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Sociabilidades e transformações numa cidade à beira-mar: o processo de construção da avenida beira-mar continental, florianópolis (SC)

SOCIABILIDADES E TRANSFORMAÇÕES NUMA CIDADE À BEIRA-MAR: O


PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DA AVENIDA BEIRA-MAR CONTINENTAL,
FLORIANÓPOLIS (SC)

SOCIABILITIES AND CHANGES IN A CITY TO SEASIDE: THE PROCESS OF CONSTRUCTION OF


BEIRA-MAR CONTINENTAL AVENUE, FLORIANÓPOLIS (SC)

Gisele Bochi Palma1


Resumo: Abstract:
A cidade de Florianópolis passou por diversas The city of Florianópolis went through several urban
transformações urbanas ao longo de sua história que transformations throughout its history that changed
alteraram de diversas maneiras as sociabilidades até in many ways the sociabilities hitherto existing. This
então existentes. Este artigo se propõe a mostrar as article aims to explain the experiences of residents
experiências de moradores despertadas a partir das awakened from the changes with the creation of the
transformações ocorridas com a criação da Beira-Mar Beira-Mar Continental, in Florianópolis, involving
Continental, em Florianópolis, envolvendo parte do part of the neighborhood Estreito and interfering in
bairro Estreito e interferindo nas comunidades que the communities living there, especially at Ponta do
ali residem, especialmente na Ponta do Leal. Com a Leal. With the work, new sociabilities, new spaces,
obra, surgiram novas sociabilidades, novos espaços, new places, as well as new processes that go through
novos lugares, e assim novos processos que passam the massiication and gentriication.
pela massiicação e “gentriicação”. Keywords: city, sociabilities, gentriication.
Palavras-chave: cidade, sociabilidades, gentriicação.

1
Mestranda em História, Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), orientanda da Profa. Dra.
Marlene de Fáveri. E-mail: gisapalma@yahoo.com.br.

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Desde o inal do século XIX, a cidade de Floria- do diversas classes sociais. Em uma parte nobre do
nópolis, especialmente a parte insular, passou por di- bairro, chamado Balneário do Estreito, junto ao mar,
versas intervenções urbanas seguindo os preceitos de está localizada a comunidade da Ponta do Leal que
urbanização dos grandes centros. Nos últimos anos, existe há mais de 40 anos e reúne cerca de 80 famí-
porém, com o processo de massiicação, observa-se lias que vivem em condições precárias. Quase todas
um aumento da população e uma valorização das áreas as casas são de madeira, muitas são palaitas, estando
continentais, passando também a ter alterações em sua próximas a uma saída de esgoto tratado do bairro. No
coniguração urbana e, conseqüentemente, nas redes de local, os moradores têm uma forte relação com o mar,
sociabilidades existentes. No bairro do Estreito, na parte sendo muitos deles pescadores, construindo pequenos
continental da cidade, a criação de uma avenida à beira- ranchos na orla para abrigar as suas canoas que trazem
-mar implicou na construção de um aterro e, ainda em camarões, tainhas, linguados e corvinas.
negociação, na retirada de uma comunidade de pesca- A parte nobre do bairro foi muito freqüentada e
dores do local. Isso envolve toda uma nova rede, tanto ocupada pelas casas de veraneio desde 1910, sendo
viária quanto social, e atinge diretamente as percepções o programa do im de semana de muitos que mora-
dos moradores sobre a região. Este artigo se propõe a vam na ilha e que no continente tinham a sua “casa
perceber esses processos a partir das experiências dos de praia”. Mas, até o inal do século XIX, o mar era
moradores, utilizando a metodologia da História oral. apenas um lugar de trabalho para os muitos moradores
As falas de Cléia L. Santana, Selma R. J. S. Carvalho e pobres que tiravam seu sustento com a pesca. Foi o
Fábio Silveira nos apresentam diferentes experiências hábito de procurar a praia e o mar como local de lazer
com a cidade, levando em consideração que os depoi- e de férias que levou à expansão urbana para o interior
mentos são as suas experiências contadas a partir do da Ilha, assim como na parte continental. Em 1937,
presente, cheias de interferências e de esquecimentos. um empreendimento turístico foi aberto no Balneário
O bairro Estreito, na parte continental, abriga da Ponta do Leal, dispondo de pista de dança com or-
uma população de cerca de 12 mil habitantes agrupan- questra ao vivo, vestiário para aluguel, banheiros para

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os banhistas, bar e restaurantes a cargo da Confeitaria casar foi por ser “um lugar bem cuidado” e lembra
Chiquinho. Nos inais de semana, ônibus partiam es- como era a praia antigamente:
pecialmente do Centro para levar os veranistas a Ponta
do Leal (FERREIRA, 1998, p.28). Uns dez anos antes [de me casar] mais ou menos [em
De balneário ativo apenas durante a tempora- 1960] a praia do Balneário no im de semana era lota-
da de verão, a região continental tornou-se, nos anos da. Naquela época não tinha carro também. [...] Não é
1980 e 1990, um novo bairro residencial, dando à porque o Balneário era a única praia, o Balneário era a
cidade de Florianópolis a atual coniguração descen- única opção próxima nossa. [...] Era um bairro nobre,
tralizada, com uma malha urbana descontínua e com toda vida nobre. A Coloninha [bairro vizinho] virou
grande luxo de veículos. O projeto de uma avenida na aquela pobreza ali e o Balneário icou sendo o bairro
orla do Estreito, conhecida como avenida Beira-Mar mais nobre da região (SILVEIRA, 2009).
Continental, surgiu como um facilitador para o trân-
Próximo da nova avenida, em fase inal de cons-
sito no bairro, implicando na construção de um aterro
trução, vive Cléia de Lima Santana, de 59 anos, com
com uma área de 180 mil metros quadrados e na desa-
seu marido Maurício e seus três ilhos. Uma casa de
propriação de diversas moradias.
alvenaria, pintada de verde, num terreno de esquina,
Fábio Silveira é proprietário de um comércio de
rodeada com um muro. Um pequeno cachorro cor-
autopeças no Estreito e é morador do bairro “desde
re pelo terreno da casa latindo para quem passa pela
sempre”, como ele mesmo diz. Nasceu em 1945 e sua
rua. Sentada na sala e olhando pela janela, Cléia aos
família já residia no Estreito muito antes de ele nascer.
poucos volta no tempo para narrar a sua experiência.
Quando casou, há 40 anos, ele se mudou para a região
Nascida em Caçador, oeste de Santa Catarina, mudou-
do Balneário e há 20 anos reside em uma cobertura de
-se com a família para Florianópolis ainda pequena,
um dos primeiros prédios com cinco andares constru-
morando inicialmente no bairro Capoeiras, que ica
ídos no bairro, antes somente eram construídas casas
próximo ao Estreito, logo em seguida mudando-se
na região. Ele diz que a opção pelo Balneário ao se
para o Balneário do Estreito. Ela conta com orgulho

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que mora no mesmo local no Balneário do Estreito Eu conto pra eles aqui em casa, aqui essa casa do lado,
desde criança, nesta mesma casa. Suas lembranças são esse terreno era nosso, e tinha pé de bastante fruta.
de um bairro bem diferente do que existe hoje, quando Mas daí eles não querem saber, ‘a tá, tá, já escutei
ainda existiam algumas dunas em que brincava em sua essa história’, a minha ilha que diz. ... Quando eu vou
infância. Cléia diz: ali pra praia eu mostro, o quintal era areia da praia
mesmo, a área rodeava a casa toda, pé de caju a gente
Não tinha nem rua aqui do lado. [...] A areia do mar sentava assim [embaixo] e só puxava. [...] O terreno
vinha até onde é o IPESC2 agora. Onde é o IPESC aqui atrás que eu pulava a cerca, que ia lá pra outra,
eram dunas. [...] Aqui, bem no meio da rua era uma que era um pessoal que era de Blumenau e ali era a
pedra, que depois pra abrir a rua tiveram que dina- casa de praia, então ali eles deixavam uma senhora
mitar. Como eu me lembro de icar sentada em cima como caseira, dezembro eles vinham e só iam embora
daquela pedrinha pra olhar. A gente ia brincar nas du- em março... Então, tinha a casa, era um terreno grande
nas. Não tinha essas casas aqui. Ah, era tudo diferente e outro pedaço era só pé de frutas. Eu lembro que no
(SANTANA, 2009). tempo de aula, eu fazia os deveres e depois ia pra lá, aí
eu icava lá junto com ela e tinha fruta, e ela apanhava
Cléia ainda se lembra de uma praia bonita, com mamão, era abacate, era de tudo. (SANTANA, 2009).
a água não sem poluição e das casas com muitos “pés
de frutas”. A cidade tinha outro ritmo, com vizinhos Na região sujeita à desapropriações diante à nova
reunidos na calçada para conversar e batendo à porta avenida, na comunidade da Ponta do Leal, vive Selma
para pedir uma xícara de açúcar emprestado. Os ilhos Ramos Jampierre da Silva Carvalho, de 36 anos, com
já não percebem esse tempo, nem mesmo tem tempo o marido e três ilhos. Morando numa casa construída
para ouvir as histórias da mãe, como ela cita: sobre o mar há 21 anos, Selma apresenta o marido,
que conversa entre uma martelada e outra enquanto
2
Refere-se ao Almoxarifado do Instituto de Previdência do Estado de construía a base da nova casa no terreno, que será pre-
Santa Catarina (IPESC) – atual IPREV – que se localiza na rua Quinze de
Novembro, esquina com a rua Casemiro de Abreu. sente para a ilha mais velha, com 18 anos completos.

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Hoje, a praia do Balneário já é considerada im- acostumei a viver em vários lugares. Mas meu marido e
própria para banho, ou seja, poluída, conforme placa meus ilhos sim, eles sentem falta. Se eles vão pra casa
indicativa colocada na margem do mar pela Fundação de alguém que ica um, dois dias e não tem mar, eles
do Meio Ambiente – FATMA (Fundação de Amparo icam quase doidos, tem dor de cabeça e tudo, voltam
Tecnológico do Meio Ambiente), órgão estadual que pra casa. A minha pequeninha não dorme fora de casa,
realiza o monitoramento da qualidade das águas do ela pede pra vir pra casa (CARVALHO, 2009).
mar para banho através de pesquisas de balneabilida-
Essa relação com o mar é comumente citada pe-
de desde 1976. Para as famílias que residem na Ponta
los moradores. A mudança da família de Cléia para
do Leal é marcante a ligação com o mar, notada pela
Florianópolis, na década de 1950, se deu justamente
simples presença dos barcos de pesca e também pelas
em função do mar, conforme ela relembra:
citações feitas pelos moradores.
O marido de Selma é pescador e ela conta que
A minha mãe veio morar pra cá porque adorava o mar.
o mar já é um costume para eles, tanto para a pesca
[...] Um tio meu morava aqui. Daí construiu, moraram
como o convívio com o barulho. Ela conta:
só seis meses e ele teve que ir embora. Aí foi onde
eles compraram. Ah, era lugar que ela gostava muito
O meu marido não imagina morar em outro lugar que
era esse aqui. [...] Como eu lembro de adolescente,
não seja perto do mar. Porque quando ele tá com von-
criança, olhava outras casas assim, mas ela dizia que
tade de um peixinho, alguma coisa, vai ali e pesca.
não, que daqui ela não ia sair e ainda dizia ‘isso aqui
Aqui ele tem tarrafa, ele pesca de rede, vai ali, o mar é
vai ser pros meus netos’. [...] Muitas coisas muda, ló-
pertinho. Pega três quilos. Não tem aquele gosto ruim
gico, é pra melhor, né, mas se fosse pra escolher claro
que a gente sente... é tudo bem fresquinho. Então é
que era aquele tempo assim... sabe, não tinha infra-
complicado pra nós. Acostumamos com o barulho do
-estrutura como eles dizem, não tinha saneamento,
mar, do vento. [...] Se for pra outro lugar eu acho que a
mas a gente... era diferente... mas o progresso, né...
gente morre do coração. Eu na verdade não, porque já
(SANTANA, 2009).

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A construção da avenida pode-se dizer que traz Florianópolis. Mas foi somente na década de 2000
grande impacto para toda a região e seus moradores que as obras de remodelação do bairro foram iniciadas
tem diferentes percepções sobre ela. Fábio percebe a com a construção da avenida Beira-Mar Continental.
obra da seguinte maneira: Em setembro de 2004, o canteiro de obras da avenida
foi instalado, mas logo foi interditado pelo Ministério
Hoje eu vejo essa obra que eles iniciaram aí [da Beira- Público Federal devido à falta da licença ambiental.
-Mar Continental], que sai debaixo da ponte Hercílio As obras foram retomadas em março de 2006 após
Luz, onde eu não vejo como ganhar proporções de lar- uma audiência de conciliação.
gura e de icar uma avenida bonita. Vejo ela terminar Em função da obra, novas sociabilidades surgiram
numa vila de casas de moradias que vai acabar com a partir da criação de um novo espaço e de uma nova
o Balneário, jogar um trânsito de ônibus aqui dentro. relação com aquele lugar à beira-mar. Os usos do mes-
Eles estão prometendo que no futuro vai ter seqüência mo espaço ao longo do tempo evidenciam as redes de
até o trevo de Barreiros [bairro do município vizinho], sociabilidades formadas, bem como o crescimento da
agora isso no meu ver é uma coisa de 10, 20 anos pra cidade e do bairro. De um lugar para o banho de mar
frente, no mínimo. Então, pra suportar até esse térmi- que se tornou ponto de encontro, das pescarias de im
no dela vai custar muito (SILVEIRA, 2009). de semana até chegar ao espaço destinado aos veículos
ou para as caminhadas ou pedaladas em circuitos pro-
O projeto de transformação da área continental
gramados e deinidos pelas calçadas e ciclovias.
percorreu um longo caminho desde os seus estudos
A partir das primeiras décadas do século XX,
iniciais até ser de fato ser implantado. Na década de
1950, uma grande alteração foi proposta no primeiro o Estreito passou por transformações especialmente
Plano Diretor. Na década de 1960, foi realizado um com a inauguração da ponte Hercílio Luz, em 1926,
estudo de integração do trânsito entre os municípios ligando a ilha e o continente, que marcou o início de
de Biguaçu, São José e Florianópolis para incorpora- uma nova fase para a cidade, trazendo a preocupação
ção ao Plano Diretor de Desenvolvimento da Grande com a abertura de novas vias de acesso e a evolução

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dos meios de transporte, bem como um aumento po- Quem estivesse disposto a ter um gasto extra com
pulacional. As dunas deram lugar às residências à bei- transporte poderia se dirigir à Maria Barbosa, no bair-
ra-mar, perdendo as características originais do antigo ro do Estreito (atual prédio da Caixa Econômica),
Balneário do Estreito. As instalações de instituições onde o acesso às dependências da casa só se dava após
como o Exército, a Marinha e a construção do estádio o cliente ser identiicado pela proprietária, que aten-
do Figueirense Futebol Clube, nas décadas de 30 e dia prontamente aos habitues em resposta às batidas
40, também alteraram a coniguração do bairro (TOR- no portão, que icava chaveado para manter, princi-
RENS, 2006, p.19). palmente os marinheiros e os mais pobres, longe do
Na década de 1950, as elites locais mostram em estabelecimento. (BORN, 2007, p.77).
seus discursos a vontade de tirar a cidade do “atraso”
Este era considerado o maior prostíbulo da re-
e da “estagnação” em que se encontrava, buscando
gião, e sua proprietária, Maria Barbosa, foi pressio-
transformar-se em uma “metrópole”. Mas ainda na
nada pela polícia para se mudar. Dentro de um acordo
década de 1960 a cidade era considerada provinciana
com a polícia, ela comprou um terreno no loteamento
(FERRARI, 2001, p.40).
da Vila Palmira, no bairro de Barreiros, município de
Outros ambientes também eram propícios para
São José, e se mudou para lá “levando consigo cerca
novas sociabilidades, como nos bordéis da cidade,
de 30 garotas que seguiriam praticando suas funções
onde eram encontradas as prostitutas, além de esta-
sexuais, agora vigiadas e controladas por todo um dis-
rem presentes nas praças e nas ruas da cidade, mas
curso médico e jurídico” (FERRARI, 2006, p.6).
que neste ambiente também estava inserida a idéia
Assim se iniciava a zona de prostituição na Vila
moderna do privado e voltado para uma classe mais
Palmira, num período em que o local era quase desa-
abastada da sociedade. No Estreito se localizava um
bitado e deserto, causando grande desvalorização dos
famoso bordel:
lotes e proliferando a venda de terrenos para novas ca-
sas de prostituição, tornando-se na década de 1960 um

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lugar conhecido para a busca de “sexo livre e amores ram o processo de verticalização da cidade. Com a
clandestinos” (FERRARI, 2006, p.6). pavimentação da BR-101 a cidade passou a ter uma
As utopias construídas na capital nas décadas integração com a dinâmica econômica do Estado. Já
de 1950 e 1960 interferiram tanto na coniguração ur- na década de 1980, consolida-se a opção pelo turis-
bana quanto nas práticas cotidianas, tornando-se uma mo como um importante meio econômico da cidade.
questão política a partir dos grupos mais inluentes e Os inanciamentos facilitados através do BNH (Banco
dos anseios das elites dirigentes. As expectativas em Nacional de Habitação) impulsionaram a expansão
relação ao futuro, naquele período, tomaram como imobiliária. Aos poucos foram sendo criados peque-
base as propostas que elegiam o turismo como prati- nos núcleos residenciais em áreas destinadas aos tu-
camente a única opção de desenvolvimento para a ci- ristas (JORGE, 2007, p.58).
dade. Neste sentido, o primeiro Plano Diretor feito em Hoje, com cerca de 400 mil habitantes, Floria-
1952 dividia a cidade em áreas que correspondiam a nópolis ainda não é uma metrópole, apesar dos quase
um zoneamento social e econômico, seguindo os prin- um milhão de habitantes que circulam pela cidade,
cípios urbanistas deinidos pelos Congressos Interna- se considerarmos as cidades vizinhas. Entretanto, já
cionais de Arquitetura Moderna da época. O Estreito pode ser considerada uma cidade massiicada, como
seria o grande núcleo transformador da cidade, com no entendimento de José Luis Romero em que pessoas
um futuro porto e uma futura zona industrial, com a de diversas origens, rural ou de pequenas cidades, re-
formação de uma vida comercial prevendo edifícios pletas de esperanças, migraram para cidades que cres-
de até 12 andares. Lohn também aponta a apropriação ceram rapidamente, tornando-se pólos e inluenciando
do conteúdo místico das obras de Franklin Cascaes, o conjunto. O autor analisa a explosão urbana e suas
como a questão da “ilha da magia”, sendo adotado conseqüências:
como símbolo turístico (LOHN, 2002, p.277).
A partir da década de 1960, os investimentos A explosão urbana modiicou o peril das cidades.
públicos em conjunto com setores privados acelera- Queixaram-se disso aqueles que desfrutaram delas

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antes, aprazíveis e tranqüilas, mas, sobretudo, com formação da composição social dos residentes (subs-
uma infra-estrutura suiciente para o número de ha- tituição das classes populares por classes médias assa-
bitantes que possuíam. Os invasores as desiguraram lariadas) e um processo de investimento, reabilitação
e izeram delas uns monstros sociais que, além disso, e apropriação das áreas (BIDOU-ZACHARIASEN,
apresentaram, nesta mesma época, as características 2006, p.22).
inumanas que lhes conferiu o desenvolvimento téc- Neil Smith (2006), um dos primeiros a trabalhar
nico. Alguém chegou a dizer que as cidades já eram e perceber a especiicidade dos países anglo-saxões,
‘invisíveis’ (ROMERO, 2004, p.363). entende a “gentriicação” como uma “estratégia urba-
na articulada e global” com a presença de empresas
É nessa cidade massiicada que se observa a ver-
internacionais nos grandes projetos urbanos e o de-
ticalização, as longas distâncias, os engarrafamentos,
senvolvimento imobiliário justiicado pela criação de
a valorização imobiliária e um estilo de vida almejado
empregos, geração de impostos, turismo e complexos
pelas classes médias da antiga cidade burguesa. Como
culturais. Projetos que lembram muito os que vêm
isso, o centro urbano passou a se deteriorar até sur-
sendo propostos para o Balneário do Estreito e especi-
girem os processos de recuperação destes espaços e,
icamente para a região da Ponta do Leal.
simultaneamente, o desenvolvimento de cidades de
No período pós-1990, Smith ressalta o abandono
sociedades divididas.
das “políticas públicas urbanas progressistas e a vitó-
O fenômeno de “gentriicação”, conforme apon-
ria das políticas neoliberais”, passando a ser visto o
tado por Catherine Bidou- Zachariasen, pode ser iden-
processo de gentriicação como “natural”, como uma
tiicado em várias cidades, sendo entendido como o
“regeneração urbana”, um equilíbrio sociológico:
processo em que as famílias mais pobres moradoras
de uma determinada região são substituídas por outras Assim, os arautos da estratégia da regeneração mas-
de classe média superior. O termo gentriication foi caram as origens sutilmente sociais e os objetivos da
utilizado pela primeira vez por Ruth Glass no início mudança urbana, apagam as políticas de ganhadores
década de 1960, em Londres, compreendendo a trans-

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e perdedores de onde emergem tais linhas de ação. A utilização da História oral como um procedi-
Assim, um segundo silêncio sistemático é o dos per- mento metodológico permite, através de entrevistas
dedores. É historicamente e não acidentalmente que a temáticas, entrar em contato com experiências ou pro-
gentriicação está associada ao aumento das expulsões cessos especíicos vividos ou testemunhados pelos en-
e dos sem-teto, e ainda assim este importante efeito da trevistados, levando em consideração as observações
regeneração passa completamente em silêncio. [...] A de Lucilia Delgado em que “a memória é uma constru-
linguagem da ‘regeneração’ substitui deliberadamente ção sobre o passado atualizada e renovada no tempo
a linguagem simples e honesta da gentriicação (SMI- presente” e que tem como um dos desaios a relação
TH, 2006, p.83). entre as múltiplas temporalidades (DELGADO, 2006,
p.9). Relacionando todas essas discussões, percebe-se
Esses processos são base para o entendimento do
que existem múltiplas sociabilidades e uma complexi-
que vem ocorrendo nos últimos anos na cidade de Flo-
dade de relações na cidade, e que todas elas evocam
rianópolis. A idéia de “modernização” se faz presente
memórias, despertam perspectivas e provocam novas
em discursos desde o inal do século XIX e as inter-
sensibilidades. E através das falas dos moradores, en-
venções urbanas feitas ao longo dos anos enfatizam
quanto historiadores, seguimos percorrendo as barrei-
tal percepção.
ras e as ruas da cidade, questionando a sua história, as
A partir da década de 1970 é possível notar uma
suas transformações e o seu cotidiano.
grande transformação na cidade, com aterros seqüen-
ciais e completa alteração em sua coniguração urba-
na, com isso também alterando as sociabilidades. Nas
falas dos moradores são reveladas as inquietações e os REFERÊNCIAS
saudosismos, assim como os vícios de linguagem, as FONTES
pausas e os erros gramaticais, que foram utilizados em
sua totalidade, por considerar a linguagem como parte CARVALHO, Selma Ramos Jampierre da Silva. 36
do entrevistado. anos, moradora do Balneário do Estreito há cerca

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de 23 anos. Entrevista, concedida à autora em 15 de ção em História Social) - Universidade do Estado de


agosto de 2009. Santa Catarina, 2001.
SANTANA, Cléia de Lima. 59 anos, moradora do FERRARI, Maryana Cunha. Entre a cruz e as delícias:
Balneário do Estreito há cerca de 50 anos. Entrevista, prostituição, imaginário e cotidiano em Florianópolis
concedida à autora em 15 de agosto de 2009. (1960 a 1980). In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL
FAZENDO GÊNERO 7. UFSC, 2006, Florianópolis.
SILVEIRA, Fábio. 64 anos, morador do Balneário do
Anais... Florianópolis: UFSC, 2006. Disponível em:
Estreito há 40 anos. Entrevista, concedida à autora em
<http://www.fazendogenero7.ufsc.br/artigos/M/Ma-
12 de agosto de 2009.
ryana_Cunha_Ferrari_40.pdf>. Acesso em: 10 jun.
2010.
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BIDOU-ZACHARIASEN, Catherine. Introdução. Santa Catarina. Florianópolis: Ed. das Águas, 1998.
In: BIDOU-ZACHARIASEN, Catherine (Coord.). JORGE, Mateus Perez. Década perdida?: represen-
De volta à cidade: dos processos de gentriicação às tação da crise econômica e a opção pelo turismo em
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Paulo: Annablume, 2006. p.21-57. (Graduação em História) - Universidade do Estado de
DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. História Santa Catarina, Florianópolis, 2007.
oral: memória, tempo, identidades. Belo Horizonte: LOHN, Reinaldo Lindolfo. Pontes para o futuro: re-
Autêntica, 2006. lações de poder e cultura urbana. Florianópolis, 1950
FERRARI, Maryana Cunha. Entre a cruz e as delícias: a 1970. 2002. 442 f. Tese (Doutorado em História)
prostituição, imaginário e cotidiano em Florianópolis - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto
(1960 a 1980). 2001. 57 f. Monograia (Especializa- Alegre, 2002.

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ROMERO, José Luis. As cidades massiicadas. In: TORRENS, Weliton Luiz. Estreito, um bairro entre
ROMERO, José Luis. América Latina: as cidades e as dois municípios. 2006. 42 f. Monograia (Especializa-
idéias. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2004. p.353-421. ção em História Social) - Universidade do Estado de
Santa Catarina, Florianópolis, 2006.
SMITH, Neil. A gentriicação generalizada: de uma
anomalia local à uma “regeneração” urbana como es- Artigo recebido em: 27/07/2010
tratégia urbana global. In: BIDOU-ZACHARIASEN, Aprovado para publicação em: 17/09/2010
Catherine (coord). De volta à cidade: dos processos de
gentriicação às políticas de “revitalização” dos centros
urbanos. São Paulo: Annablume, 2006. p.59-87.

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