ao profetismo bíblico, p. 355.
11 Apud SICRE, J. L., Los dioses olvidados - poder y riqueza en los profetas preexilicos, p. 103.
12 KAUFMANN, Y., A religião de Israel, p. 17. Não entraremos aqui nas famosas polêmicas de Kaufmann
com outros eruditos do Judaísmo, sobre o reconhecimento ou não pelos antigos judeus de deuses
estrangeiros, etc.; interessa-nos nesse momento apenas a síntese que ele propõe, nessa súmula famosa, com
relação ao tema da idolatria.
13 A concepção de profetismo aqui assumida corresponde, em sua maior parte, com a de A. Neher, em seu
La esencia del profetismo. Cf. NEHER, A. La esencia del profetismo, especialmente p. 77-128.
14 KAUFMANN, Y., A religião de Israel, p. 17.
15 Op. cit., p. 17.
16 Op. cit., p. 17.
17 Op. cit., p. 17. Ainda: “Esses objetos, para os quais são realizados rituais mágicos, são ‘os deuses das
nações’”, segundo a Bíblia.
18 Op. cit., p. 17-18. Segue Kaufmann: “A Bíblia não conhece os poderes como seres pessoais que morem
nos ídolos; o ídolo não é uma habitação do deus, é o próprio deus. Daí a estigmatização bíblica
frequentemente repetida dos deuses pagãos como ‘madeira e pedra’, ‘ouro e prata’. Podemos, talvez, dizer
que a Bíblia vê no paganismo apenas o seu nível mais baixo, o nível das crenças-mana”. (Op. cit., p. 18).
19 Op. cit., p. 18.
20 Op. cit., p. 18.
21 SICRE, J. L. Los dioses olvidados - poder y riqueza en los profetas preexilicos, p. 116. Segue Sicre: “En
segundo lugar, al ser Mammón un ‘dios secular’, no necesita un espacio sagrado ni unas ceremonias
especiales. Cualquier sitio es bueno para darle culto… Y cualquier actividad de la vida diaria puede quedar
dedicada a él. (…). Pero Amós no se limita a enumerar una serie de acciones, también las califica: de
opresión (…) y vejación (…). Estos verbos dejan claro la crueldad del culto del dinero. En ciertas ocasiones,
Amós acusa a los ricos de soberbia (2,7), de cinismo (2,8), de odiar la justicia (5, 10), de que no saben obrar
rectamente (3, 10), de que sólo piensan en divertirse (4,1b; 6,4-6). Pero lo que más resalta en ellos es la
crueldad, manifestada a veces en la despreocupación por los más débiles (6, 6b), pero generalmente puesta
en práctica de forma voluntaria e intencionada”. (Op. cit., p. 116).
22 Ibid., p. 18.
23 Ibid., p. 18-19.
24 Is 10, 1-4a (Apud SICRE, J. L., Los dioses olvidados, p. 121).
25 Ibid., p. 19.
26 SICRE, J. L. Los dioses olvidados, p.130.
27 KAUFMANN, Y., Op. cit., p. 19.
28 Apud SICRE, J. L., Los dioses olvidados, p. 166.
29 KAUFMANN, Y., op. cit., p. 19. Segue Kaufmann: “Predominam as figuras retóricas plásticas; de fato,
o profeta está tão envolvido com os ídolos que ignora inteiramente os deuses. É extraordinário que Ezequiel,
fascinado como está pelo simbolismo erótico, nunca utilize os temas sexuais da mitologia. Silencia no que
respeita ao forte motivo erótico dos mitos de Tamuz. Ele usa a imagem desajeitada de Israel representando

CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA


SEMINÁRIO - 2020
121

a prostituta com as imagens de madeira e pedra, de ouro e prata. Mas negligencia o cabedal mitológico de
temas que poderia ter fornecido ricos elementos para a sua imaginação. (...). O próprio Ezequiel forneceu
um epítome de sua visão dos deuses pagãos: aos anciãos de Israel diz, “Vós dizeis, sejamos como as nações,
como as famílias dos países, servindo a madeira e a pedra” (20,32). O que os pagãos adoram, portanto, nada
mais é que madeira e pedra deificadas”. (Ibid., p. 19-20).
30 Op. cit., p. 20-21. Segue Kaufmann: “Repetidamente o profeta ridiculariza a crença de que objetos
inanimados sejam deuses. Só quando as nações percebem que um “pedaço de madeira” (versículo 19) não
é deus, é que a idolatria desaparecerá. Isso vindo de um homem que, alega-se, estava inteiramente
familiarizado com a religião politeísta de seu meio ambiente e até empregava motivos mitológicos em seus
escritos (51,9). E, entretanto, nada fala sobre os deuses ou seus mitos. Nunca lhe ocorreu contrastar o
sublime Deus de Israel com as divindades briguentas e luxuriosas dos pagãos e argumentar, a partir deste
contraste, que os deuses são vaidade. Se o nosso autor tivesse examinado apenas superficialmente o tesouro
dos mitos babilônicos, que mina de material teria ele encontrado para suas sátiras: deuses que nascem e
morrem, que procriam, que comem, bebem e dormem, que fazem guerra contra suas mães, e se aglomeram
como moscas em torno do sacrifício. Havia aí um arsenal que poderia tê-lo armado para golpear o próprio
cerne do paganismo: a fé em deuses e deusas mitológicos e em seu domínio sobre o universo. E, no entanto,
ao declarar a reivindicação de seu Deus, ele só pode dizer, “Eu sou Iahweh, este é meu nome, e a minha
glória não darei a outrem, nem meu louvor aos ídolos” (42,8) – “aos ídolos”, não a “um deus nascido”, “um
deus agonizante”, “um deus luxurioso”. Iahweh evidentemente não tem quaisquer outros rivais além dos
ídolos e das imagens esculpidas (Ibid., p. 21).
31 KROCHMAL, N. “O povo eterno e suas eras”, in: GUINSBURG, J. (Org.), O judeu e a modernidade,
p. 75.
32 MENDELSSOHN, M. Jerusalém, in: GUINSBURG, J. (Org.), O judeu e a modernidade, p. 35-36.
Sabemos que M. Mendelssohn foi um erudito de primeira grandeza, que teve acesso à totalidade da cultura
de seu campo de interesse disponível à época, e que na profundidade de sua construção intelectual maior, o
Jerusalém, repousa uma polêmica aberta ou mais velada com o tema da idolatria. Como destaca S.
FREUDENTHAL: “In Jerusalem Mendelssohn discusses the threat of idolatry inherent to the use of script
and other permanent signs. His foremost example is Egyptian hieroglyphics. He also remarks that the
Hebrew alphabet derived from hieroglyphics. Not only Egyptian hieroglyphics but also Egyptian idolatry
are highly important for Judaism. According to the biblical report, Judaism was constituted in an act of
physical and religious opposition to ancient Egypt: the Exodus and the indubitable revelation on Sinai. And
yet, soon thereafter, in the sin of the golden calf, the Jews relapsed into Egyptian idolatry. If Mosaic religion
is understood as a “counterreligion” to the Egyptian, then its practices can be understood as means of
drawing a dividing line between the Jews and the nation that hosted them for centuries. All the more reason
that the relapse into idolatry immediately after revelation on Mount Sinai seems inexplicable. The Egyptian
religion appears here as both the repulsive and the attractive opposite pole to Judaism. (…) There is even an
immediate and specific connection between Egyptian hieroglyphics and Judaism. Mendelssohn believed —
as we do today, too — that the Hebrew alphabet developed out of hieroglyphics. In his Jerusalem
Mendelssohn goes into the details: ‫א‬, aleph, is derived from the pictogram of elef or aluf, ‫אלף‬: an ox; ‫ב‬, beth,
is derived from the pictogram of bayit, ‫ בית‬: house; ‫ג‬, gimel, derives from the pictogram of gammal, ‫גמל‬:
camel; and so on. (…) Were the hieroglyphics conducive to the Hebrews’ relapse into Egyptian idolatry in
the adoration of the calf? And did the transition from the pictorial representation of the hieroglyphics to the
conventional representation of the alphabet eventually safeguard the Hebrews from relapsing again into
Egyptian idolatry? Or does it also generate new dangers? These are important themes in Mendelssohn’s
thought, both in his Jerusalem and in his commentary on the Bible. However, a major issue is the distinction
between Gentile and Jewish idolatry. Mendelssohn argues with many others that Jewish monotheism is more
restrictive than the monotheism of natural religion. This is the ultimate justification for the continued
separate existence of the Jewish people and Jewish religion: (grifo nosso, R. T. S.).” (FREUDENTHAL,
S., No Religion Without Idolatry, p. 105-106). É importante ressaltar a robusta ideia que aqui se manifesta
(e não apenas nessa ocasião): a eleição de Israel tem conexão direta, ao ver de Mendelssohn, com a
capacidade de Israel de não ceder à tentação idolátrica; na visão de Freudenthal, com a qual concordamos
inteiramente, para Mendelssohn “Judaism is a safeguard of monotheism free of idolatry”
(FREUDENTHAL, S., No Religion Without Idolatry, p. 106).
33 KAUFMANN, Y., Op. cit., p. 21.
34 SICRE, J. L. Introdução ao profetismo bíblico, p. 348. Quanto a Paulo e João: “Na mesma linha, duas
cartas atribuídas a Paulo dizem que ‘a cobiça é idolatria’ (Ef 5,5; Cl 3,5). Em outras ocasiões Paulo deixa
claro que certas pessoas divinizam as prescrições referentes à comida (Fl 3,19). E a primeira carta de João
termina precavendo contra os ídolos (1 Jo 5,21), entendendo por eles talvez as falsas doutrinas da gnose
nascente (...). Ou seja, dentro do Novo Testamento, a idolatria continua atual, não só no nível cultual, mas
também em outra série de âmbitos relacionados com a vida diária. Precisamente tirar a idolatria de seu
CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA
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estreito marco cultural é o que se nos possibilita aplicá-la em outros níveis e sentir-nos inquietos por causa
de sua ameaça contínua.” (Ibid., p. 348-349).
35 Op. cit., p. 354.
36 Op. cit., p. 354-355.
37 Op. cit., p. 355.
38 ASSMANN, H.; HINKELAMMERT, F., A idolatria do mercado – Ensaio sobre Economia e Teologia,
p. 401.
39 “La expresión mamônâ tês adikías no es una reducción con respecto a mamônâs, sino una cualificación:
se refiere a toda clase de bienes, poniendo em relieve su aspecto de injusticia” (SICRE, J. L., Los dioses
olvidados - poder y riqueza en los profetas preexilicos, p. 165).
40 Op. cit., p. 355.
41 “Só podemos dizer que existe essa divinização quando os bens terrenos constituem a orientação
fundamental da vida, o único ponto de apoio, a única meta. E isto sem mediação de outros pretensos deuses,
como ocorria no tempo de Oseias. É então que os bens materiais se transformam num rival de Deus, um
rival que luta com Ele no coração humano e o destitui de seu trono.” (SICRE, J. L., Op. cit., p. 355).
42 Op. cit., p. 356. Sicre cita o original do Crisólogo na Patrologia Latina, em: SICRE, J. L. Los dioses
olvidados – poder y riqueza en los profetas preexilicos, p. 153-154. Segue Sicre: “O culto a Mamon é dos
mais cruentos. Órfãos, viúvas, pobres, emigrantes, fracos, miseráveis, inclusive os próprios pais, aparecem
nos textos proféticos como vítimas do desejo de enriquecer. (...) Mas as vítimas de Mamon não são só as
pessoas. Encontramos enumeradas também a justiça, o direito, a misericórdia, estes interesses de Deus
através dos quais ele deseja regular as retas relações entre os homens, e que podemos sintetizar num único
termo: a palavra de Deus. Em Jr 6,9-30 e Ez 33,30-33 nota-se este fato, que será denunciado mais tarde por
Jesus.” (Op. cit., p. 358).
43 Op. cit., p. 356. Segue Sicre: “Se nos ativermos aos textos proféticos, a atitude fundamental que diviniza
os bens deste mundo é a cobiça, o desejo de ter mais. Mas esta cobiça se manifesta em posturas muito
diferentes e com matizes muito diversos. Tanto o rei Joaquim como os contemporâneos pobres de Jeremias
são vítimas deste desejo de ter mais. Mas é incontestável que entre eles existe uma grande diferença. A
cobiça se ramifica em três direções diferentes, todas elas idolátricas, às quais correspondem ações
específicas. A primeira tem um aspecto de injustiça direta, premeditada. Neste caso a cobiça não respeita as
posses nem a vida do próximo. Estimula a despojar os outros de seus bens para apropriar-se deles. Nesta
linha se orientam quase todos os textos proféticos. Supõe a entrega mais completa a Mamon. As ações
idolátricas com as quais se presta culto neste caso constituem uma lista quase interminável: oprimir, roubar,
defraudar, despejar, juntar casas com casas, campos com campos, escravizar pobres e crianças, aumentar o
preço dos produtos, usar balança falsificada etc. A segunda ação se caracteriza pelo egoísmo, que impede
de compartilhar os bens. Não se trata de injustiça direta, mas indireta. Este tema foi muito pouco
desenvolvido nos profetas. A única alusão que encontramos é a de Am 6,6b, quando fala dos ricos da
Samaria que se entregam à boa vida sem preocupar-se com o desastre de seus concidadãos pobres. Essas
pessoas, embora não mentem nem roubem, também prestam culto a Mamon. Fazem-no com seu luxo e
esbanjamento. Consideram estas comodidades a única coisa importante e põem plena confiança no ídolo
que as proporciona.” (Op. cit., p. 357). Ainda: “Convém levar em consideração estas três formas de cobiça
para não empobrecer o tema do culto a Mamon, já que corremos o risco de reduzi-lo à primeira. No entanto,
devemos reconhecer que foi esta primeira a que mais preocupou os profetas, como mostra a abundância de
textos que possuímos sobre ela, enquanto nos outros dois casos só contamos com insinuações muito escassas
e esporádicas. (...) Plenamente relacionada com esta atitude de cobiça, e subjacente à mesma, encontra-se
outra atitude que também converte os ditos bens num ídolo: a confiança. Os textos proféticos não ressaltam
muito este matiz. Encontramo-lo em Jr 9,22s.; também em Sf 1,18 e Ez 7,19 de forma indireta, já que, ao
negar a capacidade do ouro e da prata para salvar, pressupõem nos contemporâneos este tipo de confiança.
Embora se encontre menos desenvolvida na mensagem profética, esta atitude de confiança é mais importante
do que a cobiça, porque a justifica. O homem não desejaria acumular bens se não visse neles uma garantia
para sua vida. E assim notamos um ponto de contato com o tema da seção anterior. Nos dois casos, a
confiança depositada numa realidade que não é Deus leva à sua divinização” (Op. cit., p. 357-358).
44 Eis uma boa síntese teológica da questão do idólatra no campo da Teologia cristã, e não apenas: “Que é,
pois, um idólatra? É aquele que estabelece com o ídolo uma relação de tal tipo que "o poder e a autoridade"
entregues à Besta (Ap 17,13) se transformam em poder que a Besta realmente exerce, imprimindo em todos
o seu sinal para que possam "comprar e vender" (Ap 13,17). Em outras palavras, a relação recíproca entre o
fetiche e seu adorador faz parte da própria definição do fetiche-capital, assim como faz parte da própria
definição do adorador. Os fetiches são realmente aquilo pelo que são tomados. Seu poder se torna
historicamente real porque foram historicamente constituídos como fetiches. Daí para frente o real já não se
explica sem o fetichismo, porque a realidade funciona sob o comando dos fetiches. Então a única maneira
para "derrubar os poderosos de seu trono" (Lc 1,52) passa pela derrubada dos fetiches do seu trono. Sem
CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA
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ação antiidolátrica não só não pode haver fé verdadeira no Deus da vida, mas também não haverá
transformação profunda da realidade fetichizada. Neste preciso sentido, todas as revoluções são necessária
e ineludivelmente "ateias", ou seja, implicam numa apostasia real dos ídolos da situação que se quer ver
transformada. Aqui tocamos na dimensão política mais radical e profunda da fé. É inteiramente correto
afirmar que, assim como não há fé no Deus da Vida sem abandono dos ídolos que matam, tampouco há
revolução social sem abandono dos fetiches que legitimam e articulam a opressão, isto é, não há revolução
sem "fé" na luta pela vida e sem organização da esperança.” (ASSMANN, H.; HINKELAMMERT, F., A
idolatria do mercado – Ensaio sobre Economia e Teologia, p. 410-411).
45 Ensaios sobre psicologia social e psicanálise, p. 198.
46 A linguagem do Terceiro Reich, p. 55.
47 LTI – A linguagem do terceiro Reich, p. 40. “Pensar é uma forma de castração. por isso, a cultura é
suspeita na medida em que é identificada com atitudes críticas.” (ECO, U., O fascismo eterno, p. 48.).
48 É no sentido de ressaltar uma linguagem não manietada pelo estatuído que se desenvolvem obras
clássicas tão diversas como, por exemplo, BENJAMIN, W., “A linguagem em geral e a linguagem do
homem”, In: BENJAMIN, W., Escritos sobre mito e linguagem; ADORNO, T. W., “Ensaio como forma”,
in: ADORNO, T., Notas de literatura I; LEVINAS, E. Autrement qu’être ou au-delà de l’essence;
DERRIDA, J. “Timpanizar – a filosofia”, in: DERRIDA, J., Margens – da filosofia; ROSENZWEIG, F.
Der Stern der Erlösung, entre muitas outras. Exorbita o escopo do presente livro aprofundar essa temática;
referências diretas ou indiretas à estruturação dessa lógica de compreensão da linguagem no espectro
filosófico-cultural dos autores citados podem ser encontradas em obras como BRUMLIK, M. Vernunft und
Offenbarung; BOURETZ, P. Testemunhas do futuro – filosofia e messianismo; LÖWY, M. Filosofia e
Messianismo, Judeus heterodoxos: messianismo, romantismo, utopia, Revolta e melancolia: o Romantismo
na contracorrente da modernidade; MATE, R. Memorias de Occidente. Actualidad de pensadores judíos
olvidados; SOUZA, R. T., Ética do escrever - Kafka, Derrida e a literatura como crítica da violência, Ética
como fundamento II - pequeno tratado de ética radical, Existência em Decisão – uma introdução ao
pensamento de Franz Rosenzweig, Metamorfose e extinção - sobre Kafka e a patologia do tempo, Razões
plurais – itinerários da racionalidade ética no século XX: Adorno, Bergson, Derrida, Levinas, Rosenzweig,
Kafka, a Justiça, o Veredicto e a Colônia Penal, Levinas e a ancestralidade do Mal – por uma crítica à
violência biopolítica, entre outros.
49 ARENDT, H., Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal.
50 Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal, p. 38-39.
51 ARENDT, H., Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal, p. 44-45.
52 Ao longo de toda obra, Arendt irá apontar e destacar esse fato; tais apontamentos são em tal número que
não podem ser citados detalhadamente no presente contexto.
53 ARENDT, H., Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal, p. 45. Segue Arendt: “E
se ele nem sempre gostava do que tinha de fazer (por exemplo, despachar multidões que iam de trem para a
morte em vez de força-las a emigrar), se ele não adivinhou antes que a coisa toda iria acabar mal, com a
Alemanha perdendo a guerra, se todos os seus planos mais caros deram em nada (a evacuação dos judeus
europeus para Madagascar, o estabelecimento de um território judeu na região Nisko, na Polônia, o
experimento com instalações de defesa cuidadosamente construídas em torno de seu escritório de Berlim
para repelir os tanques russos), e se, para sua grande “tristeza e sofrimento”, ele nunca passou do grau de
Obersturmbannführer da SS (posto equivalente ao de tenente-coronel) – em resumo, se, com exceção do
ano que passou em Viena, sua vida fora marcada por frustações, ele jamais esqueceu qual seria a alternativa.”
(ARENDT, H., Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal, p. 45).
54 ARENDT, H., Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal, p. 60.
55 ARENDT, H., Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal, p. 61. Segue Arendt:
“(Será que foram clichês que os psiquiatras acharam tão “normais” e “desejáveis”? Serão essas as “ideias
positivas” que um clérigo espera encontrar nas almas para as quais ministra? A melhor oportunidade para
Eichmann demonstrar esse lado positivo de seu caráter em Jerusalém surgiu quando o jovem oficial de
polícia encarregado de seu bem-estar mental e psicológico deu-lhe um exemplar de Lolita para relaxar. Dois
dias mais tarde, Eichmann devolveu o livro, visivelmente indignado; “Um livro nada saudável” – “Das ist
aber ein sehr unerfreuliches Buch” – disse ele a seu guarda.)” (ARENDT, H., Eichmann em Jerusalém –
um relato sobre a banalidade do mal, p. 61).
56 Cf. M. Horkheimer: “Quanto mais ideias se tornam automáticas, instrumentalizadas, menos alguém vê
nelas pensamentos com um significado próprio. São consideradas como coisas, máquinas. A linguagem
tornou-se apenas mais um instrumento no gigantesco aparelho de produção da sociedade moderna. Qualquer
sentença que não seja equivalente a uma operação nesse aparelho parece a um leigo tão sem sentido como
pareceria aos semanticistas contemporâneos, os quais sugerem que a sentença puramente simbólica e
operacional, isto é, a sentença puramente sem sentido, faz sentido. O significado é suplantado pela função
ou efeito no mundo das coisas e eventos. Desde que as palavras não sejam usadas de modo evidente para
CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA
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calcular tecnicamente probabilidades adequadas ou para outros propósitos práticos, entre os quais se inclui
o recreio e a distração, arriscam-se a serem suspeitas de alguma espécie de interesse comercial, pois a
verdade não é um fim por si mesmo.” (HORKHEIMER, M. Eclipse da razão, p. 27). Horkheimer é preciso
em apontar a correlação íntima entre a instrumentalização das ideias e aquela da linguagem, não apenas em
nível qualitativo, mas também em termos quantitativos; e isso não constitui um apanágio do nazismo ou
mesmo do fascismo, mas se desdobra em inúmeros estilos de positivismo que hoje dominam boa parte das
ciências.
57 Cf. SOUZA, R. T., Kafka, a justiça, o Veredicto e a Colônia Penal, p.
58 ARENDT, H., Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal p. 61-62.
59 “A estonteante disposição de Eichmann, primeiro na Argentina, depois também em Jerusalém, a admitir
seus crimes devia-se menos a sua capacidade criminosa de autoengano do que à aura de sistemática
hipocrisia que constituía a atmosfera geral, aceita por todos, do Terceiro Reich. “Claro” que ele havia
desempenhado um papel no extermínio dos judeus; “claro” que se “não os tivesse transportado, eles não
teriam sido entregues aos açougueiros.” “O que existe aí para admitir?”, ele perguntava. Agora, continuava,
“gostaria de fazer as pazes com [seus] antigos inimigos” – sentimento que partilhava não só com Himmler,
que o expressou durante o último ano da guerra, e também com o líder das frentes de trabalhos forçados,
Robert Ley (que, antes de se suicidar em Nuremberg, havia proposto o estabelecimento de um “comitê de
conciliação” formado pelos nazistas responsáveis pelos massacres e por sobreviventes judeus), e que
partilhava também, inacreditavelmente, com muitos alemães comuns, que sabidamente se expressaram
exatamente nos mesmos termos no final da guerra.” (ARENDT, H., Eichmann em Jerusalém – um relato
sobre a banalidade do mal, p. 65-66).
60 ARENDT, H., Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal, p. 66. Segue Arendt: “E
ficavam ultrajados e desconcertados quando descobriam que o acusado tinha a sua disposição um clichê de
ânimo diferente para cada período de sua vida e cada uma de suas atividades. Na cabeça dele, não havia
contradição entre “Vou dançar no meu túmulo, rindo” adequado para o fim da guerra, e “Posso ser enforcado
em público como exemplo para todos os antissemitas da Terra”, que agora, em circunstâncias muito
diferentes, preenchia exatamente a mesma função de lhe dar um empurrão.” (ARENDT, H., Eichmann em
Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal, p. 66).
61 ARENDT, H., Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal, p. 67.
62 “Esses hábitos de Eichmann criaram consideráveis dificuldades durante o julgamento – menos para
Eichmann do que para aqueles que ali estavam para acusá-lo, defendê-lo, julgá-lo e descrevê-lo. Por tudo
isso, era essencial que ele fosse levado a sério, o que era muito difícil, a menos que se procurasse a saída
mais fácil para o dilema entre o horror inenarrável dos atos e o inegável absurdo do homem que os perpetrara,
isto é, a menos que se declarasse um mentiroso esperto, calculista – coisa que evidentemente não era”. (Op.
cit., p. 66). Segue Arendt: “Suas próprias convicções sobre isso estavam longe de ser modestas: “Um dos
poucos dons com que o destino me abençoou é a capacidade para a verdade, na medida em que ela depende
de mim”. Esse dom ele reclamava para si mesmo antes de o promotor pretender lhe atribuir crimes que não
havia cometido. Nas anotações desorganizadas e confusas que fez na Argentina, preparando-se para a
entrevista com Sassen, quando ainda estava, como ele mesmo chegou a dizer na época, “em plena posse de
sua liberdade física e psicológica”, ele lançou um fantástico alerta para que os “historiadores futuros sejam
objetivos a ponto de não se desviar da trilha da verdade aqui gravada” – fantástico porque cada linha dessas
anotações revela sua total ignorância de tudo que não fosse direta, técnica e burocraticamente ligado a seu
trabalho, sem falar de sua memória extraordinariamente deficiente.” (ARENDT, H., Eichmann em
Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal, p. 66-67).
63 ARENDT, H., Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal, p. 67-68.
64 ARENDT, H., Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal, p. 152.
65 ARENDT, H., Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal, p. 153. Segue Arendt:
“O que não referiu à corte foi que “nesse período de crime legalizado pelo Estado”, como ele mesmo disse,
descartara a fórmula kantiana como algo não mais aplicável. Ele distorcera seu teor para: aja como se o
princípio de suas ações fosse o mesmo do legislador ou da legislação local – ou, na formulação de Hans
Frank para o “imperativo categórico do Terceiro Reich”, que Eichmann deve ter conhecido: “Aja de tal
modo que o Führer, se souber de sua atitude, a aprove” (Die Technik des Staates, 1942, pp.15-6). Kant, sem
dúvida, jamais pretendeu dizer nada desse tipo; ao contrário, para ele todo homem é um legislador no
momento em que começa a agir: usando essa “razão prática” o homem encontra os princípios que poderiam
e deveriam ser os principais da lei. Mas é verdade que a distorção inconsciente de Eichmann está de acordo
com aquilo que ele próprio chamou de versão de Kant “para uso doméstico do homem comum”. No uso
doméstico, tudo o que resta do espírito de Kant é a exigência de que o homem faça mais que obedecer à lei,
que vá além do mero chamado da obediência e identifique sua própria vontade com o princípio que está por
trás da lei – a fonte de onde brotou a lei. Na filosofia de Kant, essa fonte é a razão prática; no uso doméstico

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que Eichmann faz dele, seria a vontade do Führer. ” (ARENDT, H., Eichmann em Jerusalém – um relato
sobre a banalidade do mal, p. 153-154).
66 KAFKA, F., O Veredicto. In: KAFKA, F. O Veredicto/Na Colônia Penal, p. 38-39: “As coisas se passam
da seguinte maneira. Fui nomeado juiz aqui na colônia penal. Apesar da minha juventude. Pois em todas as
questões penais estive lado a lado com o comandante e sou também o que melhor conhece o aparelho. O
princípio segundo o qual tomo decisões é: a culpa é sempre indubitável. Outros tribunais podem não seguir
esse princípio, pois são compostos por muitas cabeças e além disso se subordinam a tribunais mais altos.
Aqui não acontece isso, ou pelo menos não acontecia com o antigo comandante. O novo, entretanto, já
mostrou vontade de se intrometer no meu tribunal, mas até agora consegui rechaçá-lo – e vou continuar
conseguindo. O senhor queria que eu lhe esclarecesse este caso; é tão simples como todos os outros. Hoje
de manhã um capitão apresentou a denúncia de que este homem, que foi designado seu ordenança e dorme
diante da sua porta, dormiu durante o serviço. Na realidade ele tem o dever de se levantar a cada hora que
soa e bater continência diante da porta do capitão. Dever sem dúvida nada difícil, mas necessário, pois ele
precisa ficar desperto tanto para vigiar como para servir. Na noite de ontem o capitão quis verificar se o
ordenança cumpria o seu dever. Abriu a porta às duas horas e o encontrou dormindo todo encolhido. Pegou
o chicote de montaria e vergastou-o no rosto. Ao invés de se levantar e pedir perdão, o homem agarrou o
superior pelas pernas, sacudiu-o e disse: “Atire fora o chicote ou eu o engulo vivo!”. São estes os fatos. Faz
uma hora o capitão se dirigiu a mim, tomei nota das declarações e em seguida lavrei a sentença. Depois
determinei que pusessem o homem na corrente. Tudo isso foi muito simples. Se eu tivesse primeiro intimado
e depois interrogado o homem, só teria surgido confusão. Ele teria mentido, e se eu o tivesse desmentido,
teria substituído essas mentiras por outras e assim por diante. Mas agora eu o agarrei e não o largo mais.
Está tudo esclarecido?”.
67 “Mas o elemento pessoal indubitavelmente envolvido não era fanatismo, era a sua genuína, “ilimitada e
imoderada admiração por Hitler” (como disse uma das testemunhas da defesa) – por um homem que tinha
conseguido subir de “cabo dos lanceiros a chanceler do Reich”. Seria perda de tempo tentar entender o que
era mais forte nele, sua admiração por Hitler ou sua determinação em continuar sendo um cidadão
respeitador das leis do Terceiro Reich num momento em que a Alemanha já estava em ruínas. Ambos os
motivos entraram em jogo uma vez mais durante os últimos dias da guerra, quando ele estava em Berlim e
viu com violenta indignação como todo mundo a sua volta estava muito razoavelmente se arranjando com
documentos falsos antes da chegada dos russos ou dos norte-americanos. Poucas semanas depois, Eichmann
também começou a viajar com nome falso, mas então Hitler já estava morto, a “lei local” não existia mais
e ele, conforme disse, não estava mais preso a seu juramento. Pois o juramento feito pelos membros da SS
era diferente do juramento militar dos soldados, na medida em que os ligava a Hitler e não à Alemanha”
(ARENDT, H., Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal, p. 166).
68 ARENDT, H., Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal, p. 165. Segue Arendt:
“A posição de Eichmann, portanto, demonstrava uma semelhança muito desagradável com aquela do muito
citado soldado que, agindo dentro de um quadro legal normal, se recusa a executar ordens que contrariam a
sua experiência normal de legalidade e que podem ser reconhecidas por ele como criminosas. A extensa
literatura sobre o assunto geralmente baseia suas afirmações no sentido comum equívoco da palavra “lei”,
que neste contexto significa às vezes a lei local – ou seja, a lei positiva e constituída – e às vezes a lei que
supostamente fala ao coração de todos os homens com a mesma voz. Em termos práticos, porém, para serem
desobedecidas, as ordens têm de ser “manifestamente ilegais”, e a ilegalidade tem de “pairar como uma
bandeira negra acima [delas] como um aviso de ‘Proibido!’” – conforme o tribunal indicou. E num regime
criminoso essa “bandeira negra” com seu “aviso” paira “manifestamente” acima do que é normalmente uma
ordem legal – por exemplo, não matar pessoas inocentes só porque são judeus – da mesma forma como paira
sobre uma ordem criminosa em circunstâncias normais. Acreditar numa inequívoca voz da consciência –
ou, na linguagem ainda mais vaga dos juristas, num “sentimento geral de humanidade” (Oppenheim-
Lauterpacht em International Law, 1952) – é não só fugir da questão como significa uma recusa deliberada
em perceber os fenômenos morais, legais e políticos mais importantes do nosso século.” (ARENDT, H.,
Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal, p. 165-166).
69 Recorde-se que “O caso de consciência de Adolf Eichmann, que é realmente complicado, mas de modo
nenhum único, não é comparável ao caso dos generais alemães, um dos quais, quando lhe perguntaram em
Nuremberg, “Como é possível que todos vocês, honrados generais, tenham continuado a servir um assassino
com lealdade tão inquestionável?”, respondeu que “não era tarefa de um soldado agir como juiz de seu
comandante supremo. Que a história se encarregue disso, ou Deus do céu”. (Era o general Alfred Jodl,
enforcado em Nuremberg) Eichmann, muito menos inteligente e sem nenhuma formação, percebeu pelo
menos vagamente que não era uma ordem, mas a própria lei que os havia transformado a todos em
criminosos. Uma ordem diferia da palavra do Führer porque a validade desta última não era limitada no
tempo e no espaço – a característica mais notável da primeira. Essa é também a verdadeira razão pela qual
a ordem do Führer para a Solução Final foi seguida por uma tempestade de regulamentos e diretivas, todos
CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA
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elaborados por advogados peritos e conselheiros legais, não por meros administradores; essa ordem, ao
contrário de ordens comuns, foi tratada como uma lei. Nem é preciso acrescentar que a parafernália legal
resultante, longe de ser um mero sintoma do pedantismo ou empenho alemão, serviu muito eficientemente
para dar a toda a coisa a sua aparência de legalidade. (ARENDT, H., Eichmann em Jerusalém – um relato
sobre a banalidade do mal, p. 166-167).
70 “E assim como a lei de países civilizados pressupõe que a voz da consciência de todo mundo dita “Não
matarás”, mesmo que o desejo e os pendores do homem natural sejam às vezes assassinos, assim a lei da
terra de Hitler ditava à consciência de todos: “Matarás”, embora os organizadores dos massacres soubessem
muito bem que o assassinato era contra os desejos e os pendores normais da maioria das pessoas. No Terceiro
Reich, o Mal perdera a qualidade pela qual a maior parte das pessoas o reconhecem – a qualidade da
tentação. Muitos alemães e muitos nazistas, provavelmente a esmagadora maioria deles, deve ter sido
tentada a não matar, a não roubar, a não deixar seus vizinhos partirem para a destruição (pois eles sabiam
que os judeus estavam sendo transportados para a destruição, é claro, embora muitos possam não ter sabido
dos detalhes terríveis), e a não se tornarem cúmplices de todos esses crimes tirando proveito deles. Mas
Deus sabe como eles tinham aprendido a resistir à tentação” (Op. cit., p. 167).
71 ARENDT, H., Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal, p. 310-311.
72 O fascismo eterno, p. 48.
73 Apud FAYE, J.-P., Introdução às linguagens totalitárias, p. 109.
74 Introdução às linguagens totalitárias, p. XIII.
75 KLEMPERER, V., Os diários de Viktor Klemperer, p. 747 – redigido em 1. de janeiro de 1945.
76 “In 1968 Hannah Arendt published a study of exemplar lives under the self-explanatory title men in dark
times. Victor Klemperer does not figure there, although he would have been a most fitting subject. Arendt
did not know, indeed it appears – somewhat strangely – did not even know of, Klemperer. This is to be
regretted, for Klemperer must be considered the pioneer of the study of totalitarian language, perhaps to this
day one of its most insightful analysts. Arendt’s 1951 The Origins of Totalitarianism does not mention, but
would have been immeasurably enriched by, Klemperer’s LTI – Notebook of a Philologist, which had
appeared in 1947”. (ASCHHEIM, S. E., Scholem, Arendt, Klemperer – Intimate Chronicles in Turbulent
Times, p. 70). Para uma contextualização cultural geral da obra de Klemperer, cf. ASCHHEIM, S. E.
Scholem, Arendt, Klemperer – Intimate Chronicles in Turbulent Times, p. 70-98).
77 A epígrafe geral de Os diários de Viktor Klemperer – testemunho clandestino de um judeu na Alemanha
nazista em português, tradução de Irene Aron, que cobre os anos de 1933 a 1945, diz poeticamente:
“Seguirei escrevendo. Esse é o meu heroísmo. Prestarei testemunho, testemunho preciso” (p. 5).
78 KLEMPERER, Victor. LTI - A linguagem do Terceiro Reich, p. 39-40.
79 KLEMPERER, Victor. LTI - A linguagem do Terceiro Reich, p. 40. Segue: “Para mim, os relatos de
Hitler e de Goebbels se complementam, como observou uma amiga. Naquela época, ela era médica no
hospital de Pirna, vilarejo industrial na Saxônia. "Quando, à noite, depois das manifestações, recebíamos os
feridos", ela contava amiúde, "eu sabia imediatamente qual o partido de cada um, mesmo se o paciente já
estivesse despido no leito: os nazistas eram aqueles que estavam com a cabeça ferida, por suas bebedeiras
ou porque tinham brigado usando cadeiras, e os comunistas eram aqueles com os pulmões perfurados por
golpes de estilete." Quanto à fama, a história das SA reproduziu a literatura italiana: só se conseguiu alcançar
o esplendor nos estágios iniciais; aquele brilho intenso, nunca mais.” (KLEMPERER, Victor. LTI - A
linguagem do Terceiro Reich, p. 41).
80 KLEMPERER, Victor. LTI - A linguagem do Terceiro Reich, p. 42-43.
81 ALTER, R. Anjos necessários – tradição e modernidade em Kafka, Benjamin e Scholem, p. 89.
82 KLEMPERER, Victor. LTI - A linguagem do Terceiro Reich, p. 64: “É preciso reconhecer essa riqueza
(da linguagem alemã, R. T. S.) – florescente até 1933 e logo em seguida, repentinamente, moribunda – para
que se possa perceber a pobreza de espírito dessa escravidão uniformizada, a principal característica da LTI.
(...) A razão da pobreza parece evidente. Com um sistema tirânico extremamente invasivo, tudo era vigiado
nos mínimos detalhes para que a doutrina nacional-socialista permanecesse intacta, sem falsificações em
cada um de seus aspectos, incluindo a linguagem. Baseando-se no modelo de censura eclesiástica, os
seguintes dizeres constavam na página de rosto dos livros: ‘O NSDAP não se opõe à publicação deste texto.
Assinado pelo presidente da ‘comissão oficial de censura’ de proteção ao nacional-socialismo”. Ainda: “Só
quem fosse membro da Câmara de Letras do Reich tinha permissão para se manifestar. A imprensa só podia
publicar o que fosse liberado pelo “órgão central da censura”; no máximo, podia fazer pequenas variações
nos textos obrigatórios, da forma mais modesta possível, variações que se referiam à aparência externa
permitida para os clichês” (Op. cit., p. 64). Segue Klemperer: “Nos anos finais do Terceiro Reich, às sextas-
feiras à noite, instituiu-se o hábito de se ler na Rádio de Berlim o artigo mais recente de Goebbels, que seria
publicado no Reich do dia seguinte. O conteúdo era liberado para que a imprensa o difundisse em toda a
área de influência do nazismo. Assim, um pequeno grupo determinava o modelo linguístico permitido para
a coletividade como um todo. Em última instância, Goebbels era o único a definir a linguagem permitida,
CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA
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pois sua vantagem em relação a Hitler era que, além de ter ideias mais claras, também se expressava de
forma mais organizada que o Führer, que se calava cada vez mais, como se desejasse manter o silêncio da
divindade muda ou porque não lhe restava mais nada decisivo a dizer. Caso houvesse alguma opinião de
Göring ou de Rosenberg, o ministro de Propaganda a incluía no texto do próprio discurso.” (KLEMPERER,
Victor. LTI - A linguagem do Terceiro Reich, p. 64-65).
83 KLEMPERER, Victor. LTI - A linguagem do Terceiro Reich, p. 65.
84 “Os cartazes nazistas se pareciam uns com os outros. O que se via era sempre o mesmo tipo de guerreiro
bruto e adestrado, empunhando uma bandeira, um fuzil ou uma espada, usando uniforme das SA, das SS ou
do Exército, ou mesmo com o tronco nu. Sempre a mesma combinação de força física, intenso fanatismo,
musculatura, cenho duro e ausência de sinais de atividade mental. Eram essas as características da
propaganda que lidava com o esporte, a guerra e a subserviência à vontade do Führer.” (KLEMPERER,
Victor. LTI - A linguagem do Terceiro Reich, p. 153).
85 KLEMPERER, Victor. LTI - A linguagem do Terceiro Reich, p. 65. Segue Klemperer: “Se puder se
expressar com liberdade, qualquer língua consegue dar conta de todos os anseios humanos. Elas se prestam
à razão e ao sentimento, são comunicação, diálogo e monólogo, oração e súplica, ordem e invocação. A LTI
só se prestava à invocação. O tema podia ser da esfera pública ou privada – não, isso é falso, pois a LTI mal
conhecia o domínio privado, confundindo-o com a esfera pública, assim como confundia as linguagens
escrita e oral -, não importa, tudo era discurso e publicidade. "Tu não és nada, teu povo é tudo", pregava. O
que significa que nunca estás sozinho, contigo mesmo, nunca estás a sós com os teus, estás sempre exposto.
(...) Seria também enganoso se eu dissesse que, em todos os setores, a LTI dirige-se exclusivamente à
vontade. Pois quem apela para a vontade apela sempre para o indivíduo, mesmo que se dirija a uma
coletividade, a um público.(...) A LTI é a linguagem do fanatismo de massas. Dirige-se ao indivíduo - não
somente à sua vontade, mas também ao seu pensamento –, é doutrina, ensina os meios de fanatizar e as
técnicas de sugestionar as massas.” (KLEMPERER, Victor. LTI - A linguagem do Terceiro Reich, p. 65-
66). Sobre a palavra “fanatismo”, destaca Klemperer: “Jamais um livro de pregação clerical foi escrito de
maneira tão vil e desavergonhada quanto Mein Kampf, de Hitler. Com uma ressalva: em vez de “impostura
clerical”, a LTI diz ‘propaganda'. A maior incógnita do Terceiro Reich, para mim, é entender como esse
livro conseguiu penetrar na opinião pública, como permitiu que Hitler dominasse como dominou, e como
foi possível que essa dominação tenha durado doze anos, apesar da bíblia do nacional-socialismo ter sido
lançada muitos anos antes da tomada do poder. Durante todo o século XVIII francês nunca, jamais, a palavra
fanatismo, com seu adjetivo correspondente, ocupou um lugar tão importante, nem foi tão desvirtuada,
quanto nos doze anos do Terceiro Reich.” (KLEMPERER, Victor. LTI - A linguagem do Terceiro Reich, p.
66). Ainda a destacar: “Característica inconteste da LTI é a flagrante mecanização da própria pessoa. Nesse
campo, a criação mais clara e provavelmente a mais precoce é o verbo gleichschalten [sincronização da
voltagem na energia elétrica, uniformização de ideias, atitudes e ações, especialmente no que diz respeito a
acertar o passo nas paradas militares]. Pode-se ver e ouvir o clique do botão que faz pessoas – não
instituições nem administrações despersonalizadas – adotarem posições e movimentos uniformes e
automáticos: professores de diversas instituições, funcionários de serviços jurídicos ou administrativos,
membros dos Stahlhelm [capacetes de aço] ou das SA etc. etc. sempre são conduzidos gleichgeschaltet [em
sintonia], de maneira coordenada”. (KLEMPERER, Victor. LTI - A linguagem do Terceiro Reich, p. 245).
86 Cf. SOUZA, R. T., Ética do escrever – Kafka, Derrida e a Literatura como crítica da violência, p. 43-
54.
87 KLEMPERER, V. LTI - A linguagem do Terceiro Reich, p. 177.
88 Cf. FREUD, S., Psicologia das massas e análise do eu; BAUMAN, Z., Retrotopia; ADORNO, T. W.
Ensaios sobre psicologia social e psicanálise; CANETTI, E. Massa e poder; SANTNER, E., A Alemanha
de Schreber: uma história secreta da modernidade, entre outros.
89 KLEMPERER, Victor. LTI - A linguagem do Terceiro Reich, 190-192.
90Um médico da aldeia In: KAFKA, Franz. Contos, Fábulas e Aforismos, p. 43.
91 Dios, la muerte y el Tiempo, p. 23.
92 Apud ROUDINESCO, E., Dicionário amoroso da psicanálise, p. 20.
93 Apud FRIEDLÄNDER, S., Franz Kafka, p. 213.
94 In: KAFKA, Franz. Narrativas do Espólio, p. 30-63.
95 KAFKA, F., Um médico da aldeia In: KAFKA, Franz. Contos, Fábulas e Aforismos, p. 30-31.
96 “ein älterer Junggeselle”.
97 KAFKA, F., Um médico da aldeia In: KAFKA, Franz. Contos, Fábulas e Aforismos, p. 31-32: “É certo,
no entanto, que um cão também oferece desvantagens. Por mais que seja mantido limpo, vai sempre sujar a
casa. É uma coisa que não se pode evitar; não é possível, toda vez que vai entrar no quarto, lavá-lo com água
quente, e sua saúde tampouco aguentaria isso. Mas Blumfeld, por seu turno, não suporta sujeira no quarto;
a limpeza da casa é algo imprescindível para ele; várias vezes por semana discute com sua empregada, que
neste ponto infelizmente, não é muito escrupulosa. Como é meio surda, ele habitualmente a arrasta pelo
CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA
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braço aos lugares onde há algo a objetar quanto à limpeza. Por conta dessa severidade ele conseguiu que a
ordem na peça corresponda mais ou menos aos seus desejos. Com a introdução de um cachorro, porém, ele
iria levar sujeira por conta própria justamente ao cômodo até então cuidadosamente protegido. Pulgas, as
eternas companheiras dos cães, também compareceriam. Mas, uma vez instaladas ali, não estaria distante o
momento em que Blumfeld deixaria o quarto confortável ao cachorro e procuraria outro. A sujeira, no
entanto, era apenas uma desvantagem dos cães. Eles ficam doentes e de enfermidades de cães na verdade
ninguém entende. O animal fica agachado num canto, coxeando de lá para cá, gane, tem uma tossinha,
sufoca por causa de alguma dor; envolvem-no numa coberta, assobiam-lhe qualquer coisa, empurram-lhe
leite – em suma: tratam-no com a esperança de que seja, o que também é possível, um mal passageiro; mas
em vez disso pode ser uma doença séria, repulsiva e contagiosa. E, mesmo que o cachorro permaneça sadio,
chega o dia em que ele sem dúvida envelhece e a pessoa deve tomar a decisão de se desfazer dele em tempo,
e vem a ocasião em que a própria idade dela a olha através dos olhos lacrimejantes do cão. É preciso, aí,
atormentar-se com o animal meio cego, fraco dos pulmões, quase imóvel em virtude da gordura e com isso
pagar caro as alegrias que o cachorro deu antes. Por mais que Blumfeld gostasse agora de possuir um cão,
prefere sem dúvida subir mais trinta anos a escada a suportar mais tarde um cão velho desses, que, gemendo
mais alto do que ele, se arrasta ao seu lado de degrau em degrau.”
98 Cf. KAFKA, F., Um médico da aldeia In: KAFKA, Franz. Contos, Fábulas e Aforismos, p. 32-33.
99 KAFKA, F., Um médico da aldeia In: KAFKA, Franz. Contos, Fábulas e Aforismos, p. 33-34.
100 KAFKA, F., Um médico da aldeia In: KAFKA, Franz. Contos, Fábulas e Aforismos, p. 34: “Certamente
não é totalmente sem valor viver como um solteirão ignorado, mas em segredo; agora alguém, não importa
quem seja, ventilou esse segredo e introduziu em sua vida essas duas ridículas bolas. (...) Blumfeld quer
agarrar uma delas, mas as duas se desviam, recuando, e o atraem a persegui-las pelo aposento. “É estupidez
demais” – pensa ele – “correr atrás das bolas desse jeito”; fica parado e segue-as com o olhar, enquanto elas,
uma vez que a perseguição parece ter cessado, também permanecem no mesmo lugar. (...) “Mas eu tenho,
apesar de tudo, de tentar pegá-las” – volta ele a pensar e corre em direção a elas. (...) Imediatamente as bolas
fogem; Blumfeld, no entanto, com as pernas abertas, as impele para um canto da peça e, diante da mala que
ali se encontra, consegue agarrar uma bola. Ela é fria e pequena e gira em sua mão, evidentemente ansiosa
para escapulir. A outra bola, como se visse a aflição de sua companheira, salta mais alto que antes e alarga
os saltos até roçar a mão de Blumfeld; desfere um golpe contra ela; bate com saltos cada vez mais rápidos,
muda os pontos de ataque; depois, uma vez que não consegue nada contra a mão que encerra a outra bola
por completo, pula mais alto ainda, querendo provavelmente atingir o rosto de Blumfeld, que poderia
também agarrá-la e prender as duas em algum lugar; mas no momento parece-lhe aviltante tomar medida
como essa contra duas pequenas bolas”.

101 KAFKA, F., Um médico da aldeia In: KAFKA, Franz. Contos, Fábulas e Aforismos, p. 35-36.
102 Cf. KAFKA, F., Um médico da aldeia In: KAFKA, Franz. Contos, Fábulas e Aforismos, p. 37-38.
103 KAFKA, F., Um médico da aldeia In: KAFKA, Franz. Contos, Fábulas e Aforismos, p. 38-39.
104 Cf. KAFKA, F., Um médico da aldeia In: KAFKA, Franz. Contos, Fábulas e Aforismos, p. 39.
105 KAFKA, F., Um médico da aldeia In: KAFKA, Franz. Contos, Fábulas e Aforismos, p. 39-41.
106 Cf. ADORNO, T. “Anotações sobre Kafka”, in: ADORNO, T., Prismas, p. 247-248: “Tudo o que se
equilibra no auge do instante, como um cavalo empinado sobre as patas traseiras, é fotografado como se a
cena devesse ser preservada para sempre. O exemplo mais terrível disso encontra-se em O processo: Josef
K. abre a porta do quarto de despejo, no qual no dia anterior seus guardas haviam sido espancados, e encontra
fielmente reproduzida a mesma cena, inclusive com a invocação dele próprio. "Imediatamente, K. fechou a
porta e bateu nela com os punhos como se desse modo ela ficasse fechada mais firmemente." Este é o gesto
da própria obra de Kafka, que, como já ocorria por vezes em Poe, se afasta das cenas mais extremas, como
se nenhum olho pudesse sobreviver àquela visão. Nela se mesclam o efêmero e a mesmice. Titorelli pinta
sempre e repetidamente essa antiquada paisagem de gênero, repleta de campos”.
107 Cf. SOUZA, R. T., Metamorfose e Extinção – sobre Kafka e a patologia do tempo.
108KAFKA, F. A Metamorfose, p. 8-9.
109 Onde há vida em Kafka? “Ele se apega à salvação das coisas, daqueles objetos que não estão mais
envolvidos na rede de culpa, que não podem mais ser trocados, que são inúteis. O sentido mais profundo
do obsoleto na obra de Kafka refere-se a estas coisas. O seu mundo de ideias – como no "Teatro natural
de Oklahoma" – assemelha-se a um mundo de saldos de lojas: nenhum teologoumenon adaptar-se-ia
melhor a ele do que o título de um cinema americano de comédia: Shopworn angel. Enquanto no interior
das casas, onde as pessoas moram, há desgraça, nos cantos e nas escadas onde brincam as crianças há
esperança. A ressurreição dos mortos deveria ter lugar no cemitério de automóveis. A inocência do
inútil é o contraponto ao parasitário: ‘O ócio é o início de todo vício, e a coroação de todas as virtudes’.
Segundo o testemunho da obra de Kafka, toda positividade, toda contribuição, poder -se-ia mesmo dizer

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que todo trabalho que reproduz a vida apenas promove o intrincamento” – ADORNO, T., “Anotações
sobre Kafka”, in: ADORNO, T., Prismas, p. 269.
110 ADORNO, T. Minima moralia – reflexões sobre a vida danificada.
111 GREEN, A., Narcisismo de vida, narcisismo de morte, p. 10.
112 “O narcisismo foi, de uma certa maneira, um parêntese no pensamento de Freud. Se a sexualidade
permanece sendo a constante indestronável de toda a teoria do inventor da psicanálise, seu poder é sempre
contestado por uma força adversa que varia no decorrer dos anos. Antes do narcisismo, foram as pulsões de
auto-conservação; depois dele, as pulsões de morte. No interregno entre a primeira e a última teoria das
pulsões, o narcisismo resultará da libidinização das pulsões do Eu destinadas até então à auto-conservação.
Para Freud foi, sem dúvida, um salto decisivo levar a sexualidade ao seio do Eu, quando este último parecia,
numa primeira abordagem, escapar à sua influência. Com o narcisismo, Freud pensava ter encontrado a
causa da inacessibilidade de certos pacientes à psicanálise. Tendo a libido se desviado dos objetos e tendo
refluído para o Eu, isto impedia qualquer transferência, em todos os sentidos do termo, e, portanto, toda
elaboração da psicossexualidade que havia encontrado refúgio num santuário inviolável. (...) Era, portanto,
preciso descobrir o narcisismo, como subconjunto da psique, antes de poder dar conta de seu lugar na tópica,
na dinâmica e na economia da libido. Esta dimensão da vida psíquica não se impôs logo de início na
psicanálise. Foram necessários quase vinte anos de reflexão e de experiência para que Freud se decidisse a
levantar esta hipótese no seu escrito princeps sobre a questão, “Para introduzir o narcisismo” (1914).(...)”
(GREEN, A., Narcisismo de vida, narcisismo de morte, p. 10.)
113 Cf. GREEN, A. Narcisismo de vida, narcisismo de morte, p. 12.
114 “Em suma, o narcisismo era um chamariz tão eficaz que fazia a própria teoria sofrer a sedução da qual
ele mesmo era a expressão: a ilusão unitária, recaindo desta vez sobre a libido. Freud decidiu, então, pôr fim
a esta peripécia de seu pensamento propondo a última teoria das pulsões que opunha as pulsões de vida e as
pulsões de morte. A hipótese das pulsões de morte viria suscitar controvérsias. A sexualidade, por sua vez,
mudava de estatuto. Não serão as pulsões sexuais, mas as pulsões de vida que se oporão às pulsões de morte.
O que parece ser apenas uma nuança tem inúmeras conseqüências, pois frente ao espectro da morte, o único
adversário à altura é Eros, figura metafórica das pulsões de vida. O que esta nova denominação reagrupa?
A soma das pulsões anteriormente descritas que agora se encontram reunidas sob uma denominação única:
as pulsões de auto-conservação, as pulsões sexuais, a libido objetal e o narcisismo.” (GREEN, A.,
Narcisismo de vida, narcisismo de morte, p. 10-11.)
115 GREEN, A., Narcisismo de vida, narcisismo de morte, p. 12. Ainda: “Nossa reflexão sobre a obra de
Freud nos permite entender porque, depois da genial introdução do narcisismo (1914), impunha-se seu
abandono sob pena de nos conduzir a falsas pistas – assim como se impunha a introdução da pulsão de morte
(1921) que levava a uma redistribuição mais coerente dos valores da teoria psicanalítica, mantida por Freud
até a sua morte (1939) com uma insistência cada vez mais vigilante. E se ele não foi explícito sobre o futuro
do narcisismo depois da última teoria das pulsões, disse o suficiente para que tenhamos condições de dar
prosseguimento à sua reflexão” (GREEN, A., Narcisismo de vida, narcisismo de morte, p. 141).
116 GREEN, A., Narcisismo de vida, narcisismo de morte, p. 23.
117 GREEN, A., Narcisismo de vida, narcisismo de morte, p. 23.
118 GREEN, A., Narcisismo de vida, narcisismo de morte, p. 24. Tecnicamente, nesse momento, trata-se
do Narciso Janus de Green: “Narciso Janus é, portanto, mimético da vida, assim como da morte, adotando
a solução ilusória de fazer da vida ou da morte um casal absolutamente fechado. Compreende-se melhor por
que Freud se desviou do narcisismo, onde viu uma fonte de mal-entendidos. Mas a substituição de um
conceito por outro muda a palavra, não a coisa”. (GREEN, A., Narcisismo de vida, narcisismo de morte, p.
24.)
119 Cf. SOUZA, R. T., Metamorfose e extinção - sobre Kafka e a patologia do tempo.
120 GREEN, A., Narcisismo de vida, narcisismo de morte, p. 24.
121 GREEN, A., Narcisismo de vida, narcisismo de morte, p. 141-142. Grifo nosso.
122 “Digo pertencer à essência de uma certa coisa aquilo que, se dado, a coisa é necessariamente posta e
que, se retirado, a coisa é necessariamente retirada; em outras palavras, aquilo sem o qual a coisa não pode
existir nem ser concebida e vice-versa, isto é, aquilo que sem a coisa não pode existir nem ser concebido.”
(SPINOZA, B., Ética – Definições).
123 Cf. SOUZA, R. T. Totalidade & desagregação, p. 2-18.
124 GREEN, A., Narcisismo de vida, narcisismo de morte, p. 299-300. Grifo nosso. Segue Green: “Não há
somente os indivíduos que se deixam morrer. Há também civilizações inteiras que parecem sofrer de apatia,
renunciando a seus ideais, soçobrando na passividade, sinal antecipador de seu desaparecimento, quando
perderam qualquer ilusão sobre o futuro. E este é um aspecto da parte terminal da obra de Freud que não
reteve suficientemente a atenção de seus comentadores. Se este se persuade, dia após dia, de quão bem
fundamentado está em afirmar o papel capital desempenhado pelas pulsões de destruição, não é porque
generaliza abusivamente o que lhe ensina sua experiência clínica. Sua ambição não se limitava, sabemos, a
CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA
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elucidar os mistérios da neurose ou até da psicose. O tratamento das neuroses era apenas uma aplicação do
método. Menos segura do que quando tira suas conclusões do tratamento, a escuta do mundo social vem
confirmar o que a orelha do psicanalista decifra do discurso consciente. As sociedades – das mais
“selvagens” às mais civilizadas – clamam incessantemente seu desejo de paz e se dilaceram entre si tanto
na guerra quanto na paz. Toda guerra não é, no fim das contas, a melhor proteção contra o perigo fratricida
da guerra civil? Shakespeare já o sabia.” (GREEN, A., Narcisismo de vida, narcisismo de morte, p. 300).
Adiante apresenta Green suas conclusões algo otimistas: “Sob a pressão dos homens e dos acontecimentos,
(as sociedades) ver-se-ão talvez obrigadas a devolver a Eros alguns dos direitos de que foi espoliado. (...)
Hoje, talvez não basta mais preparar-se serenamente para a eventualidade da morte. Deve-se também tentar
combater a tentação de se abandonar coletivamente a ela num momento em que ela ameaça o planeta de
devastações irreparáveis” (GREEN, A., Narcisismo de vida, narcisismo de morte, p. 302).
125 KAFKA, F., “Graco, o caçador, in: KAFKA, F., Contos, fábulas e aforismos (“Der Jäger Gracchus”,
in: KAFKA, F., Beim Bau de chinesischen Mauer und andere Schriften aus dem Nachlass”, p. 40-44). Não
abordaremos as ressonâncias judaicas ou cabalísticas desse escrito, embora essas sejam evidentes ao leitor
culto.
126 “No fundo, a causa da estranha viagem do morto-vivo caçador Graco pelas águas da terra é a ausência
de qualquer ordem ou referência de segurança terrena ou metafísica no século XX. Não se trata aqui de
nenhuma invenção misteriosa ou fantástica de Kafka, mas da descrição poética da realidade do ser humano
neste século; talvez uma realidade muito mais antiga, que apenas no século XX assoma à plena consciência”.
(EMRICH, W., Kafka, p. 19.)
127 KAFKA, F., “Graco, o caçador”, p. 21.
128 KAFKA, F., “Graco, o caçador”, p. 22.
129 KAFKA, F., “Graco, o caçador”, p. 23.
130 KAFKA, F., “Graco, o caçador”, p. 23-24.
131 KAFKA, F., “Graco, o caçador”, p. 24.
132 KAFKA, F., “Graco, o caçador”, p. 24.
133 KAFKA, F., “Graco, o caçador, p. 24.
134 KAFKA, F., “Graco, o caçador”, p. 25.
135 KAFKA, F., “Graco, o caçador”, p. 25-26.
136 KAFKA, F., “Graco, o caçador”, p. 26-27.
137 KAFKA, F., “Graco, o caçador”, p. 27-28.
138 KAFKA, F., “Graco, o caçador”, p. 28.
139
Cf. ROUDINESCO, E.: “(...) as patologias narcísicas tornaram-se dominantes nas sociedades
democráticas depressivas do fim do século XX, marcadas pelo desaparecimento progressivo da frustração
sexual tão característica de uma época ainda dominada pelo puritanismo. Em consequência, a sociedade
individualista moderna, assolada pela ditadura das imagens, desabrocha na cultura do narcisismo e na
contemplação exacerbada da própria imagem: da mania do “selfie” à empolgação pela autoficção, da
exibição da vida íntima à apologia da “pós-verdade”. Tudo se passa como se agora o mundo externo tivesse
menos importância do que o vivido emocional, e como se os fatos objetivos contassem menos, para modelar
os espíritos, do que os grandes apelos à emoção e às opiniões pessoais.” (ROUDINESCO, E., Dicionário
amoroso da psicanálise, p. 229.).
140 De Dieu qui vient à l’idée, p. 214.
141
“Ideologia e Idealismo”, in: LEVINAS, E., De Deus que vem à idéia, p. 31
142 Sobre o conceito de “metafenomenologia”, cf. SOUZA, R. T., Sujeito, ética e história – Levinas, o
traumatismo infinito e a crítica da filosofia ocidental, passim; SOUZA, R. T., Wenn das Unendliche in die
Welt des Subjekts und der Geschicte einfällt – ein metaphänomenologischer Versuch über das ethische
Unendliche bei Emmanuel Levinas, passim.
143 Cf. SOUZA, R. T., Totalidade & desagregação – sobre as fronteiras do pensamento e suas alternativas,
passim.; SOUZA, R. T., Existência em Decisão – uma introdução ao pensamento de Franz Rosenzweig;
SOUZA, R. T., Razões plurais – itinerários da racionalidade ética no século XX: Adorno, Bergson, Derrida,
Levinas, Rosenzweig; SOUZA, R. T., Sentido e Alteridade – Dez ensaios sobre o pensamento de E. Levinas;
SOUZA, R. T., Em torno à Diferença – aventuras da alteridade na complexidade da cultura
contemporânea, entre outros.
144 LEVINAS, E., Totalité et Infini – essai sur l’exteriorité.
145 Cf. SOUZA, R. T., Wenn das Unendliche in die Welt des Subjekts und der Geschicte einfällt – ein
metaphänomenologischer Versuch über das ethische Unendliche bei Emmanuel Levinas, p. 3-37 e 87-170;
SOUZA, R. T., Sentidos do infinito, passim.
146 “... a ‘Ciência da Lógica’ não é somente o primeiro passo dirigido à construção do sistema das ciências
filosóficas, que a chamada ‘Enciclopédia’ posteriormente haveria de expor, mas é a parte primeira e
fundamental do dito sistema. Ademais, a ‘Enciclopédia das ciências filosóficas’ é, a rigor, só um livro de
CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA
SEMINÁRIO - 2020
131

texto para as aulas de Hegel” (GADAMER, H.-G., La Dialéctica de Hegel, p. 76). Este é um dos motivos
pelo qual, para a abordagem da questão do infinito em Hegel, nos baseamos principalmente na Ciência da
Lógica e não em outros textos. Conferir ainda: HEIMSOETH, H., Seis grandes temas de la Metafísica
Occidental, p. 124.
147 “No seu último trabalho tratou dos pressupostos do todo: foi uma reelaboração do primeiro volume da
lógica” (HARTMANN, N., A Filosofia do idealismo Alemão, p. 352).
148 Observe-se que, já na obra Diferença dos sistemas filosóficos de Fichte e de Schelling, Hegel apresenta
uma intuição muito próxima daquela que levará à distinção entre o infinito “bom” e o “mau”: “O infinito,
enquanto oposto ao finito, é um termo racional de gênero posto pelo entendimento: enquanto racional, ele
não exprime senão o ato negador do finito. Fixando-o, o entendimento o opõe absolutamente ao finito, e a
reflexão que, suprimindo o finito, fora elevada à razão, é de novo rebaixada ao entendimento, fixando em
uma oposição o ato da razão; por outro lado, mesmo nesta recaída, ela pretende ser ainda racional” (Hegel,
Différence des Systèmes philosophiques de Fichte et de Schelling, p. 87).
149 “Die Logik ist sonach als System der reinen Vernunft, als das Reich des Gedankes zu fassen. Dieses
Reich ist die Wahrheit, wie sie ohne Hülle an und für sich selbst ist” (Logik, p. 44).
150 “...die Darstellung Gottes ist, wie er in seinem ewigen Wesen vor der Erschaffung der Natur und eines
endlichen Geistes ist” (Logik, p. 44).
151 “Das System der Logik ist das Reich der Schatten, die Welt der einfachen Wesenheiten, von aller
sinnlichen Konkretion befreit” (Logik, p. 55).
152 “Die objektive Logik ist daher die wahrhafte Kritik deselben – eine Kritik, die sie nicht nach der
abstrakten Form der Apriorität gegen das Aposteriorische, sondern die selbst in ihrem besonderen inhalte
betrachtet” (Logik, p. 62).
153 “Und wenn Hegel... das Sein bestimmt... so hält er sich in derselben Blickrichtung wie die antike
Ontologie...” - HEIDEGGER, M, Sein und Zeit, p. 4.
154 “Das Sein, das umbestimmte Unmittelbare ist in der tat Nichts und nicht mehr noch weniger als Nichts”
(Logik, p. 83).
155 “Es ist einfache Gleichheit mit sich selbst... Ununterschiedenheit in ihm selbst” (Logik, p. 83)
156 “Nichts ist... Uberhaupt dasselbe, was das reine Sein ist” (Logik, p. 83).
157 “Was die Wahrheit ist, ist weder das Sein noch das Nichts, sondern dass das Sein in Nichts und das
Nichts in Sein... jedes in seinem Gegenteil verschwindet. Ihre Wahrheit ist also diese Bewegung des
Unmittelbaren Verschwindens des einen in den anderen: das Werden; eine Bewegung, worin beide
unterschieden sind, aber durch einen Unterschied, der sich ebenso unmittelbar aufgelöst hat” (Logik, 83)
158 “... so richtig die Angabe ist, so falsch ist sie” – Logik, p. 94
159 “Dialektik aber nennen wir die höhere vernünftige Bewegnng, in welche solche schlechthin getrennt
Scheinende durch sich selbst, durch das, was sie sind, ineinander Ubergehen, die Voraussetzung (ihrer
Getrenntheit) sich aufhebt” (Logik, p. 111).
160 “Dasein ist bestimmtes Sein; seine Bestimmtheit ist seiende Bestimmtheit, Qualität (Logik, p. 115).
Também: “Aus dem Werden geht das Dasein hervor. Das Dasein ist das einfache einssein des Seins und
Nichts” (Logik, p. 116).
161 “Dasein ist, nach seinem Werden, überhaupt Sein mit einem Nichtsein, so dass dies Nichtsein in
einfache Einheit mit dem Sein aufgenommen ist” (Logik, p. 116)
162 “... das Dasein ist ein bestimmtes Sein, ein Konkretes” (Logik, p. 117).
163 Cf. HARTMANN, N. A Filosofia do idealismo Alemão, p. 492.
164 HARTMANN, N., “O existente, entendido como o algo que se opõe a outro algo, é o Finito. Com esta
definição inicia-se uma investigação que deve ser considerada a parte mais brilhante da ‘Lógica’ hegeliana,
a obra magistral de sua dialética”. Op. cit., p. 493.
165 HARTMANN, N., Op. cit., p. 493.
166 Cf. SOUZA, R. T., Sentidos do infinito, passim.
167 É por isso que se pode dizer que, com Hegel, se compreende o que propriamente podia significar o
infinito pré-hegeliano, conforme o temos estudado: sua própria dinâmica de desenvolvimento é elucidada
em seu desenvolvimento mesmo; as conexões que faltavam surgem à luz; o sentido mais profundo das
pesquisas sobre o infinito descobre-se perante o reordenamento das prioridades racionais, que só Hegel pôde
definitivamente caracterizar. Cf. SOUZA, R. T., Sentidos do infinito.
168 “Em Hegel, como em Plotino, esta concepção apoia-se, em última instância, em um juízo de valor... o
infinito tem que se mostrar aureolado pelo brilho do sublime” (HARTMANN, N., Op. cit., p. 493).
169 “Das Dasein ist bestimmt; Etwas hat eine Qualität und ist in ihr nicht nur bestimmt, sondern begrenzt;
seine Qualität ist seine Grenze...” (Logik , p. 139)
170 “Wenn wir von den Dingen sagen, sie sind endlich... (queremos dizer) dass vielmehr das Nichtsein ihre
Natur, ihr Sein ausmacht... Die endlichen Dinge sind, aber ihre Beziehung auf sich selbst ist, dass sie als
negative sich auf sich selbst beziehen... Sie sind, aber die Wahrheit dieses Seins ist ihr Ende... das Sein der
CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA
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endlichen Dinge als solches ist, den Keim des Vergehens als ihr Insichsein zu haben; die Stunde ihrer Geburt
ist die stunde ihres Todes” (Logik, p. 139 – 140).
171 “Die Schranke des Endlichen ist nicht ein Ausseres, sondern seine eigene Bestimmung ist auch seine
Schranke...” (Logik, p. 144).
172 “Segundo a determinação que o algo mesmo é um e o mesmo dos dois momentos (ser-para-si e ser-
para-outro)” (HARTMANN, N., Op. cit., p. 495).
173 “...das Andere einer Schranke ist eben das Hinaus Über dieselbe” (Logik, p. 145).
174 “A identidade do ser-em-si do ser-para-outro mantém-se na indiferença... o ser-em-si aceita o negativo
do ser-outro, quer dizer, a “negação” é posta como “imanente” no algo, como “seu interior desenvolvido”...
a relação externa do algo e o seu outro é, no fundo, uma relação íntima entre o algo-em-si e o outro-em–si...
o algo refere-se, a partir de si mesmo, ao outro, porque o seu outro está posto nele como o seu próprio
elemento”. (HARTMANN, N., Op. cit., p. 497 (o grifo final é nosso)).
175 HARTMANN, N., Op. cit., p. 498.
176 É neste momento que Hegel deixa para trás definitivamente todo o idealismo até então, e mesmo toda
filosofia anterior. Provavelmente em nenhum outro momento da história da filosofia havia sido o “diferente”
tratado com tanto respeito como pela filosofia dialética de Hegel. Apenas como ilustração, comparemos
rapidamente, em linhas muito gerais, as propostas fichteana e hegeliana de realidade:
1) Para Fichte, o Eu, ao afirmar-se, afirma também o não-eu. O diferente do Eu é dele
inteiramente dependente. Ao Eu segue-se o não-Eu, em uma hierarquia fixada onde o diferente
é, em última análise, ‘função” do mesmo.
2) Mas para Hegel, no princípio é o diferente diferente do igual; intrínseca ou extrinsecamente,
alguma coisa resta ainda, quando da postulação do mesmo, a ser resolvida. O diferente
“incomoda”, justamente por sua plena realidade ser levada a sério, e por sua densidade não
poder ser simplesmente negada, atribuída a uma simples excrescência do mesmo. A diferença
é forte: nega; e, ao negar-se, prova-se consistente. É apenas depois deste espaço afirmado pelo
diferente que a totalização pode ter continuidade; a dialética é a incorporação dinâmica desta
potência no desenvolvimento do mesmo. Não se finge poder reduzir o diferente ao igual;
valoriza-se marcadamente o diferente para que o igual possa ser igual.
177 “So richtig die Angabe ist, so falsch ist sie” (Logik, p. 94).
178 Cf. SOUZA, Ricardo Timm de. “Husserl e Heidegger: motivações a arqueologias”, in: SOUZA, R. T.
O tempo e a Máquina do Tempo – estudos de filosofia e pós-modernidade, p. 49-80.
179 “Als Sollen ist somit Etwas über seine Schranke erhaben” (Logik, p. 144).
180 “Das Sollen für sich enthält die Schranke und die Schranke das Sollen. Ihre Beziehung aufeinander ist
das Endliche selbst, das sie beide in seinem Insichsein enthält” (Logik, p. 148).
181 „Diese Identität mit sich, die Negation der Negation, ist affirmatives Sein, so das Andere des Endlichen,
als welches die erste Negation zu seiner Bestimmtheit haben soll; jedes Andere ist das Unendliche” (Logik,
p. 148-149).
182 “Das Unendliche in seinem einfachen Begriff kann zunächst als eine neue Definition des Absoluten
angesehen werden...” (Logik, p. 149)
183 “Die Hauptsache ist, den wahrhaften Begriff der Unendlichkeit der schlechten Unendlichkeit, das
Unendliche der Vernunft von dem Unendliche des Verstandes zu unterscheiden; doch letzteres ist das
verendlichte Unendliche, und es wird sich ergeben, dass, eben indem das Unendliche vom Endliche vom
Endlichen rein und entfernt gehalten werden soll, es nur verendlicht wird” (Logik, p. 149).
184 “Das Unendliche ist; in dieser Unmittelbarkeit ist es zugleich die Negation eines Anderen, des
Endlichen” (Logik, p. 151)
185 “Para Kant e Fichte o dever ser era a expressão do infinito no mundo, pois pertence-lhe o progresso
infinito. Mas na essência do progresso reside, na verdade, o não ser aquilo para o qual tendia”.
(HARTMANN, N., Op. cit., p. 501).
186 “So das Unendliche gegen das Endliche in qualitativer Beziehung von Andere zueinander gesetzt, ist es
das Schlecht-Unendliche, das Unendliche des Verstandes zu nennen... es gibt zwei Welten, eine unendliche
und eine endliche, und in ihrer Beziehung nur Grenze des Endlichen ist, und damit nur ein bestimmtes,
selbst endliches Unendliches” (Logik, p. 152). Cf. HARTMANN, N., Op. cit., p. 501: “Como o ‘outro’ do
finito, o infinito está, portanto, limitado, isto é, com ele torna-se finito, ainda que o finito no seu ser-em-si
tenha superado a finitude”.
187 HARTMANN, N., Op. cit., p. 501. Segue HARTMANN: “esta exposição negativa tem um valor lógico
muito alto, porque nela estão de antemão contidas todas as partes necessárias para a determinação do
afirmativamente infinito. Basta simplesmente convertê-la em afirmativa para chegar a seu conceito. O
progresso vai para o infinito, portanto, este já está contido nele... o que interessa é admitir o finito dentro do
infinito, em vez de deixá-lo fora dele onde se torna continuamente limitado... a infinidade afirmativa é

CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA


SEMINÁRIO - 2020
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palpável logo que se considera esta dialética do progresso como unidade, como todo indiviso e homogêneo,
tal como o progresso a mostrou” (Op. cit., p. 503-504).
188 HEGEL cit. por N. HARTMANN, Op. cit., p. 505.
189 “Dieses Unendliche als in-sich-Zurück-gekehrsein, Beziehung seiner auf sich selbst, ist Sein, aber nicht
Bestimmungsloses, abstraktes Sein, denn es ist gesetzt als negierend die Negation; es ist somit auch Dasein,
denn es enthaält die Negation überhaupt, somit die Bestimmtheit. Es ist und ist da, präsent, gegenwartig.
Nur das Schlecht–Unendliche ist das Jenseits, weil er nur die Negation des als real gesetzten Endlichen
ist...” (Logik, p. 164).
190 Cf. Logik, p. 165.
191 “Die wahrhafte Unendlichkeit so überhaupt als Dasein, das als affirmativ gegen die abstrakte Negation
gesetzt ist, ist die Realität in höherem Sinn als die früher einfach bestimmte...” (Logik, p.164)
192 HARTMANN, N. Op. cit., p. 505-506.
193 HARTMANN, N. Op. cit., p. 505.
194 Cf. SOUZA, R. T., Sentidos do infinito.
195 “A contraditoriedade como fundamento da filosofia e, em combinação com isso, o presente real como
realização da razão constituem, por conseguinte, os marcos ontológicos do pensamento hegeliano. Essa
combinação faz com que lógica e ontologia se explicitem e articulem em Hegel num grau de intimidade até
então desconhecido” (LUKÁCS, G., Op. cit., p. 10).
196 Cf. SOUZA, R. T. “Da neutralização da diferença à dignidade da Alteridade – estações de uma história
multicentenária”, in: SOUZA, R. T. Sentido e Alteridade – Dez ensaios sobre o pensamento de E. Levinas,
p. 189-208.
197 Não olvidemos que no conceito eminente de “infinito” vão se conjugar, de algum modo, todas as
realizações propostas por uma dada racionalidade, e que lá se espelham, por conseguinte, todos os reflexos
de um determinado “mundo” racional; poder-se-ia dizer que os infinitos contingencialismos de uma
determinada cultura, por outro lado, sustentam tanto o “infinito” quanto este é uma espécie de “função” dos
primeiros.
198 Cf. Phänomenologie des Geistes, p. 14.
199 Cf. HINKELAMMERT, F., Solidaridad o suicídio colectivo, p. 81: “La iluminación y las revoluciones
burguesas no hicieron rebelión en el cielo sino que lo destituyeron, pero en el mismo movimiento lo
sustituyeron recuperándolo en una dimensión diferente. En el lugar del cielo religioso transmundano
pusieron el progreso infinito, producto de una alianza entre tecnología y empresa, laboratorio y fábrica.
Constituyeron una religión intramundana que como mito fundante tiene el del progreso infinito. El infinito
cuantitativo de este progreso es ahora el cielo ultramundano. Se trata de una trascendencia externa a la vida
humana que impone una tensión hacia el futuro que no permite descanso jamás (funciona como un látigo);
una trascendencia perfectamente intramundana, porque resulta de una simple proyección al infinito de
desarrollos técnicos presentes. Al destituir el cielo de las religiones tradicionales se constituye el cielo del
progreso infinito.” (grifo nosso).
200 “É porém a pior das virtudes uma... modéstia do pensamento, que transforma(m) o infinito em algo
fixo, um absoluto e obriga o conhecimento menos profundo a permanecer imóvel naquilo que não tem em
si o seu fundamento” (O grifo é nosso) (HEGEL cit. por Max HORKHEIMER, Origens da filosofia
Burguesa da História, p. 72 – 73).
201 Cf. HINKELAMMERT, F., Solidaridad o sucidio colectivo, p. 81: “Cuando la sociedad occidental
asume el mito del progreso infinito -que aparte de mítico es ilusorio- las religiones no dejan de existir, pero
sí dejan de tener significado en la formación de la sociedad, y aquél se transforma en criterio de verdad de
todas las religiones. El dios del progreso infinito, que sustituye todos los dioses anteriores aunque éstos
mantengan sus nombres, es aún más celoso que ellos (el caso más extremo de la teología del dios del
crecimiento infinito parece expresarse en: Tipler, Frank J. 1994. The Physics of Immortality. Doubleday.
New York). Desde la aparición de la obra de Max Weber sobre la ética protestante el valor de las viejas
religiones pasó a definirse a partir de su capacidad para vehiculizar el mito del progreso en la alianza entre
tecnología y empresa; desde entonces a las religiones se les categoriza según su capacidad de promover el
capitalismo o no: su aporte al "desarrollo" decide su validez. En la cima de la jerarquía que se establece
entre las religiones está el puritanismo calvinista, seguido por el confucionismo; luego vienen las religiones
que distorsionan relativamente el "desarrollo" y que tienen que ser adaptadas a su verdad incuestionada: el
catolicismo, la ortodoxia rusa y el Islam; y finalmente las religiones completamente incompatibles: las
indígenas de América y las originales de África. Concomitantemente se condena las orientaciones dadas
dentro de las religiones, como la teología de la liberación, que son declaradas "amenaza para la seguridad
de EU" y para la religión central de nuestro tiempo: la intramundana del progreso infinito”.
202 “Para Hegel, para quem julgamento universal e história universal são indissociáveis, cuja religião
consiste essencialmente na fé numa teologia imanente, isto é, numa realização da justiça absoluta na história,
a questão do sofrimento de cada um pela negação idealista do ser substancial da individualidade”
CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA
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(HORKHEIMER, M., Op. cit., p. 96). Conferir ainda a seguinte passagem: “Die Person hat das Recht, in
jede Sache ihren Willen zu legen, weche dadurch die meinige ist, zu ihrem substantiellen Zwecke, da sie
einen solchen nicht in sich selbst hat, ihrer Bestimmung und Seele meinen Willen erhält, - absolutes
Zweignungsrecht des Menschen auf alle Sachen” (HEGEL, Grundlinien der Philosophie des Rechts, 44,
106) (o grifo é nosso). Há que se compreender, definitivamente, que estes dados não são mais do que
diferentes funções do desenvolvimento da Totalidade no sentido aqui considerado; de posse deste sentido
categorial, muitas afirmações a respeito da Totalidade perdem sua “inocência” e mostram sua verdadeira
face.
203
Veja-se a plástica descrição da contemporaneidade por A. MBEMBE: “Neste período depressivo da vida
psíquica das nações, a necessidade de um inimigo, ou mesmo o instinto de um inimigo, não é apenas uma
necessidade social. Equivale a uma necessidade ontológica quase anal. No quadro de rivalidade mimética
exacerbada pela “guerra contra o terror”, dispor – de preferência, de modo espetacular – do seu inimigo
tornou-se uma passagem obrigatória na constituição do sujeito e na sua entrada na ordem simbólica do nosso
tempo. No entanto, tudo se passa como se a negação do inimigo fosse vivida em si como uma profunda
ferida narcísica. Não ter inimigo – ou nunca ter sofrido atentados ou outros actos sangrentos fomentados por
aqueles que nos odeiam, tal como odeiam o nosso modo de vida – leva a que não exista uma espécie de
relação de ódio que nos autoriza a dar curso a toda a espécie de desejos, de outro modo interditos. É não ter
o demónio que tudo permite, mesmo que a época pareça convidar urgentemente a uma permissão absoluta,
ao desbragamento e à desinibição generalizadas. É também frustrar-se na sua compulsão de meter medo, na
sua capacidade de diabolizar, no prazer e satisfação que se sente quando o presumível inimigo é abatido por
forças especiais ou quando, capturado vivo, é submetido a intermináveis interrogatórios e entregue à tortura
num qualquer lugar fechado que macula o nosso planeta.” (MBEMBE, A., Políticas da inimizade, p. 81).
204 “... dem Ziele, ihren Namen der Liebe zum Wissen ablegen zu Können und Wirkliches Wissen zu
sein...“ (Phän., p. 14).
205 Cf. SOUZA, R. T., Sentidos do Infinito.
206 Cf. SOUZA, R. T. Em torno à Diferença – aventuras da alteridade na complexidade da cultura
contemporânea.
207 Cf. SOUZA, R. T. Totalidade & Desagregação – sobre as fronteiras do pensamento e suas alternativas,
especialmente p. 15-29.
208 “O futuro do passado”, p. 82, in: OLIVEIRA, R. C. Pós-modernidade, p. 75ss.
209 ADORNO, T. W., “Teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista”, in: ADORNO, T. W. Ensaios
sobre psicologia social e psicanálise, p. 161.
210 BENJAMIN, W., “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, in: BENJAMIN, W., Obras
escolhidas – magia e técnica, arte e política, p. 195.
211 “Da utilidade do conceito de pulsão de morte”, in: GREEN, A. et alii, A pulsão de morte, São Paulo:
Escuta, 1988, p. 39.
212 Ensaios sobre psicologia social e psicanálise, p. 152.
213 Ensaios sobre psicologia social e psicanálise, p. 196.
214 Sobre esse tema em detalhes, cf. SOUZA, R. T., Totalidade & desagregação – sobre a crise do
pensamento e suas alternativas, especialmente p. 15-29.
215 Cf. SOUZA, R. T., Totalidade & desagregação – sobre a crise do pensamento e suas alternativas, p.
15-29.
216 Cf. SOUZA, R. T., Ainda além do medo – filosofia e antropologia do preconceito, passim.
217 ADORNO, T. W., Ensaios sobre psicologia social e psicanálise, p. 196.
218 ADORNO, T. W., Ensaios sobre psicologia social e psicanálise, tradução de Verlaine Freitas. O volume
conta com uma “Apresentação à edição brasileira”, redigida por C. I. L. Dunker, muito útil para situar os
textos em seus contextos específicos. Sobre a relação de Adorno em particular e da Teoria Crítica em geral
com a psicanálise, cf. DAHMER, H., Freud, Trotzki und der Horkheimer-Kreis, p. 16-43 e 116-131; sobre
a questão do fascismo em particular na análise da teoria crítica, cf. ibid., p. 132-214.
219 ADORNO, T. W., “Sobre a relação entre psicologia e sociologia”, in: ADORNO, T. W. Ensaios sobre
psicologia social e psicanálise, p. 72.
220 “Adornos Blick auf die Psychoanalyse ist zum einen der eines Rätsellösers, der in Freud und Ferenczi
seinesgleichen erkennt und herauszufinden sucht, warum die psychoanalytische Theorie und ihre
therapeutische Nutzanwendung sich in unlösbare Widersprüche verwickeln – in der Hoffnung, auf diese
Weise über die Grenzen einer psychologistschen Seelenlehre hinauszukommen. Zum anderen ist es der
Blick eines Soziologen, der Kenntnis von der Statik und Dynamik der gesellschaftlichen Verhältnisse hat,
innerhalb deren die psychoanalyse entstanden ist und sich (während der ersten Hälfte des 20. Jahrhunderts)
entwickelt hat, und der darum das Selbstmissverständnis Freuds und der meisten Freudianer nicht teilt, sie
betrieben eine Naturwissenschaft von der Seele, von der eine Psychotechnik sich ableiten lasse.”

CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA


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(DAHMER, H., Adornos Blick auf die Psychoanalyse, in: KIRCHHOFF, C.; SCHMIEDER, F. (Orgs.),
Freud und Adorno – Zur Urgeschichte der Moderne, p. 165).
221 ADORNO, T. W., “Teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista”, in: ADORNO, T. W. Ensaios
sobre psicologia social e psicanálise, p. 153-154.
222 “Hitler falava, ou melhor, gritava em convulsões. Até mesmo no máximo da exaltação é possível manter
certa dignidade e algum bem-estar interior, um sentimento de autoconfiança e de estar em harmonia consigo
mesmo e com os demais. Esses aspectos faltavam a Hitler, que desde o começo era um retórico consciente,
retórico por princípio. Não se sentia seguro nem mesmo em uma situação de triunfo, fustigava com seu
linguajar os adversários e as ideias contrárias. Não tinha compostura, sua voz não possuía musicalidade, o
ritmo de suas frases açoitava a si mesmo e aos demais. Sua trajetória, pelo menos durante os anos de guerra,
transitou de agente provocador a vítima de provocações, de fanático convulsivo a alguém que ia às raias do
desespero, demonstrando uma raiva impotente. Nunca fui capaz de compreender como conseguiu conquistar
as massas, cativá-las e mantê-las presas sob seu jugo por tanto tempo com uma voz desafinada e esganiçada,
com frases mal construídas na sintaxe alemã, empregando uma retórica claramente contrária ao caráter da
língua alemã”. (KLEMPERER, V., LTI – A linguagem do terceiro Reich, p. 166-167).
223 RECHARDT, E., “Os destinos da pulsão de morte”, in: GREEN, A. et alii (Orgs.), A pulsão de morte,
p. 45.
224 Cf. SOUZA, R. T., Kafka, a Justiça, o Veredicto e a Colônia Penal.
225 KANT, I., “Aufklärung ist der Ausgang des Menschen aus seiner selbstverschuldeten Unmündigkeit.
Unmündigkeit ist das Unvermögen, sich seines Verstandes ohne Leitung eines anderen zu bedienen.
Selbstverschuldet ist diese Unmündigkeit, wenn die Ursache derselben nicht am Mangel des Verstandes,
sondern der Entschließung und des Mutes liegt, sich seiner ohne Leitung eines andern zu bedienen. Sapere
aude! Habe Mut, dich deines eigenen Verstandes zu bedienen! ist also der Wahlspruch der Aufklärung.”,
in: KANT, I., Was ist Aufklärung, UTOPIE kreativ, H. 159 (Januar 2004), p. 5.

226 ADORNO, T. W., “Teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista”, in: ADORNO, T. W. Ensaios
sobre psicologia social e psicanálise, p. 162.
227 Cf. Capítulo I.
228 ADORNO, T. W., “Teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista”, in: ADORNO, T. W. Ensaios
sobre psicologia social e psicanálise, p. 162-163.
229 ADORNO, T. W., “Teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista”, in: ADORNO, T. W. Ensaios
sobre psicologia social e psicanálise, p. 163.
230 “A agitação fascista está centrada na ideia do líder, não importando se ele realmente lidera ou é apenas
mandatário de interesses de grupos, porque somente a imagem psicológica do líder é apta a reanimar a ideia
do pai primitivo onipotente e ameaçador. Essa é a raiz última da, de outro modo enigmática, personalização
da propaganda fascista, sua incessante reiteração de nomes e de supostos grandes homens, em vez da
discussão de causas objetivas”
231 ADORNO, T. W., “Teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista”, in: ADORNO, T. W. Ensaios
sobre psicologia social e psicanálise, p. . Segue Adorno, acompanhando Freud: A formação do imaginário
de uma figura paterna onipotente e não controlada, transcendendo em muito o pai individual e, assim, apta
a ser engrandecida em um “eu do grupo”, é a única via para promulgar a “atitude passivamente masoquista
[…] a que alguém deverá se render” uma atitude tanto mais requerida do seguidor fascista quanto mais seu
comportamento político se torna irreconciliável com seus próprios interesses racionais como pessoa privada,
bem como com aqueles do grupo ou classe à qual ele atualmente pertence. A irracionalidade redespertada
do seguidor é, assim, bastante racional do ponto de vista do líder: ela necessariamente tem que ser “uma
convicção não baseada em percepção e raciocínio, mas em um vínculo erótico” (ADORNO, T. W. Ensaios
sobre psicologia social e psicanálise, p. 165-166).
232 “O mecanismo que transforma a libido no vínculo entre líder e seguidores, e entre os próprios
seguidores, é o da identificação. Uma grande parte do livro de Freud está devotada à sua análise (...). É
impossível discutir a diferenciação teórica bastante sutil, particularmente entre identificação e introjeção.
Deve-se notar, entretanto, que o último Ernst Simmel, a quem devemos valiosas contribuições à psicologia
do fascismo, tomou o conceito de Freud da natureza ambivalente da identificação como um derivado da fase
oral de organização da libido (...) e o expandiu em uma teoria analítica do antissemitismo.” (ADORNO, T.
W., “Teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista”, in: ADORNO, T. W. Ensaios sobre psicologia
social e psicanálise, p. 166-167).
233 “É precisamente essa idealização de si mesmo que o líder fascista tenta promover em seus seguidores,
e que é auxiliada pela ideologia do Führer. As pessoas com quem ele tem de contar padecem geralmente do
conflito moderno característico entre uma instância do eu racional, fortemente desenvolvida e
autoconservadora, e o contínuo fracasso em satisfazer as demandas de seu próprio eu. Este conflito resulta
em impulsos narcísicos fortes, que podem ser absorvidos e satisfeitos apenas através de idealização, como
CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA
SEMINÁRIO - 2020
136

a transferência parcial da libido narcísica ao objeto.” (ADORNO, T. W. Ensaios sobre psicologia social e
psicanálise, p. 167).
234 ADORNO, T. W., “Teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista”, in: ADORNO, T. W. Ensaios
sobre psicologia social e psicanálise, p. 169.
235 Cf. SOUZA, R. T., Ainda além do medo – filosofia e antropologia do preconceito, passim.
236 ADORNO, T. W., “Teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista”, in: ADORNO, T. W. Ensaios
sobre psicologia social e psicanálise, p. 169-170.
237 ADORNO, T. W., “Teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista”, in: ADORNO, T. W. Ensaios
sobre psicologia social e psicanálise, p. 171.
238 ADORNO, T. W., “Teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista”, in: ADORNO, T. W. Ensaios
sobre psicologia social e psicanálise, p. 171-172.
239 ADORNO, T. W., “Teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista”, in: ADORNO, T. W. Ensaios
sobre psicologia social e psicanálise, p. 173.
240 ADORNO, T. W., “Teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista”, in: ADORNO, T. W. Ensaios
sobre psicologia social e psicanálise, p. 173. Segue Adorno: “A teoria de Freud lança luz na distinção
disseminada e rígida entre o in-group amado e o out-group rejeitado. Em toda nossa cultura esta forma de
pensar e de se comportar passou a ser tomada como auto-evidente em tal grau que a questão de por que as
pessoas amam quem é como elas e odeiam quem é diferente muito raramente é questionada de forma séria
o suficiente. Aqui, como em vários outros casos, a produtividade da perspectiva de Freud reside em
questionar o que é geralmente aceito. Le Bon havia notado que a multidão irracional “vai diretamente aos
extremos” (...). Freud expande essa observação e salienta que a dicotomia entre in-group e out-group é de
uma natureza tão profundamente enraizada que afeta até mesmo aqueles grupos cujas “ideias”
aparentemente excluem tais reações. Já em 1921 ele foi, portanto, capaz de dispensar a ilusão liberal de que
o progresso da civilização iria produzir automaticamente um aumento de tolerância e uma diminuição de
violência contra os out-groups”. (ADORNO, T. W., “Teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista”,
in: ADORNO, T. W. Ensaios sobre psicologia social e psicanálise, p. 173-174).
241 ADORNO, T. W., “Teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista”, in: ADORNO, T. W. Ensaios
sobre psicologia social e psicanálise, p. 184.
242 ADORNO, T. W., “Teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista”, in: ADORNO, T. W. Ensaios
sobre psicologia social e psicanálise, p. 184.
243 ADORNO, T. W., “Teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista”, in: ADORNO, T. W. Ensaios
sobre psicologia social e psicanálise, p. 184.
244 ADORNO, T. W., “Teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista”, in: ADORNO, T. W. Ensaios
sobre psicologia social e psicanálise, p. 184. Continua Adorno: “Sob as condições prevalecentes, a
irracionalidade da propaganda fascista se torna racional no sentido da economia pulsional, pois, se o status
quo é tomado como aceito e petrificado, precisa-se de um esforço muito maior para se ver através dele do
que a ele se ajustar e obter pelo menos alguma gratificação graças à identificação com o existente – o cerne
da propaganda fascista.” (ADORNO, T. W., “Teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista”, in:
ADORNO, T. W. Ensaios sobre psicologia social e psicanálise, p. 184-185).
245 ADORNO, T. W., “Teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista”, in: ADORNO, T. W. Ensaios
sobre psicologia social e psicanálise, p. 186-187. Continua Adorno: “Assim, a psicologia do indivíduo
perdeu o que Hegel teria chamado sua substância. Talvez o maior mérito do livro de Freud seja que, embora
tenha se restringido ao campo da psicologia social e sabiamente tenha renunciado a introduzir fatores
sociológicos a partir de fora, ele, entretanto, alcançou o ponto de viragem onde a psicologia renuncia. O
“empobrecimento” psicológico do sujeito que “se abandonou ao objeto” que “ele colocou no lugar de seu
mais importante constituinte” (...), isto é, o supereu, antecipa quase com clairvoyance [clarividência] os
átomos sociais desindividualizados e pós-psicológicos que formam as coletividades fascistas. Nesses átomos
sociais, as dinâmicas psicológicas de formação de grupo excederam a si mesmas e não são mais uma
realidade”. (ADORNO, T. W., “Teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista”, in: ADORNO, T. W.
Ensaios sobre psicologia social e psicanálise, p.187-188).
246 ADORNO, T. W., “Teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista”, in: ADORNO, T. W. Ensaios
sobre psicologia social e psicanálise, p. 178.
247 ADORNO, T. W., “Teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista”, in: ADORNO, T. W. Ensaios
sobre psicologia social e psicanálise, p. 188. Segue Adorno: A categoria de “falsidade” (phonyness) aplica-
se tanto aos líderes quanto ao ato de identificação por parte das massas e seu suposto frenesi e histeria. As
pessoas acreditam tão pouco, do fundo de seu coração, que os judeus são o demônio, quanto acreditam
completamente em seu líder. Elas não se identificam realmente com ele, mas representam [act] essa
identificação, encenam [perform] seu próprio entusiasmo, e assim participam na encenação [performance]
de seu líder. É através dessa encenação que elas atingem um equilíbrio entre seus ímpetos pulsionais
continuamente mobilizados e o estágio histórico de esclarecimento que elas alcançaram e que não pode ser
CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA
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revogado arbitrariamente.” (ADORNO, T. W., “Teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista”, in:
ADORNO, T. W. Ensaios sobre psicologia social e psicanálise, p. 188).
248 “Ich möchte also davon ausgehen, meine Damen und Herren, daß die Voraussetzungen faschistischer
Bewegungen trotz des Zusammenbruchs gesellschaftlich, wenn auch nicht unmittelbar politisch, nach wie
vor fortbestehen. Dabei denke ich in erster Linie an die nach wie vor herrschende Konzentrationstendenz
des Kapitals, die man zwar durch alle möglichen statistischen Künste aus der Welt wegrechnen kann, an der
aber im Ernst kaum ein Zweifel ist. Diese Konzentrationstendenz bedeutet nach wie vor auf der anderen
Seite die Möglichkeit der permanenten Deklassierung von Schichten, die ihrem subjektiven
Klassenbewußtsein nach durchaus bürgerlich waren, die ihre Privilegien, ihren sozialen Status festhalten
möchten und womöglich ihn verstärken. Diese Gruppen tendieren nach wie vor zu einem Haß auf den
Sozialismus oder das, was sie Sozialismus nennen, das heißt, sie verschieben die Schuld an ihrer eigenen
potentiellen Deklassierung nicht etwa auf die Apparatur, die das bewirkt, sondern auf diejenigen, die dem
System, in dem sie einmal Status besessen haben, jedenfalls nach traditionellen Vorstellungen, kritisch
gegenübergestanden haben.” (ADORNO, T., Aspekte des neuen Rechtsradikalismus, p. 10).
249 “Wenn ich psychoanalytisch reden sollte, würde ich sagen, es sei sicherlich nicht die geringste der
Kräfte, die hier mobilisiert werden, daß an den unbewußten Wunsch nach Unheil, nach Katastrophe in
diesen Bewegungen appelliert wird. Aber ich möchte doch dem hinzufügen - und ich spreche damit gerade
zu denen unter Ihnen, die mit Recht gegen eine bloß psychologische Deutung gesellschaftlicher und
politischer Phänomene skeptisch sind -, daß dieses Verhalten keineswegs nur psychologisch motiviert ist,
sondern auch seine objektive Basis hat. Wer nichts vor sich sieht und wer die Veränderung der
gesellschaftlichen Basis nicht will, dem bleibt eigentlich gar nichts anderes übrig, als wie der Richard-
Wagnersche Wotan zu sagen: »Weißt Du,was Wotan will? Das Ende« der will aus seiner eigenen sozialen
Situation heraus den Untergang, nur eben dann nicht den Untergang der eigenen Gruppe, sondern wenn
möglichen Untergang des Ganzen.” (ADORNO, T., Aspekte des neuen Rechtsradikalismus, p. 20).
250 “Dann sind natürlich eine bête noire, vor allem solange man nicht often antisemitisch sein kann und
solange man auch nicht die Juden umbringen kann, weil das ja bereits geschehen ist, sind besonders verbaßt
die Intellektuellen. Das Wort »Linksintellektueller« gehört ja auch zu diesen Schreckworten. Es wird dabei
appelliert zunächst einmal auch an das deutsche Mißtrauen gegen den, der nicht in Amt und Würde ist,der
nicht eine feste Position hat, der sozusagen als ein Vagant im Leben, als ein »Luftmensch«, wie man das
früher in Polen genannt hat, betrachtet wird. Wer in die Arbeitsteilung sich nicht einfügt, wer also nicht
durch seinen Beruf na eine bestimmte Position und dadurch auch an ganz bestimmte Gedanken gebunden
ist, sondern wer die Freiheit des Geistes sich bewahrt hat, der ist also nach dieser Ideologic eine Art von
Lump undsoil geschliffen werden. Es spielt dabei natürlich noch die uralte Ranküne des Handarbeiters
gegen die geistige Arbeit herein, aber sich selbst gänzlich unkenntlich geworden und in einer vollkommen
verschobenen Weise.” (ADORNO, T., Aspekte des neuen Rechtsradikalismus, p. 32-33).
251 “Lassen Sie mich zum Schluß nun Ihnen einiges über die Propaganda sagen, die ich ja, wie ich Ihnen
andeutete, eigentlich für das Zentrum, für die Sache selbst ingewisser Weise, halte. Diese Propaganda gilt
weniger der Verbreitung einer Ideologie, die, wie ich Ihnen sagte, viel zu dünn ist, als dem, daß Massen
eingespannt werden. Die Propaganda ist also vorwiegend eine massenpsychologische Technik. Zugrunde
liegt dabei das Modell der autoritätsgebundenen Persönlichkeit, und zwar heute genau wie zur Zeit von
Hitler oder wie bei den Bewegungen des lunatic fringe in Amerika oder wie irgendwo sonst. Die Einheit
liegt in diesem Appell an die autoritätsgebundene Persönlichkeit. Es wird immer wieder gesagt, daß diese
Bewegungen alien etwas versprechen, und das ist als Charakteristik der Theorielosigkeit richtig. Aber es ist
doch insofern falsch, als in diesem Appell an den autoritätsgebundenen Charakter eine sehr spezifische und
sehr pointierte Einheit liegt. Sie werden niemals auch nur eine Äuberung finden, die dem Schema der
autoritätsgebundenen Persönlichkeit nicht entspricht. Und wenn man gerade diese Struktur des Appells an
die autoritätsgebundene Persönlichkeit aufdeckt, so bringt das nun wirklich die Rechtsradikalen zum
Weißglühen, und ich würde sagen, das ist immerhin ein Beweis dafür, daß in dieser Struktur ein
Nervenpunkt getroffen wird. Die unbewußten Tendenzen, welche die autoritätsgebundene Persönlichkeit
speisen, werden also nicht etwa von dieser Propaganda bewußt gemacht, sondern im Gegenteil, sie werden
noch mehr ins Unbewußte gedrängt, sie werden künstlich unbewußt gehalten. Ich erinnere dabei nur an die
überwertige Bedeutung sogenannter Symbole, die ja für alle diese Bewegungen charakteristisch ist.”
(ADORNO, T., Aspekte des neuen Rechtsradikalismus, p. 41-42).
252 ADORNO, T., Aspekte des neuen Rechtsradikalismus, p. 47.
253 “Teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista”, in: ADORNO, T. W. Ensaios sobre psicologia
social e psicanálise, p. 171.
254
Políticas da inimizade, p. 9.
255 O processo, p. 12.
256 ECO, U., O fascismo eterno, p. 44-45.
257 ECO, U., O fascismo eterno, p. 45-46.
CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA
SEMINÁRIO - 2020
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258 Cf. LÖWY, M. Romantismo e Messianismo; LÖWY, M.; SAIRE, M.; Revolta e Melancolia: o
romantismo na contracorrente da modernidade.
259 ECO, U., O fascismo eterno, p. 46-47.
260 Cf. capítulo II deste livro.
261 ECO, U., O fascismo eterno, p. 47-49.
262 ECO, U., O fascismo eterno, p. 49.
263 ECO, U., O fascismo eterno, p. 49-50 (grifo nosso).
264 Cf. capítulos II e III do presente livro.
265 ECO, U., O fascismo eterno, p. 50.
266 ECO, U., O fascismo eterno, p. 50-51.
267 A grande transformação, p. 260.
268 Cf. capítulo II.
269 ECO, U., O fascismo eterno, p. 51-52.
270 ECO, U., O fascismo eterno, p. 52.
271 ECO, U., O fascismo eterno, p. 52-53
272 Cf. capítulo II.
273 ECO, U., O fascismo eterno, p. 54.
274 ECO, U., O fascismo eterno, p. 54-55.
275 ECO, U., O fascismo eterno, p. 55-56. Segue Eco: “Em virtude de seu populismo qualitativo, o Ur-
Fascismo deve opor-se aos "pútridos" governos parlamentares. Uma das primeiras frases pronunciadas por
Mussolini no Parlamento italiano foi: "Eu poderia ter transformado este salão surdo e cinza em um
acampamento para meus regimentos." De fato, ele logo encontrou alojamento melhor para seus regimentos
e pouco depois liquidou o Parlamento. Cada vez que um político põe em dúvida a legitimidade do
Parlamento por não representar mais a "voz do povo", pode-se sentir o cheiro de Ur-Fascismo.” (ECO, U.,
O fascismo eterno, p. 58).
276 Cf. capítulos II e III.
277 ECO, U., O fascismo eterno, p.58-59.
278 POLANYI, K. A grande transformação – as origens de nossa época, p. 211-212.
279 Apud SICRE, J. L. Introdução ao profetismo bíblico, p. 556.
280 Apud SICRE, J. L., Los dioses olvidados, p. 165.
281 Apud SICRE, J. L., Los dioses olvidados, p. 165.
282 Em carta de 1o de julho de 1550, em Charcas, atual Bolívia; Archivo General de Indias, Charcas 313,
apud DUSSEL, E. Para uma ética da libertação latino-americana V – uma filosofia da religião
antifetichista, p. 7.
283 A idolatria do mercado – ensaios de Teologia e Economia, p. 125.
284 A grande transformação, p. 57.
285 STIGLITZ, J. E., “Prefácio”, in: POLANYI, K. A grande transformação – as origens de nossa época,
p. XVIII.
286 Em a Riqueza das nações, apud PASSET, R., A ilusão neoliberal, p. 25.
287 “O homem, por seu egoísmo por demais ignorante de seus próprios interesses, por sua tendência a
desfrutar de tudo o que está à sua disposição, numa palavra, por sua despreocupação com o futuro e com
seus semelhantes, parece trabalhar pelo aniquilamento de seus meios de conservação e pela destruição de
sua própria espécie” (Apud PASSET, R., A ilusão neoliberal, p. 47)
288 Cf. ROUDINESCO, E.: “Ultraliberalismo sem limites e sem alma de um lado, fanatismo religioso de
outro: dois grandes obstáculos à felicidade. Duas maneiras de não amá-la” (Dicionário amoroso da
psicanálise, p. 123).
289 “Der Schoss ist fruchtbar noch, aus dem das kroch.” (“Ainda está fecundo, o ventre do qual isso
rastejou”.). Historicamente tal é perfeitamente observável: “...a intensa luta de classes também significou
possíveis reações extremas por parte da classe capitalista, como no fascismo” (DUMÉNIL, G.; LÉVY, D.,
A crise do neoliberalismo, p. 93).
290 Por exemplo: “Para os capitalistas que prosperam em meio a salários baixos, o alto desemprego até
pode ser proveitoso, na medida em que pressiona para baixo a demanda dos trabalhadores por salários. Mas,
para os economistas, os trabalhadores desempregados demonstram o mau funcionamento da economia, e
em muitos países vemos evidências inequívocas dessa e de e outras disfunções. Alguns defensores da
economia autorregulada atribuem parte da culpa por essas disfunções ao governo em si; mas, não importa
até que ponto a alegação seja verdadeira, o importante é que o mito da economia autorregulada está, hoje,
praticamente extinto.” (STIGLITZ, J. E., “Prefácio”, in: POLANYI, K. A grande transformação – as
origens de nossa época, p. XVIII).

CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA


SEMINÁRIO - 2020
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291 H.-G. FLICKINGER expressa a atualidade do pensamento marxiano aos fins da segunda década do
século XXI do seguinte modo: “Resta indicar, por fim, alguns aspectos que, remetendo de uma ou outra
maneira à concepção marxiana, continuam influenciando os debates político-econômicos em nossos dias.
Primeiro: a contribuição imediata desta concepção está no caráter modelo de sua crítica das ideologias.
Hoje, não é mais possível voltar a um tipo de crítica, na qual as posições se recusam a tomar a sério a
argumentação do outro, insistindo cega e incondicionalmente nos próprios pressupostos.
Segundo: a figura “Deus sive capital” serve para explicar a dinâmica inerente aos vícios de uma economia
que reprime até mesmo as demandas básicas do homem. Esse diagnóstico revela a violência praticada pelo
capital, ao organizar o mercado de trabalho de modo a que o ser humano venha a sofrer o que Sennett refere
enquanto “corrosão do caráter”.
Terceiro: Reivindicando as características de um deus secularizado, o capital depende cada vez menos do
vínculo com a base material de sua reprodução. Desenraizado desta, ele se vai tornando numa instância
transcendente, aparentemente fora do alcance do homem. Uma comprovação disto está nos mercados
financeiros internacionais.
Quarto: Enquanto capital virtual, o capital está presente sem ser visível. Não se pode, por isto, fazer dele
qualquer imagem concreta. Tal como um Deus do qual é proibido fazer imagens, experimenta-se o capital
única e exclusivamente mediante seus efeitos desastrosos, cujo correlato teológico encontra-se na afirmação:
‘Vocês O conhecerão pelas Suas obras’.
É importante observar, ainda, que o compreender a realidade da sociedade liberal-capitalista à base da crítica
elaborada por Marx ao longo de suas investigações não implica em propor uma saída da ordem sócio-política
injusta, denunciada por ele. Marx recusou-se, sempre, a desenhar o modelo de um futuro mais justo e
humano. Confiou, porém, em uma práxis social capaz de explorar os pontos fracos do reino dominado pelo
capital, E, ao que tudo indica, uma outra saída, além desta, não nos é possível apontar até hoje.”
(FLICKINGER, H.-G., “Crítica e metafísica: o legado filosófico de Karl Marx”, in: ECKER, D.; ROSIN,
N. (Orgs.), O capital e O Capital, p. 145-146).
292 STIGLITZ, J. E., “Prefácio”, in: POLANYI, K. A grande transformação – as origens de nossa época,
p. XVI.
293 DUMÉNIL, G.; LÉVY, D., A crise do neoliberalismo, p. 19.
294 DUNKER, C., “O neoliberalismo e seus normalopatas”, in: DUNKER, C., Reinvenção da intimidade –
políticas do sofrimento cotidiano, p. 284-285.
295 DUMÉNIL, G.; LÉVY, D., A crise do neoliberalismo, p. 32.
296 STIGLITZ, J. E., “Prefácio”, in: POLANYI, K. A grande transformação – as origens de nossa época,
p. XV-XXV.
297 STIGLITZ, J. E., “Prefácio”, in: POLANYI, K. A grande transformação – as origens de nossa época,
p. XV-XVI. Segue Stiglitz: “Polanyi escreveu A Grande Transformação antes de os economistas modernos
esclarecerem as limitações dos mercados autorregulados. Hoje, não se conta com base intelectual respeitável
para a proposição de que os mercados, por si, produzem resultados eficientes, para não falar em equitativos.”
(Id., p. XVI). Ainda: “Os defensores do consenso de Washington, neoliberal, enfatizam que as intervenções
são a fonte do problema: a chave da transformação é permitir o ajuste dos preços e livrar a economia do
governo, por meio da privatização e da liberalização. Desse ponto de vista, o desenvolvimento é pouco mais
que acumulação de capital e melhoria de eficiência na alocação de recursos – questões puramente técnicas.
Essa ideologia distorce a natureza da transformação em si, que envolve também a transformação da
sociedade, não só da economia, e que exige a transformação da economia muito mais profunda do que
sugerem as prescrições simplistas. A perspectiva do neoliberalismo resulta de má interpretação da história,
conforme Polanyi efetivamente argumenta” (STIGLITZ, J. E., “Prefácio”, in: POLANYI, K. A grande
transformação – as origens de nossa época, p. XXII).
298 POLANYI, K. A grande transformação – as origens de nossa época, p. 4.
299 Cf. HOBSBAWM, E. A era do capital, p. 21-22: “Na década de 1860, uma nova palavra entrou no
vocabulário econômico e político do mundo: “capitalismo”. Portanto, parece apropriado chamar o presente
volume A era do capital, um título que também faz lembrar a todos nós que a mais importante obra do mais
formidável crítico do capitalismo, O capital, de Karl Marx (1867), foi publicada nessa época. O triunfo
global do capitalismo é o tema mais importante da História nas décadas que se sucederam a 1848. Foi o
trunfo de uma sociedade que acreditou que o crescimento econômico repousava na competição da livre
iniciativa privada, no sucesso de comprar tudo no mercado mais barato (inclusive trabalho) e vender no mais
caro. Uma economia assim fundamentada e, portanto, repousando naturalmente nas sólidas fundações de
uma burguesia composta daqueles cuja energia, mérito e inteligência os elevou a tal posição, deveria – assim
se acreditava – não somente criar um mundo de plena distribuição material, mas também de crescente
esclarecimento, razão e oportunidade humana, de avanço das ciências e das artes, em suma, um mundo de
contínuo progresso material e moral. Os poucos obstáculos ainda remanescentes no caminho do livre
desenvolvimento da economia privada seriam levados de roldão. As instituições do mundo, ou mais
CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA
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precisamente daquelas partes do mundo ainda não excluídas pela tirania das tradições e superstições, ou
pelo infortúnio de não possuírem pele branca (preferivelmente originária da Europa central ou do norte),
gradualmente se aproximariam do modelo internacional de um “Estado-nação” definido territorialmente,
com uma Constituição garantindo a propriedade e os direitos civis, assembleias representativas e governos
eleitos responsáveis por elas e, quando possível, uma participação do povo comum na política dentro de
limites tais que garantissem a ordem social burguesa e evitassem o risco de ela ser derrubada”.
300 POLANYI, K. A grande transformação – as origens de nossa época, p. 31. Ainda Polanyi: “A
descoberta mais importante nas recentes pesquisas históricas e antropológicas é que a economia do homem,
como regra, está submersa em suas relações sociais. Ele não age desta forma para salvaguardar seu interesse
individual na posse de bens materiais, ele age assim para salvaguardar sua situação social, suas exigências
sociais, seu patrimônio social. Ele valoriza os bens materiais na medida em que eles servem a seus
propósitos. Nem o processo de produção, nem o de distribuição está ligado a interesses econômicos
específicos relativos à posse de bens. Cada passo desse processo está atrelado a um certo número de
interesses sociais, e são estes que asseguram a necessidade daquele passo. É natural que esses interesses
sejam muito diferentes numa pequena comunidade de caçadores ou pescadores e numa ampla sociedade
despótica, mas tanto numa como noutra o sistema econômico será dirigido por motivações não econômicas.
(grifo nosso).” (POLANYI, K., A grande transformação – as origens de nossa época, p. 48).
301 Ethica, definitiones (edição bilíngue).
302 Cf. SOUZA, R. T., Ética como fundamento II – pequeno tratado de ética radical.
303 “O mecanismo posto em movimento com a motivação do lucro foi comparável, em eficiência, apenas
à mais violenta irrupção de fervor religioso na história. No prazo de uma geração, toda a humanidade estava
sujeita à sua influência integral. Como é do conhecimento de todos, ele adquiriu a sua maturidade na
Inglaterra, na esteira da Revolução Industrial, durante a primeira metade do século XIX. Alcançou o
continente e a América do Norte cerca de cinquenta anos mais tarde. Na Inglaterra, no continente e até
mesmo na América do Norte, posteriormente, alternativas similares modelaram os acontecimentos diários
em um padrão cujos traços principais eram idênticos em todos os países de civilização ocidental. Para
determinar as origens do cataclisma, temos que nos voltar para a ascensão e queda da economia de mercado.
(...) A sociedade de mercado nasceu na Inglaterra, porém foi no continente que a sua fraqueza engendrou as
mais trágicas complicações. Para podermos compreender o fascismo alemão, temos que reverter à Inglaterra
ricardiana.” (POLANYI, K. A grande transformação – as origens de nossa época, p. 31. Segue Polanyi:
“Nunca é demais enfatizar que o século dezenove foi o século da Inglaterra: a Revolução Industrial foi um
acontecimento inglês. A economia de mercado, o livre comércio e o padrão-ouro foram inventos ingleses.
Essas instituições irromperam em todos os lugares durante a década de 1920 na Alemanha, na Itália ou na
Áustria o acontecimento foi simplesmente mais político e mais dramático. Entretanto, qualquer que seja o
cenário e a temperatura dos episódios finais, os fatores que, em última análise, destruíram essa civilização
devem ser estudados no berço da Revolução Industrial, a Inglaterra.” (POLANYI, K. A grande
transformação – as origens de nossa época, p. 31-32).
304 Não é demais lembrar que Marx já via na questão da financeirização um tema central da história do
capitalismo: “Pode-se notar que a consideração das classes capitalistas e instituições financeiras em conjunto
traz à mente a análise de Marx. Esse já havia escrito no Livro III de O Capital que os bancos – as instituições
financeiras do século XIX – não somente definiam uma indústria financeira específica (entre outras) como
também agiam como ‘administradores’ do capital remunerado por juros (...) É isso o que define a noção de
finanças, a consideração conjunta das classes capitalistas e os administradores (institucionais) do capital”.
(DUMÉNIL, G.; LÉVY, D., A crise do neoliberalismo, p. 65).
305 POLANYI, K. A grande transformação – as origens de nossa época, p 35-36.
306 Não é nenhum acaso que F. Fukuyama, aos fins do século XX, proclamava sua fé no “maquinismo”
liberal que conduziria à felicidade liberal universal.
307 POLANYI, K. A grande transformação – as origens de nossa época, p 42-43. Ainda: “A utilização de
máquinas especializadas numa sociedade agrária e comercial deve produzir efeitos típicos. Uma sociedade
como essa consiste de agricultores e mercadores que compram e vendem o produto da terra. A produção
com a ajuda de ferramentas e fábricas especializadas, complicadas, dispendiosas só pode se ajustar a uma
tal sociedade tornando isto incidental ao ato de comprar e vender. O mercador é a única pessoa disponível
para assumir isto, e ele estará disposto a desempenhar essa atividade desde que ela não importe em prejuízo.
Ele venderá as mercadorias da mesma forma como já vinha vendendo outras àqueles que delas precisavam.
Entretanto, ele vai procurá-las de modo diferente, isto é, não mais adquiriu-as já prontas, mas comprando o
trabalho necessário e a matéria-prima. Esses dois elementos combinados, sob as instruções do mercador,
mais o tempo de espera em que ele poderá incorrer, resultam em um novo produto. Esta não é a descrição
apenas de uma indústria doméstica, ou de "fazer-se ao mar", mas de qualquer espécie de capitalismo
industrial, inclusive o do nosso tempo. Seguem-se importantes consequências para o sistema social.”
(POLANYI, K. A grande transformação – as origens de nossa época, p 43).
CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA
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308 Idem, p. 43-44. Segue Polanyi: “Uma vez que as máquinas complicadas são dispendiosas, elas só são
rentáveis quando produzem grande quantidade de mercadorias. Elas só podem trabalhar sem prejuízo se a
saída de mercadorias é razoavelmente garantida, e se a produção não precisar ser interrompida por falta das
matérias-primas necessárias para alimentar as máquinas. Para o mercador isto significa que todos os fatores
envolvidos têm que estar à venda, isto é, eles precisam estar disponíveis, nas quantidades necessárias, para
quem quer que esteja em condições de pagar por eles. A menos que essa condição seja preenchida, a
produção com a ajuda de máquinas especializadas torna-se demasiado arriscada para ser empreendida, tanto
do ponto de vista do mercador, que empata seu dinheiro, como da comunidade como um todo, que passa a
depender de uma produção contínua para conseguir renda, emprego e provisões. (...) Ora, numa sociedade
agrícola tais condições não surgiram naturalmente - elas teriam que ser criadas. O fato de terem sido criadas
gradualmente de maneira alguma afeta a natureza surpreendente das mudanças envolvidas. A transformação
implica uma mudança na motivação da ação por parte dos membros da sociedade: a motivação do lucro
passa a substituir a motivação da subsistência. Todas as transações se transformam em transações monetárias
e estas, por sua vez, exigem que seja introduzido um meio de intercâmbio em cada articulação da vida
industrial. Todas as rendas devem derivar da venda de alguma coisa e, qualquer que seja a verdadeira fonte
de renda de uma pessoa, ela deve ser vista como resultante de uma venda. É isto o que significa o simples
termo "sistema de mercado" pelo qual designamos o padrão institucional descrito. Mas a peculiaridade mais
surpreendente do sistema repousa no fato de que, uma vez estabelecido, tem que se lhe permitir funcionar
sem qualquer interferência externa. Os lucros não são mais garantidos e o mercador tem que auferir seus
lucros no mercado. Os preços devem ter a liberdade de se autorregularem. É justamente esse sistema
autorregulável de mercados o que queremos dizer com economia de mercado. (...) A transformação da
economia anterior para esse sistema é tão completa que parece mais a metamorfose de uma lagarta do que
qualquer alteração que possa ser expressa em termos de crescimento contínuo e desenvolvimento.
Contrastemos, por exemplo, as atividades de venda do mercador-produtor e suas atividades de compra: suas
vendas são apenas de artefatos e, se ele tiver ou não sucesso em encontrar compradores, o tecido da
sociedade não precisa ser afetado. Mas o que ele compra são matérias-primas e trabalho natureza e homem.”
(POLANYI, K. A grande transformação – as origens de nossa época, p. 43-44).
309 Eis um exemplo bem destacado por Hinkelammert: “A ética e a filosofia, segundo Friedman, nada têm
que ver com o primeiro tipo de valores instalados precisamente pelas relações de produção, pois se
preocupam com o exercício da liberdade; e isso se refere apenas às decisões de compra, como por exemplo
a cor das gravatas compradas. A instalação das relações de produção, ao contrário, é um ato de fé na própria
liberdade.” (HINKELAMMERT, F., As armas ideológicas da morte, p. 101). Instala-se a conhecida
indistinção presumida entre necessidades e preferências, que hoje domina, mor das vezes, o imaginário
social do universo dos ideólogos do neoliberalismo e do mercado total.
310 POLANYI, K. A grande transformação – as origens de nossa época, p. 77-78.
311 Essa é a razão pela qual um ideólogo do livre mercado absoluto, como M. Friedman, advogará
continuamente em favor da precificação de tudo o que existe nas relações com a realidade, na medida,
exatamente, em que existe; doravante, tudo é mercadoria. F. Hinkelammert destaca a diferença dessa
absolutização totalizante que culmina em uma idolatria absoluta em relação ao clássico conceito de
fetichismo em Marx: “Em relação ao fetichismo analisado por Marx, a diferença é profunda. Na teoria
política clássica a mais-valia é uma criação do nada, devia às relações mercantis e ao capital-dinheiro. Na
teoria neoclássica é o próprio sujeito humano. Na economia política clássica o sujeito é interior às relações
mercantis; e, portanto, pode ter necessidades, às quais a produção mercantil tem de responder. Isso vale até
para a teoria da população de Malthus. Existe um conceito de subsistência sob o qual o homem morre. A
teoria neoclássica elimina esse conceito do homem e o substitui por um sujeito criado pelas próprias relações
mercantis. Esse mesmo conceito é recentemente expresso por Friedman com nitidez: o homem é agora
sujeito somente naquele grau em que é reconhecido como tal pela produção mercantil. O conceito da
necessidade desaparece, e esta é substituída pela demanda. Se alguém não pode demandar o mínimo
necessário para viver, cai fora do âmbito da teoria econômica. A reposição do capital continua sendo um
conceito econômico, a reposição do homem não. De fato, o homem nem é visto como igual à máquina mas
como inferior a ela.” (HINKELAMMERT, F., As armas ideológicas da morte, p. 107).
312 K. MARX apud HINKELAMMERT, F., As armas ideológicas da morte, p. 47. Cf. também: “Como foi
que o dinheiro, primeiro como mercadoria geral na troca mercantil, e depois, cada vez mais autônomo e, aos
poucos, transformado em capital que se valoriza a si mesmo, deu origem ao capitalismo? Foi simplesmente
porque houve, aos poucos, mais e mais dinheiro acumulado, até chegar a um grande tesouro que foi, então,
chamado capital e passou a ser investido? Talvez muita gente pare aí com a sua reflexão. Marx certamente
não. Ele nos diz uma coisa que muitos acham sumamente estranha, porque está ‘invisível’, ocultada no real.
Marx nos diz que o dinheiro e, posteriormente, o capital só puderam funcionar historicamente como
funcionaram em seu caráter de fetiches e por causa deste seu caráter fetichista. Simplesmente isto, mas

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também tudo o que isto implica”. (ASSMANN, H.; HINKELAMMERT, F., A idolatria do mercado –
Ensaio sobre Economia e Teologia, p. 401).
313 POLANYI, K. A grande transformação – as origens de nossa época, p. 78.
314 Cf. SOUZA, R. T., Totalidade & desagregação – sobre as fronteiras do pensamento e suas alternativas,
p. 15-29.
315 POLANYI, K. A grande transformação – as origens de nossa época, p. 78-79.
316 FRIEDMAN, M., apud HINKELAMMERT, F., As armas ideológicas da morte, p. 101.
317 HINKELAMMERT, F., As armas ideológicas da morte, p. 105-106.
318 FRIEDMAN, M., apud HINKELAMMERT, F., As armas ideológicas da morte, p. 104.
319 FRIEDMAN, M., apud HINKELAMMERT, F., As armas ideológicas da morte, p. 106.
320 HINKELAMMERT, F., As armas ideológicas da morte, p. 102. É de notar ainda o modo como
Friedman aplica a lógica de atribuição de valor monetário à questão dos filhos, conforme analisado por
Hinkelammert: “O sujeito das preferências comunica ao sujeito-carteira o fato de que quer ter um filho. O
sujeito-carteira classifica em seguida o tipo de bem que é o filho: ‘Desse ponto de vista, deve-se admitir
que os filhos desempenham um duplo papel: são um bem de consumo, um modo de gastar a renda para
adquirir satisfações, uma alternativa para a compra de carros ou serviço doméstico ou outros bens; são ao
mesmo tempo um bem de capital produzido por uma atividade econômica, uma alternativa para a produção
de máquinas, edifícios ou outras coisas.’ O sujeito-carteira sabe, portanto, que se trata de um produto
conjunto. Não um produto de dois – é perfeitamente assexual – visto que o filho é dois produtos em um. ‘O
fato de que os filhos sejam, nesse sentido, um produto conjunto, significa que se deve combinar os dois tipos
de considerações: os rendimentos provenientes dos filhos como bens de capital podem se considerar como
uma redução de seus custos como bens de consumo. Visto como um bem de consumo, a quantidade
produzida será determinada pelo custo relativo dos filhos, comparado com outros bens de consumo, a renda
disponível para todos os usos, gostos e preferências dos indivíduos em questão. (...) Visto com um bem de
capital, a quantidade produzida será determinada pelos rendimentos que se esperam dele, em comparação
com os bens de capital, e pelo custo relativo de produzir este ou outros bens de capital alternativos’.”
(HINKELAMMERT, F., As armas ideológicas da morte, p. 103-104).
321 POLANYI, K. A grande transformação – as origens de nossa época, p. 259-260. Segue Polanyi: “O
aparecimento desse movimento nos países industrializados do globo, e até mesmo em alguns menos
industrializados, jamais pode ser atribuído a causas locais, mentalidades nacionais ou formação histórica,
como fizeram sistematicamente os contemporâneos. O fascismo teve tão pouco a ver com a Primeira Guerra
Mundial como com o Tratado de Versalhes, com o militarismo Junker como com o temperamento italiano.
O movimento surgiu em países derrotados, como a Bulgária, e em países vitoriosos, como a Iugoslávia; em
países de temperamento nórdico, como a Finlândia e a Noruega, e de temperamento sulista, como a Itália e
a Espanha; em países de raça ariana, como a Inglaterra, a Irlanda ou a Bélgica, e de raças não arianas, como
o Japão, a Hungria ou a Palestina; em países de tradição católica, como Portugal, e em países protestantes,
como a Holanda; em comunidades militares, como a Prússia, e unidades civis, como a Áustria; em culturas
antigas, como a França, e novas, como os Estados Unidos e os países latino-americanos. De fato, não houve
qualquer tipo de formação – de tradição religiosa, cultural ou nacional – que tornasse um país imune ao
fascismo, uma vez dadas as condições para a sua emergência. (...) Ademais, foi marcante a falta de relação
entre a sua força material e numérica e a sua efetividade política. O próprio termo "movimento" era
equivocado, uma vez que implicava uma espécie de alistamento ou participação pessoal de grandes massas.
Se houve alguma coisa característica no fascismo foi a sua independência de tais manifestações populares.
Embora seu objetivo fosse um cortejo de massas, sua força potencial era reconhecida não pelo número dos
seus adeptos, mas pelo fato de os líderes fascistas gozarem da boa vontade de pessoas em postos de
relevância, cuja influência na comunidade podia defendê-los das consequências eventuais de uma revolta
abortada, afastando assim os riscos da revolução.” (POLANYI, K. A grande transformação – as origens de
nossa época, p. 260).
322 Cf. SOUZA, R. T., Totalidade & desagregação – sobre as fronteiras do pensamento e suas alternativas,
p. 15-29.
323 POLANYI, K. A grande transformação – as origens de nossa época, p. 81. Ainda Polanyi:
“Relembremos nosso paralelo entre as devastações dos cercamentos na história inglesa e a catástrofe social
que se seguiu à Revolução Industrial. Dissemos que, como regra, o progresso é feito à custa da
desarticulação social. Se o ritmo desse transtorno é exagerado, a comunidade pode sucumbir no processo.
Os Tudors e os primeiros Stuarts salvaram a Inglaterra do destino da Espanha regulamentando o curso da
mudança de forma a torná-la suportável e puderam canalizar seus efeitos por caminhos menos destruidores.
Nada, porém, foi feito para salvar o povo comum da Inglaterra do impacto da Revolução Industrial. Uma fé
cega no progresso espontâneo havia se apossado da mentalidade a das pessoas e, com o fanatismo de
sectários, os mais esclarecidos pressionavam em favor de uma mudança na sociedade, sem limites nem
regulamentações. Os efeitos causados nas vidas das pessoas foram terríveis, quase indescritíveis. A
CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA
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sociedade humana poderia ter sido aniquilada, de fato, não fosse a ocorrência de alguns contramovimentos
protetores que cercearam a ação desse mecanismo autodestrutivo.” (POLANYI, K. A grande transformação
– as origens de nossa época, p. 81-82).
324 POLANYI, K. A grande transformação – as origens de nossa época, p. 91. Segue Polanyi: “O conflito
também parecia inerente à economia, seja como competição entre indivíduos, seja como luta de classes -
mas esse conflito poderia transformar-se apenas no veículo de uma harmonia mais profunda imanente numa
sociedade atual ou talvez futura. (...) O pauperismo, a economia política e a descoberta da sociedade estavam
estreitamente interligados. O pauperismo fixou a atenção no fato incompreensível de que a pobreza parecia
acompanhar a abundância. Este, porém, foi apenas os primeiros dos surpreendentes paradoxos com os quais
a sociedade industrial confrontou o homem moderno. Este penetrara no seu novo domínio pela porta da
economia e essa circunstância fortuita envolveu o período com a sua aura materialista. Para Ricardo e
Malthus nada parecia mais real do que os bens materiais. As leis do mercado significavam para eles o limite
de as possibilidades humanas. Godwin acreditava em possibilidades ilimitadas e, portanto, tinha que negar
as leis do mercado. O fato de as possibilidades humanas serem ilimitadas, não pelas leis do mercado, porém
da própria sociedade, foi um reconhecimento reservado a Owen, e somente ele discerniu a realidade
emergente por trás do véu da economia de mercado: a sociedade. Sua visão, porém, foi perdida de novo, por
um século. (...) Enquanto isto, foi em relação ao problema da pobreza que as pessoas começaram a explorar
o significado da vida numa sociedade complexa. A introdução da economia política no reino do universal
aconteceu em duas perspectivas opostas - a do progresso e do aperfeiçoamento, de um lado, e a do
determinismo e da perdição, do outro. A sua tradução para a prática também foi alcançada por dois caminhos
opostos; através do princípio da harmonia e da autorregularão, de um lado, e da competição e do conflito,
do outro. O liberalismo econômico e o conceito de classe foram moldados dentro dessas contradições. Foi
com a finalidade de um acontecimento elementar que um novo conjunto de ideias penetrou a nossa
consciência.” (POLANYI, K. A grande transformação – as origens de nossa época, p. 91). As bases teóricas
e ideológicas para a manutenção de uma tal situação foram e têm sido hoje ainda fornecidos por modelos de
pensamento específicos, chamados por Horkheimer de “filosofia burguesa da história”: “A realidade
nascente chegou à nossa consciência através da economia política. Com efeito, suas regularidades
surpreendentes e contradições assombrosas tinham que ser enquadradas num esquema de filosofia e
teologia para poderem ser assimiladas como significados humanos. Os fatos obstinados e as leis brutais e
inexoráveis que surgiram para abolir nossa liberdade tinham que se reconciliar, de uma forma ou de outra,
com essa mesma liberdade. Isto se tornou a mola mestra das forças metafísicas que secretamente sustentaram
os positivistas e os utilitaristas. A resposta ambivalente da mente a essas terríveis limitações foi uma
esperança irrestrita e um desespero ilimitado, que se voltavam para as regiões ainda não exploradas das
possibilidades humanas. Do pesadelo da população e das leis salariais destilou-se a esperança - a visão do
aperfeiçoamento - e ela se materializou num conceito de progresso tão inspirador que parecia justificar as
enormes e dolorosas distorções por vir. O desespero provaria ser um agente ainda mais poderoso da
transformação. (...) O homem foi forçado a resignar-se à perdição secular: seu destino era limitar a
procriação da sua raça ou condenar-se irremediavelmente à liquidação através da guerra e da peste, da fome
e do vício. A pobreza representava a sobrevivência da natureza na sociedade. A limitação dos alimentos e a
ilimitação dos homens chegaram a um impasse justamente quando surgia a promessa de um aumento
ilimitado de riqueza, o que apenas tornava a ironia mais amarga. (...) Foi assim que a descoberta da sociedade
se integrou ao universo espiritual do homem. Mas, de que forma essa nova realidade da sociedade seria
traduzida em termos de vivência? Como guias para a prática, os princípios morais da harmonia e do conflito
tinham atingido seu limite e pelejavam, dentro de um padrão de completa contradição. Dizia-se que a
harmonia era inerente à economia, pois, em última instância, os interesses do indivíduo e da comunidade
eram idênticos. Todavia, tal autorregularão harmoniosa exigia que o indivíduo respeitasse a lei econômica
mesmo que ela o destruísse.” (POLANYI, K. A grande transformação – as origens de nossa época, p. 111).
325 POLANYI, K. A grande transformação – as origens de nossa época, p. 91-92.
326 HINKELAMMERT, F., As armas ideológicas da morte, p. 100.
327 HINKELAMMERT, F., As armas ideológicas da morte, p. 104-105. Segue Hinkelammert: “O próprio
afã desta extensão real e imaginária das relações mercantis explica-se antes a partir de um objetivo político.
Quer-se mostrar a efetividade e o alcance ilimitado das relações mercantis para poder aumentar o caráter
não-necessário da intervenção estatal e sua responsabilidade na geração da crise do mercado. Frente à
tendência ao intervencionismo estatal e ao planejamento socialista, essa teoria econômica encerra-se em si
mesma e busca soluções teóricas que tenham validade dogmática a priori e que a dispensem da discussão
de problemas específicos. Não se quer mais discutir se em tal ou qual caso se deveria ou não intervir no
mercado; pelo contrário, quer-se uma resposta de uma vez por todas, que proíba qualquer tipo de intervenção
pelo simples fato de que se trata de uma intervenção. (...) A calculabilidade de qualquer objeto implica agora
estender o cálculo – real ou imaginário – a objetos sempre novos. Sendo que cada fonte de receita é capital,
capitaliza o valor de capital de seu sujeito de preferência a partir de uma corrente de receitas que seu trabalho
CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA
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oferecido rende no mercado ao juro vigente. Contempla os possíveis aumentos de receitas e os necessários
conhecimentos novos, para os quais é necessária a capacitação. Pode-se efetuar a capacitação se seu custo
total foi igual ou maior do que a renda adicional capitalizada. Do contrário, tem de considera-la como um
bem de consumo e ver a satisfação relativa que rende. Também um amigo que ajuda regularmente tem um
valor de capital, e vale a pena investir nele somas menores do que uma ajuda adicional capitalizada. E assim
sucessivamente.” (HINKELAMMERT, F., As armas ideológicas da morte, p. 105).
328 HINKELAMMERT, F., As armas ideológicas da morte, p. 106-107. Segue Hinkelammert: “A teoria
clássica contém essa tese apenas como sua consequência lógica, mas não como sua convicção expressa.
Expressamente mantém uma diferença essencial entre capital e trabalho, e isto é o que Friedman ataca em
Marshall. Ao manter o ponto de partida neoclássica, Marshall tinha de ficar com inconseqüências do
argumento para não cair num anti-humanismo patente. Friedman não tem medo do anti-humanismo
declarado, e portanto, pode ser mais consequente a este respeito. O que vale aqui para Marshall, também
vale para grande maioria dos teóricos neoclássicos, por exemplo Samuelson. Como resultado podem estar
em desacordo com Friedman, mas seu ponto de partida teórica não lhes permite argumentar esse desacordo.”
(HINKELAMMERT, F., As armas ideológicas da morte, p. 107). Ainda Hinkelammert: “Homo homini
lupus. A máquina é amiga do homem, mas no homem não se pode confiar. Friedman não percebe que é
mister escolher entre ambos. A condição para poder comprar e vender todas as mercadorias é precisamente
que o homem não seja comprável. Os homens que são comercializados, e que, portanto, são escravos, não
podem nem comprar nem vender. Por isso a abolição da escravatura era necessária não só em sentido
humano, mas também na lógica das relações mercantis e de sua extensão. O alto desenvolvimento mercantil
e a escravidão são perfeitamente incompatíveis. Portanto, a abolição da escravatura nem pode ser
considerada uma imperfeição do mercado. Se assim parece a Friedman, provavelmente é uma imperfeição
de sua teoria. Mas algo se exprime bem: se se fizesse uma perfeição do mercado nas linhas que ele indica,
a civilização humana teria de começar de novo, partindo de um estado primitivo de escravidão. Sua
aplicação equivale a uma guerra atômica. (...) A expansão imaginária das relações mercantis que inicia a
teoria econômica neoclássica e que Friedman assume com um extremismo especial, apaga em certa medida
um limite do cálculo monetário que a economia política clássica sempre tinha conservado. Constitui uma
parte do problema a diferença entre trabalhos produtivos e improdutivos. Na economia política clássica o
custo de um filho são todos os bens que é preciso comprar para criá-lo. Mas o conjunto desses custos jamais
são o preço do filho. O filho não tem preço, pois é inapreciável. O mesmo acontece com a voz de um cantor.
A entrada no teatro não é o preço da voz do cantor, mas é uma transferência de bens ao cantor, necessários
para ter a oportunidade de escutá-la. Tem custos, mas também é inapreciável. No bem de consumo também
não se compra a utilidade do bem, mas seu valor, e través do valor seu valor de uso, que é uma oportunidade
de desfrutá-lo. Mas a utilidade não se compra. E quando se vai à praia para aproveitar o sol, paga-se um
apartamento no hotel, um traje de banho etc., mas de novo o conjunto desses custos não é o preço do sol; e
nem na noite, é o preço das estrelas. E na versão de Marx também não se compra o trabalho, mas a força de
trabalho. O uso é sempre a razão da compra. A entrada de teatro pela voz do cantor, o hotel para desfrutar o
sol, o bem pelo desfrute que permite, a força de trabalho pela capacidade criativa do trabalho... Mesmo
quando se avalia por mais, é possível que seja necessário pagar mais. Mas essas diferenças não medem
nenhuma utilidade e não são preços. (...) Esse limite entre o que tem preço e o que é inapreciável é, ao
mesmo tempo, limite enquanto aos objetos, sobre os quais uma ciência, estritamente operacional e orientada
ao que se pode comprovar, é capaz de investigar. A ideia de preços para o trabalho, para a utilidade, para a
voz do cantor, para o sol, para as estrelas e para os filhos, é totalmente imaginária e constitui um fantasma
metafísico, ao qual nenhuma ciência tem acesso, a não ser para desautorizá-lo. Mas é um mundo imaginário
que essa teoria econômica estendeu a todos os fenômenos interiores e exteriores do mundo sem a mínima
responsabilidade cientifica. Por isso sua falta de respeito pelos fenômenos humanos é, ao mesmo tempo, sua
falta de respeito pelo pensamento científico.” (HINKELAMMERT, F., As armas ideológicas da morte, p.
107-108.)
329 HINKELAMMERT, F., As armas ideológicas da morte, p. 108-109.
330 “La pérdida de validez de todas las religiones tradicionales se da en el grado en el que se someten al
criterio de verdad de la religión del progreso infinito. Para no sucumbir, entonces, en todas ellas se
desarrollan posiciones fundamentalistas ciegas y muchas veces sumamente agresivas. Este fenómeno
empieza con el fundamentalismo cristiano en EU, al que siguen los diversos fundamentalismos islámicos,
judíos y el actual fundamentalismo del Vaticano (2003, observação nossa). Por todos lados aparecen
talibanes que luchan entre sí. (…) Pero, paralelamente, la religión del mito del progreso infinito, que derrotó
a todas las religiones tradicionales, desarrolló una gran crisis en su interior. Las amenazas globales de la
exclusión y de la destrucción ambiental, que son el subproducto de la persecución irrestricta de este mito,
hicieron visible su carácter profundamente ilusorio. Desde el informe al Club de Roma - Los límites del
crecimiento (1972)- ese mito se quebró perdiendo su legitimidad: se tomó entonces conciencia de los
peligros del crecimiento; mas en vez de reaccionar con políticas de moderación se llevó a cabo una
CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA
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aceleración en el plano más destructivo del sistema, que aumentó con el colapso del socialismo histórico; y
la propia Modernidad hizo surgir el fundamentalismo neoliberal, tan ciego y agresivo como los
fundamentalismos de las religiones tradicionales pero mucho más poderoso, apareciendo los talibanes del
FMI y de las reuniones del G-7”. (HINKELAMMERT, F., Solidaridad o sucidio colectivo, p. 81-82.
331 HINKELAMMERT, F., As armas ideológicas da morte, p. 102.
332 HINKELAMMERT, F., As armas ideológicas da morte, p. 150-151: “Aparece também em seus grandes
teóricos. Todos eles apresentam e vivem o mundo das mercadorias, do dinheiro, do mercado e do capital
como um grande objeto de devoção, um mundo pseudodivino, que está acima dos homens e lhes dita as suas
leis. (...) O primeiro teórico nessa linha surge nos inícios da sociedade burguesa. Trata-se de Thomas
Hobbes, que percebe esse sobremundo – a verdadeira natureza – ao mesmo tempo como prometedor e
ameaçador e o chama de Leviatã. O Leviatã é a própria sociedade burguesa e Hobbes a chama ao mesmo
tempo de o Deus mortal que vive debaixo do Deus eterno e que exprime a sua legitimidade e seu direito
absoluto à representação dos homens na figura do soberano. (...) Já Hobbes constata que o dinheiro é o
sangue desse grande Leviatã. A partir de Hobbes, a engrenagem da sociedade burguesa continua sendo o
grande objeto de devoção da ciência social burguesa. Locke ainda pensa em termos do Leviatã. Hegel
começa a falar da Ideia. Adam Smith introduz uma transformação importante: o objeto da devoção surge
como a “mão invisível” da engrenagem social. No pensamento atual, contudo, verifica-se uma nova
mudança importante. Max Weber complementa a “mão invisível” com sua racionalidade formal, que é a
“racionalidade do Ocidente”. Trata-se de uma eterna luta, que é “destino”. A Comissão Trilateral chama-o
“interdependência”. (...) Trata-se do Leviatã, da Ideia, da “mão invisível”, do “destino” ou da
“interdependência”, sempre aparece no pensamento burguês um objeto central de devoção que se identifica
com a engrenagem: mercadoria, dinheiro, mercado e capital. Mudam as formas de expressão e as palavras,
mas jamais muda seu conteúdo.” (grifo nosso).
333 HINKELAMMERT, F., As armas ideológicas da morte, p. 152-153. Segue Hinkelammert: “A partir da
imagem metafísica da própria sociedade burguesa, e por fim dos opositores dela, a realidade constante na
ação e na ideologia burguesa é antes de tudo a afirmação da violação dos direitos humanos para estes
opositores; a linha constante nunca foi a defesa dos direitos humanos. A proclamação dos direitos humanos
é antes a exceção. Por isso, o tratamento que hoje em muitos lugares se dá aos opositores da sociedade
burguesa não é novidade alguma. É o tratamento que desde Locke se praticou e se recomendou, e do qual
existem muito poucas exceções.” (HINKELAMMERT, F., As armas ideológicas da morte, p. 153). Sobre
a tortura, veja-se ainda E. HOBSBAWM: “Sem dúvida, tanto a totalidade dos esforços de guerra quanto a
determinação de ambos os lados de travá-la sem limites e a qualquer custo deixaram a sua marca. Sem isso,
é difícil explicar a crescente brutalidade e desumanidade do século XX. Sobre essa curva ascendente de
barbarismo após 1914 não há, infelizmente, dúvida séria. No início do século XX, a tortura fora oficialmente
encerrada em toda Europa ocidental. Depois de 1945, voltamos a acostumar-nos, sem grande repulsa, a seu
uso em pelo menos um terço dos Estados membros das Nações Unidas, incluindo alguns dos mais velhos e
civilizados.” (E. HOBSBAWM, A era dos extremos – o curto século XX – 1924-1991, p. 21). Relevante,
igualmente, a menção de A. Mbembe a F. Fanon: Um dos pacientes de Fanon, o polícia, pratica o seu oficio
– a tortura. É o seu trabalho. Então ele tortura com serenidade. É certo que a tortura cansa. É verdade. Mas
apesar de tudo, é normal, lógico e racional, até ao dia em que começa a fazer em casa o que faz no trabalho.
Ainda que antes nunca tivesse sido assim, eis que agora o é. Na clínica, ele encontra um dos homens que
torturou. Este encontro é insuportável, tanto para um como para o outro. Como fazer para se perceber, a
começar por si mesmo, que não está maluco? A violência que foi levado a produzir encerra-o na personagem
do louco. Para sair dessa personagem, terá talvez de deitar fogo ao seu próprio corpo?” (MBEMBE, A.,
Políticas da inimizade, p. 192-193).
334 Apud Franz HINKELAMMERT, As armas ideológicas da morte, p. 46.
335 Apud Franz HINKELAMMERT, As armas ideológicas da morte, p. 48.
336 24/7 – Capitalismo tardio e os fins do sono, p. 49.
337 24/7 – Capitalismo tardio e os fins do sono, p. 137.
338 ASSMANN, H.; HINKELAMMERT, F., A idolatria do mercado – Ensaio sobre Economia e Teologia,
p. 411.
339 A corrosão do caráter - o desaparecimento das virtudes com o novo capitalismo, p. 66-67.
340 Cf. SOUZA, R. T., “Pensamento como crítica da violência”, in: SOUZA, R. T., Ética do escrever, p.
13-26.
341 PIKETTY, T. O capital no século XXI, p. 555.
342 Mote dos falangistas durante a Guerra Civil Espanhola.
343 ADORNO, T. W., “Teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista”, in: ADORNO, T. W. Ensaios
sobre psicologia social e psicanálise, p. 186-187.
344 Narcisismo de vida, narcisismo de morte, p. 21.
345 24/7 – Capitalismo tardio e os fins do sono, p. 109.
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346
“A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, in: BENJAMIN, W., Obras escolhidas – magia
e técnica, arte e política, p. 195.
347 Cf. SOUZA, R. T., “Pensamento como crítica da violência”, in: SOUZA, R. T., Ética do escrever, p.
13-26; SOUZA, R. T., Totalidade & desagregação – sobre as fronteiras do pensamento e suas alternativas,
p. 15-29, etc.
348 Cf. FREUD, S., Além do princípio de prazer, p. 84: “... (no que se refere) a uma orientação de
comportamento contra aquelas excitações internas que produzem um aumento de desprazer grande demais
(...) surgirá a tendência a tratá-las como se não agissem de dentro, mas de fora, para que se possa empregar
contra eles os meios defensivos da proteção contra estímulos. Essa é a origem da projeção, à qual está
reservado um papel tão grande na causação de processos patológicos.”
349 24/7 – Capitalismo tardio e os fins do sono, p. 19.
350 A argumentação que sustenta tal asserção pode ser localizada em meu texto “Pensamento como crítica
da violência”, in: SOUZA, R. T., Ética do Escrever, p. 13-26.
351 Embora não possa ser abordada nesse momento, destaque-se que a psicologia do self de Kohut
apresenta, nesse sentido, contribuições centrais para a compreensão dos estilos de narcisismo individual que
podem desembocar em tal totalização.
352 São muitos os exemplos, na Literatura, de tal tentação idolátrica, da lenda do Golem à do monstro de
Frankenstein; a derrocada final dos pretensos criadores e suas criaturas parece ter o efeito desmobilizador
em tais ousadias criacionais.
353 24/7 – Capitalismo tardio e os fins do sono, p. 16.
354 CRARY, J., 24/7 – Capitalismo tardio e os fins do sono, p. 16-17.
355 Vida para consumo, p. 22.
356 CRARY, J., 24/7 – Capitalismo tardio e os fins do sono, p. 17-18.
357 CRARY, J., 24/7 – Capitalismo tardio e os fins do sono, p. 39.
358 CRARY, J., 24/7 – Capitalismo tardio e os fins do sono, p. 18-19. Ainda: “A despeito de sua falta de
substância e de sua abstração – afinal é um slogan – o caráter inexorável do 24/7 repousa em sua
temporalidade impossível. É sempre uma reprimenda e uma depreciação da fraqueza e da inadequação do
tempo humano, com suas tessituras confusas e irregulares. Ela solapa a relevância e o valor de qualquer
intervalo ou variação. As loas ao acesso contínuo mascaram o fim da periodicidade que por milênios deu
forma à vida da maioria das culturas: o ritmo diário de acordar e dormir, e as alternâncias mais longas entre
dias de trabalho e dias de devoção ou descanso, que para os habitantes da Mesopotâmia, hebreus antigos e
outros resultou numa semana de sete dias. Em outras culturas antigas, em Roma e no Egito, havia semanas
de outro e dez dias, organizadas em função da feira e das fases da lua. O fim de semana é o resíduo moderno
desses sistemas antigos, mas até essa marca de distinção temporal é corroída pela imposição da
homogeneidade 24/7. É claro que essas distinções anteriores (dias da semana, feriados, descansos sazonais)
persistem, mas seu sentido e legibilidade estão sendo abalados pela monótona indistinção da temporalidade
24/7.” (24/7 – Capitalismo tardio e os fins do sono, p. 39-40).
359 24/7 – Capitalismo tardio e os fins do sono, p. 19. Destaca ainda Crary: “O desastre na fábrica de
produtos químicos em Bhopal, na Índia, em 1984, expôs de forma terrível a absoluta falta de proteção ou
segurança para os mais carentes. Pouco depois da meia-noite de 1º de dezembro, um gás altamente tóxico
vazou de um tanque de armazenamento mantido em condições precárias e matou dezenas de milhares de
moradores da região – a maior parte deles dormia no momento do acidente. Outros milhares de pessoas
morreram nas semanas e meses seguintes, e houve um número ainda maior de feridos ou inválidos para toda
a vida. (...) O desastre de Bhopal é até hoje a revelação brutal da discordância entre globalização corporativa
e possibilidade de segurança e sustentabilidade para as comunidades humanas. Nas décadas seguintes, a
empresa Union Carbide sempre engou qualquer responsabilidade ou ressarcimento às vítimas, numa
confirmação que o desastre não poderia ser tratado como um acidente e que, no contexto das operações
corporativas, as vítimas eram supérfluas. Com certeza as consequências teriam sido igualmente horríveis se
o vazamento tivesse ocorrido de dia, mas o fato de ter acontecido à noite ressalta a extrema vulnerabilidade
da pessoa adormecida, num mundo do qual desapareceram ou foram enfraquecidas antigas garantias
sociais.” (CRARY, J., 24/7 – Capitalismo tardio e os fins do sono, p. 37).
360 Cf. capítulo VI.
361 24/7 – Capitalismo tardio e os fins do sono, p. 40. Segue Crary: Exemplos do impacto de dispositivos
e aparelhos nas formas de sociabilidade de pequena escala (refeições, conversas ou salas de aula) talvez
tenham se tornado lugares-comuns, mas o dano cumulativo é, ainda assim, considerável. Habitamos um
mundo onde a antiga ideia de experiência compartilhada está se atrofiando, e ao mesmo tempo as
gratificações ou recompensas prometidas pelas opções tecnológicas mais recentes jamais serão alcançadas.
Apesar das declarações onipresentes da compatibilidade, ou mesmo harmonia, entre o tempo humano e as
temporalidades dos sistemas em rede, disjunções, fraturas e desequilíbrio contínuo compõem a experiência
real dessas relações. (CRARY, J., 24/7 – Capitalismo tardio e os fins do sono, p. 41).
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362 24/7 – Capitalismo tardio e os fins do sono, p. 45. Ainda: “Disseminou-se a premissa, tão complacente
quanto absurda, de que esses padrões sistêmicos “vieram para ficar”, e que tais níveis de consumo
tecnológico podem ser estendidos a todo planeta, hoje com 7 e em breve com 10 bilhões de pessoas. Muitos
dos que celebram o potencial transformador das redes de comunicação se esquecem das formas opressivas
do trabalho humano e da devastação ambiental de que dependem suas fantasias de virtualidade e
desmaterialização. Mesmo entre as inúmeras vozes que afirmam que “outro mundo é possível”, muitas vezes
desponta a concepção, equivocada, mas cômoda, de que a justiça econômica, o arrefecimento das mudanças
climáticas e a criação de relações sociais igualitárias podem de alguma maneira coexistir com empresas
como Google, Apple e General Eletric. Quem desafiar essa ilusão vai se deparar com patrulhas intelectuais
dos mais diferentes tipos. Há uma proibição real não apenas à crítica do consumo tecnológico obrigatório,
como também à reflexão sobre como empregar os recursos e capacidades tecnológicos existentes a serviço
de necessidades humanas e sociais – e não das exigências do capital e do império.” CRARY, J., 24/7 –
Capitalismo tardio e os fins do sono, p. 57). De fato, “O conjunto restrito e monopolizado de produtos e
serviços eletrônicos disponíveis em determinado momento tenta se fazer passar pelo fenômeno total da
‘tecnologia’. Mesmo uma recusa parcial de ofertas intensamente comercializadas por empresas
multinacionais é considerada uma oposição à própria tecnologia. Caracterizar a ordem atual, ao fim inviável
e insustentável, com tudo menos inevitável ou inalterável, é incorrer em uma forma contemporânea de
heresia. Estão proibidas as opções de vida críveis ou visíveis fora das demandas de comunicação e consumo
no formato 24/7. Desacreditar ou duvidar do que hoje é o meio mais eficiente de gerar anuência e docilidade,
de promover o próprio interesse como a razão de ser de toda atividade social, são atitudes relegadas à
marginalização. Elaborar estratégias de vida que poderiam desvincular a tecnologia da lógica de ganância,
acumulação e espoliação ambiental é alvo de proibições institucionais contínuas. A tarefa de tal
policiamento é realizada pela classe de acadêmicos e críticos que Paul Nizan chamou de chiens de garde
[cães de guarda]: hoje os cães de guarda são os intelectuais e escritores tecnófilos ansiosos pela atenção dos
meios de comunicação e ávidos por recompensas e proximidade dos que detêm o poder.” (24/7 –
Capitalismo tardio e os fins do sono, p. 58-59).
363
ADORNO, T. W. “Observações sobre o pensamento filosófico”, in: ADORNO, T. W., Palavras e sinais
– modelos críticos II, p. 17.
364 Teoria do drone, p. 55.
365 Estado de exceção, p. 131.
366 LTI – A linguagem do Terceiro Reich, p. 174.
367 Apud V. TÓDOROV, “Introdução à fisiognomia de ruínas”, in: ANDRADE, A. L.; BARROS, R. L.;
CAPELA, C. E. S. (Orgs.), Ruinologias – Ensaios sobre destroços do presente, p. 179.
368 Minima moralia, p.
369 CHAMAYOU, G., Teoria do drone, p. 25.
370 Cf. CHAMAYOU, G., Teoria do drone, p. 26: “Essa tentativa de erradicação de qualquer reciprocidade
na exposição à violência quando há hostilidade reconfigura não só a conduta material da violência armada,
de forma técnica, tática e psíquica, mas também os princípios tradicionais de um ethos militar oficialmente
fundado na bravura e no espírito do sacrifício. Segundo as categorias clássicas, o drone seria a arma do
covarde.” Cf. ainda: “(…) Ao inventar o drone armado, descobriu-se também, quase por acaso, outra coisa:
uma solução para a contradição principal que afetava em seu centro havia vários séculos a teoria moderna
da soberania política em sua dimensão guerreira. A generalização dessa arma implica a tendência a uma
mutação das condições de exercício do poder de guerra, e isso na relação do Estado com seus próprios
sujeitos. Seria um erro reduzir a questão das armas à esfera da violência externa. O que implicaria, para uma
população, tornar-se sujeito de um Estado-drone?” (CHAMAYOU, G., Teoria do drone, p. 26.) Cf. também:
“Desde os primeiros dias que seguiram ao 11 de setembro, George W. Bush prevenira: os Estados Unidos
iam se lançar em um novo tipo de guerra, “uma guerra que requer de nossa parte uma caça ao homem
internacional”. O que a princípio soava simplesmente como um slogan pitoresco ao caubói texano foi depois
convertido em teoria de Estado, com especialistas, planos e armas. Em uma década constitui-se uma forma
não convencional de violência de Estado que combina as características díspares da guerra e da operação de
polícia, sem realmente corresponder nem a uma nem à outra, e que encontra sua unidade conceitual e prática
na noção de caça ao homem militarizada.” (CHAMAYOU, G., Teoria do drone, p. 41).
371 CHAMAYOU, G., Teoria do drone, p. 25-26.
372 “A racionalidade política subjacente a esse tipo de prática é a defesa social, com seu instrumento
clássico, a medida de segurança, que não é “destinado a punir, mas somente a preservar a sociedade contra
o risco que ela corre com a presença de seres perigosos em seu seio”. Nessa lógica de segurança baseada na
eliminação preventiva de indivíduos perigosos, a “guerra” toma a forma de vastas campanhas de execuções
extrajudiciais. Predator ou Reaper – aves de rapina e anjos da morte -, os nomes dos drones são bem
escolhidos.”
373 MBEMBE, A., Políticas da inimizade, p. 61-62.
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374 CHAMAYOU, G., Teoria do drone, p. 44.


375 CHAMAYOU, G., Teoria do drone, p. 44. É importante referir os seis princípios elencados por
Chamayou no que se refere à “revolução no olhar” que a dronificação do mundo significa:

“Os promotores dos drones insistem nesse ponto: esses dispositivos “revolucionaram nossa capacidade de
manter um olhar constante sobre o inimigo” Aí estaria a contribuição fundamental: uma revolução no olhar;
De que modo? Essas inovações podem ser agrupadas sob vários grandes princípios.

1º) Princípio de olhar persistente ou de vigília permanente. Emancipado das limitações do corpo do piloto
representava para o avião, o drone pode ficar no ar por muito tempo. Seu olhar pode permanecer constante,
24 horas por dia – o olho mecânico não tem pálpebras. Enquanto o dispositivo patrulha, os operadores, em
terra, trabalham em turnos na frente da tela. A transferência da tripulação para fora de seu cockpit permitiu
uma profunda reorganização do trabalho, e, na realidade, é isso que além das proezas tecnológicas da
máquina, que garante, por força da multiplicação socializada das pupilas humanas, a “vigília geoespacial
constante” do olhar institucional.
2º) Princípio de totalização das perspectivas ou de vista sinóptica. O segundo grande princípio associa à
persistência do olhar sua totalização. É a noção de vigilância de ampla extensão (wide area surveillance).
Ver tudo, o tempo todo. Essa extensão do campo de visão está em vias de ser confiada a novos dispositivos
ópticos revolucionários que ainda estão em fase de desenvolvimento. Equipado com tais sistemas de
“imagens sinópticas”, um drone disporia não mais de uma, mas de dezenas de microcâmeras de alta
resolução orientadas em todos os sentidos, como as múltiplas facetas de um olho de mosca. Um software
agregaria em tempo real essas diferentes imagens em uma única vista de conjunto, detalhável à vontade. O
que se obteria seria o equivalente de uma imagem de alta resolução por satélite, na escala de uma cidade ou
de uma região inteira, mas transmitida em vídeo e ao vivo. A todo momento, as diferentes equipes de
operadores poderiam, se quisessem, dar um zoom sobre determinado bairro ou indivíduo. Equipado com
esse sistema, um único aparelho em voo estacionário forneceria o equivalente das capacidades de uma rede
de câmeras de vigilância disseminada por toda uma cidade. O drone se tornaria “onividente.” Na prática,
entretanto, ainda estamos muito longe disso. Um relatório militar considera o dispositivo atual não
operacional: nem eficaz, nem adaptado – tem resolução insuficiente, em especial para seguir com eficácia
as pessoas, e falhas preocupantes em seu sistema de localização. Mas o que me importa por enquanto é
determinar os princípios orientadores dessa racionalidade, sem fazer nenhum prejulgamento sobre sua
efetividade atual.
3º) Princípio de arquivamento total ou do filme de todas as vidas.
A vigilância óptica não se limita à vigília em tempo real. Ela se redobra com uma função muito importante
de gravação e de arquivamento. “A ideia, por trás da noção de vigilância persiste, é fazer um filme de uma
área do tamanho de uma cidade para poder seguir os deslocamentos de todos os veículos e pessoas que lá
se encontram”. Depois de realizado, esse filme de todas as vidas e de todas as coisas poderia ser repassado
milhares de vezes, focalizando cada vez em um personagem diferente, aproximando dele para rever a
história a partir de sua escala. Seria possível escolher trechos, voltar, rever, ou adiantar as cenas. Navegar a
bel-prazer, não só no espaço, mas também no tempo. Com a ocorrência de um acontecimento, seria possível
voltar para retraçar sua genealogia: “Se uma cidade inteira pudesse ser vigiada de uma só vez, os carros-
bombas poderiam ser rastreados até seu ponto de origem”. O arquivo total garantiria antecipadamente, num
modo provisório, a rastreabilidade retrospectiva de todos os itinerários e de todas as gêneses. Mas isso
suporia capacidade de estocagem, indexação e análise que os sistemas atuais ainda não possuem. A imprensa
reporta que em 2009 os drones norte-americanos geraram o equivalente a 24 anos de gravação de vídeo. E
o novo sistema ARGUS-IS promete “gerar vários terabytes de dados por minuto, ou seja, cem vezes mais
que os sensores da geração anterior”. Mas aí está justamente o problema, que se tornou onipresente, o da
data overload, de uma sobrecarga ou avalanche de dados que acaba por tornar a informação, por sua
profusão, inexplorável. Para remediar esse problema, o Pentágono vai ao estádio. O futebol norte-americano
espetáculo televisionado por excelência, é um campo de inovação avançado no domínio do tratamento em
vídeo. Em cada partida, dezenas de câmeras filmam os jogadores em seus mínimos detalhes. Cada sequência
é instantaneamente indexada em uma base de dados. Por meio de um software de alta performance, o
realizador pode, ao mesmo tempo que as estatísticas são exibidas na tela, repassar qualquer ação de qualquer
jogo sob diferentes ângulos. Como explica Larry James, que dirige o ramo “informação, vigilância e
reconhecimento” da Air Force, “em matéria de compilação e análise de dados, os canais esportivos estão
mais avançados que os militares”. O exército norte-americano, depois de ter enviado emissários aos estúdios
do canal esportivo ESPN, decidiu adquirir uma versão modificada do software por eles utilizado. A
preocupação, afinal, é a mesma: “Os locutores esportivos querem coletar e catalogar vídeos sobre um
jogador específico ou um bom arremesso; os militares querem dispor de capacidade semelhante para seguir
insurgentes”. A guerra futura, prevenia há muito tempo Walter Benjamin, apresentará “um aspecto esportivo
CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA
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que superará as categorias militares e colocará as ações guerreiras sob o signo do recorde.” A etapa
tecnológica seguinte seria automatizar a indexação das imagens. Em vez de ter de entrar manualmente nas
tags ou nos metadados, confiar essa tarefa fastidiosa à máquina. Mas para isso seriam necessários softwares
capazes de descrever as coisas e as ações, ou seja, traduzir automaticamente agregados de pixels em nomes,
verbos e proposições. A Darpa [Defense Advanced Reserch Projects Agency] financia pesquisas nesse
sentido, destinadas a construir “sistemas cognitivos integrados para videovigilância automatizada”, das
quais participam pesquisadores em ciências cognitivas. É preciso imaginar no futuro máquinas-escribas,
escrivãos voadores e robotizados que elaborariam em tempo real a ata das mínimas atividades do mundo
situado abaixo deles. Como se, em paralelo à vida dos homens, as câmeras que já capturam suas imagens
animadas se pusessem a redigir simultaneamente seu relatório circunstanciado. Mas essas linhas de texto,
essa crônica meticulosa de todos os fatos e de todos os gestos, constituiriam também, ao mesmo tempo, um
grande índice, o catálogo informatizado de uma imensa videoteca em que todas as vidas se tornariam, em
cada uma das cenas roubadas pela câmera, retrospectivamente, “pesquisáveis”.
4º) Princípio de fusão de dados. Os drones não têm só olhos, têm também orelhas e muitos outros órgãos:
“Os drones Predator e Reaper podem interceptar as comunicações eletrônicas emitidas por rádios, telefones
celulares ou outros aparelhos de comunicação”. O desafio, para fins de arquivamento, consiste em fundir
essas diferentes camadas de informação, remetê-las umas às outras para combinar em um só item as diversas
facetas informacionais de um mesmo acontecimento. Associar, por exemplo, determinada chamada
telefônica a determinada sequência em vídeo e a determinadas coordenadas GPS. É o conceito de “fusão
dos dados” [datafusion].
5º Princípio de esquematização das formas de vida. Essa capacidade de “visualizar dados provenientes de
diversas fontes, combinando o ‘onde’, o ‘quando’ e o ‘quem’ em um traçado em três dimensões, observa
Derek Gregory, lembra os diagramas crono-geográficos elaborados pelo geógrafo sueco Torsten
Hägerstrand nos anos 1960. Essa corrente bastante inventiva da geografia humana se propunha desenhar
mapas de um novo tipo, gráficos espaçotemporais que mostrariam percursos de vida em três dimensões,
com seus ciclos, itinerários, mas também acidentes de derivas. Cruel desvio, esse projeto de uma cartografia
das vidas constitui hoje um dos principais suportes epistêmicos da vigilância armada. O objetivo é poder
“seguir vários indivíduos através de diferentes redes sociais a fim de estabelecer um padrão ou um ‘esquema
de vida’ [pattern of life], em conformidade com o paradigma da ‘informação baseada na atividade’ que
constitui hoje o núcleo da doutrina da contrainsurgência.” Ao contrário do que se poderia pensar, o objetivo
principal desses dispositivos de vigilância persistente, mais do que seguir indivíduos já conhecidos, é ver
surgirem elementos suspeitos que chamam por seus comportamentos anômicos. Como esse modelo de
informação está “baseado na atividade”, isto é, em uma análise das condutas mais do que no reconhecimento
de identidades nominais, ele pretende, paradoxalmente, “identificar” indivíduos que permanecem anônimos,
ou seja, qualificá-los pela tipicidade de seu comportamento relacionado a um perfil determinado:
identificação não mais singular, mas genérica.
6º) Princípio de detecção das anomalias e de antecipação preventiva.
As imagens são escaneadas para identificar, no meio de todas as atividades, os acontecimentos pertinentes
para o olhar seguro. Estes chamam a atenção para sua anomia, por sua irregularidade. Qualquer
comportamento que altere a trama das atividades habituais assinala uma ameaça. Segundo uma analista da
Air Force: “Hoje, analisar as imagens capturadas pelos drones é uma atividade a meio caminho entre
trabalho policial e ciências sociais. O foco está na compreensão dos “esquemas de vida” e nos desvios desses
esquemas. Por exemplo, se uma ponte normalmente cheia de gente se esvazia de repente, isso pode significar
que a população local sabe que alguém colocou uma bomba ali. Agora, vocês estão começando a fazer um
trabalho de estudo cultural, estão observando a vida de pessoas”. (...) O essencial da tarefa, resume Gregory,
consiste em “distinguir entre atividade ‘normal’ e ‘anormal’ em sua espécie de ritmanálise militarizada que
toma formas cada vez mais automatizadas”.
A detecção automática dos comportamentos anormais prossegue por meio da predição de seus possíveis
desenvolvimentos. Uma vez que os traços característicos de uma sequência conhecida são identificados em
uma determinada situação, os analistas pretendem inferir com o uso da probabilidade, prolongando as linhas,
suas trajetórias futuras, e intervir antecipadamente para impedir que ocorram. É a função “avanço rápido”
do dispositivo: “O reconhecimento automático de certos cenários pode fornecer alertas precoces de uma
ameaça”. A previsão do futuro se apoia no conhecimento do passado: os arquivos das vidas formam a base
sobre a qual, por meio da identificação das regularidades e antecipação das recorrências, se pretende
conseguir de uma só vez predizer o futuro e modificar seu curso por uma ação preemptiva. Essas pretensões
se assentam evidentemente em bases epistemológicas bastante frágeis, o que não impede em nada – pelo
contrário – que sejam muito perigosas. (...) O nome dado a esses dispositivos também é revelador: Argus, e
Gorgon Stare, o olhar da Górgona. Na mitologia grega, Argos, o personagem de cem olhos, era também
chamado de Panoptes, “quem tudo vê”. O pan-óptico de Bentham, analisado por Foucault, começava pela
arquitetura. Na continuidade desse esquema, os muros das cidades, nestas últimas décadas, se rechearam de
CRÍTICA DA RAZÃO IDOLÁTRICA – VERSÃO RICARDO TIMM DE SOUZA
SEMINÁRIO - 2020
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câmeras de videovigilância. A vigilância pelo drone é mais econômica: não implica nem adaptações
espaciais nem afixações nas construções. O ar e o céu lhe bastam. Como no filme Eyborgs, as câmeras se
desprendem dos muros e nelas crescem asas e armas. Entramos na era dos pan-ópticos voadores e armados.
Já o olhar da Górgona petrificava aqueles que tinham a infelicidade de cruzá-lo. É o olhar que mata. Não
mais, portanto, “vigiar e punir”, mas vigiar e aniquilar.” (CHAMAYOU, G., Teoria do drone, p. 48-55).
376 MBEMBE, A., Necropolítica, p. 57-58. Ainda: “(...) Em correlação com a nova geografia de extração
de recursos, assistimos ao surgimento de uma forma governamental sem precedentes, que consiste na
“gestão das multitudes”. A extração e o saque dos recursos naturais pelas máquinas de guerra caminham de
mãos dadas com tentativas brutais para imobilizar e fixar espacialmente categorias inteiras de pessoas ou,
paradoxalmente, para soltá-las, forçando-as a se disseminar por grandes áreas que excedem as fronteiras de
um Estado territorial. Enquanto categoria política, as populações são então descompostas entre rebeldes,
criança-soldados, vítimas ou refugiados, civis incapacitados por mutilação ou simplesmente massacrados
ao modo dos sacrifícios antigos; enquanto os “sobreviventes”, depois de um êxodo terrível, são confinados
a campos e zonas de exceção.” (MBEMBE, A., Necropolítica, p. 58).
377 MBEMBE, A., Necropolítica, p. 58-59. Segue Mbembe: “Por sua vez, a generalização da insegurança
aprofundou a distinção social entre aqueles que têm armas e os que não têm (“lei de distribuição de armas”).
Cada vez mais, a guerra não ocorre entre exércitos de dois Estados soberanos. Ela é travada por grupos
armados que agem por trás da máscara do Estado contra os grupos armados que não têm Estado, mas que
controlam territórios bastante distintos; ambos os lados têm como seus principais alvos as populações civis
desarmadas ou organizadas como milícias. Em casos nos quais dissidentes armados não tomaram
completamente o poder do Estado, eles produzem partições territoriais, alcançando o controle sobre regiões
inteiras pelo modelo feudal, especialmente onde existem depósitos minerais.” (MBEMBE, A.,
Necropolítica, p. 60).
378 MBEMBE, A., Necropolítica, p. 6-7.
379
“...experiências contemporâneas de destruição humana sugerem que é possível desenvolver uma leitura
da política, da soberania e do sujeito diferente daquela que herdamos do discurso filosófico da modernidade.
Em vez de considerar a razão a verdade do sujeito, podemos olhar para outras categorias fundadoras menos
abstratas e mais palpáveis, tais como a vida e a morte.” (A. MBEMBE, Necropolítica, p. 11).
380 MBEMBE, A. Políticas da inimizade, p. 15.
381 MBEMBE, A., Necropolítica, p. 60. Ainda: “Nesses pedaços de ossada impassíveis, não parece haver
nenhum vestígio de “ataraxia”: nada mais que a rejeição ilusória de uma morte que já ocorreu. Em outros
casos, em que a amputação física substitui a morte imediata, cortar os membros abre caminho para a
implantação das técnicas de incisão, ablação e excisão que também têm os ossos como seu alvo. Os vestígios
dessa cirurgia demiúrgica persistem por um longo tempo, sob a forma de configurações humanas vivas, mas
cuja integridade física foi substituída por pedaços, fragmentos, dobras, até mesmo imensas feridas difíceis
de fechar. Sua função é manter diante dos olhos da vítima – e das pessoas a seu redor – o espetáculo mórbido
do ocorrido.” (MBEMBE, A., Necropolítica, p. 60-61.)
382
LEVINAS, E., “Ideologia e Idealismo”, in: LEVINAS, E., De Deus que vem à idéia, p. 20.

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