Você está na página 1de 315

1

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

A ASTÚCIA DA DIALÉTICA:

O DESVIO EM GUY DEBORD

Plínio Fernandes Toledo

Rio de Janeiro
2014
2

A ASTÚCIA DA DIALÉTICA

O DESVIO EM GUY DEBORD

Plínio Fernandes Toledo

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-


Graduação em Ciência da Literatura da
Universidade Federal do Rio de Janeiro como
quesito para a obtenção do Título de Doutor em
Ciência da Literatura (Teoria Literária)
Orientador: Prof. Doutor André Luiz de Lima
Bueno

Rio de Janeiro
Junho de 2014
3

A astúcia da Dialética: o desvio em Guy Debord


Plínio Fernandes Toledo
Orientador: Professor Doutor André Luiz de Lima Bueno

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em


Ciências da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como
parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Ciência
da Literatura (Teoria Literária).

Examinado por:

_________________________________________________
Presidente, Prof.. Doutor André Luiz de Lima Bueno - UFRJ

_________________________________________________
Prof. Doutor Victor Manuel Ramos Lemus - UFRJ

_________________________________________________
Profa. Doutora Danielle dos Santos Corpas - UFRJ

_________________________________________________
Profa. Doutora Elvira Maria Godinho de Seixas Maciel - FIOCRUZ

_________________________________________________
Prof. Doutor Ricardo Pinto de Souza - UFRJ

_________________________________________________
Prof. Doutor João Roberto Maia da Cruz – FIOCRUZ

_________________________________________________
Prof. Doutor Luis Alberto Nogueira Alves - UFRJ

Rio de Janeiro
Junho de 2014
4

Toledo, Plínio Fernandes.


A Astúcia da Dialética: o Desvio em Guy Debord / Plínio Fernandes Toledo. –
Rio de Janeiro: UFRJ / CLA, 2014.
XI, 315f.: il.; 13 cm.
Orientador: André Luiz de Lima Bueno
Tese (doutorado) – UFRJ / CLA / Programa de Pós-graduação em Ciência da
Literatura, 2014.
Referências bibliográficas: f. 302-3015.
1. Teoria Literária 2. Teoria Crítica 3. Dialética 4. Filosofia
5. Hegelianismo 6. Marxismo
I. Bueno, André. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Centro de
Letras e Artes. III. Título.
5

À Nhá Chica, mãe que zela por nós que somos pequenos;

E ao meu pai (in memorian), que esperava que eu fosse grande.


6

AGRADECIMENTOS

Professor Dr André Bueno, meu orientador, muito obrigado pela honestidade intelectual
e competência profissional com as quais me acompanhou durante todo o trajeto de
minha pesquisa, qualidades que serviram de apoio e norte na elaboração de minha tese.
Muito obrigado pela generosa recepção de minhas ideias, compreensão de minhas
angústias, pela confiança depositada em mim e por toda a ajuda que me deu.

Prof Dr Carlos Boucault, meu amigo verdadeiro, por ter descoberto em mim um talento
que eu acreditava já ter-se apagado junto com os anos de minha juventude. Obrigado
por toda a ajuda e confiança sem as quais seria impossível chegar até aqui.

Prof Dr Henrique Cairus, admirável intelectual, quem primeiro me acolheu no Rio de


Janeiro, cujo apoio foi fundamental para que eu começasse a caminhada com confiança
e certeza de poder contar com a amizade e a gentileza de pessoas de bem. Ao Henrique
agradeço por tudo que me fez de bom, por toda a orientação, ajuda e incentivo que me
deu.

Profª Drª Tatiana Ribeiro, por ter me acolhido em sua casa nos primeiros dias e ter
partilhado comigo sua simpatia e hospitalidade.

Ao Prof Dr Victor Lemus e Prof Dr Ricardo Pinto, pelas importantes sugestões e


críticas pertinentes que fizeram em minha qualificação, que muito me ajudaram a
estabelecer o texto que agora apresento à apreciação do leitor.

À minha esposa e cúmplice, Itala Maria Toledo, que me acompanha em todos os passos,
que vive comigo todas as incertezas, compartilha minhas alegrias e tristezas; sempre
fiel, sempre linda, sempre do meu lado me mostrando que tudo ainda é possível se
permanecermos juntos. A você tudo para sempre.

Aos meus filhos, Maria Cristina, Jorge Luis, Luis Fernando e meus netos Bruno e Leo,
razões de minha vida e força de minha inspiração. Vocês sorriem para mim em cada
linha do meu trabalho, semeando-o com o amor que nutre todos os meus esforços e dá
sentido à minha trajetória.

Em especial ao Luis Fernando pela ajuda na digitação dos textos, na elaboração do


sumário e na correção da versão inglesa do resumo.

A minha mãe Olga e meu pai João Toledo (in memorian), que avalizaram todas as
promissórias e nunca receberam nada em troca da dívida. A eles meu amor e gratidão
eternos.

À querida Prof ª Drª Elvira Maciel, amiga, irmã, alma igual a quem eu tanto admiro e
respeito.
7

À Prof ª Drª Danielle Corpas, a quem conheci da melhor forma, ou seja, através da
leitura de seu belíssimo texto sobre Rosa, pela aceitação gentil de participar da
avaliação do trabalho de um humilde operário como eu, muito obrigado.

À Christiane Ferreira e Leonardo Rodrigues, amigos admiráveis a quem muitas vezes


partilhei minhas ideias e de quem recebi muita compreensão e muita luz.

Muito obrigado ao CNPq pelo apoio imprescindível à realização de minha pesquisa.


8

RESUMO

A ASTÚCIA DA DIALÉTICA: O DESVIO EM GUY DEBORD

Toledo, Plinio Fernandes

Orientador: Prof. Dr. André Luiz de Lima Bueno

Resumo da Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em


Ciência da Literatura, Centro de Letras e Artes, da Universidade Federal do Rio de
Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor
em Ciência da Literatura (Teoria Literária).

Neste trabalho procura-se realizar uma leitura dialética e fenomenológica da densa


obra Debordiana, através da construção de uma síntese textual do procedimento
estilístico usado amplamente pelo pensador situacionista: o détournement (desvio).

Mediante um conjunto de ensaios articulados segundo um plano coerente de


composição, tenciona-se demonstrar o modo pelo qual Guy Debord, através de um
simples procedimento estilístico exemplificado no détournement (desvio), propõe e
executa uma complexa atualizaçao da filosofia por meio da superação da arte moderna.
Inserindo uma força contraditória no interior das formulações canônicas da cultura
burguesa, Debord opera a subversão imanente das expressões fundamentais da cultura
literária e filosófica, revitalizando a linguagem e a potência dialética da teoria crítica.

Através da leitura de textos fundamentais de Debord, conduzimos nossa


interpretação ate o cerne filosófico de sua produção teórica: "A sociedade do
espetáculo", em cuja interpretação devemos colocar em relevo as virtudes do texto
situacionista em seu teor dialético e contracultural.

Ressalta-se no texto Debordiano a criação, pelo estilo, de uma revolução sintático-


semântica que subverte as formas e relações que presidem a ordem espetacular, fazendo
emergir dela um novo sentido que a supera. É o que denominamos "astúcia da
dialética", cujo conceito o presente trabalho pretende esclarecer.

Palavras-chave: Desvio, Dialética, Espetáculo, Deriva, Ideologia.


9

ABSTRACT

THE ASTUTENESS OF DIALECTICS: THE HIJAKING IN GUY DEBORD

Toledo, Plinio Fernandes

Orientador: Prof. Dr. André Luiz de Lima Bueno

Abstract da Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em


Ciência da Literatura, Centro de Letras e Artes, da Universidade Federal do Rio de
Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor
em Ciência da Literatura (Teoria Literária).

In this work is sought to accomplish a dialectic and phenomenological reading of the


dense debordian work, through the construction of a textual synthesis of the stylistic
procedure used broadly by the situationist thinker: the détournement (rerouting,
hijacking).

By a set of articulate essays according to a coherent plan of composition, intends to


show the way in which Guy Debord, through a simple stylistic procedure exemplified in
the détournement (rerouting, hijacking), proposes and performs a complex update of the
philosophy by surpassing the modern art. Inserting a contradictory force in the inner of
the canonic formulations of the burgher culture, Debord operates the immanent
subversion of the literary and philosophical culture's fundamental expressions,
revitalizing the dialectics' language and potency of the critical theory.

Through the reading of fundamental texts of Debord, our interpretation is conducted to


the philosophical core of his theorical production: "The Society of the Spectacle", in
which interpretation we should highlight the virtues of the situationist text in its
dialectic countercultural combat. It is noteworthy in the debordian writing the creation,
by the style, of a syntactic-semantic revolution which subverts the forms and relations
that preside the spectacular order, emerging a new meaning that overcomes it. It is what
we call "astuteness of dialectics", which concept's, this work intends to clarify.

Keywords: Hijaking, Dialectics, Spectacle, Drift, Ideologie.


10

SUMÁRIO

PRIMEIRAS PALAVRAS............................................................................................12

I - AS RAZÕES DA DIALÉTICA...............................................................................31

Cap. 1. Autores em busca de um leitor........................................................................32

1.1 Prelúdio......................................................................................................................32

1.2 O espectador fora da sala de exibição: transformação radical da experiência..........45

1.3 Vida: modo de usar....................................................................................................53

1.4 Para além do espetáculo............................................................................................58

1.5 A impossibilidade do exílio e o desvio......................................................................62

1.6 O escândalo e a abominação: em busca do reencontro.............................................66

Cap. 2. A propriedade privada e seu outro: o desvio como ato de insubordinação


política.............................................................................................................................69

2.1 A Máquina anti-mercante..........................................................................................69

2.2 O plágio necessário....................................................................................................71

2.3 A propriedade desnecessária.....................................................................................77

2.4 Jogos de guerra: o desvio..........................................................................................86

Cap. 3. O espetáculo e o desvio, ou o desvio do espetáculo e a linguagem


dialética.........................................................................................................................103

3.1 Incipit spectaculum..................................................................................................103

3.2 Dialogismo da razão................................................................................................110

3.3 Proposição lógica e proposição dialética: um détour de Hegel...............................114

3.4 Passagem para o desvio...........................................................................................130

Cap. 4. Proposição desviante e as diretivas teórico-práticas...................................133

4.1 Trabalho da palavra.................................................................................................133

4.2 Proposição desviante e metafilosofia......................................................................134

4.3 Proposição desviante: alguns exemplos..................................................................140

4.4 Crítica sintética e presença poética..........................................................................146


11

4.5 Diretivas para a arte de viver...................................................................................149

4.6 Crítica sintética e presença poética: o que os imbecis teimam em chamar de


citações..........................................................................................................................163

4.7 Nossa época não deve mais escrever instruções poéticas, mas executá-las............168

II - A ASTÚCIA DA DIALÉTICA: DESVIO NA SOCIEDADE DO


ESPETÁCULO.............................................................................................................171

Cap. 5. A dialética como desvio do sistema: ensaio de psicogeografia...................172

5.1 Refluxo e expansão: um mapa.................................................................................176

5.2 Tempo abstrato da produção econômica, linguagem e sistema...............................181

5.3 Um antissistema?.....................................................................................................186

5.4 Desvio do todo e crítica dialética............................................................................189

5.5 Uma abordagem seca da forma...............................................................................191

5.6 Falência do projeto sistemático e possibilidade da crítica dialética........................199

5.7 Linguagem fluida da antiideologia ou o estilo insurrecional..................................202

5.8 O vasto desvio: a inversão do sistema.....................................................................206

Cap. 6. O sistema da lógica, a história e seu desvio..................................................213

6.1 Abordagem da máquina...........................................................................................218

6.2 Sentido enteléquico da realização hegeliana e seu desvio......................................233

6.3 Supressão e realização.............................................................................................239

6.4 Tempo do estilo e superação do espetáculo: retorno à vida cotidiana....................245

Cap. 7. O desvio do sistema e o ensaio como forma.................................................253

7.1 Abertura ensaística e abertura dialética...................................................................265

7.2 Desvio do método, antiformalismo e ensaio: contra a linguagem oficial da separação


generalizada...................................................................................................................276

7.3 Uma literatura menor enfim?...................................................................................283

CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................................289

BIBLIOGRAFIA.........................................................................................................302
12

PRIMEIRAS PALAVRAS

.
Il faut lire ce livre en considérant qu'il a été sciemment écrit
dans l'intention de nuire à la société spectaculaire. Il n'a jamais
rien dit d'outrancier.

Guy Debord

Parece-nos possível verificar um interesse crescente pela produção de Guy


Debord nos últimos anos. Sua obra A Sociedade do Espetáculo confirmou suas teses
fundamentais através da auto-exposição do fenômeno midiático, refém das condições
econômicas que o produzem como servo da situação dada, que, cada vez de forma
menos sutil e mais ostensiva, exibe a sua força sobre os valores de uma sociedade
vendida ao imediatamente visível, que lhe impõe como incontornável uma realidade
fabricada para consumo, cuja astúcia reside na potência de mascarar o falso. Não
obstante a superexposição do fenômeno, não só o conceito central de Debord não foi
bem compreendido como não foram suficientemente estudadas as suas estratégias de
composição, tanto do texto escrito quanto do cinematográfico, bem como a conexão das
mesmas com o conteúdo que dinamizam no interior de uma máquina dialética anti-
espetacular, forjada como diagnose e combate do fenômeno que denuncia. Diagnose
feita a partir de um conceito dialético sintetizador da mecânica do espetacular e combate
estratégico em todas as frentes a partir da construção de linguagens próprias à
destruição no plano da criação do fenômeno global deslocado em suas bases e em seu
movimento negativo.

Diagnose, destruição e criação aliam-se, em Debord, numa estratégia


revolucionária cuja originalidade e coesão únicas não foram ainda compreendidas nem
valorizadas. Menos ainda bem utilizadas como analisadores aplicados à leitura dos
problemas que acometem o mundo contemporâneo. Debord parece continuar póstumo e
viver de uma fama relativa que não corresponde à sua verdadeira dimensão crítica e
criadora. Sendo assim, o interesse que acreditamos ter sido despertado por Debord é
falso. Sua obra continua alheia às interpretações que a reduziram àquilo que ela não é.
13

As abordagens têm sido condicionadas pela dinâmica de uma totalidade social


submissa à lógica da produção e reprodução de mercadorias; pelo isolamento e pela
fragmentação das perspectivas estabelecidas como miradas particulares direcionadas a
fenômenos episódicos e singulares, que só poderiam ser corretamente compreendidos a
partir da referência ao mecanismo insidioso e totalitário que os governa e sustenta: a
auto-alienação do trabalho. Reproduzem a lógica que criticam e assim conciliam-se com
ela afirmando-a. Ulisses contemplando as larvas inconscientes que vagam no Hades não
sabe nada sobre a força que as mantêm presas a uma imortalidade fantasmagórica e
dolorosa da qual almejam escapar. Não lhe confidenciou Aquiles que seria melhor ser
escravo em vida do que rei num mundo de sombras? (HOMERO, Odisséia. 410-416)

Em que consiste este mundo e como escapar dele? Pois não basta saber que ele
existe, uma vez que ele existe dentro de nós e governa o que pensamos e o que sentimos
de maneira ampla e determinante. O Príncipe Próspero do conto A máscara da morte
vermelha de Edgar Allan Poe (POE, 2012, P 143), tentando escapar da peste que
assolava sua aldeia, busca o isolamento trancando-se, com todos os seus amigos e
parentes, num castelo fortificado, mas não sabe que a praga os acompanha, pois subsiste
dentro deles e os destrói a todos apesar do confinamento, ou melhor, em decorrência
dele. O personagem de Bioy Casares apaixona-se pela imagem de Faustine projetada
por uma máquina em La Invención de Morel (CASARES, 1982) e termina por inserir-se
no mundo ilusório que descobre para perpetuar sua paixão pela aparição fantasmagórica
de sua obsessão. Aprisiona-se voluntariamente num mundo de simulacros, no qual nada
mais resta de sólido, senão a subjetividade aniquilada e reconstruída como sombra de si
mesma em um mundo fabricado para perpetuar a ilusão e o isolamento. Um Hades
moderno povoado por fantasmas a repetir eternamente as mesmas ações inconscientes,
neutralizadas pelo falso e isoladas pela impossibilidade do contato humano. Um mundo
no qual a vida não mais pode “se reencontrar a si mesma através da suma de sua própria
diversidade”.(DEBORD, SE, O Filme)

“Hoy, em esta isla, hay ocurrido un milagro”(...) (CASARES, 1982, p 93) o


milagre da submissão voluntária ao espetáculo. Como fugir dele quando o buscamos? O
mundo do espetáculo é astuto: condiciona nossos valores e predispõe nossa mirada de
tal forma que entramos nele mesmo quando acreditamos tomar uma posição crítica e
distanciada em relação à sua força englobante. As redes que lançamos foram tecidas
numa malha que permite a captura apenas daquilo que o poder de controle quer que
14

capturemos. Entendido assim, o conceito de espetáculo desvaloriza-se tanto quanto


diminui sua eficácia crítica, porquanto reduzido a um fenômeno de comunicação, ou
melhor, a um malha restrita à captura de um fenômeno particular, perde sua potência
constitutiva: sua natureza dialética capaz de dialogar criticamente com o fenômeno que
enuncia, exatamente por desviar-se dele concreta e negativamente. Em outras palavras,
o emprego particular de um conceito designador do movimento de uma totalidade
negativa submetida a uma lógica perversa nulifica-o no momento em que sua substância
é reduzida e, portanto, deturpada pela visão fraturada da subinteligência de idiotas
super-mecanizados.

À astúcia do espetacular é preciso opor outra astúcia: construir um estilo no qual a


nova sintaxe permita a criação de procedimentos de subversão da lógica
consubstanciada na sintaxe espetacular. Não se trata apenas de um problema de
definição de conceitos, de determinação de significados correspondentes ou não a fatos.
Mais do que isso, trata-se de construir estratégias capazes de organizar o texto e/ou o
discurso em novas tramas produtoras de novos sentidos e de novas intensidades. À
astúcia do espetáculo Debord contrapõe a “astúcia da dialética”. Compreendê-la em sua
singularidade e seu poder crítico e criador é nosso intuito. Antes devemos demonstrar o
erro de se considerar o espetáculo como fenômeno restrito ao âmbito midiático. Livrá-lo
dos equívocos para entender sua força negativa e revolucionária.

No entanto, foi exatamente como fenômeno de comunicação que ele, o


espetáculo, tornou-se mais visível a todos aqueles que não tiveram o cuidado nem a
formação necessária para penetrar nos meandros dialéticos de uma construção crítica
que ilude a consciência apressada. Um artigo recente publicado em uma revista de
divulgação filosófica ampara-se em Debord para analisar criticamente o fenômeno de
comunicação de massas conhecido como Big Brother. Não obstante a boa intenção da
articulista, ela acaba sendo apanhada na teia do que quer expor analiticamente,
reduzindo a categoria do espetáculo a um mero instrumento de análise de uma
produção televisiva voltada ao consumo imediato das massas, produção criadora de
figuras voláteis e fantasmagóricas em busca da fama tão falsa quanto momentânea. Tais
figuras são apenas rastros episódicos no mundo do espetáculo, não possuem autonomia
nem força determinante uma vez que estão inseridas em um mecanismo maior que lhes
condiciona. Nomeá-las não significa nada. Aqui seria preciso evitar que os conceitos
sejam condicionados pela lógica do que nomeiam. O próprio fenômeno dos shows de
15

realidade exibe a subversão irônica do sentido na sociedade moderna, pois quem leu o
livro 1984 de George Orwell (ORWELL, 1982) – uma ficção anti-utópica e crítica da
onipresença do poder sob a forma de controle absoluto em uma sociedade autocrática –
sabe que o olhar ubíquo do Grande Irmão significava o contrário do que a mídia fez dele
nos deploráveis reality shows modernos. Se em Orwell ele representava a visão
onipresente do poder cuja eficácia servia-se de uma sociedade na qual as
individualidades haviam sido suprimidas pelo controle psicológico, hoje ele se tornou a
mirada abstrata da massa para a qual todos querem se exibir. Se o Big Brother de
Orwell nomeava a aniquilação do indivíduo sob a forma da invasão dos mecanismos do
controle sobre a vida privada, o Big Brother moderno representa a submissão do
indivíduo ao simulacro e ao culto da imagem, uma vez que buscando os seus quinze
minutos de fama anula-se no próprio processo de sua afirmação ilusória e falsa. A
lógica da submissão e do isolamento tornou-se mais cínica e insidiosa do que imaginou
Orwell, pois hoje o indivíduo sente-se valorizado no contexto de sua própria liquidação
absoluta como imagem volátil, como pseudo-identidade passageira. Uma metáfora
crítica do poder é transformada pela força negativa da sociedade do espetáculo em seu
oposto positivado. Apresenta o espaço criado pelo poder para a destituição do humano
como lugar em que todos querem estar, como vigília onipresente a que todos se expõem
aparentemente de forma consciente e voluntária. Não há mais resistência consciente,
mas apenas adesão passiva. “É preciso saber”, observa melancolicamente Debord, “que
doravante a servidão quer ser verdadeiramente amada por si mesma e não mais porque
proporcionaria alguma vantagem extrínseca.” (DEBORD, 2002, p. 76) Que ela “não
procura se justificar pretendendo ter conservado, seja onde for, outro encanto que não o
simples prazer de conhecê-la.” (Idem, 2002)

As fabricações culturais, impulsionadas pela força dos veículos de massa, devem


sua ascensão a processos históricos como o declínio da religião, a democratização da
sociedade segundo o modelo capitalista burguês e a transformação do cotidiano em
mercadoria, sendo o culto à celebridade, situado no extremo oposto da superexposição
do cotidiano falseado pela mídia, o produto atual mais ostensivo que cria a identificação
mais duradoura com o consumidor. (Cf.: ROJEK, 2001) À banalização do cotidiano
soma-se a banalização do aparentemente extraordinário. Refiro-me aqui ao culto da
celebridade em referência ao livro de Chris Rojek que analisa a mentira das
democracias modernas que querem vender ao consumidor a promessa de que o homem
16

comum pode vencer. Ainda que as celebridades tenham existido durante toda a história,
Rojek afirma que este é um fenômeno moderno, pois só hoje é possível criar a ilusão de
intimidade por meio da inserção massiva do “famoso” no cotidiano. O espetáculo
estende seus tentáculos a todos os setores da vida, recriando perpetuamente sua força de
controle mediante a efetivação do falso, através da mundialização dos recursos
tecnológicos de comunicação que permite a invasão de todas as esferas da existência.

O espetacular totalizou-se e o culto à celebridade, a exibição do cotidiano e busca


pela fama são exemplos do quanto essa generalização empobreceu a vida. Mais do que
nunca se justifica o ataque ao espetacular, mais do que nunca o ataque precisa apoiar-se
em Debord e, logo, mais do que nunca é preciso dimensionar corretamente a sua obra.

Debord havia percebido que os valores da vida foram redefinidos de forma


autoritária: primeiro em suas prioridades e em seguida na totalidade de sua substância.
(cf.: DEBORD, 2002) Em uma linguagem carregada de poesia e de verdade Debord
antecipa o que hoje se tornou comum: “Pela primeira vez os donos de tudo o que se faz
são também os mestres de tudo o que a respeito se diz. Assim a demência ‘construiu sua
casa nos altos da cidade’.” (DEBORD, 2002) A inserção completa dos indivíduos no
mundo espetacular, que a tudo governa por tudo conter, torna-se palavra de ordem e,
através do modismo das tendências ditadas por essa entidade abstrata denominada
mercado mundial, desejo universal.

Em um mundo globalizado não há mais para onde fugir. E se o exílio não é mais
possível, como combater uma ordem autoritária que aumenta seu poder de controle pela
inserção de seu movimento autônomo de produção e reprodução em todos os níveis e
em todos os lugares da vida social? Como Debord resolve o problema da teoria crítica
em um mundo em que a crítica arrisca-se, a todo momento, a reproduzir a lógica do
mecanismo que critica, tornando-se acrítica? Como resolver o problema da alienação e
das fraturas que impedem o pensamento e a criação de apropriar-se da vida por
submetê-los ao movimento fragmentado do não vivo? Como criar num contexto de
transformação global em que a força criadora da arte, que deveria constantemente
movimentar-se em direção à afirmação da diferença e da construção de uma relação
aberta e dialógica entre o singular e o universal, esvai-se e se dissipa? Quando tudo o
que movimenta a criação acaba congelado em princípios rígidos que generalizam e
isolam separando as normas gerais das situações concretas efetivamente vividas? Como
17

criar a expressão nova que veicule e comunique a verdade em um contexto no qual as


generalidades transformam os princípios singulares em doutrinas oficiais, em
inverdades acolhidas massivamente como verdadeiras?

Com a globalização e o desenvolvimento veloz dos meios de comunicação de


massa apoiados nos avanços tecnológicos, cada vez mais o espetáculo torna-se
onipresente. O mundo desponta para uma nova totalização das mediações através do
avanço dos instrumentos que permitem a interconexão global. O espetáculo generaliza-
se e torna-se visível: emerge, por assim dizer, da indiferenciação sutil para a evidência
de sua força dominante. Não obstante, o que se esclarece, o que emerge é o produto
acabado de uma rede de simulacros que não se esgota em si mesma nem se mostra por
inteiro. Assim, o que se vê não constitui exatamente o que é. A totalidade do estado de
coisas visível é uma totalidade negativa que desfaz os laços ao mesmo tempo em que
parece tecê-los, que isola no momento em que conecta, que separa exatamente por
possibilitar a ligação indistinta, que mente ao exibir-se como verdade.

O conceito debordiano pode ser, aqui, parcialmente percebido como aquilo que
não é. Torna-se fácil o engano em virtude da evidenciação onipresente do espetáculo em
seu movimento englobante. O espetáculo envolve todos os setores da vida social, atrai
todos os movimentos para a sua órbita e subverte todas as interveções, aniquilando-as
no próprio movimento desagregador que as separa, através da força que as neutraliza
como perspectivas superficiais e particulares. Debord afirma, a propósito, que a função
do crítico possui uma amplitude que não pode ser desdenhada sob nenhuma hipótese. O
espetáculo é uma condição global sustentada pela veiculação integral de sua lógica que
domina todas as instâncias da vida econômica e social, repetimos. Portanto, a única
saída para o crítico dialético que não se pretende deixar apanhar pela lógica insidiosa e
totalizante de su objeto é refutar a totalidade, cujo centro é este estilo de vida, de onde
podemos avaliar nossa força, porém nunca usá-la, conforme as palavras do próprio
Debord. Pois, as aventuras que nos são apresentadas formam parte das lendas
transmitidas pelo cinema ou de outras formas; fazem parte de toda a farsa espetacular da
história. (Potlatch) O “socialismo ou a barbárie”, no plano teórico desvia-se para: “a
refutação da totalidade ou nada”. Leiamos:

Quand la réalisation toujours plus poussée de l’aliénation capitaliste à tous les


niveaux, en rendant toujours plus difficile aux travailleurs de reconnaître et de
nommer leur propre misère, les place dans l’alternative de refuser la totalité de leur
18

misère, ou rien, l’organisation révolutionnaire a dû apprendre qu’elle ne peut plus


combattre l’aliénation sous des formes aliénées. (DEBORD, SE, § 122. Grifos
nossos)

A onipresença do espetáculo exige a negatividade global da crítica, sua


articulação estratégia em uma ampla frente de combate organizada pelo estilo radical do
desvio. Ao que nos domina por inteiro não se pode dar uma resposta parcial. Mais uma
vez com Debord, advertimos o leitor:

Le spectacle, compris dans sa totalité, est à la fois le résultat et le projet du mode de


production existant. Il n’est pas un supplément au monde réel, sa décoration
surajoutée. Il est le cœur de l’irréalisme de la société réelle. Sous toutes ses formes
particulières, information ou propagande, publicité ou consommation directe de
divertissements, le spectacle constitue le modèle présent de la vie socialement
dominante. Il est l’affirmation omniprésente du choix déjà fait dans la production, et
sa consommation corollaire. Forme et contenu du spectacle sont identiquement la
justification totale des conditions et des fins du système existant. Le spectacle est
aussi la présence permanente de cette justification, en tant qu’occupation de la part
principale du temps vécu hors de la production moderne. (DEBORD, SE, § 6)

O espetáculo, no entanto, encena a astúcia através da qual transforma tudo em


superfície, reduz a consistência ontológica a simulacro, invade todas as regiões da
experiência humana e as degrada em representações farsescas de um roteiro vazio. O
Estado orquestra as variações em torno de um mesmo tema banalizante. Aqui podemos
nos servir de uma passagem de Novalis que, estranhamente, parece prefigurar o que
ensaiamos em Debord: “No Estado tudo é ação cênica – No povo tudo jogo cênico. A
vida do povo é um espetáculo. Escritos são os pensamentos do Estado – os arquivos de
sua memória.” (NOVALIS, 2001, 71. Grifos nossos)

Sendo assim, o trabalho crítico pode, facilmente, servir como sustento daquilo que
denuncia, pois no contexto do aperfeiçoamento dos mecanismos de controle e
dominação, todo ato de aparente discordância tem lugar num espetáculo de âmbito
mundial que o anula. A vida transformada em um show do qual não podem escapar nem
mesmo os que contestam sua liquidação midiática. Os movimentos mais radicais da
revolta rapidamente tornam-se parte da peça, integram-se ao conjunto do que lhes
aprisiona e nega. A interpretação equivocada inverte o papel dos atores e dos conceitos
e o resultado é aquilo que um crítico feroz dos situacionistas alardeou: “a despeito de
seus protestos, os situacionistas logo se tornaram apenas mais um produto no
supermercado cultural”. Eis o que chamamos a “astúcia do espetacular”: digerir todas as
representações e metabolizá-las em formas falseadas: tanto as posições apologéticas
quanto as posições críticas. Pior, a crítica tende a servir de apoio à apologia de um
19

mundo reificado cuja lógica historicamente construída aparece como uma lei natural da
qual não se pode escapar.

Por tudo isso, o trabalho de Debord ainda espera ser compreendido em sua justa
dimensão. Sua palavra ser salva mediante o correto dimensionamento de sua
negatividade e amplitude dialéticas. O que faremos no aprofundamento analítico do
estudo das conexões entre filosofia e arte em Debord. Conexões resultantes da
elaboração de uma dinâmica expressiva que constrói o seu sentido numa relação
dialógica com as mediações do mundo no qual está inserida, deslocando-as; das quais
não pode escapar senão pelo desvio crítico e descontrução dialética do presente estado
de coisas.

Faz-se necessário, em princípio, examinar o conceito debordiano do espetáculo,


sua origem e substância junto com as estratégias elaboradas por sua dialética de
superação do existente invertido: a deriva e o détournement (desvio ou reversão); para,
enfim, compreender sua crítica situada da ideologia. Procedimento orientado não como
uma avaliação distanciada do objeto, mas como mergulho no estado de coisas que
produz o objeto para subvertê-lo em sua lógica e, assim, mostrar uma saída possível da
prisão que nos encerra. Inserir as cartas num novo jogo, em novas regras significa dar-
lhes um novo valor e uma nova força, situá-las numa máquina destrutiva que
movimenta as mediações contra sua petrificação espetacular. A máquina infernal de
Debord: um procedimento de integração da arte e do pensamento filosófico a serviço da
salvação da experiência efetiva da vida: negando-a em sua redução e em suas fraturas
para realizá-la em sua totalidade concreta. As posições singulares só podem ser salvas
no interior da dinâmica do todo. O sentido do todo só pode ser restabelecido mediante a
afirmação da verdade do singular.

Adolf Loos pensou uma forma de arquitetura em que os princípios emergissem de


situações singulares para as quais servissem de regras norteadoras (Cf. JANIK ;
TOULMIN, 1983). O despojamento de sua criação arquitetônica estava posto a serviço
de uma adequação dos meios às realidades singulares em concordância com as quais
deveriam ser produzidos. Tudo o que fosse assessório e não servisse para a
funcionalidade da obra deveria ser eliminado. A escola Bauhaus de Walter Gropius
transformou a estratégia singular de Loos em norma arquitetônica. Assim, inverteu
completamente o objetivo para o qual ela foi pensada. Transformou a arquitetura em
20

ideologia. Debord estava absolutamente certo quando dizia que o urbanismo estava se
tornando uma ideologia. A partir de 1961, data em que é criado o código urbanístico na
França, é o momento em que o urbanismo se torna uma ideologia. Isto não significa que
o problema da cidade estava resolvido, longe disso. Mas, nesse momento, os
Situacionistas coerentemente abandonam a teoria do urbanismo unitário. A deriva e os
movimentos de deriva foram sendo pouco a pouco abandonados por essa época
também, pois corriam o risco de se cristalizarem em princípios doutrinários negando
aquilo que pretendiam ser: a abertura da possibilidade da liberdade crítica e criativa no
contexto de um plano de ação singular de renovação e transformação das cidades e da
vida nas cidades. A arte de viver para as novas gerações poderia estar se transformando
em algo muito velho e enrijecido. Se a potência do abstrato se apropriasse dela, o
despertar da consciência das novas gerações que propunha acabaria se transformando
num sonho gregário programado pelos órgãos competentes para o entorpecimento do
rebanho. Raoul Vaneigen soube se cuidar? Debord certamente soube. Era inteligente
demais para se deixar apanhar pela potência nulificadora do espetáculo. Somos nós que
devemos nos cuidar ao lê-lo.

Voltando ao tema da super-exposição do comum no mundo atual, percebemos que


em busca de reconhecimento todos querem ser iguais a todos em sua banalidade
generalizada. Pois “quando ‘ser totalmente moderno’ se tornou uma lei especial
proclamada pelo tirano, o que o escravo honesto teme, acima de tudo, é que ele possa
ser suspeito de saudosismo”. (DEBORD, 2002, p 75) Assim todos procuram esconder-
se detrás da aceitação pública. Mas todo esse processo possui um princípio e uma
natureza constitutiva. Reafirmamos: não é mais eficaz apenas nomeá-lo parcialmente
nem, tampouco, criticá-lo desde uma perspectiva situada no interior de sua própria
lógica. Percebê-la é um primeiro passo, destruí-la um segundo. Ambos os movimentos
só podem ser realizados juntos, aliando o rigor cognitivo à inventividade criativa a
serviço da revolução criadora. Como isso se efetiva em Debord? Nosso problema maior
reside na dificuldade de mostrar esta articulação dos planos absolutamente necessária à
compreensão da importância de Debord em sua luta pela revolução e renovação do
pensamento e da arte. Para a superação das separações e das generalidades normativas
que desviaram a arte de sua tarefa criativa e a filosofia de sua potência crítica.
Sustentamos que Debord, ao fazer a crítica do declínio e da auto-anulação da arte e do
pensamento submetidos ao reinado das divisões e das reificações alienantes, sob o
21

impulso da força falsificadora e nulificante do espetacular, construiu um mecanismo


expressivo que lhe permitiu evitar cair nas armadilhas de um movimento que a tudo
submete e a tudo integra em sua lógica. Era preciso uma astúcia para fugir ao domínio
do espetacular, para efetuar um movimento crítico que se situasse para além da sua
ingerência e o negasse a partir da criação de uma articulação lógica imune à força do
espetáculo. Um problema que Debord soluciona de forma exemplar recorrendo ao que
denominamos a “astúcia da dialética”. Somente o poder do negativo integrado como
força motora de uma estratégia através da qual a força criativa da arte semina a potência
crítica da filosofia poderia construir uma linguagem que, sem abandonar o sentido,
destrói o sentido do qual se apropria. Em termos gerais, e bastante simplificados, o
mecanismo dialético do texto anti-espetacular, alimentando o rigor crítico com a
inventividade criativa, não se submete aos ditames de uma normatividade morta, o que
corresponde a dizer que não se congela em um formalismo abstrato e vazio. Seu
movimento desfaz as amarras do sentido espetacular criando novas intensidades de
forças que investem o texto de uma potência destrutiva alimentada pela força da criação.
Nem a expressão é isolada do movimento do todo, com o qual dialoga constantemente,
nem o texto se isola da totalidade social cujas ingerências negativas explicita e destrói.
Em outras palavras, o ataque de Debord contra a sociedade do espetáculo, em cujas
entranhas aventura seu estilo, só pode servir-se de uma astúcia, de uma estratégia que
lhe permita inserir-se no movimento global do negativo negando-o. A astúcia da
dialética.

“A cultura é o lugar da busca pela unidade perdida. Nesta busca pela unidade, a
cultura como esfera separada é constrangida a negar-se a si mesma” afirma Debord.
(DEBORD, SE, 180)1 É preciso, pois, criar novos movimentos criadores de novas
identidades. Em torno do culto às aparências, produzido pela indústria da cultura
forjam-se identidades tão volúveis quanto falsas. Esse tipo de falsa consciência que
emerge da imposição de falsas representações é governado pelo principio do fetichismo
da mercadoria cuja lógica Debord já havia desnudado em sua tese 36 do livro A
Sociedade do Espetáculo. Lá ele percebe que

a dominação da sociedade por ‘ coisas supra-sensíveis’, se realiza


completamente no espetáculo, no qual o mundo sensível é substituído por uma

1
“La culture est le lieu de la recherche de l’unité perdue. Dans cette recherche de l’unité, la culture
comme sphère séparée est obligée de se nier elle-même.”
22

seleção de imagens que existem acima dele, e que ao mesmo tempo se fez
reconhecer como o sensível por excelência. (DEBORD, SE, § 36).

Nessa brilhante exibição de acuidade dialética Debord soube expressar o que


Shakespeare avaliou quando sentencia que “nós somo urdidos da mesma matéria com
que se fazem os sonhos”. Calderón concluiu a mesma coisa: “la vida es sueño”. Hoje
não é tão difícil perceber a ilusão consumada, mas ainda é extremamente difícil
compreender o conceito debordiano que a dimensiona - vale dizer, o espetáculo em
geral como inversão concreta da vida, não como simulação e simulacro, mas como
movimento autônomo do não vivo que se realiza e se perpetua por diversos meios, entre
os quais a sua condição ilusória projetada como a totalidade de sua força motriz. O
espetáculo é real e como tal deve ser percebido em sua matriz dialética, o que se pode
efetivar apenas através de uma astúcia antiespetacular que recupere seu sentido na
mesma expressão crítica que lhe nega a legitimidade. Por isso, não é tarefa fácil
acompanhar as peripécias do cavaleiro Debord em sua aventura contra os dragões reais
fantasiados em moinhos de vento perpetuamente renovados por novos modelos mais
adequados a um desejo de consumo desenfreado. Faz-se necessário aventurar-se na
criação de situações perpetuamente renovadas. E, segundo Debord, “O aventureiro é
aquele que faz as aventuras acontecerem, mais que aquele para quem as aventuras
acontecem” (Potlatch)

Em que consiste esse fazer acontecer em Debord? Qual a dinâmica de sua


aventura lingüístico-existencial? Como a filosofia se serve aqui de uma nova gramática
da criação? Como essa criação alimenta-se do pensamento filosófico? Como o
pensamento filosófico serve-se da arte para a potencialização de seu vigor crítico?

Uma linguagem sem fraturas em que a filosofia e a arte integram-se num todo
dinâmico, cujo movimento negativo instaura novos horizontes para a crítica social no
interior de uma ampla renovação da expressão. Em que consiste a dialética como
estratégia criativa no contexto de um diálogo crítico com a tradição? Diálogo que
instaura um trânsito renovado da expressão aproveitando-se da força das relações
intertextuais para elaborar uma nova sintaxe anti-espetacular. Debord serve-se de uma
astúcia. Em que ela consiste? São muitas as perguntas, mas um só problema: em que
consiste a estratégia do negativo em Debord? Como se organizam suas frentes de
combate? Através de quais procedimentos constrói a sua força criativa que destrói?
Como constrói ele a máquina que lhe permite descer ao inferno da vida reificada e
23

esvaziada da sociedade do espetáculo e lhe arrancar das entranhas o segredo de sua


astúcia e elaborar, ao mesmo tempo, a astúcia que lhe destrói? Pois a destruição é o
pressuposto de uma única e possível criação. Sem ela naufragamos no mar de nossas
circunstâncias, ou melhor, das circunstâncias que nos determinam.

A astúcia de Debord deve nos conduzir a um saber: nós somos o espectador e o


espetáculo e tudo o que vive em nós morre em nós sob a força do espetacular. Sendo
assim, nós somos o descaminho, a inverdade e a vida cindida e não vivida. Estudar
Debord não se justifica, portanto, apenas como um exercício de interpretação, mas,
fundamentalmente, como um meio de reapropriação de nossas vidas no âmbito de uma
possível saída para o caminho de nossa emancipação como seres sociais. A máquina
debordiana opera em todos os planos: o crítico, o literário, o artístico, o filosófico
integrando-os à vida social mediante a revolução do cotidiano, sua transformação em
um modo de proceder plenamente consciente dos perigos que enfrenta no interior de um
mundo que a tudo devora. Estudar Debord tentando apreender a essência de seu
procedimento dialético, de seu estilo crítico e o que ele significa resultará em um
trabalho que nos conduzirá para além das limitações das teses acadêmicas, articulando o
mundo da pesquisa científica ao mundo da experiência vivida onde tudo encontra sua
razão de ser ou seu perecer. Não há outra forma de estudar Debord sem traí-lo. Ao
mesmo tempo, não existe, em nosso mundo espetacular, nenhum lugar mais adequado
ao estudo rigoroso de um escritor-pensador, cuja astúcia nos desconcerta e cujo vigor
crítico esclarece e força a mudança, do que na academia. Único lugar possível ao
diálogo esclarecido e ao exercício de uma dialética que não tem em mira nada senão a
dignidade do conhecer e a honestidade da busca intersubjetiva que, ousando dizer o seu
nome, apoia-se nas competências de identidades intelectuais forjadas no rigor da
pesquisa para se aproximar da verdade.

Uma concepção revolucionária do pensamento e da arte impõe a superação das


clivagens que distinguem e isolam o que na vida integra-se ao movimento do todo. Uma
das obras cinematográficas de Debord – o cinema falado semeado de trechos colhidos
do cotidiano e da indústria cultural, desviados pelo movimento de seu estilo –
denomina-se Crítica da Separação; outra Crítica dos juízos elogiosos e críticos à minha
obra Sociedade do Espetáculo. Ambas opõem-se ao julgamento linear e reducionista da
modernidade que, pró ou contra, tanto faz, instauram o que elogiam ou criticam.
Reificando os conceitos paralisam o texto em estruturas inertes conforme as regras
24

universalmente impostas. Debord corre o mesmo risco se lido incorretamente, vale


dizer, de forma parcial e redutiva. Petrificado em uma escola ou em um grupo de
normas. A normalização desingulariza desviando a leitura da particularidade do objeto
que pretende compreender, autonomiza o movimento do não vivo.

A espetacularização do comum e do cotidiano superexpostos significa o máximo


de banalização da vida pela invasão, não só consentida, mas buscada, por todos que
querem se render à ordem espetacular à espera de colher seus frutos materiais os quais,
no entanto, dissolvem-se no ato mesmo de sua conquista. Como Tântalo permanecem
em meio à água e à comida sem conseguirem comer nem beber. O que só lhes aumenta
a fome e a sede.

O espetáculo fetichiza-se na imagem, mas não é imediatamente visível nelas. Ao


contrário, nelas se esconde no ato de exibi-las. Ele constitui, portanto, um nexo mais
profundo que liga a totalidade social alienada e a mantém sob o cabresto de uma falsa
coesão mediada pelo ilusório. Debord enuncia a lógica do movimento geral: “O
espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma conexão social entre pessoas
mediada por imagens”. (DEBORD, SE, § 4, grifos nossos) O conjunto das imagens é
apenas o que se apresenta, mas não representa aquilo que é. O espetáculo não está
imediatamente visível nas imagens, embora esteja também nas imagens que o veiculam
e reforçam sua presença. No entanto, é preciso descer um pouco mais para chegar até
ele. Ele deve ser entendido em sua substância e na generalidade de sua determinação
sob o movimento dos simulacros visíveis.

A retórica do espetacular ilude e desencaminha a consciência, é verdade, mas


suas origens e forma não só possuem raízes mais profundas, como resultam em
desdobramentos mais perigosos e menos auspiciosos. Não é demais reforçar, a
sociedade do espetáculo é um fenômeno global, cujas raízes afundam-se no terreno da
auto-alienação do trabalho e cujas ramificações estendem-se por todos os setores da
vida social produzindo grande impacto sobre a cultura e sua assimilação pela
consciência massificada e cindida da modernidade.

Por nosso turno, conscientes da astúcia do espetáculo, buscamos construir um


texto não linear em cujas correspondências dialógicas os elementos constituintes de seu
sentido não se separam artificialmente, não se equacionam abstratamente, nem se
25

correlacionam pela inserção esquemática em uma ordem hierárquica em que se dividem


em graus de importância e significado.

Este texto não vai, portanto, apresentar o trabalho de Debord como se fosse
possível abordá-lo didaticamente. É impossível. Não podemos ler Debord
didaticamente, separando e organizando em lugares distintos o que só sobrevive em seu
sentido pleno no interior do movimento em que as categorias fluidificam a linguagem
restaurando sua potência dialética. Após anos de contato com um texto e uma vida que
nos desafiam constantemente a compreensão uma certeza aflorou: a de que não
podemos enquadrar Debord em uma moldura analítica formal ou metodológica, o que
significaria espetacularizar uma obra anti-espetacular, anulando a astúcia da dialética.
A própria ideia ignora praticamente tudo o que Debord disse ou fez ao escrever.
Tematizar ou ordenar Debord sob a pretensa ou equívoca, embora bem intencionada,
crença de que alguém tem que começar em algum lugar com Debord é acreditar na ideia
da representação esquemática, finita ou “contenível” de Debord, do escrito ou
pensamento de Debord, da deriva, do desvio, da psicogeografia e assim por diante.
Tratar Debord dessa forma significa para nós dissecá-lo e, ao mesmo tempo, enquadrá-
lo na moldura de um sistema que ele mesmo recusava, cuja lei restritiva e perversa ele
quis superar integralmente.

Uma moldura que contraditoriamente banaliza e desfigura aquilo que não pode ser
tratado senão em sua dimensão mais ampla como um apanhado totalizante do diálogo
entre a vida e o pensamento mediado pelo estilo do texto, apanhado na plenitude de seu
vigor,no diálogo frutífero que estabelece entre referenciais diversos modelados pelas
interveções inventivas da ironia, dos jogos de guerra, da subversão de sentidos que,
noentanto , ao exibirem sua precariedade pelo desvio, elevam-se acima de si mesmos e
se realizam. Abordar um fazer teórico praticamente realizado pela superação da arte,
nos fazer inserir em um movimento antiespetacular que reverte o sentido das
proposições, que revira as estruturas e as desconstrói em seu vórtice sem, no entanto,
perder a coesão e o espírito de sutileza. Decupar os sistemas sem, no entanto, perder de
vista o “espírito de sistema”, não o “espírito sistemático” que a tudo congela na
abstração fria e a tudo submete às regras da razão administrativa. Atente-se para um
paralelo, uma aproximação à distinção feita por Pascal entre “l’esprit de géométrie et
l’esprit de finesse”. (PASCAL, 1977, p 328) Em cada um repousa uma parte do que se
precisa para apreender a totalidade da experiência, movimentar a compreensão
26

mediante um estilo que integrasse o raciocínio claro com as coisas sutis e indistintas
postas pelo uso comum que se patenteia aos olhos de todos. Seria precisao que os
geômetras fossem sutis e que os espíritos sutis fossem um pouco mais geômetrtras. Ter-
se-ia, pela intermediação dialética de um estilo que aspira à superação das clivagens, o
movimento concreto de um texto que se harmoniza e integra pela própria diferença. O
geômetra sutil que constrói seu antissistema mediante a modelagem desviante dos
elementos arrancadaos da tradição, que aspira à dinâmica dos signos em relação
dialética pelo recorte que resulta na “feitura mais íntima da obra acabada, resultante da
convergência de uma decupagem no espaço e de uma decupagem no tempo” (BURCH,
1969, pp 11-12), de uma reinvenção do espaço-tempo do texto recriado pelo estilo.

Portanto, no nosso caso, tentar ordenar metodologicamente a exposição,


procurando enquadrá-la no que determina o padrão, significa desnaturar a compreensão
de uma obra que não pode ser lida senão através de um trabalho ensaístico que busque a
articulação das suas determinações constituintes no movimento dialético do pensamento
e do texto em diálogo aberto com as condições teórico-práticas de sua produção
concretamente situadas. Nem recorte analítico nem moldura metodológica. Debord não
cabe em nenhuma das duas formas de aproximação interpretativa. Caberia ao custo da
incompreensão. O que não podemos e nem queremos fazer.

O todo de nosso projeto apresenta-se posto em cada parte de sua exposição.


Façamos assim para que ao focalizarmos, enfim, o desvio como procedimento negativo
e tentarmos entendê-lo em sua especificidade crítica e força revolucionária – como
expressão da crise no interior de sua própria superação –, não o façamos de modo
ingênuo nem imediato, mas, ao contrário, possamos efetuar nossa própria abordagem já
no meio das mediações críticas e das articulações teóricas inseridas na totalidade do
processo, no qual se incluem os fins e os resultados relacionados dialeticamente, desde
o início, como momentos fundantes e fundamentais da compreensão que ensaiamos.

Em nossa exposição do assunto foi necessária a elaboração de um sistema de


ressonâncias em que textos e autores – que consideramos aparentados, em maior ou
menor grau, com a forma de proceder dialética e, mais especificamente, com a maneira
pela qual Debord ensaia seu próprio pensamento, alinhavando seus temas – constroem
figuras e relações que, desde uma perspectiva meta-histórica, nos ajudam a tramar um
texto que se diferencia em seu procedimento, articulando-o como um grande diálogo
27

entre referências incontornáveis para a abordagem e sustentação consequente de nosso


argumento. No entanto, o texto de Debord é a matriz da qual jamais nos afastamos.
Todas as nossas considerações foram extraídas ou elaboradas diretamente da leitura em
primeira mão das obras de Debord. A articulação final de nossos argumentos pretende
apoiar-se integralmente em Debord, retirar dele aquilo que sustentamos. Por isso a
quase total falta de referências secundárias. Preferimos nos servir das fontes primárias,
saber o que elas dizem e trazer ao leitor o sabor do novo mediante uma abordagem
honesta e original através da qual nossa “luta corporal” com o texto de Debord
evidencia-se e se deixa sentir em cada passagem. Nosso esforço peculiar de leitura que,
se não resolve a totalidade dos problemas que propõe, não recusa nem se acovarda
diante dos desafios reais da interpretação.

Queremos chamar a atenção do leitor para a peculiaridade de nossa ordem de


razões que, se não é tradicional nem suficientemente didática, é própria ao nosso modo
de caminhar e à nossa maneira de pensar. Dessa forma, adiantamos que um grande
número de autores de diferentes entonações e diversas abordagens dos problemas por
nós tratados serão sempre situados em planos de articulação cujas relações, ao criar
pontos de convergência no interior de formas divergentes, estabelecem tensões evitando
tornar o texto linear e excessivamente formal. O que contrariaria nossa tese e a
desabilitaria em sua própria forma de exposição, ocasionando o suicídio do texto.

Temos de ir aprendendo a cada passo o que a forma de proceder tem a dizer a


respeito do conteúdo, forçando o leitor a percorrer trilhas, a coletar fragmentos, buscar
coordenar associações imprevisíveis e a contornar dificuldades, construindo, assim, seu
procedimento de leitura que, afinal, coincidirá com a perspectiva unitária que se busca
no contexto de certa tensão, criada no intuito de não permitir o relaxamento da
apreensão e, assim, não facilitar sínteses apressadas. Ensaiamos criar um capo de forças
dialético a partir de um centro dinâmico constituído pelas produções debordianas.

Digamos que o que se anseia é pela conquista de um domínio específico em que


se criam “constelações de sentidos” em busca de um sentido não recortado pelos
isolamentos nem, tampouco, mumificado pela fixação limitada dos conceitos
submetidos a uma ordem inerte de relações formais. Parafraseando uma leitura de
Lukács por Arlenice Almeida da Silva, sustentamos em perpétuo diálogo “uma reflexão
que remonta aos pressupostos jamais de modo abstrato”, porquanto nela a crítica surge
28

“em um contexto, como resultado de um debate, isto é, de cruzamentos, bifurcações e


escolhas: o que constitui um ato de humanidade”. (SILVA, 2013, p 99.)

É oportuna a menção a Lukács uma vez que o contraste entre a postura de Debord
e a do filósofo húngaro nos permite uma última consideração metodológica que nos
orientará a leitura durante todo o nosso trabalho. Sabemos que Lukács não cansou de se
corrigir nos prefácios de suas obras, de forma que a constante atualização de sua teoria
até a culminância na Ontologia do Ser Social tornou, de certa forma, ultrapassados aos
olhos do autor muitos de seus trabalhos anteriores à sua magnum opus. Dois exemplos
confirmam o que asseveramos. Ao final do Prefácio autocrítico de 1962 a sua Teoria
do Romance (1915/1916) Lukács adverte o leitor que

Se hoje, portanto, alguém lê a Teoria do Romance para conhecer mais de perto a


pré-história das ideologias relevantes nos anos vinte e trinta, pode tirar proveito de
tal leitura crítica. Mas se tomar o livro na mão para orientar-se, o resultado só
poderá ser uma desorientação ainda maior. Em jovem escritor, Arnold Zweig leu a
Teoria do Romance para orientar-se; seu instinto sadio levou-o, com todo o acerto, à
rejeição categórica. (LUKÁCS, 2000, p. 19)

Em uma passagem do Prefácio de 1967 a História e consciência de Classe (1923),


embora não reduza a obra à mera curiosidade histórica, como faz na Teoria do
Romance, a observação de Lukács não deixa de ajustar as contas com as próprias ideias,
chamando a atenção do leitor para as deficiências da obra que ele tem em mãos. A certa
altura, com rara honestidade intelectual, considera:

É um fato que História e Consciência de Classe causou uma forte impressão em


muitos leitores, e o faz ainda hoje. Se são as linhas corretas do raciocínio a produzir
esse efeito, então está tudo resolvido, e minha atitude como autor é irrelevante e
desprovida de interesse. Mas infelizmente sei que, por razões ligadas ao
desenvolvimento social e pelos posicionamentos teóricos por ele produzidos, aquilo
que hoje reputo teoricamente errado pertence aos momentos mais atuantes e
influentes da recepção deste livro. Por isso, considero-me obrigado, ao reeditá-lo
depois de mais de quarenta anos, a expor sobretudo suas tendências negativas e a
alertar os leitores para as decisões equivocadas que, na época, talvez fossem muito
difíceis de ser evitadas, mas que hoje e há muito tempo não são mais. (LUKÁCS,
2003, pp. 31/32.)

Ao contrário, Debord afirma na “Advertência da edição francesa de 1992”2 de


forma direta e provocativa:

La Société du spectacle foi lançada em novembro de 1967 em Paris, pela editora


Buchet-Chastel. Os acontecimentos de 1968 tornaram o livro conhecido. Foi
publicado de novo – sem alterações – em 1971 pela editora Champ-Libre, que

2
La Société du spectacle foi publicada em 1967 pelas Éditions Buchet-Chastel, em1971 pelas Éditions
Champ Libre e em 1992 pelas Éditions Gallimard. O trecho da advertência citada acima consta da edição
da Gallimard de 1992.
29

adotou o nome de Gérard Lebovici em 1984, após o assassinato desse editor. As


reimpressões sucederam-se com regularidade. Esta edição [Gallimard, 1992]
também é idêntica à de 1967. O mesmo princípio vai reger, é claro, toda reedição
de meus livros a serem publicados pela Gallimard. Não costumo corrigir meus
textos. (DEBORD, 1997, p 9)

Um autor que não costuma corrigir seus textos não só é um autor incorrigível, mas
que crê ter alcançado um estatuto teórico que ainda não foi desmentido pelas condições
histórico-sociais que ele definiu. Portanto, é mister concluir que “Uma teoria crítica
como esta não se altera, pelo menos enquanto não forem destruídas as condições gerais
do longo período histórico que ela foi a primeira a definir com precisão.” (DEBORD,
SE, 1997, p 9)

O fato de Debord ter assumido uma posição tão radical possui efeito
metodológico para nós que estudamos o autor da Sociedade do Espetáculo a partir do
diálogo entre as fontes primárias, pois, se ele admite jamais ter alterado suas posições e
seu modo de pensar, então seus textos possuem validade equivalente no conjunto de sua
obra, podendo servir de mediações uns aos outros para facultar a compreensão do que
está em jogo no pensamento situacionista-debordiano. Em seu Panegírico, texto
admirável sob todos os aspectos e bastante ilustrativo das posições de nosso autor,
Debord declara: “Minhas preferências e minhas ideias não mudaram, mantendo-se
rigorosamente opostas ao que a sociedade era, bem como a tudo aquilo em que ela
anunciava querer se transformar”. (DEBORD, 2002, p 27. Grifos nossos)

Persistência, coerência total, teimosia crítica, recusa absoluta, não importa: todas
as posições de Debord, a totalidade dos seus escritos, estão submetidas a uma única
froça negativa que se reafirma a cada intervenção, que se reforça, não obstante o meio
em que se expresse. Quer dizer, podemos ler Debord remetendo os textos uns aos outros
como recurso que permite adensar o significado da sua obra e clarear a complexidade de
suas posições políticas de maneira talvez única na história do pensamento dialético. O
diálogo intertextual entre diversas formas de intervenção, construções literárias e
filosóficas torna-se um “recurso metodológico imanente” a ser explorado, de forma que
as partes e o todo se ilustrem e se fecundem mutuamente pela leitura. A posição
intransigente do autor nos garante que uma mesma ideia se desdobrou em diversas
épocas e sob diversas formas ganhando mais nitidez em uma ou outra objetivação
político-literária, sem jamais ter se alterado a ponto de exigir uma revisão ou uma
alteração radical por parte do autor daquilo que ele queria originalmente dizer.
30

O que está expresso é a totalidade daquilo que se pretendia dizer e o grau de


acabamento do texto atingiu uma configuração cuja justeza da expressão não mais
permite nenhuma reforma. Em Debord o espírito geométrico contraiu matrimônio com
o espírito de sutileza. O trabalho da totalidade que se insinua em todos os momentos,
articulando as partes e lhes conferindo movimento integrado, uma densidade dialética
sutil e plenamente consciente de seus meios, realiza um texto complexo, constituído
como um campo de forças que se conjugam de forma polêmica no movimento
diferencial da máquina infernal de Debord. Nós que nela giramos devemos ser
consumidos pelo seu fogo.

Portanto, cientes da unidade semântica da obra debordiana podemos nos permitir


uma leitura cruzada entre diversos textos de diversas épocas no intuito de melhor
contornar as dificuldades que a leitura em clave dialética da Sociedade do Espetáculo
nos impõe.

Procederemos a uma leitura imanente da obra de Debord, seguindo as trilhas que


sua própria produção escrita, bem como suas intervenções estético-políticas nos abre à
interpretação. Desta maneira, cremos poder ilustrar melhor a nossa tese e demonstrar,
no campo de batalha das ideias em combate, as artimanhas que a “astúcia da dialética”
construiu para destruir o espetáculo no contexto de sua própria vigência universal.
Nosso trajeto deverá nos conduzir de encontro ao nosso tema, através de vários desvios
compostos como ensaios integrados, cuja articulação compõe o quadro de nosso
desafio: compreender o movimento do estilo de Debord em A Sociedade do Espetáculo
como uma estratégia singular de combate e renovação da linguagem filosófica, pela
qual se reatam os laços da experiência autêntica à necessidade de redenção do cotidiano
banalizado. Redenção do cotidiano pela “astúcia dialética do geômetra sutil”.

Finalmente, entender como a estratégia teórico-prática da teoria crítica pode


operar, em sua própria constituição dialética, a superação das clivagens espetaculares,
da reificação da linguagem e empobrecimento da vida cotidiana, através de um
movimento de revolução realizado pelo desvio das determinações fundamentais da
cultura burguesa, sintetizadas em sua produção intelectual mais arrojada: o sistema da
filosofia, exemplificado no sistema da lógica e da história de Hegel, com o qual Debord
dialoga de maneira tão ambígua quanto decisiva. Em nossa abordagem da astúcia da
dialética ensaiamos, portanto, alguns desvios para Guy Ernest Debord.
31

I – AS RAZÕES DA DIALÉTICA
32

Capítulo 1. Autores em busca de um leitor

1.1 Prelúdio

Uma imagem mantinha-nos prisioneiros. E não podíamos escapar, pois ela


residia em nossa linguagem, e esta parecia repeti-la para nós,
inexoravelmente. (Wittgenstein. Investigações Filosóficas.)

Quando se leva em conta a ambição totalizante da empresa debordiana, pode-se


melhor compreender o quanto o Panegírico potencializa o seu significado e projeta sua
verdadeira dimensão crítica ao ser lido em ressonância com A Sociedade do Espetáculo
e com os textos situacionistas, ampliando, simultaneamente, a compreensão desses.
Constrói-se com os textos de nosso autor um panorama global de uma organização
integral das estratégias de experimentação e articulação da vida que se diversificam ao
assumir diferentes formas expressivas e, ao mesmo, tempo mantêm-se unificadas pela
própria experiência vital, da qual essas mesmas formas jamais se apartam e que lhes
confere, exatamente por isso, o significado particular que possuem. Aqui a obra de
Debord permite-se ser abordada desde uma perspectiva original que busca interpelá-la
no ponto em que ela estabelece o diálogo com a suas circunstâncias, nas quais se
incluem os momentos estratégicos constitutivos de sua forma dinâmica, nem aberta e
nem fechada, nem inacabada nem acabada, nem fragmentária nem unitária, nem
literatura nem filosofia, nem economia nem cultura; tampouco uma simples mescla das
oposições, mas a superação mesma das oposições na articulação dos textos como
momentos relativos integrados à vida. Não vale mais para o intérprete, portanto, a
utilização de analisadores restritos a categorias parciais que a obra total que ele lê
ultrapassa. A leitura deve-se construir, também, como um movimento de ultrapassagem
e, para tal, o leitor deve situar-se ele mesmo em um território construído além das
clivagens e das unidades não mediadas.

A tarefa da leitura que buscamos realizar requer uma nova consciência e esta
necessita radicar-se em uma forma de experiência renovada: aquela que não reproduz no
ato interpretativo os limites ilusórios das separações nem, tampouco, restringe-se à
facilidade do amálgama indiferenciado dos momentos não elevados dialeticamente, vale
dizer, não suprassumidos no movimento global da unidade vivente, que realiza seu
33

conteúdo na concretude do momento histórico em que se põe como negação


absolutamente mediada do positivo absolutizado.

Os movimentos vitais que o Panegírico narra integram-se aos movimentos


conceituais que A Sociedade do Espetáculo articula no logos dialético e às intervenções
moventes, compostas em polêmicas nos textos situacionistas: constelações do sentido
que o movimento da leitura deve esforçar-se para atrair para o campo gravitacional de
seu próprio ensaio interpretativo. Debord necessita de um leitor. Sabe disso e o procura,
como outros autores o fizeram antes dele e em afinidade com ele. Autores em busca de
um leitor.

Uma pequena declaração de princípios contorna a fronteira da novidade,


demonstrando na consciência da origem a preocupação daquele que não evitou as
questões difíceis – nem, tampouco, procurou meios de conciliação com as suas
circunstâncias –, em chamar a atenção dos que futuramente seriam testemunhos de seu
trabalho.

Se considerarmos essa pequena obra, o Panegírico, como um drama no qual o


autor descontente com o seu tempo dialoga com suas circunstâncias, devemos
compreender que nós que acompanhamos como público o desenrolar da cena, podemos
não estar à altura do texto, não compreendê-lo em sua diferença afirmativa e em seu
sentido real. Alexandre Koyré afirmou que bem triste seria o público para o qual uma
determinada explicação, um determinado comentário do autor fosse necessário.
(KOYRÉ. P. 12-13) Novalis observa que “Somente mostro que entendi um escritor
quando sou capaz de agir dentro de seu espirito, quando sou capaz de, sem estreitar sua
individualidade, traduzi-lo e alterá-lo multiplamente.” (NOVALIS. Pólen. §22) Não nos
constituímos esse público incapaz de entender a natureza de um diálogo, uma vez que
não possuímos as qualidades necessárias à compreensão de uma obra que, por não
compactuar com o mundo espetacular no qual, não obstante, se insere, exige um tipo de
leitor difícil de encontrar? Pois a obra de Debord em sua natureza eminentemente
dialógico-dialética não é um espetáculo, e o público que exige, o público capaz de
acompanhar o seu drama peculiar, não comporta, ou pelo menos não se deve comportar
como puro “espectador”. Deve, ao contrário, colaborar com o autor, compreender suas
intenções, tirar as consequências dos procedimentos utilizados na construção de uma
dinâmica textual que se desenrola não apenas diante de si, mas essencialmente dentro de
34

si e ao seu redor; deve compreender-lhe o sentido e imbuir-se dele. E esta colaboração


do leitor, do público com a obra dialógica é tanto mais importante e maior quanto mais
perfeito for o texto, o que pode significar o quanto menos dirigido ao público presente
ele for, quer dizer, quanto mais comprometida com uma verdade vital que ele veicula
em sua forma, suporte necessário de seu conteúdo.

Por outro lado, cumpre notar, quanto mais dialógica a obra mais aberta a
equívocos, pois o diálogo joga necessariamente com elementos que critica,
aproximando-se deles de maneira irônica, extraindo de sentidos prévios a força do novo
sentido que elabora, a partir do qual constrói novas direções. O diálogo crítico que
constitui o procedimento nuclear da obra de Debord deve ser entendido não como
simples artifício de exposição, mas como uma obra dramática em que duas forças ou
mais se enfrentam diante de uma terceira força, invisível, mas presente e de igual
importância: o leitor ouvinte. Em uma passagem do Panegírico, por exemplo, em uma
imagem poderosamente reflexiva dialogam o filósofo e seu contexto; nela a
autoconsciência crítica fala:

Toda a minha vida transcorreu em tempos turbulentos, de extremas perturbações


na sociedade e imensas destruições. Tomei parte nesses tumultos. Tais
circunstâncias são suficientes, sem dúvida, para impedir que até o mais transparente
dos meus atos ou raciocínios receba aprovação universal. Mas também acredito que
numerosos entre eles podem ter sido mal compreendidos. (DEBORD, 2002, 10.
Grifos meus).

A preocupação de Debord – o dirigir-se ao público ressaltando aspectos de sua


vida e de sua obra, que poderiam facilmente confundir o leitor; vale dizer, sua atenção
dirigida à procura do leitor, corresponde à um tipo semelhante de pudor sentido por um
filósofo como Nietzsche em evitar os mal entendidos e a incompreensão dos quais, ele
adivinhava, seriam objetos sua obra. Apresentar-se ao leitor futuro, consciente da
incompreensão sintomática com a qual lhes brindavam os leitores no presente, constitui
um exercício de honestidade intelectual necessário àqueles que transitam em território
minado. O descompasso entre a tarefa do filósofo – a grandeza de sua concepção aliada
à novidade de sua forma de exposição – e a falta de interesse do leitor em lidar com as
questões difíceis de forma responsável, exigia uma declaração desesperada como a que
nos brindou Nietzsche:

Prevendo que dentro em pouco devo dirigir-me à humanidade com a mais séria
exigência que jamais lhe foi colocada, parece-me indispensável dizer quem sou. Na
verdade já se deveria sabê-lo, pois não deixei de “dar testemunho” de mim. Mas a
desproporção entre a grandeza de minha tarefa e pequenez de meus contemporâneos
35

manifestou-se no fato de que não me ouviram, sequer me viram. Vivo de meu


próprio crédito; seria um mero preconceito, que eu viva? ... basta-me falar com
qualquer “homem culto” que venha à Alta Engadina no verão para convencer-me de
que não vivo... Nessas circunstâncias existe um dever, contra o qual no fundo
rebelam-se meus hábitos, e mais ainda o orgulho de meus instintos, que é dizer:
Ouçam-me! Pois eu sou tal e tal. Sobretudo não me confundam! (NIETZSCHE,
2008, 15. Grifos do autor).

O sussurro de Debord ecoa o grito de Nietzsche. Ambos confirmam o fato de que


os grandes criadores são amiúde perigosamente confundidos com aqueles dos quais se
afastam. Uma nova força que se manifesta deve se apropriar da forma de expressão de
outra força a fim de afirmar sua própria identidade diferencial e, nesse jogo dialético,
arrisca-se a ser confundida com a máscara que utiliza para projetar a sua própria voz.
Assim uma nova potência expressiva é facilmente enganadora, mesmo quando se afirma
pela ruptura em relação à conformidade com a norma e instaura-se como crítica à
totalidade do existente, pois para tal ela deve-se valer daquilo que a norma prescreve
como regra, usando de antigas fórmulas para veicular novos conteúdos e possibilidades.

Neste sentido, o détournement como procedimento dialético se daria pela


apropriação de uma expressão, de uma sentença, de um argumento ou mesmo de uma
imagem já fixadas no repertório filosófico-cultural da consciência moderna, através da
qual o sentido usual é desviado de sua rota e encaminhado no rumo de novas
destinações. Quer dizer, toma-se o que se tem e se sabe para se expressar o que não se
sabia que se tinha. O conteúdo da revolta alcança sua inteligibilidade na forma de uma
tensão construída a partir de materiais pré-existentes, com os quais o discurso dialoga
explorando suas potencialidades críticas. Tal proceder constitui um perigo ao leitor
moderno incapaz de ler nas entrelinhas ou de se esforçar para perceber o que se esconde
por detrás do aparentemente óbvio. De descontruir o óbvio para construir o sentido.
Assim, pode tomar uma divergência absoluta como concordância. Como um exemplo
para o leitor, explicitamos um desvio da Sociedade do Espetáculo. Tomemos a quarta
tese “Le spectacle n'est pas un ensemble d'images, mais un rapport social entre des
personnes, médiatisé par des images.” (DEBORD. SE § 4) De imediato ela já diz muita
coisa, mas ganha novos sentidos em contraste-aproximação com uma tese do Capital de
Marx que explica: “descobre-se assim que o capital, ao invés de ser uma coisa, é uma
relação social entre pessoas mediada pelas coisas.” (MARX. O Capital. Vol I, Livro I)3

3
É bom esclarecer que os exemplos usados aqui constituem apenas uma forma de ilustrar a tese que
sustentamos nesse capítulo, segundo a qual o desvio exige uma nova forma de inteligência e uma nova
sensibilidade que não se realizam no espectador moderno, acostumado fruir fórmulas e jargões que não
36

Para nós que lemos Debord em conformidade com uma estratégia própria,
situando-o no horizonte de um tipo de expressão que ele mesmo crítica, a filosofia, não
obstante valha-se dela para construir seu movimento de recusa em completa dissonância
com as circunstancias e com os poderes de sua época, devemos não só atentar para a
forma de um texto que se projeta a partir da relação extremamente problemática com a
moldura do quadro que escolhe como máscara, mas construirmos nós mesmos um texto
não espetacular, que não se refugie na facilidade da mera adesão à norma. Devemos
ferir algumas sensibilidades e frustrar muitas expectativas. Não procurando fazer como
Debord, mas fazendo como devemos fazer ao nos aproximarmos de Debord: uma leitura
configurada em um texto que se articula dialeticamente da maneira como ele pode
dialeticamente se articular. Há aqui também muita coisa por trás da máscara.

Nós também devemos ensaiar, portanto, a nossa forma anti-espetacular de leitura


em resposta a necessidade de nos manter honestos diante de uma personalidade não
concessiva corporificada em uma obra não conciliatória. Devemos acompanhar o passo
do dialético movendo-nos dentro dos limites de nossa própria trilha, segundo nosso
próprio mapeamento sem, no entanto, perdermos as marcas que o texto produz como
indicativos de seu sentido e convite a um movimento de revolução pela leitura. Em
outras palavras, para sermos honestos com o autor, o que corresponderia a compreendê-
lo, devemos não aderir a sua forma de exposição e nem repetir seu proceder. Devemos
abordá-lo de acordo com nossa própria estratégia de composição, não repetindo nem
analisando ou explicitando simplesmente aquilo que está dado, mas dialogando com o
aparentemente dado a partir de uma perspectiva própria. Devemos deixar de ser
meramente leitores para ler um texto dialético, o que equivale a dizer que devemos
superar a posição de intérpretes ao interpretá-lo. Constituir um público não espectador,
que não tem nada a esperar, que se coloca em movimento e enfrenta as aventuras do
trajeto de acordo com o ritmo de seu próprio caminhar.

Devemos notar, de início, que o dialético deve, por assim dizer, encontrar sua via
ao caminhar por veredas já trilhadas e somente a partir delas determinar novos sentidos.
Um escritor que se apropria da dialética - como Debord - recolhe elementos pré-

firam sua sensibilidade rasteira nem quebrem a ordem banal de suas expectativas cotidianas. O espectador
busca a repetição e o desvio produz a diferença no interior da repetição, quebrando, no interior da regra,
aquilo que a regra postula. Exploraremos com mais detalhes e mais profundidade em nosso capítulo final
todas as formas do desvio, suas funções e significados específicos. Aqui adiantamos um exemplo em
função do contexto de nossa argumentação.
37

formados cujos conteúdos serão desviados de seus sentidos ordinários mediante a


inserção dos mesmos em um novo sistema de regras que lhes darão novos significados:
mesmos elementos, novas configurações. É exatamente a lógica de tal forma de
composição e sua força diferencial que tentamos estudar com mais profundidade e
atenção em nosso trabalho. Por ora afirmamos que há uma sutileza nesse jogo com o
código cuja compreensão torna-se extremamente difícil, uma vez que exige do leitor
comum um desvio na forma da interpretação para o qual ele não está preparado. Isto
porque em seu processo formativo, efetuado através de uma educação tradicional que
lhe garante, ou mesmo impõe, uma inserção passiva no conjunto de regras que governa
o sistema de comunicação e trocas simbólicas, ele é treinado para leituras lineares de
sentidos pré-determinados e fixos. Não é capaz de reconhecer a diferença nem de se
atentar para o novo. Some-se a isso a dificuldade imposta pelo jogo dialético e tem-se a
facilidade da confusão. O dialético não escreve para o leitor; pelo menos não para o
leitor presente. Por isso espera-se a falta de compreensão e o equívoco provocados por
uma obra que não se comprometa diretamente com o leitor senão consigo mesma.

Conta-se que Walter Benjamin teria entabulado diálogo com um conhecido diretor
de teatro de sua época no qual este lhe aconselhava a escrever de forma mais
equilibrada e compreensível. Referindo-se à Rua de Mão Única dizia que um bom
escritor não escreve apenas frases bonitas, densas e memoráveis. Na obra de Tolstoi ou
de Gogol, por exemplo - lembrava Bernhard Reich a Benjamin – a proporção de frases
esplêndidas para frases medíocres fica por volta de uma para trinta. “Mas no seu texto –
repreendia – quase metade das frases são densas e memoráveis. Isso resulta em coisas
demais para o leitor se lembrar. É-lhe negada a possibilidade de expectativa”. Ao ouvir
isso, Walter Benjamin teria, a princípio, parecido se perturbar, mas depois disse:
“Receio que você esteja coberto de razão. Nunca vou ter um público.” Ao que Bernhard
Reich respondeu: “A não ser que você modifique o seu estilo.” Benjamin, então,
completa: “Isso eu não posso fazer. Seria imoral.” (Ver: PARINI, 1999, 218-219)

Curioso notar que em um comentário a Benjamin, Beatriz Sarlo ilustra a anedota


que citamos, projetando uma nova luz sobre nossa abordagem acerca da relação do
autor com o leitor em uma sociedade equalizada pelo valor de troca, cuja sensibilidade e
inteligência limitam-se à recepção de conteúdos comuns embrulhados em fórmulas
repetitivas e gastas. Beatriz Sarlo nos apresenta a posição de um autor que, como
Debord, manteve-se absolutamente íntegro em sua postura intransigente e não
38

conciliatória com os poderes e expectativas da época. Uma integridade , cabe dizer, que
constitui elemento essencial de um texto representativo de um esforço teórico exemplar
de conjunção da vida com a obra em que o pensado representa o signo de uma recusa e
o emblema de uma honestidade sem a qual a proposta crítica se invalidaria por
completo. Do ponto de vista do espectador o que parece ser o sinal de uma perda e o
indício de um fracasso é, de fato, a marca de uma vitória em relação às seduções do
mercado e, ao mesmo tempo, uma conquista sobre si mesmo e sobre a banalidade que
esvazia qualquer tentativa não concessiva nem conciliatória de confrontar o comum. A
afirmação da diferença e da integridade da obra se vale da insubmissão diante das forças
que separam o que se é do que se faz, ameaçando desnaturar a singularidade e a
potência negativa do esforço crítico. Colocada a moldura podemos citar a passagem de
Sarlo em que a incompetência administrativa benjaminiana se transforma em absoluta
competência humana e filosófica. “Benjamin nunca soube administrar sua vida nem seu
trabalho.” (SARLO. Sete ensaios sobre Benjamin. P 26) Sentença absolutamente falsa.
A não ser que a interpretemos de forma invertida ou a leiamos como declaração irônica
acerca da falência da avaliação comum em determinar o significado de uma vida e de
uma obra inabarcáveis em categorias administrativas. Leitura que nos autoriza a
própria autora ao observar que “Na resistência a normalizar sua escritura segundo as
regras da cultura acadêmica ou do mercado editorial reside uma das chaves ideológicas
e formais de toda a sua obra.” (SARLO. Sete ensaios sobre Benjamin. P 26-27)
Portanto, embora sob a perspectiva profissional as condutas de Benjamin foram
desastradas, “e cada uma das dificuldades que ele encontrou para publicar seus escritos
foi antecipada por estratégias desviadas em relação a fins que ele dizia perseguir.”
(SARLO. Sete ensaios sobre Benjamin. P 27) Não obstante, seu modo de ser e de se
comportar em relação às exigências da norma e as expectativas do mercado, que
driblava no mesmo movimento com o qual fingia persegui-las, “isso configuraria
apenas um estilo intelectual se não se tivesse entrelaçado, de maneira indissolúvel, com
seus projetos, com a extensão de seus escritos e com os objetos”, junto à forma
peculiar, diríamos, “que ele abordava.” (SARLO. Sete ensaios sobre Benjamin. P 27)

Nesse caso, cumpre ressaltar que talvez Benjamin seja o autor que mais possua
proximidade com Debord, embora suas obras não tenham se comunicado, senão pela via
indireta e mediada do diálogo que aqui propomos. A condição benjaminiana ilustra em
muito a situação de Debord, guardadas as diferenças ou mesmo em virtude delas. Em
39

ambos a relação autor-leitor é mediada pela consciência crítica conjugada com a


intransigência teórica e a integridade moral.

Um filósofo cuja verdade da expressão vincula-se necessariamente à singularidade


do estilo não escreve para um público, pelo menos não para um público presente,
melhor dizendo, para um público em geral, uma vez que consciência pública limita-se a
recepção e a repetição do consolidado. Se contarmos Nietzsche entre tais estilistas cujo
compromisso com a obra transcende considerações de adequação da forma à capacidade
pública de recepção, compreende-se que tenha escrito: “Mas seria completa contradição,
se já hoje eu esperasse ouvidos e mãos para minhas verdades: que hoje não me ouçam,
que hoje nada saibam receber de mim, é não só compreensível, parece-me até justo.”
(NIETZSCHE, 2008, 50. Grifos do autor)

No entanto, deve-se acrescentar, o fato de não escrever para o público implica em


não aceitar ser lido e interpretado de qualquer maneira: o estilo mesmo – em sua
configuração peculiar – impõe exigências ao leitor que deverão ser respeitadas. Trilhas
que deverão ser seguidas pela leitura, na medida em que o intérprete busque caminhar
por elas e não passar sobre elas como se as sobrevoasse. O escrito impõe uma direção
ou um conjunto de direções a serem observadas, como se fossem percorridas por um
caminhante meticuloso e atento que seja capaz de compreender a força que ele possui e
como essa força se manifesta na confluência da obra coma vida. Walter Benjamin
sugeria que a leitura proveitosa deveria ser acompanha da cópia manuscrita do texto que
se lê e comparava tal proceder ao de um passageiro de avião que observa de longe um
caminho que se estende pelas montanhas contra o de um peregrino que percorre o
caminho. Escreve:

Uma trilha pelas montanhas é diferente quando se está caminhando por ela e
quando se passa voando sobre ela em um avião. Da mesma forma, a força de um
texto lido é diferente quando, além de lido, ele é copiado a mão. O passageiro do
avião vê apenas o caminho se estendendo pela paisagem, obedecendo aos ditames
do terreno. Só aquele que segue a pé pela trilha passa a compreender a força que
ela tem e como essa força se manifesta. O que para o passageiro de avião é apenas
uma paisagem a se descortinar, para o caminhante significa distâncias, belvederes,
clareiras, expectativas a cada curva do caminho; a trilha é como um comandante
dando ordens aos soldados na frente de batalha. (Citado por PARINI, 1999, 317)

Walter Benjamin ressalta a importância de se atentar para a especificidade do


texto que se lê através da leitura paciente e meticulosa que percorra todas as suas trilhas
acompanhando o seu desenvolvimento como um soldado que obedece às ordens de seu
comandante. Renuncia, portanto, a todo relativismo hermenêutico que pressupõe ser
40

possível construir o sentido de um texto a partir de um ponto de vista subjetivo escravo


de uma decisão da vontade de um sujeito particular.

O texto como um caminho e o leitor como um caminhante: caminhos são


singulares, embora à distância pareçam ser os mesmos. Apenas acompanhando o
traçado peculiar a cada um é possível alcançar uma leitura que não iguale o diferente e
anule sua singularidade. No entanto, o leitor carece das diretrizes gerais que o texto não
evidencia e sem as quais se torna incompreensível. Portanto, deve fornecer o horizonte
e, dentro dele, o contorno em cujo limite os vários traços componham um quadro e se
tornem significativos.

Por outro lado, por ser incapaz de seguir a trilha obedecendo aos sentidos que sua
forma impõe, quer dizer, sem se dispor a palmilhar o caminho em toda a sua extensão
seguindo os rumos que ele determina, o leitor comum, ou lança mão de um mapa que
lhe dê uma ideia geral do trajeto, ou proclama a inexistência do mesmo e segue os
rumos que sua vontade lhe dita. Em qualquer um dos casos perde a possibilidade de
compreensão por se sujeitar ao que lhe impõe o hábito. Acomoda-se à prisão da
sensibilidade preordenada pela miséria de seu tempo. Aqui toda a confusão advinda da
conformidade da sensibilidade moderna às expectativas comuns deve ser evitada pelo
intérprete e reclamada pelo autor. Mais uma vez Nietzsche nos serve de exemplo ao
escrever: “Não desejo ser confundido – para tanto, é preciso que eu mesmo não me
confunda.” (NIETZSCHE, 2008, 50)

O autor procura se distinguir de suas circunstâncias, não se confundindo a si


mesmo, vale dizer, construindo-se, no texto e através do texto, como afirmação de uma
diferença. Não obstante há limitações em seu entorno que impedem tornar visível a
clareza de seu propósito. Neste ponto há que se considerar outro motivo gerador de
confusão, ligado à vivência do leitor, à qual aludimos acima. Condicionado pela cultura
da informação o leitor moderno não consegue compreender uma obra cuja característica
fundamental é ser ela mesma a expressão de uma experiência vital inteira – a qual ela
veicula e na qual, simultaneamente, ela se insere – que se manifesta como diferença em
relação à vida cotidiana empobrecida, regida pela regra geral da abstração da esfera da
opinião pública. Aqui o estilo vincula-se a uma forma de vida cujo conteúdo não
alienado pretende resgatar. Quer dizer, em Debord, a verdade da narrativa está
estreitamente ligada à singularidade da experiência não fraturada: ambas buscando
41

romper pelo desvio, vale dizer, pela força da construção dialética, com o mundo
alienado do reino das separações e com a vida cotidiana em fragmentos que se atrela as
normas gerais e à consciência comum como se essas fossem tábuas de salvação de sua
condição alienada.

A ruptura pelo desvio impõe a necessidade de se tomar consciência de uma


matéria estruturalmente ambivalente quando se tenta compreendê-la. Se somarmos a
natureza essencialmente irônica da obra criadora – o jogo de máscaras que pratica com a
forma e o conteúdo da tradição – ao despreparo histórico do leitor – formado em uma
sociedade que reduz a linguagem a instrumento de informação e que, ao mesmo tempo,
carece de informações fundamentais a compreensão de uma obra cuja erudição desafia –
chegamos a um resultado representativo da precariedade das interpretações bem como a
necessidade do autor alertar para o caráter singular de sua empresa. A interpretação
deve romper os limites de sua própria situação e abrir-se a novas possibilidades de
situações. A interpretação deve ser ensaiada por um leitor que se ponha em confronto
com seus próprios limites e os supere a cada passo que dá na trilha da compreensão. Ao
mesmo tempo deve atentar-se para o singular sem tentar resolvê-lo em um molde
universal cuja regra iguala toda a diferença.

Textos normalmente veiculam conteúdos de informações, no entanto há textos em


que o caráter do conteúdo que transmite está totalmente determinado pela forma da vida
que o gerou. Configuram-se como obras cujo sentido está articulado à experiência da
qual são testemunhos. Neles a verdade da narrativa deve ser procurada na interior da
experiência vital que ela representa integralmente e corporifica no estilo. A respeito
escreve Debord:

É nesse sentido que é lícito pensar que a veracidade desta narrativa sobre o meu
tempo será satisfatoriamente comprovada por seu estilo. O próprio tom deste relato
será garantia suficiente, pois todos compreenderão que somente à força de ter vivido
desta maneira pode-se alcançar a excelência neste gênero de exposição.
(DEBORD, 2002, 18 Grifos nossos)

Para escrever cumpre ter aprendido, antes, a viver. No entanto, somente a


honestidade intelectual do tipo da que foi praticada por pensadores como Nietzsche,
Benjamin e Debord permite ao escritor salvar no texto a totalidade do conteúdo da
experiência sem fazer concessões ao leitor. Sem reclamar um público embora se dirijam
constantemente a ele como um futuro que não vem, como uma situação ideal que jamais
está pronta. Se reclamam um leitor não o fazem como um dado, mas como uma
42

possibilidade e, assim, inventam a posteridade no interior de um diálogo impossível


com um leitor que não existe, uma vez que ainda não superou a condição de espectador.

Ao contrário, o próprio texto – composto como diálogo em que se inscrevem e se


articulam a experiência à sua forma de representação – deve ensinar o leitor não só a
pensar, mas a viver e experimentar de maneira integral o conteúdo articulado à forma do
vivido. A tarefa suprema do escritor que escreve a sua vida em unidade com o seu
pensamento consiste em configurar no corpo do texto essa mesma experiência em sua
integridade, confirmando a unidade entre vida e estilo.

Há uma distinção feita por Rousseau que antecipa a necessidade imperiosa de


superação das clivagens históricas impostas ao homem que perdeu o contato com a vida
através da dissolução de suas formas autênticas de experiência, submetidas ao controle
de uma racionalidade exteriorizada. A propósito escrevia Rousseau ao rei Estanislau, da
Polônia:

Nunca se viu um povo, uma vez corrompido, retornar à virtude. Inutilmente


procuraríeis destruir as causas do mal, de nada serviria eliminar os incentivos à
vaidade, ao ócio e ao luxo, em vão vos esforçaríeis até mesmo por levar os homens
de volta a primitiva igualdade, custódia da inocência e fonte de toda a virtude: uma
vez estragados, seus corações assim ficarão para sempre, não havendo mais remédio
senão o de uma grande revolução qualquer, quase tão terrível quanto o mal que
poderia curar e que seria reprovável desejar e impossível prever.” (citado por
REALE e ANTISERI, vol. II, 1990, P. 767. Grifos nossos.)

Para Rousseau, à racionalidade iluminista totalmente exteriorizada era preciso


opor uma racionalidade interiorizada, em condições de recuperar a voz da consciência e
reatar os liames historicamente cortados entre a inteligência e a vida. Com efeito, diz
ele, se o selvagem vive em si mesmo, o homem da sociedade, sempre voltado para fora
de si, só sabe viver da opinião dos outros e, por assim dizer, é apenas do juízo dos
outros que ele tira o sentimento de sua própria existência. (citado por REALE e
ANTISERI, Idem, ibidem. Grifos nossos)

Conforme o diagnóstico de visão surpreendentemente antecipadora de Rousseau,


no trajeto da modernidade a sociedade se exteriorizou completamente e o homem
perdeu sua vinculação com o mundo interior. Diante das clivagens operadas pelo
processo histórico que observou a construção do mundo do individualismo burguês, é
necessário, àquele que não se deixa levar pelo movimento alienante das separações
modernas, entre as quais citamos a ruptura que levou a projeção de um mundo exterior
contraposto ao interior, torna-se necessário operar uma nova sutura entre interior e
43

exterior, para frear aquele movimento dissolutório ou dissipar aquelas vãs aparências
que os homens seguem, combatendo-se e oprimindo-se uns aos outros.

À tarefa do narrador de Debord, que acompanhamos ao ler seu Panegírico – que


passeia entre os escombros do presente anelando reunir no texto uma experiência refém
de uma realidade desorganizadora e dissipativa, em que a palavra se distinguiu da ação
e o ato de escrever tornou-se apenas o exercício de reportar uma experiência não vivida,
exterior e falsa – cabe associar a força crítico-construtora da filosofia. Vale dizer, a
narrativa ilumina a vida ilustrada pela filosofia, ambas reapropriadas pelo desvio: o
caminho do narrador melancólico do Panegírico projetado sobre a razão crítica da
Sociedade do Espetáculo. Vamos ensaiando aqui nossa forma de desvio pela leitura da
filosofia como texto situado na tensão em que se joga com a possibilidade, senão de
reconstruir a experiência original, a Erfahrung fundamental, ao menos com a urgência
de intervir negativamente no interior do movimento que dissocia, procedendo à
restauração de uma unidade vital ainda suspensa entre o pensamento e a vida. Unidade a
propósito da qual vale lembrar o que escreveu Gilles Deleuze sobre a tarefa do filósofo
do futuro:

O filósofo do futuro é ao mesmo tempo o explorador dos velhos mundos, cumes e


cavernas, e só cria à força de se lembrar de qualquer coisa que foi essencialmente
esquecida. Esta qualquer coisa, segundo Nietzsche, é a unidade do pensamento e da
vida. Unidade complexa: um passo para a vida, um passo para o pensamento. Os
modos de vida inspiram maneiras de pensar, os modos de pensar criam maneiras de
viver. A vida activa (sic) o pensamento e o pensamento, por seu lado, afirma a vida.
Já nem sequer temos ideia desta unidade pré-socrática. Só temos exemplos em que o
pensamento contém e mutila a vida, torna-a sensata, e em que a vida se desforra,
perturbando o pensamento e perdendo-se com ele. Só temos escolha entre vidas
medíocres e pensadores loucos. Vidas demasiado sábias para um pensador,
pensamentos demasiado loucos para um vivo: Kant e Hölderlin. Mas a bela unidade
continua por encontrar, de tal forma que a loucura já não seria única – a unidade que
faz uma anedota da vida um aforismo do pensamento e de uma avaliação do
pensamento, uma nova perspectiva da vida. (DELEUZE, Nietzsche.1985, 17-18.
Grifos nossos.)

Uma provocação de Debord mostra a distância irônica que seu estilo toma em
relação às expectativas do presente. Em um mundo fragmentado e acêntrico onde um
homem de verdade não encontra mais o lugar a partir do qual possa situar-se e ser
compreendido, cumpre operar um deslocamento: é necessário colocar-se novamente no
centro do mundo. Viver a experiência a partir de uma situação que coloque o indivíduo
de novo em condição de salvar-se do esfacelamento imposto pela vivência moderna:
não contra o texto, mas com o texto e através dele. “Quem pode escrever a verdade
44

senão aqueles que a sentiram?” pergunta-nos Debord. E quem pode sentir a verdade
senão aqueles que aprenderam a inscrevê-la no tecido inconsútil da experiência vital?

Um detalhe perdido para o homem moderno: o estilo comprova a verdade do


vivido resgatando a vida em sua complexidade como manifestação de uma recusa e
como uma decepção. Como um desvio? De qualquer forma é necessário saber do que se
desvia. O que determina o movimento e orienta o sentido da recusa que o desvio guarda.
Novamente aqui é preciso ter sentidos afiados para perceber o jogo de máscaras que
regula a ironia. Mais uma vez torna-se o dialético objeto de engano, pois “atualmente”,
escreve Debord, “quando até mesmo a ironia passa, com frequência, despercebida,
corre-se o risco de ver a expressão ser-nos abusivamente atribuída e, com a mesma
precipitação, ser reproduzida em termos errados”. (DEBORD, Panegírico. 2002. P. 16)

A consciência ingênua do leitor moderno, treinada nos moldes de uma cultura da


repetição, apressa-se em buscar o comum, o que lhe é familiar; com isso acaba por
impedir a si mesma de cumprir a exigência necessária àquele que lida com o incomum:
saber identificar a diferença da expressão singular escondida por trás da fachada do
aparentemente igual, pois, embora o filósofo e o artista lidem com uma linguagem cujo
sistema já lhes é dado pronto devem, por isso mesmo, ensaiar caminhos possíveis à
expressão de sua posição singular. Portanto, devem criar a diferença possível no
interior de uma repetição dada. A sensibilidade do leitor para a identificação de formas
de articulação da diferença representa, portanto, uma conditio sine qua non para a
abordagem correta de um autor como Debord.

A relação dialética com os códigos, com as formas de organização socialmente


impostas obriga a uma criação ambígua não perceptível ao leitor comum, desprovido de
erudição e consciência crítica.

Debord parece nos alertar: minha obra e minha vida serão mal compreendidas;
meus raciocínios mal interpretados, confundidos com aqueles elaborados conforme o
uso tradicional do discurso. Não obstante, o aparentemente comum, o operar conforme
as regras esconde um proceder irônico que lhe singulariza como expressão de uma
diferença inconciliável com a norma do sistema. O novo se afirma mascarando-se do
velho, a revolução veste-se com as roupas da reforma, mas detrás do aparecer imediato
dos signos opera uma lógica nova cuja natureza é preciso compreender adequadamente
no intuito de situar sua verdade. Rebelar-se significa também lançar-se ao proibido, mas
45

para tal proeza é preciso ter coragem e consciência dos perigos. “Quanta verdade
suporta”, pergunta Nietzsche, “quanta verdade ousa um espírito?” (NIETZSCHE, 2008,
16. Grifos do autor).

Ousar a verdade é saber como alcançá-la e no trajeto conceber uma nova forma de
referir-se a ela, sem a qual a invenção se perde na formulação vazia que informa o
conformismo. Eis uma dificuldade para a qual Nietzsche tinha uma fórmula própria que
nos revela ao afirmar “eu não refuto os ideais, apenas ponho luvas diante deles...”
(NIETZSCHE, 2008, 16).

1.2 O espectador fora da sala de exibição: transformação radical da experiência

Uma vez que cada sentimento particular, não é mais que a vida parcial e não a vida
inteira, a vida deseja fundir-se numa completa multiplicação dos sentimentos, e
assim se reencontrar a si mesma através dessa suma de sua própria diversidade. No
amor o separado ainda existe, mas não mais como separado: como uma unidade em
que o vivo reencontra o vivo. Guy Debord

Em uma sociedade de classes dividida pelos interesses econômicos conflitantes,


pelas especializações das tarefas e verticalização do conhecimento, cuja separação é
velada pela ideologia que transforma a expressão simbólica em obstáculo ao
reconhecimento e entendimento do outro; um mundo separado por lugares em que cada
casta habita sua própria solidão e discursa para si mesma e para os seus pares,
incapacitados de se comunicar pela condição que lhes restringe o alcance dos signos a
mera repetição de uma vivência vazia; em que a linguagem dos especialistas reificada
em signos desprovidos de conteúdo humano perdeu a força comunicativa; um mundo
em que o único fato que se comunica é a própria impossibilidade da comunicação, uma
vez que a separação tornou impossível o encontro, tornando a linguagem veículo de
estranhamento e impossibilidade de intercâmbio de experiências singulares; em que as
singularidades foram todas niveladas pelo mercado e dissolvidas pela massificação do
desejo, em que o que se deseja é a igualdade como imitação do outro tornado abstrato;
nesse mundo a busca do leitor não pode senão coincidir com a necessidade de
transformação radical da experiência mediante a revolução total das formas de vida
degradadas. Exige a construção de uma relação autêntica pela qual a linguagem possa
constituir o cimento simbólico de um encontro possível com uma alteridade real. Para
46

tal deve encontrar, como contrapartida de sua própria restituição, um outro reconstruído.
Mas no mundo em que o homem puder se reconhecer no homem, encontrando na
diferença não um obstáculo a sua autoconstrução, mas a possibilidade de si mesmo
como afirmação de uma singularidade própria e irredutível ao banal, o sistema
capitalista não mais existirá, uma vez que estarão depostas as condições de sua
produção e reprodução: a alienação econômica, o empobrecimento da experiência e a
incomunicabilidade como condição da linguagem degradada.

A procura do leitor coincide com a destruição do sistema que se produz e se


sustenta pela separação e pela mentira. Deve-se desviar o esvaziamento da linguagem
pelo clima imperante de opinião pública que se instaurou na modernidade e o
consequente esvaziamento do sentido em um universo de opinião nivelado pelos
clichês. Subverter a maneira como a separação dos atores sociais, a reificação da
linguagem comoditizada – veículo de uma experiência empobrecida – a incomunicação
regida pela ideologia, contaminou a vida cotidiana se disseminando por todos os seus
setores. Diante do quadro, o autor que se dirige ao leitor jamais pode fazê-lo ao leitor
presente. Deve-se comunicar com uma ausência na esperança de que em algum tempo e
lugar possa encontrar um outro capaz de ouvi-lo. Quando isso acontecer o tempo e o
lugar serão diferentes.

O autor em busca de um leitor constitui, portanto, o diagnóstico de uma perda,


juntamente com a aposta na possibilidade de uma reconquista.

Por outro lado, a impossibilidade de escrever para o leitor presente radica-se na


consciência da responsabilidade intransigente daquele que não pode fazer uso da
linguagem empobrecida que separa ao fingir que conecta, que se anula ao pretender
significar, que estabelece obstáculos ao tentar construir cominhos de comunicação
autêntica. Também Marx se dirigia ao leitor de uma posição incômoda, pois embora
tenha se esforçado ao máximo, conforme ele mesmo diz em seu prefácio a O Capital,
em tornar acessível a análise da substância e magnitude do valor, a perda de substância
e magnitude da modernidade impedia a realização de seu propósito. A forma do valor,
alegava Marx, era extremamente simples.

Mesmo assim, a mente humana tem procurado fundamentá-la em vão há mais de


dois mil anos. ... Por isso, com exceção da parte relativa à forma do valor, não se
poderá acusar este livro de ser de difícil compreensão. Pressuponho, naturalmente,
leitores que desejam aprender algo de novo e queira, portanto, também pensar por
conta própria. (MARX. Capital. Grifos nossos.)
47

Quer dizer, Marx deseja uma coisa simples que, no entanto, não existe na
sociedade capitalista dominada pelo espetacular: alguém capaz de pensar por conta
própria. O leitor que ele almeja é alguém que não mais existe ou que poderia existir.
Dirige-se a uma condição passada ou uma possibilidade futura. O leitor presente não
tinha as qualidades interpretativas com as quais pudesse exercitar a compreensão
verdadeira.

Buscar a aproximação significaria realizar uma tarefa impossível, embora, do


ponto de vista de Marx, valesse tentar. Sabendo da dificuldade tentou contorná-la, sem
nenhum sucesso conforme demonstrou a história dos conflitos em torno de sua própria
doutrina, ao esclarecer:

Embora tivesse a aparência de um livro escolar, uma vasta camada de leitores o


considera muito mais fácil de entender com essa organização. As massas e até
mesmo os estudiosos não estão mais familiarizados com essa forma de pensamento,
assim, é imprescindível facilitar-lhes ao máximo a questão. (citado por WHEEN. P.
89. Grifos nossos.)

Ao contrário de Marx, Walter Benjamin sabia que, nas circunstâncias


empobrecidas em que vivia, tentar ser didático era imoral, implicando em uma renuncia
do autor à afirmação não conciliatória de sua própria diferença em meio a um clima em
que a busca de compreensão significava a submissão completa da inteligência crítica às
forças alienantes da barbárie burguesa. Destituir-se a si mesmo implicaria em invalidar
a sua própria proposta em cuja dificuldade estilística residia parte de seu poder de
resistência à crise.

A busca de proximidade com o leitor, Debord sabia, coincide, no contexto da


experiência degradada, com uma espécie de adesão irrestrita à crise, a aceitação de sua
realidade insuperável e a contribuição para a sua perpetuação. No início de seu anti-
filme In girum imus nocte et consusmimur igni declara que não fez nenhuma concessão
ao público, pela fato de que o público certamente teria se tornado um esfera englobante
abstrata sob cujo poder não se poderia dar nenhuma chance à compreensão.

Conceder ao público seria conciliar-se com os poderes existentes e aceitar sua


lógica e o domínio de sua força degradante sob a forma de propaganda, de esvaziamento
do discurso. Diante de uma plateia imóvel de espectadores inertes, vale dizer, passivos e
impotentes Debord profere seu sortilégio, como uma declaração de princípios:
48

Je ne ferai dans ce film aucune concession au public.

Plusieurs excellentes raisons justifient, à mes yeux, une telle conduite ; et je vais
les dire.

Tout d’abord, il est assez notoire que je n’ai nulle part fait de concessions aux
idées dominantes de mon époque, ni à aucun des pouvoirs existants.

Par ailleurs, quelle que soit l’époque, rien d’important ne s’est communiqué en
ménageant un public, fût-il composé des contemporains de Périclès ; et, dans le
miroir glacé de l’écran, les spectateurs ne voient présentement rien qui évoque les
citoyens respectables d’une démocratie.

Voilà bien l’essentiel : ce public si parfaitement privé de liberté, et qui a tout


supporté, mérite moins que tout autre d’être ménagé. Les manipulateurs de la
publicité, avec le cynisme traditionnel de ceux qui savent que les gens sont portés à
justifier les affronts dont ils ne se vengent pas, lui annoncent aujourd’hui
tranquillement que « quand on aime la vie, on va au cinéma ». Mais cette vie et ce
cinéma sont également peu de choses ; et c’est par là qu’ils sont effectivement
échangeables avec indifférence.

Le public de cinéma, qui n’a jamais été très bourgeois et qui n’est presque plus
populaire, est désormais presque entièrement recruté dans une seule couche sociale,
du reste devenue large : celle des petits agents spécialisés dans les divers emplois de
ces « services » dont le système productif actuel a si impérieusement besoin :
gestion, contrôle, entretien, recherche, enseignement, propagande, amusement et
pseudo-critique. C’est là suffisamment dire ce qu’ils sont. Il faut compter aussi, bien
sûr, dans ce public qui va encore au cinéma, la même espèce quand, plus jeune, elle
n’en est qu’au stade d’un apprentissage sommaire de ces diverses tâches
d’encadrement. (DEBORD. In girum imus nocte et consusmimur igni.1978)

Diante da pobreza generalizada a restauração não se pode dar pela proximidade


nem pela conciliação. O público deve ser destituído de sua posição, liquidado como
público e o leitor, na melhor das hipóteses, criado.

A restauração da experiência não se pode dar senão pela via da destruição total
das condições presentes de recepção e estas só ocorreriam no contexto de uma
subversão total das formas de vida empobrecidas sob o domínio do capital, para cuja
49

perpetuação contribuiriam a linguagem ideológica e a arte degradada. Nesse sentido,


“nada de importante jamais foi comunicado sendo gentil com o público”. (DEBORD. In
girum. 1978) O leitor deve ser encontrado no contexto de sua própria destituição como
espectador, de sua libertação dos “manipuladores da opinião” e da generalidade do
discurso comoditizado, que se tornou valor absoluto sob o império da opinião pública.

Em uma imagem: o espectador deve sair da sala de exibição.

No século XIX Kierkegaard advertia que a ilusão da unidade se sustentava pelo


falso sentido da vinculação social dissolvida na esfera pública, “que em toda a sua
magnitude se caracterizaria por um processo de achatamento que não deixa espaço
para a individualidade.” (IANIK;TOULMIN, 1983, P. 199. Grifos nossos.) Parece que
podemos ver no público do cinema apresentado por Debord, cuja imagem reproduzimos
acima, a individualidade achatada de Kierkegaard. Ao mesmo tempo, contemplamos a
figura passiva de uma época que se encarnou no público a fim de que tudo se veja
reduzido ao mesmo nível. Em que ela mesma se veja no espelho massificante de sua
receptividade burguesa. Para tal, foi necessário, em primeiro lugar, “procurar-se um
fantasma, um espírito, uma abstração monstruosa, um algo que a tudo abrace e não é
nada, um espelhismo. E esse fantasma é o público.” (TOULMIN; IANIK, idem. Grifos
nossos.) Para Kierkegaard, e mais tarde para Karl Kraus, essa abstração consegue
nivelar o indivíduo por meio das abstrações que produz: “opinião pública”, “bom
gosto”, “estilo”, “linguagem esvaziada”. Em uma sociedade em processo de
deterioração este público é a ficção da imprensa. E aqui Kierkegaard atinge um nível de
consciência da perda, da inversão e da mentira generalizada que antecipa em muito a
crítica de Debord, ao afirmar:

Somente quando o sentido da vinculação social já não é bastante vigoroso para dar à
vida realidades concretas, é então que a imprensa (mídia) está na posição de criar a
abstração de ‘o público’ consistente em indivíduos irreais que não estão nunca
unidos, nem podem estar, em uma situação ou organização reais. E, no entanto, são
unidos e mantidos em um conjunto. (TOULMIN e IANIK. P. 199. Grifos nossos.)

Poderia ser esse conjunto a sala de exibição? Seria dentro dela, portanto, que se
poderia projetar um discurso cuja forma constitui-se em negação e combate à ilusão do
público pela distância tomada em relação ao mero leitor, esse fantasma passivo
representante de uma humanidade destituída que vai ao cinema?
50

Segundo Ellis Sandoz, a crise da comunicação autêntica teve início na Europa a


partir das décadas de 1920 e 1930, quando a corrupção da linguagem e a política
ideológica disseminada pelos meios sociais e intelectuais criou uma situação distorcida
que permitiu que pessoas como Hitler, Mussolini, Stalin predominassem como figuras
representativas. A partir desse período, o esforço de recuperar a potência negativa da
linguagem e sua força crítica como um movimento contra a degradação, forçada de
modo esmagador pelas atmosferas de opinião deformadas pela ideologia tornou-se uma
tarefa de compreensão histórica e de urgência teórica presente. (confere: SANDOZ.
Introdução à Em busca da Ordem. P. 26) As separações e a desorientação das massas
conduziram a morte da possibilidade de diálogo verificada como um movimento de
erradicação da oposição e de banalização da compreensão e da expressão. Nesse
ambiente o diálogo torna-se impossível e as consciências iludidas são facilmente
conduzidas pela adesão (in)voluntária às falsificações que sustentam a violência do
poder contra a liberdade e autonomia do indivíduo. Como notou Eric Voegelin, não se
pode pretender que os usuários de uma linguagem corrompida pelas ideologias
pudessem participar de uma discussão autêntica. Ao contrário, imersos em uma vivência
marcada pelas separações os indivíduos alienados não conseguem construir nenhum
instrumental simbólico que lhes permita comunicar experiências autênticas através da
referência à uma realidade compartilhada. (VOEGELIN, 1989)

Debord percebe que os indivíduos na pós-modernidade são mantidos “separados


uns dos outros pela perda geral de qualquer linguagem capaz de descrever a realidade –
uma perda que impede qualquer diálogo real.” (DEBORD. In girum imus nocte et
cosumimur igni). Nesse contexto, eles só podem aceitar ordens e se acomodar a elas
movidos pela ilusão de seguirem algum tipo de razão superior capaz de interpretar e
mediar, através de mecanismos políticos reservados ao poder de uma classe de
privilegiados, os verdadeiros interesses da comunidade inexistente. Em outro texto
Debord alude ao vínculo entre linguagem degradada, incomunicação e poder. Escreve:
“O poder dá somente a carteira de identidade falsa das palavras; ele lhes impõe um livre
trânsito, determina seu lugar na produção (onde algumas fazem visivelmente horas
extras); libera-lhes de algum modo sua caderneta de pagamento.” (DEBORD, All the
King’s Men) Em outros termos, “A discussão vazia sobre o espetáculo – isto é, sobre o
que fazem os donos do mundo – é organizada pelo próprio espetáculo: destacam-se os
51

grandes recursos do espetáculo para não dizer nada sobre o seu uso.” (DEBORD.
Comentários. P 170. Grifos do autor).

Com a impossibilidade de uma verdadeira comunicação a unilateralidade do


domínio sobre o que as coisas são e como devemos agir torna-se atributo fundamental
do poder. Assim, “O que é comunicado são ordens; de forma altamente harmoniosa, os
responsáveis por essas ordens são os mesmos que vão dizer o que pensam delas.”
(DEBORD. Comentários. P. 171).

A comunicação unilateral instala-se onde quer que a comunidade é destruída e a


crise se instaura entre os indivíduos e os sistemas de representação políticas e
simbólicas. Abrangendo um espectro mais amplo e se estendendo em um nível maior de
complexidade em relação à crise da cidade-estado discutida por Platão, a crise moderna,
que se acirra com a expansão e consolidação da política espetacular após a Segunda
Guerra Mundial, pode ser identificada na perda da unidade da vida social, no
empobrecimento da experiência e no aparecimento de forças ilegítimas de controle
associadas a interesses particulares, que se escondem sob o véu das ideologias e
transformam a linguagem em veículo de reprodução simbólica do poder. Um circuito
em que os indivíduos são apanhados nas malhas de um mundo invertido no qual a
experiência do encontro e do reconhecimento se tornaram impossíveis. Nas palavras de
Debord,

A desinserção da práxis e a falsa consciência antidialética que a acompanha, eis


o que é imposto a cada momento da vida cotidiana sujeita ao espetáculo; eis o que é
preciso compreender como uma organização sistemática da “falha da faculdade de
encontro”, e como sua substituição por um fato alucinatório social, a “ilusão do
encontro”. Numa sociedade em que ninguém consegue ser reconhecido pelos outros,
cada indivíduo torna-se incapaz de reconhecer a sua própria realidade. A ideologia
está em casa: a separação construiu seu próprio mundo. (DEBORD. SE. §217.
Grifos do autor)

O que Debord descreve é um quadro de esquizofrenia coletiva no interior do qual


as separações conduziram os indivíduos a um nível de alienação total que os mantém
isolados de si mesmos e dos outros, distantes, portanto, da única forma de relação
possível à autoconstrução individual como personalidades autônomas, autoconscientes e
autênticas. Pequenos fragmentos dispersos no mercado como formas fantasmagóricas e
inconscientes em choque contra seu próprio vazio essencial. Escreve no parágrafo 218
da Sociedade do Espetáculo:
52

Nos quadros clínicos da esquizofrenia”, diz Gabel, “a decadência da dialética da


totalidade (que tem como forma extrema a dissociação) e a decadência da dialética
do devir (que tem como forma extrema a catatonia) parecem bem solidárias”. A
consciência espectadora, prisioneira do universo achatado, limitado pela tela do
espetáculo, para trás da qual sua própria vida foi deportada, só conhece os
interlocutores fictícios que a entretêm unilateralmente com sua mercadoria e com a
política de sua mercadoria. O espetáculo, em toda a extensão, é sua “imagem do
espelho”. Aqui se encena a falsa saída de um autismo generalizado. (DEBORD. SE.
§ 218. Grifos nossos).

Nesse contexto, não há nenhuma comunidade de linguagem possível e, mais uma


vez na história, a linguagem foi degradada e corrompida em tal grau que não pode mais
ser usada para expressar a verdade em relação à existência. Portanto, a comunidade de
linguagem que o pensador crítico, consciente do estágio a que chegou a alienação e dos
mecanismos de reprodução do falso através da criação de um “estado de unidade
ilusória” gerido pelas ideologias, necessita utilizar para criticar os usuários da
linguagem ideológica deve ser, em primeiro lugar, descoberta e, se necessário,
estabelecida. Descoberta e estabelecida no interior do próprio movimento de
restauração da possibilidade de encontro entre os indivíduos, o que equivale a dizer: de
seu ser social. A astúcia da dialética vincula-se ao movimento de restituição do ser
social através da possível restauração do poder simbólico da linguagem, o que se daria
pela sua desvinculação crítica em relação às determinações do poder e, fechando o
círculo, pela emancipação do indivíduo alienado. Esse mesmo que se senta diante da
tela e contempla as ordens insidiosas daqueles que lhes mantém presos a uma condição
degradada, ilusória e falsa.

A crítica de Debord ao cinema, modelo de mediação midiática pela qual a


linguagem busca aproximar-se do público fazendo concessões a sua banalidade,
aderindo à sua posição alienada, seria então a demonstração de que a expressão deve,
por meio da negação total do meio no qual se realiza, buscar a reconstrução de uma
nova forma de expressão negativa da condição presente e antecipadora da possibilidade
futura. Tal movimento só faz sentido, no entanto, de posse da consciência da condição
presente, para cuja compreensão o cinema serve como metáfora, que é a
autoconsciência da linguagem no âmbito das condições atuais de produção e de
reprodução da vida social alienada. Diante do quadro, deve-se procurar saber antes de
tudo que “C'est une société et non une technique qui a fait le cinéma ainsi. Il aurait pu
être examen historique, théorie, essai, mémoire. Il aurait pu être le film que je fais en ce
moment” (DEBORD, In girum imus nocte et consumimur igni.)
53

A revolução não se pode dar pelo cinema, mas o cinema se revolucionará,


juntamente com as formas de linguagem, quando a totalidade do sistema que necessita
de ilusões desaparecer. Então os espectadores poderiam sair do cinema como os
prisioneiros da caverna platônica em busca de sua humanidade perdida.

Neste contexto, a linguagem da filosofia, no que ela possui de proximidade e


distância em relação à experiência degradada que se disseminou pelo cotidiano, deve
servir de meio para a recuperação do poder simbólico dos signos esvaziados pela mídia
e pela linguagem ideológica. Restituir a dignidade da linguagem se daria em conjunção
com a retomada do poder revolucionário do logos filosófico pelo cidadão indignado.
Tratar o discurso da filosofia em sua dimensão crítica como forma de construir um
futuro ao significado no interior da situação degradada presente, construir pelo encontro
da linguagem consigo mesma, mediado pelo autor em busca do leitor. Mas o autor, o
leitor e suas circunstâncias devem se restaurar em conjunto. Por isso mais uma vez
deve-se enfatizar a crítica entendida como transformação total: do meio expressivo, das
condições de recepção e das circunstâncias materiais.

A radicalidade da crítica debordiana advém da consciência da universalidade da


crise. O leitor deve ser situado, portanto, em um contexto de transformação radical, não
buscado, mas estimulado a se desfazer daquilo que lhe aprisiona e se encaminhar na
trilha de sua própria autoconstrução.

No início está o logos e o logos situa-se em nós e nos constitui. Somos o que ele é
e ele é o que somos. Apropriá-lo pelo desvio significa desviarmo-nos de nós mesmos
como indivíduos abstratos e ensaiar a construção de nossa realidade concreta como
seres sociais.

1.3 Vida: modo de usar

A tarefa de construir uma nova forma de expressão para a verdade em um mundo


invertido, cujas circunstâncias impedem até o mais transparente dos atos serem
realmente compreendido desafia o autor e exige a existência de um intérprete atento aos
perigos da ilusão. Citando Chateaubriand, Debord nos sugere mais uma vez a atenção
para sua posição singular. Escreve:
54

Entre os modernos autores franceses meus contemporâneos, sou também o único


cuja vida se assemelha às obras. Em todo caso, eu seguramente vivi como disse que
era preciso viver; isso talvez tenha sido ainda mais estranho entre meus
contemporâneos, todos parecendo acreditar que tinham de viver conforme as
instruções daqueles que atualmente detêm a produção econômica e o poder de
comunicação com o qual ela se armou. (DEBORD, 2002, 49. Grifos nossos).

Nossa forma de viver carece de originalidade. A vida nos é dada pronta em uma
embalagem cujas instruções determinam a direção genérica que deve tomar a
experiência de todos: “vida, modo de usar”. Sem tais instruções a vida genérica nos
seria impossível; no entanto, por causa delas afastamo-nos de nós mesmos. Vivemos a
realidade de um grande outro que se impõe a nós com suas exigências sociais, suas
normas de conformidade, suas promessas de segurança e aceitação. Entregamo-nos à
vida coletiva e perdemos a vida própria. Com esta perda deixamos de aprender a
considerar aquilo que é diferente de nós e nos desafia. O que nos toca como uma
potência estranha que nos solicita.

Vivemos uma vida comum e só aprendemos a viver experiências comuns. Tudo


então se tinge para nós com as cores genéricas da cotidianidade não redimida.
Observamos o mundo através das lentes da lei genérica e só compreendemos o que elas
refratam. Tudo se disfarça de velho e o novo se confunde com o tradicional quando a
força que nos empurra para dentro da esfera do comum se investe de um poder de
falseamento da comunicação que a tudo invade. Por isso não é de estranhar que Debord
se declare a nós que o lemos e procure chamar nossa atenção para a natureza de sua
experiência e a singularidade de sua vida: ambas traduzidas na peculiaridade de seu
texto. Também aqui somos solicitados a escapar, o termo é de Wittgenstein, do
“enfeitiçamento pela linguagem”. (Cf.: WITTGENSTEIN, 2009)

Atento para a direção que tomaria a interpretação não só de seus textos, mas de
sua posição teórico-prática em relação a uma sociedade na qual ele se inscrevia ao
mesmo tempo em que rejeitava, Debord alude ao fato de que seus raciocínios não
seriam aprovados universalmente e, pior, em sua maioria, deturpados. Suas máscaras
lidas ou descritas em sua apresentação imediata e suas ironias interpretadas ao pé da
letra. Não como o que efetivamente são: “algo cujo real significado difere do conteúdo
óbvio, às vezes chegando mesmo a dizer o oposto de que é dito”. (BLOOM, 2001, P.
182.) Máscaras escondem aquilo que significam e o conteúdo que veiculam de forma
oblíqua só se explicita através do diálogo contra a forma sob a qual se escondem.
Novamente dirigindo-se ao leitor Debord escreve:
55

Deverei empregar um grande número de citações. Jamais, acredito, para conferir


autoridade a uma demonstração qualquer, mas apenas para fazer sentir do que terão
sido urdidos, em profundidade, esta aventura e eu mesmo. As citações são úteis nos
períodos de ignorância ou de crenças obscurantistas. As alusões sem aspas a outros
textos que se sabe muito célebres, como vemos na poesia clássica chinesa, em
Shakespeare ou Lautréamont, devem ser reservadas a tempos mais abundantes em
cérebros capazes de reconhecer a frase original bem como a perspectiva que sua
nova aplicação introduziu. Atualmente, quando até mesmo a ironia passa, com
frequência, despercebida, corre-se o risco de ver a expressão ser-nos abusivamente
atribuída e, com a mesma precipitação, ser reproduzida em termos errados.
(DEBORD, 2002, p. 16)

A preocupação com os elementos constitutivos do texto, sua forma de articulação


vinculada a princípios particulares de construção que o individualizam, torna a
compreensão uma tarefa que exige não apenas atenção dedicada às peripécias da ação
construtiva em seu diálogo matizado com o teor crítico da mensagem, mas necessita de
uma sensibilidade, uma cultura e inteligência incomuns em uma época banalizada e
nivelada pela repetição ad nauseam das vivências comuns. O caráter receptivo do leitor,
a precipitação de suas expectativas comuns que anseiam sempre pelo objeto acabado,
pela mercadoria cuja aquisição é mediada apenas pelo valor abstrato do dinheiro e cuja
natureza parece se entregar por inteiro ao consumidor capaz de pagar por ela, torna o
texto dialético uma tarefa para cuja realização ninguém parece estar disposto a se
empenhar, que nenhum receptor de informações está pronto a enfrentar.

O leitor espera poder ter uma empatia imediata e uma apreensão ligeira daquilo
que não se mostra por inteiro em sua crosta sensível e nem pede identificação imediata.
A esperança de manter o encontro com uma linguagem totalmente transparente e
objetiva, como a dos jornais, ou então a procura de um texto que se confunde com a
fala, que se apresenta como um colóquio em que se articulam tópicos da vivência
comum fraturada e da realidade invertida, denuncia que a sensibilidade cotidiana não
quer superar seus próprios limites. Que ela alcança sempre o contrário daquilo que
pretende se o que pretende é não sair de seu círculo vicioso. Em um mundo cuja
pobreza se tornou geral e o banal se imiscuiu na experiência cotidiana contaminando
todos os setores da vida social, a própria pretensão do imediato tornou-se falsa. O
imediato é a mediação do poder que se esconde por trás de um disfarce.

Nas atuais condições “Aqueles que querem escrever”, esclarece Debord,

às pressas, de forma despropositada, o que ninguém lerá uma só vez até o fim, nos
jornais ou nos livros, exaltam com muita convicção o estilo da linguagem falada,
porque a consideram muito mais moderna, direta, fácil. Mas eles mesmos não sabem
falar. Seus leitores tampouco, pois a linguagem efetivamente falada nas modernas
condições de vida se encontra socialmente reduzida à sua representação, eleita
56

indiretamente pelo sufrágio da mídia, composta por cerca de seis ou oito expressões
fastidiosamente repetidas e menos de duas centenas de vocábulos, a maioria do
quais, neologismos, estando esse conjunto sujeito à renovação de um terço a cada
seis meses. Tudo isso favorece uma forma de empatia ligeira. (DEBORD, 2002, P.
17, grifos nossos.)

Encontramos nas limitações da recepção, no empobrecimento da linguagem


tornada representação, no imediatismo da sensibilidade banal, nas balizas
normalizadoras dos “princípios da informação jornalística (novidade, concisão,
inteligibilidade e, sobretudo falta de conexão de uma notícia com a outra) – a exclusão
da informação do âmbito da experiência” – (BENJAMIN, 2000, P 107.) dificuldades
que deve enfrentar um autor crítico cuja linguagem não adere ao objeto e cuja forma de
expressão traz em si mesma, na arquitetura de sua apresentação, o movimento que a
desloca para fora das expectativas da experiência comum, e as resgata em um plano
superior de forma e significação. Uma linguagem que se serve dos mecanismos da
linguagem disponível para afrontá-la em suas formas e significados mais íntimos e
fundantes.

Da mesma maneira que o filósofo se insere no seu tempo, do qual não há fugir, a
linguagem dialética inscreve-se nos moldes normativos globais de um mecanismo de
expressão que não pode evitar ao mesmo tempo em que rejeita frontal e essencialmente.
Debord afirma ironicamente que escreve sem esforço e sem cansaço na língua que
aprendeu e que não coube a ele modifica-la. (DEBORD. idem) No entanto, não deixa de
perceber que o imenso crescimento dos meios de dominação moderna marcou de tal
forma o estilo dos enunciados que se veiculam na linguagem comum, que o
entendimento dos raciocínios que confrontam o poder e se colocam fora de sua
jurisdição tornou-se um privilégio de pessoas realmente inteligentes. Mesmo a
expressão veiculada na língua comum exige um leitor incomum, pois hoje “os donos de
tudo o que se faz são também os mestres de tudo o que a respeito de se diz”.
(DEBORD, 2002, P 74).

Se a Nietzsche foi necessário dar testemunho de si, uma vez que previa os abusos
que seriam cometidos com sua filosofia, o caso Debord parece ser mais grave. A
assimilação de sua crítica à sociedade do espetáculo por aqueles que a louvavam sem
conhecê-la – que faziam uso apressado do conceito sem compreendê-lo – anulou a sua
força dialética mutilando seu diagnóstico crítico da totalidade do existente subjugado
pelo sistema do capital. O resultado da apropriação privada do capital debordiano por
57

discípulos ingênuos resultou na banalização de uma filosofia que denunciou e renunciou


a todas as formas do banal. É o que aponta um dos melhores interpretes de Debord em
um livro indispensável. Escreve Anselm Jappe que,

Nuestra época, por el contrario –nos referimos a los últimos decenios dela
Europa occidental-, há tenido a sus pensadores, y geralmente no sin razón, por gente
totalmente inofensiva. Más de uno que se declaraba enemigo jurado de lo existente
fue acogido con los brazos abiertos em las universidades o em la televisión, y las
más de las veces el amor fue recíproco. Entre las pocas personas consideradas de
todo punto inaceptables se halla sin duda Guy Debord. Durante mucho tiempo se
interesó por él más la policía que los órganos normalmente encargados de la
difusión del pensamiento. Pero finalmente tal actitud ya no bastaba, puesto que las
teorias elaboradas por él y sus amigos los situacionistas habían comenzado, a pesar
de todo, a despertar la atención de la época. Desde entonces se observa otra técnica
de ocultación: la banalización. Hay pocos autores contemporâneos cuyas ideas
hayan sido utilizadas de manera tan deformada como las de Debord, y por lo general
sin mencionar siquiera su nombre.

A estas alturas todo el mundo, desde los directores de televisión hasta el último
de sus clientes, admite que vivimos en una “sociedade del espectáculo”. Ante la
invasión de los mass media y los efectos que ocasiona en los niños que crecen ante
el televisor; o ante la deplorada “espectacularización” de la información sobre
sucesos trágicos como guerras y catástrofes, la referencia a la “sociedade del
espectáculo” es hoy em día de rigor. Los más informados llegan a veces a afirmar
que dicho término es el titulo de um libro de um tal Debord, dando a entender que se
trata de uma especie de McLuhan más oscuro; pero raras veces se dice algo más
preciso.

Nietzsche tinha razão ao dizer que era preciso temer os discípulos? Porque parece
que os que nos causam maiores males são aqueles que concordam conosco: “leitores
espetaculares”, aqueles que dependem da pseudo-imediatez da mensagem ou do manual
de instruções.

Pior os que concordam sem se informar. Em mundo bombardeado diariamente por


informações eles parecem, ao mesmo tempo, fomentar um desprezo inconsciente pelas
mesmas. O excesso de oferta diminui o valor do produto e a necessidade de cumprir
prazos e estabelecer metas mecanicamente determinadas por exigências externas
impede o exercício fundamental da reflexão, da especulação paciente que acompanha o
auto-desdobrar-se consequente do conceito para além da simples apreensão da imagem.

Aqueles que chapinham na poça das imagens não podem mergulhar no


redemoinho dialético da ideia. Vale um recado de Ernst Bloch ao leitor presente, desde
uma situação ideal, que o presente nega e que deve ser destituída para se alcançar o
verdadeiro âmbito dialético da leitura:

Quem se entrega somente ao curso de suas representações não chegará muito longe.
Ver-se-á aprisionado, ao fim de algum tempo, por um conjunto de frases e tópicos
tão pálidos quanto imóveis. O gato cai sempre de pé, porém o homem que não
58

aprendeu apensar, que não sai dos breves e usuais enlaces das representações, cai
sempre no eterno ontem. Repete o que outros já repetiram; marcha ao passo de
ganso da fraseologia. Ao contrário, o pensamento, diferente do curso estabelecido
das representações, começa imediatamente como um pensar por conta própria;
move-se ao ritmo do homem que está por trás dele e o impulsiona. Aprende para
saber onde nos encontramos; acumula saber para ajustar a ele a conduta. O homem
acostumado a pensar por conta própria não aceita nada como fixo e definitivo, nem
os fatos amansados nem as generalidades inertes, menos ainda os chavões cheios de
odor cadavérico. Longe disso, vê-se sempre a si mesmo e todo o entorno em
constante fluir; encontra-se sempre como a sentinela avançada nos postos
fronteiriços da vanguarda. O que se aprende tem de achar-se afetado ativamente por
sua matéria, pois todo saber deve considerar-se capaz de viver sobre a marcha, de
romperas cascas das coisas. Quem, ao aprender, comporte-se passivamente,
limitando-se, a assentir com a cabeça, logo cairá no sono. Ao contrário, quem esteja
na coisa e marche com ela, por seus caminhos não trilhados, alcança a maioridade e
se encontra, enfim, em condições de distinguir entre o amigo e o inimigo e de saber
onde a verdade abre caminho. O trote do burro levado pelas rédeas é cômodo, sem
dúvida, mas os conceitos enérgicos são valentes; são os que correspondem à
juventude e a virilidade”. (BLOCH, 1983, P)

É bom que tenhamos em mente as palavras de Bloch quando nos empenharmos


em ler um autor sem manual de instruções como Debord. Um autor capaz de construir
uma “máquina de guerra infernal” impossível de desmontar, mas que exige do leitor a
tentativa do desmonte como condição da leitura. Que de fato exige um leitor
transformado, vale dizer, um não-leitor capaz de superar sua condição presente, um
leitor à deriva que se deixe perder nas ruas de uma cidade desconhecida para então se
encontrar. A cidade de Debord pode muito bem ser um mapa que nos conduza a nós
mesmos, que nos ajude a restaurar um pouco da autoconsciência que nossa dignidade
perdida exige. Se esse mapa não traça um caminho fácil, é porque espera que façamos o
esforço da descoberta e, assim, nos projetemos para fora das condições degradantes da
recepção passiva, que nos alimenta daquilo que nos mantém em nossa condição
alienada à espera das instruções do poder.

1.4 Para além do espetáculo

O uso da linguagem como transmissão pura e simples do acontecimento, como


fenômeno positivo que exclui a informação do âmbito da experiência (Ver:
BENJAMIN.1994,107), como repositório de dados imediatamente apreensíveis pelo
espectador constitui a forma pela qual nossa consciência colonizada pelo sistema
responde ao fenômeno da comunicação mediada por signos aderidos aos reclames da
opinião pública e da experiência empobrecida. Nada mais distante do uso dialético pelo
59

qual a linguagem, em seu movimento compreensivo, destrói a positividade do fenômeno


negando-o como imediatamente dado para salvá-lo na totalidade de relações moventes
que constituem sua essência. Nicolai Hartmann referindo-se a Hegel advertia,

Entre os pensadores da época moderna, Hegel é o filósofo do Espírito. Mas o ser


espiritual é interioridade, plenitude, amplitude. Quem quiser compreender a
Filosofia de Hegel terá de compreendê-la a partir do que ela tem de mais íntimo: a
partir de sua plenitude e do seu conteúdo, tão grande como nobre. Doutro modo
seria incompreensível. (HARTMANN. 1983, 293)

Da mesma maneira não é possível ler Debord com as lentes de MacLuhan, como
se ele fosse um teórico das mídias. Mais correto seria estabelecer os contornos corretos
de seu pensamento atingindo sua plenitude mais íntima. Nesse sentido, é necessário
dissociá-lo do espírito comum e associá-lo àquela tradição crítica de matriz hegeliano-
marxiana à qual ele se liga de pleno direito e da qual ele se afasta com razões
particulares que buscamos compreender. Do contrário apenas se ecoa a mesma
discussão vazia sobre o espetáculo no âmbito do próprio espetáculo, o que anularia sua
potência crítica comprometendo completamente a compreensão.

A classificação do espetáculo como um domínio das mídias constitui uma redução


do conceito a uma de suas formas mais perceptíveis e menos determinantes. Na
verdade, uma forma particular apenas de manifestação da lei geral do espetacular em
que não se encontra o espetáculo nem como totalidade compreendida em seu
movimento global de produção-reprodução da separação e comoditização da
experiência social, nem em sua contrapartida ideológica, nem como controle
administrativo que mascara a crise sob a forma de uma falsa unidade política. Identificar
o espetáculo com a mídia é tomar a parte pelo todo, vale dizer, raciocinar de forma
espetacular sobre o espetáculo, anulando o perigo que representa o domínio das mídias
para a vida social banalizada: sua apropriação pelo poder como forma de controle
social.4 Debord estava consciente do perigo quando alertou o leitor para a confusão.
Segundo ele a discussão vazia sobre o espetáculo é organizada pelo próprio espetáculo,
quer dizer,

4
Por essas razões melhor seria considerar um teórico como McLuhan como “o primeiro apologista do
espetáculo, que parecia o imbecil mais convicto do século” até mudar de opinião ao descobrir, enfim, em
1976, que “a pressão dos mass media conduz ao irracional” e que “seria urgente moderar o uso desses
meios. O pensador de Toronto havia passado décadas a louvar as múltiplas liberdades trazidas pela
‘aldeia global’, de acesso tão instantâneo a todos, sem esforço. As aldeias, ao contrário das cidades,
sempre foram dominadas pelo conformismo, pelo isolamento, pelo controle mesquinho, pelo tédio, pelos
mesmos mexericos sobre as mesmas famílias.”
60

destacam-se os grandes recursos do espetáculo, a fim de não dizer nada sobre seu
uso. Em vez de espetáculo, preferem chamá-lo de domínio da mídia. Com isso
querem designar um simples instrumento, uma espécie de serviço público que
gerenciaria com imparcial “profissionalismo” a nova riqueza da comunicação de
todos por mass media, comunicação que teria enfim atingido a pureza unilateral, na
qual se faz calmamente admirar a decisão já tomada. o que é comunicado são
ordens; de forma altamente harmoniosa, os responsáveis por essas ordens são os
mesmos que vão dizer o que pensam delas. (DEBORD. Comentários. Pp. 170-171.
Grifos do autor.)

Situar Debord como um teórico das mídias corresponde a anular a força de seu
pensamento dialético tornando-o um idiota acrítico aderido ao espetáculo. Ao contrário,
é preciso buscar compreendê-lo como alguém cujo esforço revolucionário insere-se na
vaga contra cultural da exigência negativa do pensamento dialético como apanha
totalizante da práxis social a partir da necessidade de sua transformação revolucionária.

Eis aqui uma razão para a banalidade das interpretações debordianas: o espírito
comum move-se num universo completamente estranho às exigências da dialética.
Hartmann esclarece que

Nada é tão estranho nem tão resistente a um espírito comum tal exigência,
porque nada há que este atraiçoe mais facilmente do que o cerne, a totalidade, a
visão simultânea. A índole do homem atual mão é favorável à valorização do
patrimônio de Hegel, pois o homem moderno isola os fios e põe na balança o que
em si mesmo carece de peso, já que esse reside num todo que ele não vê. Desta
maneiram o espírito comum não encontra a plenitude: retém formas vazias estranho
ao seu carácter dialético e abstrato; e depois de os ter tornado artificiais afasta-se
deles com indiferenças. No seu pensamento não se cumpre o que se havia realizado
no de Hegel: a vida do conceito. Só ouve o ritmo monótono do seu próprio e oco
pensamento, só escuta ¨tagarelice inculta da dialética¨ - como tem sido designada - e
crê que isso é a dialética hegeliana. (HARTMANN. 1983, 293)

Não faltam exposições de Hegel que nos ensinam como não devemos lê-lo. Da
mesma maneira não faltam apropriações de Debord que nos ensinam como não
devemos compreendê-lo. As informações correntes desqualificam um autor cujo cerne
do pensamento permanece, de certo modo, inédito. Diz Jappe,

¿Hay que lamentar semejante “desinformación”? Un socialista austríaco de la


primera mitad del siglo dijo: “Cuando empecé a ler Marx, me sorprendió no haber
oído hablar de él en la escuela. Cuando empecé a comprender a Marx, ya no me
sorprendía”. (JAPPE. 1998, 15/16)

Para uma correta aproximação a Debord deveríamos tentar esclarecer a


ambiguidade da tarefa a que se dedica o pensador dialético e como ele consegue
resolver o problema da expressão autêntica no contexto de uma linguagem corrompida.
Como formular um distanciamento crítico no interior de um modelo normativo
condicionante de nossa consciência e nossa forma de expressão? Como expressar
61

experiências divergentes no interior de um código que a tudo padroniza e nivela? Como


romper com uma cultura que nos envolve completamente e nos fornece os meios de
normalizar nossas experiências conforme padrões aceitos pelo espírito comum? Como
enfrentar algo que não se pode recusar e nem tampouco aceitar? Como falar a língua
purificada de sua contaminação ideológica em um tempo governado pela banalidade e
pelo clichê, dominado pela mentira ideológica? Não há que se inventar outra língua,
mas libertar a língua em que se fala dos seus limites e subserviência ao que ordena o
poder. Fazer outra linguagem com o material herdado da língua que se aprendeu. Ler
todos os livros a partir dos quais é possível chegar-se a si mesmo e então escrever o
livro que está faltando? Avançar para além do espetáculo.

“Os ciganos consideram, com razão, que somente devemos dizer a verdade em
nossa própria língua; na do inimigo a mentira deve reinar.” (DEBORD, 2002, P. 17)
Sendo assim, é preciso aprender a língua que se fala e deixar aflorar o próprio no
contexto do impróprio, afrontando o inimigo oculto no terreno em que ele se oferece a
nós com sua mentira universal e sua perspectiva invertida. Também aqui se necessita de
ironia, torna-se preciso vestir a máscara que revela o sentido oculto do que se combate
pelo desvio. Mas como se constrói um leitor capaz de percorrer as trilhas de um autor
que traça caminhos deslocados de suas antigas rotas sobre mapeamentos desnorteantes?

Estamos completamente mergulhados na regra, a regra nos antecede e envolve e,


por isso, nos condiciona ao ponto de transformar nossa revolta em conformidade, nossa
crítica em conciliação, nossa discordância em aceitação, nosso distanciamento em
aproximação. Debord quer nos contar algo porque sabe que tem algo a dizer. Mas está
consciente dos problemas que o mundo administrado impõe aos que enfrentam a relação
entre a matéria comunicada e a forma como desafio à expressão de conteúdos
divergentes. Sabe da dificuldade que enfrenta o criador insubmisso ao combater o
inimigo dentro de seu próprio campo e, possivelmente, com as suas próprias armas. A
comprovação do que se pretende pelo estilo implica em que o estilo esteja imbrincado
na experiência da vida histórico-social, como parte dela e, ao mesmo tempo, resgate de
sua submissão irrestrita e universal àquilo que lhe nega. “somente à força de ter vivido
desta maneira pode-se alcançar a excelência nesse gênero de exposição” e projetar o
desafio que afronta a totalidade do existente em sua raiz a partir da retomada da
linguagem em sua potência criadora e singularidade expressiva.
62

1.5 A impossibilidade do exílio e o desvio

A cultura impõe-se como sistema unificado, é verdade, que age sobre os


indivíduos como mecanismo regulador condicionando suas formas de ver, sentir e se
expressar. Resultado de um comércio entre o infra e o superestrutural constitui-se como
uma totalidade articulada composta por um conjunto de normas estáveis que
determinam a função que os elementos desempenham dentro desta totalidade. Uma
cultura unificada significa a universalização do controle do código do qual a fuga torna-
se uma dificuldade e, ao mesmo tempo, um imperativo ao dialético. Debord sabia disso
e nos revela sua consciência do problema em uma passagem de seu Panegírico. Nela
confidencia,

Bem mais tarde, quando a maré de destruições, poluições, falsificações se


estendeu por toda a superfície do planeta, ao mesmo tempo em que nele penetrava
profundamente, eu pude voltar às ruínas que subsistiram em Paris, pois, então, não
havia restado nada de melhor em outra parte. Em um mundo unificado, não é
possível exilar-se. (DEBORD. 2002, 49)

A impossibilidade do exílio num mundo unificado impede a possibilidade da fuga.


Não adianta mais isolar-se das grandes cidades ou romper com a regra operando um
falso movimento de afastamento acrítico, porque o isolamento é apenas a sensação
ilusória de superação de um mundo que nos acompanha porque está em todos os lugares
e dentro de nós. Romper diretamente com a linguagem reificada é retornar
inconscientemente a ela e confirmar a sua lógica, a universalidade de seu imperativo
normalizador. A ruptura não se pode efetuar como mais um movimento de simples
separação, o que, ao aduzir mais um fragmento à lei alienante que governa a totalidade
do processo social, corresponderia a mais uma forma de submissão, conforme
repetidamente argumentamos até aqui. Significa conciliar-se com uma norma que se
quer superar. Uma dialética sem ironia é uma inocente útil que reforça o sistema que
quer suplantar. No entanto, repetimos com Debord, “atualmente, quando até mesmo a
ironia passa com frequência, despercebida, corre-se o risco de ver a expressão ser-nos
abusivamente atribuída e, com a mesma precipitação, ser reproduzida em termos
errados.” (DEBORD. 2002. 16).

A ingenuidade e a inocência, reféns do imediatismo, não podem mais ser


toleradas em um mundo no qual o sistema do capital foi universalizado e, junto com ele,
seus subprodutos culturais, entre os quais se destaca a linguagem comum como
programa de controle da vida cotidiana, mediante a disseminação global de sua forma
63

de organização alienante. Aqui é bom ressaltar que a linguagem não é um instrumento


neutro de comunicação nem de transmissão de informações. Não é possível um uso
puro de um programa gerado no interior de um sistema para confirmar as suas regras.

A linguagem, é bom que se esclareça, como todas as realidades sociais, só se


torna inteligível através de sua dinâmica, cuja realidade só se efetiva no uso social ao
qual é destinada. Um jogo dialógico cujas regras determinam o valor dos signos
mediante a assimilação social que põe em movimento suas normas e as confirma
mediante as trocas intersubjetivas. A linguagem comporta valores, sistemas, sinais,
imagens, comandos, etc.; mas estes elementos considerados isoladamente não fazem a
linguagem como força normativa; é seu sistema, seu modo de combinar-se associado a
sua atualização mediante a práxis social o que lhe confere sentido e lhe dá força
coercitiva. É sua estrutura como mediação social que lhe dá significado e função
ideológica. Pelo fato de estar determinada por sua estrutura alienante, a linguagem
supera como realidade todas as formas nas quais a experiência é vivida subjetivamente
por este ou aquele indivíduo, forçando-o a integrar-se aos modelos gregários das formas
consensuais de expressão e sentido.

A linguagem, portanto, não se reduz às formas individuais nas quais é vivida,


nem, tampouco, resume-se a um instrumento que faculta ao indivíduo criativo a
expressão de experiências únicas. A imposição histórica de sua estrutura, que se ergue
como programa culturalmente determinado de controle universal mediante regras
socialmente aceitas, condiciona as experiências individuais a se tornarem repetições de
modelos previstos pelo código. O indivíduo que emprega a linguagem deve possuir
consciência de que a busca da originalidade pode ser uma forma de corroborar a
circularidade de um sistema de signos que aprisiona a consciência.

Para o romântico o modo exprimir a verdade aceita deveria ser original. Pouco
depois de Alexander Pope, a era romântica exigia uma originalidade ainda maior. Para o
romântico radical, o poeta perfeito deveria ser como o próprio Deus, criando ex nihilo:
“quanto melhor ele fosse, menos previsível era tudo o que houvesse no poema. Apenas
iniciantes ou poetas irremediavelmente medíocres utilizavam material pré-fabricado”.
(Ver: ONG. 1998, 32) Hoje sabemos que é mediante o diálogo entre as exigências
subjetiva e as determinações objetivas que se poderia dar o ato original de criação, vale
dizer, não é mais possível a pretensão criativa não mediada pela consciência crítica. É
64

exatamente nesse equilíbrio difícil que Debord constrói sua linguagem singular, cuja
expressão revela a força de sua personalidade insubmissa e crítica capaz de se afirmar
como “astúcia dialética”, que contorna as dificuldades de um referencial simbólico
comum universalizado pela ação criadora da recombinação do mesmo, submetido a uma
regra do jogo imprevista e nova.

Como Debord procede na construção crítica de seu sistema contra-ideológico é o


que estamos ensaiando compreender. O que devermos realizar com mais detalhes no
decorrer de nosso trabalho Nossa tarefa consiste em precisar o mecanismo pelo qual o
autor da Sociedade do Espetáculo constrói sua crítica radical diante da consciência
radical dos limites impostos pela prisão ideológica corporificada na linguagem
organizada segundo o código banalizante do espetacular. Inventar um jogo em que o
que se joga é o destino de nossa integridade humana e social. Um jogo sério como o de
Platão, a dialética, em cuja força de indignação, capaz de responder à expressão da
revolta com a liberdade auto-conquistada do diálogo, possa-se contradizer todas as
formas da autoridade e toda a autoridade do poder.

É permitido, mas não desejável, preguntar-se aonde poderia positivamente conduzir


tamanha disposição para contradizer todas as autoridades. “nunca buscamos as
coisas, mas a busca das coisas”, a certeza a esse respeito está muito estabelecida.
Gostamos mais da caça que da presa. (DEBORD, 2002, P. 60. Grifos nossos)

Uma sintaxe revolucionária para a expressão de conteúdos revolucionários é o que


se exige de um autor que sabe usar a astúcia da dialética como forma de superação da
astúcia do sistema espetacular. De outra forma acaba-se por ser vitimado pela própria
pretensão acrítica de fuga do sistema. Tentando viver uma vida própria acabam por
viver conforme as instruções dos que dispõem do poder de impor as regras, os mesmos
que detêm a produção econômica e o poder de comunicação com o qual ela se armou.
Adorno percebe a dificuldade a que nos referimos como uma questão de “como se” e
sentencia:

Antes de qualquer mensagem de conteúdo ideológico já é ideológica a própria


pretensão do narrador, como se o curso do mundo ainda fosse essencialmente um
processo de individuação, como se o indivíduo, com suas emoções e sentimentos,
ainda fosse capaz de se aproximar da fatalidade, como se em seu íntimo ainda
pudesse alcançar algo por si mesmo (...) (ADORNO. 2003, 56/57)

Enfrentar o problema de um mundo no qual a afirmação do indivíduo torna-se a


negação de si mesmo e, ao mesmo tempo, a afirmação de uma generalidade abstrata
submissa à regra, exige saber que a expressão utilizada já está corrompida em sua
65

essência por um sistema que transformou tudo em moeda comum. A linguagem ergue-
se aqui como o instrumento máximo de controle na medida em que é ela a mediação
fundamental pela qual o indivíduo traduz sua experiência em significado e modela sua
relação com o mundo. A linguagem que, de certa forma, é o indivíduo e o mundo. Essa
mesma linguagem que nos individua nos padroniza. Nela e em seu mecanismo de
submissão à norma reside o grande perigo.

Utilizar-se, portanto, da linguagem como meio de afirmação do indivíduo e


instrumento de combate é apropriar-se de um recurso construído pelo inimigo para nos
sujeitar e colonizar. Não é possível lançar-se para fora dela nem, tampouco, aceitá-la.
Qual a saída? No Panegírico Debord refere-se à impossibilidade da fuga, o que nos
sugere a necessidade imperativa do desvio. Antes, expressa a consciência das forças que
se enfrentam e da necessidade contraditória que vai se impondo a cada uma das partes
em litígio. Não constituiria tal desvio uma forma de ironia, vale dizer, de
distanciamento na proximidade, mediante um procedimento pelo qual a linguagem
adota aparentemente um mecanismo cuja constituição ela na verdade desmonta e
quebra?

O centro de nossas preocupações consiste em demonstrar não só a necessidade de


tal procedimento em Debord, como analisar seu funcionamento e suas implicações para
uma teoria crítica da sociedade, que se apoie em uma renovação da linguagem da
filosofia através da superação da mercantilização da arte. Acima de tudo mostrar de que
forma Debord constrói uma linguagem da divergência (através do desvio), mediante a
qual a posição revolucionária é salva na forma de uma dissenção crítica em relação ao
espetáculo, ensaiada no interior de um trabalho dialético transposto ao plano da
composição do texto e das intervenções vitais do indivíduo insubmisso, cuja
intercomunicação complexa e plurívoca, alcança extrair das formas generalizadas da
crise, o material de sua própria superação total: na expressão da vida e na vida da
expressão.

Em sua proposta dialética, em sua matriz psicogeográfica, através da


reurbanização crítica do texto, por meio do desvio como desconstrução da norma e
reconstituição da potência revolucionária do texto dialético, em resposta à necessidade
de superação na própria posição formal de uma linguagem banalizada cuja reprodução
comprometeria a tarefa revolucionária da empresa crítica. Como a movimentação da
66

forma, sua revitalização pelo estilo é necessária à superação das armadilhas do


espetáculo. O espetáculo disseminado por todas as instâncias da vida cotidiana, cuja
força ideológica pode ser identificada no interior da linguagem normal e, em amplo
espectro, nas totalizações da filosofia, com suas fórmulas vazias e sua submissão à regra
que, ao confirmar a lei geral, generaliza a experiência da pobreza e da alienação,
tornando-a comum, normalmente aceita porquanto universal.

1.6 O escândalo e a abominação: em busca do reencontro

Quando o público ao qual se dirige o autor, esse público ausente e, no entanto,


possível, estiver formado, o início da revolução nas formas de vida do ser social, bem
como restauração da experiência em sua expressão mais própria e rica, poderia ocorrer,
porquanto as mentalidades estariam aptas a não mais receber a mensagem apenas, como
se estas fossem objetos acabados que se adquire como uma mercadoria, mas a criar
situações por meio das quais o contato com a palavra se daria no contexto de sua
transformação em veículo de autoconstrução do indivíduo. A dialética como redenção
da experiência pela práxis talvez pudesse se disseminar pelo cotidiano e sua forma ativa
de apreensão, mediada pelo poder do logos revolucionário, constituir um dos
procedimentos possíveis à construção do diálogo aberto em que se liquidaria a posição
passiva do espectador e se instalaria as condições da comunicação autêntica. Estariam,
com isso, teórica e praticamente negadas, mediante a transformação do cotidiano, as
condições subjetivas de reprodução da ordem espetacular. A partir dai ousar a superação
da alienação aconteceria sob a forma da autoconsciência e da restauração da potência
simbólica da linguagem.

Não obstante, o que se verifica é a perpetuação da crise sob o influxo da


linguagem empobrecida. A força da linguagem em modelar o pensamento, coordenando
a ação conforme as diretrizes do poder, representa a forma universal e absolutamente
eficaz de controle ideológico sobre o cotidiano; de sua submissão às normas e valores
da dominação tornada comum, vale dizer, efetivamente aceita por todos como regra
incontornável de organização da vida social e limite insuperável de contenção das
possibilidades individuais.
67

A destruição da linguagem espetacular, a quebra de sua função ideológica, de sua


banalização universal e esvaziamento semântico, junto à recuperação de sua valência
crítica, coincidiriam com a retomada de um caminho possível à ação revolucionaria. Ao
invés de veículo normalizador da vivência cotidiana a linguagem poderia se
revolucionar como força libertadora, como mediação possível à restauração da
comunicação entre indivíduos capazes de construir em liberdade e autonomia suas
experiências vitais não alienadas. Uma forma de quebrar a inércia da normalidade e
inviabilizar a reprodução dos valores necessários à colonização da consciência comum
pelo banal em função da sujeição passiva do espectador às diretrizes da dominação. Um
reatamento, restituição, ou mesmo construção, da ligação dialética entre o autor, a
mensagem e o leitor como condição de construção de uma experiência não espetacular
no contexto do encontro entre indivíduos livres que se reconhecem como seres sociais.
A restauração da concretude da vida mediante a libertação da miséria cotidiana se faz
pela revolução nos meios de apropriação do sentido, libertando-o do poder
administrativo a serviço do capital, que se apossou da linguagem, determinando o que
se diz e o que dizer significa.

A desconstrução da linguagem espetacular pelo desvio5 nos aponta o caminho da


revolução em sua vinculação necessária com a experiência da pobreza e com a
reconstrução do valor de uso da razão dialética na sociedade do espetáculo. Comecemos
a percorrer o caminho sinuoso que nos conduz ao cerne de nossa questão, cujo horizonte
e contorno dialéticos já estão traçados.

Ao final esperamos mostrar como “pelo próprio estilo, a exposição da teoria


dialética é um escândalo e uma abominação segundo as regras da linguagem dominante
e para o gosto que elas educaram.” (DEBORD. SE. § 205.) O que significa que “no
emprego positivo dos conceitos existentes” – da forma não redimida da linguagem
normalizada – “essa exposição inclui também a compreensão de sua fluidez
reencontrada, de sua destruição necessária.” (DEBORD. SE. § 205. Grifos nossos e do
autor)

Concentremos nossa investigação agora sobre seu objeto específico: A Sociedade


do Espetáculo e a maneira pela qual Debord resolve neste texto seminal, de forma

5
Veremos adiante como Debord procede a tal desconstrução através do diálogo crítico com a linguagem
da filosofia.
68

complexa e total, o problema que nos ocupou até agora. No decorrer da exposição
esperamos que fiquem claros para o leitor todos os movimentos da máquina debordiana
em sua proposta antiespetacular, na qual se realiza o desvio como astúcia da dialética.
Como a revolução linguística de Debord opera a realização da filosofia através da
superação da arte, ambas situadas, como forças de restauração da experiência vital do
ser social, no âmbito da vida cotidiana.
69

Capítulo 2. A propriedade privada e seu outro: o desvio como ato de


insubordinação política

2.1 A Máquina anti-mercante

Contra todas as neutralizações e castrações, é preciso lembrar o essencial: a obra de


Guy Debord – que ainda será lembrada no próximo século – foi redigida por alguém
que considerava “um revolucionário profissional na cultura”. Michel Löwy

Michael Löwi afirmou que o texto de Debord em a Sociedade do Espetáculo era


“uma máquina infernal difícil de desmontar” (LÖWI, 2002, P 80). Ao escrever isto
referia-se às tentativas de leitura redutivistas, adocicantes, banais ou estetizantes que
acabavam por neutralizar um texto de combate, movido por um ímpeto anticapitalista
que jamais aceitou conciliar-se com a ordem de coisas existente. A interpretação de
Cécile Guilbert, a que se refere Löwy, por exemplo, desfigurou a compreensão de
Debord em nome de uma aproximação redutivista e fácil, que não conseguia perceber o
texto debordiano em toda a sua complexidade dialética e, diríamos nós, não alcançava,
captar em uma aproximação pobre, o movimento de inserção do texto na vida concreta
e, ao mesmo tempo, de convite e desafio ao leitor intelectualmente preparado, não
alienado que o “desmonte da máquina” exigia. (Cf.: LÖWY, Idem) Mas “a dinamite
segue sempre lá, e arrisca a explodir entre as mãos daqueles que a manipulam com o
objetivo de torna-la inofensiva.” (LÖWY, idem)

Conforme dissemos anteriormente, o texto de Debord coloca-se como uma


potência em busca de realizar-se através da obra ativa de uma leitura que não vinha e até
hoje não veio. Um autor em busca do leitor e uma obra a procura de um contexto.
Somente na conjunção dessas três forças históricas poder-se ia esperar a realização da
tarefa destrutiva da revolução debordiana na linguagem e nas formas de vida,
interdependentes e articuladas à revolução na vida cotidiana entendida em seu
movimento de transformação autoconstitutivo no rumo de uma dupla autonomia de uma
dupla interdependência: a palavra e a vida. Não apenas uma questão de estilo, mas um
problema de estilo e, muito mais, de estratégia situada no interior do próprio problema,
contra o qual se movimenta a máquina infernal criada por Debord. Problema que
70

apreende e que resolve no âmbito singular de sua recusa, no ato de criação forjado no
interior de um movimento de destruição total que é uma dinâmica de recriação integral.

Portanto, não só não faz sentido como seria antidialético tentar o desmonte da
máquina. Não é a leitura correta de um texto que não se afigura como estrutura
artificial, erigida em contraste com o movimento que trai ao tentar representar; não
como forma de representação articulada em graus categoriais hierárquicos ou em
diferenças de significantes. Tentar o desmonte das peças pressupõe a aceitação do texto
como um conjunto de peças montadas em uma estrutura autossuficiente, autocontida e
separada da totalidade da experiência social na qual deveria se inserir criticamente.
Melhor, que se insere criticamente e cuja relação problemática e dinâmica com o todo
que refuta, ao se integrar dialeticamente ao movimento de sua crise, constitui a força
fundamental que anima o texto, força que se perderia no desmonte da máquina.

Por outro lado, o texto debordiano da Sociedade do Espetáculo não constitui uma
máquina em sentido estrito. Abusamos dele ao tratá-lo como tal. No entanto a metáfora
de Löwy nos serve se adiantarmos algumas considerações de esclarecimento.

Não se pode tratar o texto como uma máquina, no sentido de uma estrutura
mecânica constituída pelas diferenças entre significantes, articulada como arquitetura
lógica, elevada acima das condições efetivas e das contradições presentes na
experiência cotidiana, como representativa abstrata delas, mas uma máquina em
movimento acoplada aos eventos aos quais se relaciona dialeticamente, de maneira que
esses eventos sejam, ao mesmo tempo negados na imediaticidade de sua apresentação
espetacular, destruídos, portanto, e elevados ao grau crítico em que sua destituição
significa a possibilidade de sua restauração plena. Uma máquina cuja dinâmica se ocupa
em contradizer o movimento imediato do falso e do ilusório construído pela ideologia e
reproduzido pela opinião.

Não se pode pretender encontrar aqui uma estrutura, pois Debord não deixou de se
contrapor a ideia da estrutura e as ideologias estruturalistas, consideradas por ele formas
da separação e concepções reféns do mecanismo alienante que se apoderou da
representação e a fez girar em torno de uma mesma lógica das abstrações não razoáveis.
Neste caso, a recusa em aceitar a validade do termo “Situacionismo” não afiguraria uma
intenção claramente anti-estrutural, uma vez que, ao nomear o movimento que
caracterizava a dimensão coletiva da ruptura em relação ao espetáculo e suas
71

determinações alienantes, a designação Situacionista – optando pelo adjetivo -


representava melhor o vínculo com a experiência concreta, com a historicidade
constitutiva do ser social, vale dizer, com a busca da associação e acoplamento da
expressão aos movimentos vitais? A opção pelo substantivo “Situacionismo”
representaria, por outro lado, a instauração do coágulo abstrato que desvincula a
linguagem da realidade efetiva, constituída pelo movimento global no qual as partes se
articulam dialeticamente ao todo. A fidelidade à efetividade da experiência concreta
implica em não compor uma linguagem apartada da totalidade do existente. Elevar a
representação acima do movimento das determinações histórico-sociais concretas
significa falsear os signos através da construção de um sistema de significantes fechado
sobre sua própria estrutura, apartados, portanto, do movimento que deveriam explicitar.
A linguagem separa-se do que deveria representar. O resultado seria a reificação da
linguagem, cuja cristalização em formas fixas e fórmulas acabadas, sujeitas a um
mesmo código de regras, acompanharia a lógica da comoditização que regula todos os
movimentos e relações no interior da sociedade capitalista burguesa.

Debord não construiu sua máquina como um ajuntamento de peças, como parcelas
articuladas, nem como um todo abstrato desvinculado da situação vivente. Mas uma
totalidade concreta caracterizada pelo arranjo dialético em que as partes e o todo
dialogam no interior de um movimento especular, ao mesmo tempo em que se integra
dialeticamente à situação concreta que elabora em texto de denso significado crítico.

Nele as partes e o todo se refletem como em um sistema de fragmentos em que


cada parcela é representativa da totalidade e se insere na abrangência do todo em que se
apresenta recolhida a parte em grau superior de configuração. Uma máquina anti-
mercante contra os mecanismos reificantes da sociedade espetacular. Uma ampla frente
de combate contra o todo da experiência empobrecida efetuada no interior da própria
experiência da pobreza totalizada. Vejamos algumas características fundamentais dela.

2.2 O plágio necessário

Le plagiat est nécessaire. Le progrès l'implique.

Lautréamont, Poésies.
72

O primeiro ato de linguagem da literatura ocidental foi a invocação da deusa em


cuja voz o poeta se amparara para buscar o solo da consciência coletiva onde medrar
seus versos. Homero inicia A Ilíada pedindo à musa que cante para ele a história da
cólera de Aquiles e os maus resultados que ela trouxe à confederação helênica que
sitiava Troia.

“Menin aeide, thea, Peleiadeo Achileos/ oulomenen, he muri' Achaiois alge'


etheke”6

(Deusa, canta para mim a cólera de Aquiles filho de Peleu, que tanta destruição
trouxe ao campo dos Aqueus)

Cantava assim o registro da memória coletiva; construía sua enciclopédia tribal


em cujos hexâmetros guardou no ritmo o saber vivo da comunidade. A literatura
ocidental começa com um plagio declarado. Isto se a medirmos segundo os parâmetros
da modernidade. Tal recurso à voz do passado o a dívida do poeta instruído pela
memória ancestral, representa um ato de inserção no movimento histórico de auto-
conservação da coletividade da qual ele é o intérprete.

O poeta canta a experiência coletiva pela qual a comunidade constitui a identidade


que a sustenta, o registro dos eventos que liga todos os seus elementos em um mesmo
processo ao qual todos se sentem integrados. O louvor da musa é a aceitação da
experiência coletiva como valor autêntico que cimenta a unidade da tribo. O plágio é
necessário, a sobrevivência o exige. A consciência de sua inevitabilidade constitui o
único ato de honestidade intelectual proclamado por quem sabe que não se pode escapar
das próprias circunstâncias. Mark Twain sabia ao ironizar o plágio inconsciente
perpetrado por Hellen Keller, quando esta foi acusada de plagiar Margaret Canby na
história infantil The Frost Fairies, quando publicou The Frost King numa revista: “Deus
meu, como é incrivelmente engraçada, idiota e grotesca essa farsa de plágio! Como se
existisse outra coisa na expressão humana que não fosse plágio! Porque basicamente
todas as ideias são de segunda mão, conscientes ou inconscientes, sugadas de um
milhão de fontes existentes no mundo.”7

6
In: http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus:text:1999.01.0133 Acesso em 21/10/2013
7
Citado por COURI, Norma Das aventuras de Pi ao plágio de Scliar. In:
http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/imprimir/52294 acesso em 20/13/2013.
73

O plágio é tão antigo quanto a escrita e, se aceitarmos a tese do analfabetismo de


Homero, ele existe antes mesmo do alfabeto, constituindo um meio pelo qual o poeta
dirige-se a sua comunidade em busca da voz ancestral que legitime seu discurso. Por
outro lado, na modernidade o discurso legítimo tem dono; é propriedade de alguém. E a
voz de quem canta só possui valor se o conteúdo e a forma da canção forem originais
propriedades de seu cantor. A propriedade intelectual e artística vincula-se ao direito de
posse privada capitalista, instituindo-a como critério do valor e limite da criação. A
mentalidade burguesa fez valer a ideia segundo a qual cada ato de pensamento e
invenção do sujeito pertence a ele, constitui uma criação original de sua própria lavra.
Destaca-se da totalidade social e a ela se contrapõe como um ponto fora da esfera.
Determina os limites da criação da mesma forma que as cercas determinam os limites
do território.

No entanto, se acreditamos que o pensamento e a criação, como revela Homero,


pertence à grande vaga da cultura humana, em cuja expressão universal se insere e da
qual extrai os elementos e as formas fundamentais que constituem seus supostos atos
privados, então devemos admitir que a propriedade intelectual nasceu como a defesa de
uma mentira construída por quem se preocupava mais com o patrimônio do que com a
humanidade. O plágio assumido como uma afronta filosófico-literária ao patrimônio
não representaria, portanto, uma tentativa elusiva de resgate da propriedade humana?
Uma verdade de milênios contra uma mentira de séculos. Um crime contra a
propriedade sobre a qual o capital edificou seu reinado e, por isso mesmo, um resgate
do humano deixado à sombra da sua própria história, quando a economia tomou posse
do território, delimitou o seu tema e passou a cantar sua única e monótona epopeia?
Antes de mais nada, um ato de insubordinação política.

Parece-nos, a propósito, muito adequada nossa menção a Homero, um rapsodo


cuja arte consistia na amarração de versos e fragmentos de diversos períodos em uma
armação verbal impressionante e absolutamente coesa e harmônica, uma vez que na
Sociedade do Espetáculo Debord constrói um texto a partir de fragmentos de outros
textos desviados, rearranjados, rearticulados em uma trama discursiva composta de
retalhos da cultura costurados pelo artífice moderno em um texto também coeso e
harmônico, um arranjo dialético e contrapontístico cuja unidade fundamental emerge da
pluralidade das vozes contrastantes, litigantes ou concordantes.
74

Assim como os poemas homéricos constituem uma “suma mitológica”, uma


enciclopédia tribal, (no dizer de Eric Havelock)8 a Sociedade do Espetáculo constitui
uma “suma contracultural”, uma obra construída de retalhos de outras obras e, no todo,
de um desvio paródico em relação ao projeto ocidental do grande sistema. Uma
enciclopédia e um antissistema. Um conjunto ordenado de recortes cuja função é
estabelecer um diálogo crítico com a tradição, através do choque contra os fundamentos
da ordem presente, dos quais a propriedade representa a principal forma de sustentação.
Um diálogo que se efetua através da reutilização, da substituição e da violação dos
elementos de uma cultura que se volta sobre si mesma e se revisa através da súmula
dialética de suas posições fundamentais. Debord sequestra os bens de um mercado
ideológico movido pelo individualismo, cuja posse material é o valor de base de uma
indústria voltada para a produção de formas de sustentação de seus próprios
pressupostos materiais. O desvio enciclopédico minimiza a autoria, subverte o
individualismo e choca-se contra o direito de propriedade. Atrai o leitor para o universo
simbólico fechado e denso de significado em cuja trama ele deve se enredar não como
um decifrador, mas como cúmplice. De Heráclito a Roland Barthes, passando pelas
referências máximas em Hegel e Marx e a tradição dialética, nada escapa á pena de
Debord, nada subtrai-se à sua verve crítica. Um Homero moderno que constrói sua
enciclopédia de fragmentos desviados pelo rapsodo melancólico que costura seus versos
crípticos em uma variedade de figuras de um todo acabado e harmônico como uma
sinfonia de vozes dissonantes.

O texto realiza pelo sequestro das mais diversas expressões da cultura moderna
uma dinâmica em que as formas particulares entram em acordo pela integração em uma
máquina de combate dialética antiideológica, cuja função de fundo, embora não menos
importante, constitui em questionar frontalmente o valor da autoria e, com ele, a forma
burguesa da propriedade privada.

O ato poético que em Homero constituía, não obstante, uma inserção no contexto
da vida da comunidade para cuja coesão o poeta contribuía com a forma e o teor de sua
narrativa, em Debord, ao contrário, constitui um ato declarado de confronto contra o
valor supremo da sociedade burguesa, aquele sobre o qual ela edificou seus muros e
protegeu suas posses: a forma petrificada do trabalho alienado cuja manutenção material

8
Confere: HAVELOCK, Eric. Prefácio a Platão.
75

e sustentação ideológica contribuem para a desarticulação dos laços sociais que


mantinham a coesão política da comunidade: a propriedade privada. Dela emerge todo o
reino das separações transformadas em sistema de necessidades governando a vida dos
indivíduos alienados como uma lei transcendente que lhes determina de cima o destino.
Em outras palavras, o espetáculo tornado regra geral das relações entre unidades
anônimas e desarticuladas. O plágio consciente é um ataque frontal à propriedade como
valor fundante e principio de sustentação da lógica da separação que movimenta o
mundo burguês. A linguagem antiespetacular para se tornar ação tem de se construir
desde o início como contramovimento no interior da regra geral que ela viola.

Debord mostra-se consciente das virtudes revolucionárias do plágio, sua marca


provocativa colocada sobre as generalidades históricas dos clichês petrificados. Atesta-o
mediante uma breve citação direta de Kierkegaard, uma das pouquíssimas vezes em que
nomeia um autor que cita ou desvia na Sociedade do Espetáculo. Talvez por encontrá-lo
inserido na provocação que brande contra a apropriação privada do mesmo, revirada do
avesso pelo desvio que arranca o fragmento do seu contexto original, desapropriando
um sedimento histórico agora fluidificado e posto em movimento pela impropriedade
da menção alusiva.

A inautenticidade é mãe da desapropriação desviante e esta leva ao confronto


contra o padrão. Funda-se aqui o “estilo insurrecional que subverte as conclusões
críticas passadas que foram cristalizadas em verdades respeitáveis, isto é, transformadas
em mentiras”. (DEBORD, SE, § 206)

Em relação à insurreição no estilo mediante o desvio compreendido como


violação das normas de propriedade, portanto, como plágio autoconsciente e, por isso
mesmo, absolutamente crítico, Debord ressalta:

Kierkegaard já fizera uso disso deliberadamente, acrescentando por sua vez uma
denúncia: “Mas não obstante as voltas e rodeios , como a geleia volta sempre para o
armário, você sempre acaba acrescentando uma palavrinha que não é sua e que
perturba pela lembrança que ele evoca” (Miettes philosophiques). A obrigação da
distância para com o que foi falsificado como verdade oficial determina esse
emprego do desvio, assim confessado por Kierkegaard no mesmo livro: “Ainda uma
última observação a propósitos de suas inúmeras alusões, todas referentes à
acusação de que, nas minhas afirmações, misturo palavras tiradas de outros. Não
nego e á não vou esconder que era deliberado. Na continuação deste texto, se algum
dia eu escrevê-la, tenho a intenção de chamar o objeto por seu verdadeiro nome e
revestir o problema com roupagem histórica”. (DEBORD. SE, § 206)
76

A inversão dialética operada pelo desvio corrige o que estava assentado sobre os
usos costumeiros, hábitos que sedimentaram a mentira comum pela repetição de sua
fórmula. Uma mentira dita muitas vezes torna-se verdade e uma verdade repetida acaba
transformando-se em mentira. Uma frase, uma formulação, uma fórmula que poderia
servir no passado, pode ter-se deteriorado pelo desgaste do tempo e deixado de valer.
No entanto, o hábito pode tê-la entronizado como verdade definitiva. Assim a mentira
origina-se da verdade. Da mesma forma, os sentidos e as formas de relação econômico-
sociais possuem validade histórica, estão determinadas pelo contexto que lhes legitima,
e este possui sua própria legitimidade demarcada pelo tempo. Constitui as formas de
relação com a propriedade, das quais a forma burguesa é apenas um fragmento histórico
tornado verdade absoluta. Contestá-lo pelo estilo ativa a potência crítica da linguagem
em sua valência dialética mais radical. Por isso é lícito afirmar com Lautréamont, “As
ideias melhoram. O sentido das palavras entra em jogo. O plágio é necessário. O
progresso supõe o plágio. Ele se achega à frase de um autor, serve-se de suas
expressões, apaga uma ideia errônea, a substitui pela ideia correta”. (DEBORD, SE, §
207) Por isso, “o desvio é a linguagem fluida da antiideologia”, a revolta tornada
expressão, vale dizer, um ato político revolucionário.

Ele aparece na comunicação que sabe que não pode deter nenhuma garantia em si
mesma e definitivamente. Ele é, no mais alto nível, a linguagem que nenhuma
referência antiga e supracrítica pode confirmar. Ao contrário, sua própria coerência,
em si mesmo e com os fatos praticáveis, pode confirmar o antigo núcleo de verdade
que ele traz de volta. O desvio não fundamentou sua causa sobre algo exterior à sua
própria verdade como crítica presente. (DEBORD, SE, § 208)

O desvio como plágio assumido destaca-se, portanto, como uma forma de ação
situada fora das regras do consenso burguês e, ao mesmo tempo, dentro das ilimitadas
possibilidades humanas. Um ato total de reversão do falso, de correção histórica pela
qual se restaura a possibilidade do significado crítico eleito como juiz do existente e seu
executor por meio do ato judicativo e revolucionário.

Não se confina o desvio ao espaço restrito do texto, portanto, mas opera uma
transcendência somente possível no interior do próprio movimento imanente de
reversão histórica das aparências, de confronto com a situação presente elaborado como
um ato de linguagem fundado pelo desvio. Situa-se mais no domínio das lutas no qual a
ação teórica desempenha o papel fundamental de confronto contra a totalidade do
existente invertido. A desapropriação pelo desvio funciona, portanto, como um ataque
77

frontal ao todo, não uma intervenção episódica e pontual. Em sua linguagem dialética
Debord sentencia:

O que, na formulação teórica, apresenta-se abertamente como desviado, ao


desmentir toda a autonomia durável da esfera do teórico enunciado, ao fazer nele
intervir por essa violência a ação que incomoda e arrasta toda ordem existente,
lembra que essa existência do teórico não é nada em si mesma. Só se pode conhecer
sua verdadeira fidelidade pela ação histórica e pela correção histórica. (DEBORD,
SE, § 209)

Tal correção histórica que o desvio promete e realiza só poderia efetuar-se sobre a
base daquilo que se encontra desvirtuado ou sobre o que falsamente impera como
fundamento de uma ordem de coisas que não pode revelar seus pressupostos sobre os
quais assenta seus resultados perversos. Não basta apenas dizê-los, é preciso corrigir
também o dizer rearticulando-o conforme novas regras do jogo dialético e, ao mesmo
tempo, assentá-lo sobre a ação revolucionária, pela qual a violação da forma representa
e realiza a violação do valor de base da inversão espetacular.

2.3 A propriedade desnecessária

A crítica do trabalho é uma declaração de guerra contra a ordem dominante, sem a


coexistência pacífica de nichos com as suas respectivas coerções. O lema da
emancipação social só pode ser: tomemos o que necessitamos ! Karl Marx, O
Capital, Livro I, cap. I, A mercadoria

O primeiro recorte material da vida sobre o qual se edificou o direto burguês foi a
propriedade privada. Sobre ela construíram-se todas as barreiras que isolaram os
homens e os impediram de apropriar-se de si mesmos em liberdade e contato direto com
a totalidade da vida. No recorte que delimitam as cercas, nas cancelas que fecham as
entradas e impedem as saídas trancaram-se todas as formas de contato humano efetivo,
isolando-se os afetos em nome de um afeto possessivo, da necessidade imperiosa do ter
que, de agora em diante, tinha de ser resguardada, protegida, defendida pela lei. John
Locke é o primeiro profeta do mundo que se fecha sobre a propriedade privada; o jus
naturalismo moderno a primeira naturalização de uma espécie social de roubo, de
apropriação real pela desapropriação virtual futura de todas as possibilidades de relação
realmente humanas.
78

De acordo com Locke assentou-se a ideia que teria longa vida na história da
sociedade burguesa, animando os desejos e direcionando os projetos de todas as pessoas
que, doravante, deveriam viver em função do ter e organizar seu destino conforme o
aumento da posse de bens e mercadorias. Para Locke, que resume todos os principais
argumentos em sustentação ao direto de propriedade privada baseado no valor natural
da posse e não em sua relatividade social, a propriedade é natural e benéfica, não apenas
para o proprietário, mas também para o conjunto da humanidade. Conforme um
argumento difícil de entender, defende que “aquele que se apropria duma terra, mercê
do seu trabalho, não diminui, antes aumenta, os recursos comuns do gênero humano.”
(LOCK,. 1994, p. 30) Sustenta ainda que a propriedade confere a felicidade, e a maior
felicidade coincide com o maior poder: “A maior felicidade consiste, não em usufruir os
maiores prazeres, mas em possuir as coisas que produzem os maiores prazeres.”
(LOCKE, 1994, pp. 30-36)9 Desta forma se acha definido aquilo que Leo Strauss
chamou de “hedonismo capitalista”. (TOUCHARD, História das ideias políticas, P
34.).

Por outro lado, devemos notar que a delimitação do espaço, simultânea a criação
do território ocupado, realiza materialmente a grande estrutura psicogeográfica de
domínio do corpo e, por extensão, de controle da consciência. Pois a consciência
projeta-se do corpo como sua expressão mais elevada e a ele está vinculada
estreitamente como sua forma imaterial. O que o corpo sente a consciência experimenta
e as limitações materiais são as suas próprias fronteiras delimitadas em barreiras diante
das quais o sentimento de si retrocede ou experimenta o limite inatural e histórico como
se este fosse lei natural. Sobre o isolamento dos corpos e o, consequente sentimento de
posse, edificou-se o reino da mercadoria, o reino burguês da apropriação privada.

Sobre as formas da propriedade privada erigiu o capital o seu mundo, sobre o


mundo e a vida tornados mercadorias; e a mercadoria o grande herói do qual se
deveriam doravante cantar as glórias.

Neste enquadramento da vida, da percepção e do pensamento foram demarcadas


as formas de ser e conhecer. Tanto que uma das maiores fixações do pensamento

9
Ao leitor interessado em acompanhar as ideias da Locke sobre direito civil, e conferir o que aqui
argumentamos, convido-o a leitura do ensaio: Concerning Civil Government, second essay. Alerto que
usamos aqui a edição anotada por Alexander Campbell Fraser, da Oxfor University Press, quinta
impressão, 1994.
79

burguês foi com as regras metodológicas para a delimitação territorial das ciências, das
filosofias e das artes. Sob o império do capital imperou as divisões e a alienação fez a
sua morada entre os homens.

De fato, o século XX caracterizou-se, no domínio das ciências humanas, como a


época da “lógica pura” de Edmund Husserl, da “economia política pura” de Leon
Walras, da “política pura” de Karl Schmitt e da “teoria pura do direito” de Hans Kelsen
e o Círculo de Viena.10

No campo da epistemologia, procurou-se demarcar o domínio da metafísica, da


religião e da ciência; na psicanálise a totalidade do ser social foi reduzida ao impulso
sexual e as artes se subdividiram em movimentos de vanguarda ou de retaguarda que
reivindicavam cada qual para si o domínio da criação e da realização estética. O reino
das divisões da qual oferecemos aqui um pálido exemplo edificou-se sobre a base
material do “trabalho estranhado” e este forneceu suporte ontológico para a apropriação
privada dos meios de produção, bem como para as divisões materiais que passaram a
vigorar como lei de ferro a exercer seus influxos perversos sobre a totalidade da
experiência social. Quando se aceitam as fronteiras como naturais é quando a
consciência se deixa contaminar pelas regras da separação que afastam o homem da
experiência integral que lhe conectava com as forças da vida.

No entanto, a separação é um movimento histórico do ser social determinado pela


necessidade deste construir-se a si mesmo, no caminho que liga o vazio do nada à
possibilidade do ser, através das mediações do trabalho, dos instrumentos do trabalho e
da inteligência projetiva. A alienação radica-se assim na própria constituição do homem
como ser social, determinando suas formas de ser e de conhecer. Não obstante, se é
verdade que através do trabalho alienado o homem tem a oportunidade de se deparar
com sua subjetividade objetivada e, portanto, materializar-se através da projeção de sua
consciência sobre a natureza, no trabalho estranhado, quando a alienação torna-se
posse privada pela destituição de si e afastamento do outro, o homem nega-se a si
mesmo no próprio ato de se afirmar como sujeito.

10
A necessidade de pureza metodológica no trato com um objeto cuja natureza havia sido
ontologicamente demarcada e isolada de qualquer contaminação tornou-se o pressuposto fundamental
subjacente a todas as construções teóricas que servirá de base argumentativa à crítica virulenta que um
Hans Kelsen, por exemplo, endereça a Smend e aos neo-hegelianos em seu opúsculo combativo O estado
como integração.
80

O estranhamento e a propriedade privada fixam as formas do separado e


demarcam os territórios da experiência, das relações sociais e das realizações humanas
como segunda natureza. Fixam-se assim as bases ilusórias da separação como condição
ontológica. O mundo da existência está invertido e sua projeção material apoia-se sobre
a propriedade privada e seus fantasmas. No interior do circuito de fragmentos orbitando
as leis da exclusão, da demarcação e da posse habita o homem com seus sentidos
divididos e com sua necessidade de estabelecer falsas barreiras, limites improváveis ou
demarcações impossíveis. Cria-se o espaço onde de agora em diante torna-se impossível
à realização do projeto humano como tarefa do ser social e, portanto, ao contrário do
que pensava Locke, a felicidade não se põe mais como possível ao homem. A felicidade
não como gozo material individual, não a felicidade ilusória da posse que só amplia o
desejo aumentando a privação. Pois com o aumento da privação aumenta-se a
insatisfação e nesse círculo vicioso delimitado pelo desejo de ter do individualismo
possessivo burguês a felicidade é a primeira coisa que se perde.

No entanto, com o controle ideológico do valor absoluto da propriedade privada


que se impôs sobre as formas de sentir e de pensar, acredita-se que somente dentro dos
domínios das definições, das criações de barreiras e da defesa do território ocupado,
sejam pelas armas sejam pelos argumentos, se está em casa. Os limites da suposta
felicidade coincidem com os limites do sentido, ambos definidos pelo que se possui. Os
muros nos protegem dos inimigos externos que nos ameaçam a propriedade. Mas eles
também determinam o espaço em que nossa sensibilidade confina-se ao seu próprio
aprisionamento e o reconhece como fundamental à auto-realização.

Somente nos limites do espaço ocupado, tanto o espaço geográfico quanto o


espaço psicológico, dentro de cujas determinações põem-se como significativas nossas
crenças, é possível orientar-se. As deambulações nômades da deriva, que se orientam
pela reconfiguração do espaço além da ideia restritiva da posse, da ocupação planejada e
da vida delimitada, não fazem sentido para a mentalidade burguesa; não fazem parte de
sua ideia de felicidade. Portanto, para além da felicidade e do significado burguês é
preciso lançar-se na conquista de espaços inabitados dentro do espaço realmente
construído. Debord enxerga aqui a possibilidade de se reconfigurar o espaço intelectual
pelo desvio, que é uma deriva psicogeográfica através da demolição do valor burguês da
propriedade privada e a consequente destruição do sentido burguês ligado ao limite
planejado pelo impulso egoísta da posse privada. Reconfigurar a influência do espaço
81

pela deriva psicogeográfica e escapar dos limites ideológicos fixados pela posse do
domínio do significado e das estruturas do sentido: um ato de linguagem de dimensões
políticas.

Pois a influência do espaço ocupado como posse privada cria a ilusão do território
como limite do sentido e com ele a ilusão do significado restrito ao campo temático das
classificações. O que sustenta essa ilusão do limite senão as “leis de cercamento”
tornadas forma da consciência e determinações do espírito? Ora, não é difícil perceber
que a própria arte se deixou apanhar neste sistema de demarcações em que necessitam
estabelecer limites para se determinar a posse do sentido. E aqui esbarrou na própria
impotência. Alfonso Berardinelli demonstrou à ideia fixa das estruturas o vazio radicado
em sua impossibilidade. Na sua brilhante crítica ao livro de Estrutura da lírica
moderna, pondera:

Para conhecer as fronteiras de qualquer região é preciso antes ter uma ideia dessa
região. Dito de outro modo: é o conhecimento das fronteiras que nos permite
entender de que território estamos falando. Com a poesis, essa discussão dos
fronteiras e dos limites se torna um b belo cipoal. De fato, como todos sabem,
sabemos e não sabemos o que é a oesia e de que falamos ao falar de poesia.”
(BERARDINELLI, 2007, P 13)

E então vem o essencial: “Definir a poesia, ou seja, traçar-lhe as fronteiras, foi um


dos empreendimentos mais apaixonantes e malogrados do pensamento estético. Há
anos, eu diria há décadas, tal empreendimento foi abandonado.” (BERARDINELLI,
2007, P. 13) No entanto, condicionados por nosso sentimento territorial, continuamos
esperando definir, estruturar, normalizar, formatar nossos empreendimentos a fim de
lhes dar a legitimidade que somente a especialização, a delimitação temática, vale dizer,
a posse de um domínio de investigação situado dentro do espaço que devemos ocupar,
que nos pertence e que defendemos, pode produzir. Mesmo que este espaço seja uma
projeção de nossos próprios juízos de valor.

Terry Eagleton argumentou com muita propriedade na introdução de sua Teoria


da Literatura sobre a impossibilidade de se chegar a uma definição do território
literário, ao examinar as muitas tentativas históricas de se definir o que é a literatura. O
que o levou a concluir pela arbitrariedade das definições sustentadas apenas pela
vontade de construir conceitos e com eles delimitações precisas. Estas se amparam em
juízos de valor, que esperam encontrar no que sustentam apenas o que colocaram ali de
antemão. Quer dizer, as limitações ideológicas das avaliações são constantes a
82

determinar o que se procura colocar como legítimo antes mesmo de se verificar a


legitimidade do que se crê. Pode-se citar a conclusão de Eagleton como reforço do que
se almeja demonstrar aqui. Escreve ele:

Se não é possível ver a literatura como uma categoria “objetiva”, descritiva,


também não é possível dizer que a literatura é apenas aquilo que caprichosamente
queremos chamar de literatura. Isso porque não há nada de caprichoso nesses tipos
de juízos de valor: eles têm suas raízes em estruturas mais profundas de crenças, tão
evidentes e inabaláveis quanto o edifício do Empire State. Portanto, o que
descobrimos até agora não é apenas que a literatura não existe da mesma maneira
que os insetos, e que os juízos de valor que a constituem são historicamente
variáveis, mas que esses juízos têm, eles próprios, uma estreita relação com as
ideologias sociais. Eles se referem, em última análise, não apenas ao gosto
particular, mas aos pressupostos pelos quais certos grupos sociais exercem e mantêm
poder sobre outros. (EAGLETON, 2003, P 22)

Se tudo escapa à sensibilidade burguesa que jamais consegue construir o mundo


puro e bem definido que sua vontade de ordem impõe, então nos parece que esta mesma
vontade é um subproduto das relações alienadas que governam as mentalidades sob o
capitalismo. Todas resignadas e submissas à propriedade e seus limites territoriais. A
mentalidade burguesa é, portanto, territorialista. Encontra-se confortável apenas quando
tranca as portas da casa deixando os inimigos e os perigos de fora. Assusta-se, no
entanto, quando percebe que inimigo está dentro de casa, que ela o transportou junto
com a poeira de seus sapatos e assim a contradição começa a minar a confiança
burguesa em seus próprios projetos.

A desilusão deve-se instaurar e com ela o início da desconstrução das barreiras


ilusórias e das falsas representações. Inicia-se aqui o desvio, e ele realiza um ataque
frontal à propriedade privada: forma final do território dentro do qual o capital ergueu
sua morada. É preciso então desterritorializar o território, romper as barreiras
artificialmente impostas pela vontade de posse que tornou seu próprio interesse no
princípio de legitimação de seus negócios sob o capital. O Estado moderno, esse gestor
dos projetos burgueses, surge como garantia do cumprimento do direito, move seus
instrumentos, suas mediações legais, ideológicas, institucionais e materiais em proveito
de interesses privados. Assim a propriedade privada governa todos os movimentos do
jogo e o vencedor já está definido desde o início, porquanto as regras que governam os
movimentos geram os limites dentro dos quais se definem os lances legitimados por
quem criou as regras.

A propriedade comanda não só os anseios materiais, mas põe-se como fim para o
qual se dirigem todos os esforços no âmbito do mundo burguês. O que todos sonham,
83

aquilo porque se luta, o telos universal que governa todos os desejos. Desejos
impróprios mediados pelo modelo que se põe a todos como diretriz absoluta: o objeto, a
posse do objeto.

Desta forma a consciência se deixa apanhar na teia das ilusões de posse abrindo
espaço à realidade do controle. De qualquer forma, a propriedade privada, resultado do
trabalho alienado e forma objetiva da separação, é o fundamento e o valor maior do
mundo do espetáculo. A propriedade privada é espetacular em sua própria condição
originária e espetaculariza-se cada vez mais à medida que as regras do capital impõem-
se como determinações de ferro.

O ataque à propriedade privada é uma afronta ao fundamento da sociedade


capitalista sob a forma de desacato ao seu máximo valor e a sua forma de sustentação
universal. Uma subversão inaceitável ao espetáculo porquanto o fere em sua base
material a forma universal de sua constituição normativa.

"[...] é não admira mais." Sobre estado democrático de direito e cinismo: "O código
jurídico está subordinado ao código político, o direito está subordinado à economia,
o Estado está subordinado à atividade econômica – com as consequências já
insinuadas para os economicamente fracos, quer dizer, para a maior parte da
população. Então já não admira mais que a reivindicação de direitos de cidadania
por parte dos subcidadãos excluídos, subintegrados, seja identificada constantemente
com subversão”. (Friedrich Müller,Quem é o povo, P 95-96)

O desrespeito à propriedade privada constitui, portanto, um desacato à totalidade


alienada da vida burguesa. A experiência social alienada: conforme Debord “o alfa e o
ômega do espetáculo” sustenta-se sobre seu solo material: a propriedade privada, cuja
posse inaugura o domínio da ideia e do sentimento de posse como mecanismo diretor da
sociedade movida pelo econômico.

O ataque à propriedade privada é o primeiro movimento de uma estratégia que


procura demolir as bases de sustentação do mundo do espetáculo sem deixar-se apanhar
por sua lógica. Assim Debord herda de Lautréamont a diretriz prática de seu
empreendimento filosófico-poético: “o plágio como necessário”. Conforme cita na
Sociedade do Espetáculo:

“Les idées s'améliorent. Le sens des mots y participe. Le plagiat est nécessaire. Le
progrès l'implique. Il serre de près la phrase d'un auteur, se sert de ses expressions,
efface une idée fausse, la remplace par l'idée juste”. (DEBORD, A Sociedade do
Espetáculo, § 207. Citação de Lautréamont, Poesies.)
84

As alusões sem aspas, o desrespeito à propriedade privada intelectual como forma


de violação à forma burguesa de proteção e isolamento do território guardado como
posse. Destituir a posse do propósito originário e desviá-la de seu legítimo dono: eis um
efeito político, uma dimensão ativa do desvio como função social da crítica. Não
teórica, mas teórico-prática.

O plágio necessário, consciente de sua função revolucionário abre à crítica o


terreno da possibilidade de criação pelo reaproveitamento do dado. Uma forma de violar
a propriedade privada e, por intermédio de tal violação, estabelecer um campo de
diálogo em que se corrige, se avança, se cria e se recria novas perspectivas e sentidos a
partir do desvio das antigas formas.

A concepção justa serve-se da ideia injusta e a utiliza como instrumento de sua


própria crítica. Assim “Le détournement n'a fondé sa cause sur rien”. (DEBORD, SE, §
208)11 Uma grande astúcia da dialética.

O plágio não é um limite da inteligência criativa, uma necessidade de cópia por


não se ter o que dizer de próprio. Ao contrário, é o início de uma forma de dizer que se
configura em sua própria maneira de confrontar as expectativas e os interesses movidos
pela força da separação.

O desvio como ato político possui sua razão fundadas sobre as desrazões e as
ilusões dos proprietários violados. O desrespeito à propriedade privada constitui um
“ato de fala”, uma maneira primeira de “fazer coisas com palavras”, vale dizer, de tirar
as palavras do isolamento do discurso formal separados dos movimentos vitais e,
através da própria reorganização dos significantes, executar na forma desviada uma
ação crítica situada no cerne dos processos vitais. Um processo de superação criativa
posto no próprio âmbito da proposição reconfigurada. A proposição reutilizada pelo
plágio consciente vira-se muitas vezes contra o próprio valor que a constitui e o reverte:
destrói o reino da apropriação privada da qual era refém.

O plágio torna-se uma forma frontal de ataque ao valor burguês supremo da


propriedade privada através da desapropriação de seus elementos ideológicos fundantes
e fundamentais. Michael Löwy propõe que para Debord as fontes não têm grande

11
Desvio de Stirner , The Ego and his Own (O ego e sua propriedade) : “Eu fundei minha causa sobre
nada.”
85

importância, pois, como mestre e teórico do desvio, “Debord as trata como os bandidos
da estrada tratam os bens de suas vítimas. Ele arranca as passagens citadas de seu
contexto para integrá-las em seu discurso, o que lhes dá assim um sentido novo.”
(LÖWY,A estrela da manhã, P 2002. Pp 85.)

Um sentido, diríamos, criado pelo roubo. Procedimento que jamais seria aceito
dentro das regras que regulam a propriedade privada artística e intelectual na sociedade
burguesa. Regras que Debord conscientemente despreza e viola com um fim muito
específico: criar significado através da subversão das normas. Portanto, assentamos que:

- o desvio constitui um ato de desobediência civil;

- implica no desrespeito e, portanto, na violação de uma regra supostamente


consensual do direito civil; um ato de rebeldia e insubordinação;

- resulta na composição de um texto cujo estilo traz como marca distintiva de sua
consequência pragmática a organização dos signos segundo critérios anti-capitalistas.
Quer dizer, o próprio estilo é uma afronta e, ao mesmo tempo, uma ruptura em relação à
sociedade mercantil que se legitima sobre o direito de posse privada.

O desvio questiona no próprio estilo o direito de propriedade. Estabelecendo


regras não mercantis para a organização sintática da linguagem, resulta na conquista de
um domínio estético-filosófico à margem das diretrizes capitalistas do mundo burguês.

O texto realiza em sua constituição como máquina de guerra um primeiro efeito


destrutivo: a quebra do contrato social burguês por meio de um estilo que desafia as
regras e se organiza fora dos domínios territoriais do universo possessivo e
individualista do império do capital. A própria organização dos signos desviados coloca
em questão e desafia as bases de sustentação material do mundo burguês e as supera:
onde não vigora o direito de propriedade, base e fundamento do direito civil capitalista,
não valem as regras do espetáculo, porque não mais se verifica no plano semântico e
sintático os critérios legitimadores da alienação do trabalho e seu resultado material: a
propriedade privada.

Se o texto não respeita as normas vigentes em defesa da propriedade; se as viola


frontalmente e as supera e, ao superá-la, funda um novo domínio de significação que se
ampara em uma nova regra de organização do sentido, então o desvio realiza-se como
86

ato político. O que equivale a dizer que o progresso em direção à destruição das bases
de sustentação do mundo burguês efetiva-se como diálogo crítico, como estilo dialético
que resulta em combate material na direção da constituição dos fundamentos possíveis à
reconstrução da experiência em um território não mais refém das determinações
burguesas. O ataque à propriedade privada como base de sustentação não só dos
referenciais jurídicos, mas dos valores burgueses constitui uma ação de dimensões
políticas que se efetua como progresso em vista da conquista prática posta no plano
teórico-crítico da emancipação.

Uma intervenção atual e uma promessa de futuro. Por isso o plágio é necessário e
o progresso o exige. E o plagio deixa de sê-lo se é conscientemente elaborado como um
ato de criação, vale dizer, se ele dota-se de sentido por integrar-se a um plano maior de
combate total que tira, das possibilidade do jogo, um tipo de gratuidade impossível no
âmbito da experiência poética sob as regras do individualismo possessivo burguês.

Sai-se do valor de troca para entrar-se no território da gratuidade do jogo, da


potlatch, que é também zona de guerra, área de conflito em que os territórios são
constantemente violados e as referências desviadas de seus sentidos. Os jogos de guerra
anti-espetaculares.

2.4 Jogos de guerra: o desvio como Kriegspiel

Le conflit est à l'origine de toutes choses de son monde12

Guy Debord

Pois é preciso divertir-se, disse o marquês; só isso é real na vida.

Stendhal

O desvio, com sua base econômica e jurídica, bem como suas inflexões políticas,
por ligar-se aos procedimentos da arte e, fundamentalmente, por se caracterizar como
máquina de guerra, insere-se nos domínios do jogo, do qual herda a dimensão lúdica e

12
Détournement de Héraclito, Fragmento 53 : “A guerra é o pai de todas as coisas.”
87

hedônica das ações sociais desprovidas de valor de troca, portanto, carregadas de valor
vital. E a dimensão lúdica é extremante densa de sentido humano e rica de significado
porque, nas palavras de Mondin, “compreende inteligência e vontade, ação e habilidade,
mas, ao mesmo tempo, supera o conhecer, o querer, o agir porque implica também em
alegria, satisfação e liberdade.” (MONDIN, 1980, p 216.)

“Na esfera lúdica”, observa Mondin, “revela-se a complexidade e ao mesmo


tempo a harmonia do ser humano. Nela põem-se em movimento todas as faculdades,
sem subordinações, sem submissões, em espontânea coordenação, e em vista de uma
alegra auto-realização do sujeito.” (MONDIN, 1980, p 216.) No contexto de uma
sociedade marcada pelas subordinações, pelo controle invisível de uma vontade
impropria e comum, pelo trabalho como sacrifício cotidiano – conforme nos convenceu
Marx em seu manuscrito de 1844 sobre o trabalho alienado13 – de onde toda a
possibilidade de auto-realização do sujeito foi expulsa, devemos compreender com
Debord o quanto o desvio, em sua dimensão lúdica, possui de revolucionário; o quanto
o procedimento de livre interferência do sujeito em fragmentos e obras, em textos
considerados canônicos, da mesma forma que em objetos da cultura de massas, carrega
de provocação como um ato de insubordinação e de declaração de guerra contra a
sociedade espetacular: aquela que vive da subordinação, da exclusão e da falta de
espontaneidade cristalizada em movimentos fastidiosos governados por regras banais e
protocolares, alheias à liberdade criativa. Pois o lúdico se define, em princípio, pela
mera satisfação na ação, não pela sua utilidade, nem tampouco pela beleza ou pela
bondade, mas como simples explicitação da própria atividade, como momento da
realização mais genuína de si mesmo. (MONDIN, 1980, p 216.) Supera pela ação livre
as limitações estéticas e as barreiras morais que escravizam a sensibilidade e o sentido
autêntico dos valores pela sua submissão a preconceitos culturais.

Com o jogo sai-se da artificialidade das regras convencionais e vazias, pelas quais
se repetem indefinidamente as mesmas formas sociais de ação preestabelecidas, as
mesmas fórmulas padronizadas e se começa a adentrar na vida em sua dimensão mais
verdadeira e plena.

13
Confere: MARX. Manuscritos econômico-filosóficos. Principalmente o fragmento intitulado, na
excelente tradução de Jesus Ranieri, “Trabalho estranhado e propriedade privada”. São Paulo:
Boitempo, 2010, pp. 79-91.
88

Antonin Artaud, de quem Debord certamente carrega influência, escreveu em1935


para Jean Luis Barrault: “A tragédia do palco não me basta mais, vou transportá-la para
a minha vida.” (ARTAUD, Citado por COELHO, P 14)

A exigência de superar a arte para invadir o território da vida, nas palavras de


Teixeira Coelho, “ destruir a arte para tocar na vida” (COELHO, p 14) é a única forma
aceitável de arte, a única maneira pela qual a arte deixa de ser atividade mercantil
escrava do valor de troca para restaurar sua vinculação ontologicamente essencial como
o valor de uso: único critério pelo qual a obra supera o isolamento em que foi
abandonada e encontra sua verdadeira função expressiva e sua carga crítica articulada
aos princípios da revolução. Pois se a arte não é revolução ela não pode ser arte, da
mesma forma que ela não pode alimentar a ilusão de criar se não se movimentar
constantemente na direção de sua própria destruição, das bases que a engessam
impedindo de construir-se em perpétuo “devir dos signos em deriva” que caracteriza a
dialética em sua dimensão poética.

Para recuperar a mobilidade e, com ela, alcançar o campo movediço das


solicitações da vida a arte deve ser capaz de colocar seus elementos em constante
dinâmica construtiva, para a qual é necessária uma dose sempre renovada de destruição.
A destruição e a criação constituem elementos incontornáveis da dinâmica do prazer
com a qual a arte, por estabelecer sempre novas regras, por se pautar pelo desvio do
consenso, pelo estabelecimento de princípios que jamais se firmam no solo do mesmo,
renova-se como jogo ao se propor como guerra. E o desvio, além de ser, em principio,
um ato político de linguagem, por integrar à expressão a dimensão lúdica da criação
autônoma das determinações do sentido, constitui-se como jogo e, na medida em que
todo jogo compõe o território de um agon pelo qual as posições de combate são claras e
o inimigo torna-se visível, propõe-se como “máquina de guerra”. A ligação inequívoca
entre o jogo e a guerra é evidenciada por Huizinga em seu livro Homo Ludens. Escreve
alí que

Chamar “jogo” à guerra é um hábito tão antigo como a própria existência dessas
duas palavras.(...) O mais provável é que em toda a parte a linguagem tenha definido
as coisas dessa maneira, a partir do momento em que surgiram palavras para
designar jogo e combate. (...) e não há dúvida que toda luta submetida a regras,
devido precisamente a essa limitação, apresenta as características formais do jogo.
(HUIZINGA, 2010, p. 101)
89

Debord sabia da importância do jogo de combate e da guerra lúdica como


elementos constitutivos de seu desafio às regras e ao consenso burguês. Pois se este era
fundado pela aceitação passiva das leis do mercado, das normas institucionais, vale
dizer, das regras que padronizam e nivelam as relações sempre passivas das vontades e
suas fórmulas rebaixadas à forma das mercadorias, aquele se caracterizava pelo desafio
frontal ao controle institucional, às hierarquias artificiais e ao domínio do consenso
coletivo sobre a liberdade do indivíduo. De forma provocativa Debord declara no
Panegírico:

Estudei, portanto, a lógica da guerra. Mais que isso, consegui, já há muito,


evidenciar o essencial de seus movimentos a partir de um quadro muito simples: as
froças que se enfrentam e as necessidades contraditórias que vão se impondo às
operações de cada uma das partes. (DEBORD, 2002, p. 64)

As operações a partir da contradição, da superação das posições em combate, do


movimento ordenado das peças, da fluidificação do que se encontrava reificado, da
dinamização da máquina a partir da reorganização dos princíios do movimento. Tudo
isso constitui um jogo e, por isso mesmo, guerra total às condições dadas. O Kriegspiel
debordiano: a essência lúdica da linguagem antiespetacular que se realiza peloa desvio.
“As surpresas desse Kriegspiel”, admite Debord, “parecem inesgotáveis” (DEBORD,
2002, idem) e reside exatamente nas infinitas possibilidades do jogo e da guerra que se
põe a eficácia da arte como potencialização da filosofia. A subversão das regras, a
mudança do valor dos signos, a criação de um campo de forças em que pelo combate
dos signos decide-se a vida da expressão constitui uma das virtudes maiores da astúcia
da dialética que devemos reconhecer.

Então, a violação do controle pelas normas do acordo coletivo e impessoal do


mercado revela-se essencial ao ímpeto revolucionário e deve-se constituir como jogo.
Jogo que estabelece novas regras e, ao fazê-lo, desvia do sentido comum os antigos
elementos.

A desapropriação da propriedade privada pelo suposto plágio dá-se, de fato, como


realocação dos elementos pela sujeição de suas relações a novas regras. Com o
deslocamento do domínio das regras funda-se novas possibilidades de sentido. O
sentido emerge da relação estabelecida quando os antigos elementos são desviados de
acordo com novos critérios de organização. Funciona assim como as cartas do baralho
no exemplo de Wittgenstein: os naipes são sempre os mesmos, mas seus valores mudam
constantemente em função das regras do jogo no qual se inserem. Um naipe não vale
90

pelo que é, não possui um sentido pré-definido de uma vez por todas. Ao contrário,
ganha sentido exatamente ao se inserir no contexto de novas relações. Desta forma a
palavra espetáculo assume novos matizes semânticos ao ser inserida em uma frase
desviada de Marx, assim como o bigode de Nietzsche ganharia novo sentido se fosse
aplicado sobre uma figura de Hegel.

Da mesma maneira que com um mesmo maço de cartas se podem fazer tantos
jogos quanto se queira, segundo as regras que se decide criar, podemos com os mesmos
signos linguísticos desenvolver muitas formas diferentes de comunicação e de ação,
modificar ou criar novas sentidos, de acordo com as regras que se decida inventar, sob
as quais os signos desviados assumem novas possibilidade de significação.

Como exemplos de jogos linguísticos, Wittgenstein relembra o dar ordens, o


descrever um objeto ou um acontecimento, o formular ou provar uma hipótese, o
recitar, o cantar, perguntar, agradecer, cumprimentar, orar. Em Philosophical
investigations ele afirma que a linguagem é similar a determinados instrumentos
contidos na mala de um operário. Como não existe um uso fixo para um
instrumento, não existe um uso fixo e específico para as palavras. (MONDIN,1980,
p 209)

A perspectiva de Debord é mais rica que a de Wittgenstein, embora se relacione


marginalmente com ela. A consciência das palavras como potências sociais que
significam não por referir-se passivamente a ideias e objetos, mas, principalmente, por
suas relações políticas, quando forças sociais delas se apropriam e definem os rumos de
seu sentido através de atos do poder, constitui um avanço indiscutível em relação à
filosofia da linguagem de Wittgenstein. Lemos em seu All the King’s men:

As palavras trabalham para a organização dominante da vida. E contudo, elas


não estão robotizadas; para a infelicidade dos teóricos da informação, as palavras
não são elas mesmas “informacionistas”; nelas, manifestam-se forças que podem
frustrar os cálculos. As palavras coexistem com o poder numa relação análoga
àquela que os proletários (no sentido clássico, tanto quanto no sentido moderno
deste termo) podem manter com o poder. Empregadas durante quase todo o tempo,
utilizadas em tempo pleno, em pleno sentido e em pleno não-sentido, elas
permanecem em algum lado radicalmente estrangeiras. (DEBORD. All the King’s
Men.)14

A descoberta da dimensão lúdica da linguagem nos permite, por outro lado,


libertar, pela ação construtiva, as palavras de sua prisão expressiva, de seus vínculos

14
Este texto, publicado na revista Internacional Situacionista (nº 8, janeiro de 1963, p. 29-33) é, segundo
Emiliano Aquino, teoricamente um dos mais ricos documentos da reflexão situacionista sobre a
linguagem. Utilizamos o texto publicado nas Oeuvres de Debord da Gallimard, 2006, pp. 613-619. Para a
citação servimo-nos da tradução de Emiliano Aquino conforme publicada no site “Poiesis, trabalho e
cultura”, endereço eletrônico: http://emilianoaquino.blogspot.com.br/2008/01/all-kings-men.html, acesso
em 18/02/2012.
91

ideológicos com o poder, de seus limites referenciais e fazer coisas com elas,15 inseri-
las no mundo das ações e das relações sociais dentro do qual se assumem como forças
reativas ou transformadoras, conforme o uso que lhes dermos, melhor dizendo, de
acordo com o contexto em que as incluímos como manifestações de potências reais em
relação de combate ou de submissão. Palavras desempenham ações não representam
apenas ideias e a ação combativa é a primeira potência revolucionária do desvio.

A mudança das regras, essencial ao jogo dialético do desvio, opera uma mudança
do sentido. Assim, a forma dialética da proposição desviada e do texto psicogeográfico,
desvia os elementos de sua antiga órbita normal, pela reorganização da lei que ordena
sua relação, cuja eficácia sintática incide sobre o significado e o reconstrói segundo um
novo sentido. O efeito decorre da suspensão temporária das regras, que vigoram em
concordância com as normas públicas, e a consequente abertura de um espaço lúdico à
margem dos parâmetros burgueses. No interior desse espaço um novo código que
preside às relações entre os signos é criado. No entanto, tal código não possui valor
universal e nem pode ser indiscriminadamente reutilizado, sob pena de tornar-se mais
uma regra restritiva-padronizante, o que significa que concorreria para a sua própria
anulação. Como na música atonal moderna, o código relativo é criado em conjunto com
a construção da obra particular, valendo apenas para a determinação do sentido de seus
elementos singulares, segundo uma forma de organização imanente que extrai de seu
próprio movimento constitutivo as regras que presidem a sua significação.

A regra deixa de valer fora do espaço particular determinado pela atividade


criadora. Portanto, o desvio constitui-se como atividade poética original que deve ser
pensada e executada no âmbito de resolução dos problemas particulares que cada obra
ou conjunto de elementos desviados colocam ao crítico-criador. Constitui uma técnica
que, enquanto jogo, deve ser capaz de criar as próprias regras no movimento mesmo de
construção de seus objetos desviantes. Regras que, no entanto, não resultam da bem
planejada organização jardineira da razão espetacular. Cada proposição ou obra
realizada não serve de parâmetro senão para a compreensão de si mesma. Não se pode
transpor o espaço das regras próprias e aplicá-las a qualquer outra peça desviada. Vale

15
How to do things with words é um importante livro de John L. Austin, no qual se procura entender os
significados das palavras em um contexto pragmático em que estas se revelam como potências ativas e
não apenas como formas de expressão de significados. Austin entende as palavras no âmbito das relações
humanas sociais e caracteriza a dimensão ativa da linguagem com a sua teoria dos atos de fala (speech
acts). Neste contexto é possível perceber as palavras como atos do poder, como formas que trabalham
ativamente para a organização dominante da vida.
92

ressaltar que Debord compôs apenas uma obra utilizando a técnica de desvio do
repertório filosófico no intuito de, pela mediação dialógica do sistema, criar um novo
contexto de significação para a filosofia a partir da destruição da filosofia-mercadoria.
Nenhum outro desvio foi tentado como obra acabada, em que se desvia o repertório da
filosofia em função da reconstrução de sua verdade, porque o que se queria realizar já
estava feito. A repetição do procedimento em outro texto acabaria por desautorizar o
procedimento desviante como intervenção singular capaz de revitalizar o discurso
filosófico e realizar a filosofia. O Panegírico, por exemplo, foi escrito conforme um
plano completamente distinto do plano utilizado na Sociedade do Espetáculo, assim
como La Planète malade. Cada realização constitui um universo definido por suas
próprias regras, composto de acordo com seus próprios parâmetros de articulação
interna. Cada obra compõe um jogo com-contra o que se pretende combater, em favor
do que deseja alcançar e, fundamentalmente, constrói meios para a autorealização e o
gozo de um sujeito reconstruído através de sua própria invenção. Regras que se
impõem através da própria dissolução de todas as regras. Um tipo de subversão total
que procede pelo movimento rearticulado dos signos, todos expressões verdadeiras de
uma loucura imediatamente revertida, a reversão de sua coexistência pseudo-natural
com o poder.

Hakim Bei, um pensador-criador cuja teoria da TAZ muito deve a Debord e aos
situacionistas, elabora uma concepção moderna da linguagem que muito nos poderia
ajudar a melhor compreender a concepção desviante dos signos em suas relações com o
código e com as injunções do poder. Em analogia com as teorias modernas da
informação, Bei pensa as possibilidades da linguagem a partir da modelagem dos signos
em sistemas dinâmicos complexos.

Neles a linguagem poderia sobrepor-se a à representação e à mediação, não porque


seja inata, mas porque é caótica. Ela sugere que toda experimentação dadaísta com
poesia sonora, gestos , chistes, linguagem bestial, etc. não foi feita com o objetivo
nem de descobrir, nem de destruir o significado, mas de criá-lo. (BEI, TAZ, 2011)

A partir de nossa abordagem do desvio, devemos, por nossa conta, afirmar que,
desde a perspectiva dialética debordiana, as gramáticas não seriam então inatas ou
modelos segundo os quais se definem parâmetros regulares de organização, mas
emergiriam da dança dos signos organizados pela própria emergência do sentido em seu
movimento dialético de contradição: pela supressão, conservação e elevação das bases
comuns de articulação sintática a um grau de singularidade único. Estaríamos aqui
93

diante de uma manifestação concreta do modelo em sua inserção no movimento que vai
da consciência individual, passando pela sua relação polêmica com as formas
consensuais das quais se apropria até a emergência de um novo sentido no contexto das
novas possibilidades de relações criadas pelo jogo dialético do desvio. Uma dança dos
significantes criando significados a partir da afirmação da potência criativa do sujeito
lúdico. Uma brincadeira séria, um jogo de guerra em benefício da expressão e da vida
autênticas.

O sentido não conforme definido pelo poder, mas que emerge das relações
dialéticas no jogo quase espontâneo dos signos. Aqui o significado também é criado a
cada lance de dados do jogo, pelo qual, se não se consegue abolir o acaso, alcança-se
dimensionar o novo sentido. Linguagem como jogo, linguagem como forma de ação:
linguagem como guerra contra a subordinação da linguagem pelo poder de nivelar o
sentido segundo os parâmetros políticos de uma razão administrativa. A linguagem
supera seu rigor formal e entra no jogo como um movimento imanente das potências
sociais, dotadas, por um instante, de significado singular, pela ação criativa do sujeito
emancipado, que dela se serve como meio não só de expressão, mas fundamentalmente
de libertação.

Não se deve, portanto, considerar o jogo de que tratamos aqui uma bem planejada
obra de arquitetura sistemática conduzida pela inteligência matemática, more
geométrico demonstrata. Ao contrário, e tão contrário que deve tocar os limites do
prazer liberado por uma força alheia, do que a sociedade burguesa ávida pelo
planejamento encarcerou: a alegria de viver e de criar objetivada pela realização
prazerosa e lúdica da obra. Como a deriva, o desvio resulta da “afirmação de um
comportamento lúdico-construtivo” (DEBORD, Teoria da deriva, 1958.)

Debord afirma, em uma carta a Raoul Vaneigem, na qual tece importantes


comentários e comparações entre as duas obras fundamentais que marca, segundo ele, o
fim da pré-história do Internacional Situacionista, a saber, A arte de viver para as novas
gerações e A Sociedade do Espetáculo, que ambos os textos representam “um golpe de
sorte para obras tão pouco planejadas nos detalhes”. (DEBORD, A Raoul Vaneigem,
1965. P 680/682) E arremata: “Mas, não obstante, contra provas bem sucedidas de
coerência.” (DEBOD, Idem. 1965)
94

Quer dizer, não o tipo de coerência arquitetada como um projeto pensado em


função da correspondência da obra a modelos prévios aceitos como norma de produção
intelectual; mas contra-projetos pensados como realizações subversivas movidas pelo
sentido do prazer que se articulam como máquinas de guerra contra o banal (Vaneigem)
e o espetacular (Debord). Por isso a observação:

Talvez seja esta a primeira re-apresentação, em forma de livro, do tom, do nível


da crítica empreendida pelos revolucionários denominados “utópicos”, o que
significa dizer, das proposições básicas para o superação da totalidade da
sociedade: o que precede necessariamente a organização prática, que foi muito
desafortunadamente chamada “científica” no último século. (DEBORD. Idem.
1965. Grifos nossos.)

Projetos regidos por um tipo particular de organização: a organização


revolucionária do texto pela qual se trava a primeira batalha contra o inimigo que se
infiltrou na razão e, por intermédio da reificação da linguagem, desarticulou quase todas
as esperanças de se projetar formas de ordem fora da norma validada pela ideologia
burguesa. Por isso uma coerência tentada como um projeto dialético que inclui o jogo
como determinação fundamental: o jogo pensado e realizado como arte de se dar as
próprias regras no âmbito da supressão de todas as leis que desviam o desejo de seus
legítimos objetivos: Marx e Sade. A coerência que se pretende é uma coerência interna
dos elementos articulados segundo regras próprias que emergem do próprio contexto de
suas relações dialógicas presidindo o significado das mesmas. A coerência das
proposições desviadas e o sentido lúdico e bélico que projetam, “das proposições
básicas para o superação da totalidade da sociedade”. (DEBORD, Idem.)

A mudança da forma de ordenamento do jogo não muda a regra que o preside. De


fato o arranjo foi sendo construído a partir da lógica interna das proposições
reinventadas pelo desvio, que governa também a mecânica global do texto, uma vez que
ele está todo costurado a partir de montagens de proposições deslocadas, realocadas e
subvertidas que compõem uma “arquitetura desviante”, vale dizer, uma espécie de
“desvio do sistema” pelo qual, superando o afã sistemático da razão instrumental a
dialética realiza um “espírito de sistema” não formalizado nem geometricamente
planejado.

Um sistema que emerge, por assim dizer, das relações sempre densas de sentido
entre as proposições e seus referenciais elementares desviados. Mas isto veremos mais à
frente.
95

O propósito da Sociedade do Espetáculo, materializado em seu arranjo


proposicional sobre o qual assenta a forma seca do todo, seria, então, a realização da
filosofia pela superação da arte, pelo prazer do jogo subversivo das regras e pela função
bélica da máquina montada contra o espetáculo? É o que tentaremos demonstrar.
Realizar a filosofia não significaria, neste sentido, libertar a linguagem pela realização
ontológica da expressão divergente, contra os osbstáculos impostos ao pensamento e à
afirmação própria do sujeito emancipado? Pois o que é a filosofia em sua expressão
mais geral senão linguagem elevada a sua máxima potência? Linguagem da
confirmação do estado de coisas totalizado em teoria, ou linguagem desviada pela qual
o estado de coisas contra o qual se luta é combatido na própria forma divergente da
expressão? “A herança legítima da filosofia, no melhor sentido da palavra” (DEBORD,
Idem, 1965), da qual Debord sabe que se apropria. Se pudéssemos fazer uso de uma
ponderação de Eric Voegelin, com quem Debord certamente não concordaria em muita
coisa, mas que nos serve de esclarecimento, elucidaríamos a relação da linguagem da
filosofia com a necessária atividade criadora e revolucionária da arte e do jogo, em seu
movimento de guerra contra as condições existentes, através da percepção crítica acerca
da necessidade de reinvenção do sentido para se reapropriar dos meios de condução à
verdade objetiva. Pois a filosofia autêntica deve ser feita sempre “nos moldes do
empenho do próprio autor para encontrar a verdade em meio à corrupção da linguagem
escarnecedora e da política ideológica”. (VOEGELIN, Ordem e História V, p. 26)

Os limites do livro ao qual Debord dedicou todo seu empenho construtivo,


religando-se à herança legítima da filosofia, A Sociedade do Espetáculo, estariam
confinados à sua função, não à sua forma. E sua função é, explicitamente, reorganizar a
linguagem da filosofia de maneira a permitir que ela sirva ao propósito de destruir o
domínio espetacular sobre a consciência, quando “as palavras trabalham para a
organização dominante da vida” (DEBORD, All the king’s men,1963) e, assim, fincar as
bases teórico-práticas para a superação do espetáculo em todas as suas formas. Seria
como a escada de Wittgenstein que após servir para se escalar a parede pretendida deve
ser jogada fora?16

“Eu penso que vencemos aqui uma importante batalha.” (DEBORD, Idem, 1965)

16
Wittgenstein afirma na proposição 6.52 de seu Tractatus logico-philosophicus: “Minhas proposições
são esclarecedoras deste modo: que quem as compreende acaba por reconhecer que carecem de sentido,
sempre que aquele que compreenda saia através delas e fora delas. (Deve, por assim dizer, tirar a escada
depois de ter subido.) (WITTGENSTEIN. Logische-philosophische Abhandlung. London, 1957.)
96

O resultado é um texto feito de proposições sobre as quais repousa o seu sentido;


não sobre a estrutura, mas sobre o movimento. Proposições, como afirmamos, cujo
sentido subsiste no interior e no movimento auto-constitutivo de suas leis singulares,
contrapostas ao sentido da norma geral que desapropriam.

Assim o valor da palavra “espetáculo”, por exemplo, é completamente redefinido


em seu significado quando ocupa o lugar da palavra “mercadoria” na sentença marxiana
desviada. O espetáculo que é uma distração social em que o espectador assiste
passivamente a uma exibição cultural assume, pela relação estabelecida com o valor
mercadoria, um significado substancial e ontologicamente fundamental17 para a
caracterização crítica da sociedade capitalista mercantil e sua fase pós-moderna.

A substituição operada por Debord na sentença marxiana, ao mesmo tempo em


que corrige seu significado e o atualiza, coloca um conceito tirado da vida cotidiana e
representativo de seu aspecto alienado em relação com a mercadoria, por sua vez forma
elementar da objetivação da alienação do trabalho e, portanto, da posse privada da
energia social.

O espetáculo dialoga com a mercadoria e pelo diálogo extrai o significado


específico que o jogo do desvio lhe fornece. Perde e conserva o sentido anterior, quer
dizer, o eleva dialeticamente. Um sentido é desconstruído e outro criado e da tensão
dialógica entre os dois, mediado pela superação do valor mercadoria, emerge uma nova
determinação crítica situada no cerne da experiência capitalista e a ela contraposta. A
experiência do valor-mercadoria é utilizada como força propulsora de sua própria
reversão crítica. Aqui uma astúcia da dialética.

Pelo jogo, o experimento dialético produzido pelo desvio restaura o caráter da


linguagem enquanto práxis social. Retira os signos do isolamento da representação e os
insere de novo no domínio das determinações concretas da existência. Supera o
isolamento da arte e a degradação ideológica da filosofia. E isto ao se fazer jogo
gratuito, cujas estratégias movem a máquina de guerra contra a degradação da
existência e a pobreza da experiência sob o capitalismo: o estado de guerra constante
contra o projeto humano de autoconstrução e emancipação.

17
Ao leitor de Marx não escapará nossa alusão ao Prefácio da Primeira Edição de O Capital, em que o
autor afirma que tratará da análise da “substância do valor” e da grandeza do valor cuja forma acabada e
vazia de conteúdo é o dinheiro.
97

A contestação pela destruição da arte mercantil e sua consequente superação


enquanto valor de mercado, sua liquidação, coincide com a transformação da arte
naquilo que a arte sempre seria se fosse efetivamente arte: guerra e jogo. Conforme
resume Daniel,

Existem laços íntimos unindo o jogo e a beleza, visto que em suas formas mais
complexas o jogo possui os “mais nobres dons de percepção estética” (HUIZINGA,
1938, p.10) disponibilizados ao homem: ritmo e harmonia, residindo nisto “seu
caráter profundamente estético” (HUIZINGA, 1938, p.5). (DANIEL. O Conceito de
“Jogo” em Johan Huizinga e Hans Ulrich Gumbrecht.)18

Soma-se a isto o fato de ser o jogo uma atividade voluntária e, portanto, ligada a
uma livre escolha; de ser a criação no cerne do real de uma esfera de atividade
temporária - uma espécie de intervalo na vida cotidiana banalizada, pelo qual a vida
cotidiana é restabelecida como esfera da comunhão e da festa, um campo de procura e
de encontro submetido às regras postas à margem do acordo comum, do contrato
burguês; capaz de absorver o jogador de maneira intensa e total.

Um compromisso individual, como tentamos mostrar, no qual e pelo qual o


sujeito criativo mediado pelas forças sociais abre o espaço ao possível restabelecimento
das potências de sua própria construção, pela destruição prazerosa das convenções e das
normas do consenso burguês. O domínio das regras converte-se no domínio da atividade
livre e nela se verifica a automediação do sujeito como construção socialmente
mediada.

Uma vez que se faz ser isolado, isto é, distinto da vida “comum”; indiferente aos
limites de tempo e de espaço; ato inventivo e criador de ordem e também ordem
singular; enfim, na medida em que motiva o surgimento de grupos sociais que tendem a
se diferenciar do restante da sociedade, o jogo abre ao jogador a possibilidade de
ocupação de um território situado além das delimitações restritas à regra de apropriação
privada e de posse. (cf. DANIEL) Eleva-se, portanto, ao plano da troca socialmente
mediada, do mútuo reconhecimento e da gratuidade. Ele não vale pelo lucro que
objetiva ganhar, mas pelo próprio jogo. Quer dizer, pela participação ativa em uma
forma de combate em que se coloca constantemente a possibilidade não da vitória, mas
da auto-superação pela negação.

18
In: http://blogdoprofessordaniel.blogspot.com.br/2011/01/o-conceito-de-jogo-em-johan-huizinga-
e.html, acesso em 22/08/2013.
98

O jogo satisfaz pela própria alegria que provoca ao ser realizado, como uma festa
em se suspendem as convenções do cotidiano e se adentra o território da liberdade de
criar. E esta é também uma liberdade de destruir.

A criação-destruição caracteriza o jogo dialético do desvio. Tal jogo instaura-se


pelo procedimento poético de restauração das potências vitais alienadas. Pelo
matrimônio do projeto com sua realização prática. A atividade filosófica se torna tão
mais decisiva para nós quanto mais lúdica. O prazer reata os laços com o trabalho e de
sua comunhão constrói-se uma realidade balizada por outro valor: a entrega ao esforço
criador cuja norma é a gratuidade da experiência e o processo torna-se sua própria fonte
de satisfação. A filosofia pelo intermédio da arte tenciona restaurar-se como jogo sério e
tirar da gratuidade da experiência lúdica e criadora o valor que resulta de sua própria
conquista. Conquista de um novo território pela desterritorialização do antigo. Da posse
privada e do valor de troca à comunhão social e gratuidade amorosa do jogo.

Aqui podemos pensar o contexto psicogeográfico do jogo dialético como uma


paisagem reconstruída. Uma passagem em que se transita na tensão que liga o atual ao
possível reconfigurando a linguagem, abrindo-a ao novo. No contexto de uma realidade
processual, as coisas são construídas e destruídas, postas e sobrepostas, acrescentadas e
subtraídas, etc. numa transformação contínua mediada pela ação social dos homens e a
ela relativa. Desta forma, uma paisagem-linguagem se constitui não apenas de uma
objetualidade acabada, mas de rastros e sinais, de vestígios e indícios que atestam a
presença de forças que constituem linhas de fuga no âmbito de suas relações no espaço
e no tempo. Reclamam, assim, atenção do olhar para o seu processo de diferenciação e,
no interior deste processo, para o conjunto das relações que conformam a dinâmica das
forças históricas que lhe conferem significado. Olhando para o traçado das forças que se
apropriam do espaço semântico dos signos e o submetem à ação humana, temos diante
de nós um processo contínuo de territorializações e desterritorializações que simbolizam
o trabalho de antigos sujeitos subjacentes ao trabalho de novos sujeitos que
constantemente se formam e deixam sua marca textual na modelagem do espaço. Uma
linguagem revirada pelo ato político da invenção restaura o prazer de jogar, com ele o
de destruir e criar, que caracteriza as necessárias inflexões dos signos em sua busca pelo
sentido pleno da experiência que veiculam e à qual se ligam intimamente. Recriar a
filosofia pela intervenção da arte significa restaurar sua potência lúdica e seu furor
bélico.
99

Lembre-se que a filosofia é, segundo Platão, um jogo sério, a atividade dos


desportistas pela qual se decide o que de maior valor possuímos em nossas vidas.

A propósito, sobre o aspecto sério do jogo Huizinga esclarece:

(...) o jogo autêntico e espontâneo também pode ser profundamente sério. O jogador
pode entregar-se de corpo e alma ao jogo, e a consciência de tratar-se 'apenas' de um
jogo pode passar para segundo plano. A alegria que está indissoluvelmente ligada ao
jogo pode transformar-se, não só em tensão, mas também em arrebatamento. A
frivolidade e o êxtase são os dois polos que limitam o âmbito do jogo. (HUIZINGA,
2010, p.24)

A dádiva do jogo, por violar as normas da individualidade alienada e inserir os


contendores no campo de batalha da aceitação dialética das regras que se desenvolvem
no próprio ato de jogar e se criam e recriam continuamente de acordo com a utilidade
hedônica de suas relações dinâmicas, configura uma abertura e uma recusa que somente
o domínio do lúdico permite. Sobre a conexão entre poesia o jogo e a guerra Huizinga
afirma: “Toda poesia tem origem no jogo: o jogo sagrado do culto, o jogo festivo da
corte amorosa, o jogo marcial da competição, o jogo combativo da emulação da troca e
da invectiva, o jogo ligeiro do humor e da prontidão.” (HUIZINGA, p 143) Em seu
valor de origem portanto, a poiesis radica-se nas formas de ação inseridas no
movimento concreto das determinações sociais. Não vale apenas pelo resultado que
almeja, mas pela tarefa que propõe e, continuamente, realiza. Pelo movimento de
realização do signo em seu sentido desviado, restaurado ou revertido o jogo sério da
filosofia se reencontra com sua antiga potência e a atualiza na direção da nova tarefa a
que se propõe no contexto da pós-modernidade.

Caracterizando-se como jogo, portanto, vale não pelos resultados, mas pelo
processo enquanto este se desnovela e no próprio desnovelamento dos signos em
rotação, convida o leitor não à resignação passiva diante de um significado dado e
consensual, mas à decifração da diferença que a tensão propõe; a vivência não planejada
da tensão como experiência de sentido; decifração que é ação; trabalho em que se
participa da constituição do sentido por meio da interpretação. Trabalho da dialética em
sua busca da linguagem da poiesis. Não pela origem nem pelo resultado: pela totalidade
do processo que engloba as determinações em um diálogo.

Vale aqui uma breve citação de Hegel. Como em Debord, a linguagem hegeliana
tenta abraçar a totalidade das determinações em seu movimento concreto. Mediante a
imanentização dos signos inseridos em jogos complexos de relações dialéticas, as
100

mediações dinâmicas das categorias lógicas especulam as malha ontológica do real. A


linguagem espelha a complexa teia de determinações que expressa e, na própria
expressão, viola as normas formais de configuração abstrata do texto. Busca realizar o
texto como movimento concreto análogo ao movimento e às articulações reais. Neste
sentido, lemos em Hegel uma frase lapidar:

Com efeito, a Coisa mesma não se esgota em seu fim, mas em sua atualização;
nem o resultado é o todo efetivo, mas sim o resultado junto com o seu vir-a-ser. O
fim para si é o universal sem vida, como a tendência é o mero impulso ainda carente
de sua efetividade; o resultado nu é o cadáver que deixou atrás de si a tendência.
Igualmente, a diversidade é, antes, o limite da Coisa: está ali onde a Coisa deixa de
ser; ou é o que a mesma não é. (HEGEL. Fenomenologia do Espírito. P. 23.)

Em Debord a tensão dialética da proposição é evidente no jogo construído pelo


desvio através do qual, em diálogo elusivo com Feuerbach, realiza-se uma trama de
relações que extrapolam o domínio textual e se inserem no campo das relações
concretas, trazendo-as para o interior da linguagem. Citemos:

N'a pas dissipé les nuages religieux où les hommes avaient placé leurs propres
pouvoirs détachés d'eux : elle les a seulement reliés à une base terrestre. Ainsi c'est
la vie la plus terrestre qui devient opaque et irrespirable. Elle ne rejette plus dans le
ciel, mais elle héberge chez elle sa récusation absolue, son fallacieux paradis. Le
spectacle est la réalisation technique de l'exil des pouvoirs humains dans un au-delà ;
la scission achevée à l'intérieur de l'homme. (DEBORD, SE, § 20.)

A tensão dialética do texto mantém em suspensão concreta a tensão constitutiva


do real. Sua irresolução fundamental. Como um jogo de signos o real se revela na
própria expressão que supera em sua enganosa imediatez.

O dialético nos mostra que, assim como no jogo, a finalidade do escritor, seja no
mito ou na lírica, na tragédia ou na epopeia, nas lendas ou em um romance moderno, ou
na trama dialógica das proposições filosóficas é “criar uma tensão” que provoque o
leitor. A linguagem poética joga com as palavras põe-nas ordenadas de forma
surpreendente, desafiando a racionalidade a se ocupar da reorganização da forma,
supondo-se que haja uma forma, pela participação no sentido ativo que a palavra ou a
sentença propõem.

Restabelecer a força de origem da poesia não significaria conectá-la de novo à


vida pela superação do caráter mercantil da arte? O que Debord tenta em sua empresa
dialética seria, portanto, não uma revolução na forma, mas uma revolução das regras de
organização da forma que, pela violação do que vale como parâmetro legitimador do
procedimento burguês, o direito à propriedade e a propriedade do direito, restauraria a
101

dignidade ontológica da arte e com ela a potência semântica da linguagem da filosofia.


Uma revolução no estilo que materializa uma função revolucionária do sentido e da
expressão. Uma astúcia da dialética realizada pelo desvio.

Em princípio, como em Artaud, temos aqui uma tarefa cuja realização Debord
perseguiu até a morte: “fazer a vida ser penetrada pela arte, soldar a arte tão
fisiologicamente à vida, de modo a ser quimérico pretender isolar uma da outra.”
(COELHO, P. 14) O que ele tentou foi poetizar a existência até a medula,
existencializar radicalmente a prática poética: esse o sentido de realização da filosofia
para Debord. Em outros termos, não se trata simplesmente de existencializar a arte. A
arte, já no momento de Debord, era uma coisa, uma propriedade que se colocava no
mercado, etiquetada com um preço, pertencente não ao artista, mas aos interesses do
mercado gerido pelos comerciantes do belo. Uma coisa “desgastada, descaroçada, um
produto semi-industrializado, na época entregue ao consumo passivo dos outros, os não
artistas.” (COELHO, P. 15)

Ilustra o que queremos dizer a comparação estabelecida por Coelho entre a arte
como produto, resultado e a poética como trabalho a atividade. Citemos:

A arte era frequentemente e continua sendo essa atividade feita À parte, depois
de se ter gasto algumas horas numa profissão para ganhar a vida; ou então é uma
prática terapêutica, um modo de ganhar a vida. A prática poética é outra coisa:
operação de construção do ser, incessante, a todo momento retomada, demolida e
reconstruída. (COELHO, 1982, P 15)

O valor do que não tem preço não pode ser avaliado. E o que não pode ser
avaliado, mas executado é jogo: o que é enquanto é feito, quer dizer, o ser que se
constrói no seu próprio devir.

Enquanto ação construtiva, criação de regras e retomada do projeto vital da


poesia o jogo constitui uma experiência de linguagem pela qual se pode esperar
conseguir um novo alento para a filosofia. Uma filosofia realizada como autoafirmação
do sujeito pela superação dos artifícios alienantes que separam suas potências vitais da
realidade social na qual ele deve se compreender como potência ativa.

A determinação negativa da linguagem pelo desvio nos fez compreender que


Debord pretendia enfrentar o complexo de problemas de sua época através de um
procedimento estilístico simples que tentamos aqui caracterizar e abordar em seus
detalhes. Tal procedimento extrai da própria matéria desviada as forças que levam à sua
102

superação. Os elementos desviados reinseridos em um sistema desviante assumem


novas configurações e realizam outros sentidos. A linguagem tradicional é revertida em
seu outro e a filosofia realizada pela superação da arte. Assim ela retoma o caminho de
sua aliança com a vida.

O desvio alegremente concorda com isso, mas adiciona que a linguagem pode
superar a linguagem ressoando como uma complexidade autoexpansiva; que a arte pode
revitalizar-se em seu próprio meio e se desvincular das potências alienantes que a
dominam; que a filosofia pode realizar-se como atividade concreta contra o sistema que
dela se apropriou, tornando-a instrumento ideológico de submissão à regra geral, pela
própria ação de desviar-se do sistema. A linguagem pode criar liberdade a partir da
confusão e da decadência da tirania sintática. Isto é o que veremos em exame mais
detido logo a seguir quando discorrermos sobre os dois tipos fundamentais de desvio na
Sociedade do Espetáculo: a proposição desviante e o sistema.
103

Capítulo 3. O espetáculo e o desvio, ou o desvio do espetáculo e a


linguagem dialética

A única aventura, afirmamos, é refutar a totalidade, cujo centro é este estilo de vida,
de onde podemos avaliar nossa força, porém nunca usá-la. Finalmente, nenhuma
aventura é criada diretamente para nós. As aventuras que nos são apresentadas
formam parte das lendas transmitidas pelo cinema ou de outras formas; fazem parte
de toda a farsa espetacular da história.

Guy Debord

3.1 Incipit spectaculum


Antes da mais nada algumas considerações sintéticas sobre o que alcançamos até
agora em termos de compreensão. O que entendemos resumidamente por espetáculo a
partir do trajeto pelas várias instâncias da obra debordiana em seu comércio, em seu
diálogo crítico e sempre problemático com as circunstâncias de seu tempo. Um resumo
antes de entendermos mais especificamente a astúcia e determinarmos sua mecânica.

O espetáculo caracteriza-se por algumas notas essenciais que se podem enumerar


como segue:

a) Aparente autonomia dos processos econômico-sociais e suas variantes


culturais. Independência percebida em relação aos seus produtores e agentes
que se veem como submetidos aos resultados de sua própria ação.
b) Efetiva separação das esferas que, no entanto, aparecem unificadas por um
falso poder que lhes mantém, de fato, como setores efetivamente separados.
Uma realidade, não uma ilusão, contraditória e dilacerada, totalmente
dependente das forças produtivas e criativas humanas que, não obstante,
surge como poder alheio independente delas. No todo apresenta-se como
sistema autônomo diante do qual as potências humanas que lhe produzem a
ele se subordinam, como se se tratasse de um poder autônomo, uma lei
absoluta que coordena todos os processos econômicos e sociais.
c) Nenhuma das instâncias é vivida como determinação integrante da totalidade
da experiência sem fraturas, mas como parte ou fragmento falsamente
unificado por meio de imagens que as mantém isoladas à custa de sua suposta
integração.
104

d) Domínio do espetáculo e do espetacular que se manifesta em todos os campos


da vida social. Não obstante determine todos os processos o espetáculo se
esconde sob o manto da ilusão das mediações que lhe invertem a realidade e
os fazem parecer aquilo que não é. Assim a força do espetacular consegue
adesão involuntária daqueles a que submete, ou seja, a totalidade dos agentes e
processos econômico-sociais e seus reflexos culturais.
e) Um movimento e um processo que domina a totalidade e se impõe como
norma e lei que regula o todo, não obstante sua norma e sua lei sejam
exatamente a da destruição de qualquer experiência efetiva de totalidade e
qualquer integração real dos processos materiais e espirituais mediados pelas
determinações reais da vida social.

A lei abstrata quando elevada à norma absoluta atinge uma amplitude tamanha
que nada pode mais escapar de sua ação alienante; nada pode se colocar à margem de
sua força de separação e submissão; nenhum agente está efetivamente fora de sua
influência. Necessita-se aqui de uma astúcia própria da dialética para que se possa não
escapar, mas ao menos usar conscientemente a “regra oculta” contra si própria e tirar de
da própria abrangência de seu poder os elementos submetidos a uma nova lógica que lhe
reverta internamente a força dissolutiva e pseudo-unificante, que crie, a partir de sua
própria potência inercial, o movimento que lhe destrua. O desvio, portanto, deve ser
entendido em sua função a partir das leis que regulam seu sentido e seus fins:

As duas leis fundamentais do desvio são a perda de importância – chegando


até a perda de seu sentido original – de cada elemento autônomo desviado, e a
organização, ao mesmo tempo, de outro conjunto significativo que confere a cada
elemento o seu novo sentido. (O desvio como negação e prelúdio. IS. 1959).

Operado a partir da própria condição dada, o desvio elege-se como astúcia que
subverte as regras do jogo desde um tipo de reapropriação das condições presentes em
nome da construção das possibilidades futuras. Extrai, por assim dizer, seu sentido do
diálogo critico com/contra suas próprias circunstâncias, aproveitando-se delas para
operar conforme uma estratégia que lhes reconfigure o sentido e assim determine novas
direções aos elementos apropriados e desviados de seus fins comuns. “O baixo preço de
seus produtos é a pesada artilharia com a qual se derrubam todas as muralhas da China
105

do conhecimento. Eis um meio real de ensino artístico proletário, o primeiro esboço de


um comunismo literário.” (DEBORD e VOLMAN, Desvio: modo de usar.)19

Investindo de frente contra todas as convenções mundana e jurídico-políticas,


constrói-se uma espécie de máquina dialética concebida como contramovimento
situado no interior do próprio movimento de separação e falsa consciência; como uma
estratégia bélica que estabeleça novos fins a antigos processos e formas espetaculares;
que lhe invertam e subvertam a regra de sua própria construção a partir da criação de
uma nova função pela qual sejam desintegrados em sua imediaticidade alienada e
reintegrados a uma nova lei de sua própria destituição.

A máquina dialética movida pelo desvio e inserida como uma estratégia de guerra
no interior da vida cotidiana, onde se trava a batalha pela reconquista de uma condição
universalmente perdida. Primeiro como desvio do comum, depois, ou simultaneamente
como desvio da universalização da falsa condição sob a forma do discurso que totaliza o
seu sentido e o eleva à condição ideológica de estrutura e padrão universal de
significação e juízo: a linguagem comum e a filosofia. Pois a filosofia também, em sua
configuração universal e, por isso mesmo, ilusória não representa senão a totalização
positiva da vida de uma sociedade que ela reproduz no plano da expressão simbólica.
As várias formas de totalização da experiência imediata de uma determinada situação
histórico social, sua expressão mais universal é a filosofia. Acompanhemos Sartre:

A filosofia aparece a alguns como meio homogêneo: os pensamentos nasce nele,


morrem nele, os sistemas nele se edificam para nele desmoronar. Outros
consideram-na como certa atitude cuja adoção estaria sempre ao alcance de nossa
liberdade. Outros ainda como um setor determinado da cultura. A nosso ver a
filosofia não existe; sob qualquer forma que a consideramos, esta sombra da ciência,
esta eminência parda da humanidade não passa de uma abstração hipostasiada. De
fato, o que há são filosofias. Ou melhor – pois não encontrareis nunca, em um
momento dado, mais do que uma que seja viva – , em certas circunstâncias bem
definidas, uma filosofia se constitui para dar expressão ao movimento geral da
sociedade; e, enquanto vive, é ela que serve de meio cultural aos contemporâneos.
Este objeto desconcertante apresenta-se ao mesmo tempo sob aspectos
profundamente distintos cuja unificação opera constantemente. É inicialmente, certa
maneira pela qual a classe ascendente toma consciência de si. SARTRE. Questão de
método, P. 113. Grifos do autor e nossos)

Debord demonstra consciência da filosofia como forma contemplativa, como


teoria do espetáculo que se produz através da reprodução acrítica das formas da
separação da sociedade espetacular, de cujas determinações alienantes a concentração
no ver do espectador inerte representa a mais sutil projeção universalizada da falsa

19
A versão original foi publicada na edição de maio de 1956 da revista surrealista belga Les Lèvres Nues.
106

teoria. Em uma passagem da Sociedade do espetáculo alusiva ao Declínio da Idade


média de Johan Huizinga e a Marx da Crítica da filosofia do direito de Hegel, lemos:
“Le spectacle est l'héritier de toute la faiblesse du projet philosophique occidental qui
fut une compréhension de l'activité, dominée par les catégories du voir.” (SE § 19)
A passagem de Huizinga diz:
Un des traits fondamentaux du Moyen Age déclinant est la prédominance du sens de
la vue, prédominance qui semble être en rapport étroit avec l'atrophie de la pensée.
On pense et on s'exprime par images visuelles. (HUIZINGA. Cit por Debord in:
Citations et détournements)

A predominância do sentido da visão funda a perspectiva do espectador,


necessária à dominância do espetacular sobre a consciência passiva e acrítica. A
filosofia baseada nessa redução dos sentidos ao sentido do ver “filosofa a realidade” não
se realiza, portanto, como discurso crítico antiespetacular. O que resta seria realizar a
filosofia e, assim, demolir a falsa perspectiva que sustenta a consciência espetacular
aderida à crise. Debord deve, pelo desvio, realizar o programa de Marx. Pois na
sociedade do espetáculo “Il ne réalise pas la philosophie, il philosophise la réalité”, no
entanto, “vous ne pouvez surmonter la philosophie sans la réaliser.” (MAR, Critica Fil
Dir. Hegel, cit por Debord) E realizar q filosofia seria superar a realidade espetacular
em sua forma totalizante e universalmente operante. Situa-se aqui no âmbito da
perspectiva dialética marxiana instaurada na 11ª tese ad Feuerbach: “Não basta
contemplar o mundo, deve-se transformá-lo”. O que Debord já acenava em suas
Perspectivas para a transformação da vida cotidiana, estudadas acima. Um amplo
programa de realização da filosofia, no entanto, pela superação da arte, como veremos.

Se a filosofia é a totalização da lógica de uma determinada forma de sociedade a


qual reflete em sua estrutura discursiva como se refletisse acriticamente as regras do
jogo, a lei que governa o todo, vale dizer, lhe desse voz e, ao mesmo tempo, suporte
ideológico, então a razão e a linguagem da filosofia mostram-se como o campo de
batalha privilegiado no qual se daria a possibilidade, através de uma contra ofensiva
dialética, de superação da falsa consciência como forma de sustentação universal da
crise. Seguindo uma diretriz marxiana Debord percebe que a realização da filosofia, de
um ponto de vista dialético, só se daria no âmbito da realização da própria filosofia. Da
superação da filosofia como mera totalização do saber contemporâneo por meio da qual
se daria a justificação ideal do modo de vida contemporâneo, a legitimação de sua
forma invertida de ser através de sua representação universal positiva. E o positivo
107

diante de um estado de coisas falso e invertido não é mais que a confirmação da


falsidade e da inversão sob a autoridade aparentemente lúcida e inquestionável do
argumento e do quadro englobante de sua própria mentira.
Nesse sentido a filosofia não poderia ser simplesmente negada, como se se
refutasse um argumento mediante outro argumento. Se ela representa a totalização da
experiência da crise a que confere legalidade teórica, ela não pode ser atacada de fora,
pois não existe fora no contexto de uma teoria universal, de um sistema englobante.
Resta à astúcia da dialética penetrar as razões do sistema, em sua forma de organização
e desmontá-lo por dentro. O que Sartre não soube fazer. Por isso sua crítica ficou sem
eficácia teórica. Não há lado de fora do mundo real nem, tampouco, de seu espelho
teórico. Só há possibilidade de organização estratégica de um ataque imanente contra
aquilo que nos engloba.
De certa forma no campo de batalha da razão filosófica se daria a possibilidade de
construção de uma máquina de guerra que destruísse a lógica da reprodução universal
do sistema espetacular (o discurso filosófico como componente ideológico total e
integral de representação lógica da crise, sua unificação simbólica e, portanto, falsa) sob
a forma de seu desvio; construindo uma astúcia, uma estratégia que se aproveite do
movimento universal regido pela lei universal de destituição da experiência, da negação
da vida em seu aspecto total, vale dizer, efetivamente social, para através dela e contra
ela criar um anti-movimento na direção de uma nova lógica que exiba e, ao mesmo
tempo, supere as contradições e limites ideológicos da antiga ideologia.
A linguagem volta a restabelecer os laços com a vida, laços que haviam sido
rompidos pela expressão positiva de uma falsa representação daquilo que se mostrava
invertido, portanto, negativo na própria positividade falsa ou, na melhor das hipóteses,
ingênua.
Se entendermos a vida cotidiana conforme o sentido que lhe confere Charles
Taylor em seu livro As fontes do self: a construção da identidade moderna, 20podemos
perceber que na sociedade do espetáculo os planos se articulam de tal forma que o
cotidiano se submete aos poderes que cria e cuja realidade aparece-lhe, não obstante
como independente de sua ação. Desde a esfera da produção material, passando pela
família e a educação até os planos superiores da organização jurídica e política da vida

20
Taylor define a “Vida cotidiana” como um termo técnico que ele introduz em sua argumentação para
“designar os aspectos da vida humana referentes à produção e reprodução, isto é, ao trabalho, à fabricação
das coisas necessárias à vida e à nossa existência como seres sociais, incluindo casamento e família.”
(TAYLOR, p. 274)
108

social, bem como a cultura e sua forma superior de totalização, a filosofia tradicional, o
espetáculo a tudo engloba e submete à sua lógica envolvendo todos os setores com sua
dupla determinação alienante e, ao mesmo tempo, pseudo-unificante. Mostra-se como
articulação imediata e acrítica daquilo que Aristóteles compreendia como “zén kai
euzén”, quer dizer, “a vida e o bem viver”. (TAYLOR, p. 274).
Basicamente, o espetáculo engloba o que se precisa fazer para manter e renovar a
vida comum como ela se apresenta imediatamente, da forma como ela se organiza
presentemente: o modo de produção material e suas formas de manutenção e reprodução
ideológica. Desdobra-se, portanto desde a vida cotidiana até seus epifenômenos e suas
determinações superestruturais, reincidindo sobre o movimento de produção do
cotidiano como lei e norma absoluta que, tornadas imagens descoladas do movimento
que as produz, retornam a ele como mecanismos alienados e estranhos de regulação.
Consegue-se combinar aqui, a partir dos aspectos referentes à vida cotidiana,
situada na dupla determinação da produção e reprodução dos meios necessários à
manutenção do equilíbrio social, articulando à procura do “bem viver” duas das
atividades mais frequentemente citadas pelas tradições éticas posteriores como
superiores à vida cotidiana: a contemplação teórica – cujo ápice, repetimos, configura-
se no discurso filosófico – e atividade política, cuja participação requer dos cidadãos
uma espécie de acordo involuntário, de adesão irrefletida, conseguida mediante o
postulado ilusório do contrato social.
Nesse circuito reprodutivo, localizado em duas esferas articuladas, o cotidiano e
seus fantasmas, suas representações superestruturais, das quais a filosofia é a mais
acabada e total, deve-se encontrar o ponto de sustentação ilusória do todo, cuja lógica
pode ser abalada através da investida desviante da dialética. Nas palavras de Debord, a
única aventura é refutar a totalidade, e esta, deve-se notar, faz-se presente em todos os
níveis da vida social, devendo ser confrontada desde as situações mais corriqueiras até
suas expressões mais abstratas.
O mais abstrato, no entanto, traz em si mesmo a representação teórica mais
elevada da totalidade alienada. Sendo assim, uma aventura teórico-prática de amplos
resultados dialéticos seria a refutação do todo mediante o desvio de sua forma mais
sofisticada e acabada. Mediante o desvio de sua pretensão ao absoluto totalizada. Aqui
nada escaparia, nem a banalidade da experiência comum, nem a aparente superioridade
do saber erudito.
109

Note-se que a filosofia espetacularizada representa esse ponto de apoio imaterial


e abstrato, que corporifica a imagem universal do todo, elevado a condição da verdade
que se reproduz através da colonização da inteligência e sua submissão à regra
consensual da ilusão da totalidade. O ataque frontal ao espetáculo como estratégia de
combate dialético pode e deve ser empreendido, então, como uma destruição interna do
mecanismo pseudo-crítico do discurso filosófico no rumo da realização dialética de sua
própria negação. Assim a força do desvio desconstrói a lógica do espetáculo cristalizada
em sua forma mais abrangente e insidiosa, a lógica do discurso filosófico em sua matriz
idealista, através da qual a máquina anti-espetacular opera seu mecanismo imanente de
destruição, sua maior astúcia.
Se atentarmos para o que Alexandre Kojève argumentou em sua grande história
da filosofia pagã, nossa equação se completa. Ele afirma ali, de maneira provocativa,
que a filosofia, enquanto discurso sistemático, atingiu sua forma mais acabada com a
Sistema do Saber de Hegel, a partir do qual seria possível apresentar logicamente um
desenvolvimento coerente ( inclusive do ponto de vista histórico) de todos os discursos
filosóficos decisivos.21 Sendo assim, poderíamos afirmar seguramente, a figura do
sistema hegeliano atinge uma culminância teórica a partir da qual seria possível então
ao crítico dialético, operar, mediante a estratégia do desvio, uma reversão decisiva da
totalidade do saber espetacular que se organizou no interior de sua forma mais
audaciosa e totalizante.
A estratégia dialética de superação da filosofia não poderia encontrar melhor
campo para o combate decisivo contra o sistema. É o que veremos a partir do capítulo
intitulado “A dialética como desvio do sistema”. Por ora basta atentarmos para a
importância da tomada de consciência da filosofia em sua pretensão sistemática como a
grande enciclopédia do pensamento burguês condensado em uma gigantesca síntese
lógica e histórica convergentes. O desvio dessa síntese seria um trabalho magistral de
reinvenção da filosofia através da arte, pela qual a filosofia se realizaria efetivamente,
mediante o trabalho inventivo de sua própria superação.
Devemos entender minimamente, portanto, a mecânica peculiar da proposição
dialética e sua função crítica. O que ensaiaremos a seguir. Depois acompanharemos a
dialética em sua desconstrução do sistema, a aventura contra o sistema e suas falsas
promessas da totalidade. Entre a proposição desviante e o sistema devemos

21
Cof. KOJÈVE. Essai d’une Histoire Raisonnee de la Philosophie Paienne. 3 vol, Paris: Gallimard,
1997.
110

compreender a amplitude da crítica dialética de Debord, avaliando-a em sua unidade na


qual se verifica a conjunção entre teoria e prática, criação estética e pensamento
filosófico, em função da restauração da experiência concreta, da revolução rumo à
possibilidade da construção da aventura autêntica.

3.2 Dialogismo da razão

O ser não habita a linguagem ou, o que dá no mesmo, a linguagem não é a morada
do ser, mas um meio pelo qual alguns recortes desse mesmo ser podem ser elevados ao
plano da consciência humana e articulados em sua inteligibilidade. Em sua as atuais
condições de uso ela é instrumento do poder. Forma por excelência da legitimação das
forças sociais que se impõem como formas regulares de vida através da linguagem
normalizada, espetacular. Aquilo que se diz não apenas veicula informações, mas define
as normas do dizer e, por isso, estabelece as formas da experiência comum. Vivemos
em uma linguagem que nos vive, mas esta não é a linguagem da autoafirmação humana,
ela é, antes, o médium pelo qual se normaliza as maneiras de ser e conhecer de acordo
com os postulados do poder. Neste sentido, vivemos na linguagem como no ar viciado.
(DEBORD, All the King’s Men) Não obstante, a malha de conceitos construída pela
razão deve buscar corresponder de alguma maneira à malha ontológica constitutiva do
próprio real. Romper as grades e as cancelas que a limitam a uma espécie de
autoafirmação alienada de suas próprias normas padronizadas. Sair para o mundo e
reconstruir as bases da experiência efetiva. Deixar de ser a linguagem espetacular do
poder para ser novamente a linguagem humana da experiência social.

Caso contrário a linguagem poderia tudo e não diria nada. Desobrigada da


referência ao efetivamente real acabaria por construir um ambiente cujo acesso seria
permitido a todos indistintamente, o que tornaria possível a imposição de razões fracas
ou ausentes pela simples força política dos interesses dominantes. Torna-se instrumento
do poder em sua luta pela autolegitimação ideológica. Transforma-se no ar viciado que
habitamos. Recapturara a realidade em oposição a sua deformação requer um
considerável dispêndio de força. Tem-se que explorar, ao mesmo tempo, a técnica e a
estrutura das deformações que desorganizam a rotina cotidiana. Tal trabalho somente
pode ser conduzido não em oposição às doutrinas deformadoras da experiência e da
consciência da realidade, mas, principalmente, através do desvio em relação às
111

deformações da realidade operadas por pensadores que se colocam como seus


preservadores teóricos a serviço do poder. Desconstruir as formas alienadas, totalizadas
no discurso ideológico da filosofia espetacular e reconstruir, no mesmo ato linguístico-
político, os verdadeiros conceitos, imagens e relações mediadoras da experiência efetiva
do ser social. Uma investida crítica da linguagem da dissidência contra a linguagem da
conservação. Escapar da filosofia da linguagem de Humpty-Dumpty, ou seja, aquela
que determina os significados das palavras como um exercício de poder intelectual
sobre a consciência cotidiana colonizada. Submetê-la à crítica através de sua destruição
dialética pelo desvio. Situá-la no domínio dialógico da razão crítica.

O dialogismo da razão constitui, por assim dizer, um palco onde todos


representam seus papéis livremente, mas que só conseguem se impor aqueles discursos
cujas razões foram amplamente expostas e suficientemente defendidas em liberdade.
Liberdade que não pode coexistir com a ausência completa de critérios; uma vez que
tais critérios servem exatamente à construção de uma comunidade de discussão fundada
em regras constitutivas de um jogo em que todo interlocutor possui os mesmos
instrumentos de combate avaliados segundo parâmetros não submetidos à força dos
interesses dominantes. Esse é o eixo da teoria habermasiana da ação comunicativa,
entendida como teoria social sobre a modernidade. É no âmbito desse enfoque,
esclarece Antônio Teixeira Barros,

que Habermas desenvolve os conceitos de razão instrumental e razão comunicativa.


Ele concebe a razão moderna como reificação e, portanto, essencialmente
instrumental, ou seja, de natureza estratégica. A solução vislumbrada por ele seria a
adoção de mecanismos sociais que favorecessem a comunicação livre e espontânea,
que permitiria a formação de um consenso social em bases dialógicas. (BARROS,
Revista correio do livro da UnB, 2000, p. 27.)

Embora certo em identificar a possibilidade da construção de uma comunidade


comunicativa a partir de bases dialógicas, Habermas parece não perceber que a busca de
consenso não objetiva a emancipação, mas está à serviço dos imperativos econômicos
do capitalismo que isolaram os sujeitos comunicativos através do esvaziamento
ideológico e reificação da linguagem. Portanto, é preciso buscar bases comuns para o
dissenso e não para o consenso, uma vez que este último apenas mascara a exploração
através da construção de uma falsa consciência do explorado.

A linguagem a serviço da emancipação deve ser revolucionária, revolucionando


para tal a sua própria forma. Isto, no entanto, não é possível pelo abandono puro e
112

simples da antiga estrutura. A dialética, através do desvio, o que veremos com nossa
análise de Debord, deve ser capaz de se criar em meio a uma tensão, vale dizer, no
espaço aberto entre o dizer singular que se impõe como autônomo e a antiga fórmula
que constrange, não obstante permita a comunicação, criando ali o seu sentido.
Recapturar a experiência como algo que se coloca no contexto da comunicação dialética
entre o fluxo subjetivo da consciência e os objetos do mundo externo, mediados pela
ação humana criadora de conceitos e metáforas. Na tensão entre a expressão e o mundo
subsiste a força da dialética, em sua constante atualização das potência da linguagem na
direção da captação da experiência autêntica em sua determinação concreta. A dialética
não se situa em nenhum dos polos em que se costuma dividir a vida, nem sujeito nem
objeto, mas se insinua entre as esferas, mobilizando o diálogo interior aos processos
históricos concretos de uma experiência real que ela atualiza permanentemente pelo
discurso. Segundo Martin Jay, Uma verdadeira epistemologia dialética deve por fim ao
fetiche do conhecimento, consubstanciado pelo fetiche da linguagem que conduz à
sistematização abstrata. A verdade não é, ao contrário, sustenta Jay, “o que ‘sobrava’
quando ocorria uma redução do sujeito ao objeto, ou vice-versa. Ao contrário, residia no
“campo de força” entre o sujeito e o objeto. O realismo absoluto e o nominalismo
absoluto (...) levavam a reificação igualmente falaciosas. (JAY, 2008, p. 114)

Deve-se, por outro lado, conforme veremos em Debord, evitar as armadilhas do


poder infiltrado na reificação da linguagem, quebrando as regras de significação que nos
amarram a um sentido convencional e ideológico, sem renunciar ao sentido e à lógica da
exposição, pois a razão abstrata serve tanto ao poder quanto aqueles que, por
ingenuidade ou falta de capacidade intelectual, sujeitam-se às determinações do poder
isentando-as de qualquer critério objetivo de configuração do sentido. A linguagem
espetacularizada é um instrumento poderoso de submissão e sua luz brilha apenas para
aqueles que se amparam e se beneficiam do projeto de administração plena,
manipulação e planejamento cujos rastros de destruição são hoje contemplados pela
consciência infeliz que se ampara nas falsas projeções de sua potência alienada.

Diante da ambiguidade constitutiva do projeto de recusa universal da lógica que


se cristalizou no espetáculo e nele construiu suas armadilhas, Debord parece perceber,
com justa melancolia que, embora as ruínas sejam universais e estejam espalhadas pelo
mundo em que se projetam as imagens de uma estática da dominação, o artífice deve
saber como construir no inferno da separação um paraíso possível. Usar o que sobrou de
113

significado para construir um novo projeto. Um novo projeto construído com partes do
antigo.

Parece-nos que, como percebeu Theodore Roszak a propósito dos poetas


marginais da contracultura norte-americana, a busca melancólica de Debord pela fuga
das artimanhas do espetáculo em suas diversas manifestações, não condiz com a etérea
busca de T. S. Eliot, uma geração antes, “a um roseiral apartado das corrupções da
carne.” (ROSZAK. 136) Ao invés disso, o que procura é uma realização bastante
mundana, situada no centro da vida degradada enquanto experiência cotidiana. Tem
como meta uma espécie de prazer do corpo que de algum modo transforme e transfigure
as corrupções do cotidiano em possibilidades de revitalização da experiência a partir de
suas próprias potências e perdas.

Uma guerra travada com as armas do fracasso cotidiano em nome da abertura de


um futuro possível. Tem como meta uma alegria e uma imanência que inclua as
possibilidades corriqueiras de nosso cotidiano como desvios na direção da riqueza do
que poderia advir. O mundo poderia então ser redimido pela disposição de enfrentá-lo,
aceitando os termos que se apresentam sem refugiar-se no amparo confortante da
aderência ao problema, nem adotando a cômoda postura de virar-lhe as costas. O trecho
de um poema de Ginsberg diz:

Este é o único e exclusivo


Firmamento...
Existo na eternidade.
As coisas desse mundo são as coisas do céu.

Ou, como menciona Roszak, com ainda mais vigor:

Porque o mundo é uma montanha


de merda: se vamos movê-la
é preciso que lhe
metamos a mão.
(Citado por ROSZAK. P. 136)

Através da montagem que permite a divergência expressar sua recusa no contexto


de um reaproveitamento das formas convergentes. Uma forma dialógica de combate
114

pela qual se destrói no próprio ato constitutivo de sua missão os compromissos que a
razão espetacular em sua forma reificada instaurou. Não o diálogo fácil das instâncias
políticas em busca da clareza na ação argumentativa e do equilíbrio intersubjetivo nas
relações sociais pseudodemocráticas. A construção de um diálogo possível em Debord
passa necessariamente pelo distanciamento crítico em relação a qualquer compromisso
que não seja o da libertação plena do indivíduo e a ruptura das amarras materiais e
ideológicas que o prendem a uma falsa situação apoiada em uma falsa concepção
legitimante. A razão deve dialogar com as suas circunstâncias e colocar em conflito as
situações pelas quais se propagam as perdas e se reproduzem os mecanismos de
sustentação da alienação. Um diálogo imanente no qual as partes em conflito não se
resolvem numa síntese artificial, mas mantém-se em tensão ressaltando a natureza
aberta, problemática e crítica de sua própria realização.

3.3 Proposição lógica e proposição dialética: um détour de Hegel (o desvio como


herdeiro da linguagem dialética)

Et cum loquela non aliter sit necessarium instrumentum nostre conceptionis


quam equus militis, et optimis militibus optimi conveniant equi, ut dictum
est, optimis conceptionibus optima loquela conveniet. Sed optime
conceptiones non possunt esse nisi ubi scientia et ingenium est; ergo optima
loquela non convenit nisi illis in quibus ingenium et scientia est.22

Dante Alighieri, De Vulgari Eloquentia, Liber Secundus, Capitolo I

Porém o mais importante é saber que nesta filosofia todos os conceitos são
fluidos. Ernst Bloch

O sentido da dialética se instaura através de uma forma de reapropriação do


comum que se faz sentir mesmo no trabalho seminal de Hegel. Tomando a proposição
lógica como unidade de significação Hegel aponta o modo como se efetiva a reificação
na linguagem, índice de seu esvaziamento e falsidade. Ao mesmo tempo, supera o

22
“E desde que a linguagem não é mais que o veículo indispensável ao nosso pensamento, como um
cavalo é para um cavaleiro, e desde que os melhores cavalos são mais adequados aos melhores cavaleiros,
deve-se dizer, a melhor linguagem é adequada ao melhor pensador. Mas, o melhor pensador não se pode
encontrar senão onde conhecimento e inteligência estão presentes; portanto, a melhor linguagem é
adequada apenas aqueles que possuem inteligência e conhecimento.” (DANTE, De Vulgari Eloquentia,
Trad. Plinio F Toledo)
115

formalismo da linguagem acrítica da filosofia tradicional com um movimento


significativo e sutil.

A linguagem abstrata da lógica formal não só não pode dar conta da realidade
efetiva dos eventos em sua multiplicidade e movimento como , de fato, trai e falsifica o
conteúdo concreto da experiência, transformando-o em um procedimento mecânico de
articulação de representações coisificadas e formas substancializadas.

A estrutura sujeito predicado determina não só a forma universal de construção de


proposições significativas, mas estabelece, ao mesmo tempo, um tipo de relação entre
entidades abstratas que induz a consciência a pensar e, portanto, se submeter a um
regime intelectual que a afasta da realidade processual em sua configuração concreta. A
linguagem trai o real e induz a consciência a representá-lo de forma falsa, por se
constituir em estrutura, em um sistema de signos isolado dos movimentos constitutivos
da dinâmica do real em sua articulação concreta, bem como em suas determinações
históricas.

A linguagem de Saussure – subproduto da estrutura metafísica kantiana da


cognição – representa a imagem desse mundo do sentido separado da vida real. De uma
estrutura normativa que vale por si mesma e que se fecha sobre si mesma sem deixar
restos e, não obstante, sem deixar de interferir nas formas pelas quais aqueles que lhe
estão submetidos organizam a suas maneiras de entender e julgar. Nietzsche já havia
escrito sobre a metafísica da linguagem, insinuando que a crença nela estava
relacionada com a aceitação das figuras de poder, das estratégias de restrição e
submissão da personalidade autônoma às regras de um código artificial e abstrato que
nos faculta uma única forma de pensar e organizar a cognição e o juízo.23 Forma padrão

23
Lemos em O Crepúsculo dos ídolos: Contrapomos a isto, enfim, o modo distinto como nós ( - digo
nós por cortesia...) vemos o problema do erro ( Irrthums) e da aparência (Scheinbarkeit) . Em outro tempo
tomava-se a modificação (Veränderung), a mudança (Wechsel), o devir em geral (Werden überhaupt)
como prova de aparência, como signo de que aí tem de haver algo que nos induz a erro. Hoje, ao
contrário, na exata medida em que o prejuízo da razão (Vernunft-Vorurtheil) nos obriga a atribuir unidade
(Einheit), identidade (Identität), duração (Dauer), substância (Substanz), causa (Ursache), coisidade
(Dinglichkeit), ser (Sein), nos vemos, de certo modo, capturados em erro, necessitados do erro; mesmo
quando, baseados em uma verificação rigorosa, em nosso interior nos asseguremos de que é aí onde se
encontra o erro. Ocorre com isto o mesmo que com os movimentos de uma grande constelação: aqui o
erro tem como advogado permanente o nosso olho, lá nossa linguagem. Por sua gênese a linguagem
pertence à época da forma mais rudimentar de psicologia: penetramos em um fetichismo grosseiro
quando adquirimos consciência dos pressupostos da metafísica da linguagem, dito com clareza: da razão.
Esse fetichismo vê por toda parte agentes e ações (Täter und Tun): crê que a vontade é a causa geral; crê
no “eu”, crê que o “eu” é um ser, que o “eu” é uma substância, e projeta sobre todas as coisas a crença na
substância-eu – e assim cria-se o conceito “coisa”... O ser é adicionado com o pensamento, é introduzido
116

constituída pela linguagem normal, o que equivale a dizer a linguagem espetacular:


aquela cristalizada em parâmetros fixos de organização e regras definidas logicamente
como formas padronizadas de significação. Hegel observava na unidade mais simples
de organização da expressão o problema da reificação das formas de representação
submetidas ao padrão formal da articulação lógica da linguagem.

Há que se notar o quanto a formalização da linguagem falsifica a experiência ao


se relacionar com o domínio da vida efetiva e dos eventos concretos como uma forma
exterior e genérica que lhes determina de fora a norma de sua organização. Ocorre aqui
o mesmo tipo de disjunção entre teoria e prática que atacamos em nosso primeiro
capítulo: uma relação entre esferas separadas e contrapostas como diferentes domínios:
o ser e o conhecer, a teoria e a prática, a ação e a concepção, produzidas pela forma
alienada da vida econômica e social que se projetou sobre a configuração da inteligência
conformando sua relação com o mundo desde uma falsa disjunção entre os planos.
Martin Jay exemplifica em Adorno a diagnose crítica desse “absolutismo lógico” que
determinou a vitória do pensamento matemático no ocidente. (JAY, 2008, p 114) Tal
fenômeno, percebeu Debord, não era desprovido de importância social, radicando-se, de
fato, nas formas pelas quais a sociedade ocidental organizava sua via material,
determinando o valor de troca, a forma abstrata do valor, como parâmetro regulativo de
todas as conjunções entre indivíduos e objetos, formas e relações. Para Adorno, a
reificação da lógica “relaciona-se com a forma-mercadoria, cuja identidade existe na
‘equivalência’ do valor de troca”. (Cit, por JAY, Idem)

De qualquer maneira, deve-se sublinhar que a quantificação matemática,


submetida a uma lógica formal em que se deparam duas categorias abstratas
relacionadas pela regra da identidade, passou a figurar como fórmula padrão do
consenso intelectual em torno da linguagem significativa. O padrão sujeito objeto,
fixado na forma predicativa, determinava uma relação de identidade entre duas
categorias abstratas e fixas. Constituía a linguagem como estrutura pela qual se
relacionam formas vazias.

sub-repticiamente em todas as partes como causa (Ursache); do conceito “eu” é que se segue, como
derivado, o conceito “ser” ... (NIETZSCHE. Götzen-Dämmerung. KSA. 1999, p. 77. Tradução feita por
nós direto do original alemão)
117

A linguagem erige-se como padrão de organização da experiência falseando o


conteúdo concreto do vivente em sua manifestação complexa. Ao separar substância e
atributo relacionando-os como categorias abstratas que se articulam na frase predicativa
como formas fixas, a expressão lógica nega o movimento e se opõe à malha das
determinações efetivamente reais da experiência histórica concreta. A norma do código
torna-se, portanto, limite da expressão e índice de sua forma abstrata e falsa. Voltando-
se ao estudo dos limites da razão, Kant realiza o compêndio enciclopédico da concepção
alienada da linguagem. Sua auto-compreensão condicionada pelos mecanismos sociais
que se apropriaram da expressão linguística como um mecanismo abstrato dotados de
limites, no interior dos quais se resume o significado e determina-se a validade das
expressões. A anatomia da razão que Kant examinara em detalhes em sua Crítica da
Razão Pura, (KANT, 2010) – como se estivesse dissecando um sistema de formas,
articuladas como um mecanismo apriorístico que dirigia a consciência humana,
formatando sua percepção das coisas e coordenando, através de categorias abstratas, sua
compreensão do mundo – era, em última análise, a própria linguagem concebida como
estrutura universal de significação, como um conjunto de regras para a organização e
expressão dos fatos, de sua substância e suas conexões lógicas.

O mecanismo da linguagem separava-se dos eventos e os condicionava como


formas e categorias abstratas determinantes de seu sentido e limite. A razão reificada na
linguagem, espelho das estruturas sociais alienadas, concentrava-se naqueles pontos de
fronteira entre as formas e os conteúdos da experiência, considerados como instâncias
separadas, que se relacionavam através de um complicado mecanismo formal de síntese
entre os elementos apriori da consciência e os dados amorfos da realidade material. A
linguagem da razão só poderia compreender aquilo que ela mesma colocou no mundo.
Assim, a experiência efetiva e os eventos reais ficavam fora dos seus limites. Na
linguagem peculiar de Hegel,

A forma, única e imóvel, é adaptada pelo sujeito sabedor dos dados presentes: o
material é mergulhado de fora nesse elemento tranquilo. Isso porém – e menos ainda
fantasias arbitrárias sobre o conteúdo – não constitui o cumprimento do que se
exige; a saber, a riqueza que jorra de si mesma, a diferença das figuras que a si
mesmas se determinam”. (HEGEL, Fen. Esp. P. 28. Grifos nossos)

Instaurava-se aqui uma clivagem entre as estruturas e os conteúdos, efetivamente


separados, não obstante articulados por uma potência formal que se distinguia deles
exatamente ao compreendê-los. A forma da proposição e do juízo estabelece a finitude
118

da razão humana e sua necessária sujeição às limitações das formas da sensibilidade e


dessas às categorias do entendimento. (Cf. KANT, CRP, Do esquematismo dos
conceitos puros do entendimento, p 181) O entendimento aplica suas categorias aos
objetos determinando suas articulações, “todas as intuições sensíveis estão submetidas
às categorias, como às condições pelas quais, unicamente, o diverso daquelas intuições
se pode reunir numa consciência”. (KANT, 142) A diferença entre consciência que
aplica as leis e a matéria que fornece os conteúdos configura-se na proposição como
sujeito cognoscente – objeto cognoscível. Duas esferas reunidas mecanicamente pelas
leis a priori da subjetividade abstrata. Na forma lógica da proposição as categorias
estanques são relacionadas pelos conectivos que estabelecem a pertinência entre
realidades imóveis e externas. Nada de vivo sai dessa maneira de representar as coisas.
Nenhuma verdade é apanhada na teia dessas construções formais.

Pensar torna-se separar; construir a proposição significativa corresponde a


articular instâncias diversas, estanques e formais separadas pelos conectivos verbais que
as relacionam sem superar, no entanto, sua exterioridade e imobilidade constitutivas. As
formas dentro das estruturas permanecem distintas, pertencentes a diferentes estratos,
não do ser, mas do conhecer que se relacionam em sua imobilidade. Trata-se, segundo
Hegel, de um “formalismo de uma só cor, que apenas atinge a diferença do conteúdo, e
ainda assim porque já o encontra pronto e conhecido”. (HEGEL, Fen. Esp. , p 28)

X = Y: eis a forma da proposição convencional sujeito-predicado. A relação que


se estabelece é a de atribuição de características formais a um sujeito imóvel, a uma
substância fixa. Tal estrutura determina a forma do pensar e seus limites abstratos. A
proposição formal-predicativa, começando com o sujeito, como se este permanecesse na
base, depara-se com o predicado como se este fosse uma categoria imóvel, à qual o
sujeito pertence ou que lhe caracteriza alguma qualidade específica. Sujeito e predicado
são relacionados como formas inertes e permanentes; como os dois lados de uma
equação. A realidade é convertida assim em um esquema fixo de representações
imóveis e imutáveis colocadas acima dela, diferentes dela e, em certo sentido, alheias a
ela.

Com incisão polémica Hegel qualifica de raisonnement (raciocínio) a todos esses


juízos do entendimento (Verstand). O raisonnement, esclarece Gadamer, “mantém-se
numa vã negatividade, na medida em que limita-se a refletir a si mesmo. Se entretém
119

em fazer juízos em com isto não se atém à coisa, senão que passa por cima dela”.
(GADAMER. 27) Citando Hegel exemplifica: “em lugar de permanecer nela, esquecer-
se de si nela, semelhante saber se lança sempre em favor de algum outro, porém o certo
é que permanece junto de si mesmo, em vez de manter-se junto à coisa e entregar-se a
ela.” (Phän., 11) Porém o mais importante, lembra Gadamer,

é que o chamado conhecimento positivo é também raisonnement, no sentido de que


coloca o sujeito de base e procede de uma a outra representação, colocando-as em
relação com este sujeito. É característico de ambas as formas, positiva e negativa, do
raisonnement, que o movimento desta captação pensada da coisa discorre
externamente por ela como se ela fosse imóvel e inerte. (GADAMER. 27. Grifos
nossos e do autor)

Os limites formais da linguagem, diante de uma realidade material amorfa e


incompreensível, coagulam-se na ideia de uma estrutura de representação fechada sobre
si mesma como um sistema de signos. A linguagem espetacular estabelece seus
domínios junto dos quais determina sua própria falência, pois ao tentar uma relação com
o real fecha-se sobre si mesma e somente a si mesma representa. O processo real é
traído pela linguagem lógica. No entanto, afirma Hegel,

Na filosofia, a verdade é um processo real, que não cabe em uma proposição. Não é
o abstrato ou o que está privado de realidade que constitui o elemento e o conteúdo
de filosofia, mas o real, o que se auto-estabelece, o que em si mesmo, o que existe
no seu próprio conceito. O elemento da filosofia é o processo cujo movimento cria e
percorre seus próprios momentos, e é este movimento, na sua totalidade, que
constitui seu conteúdo positivo, sua verdade. Uma proposição isolada não pode
apreender este movimento. (Citado por MARCUSE, 1978, p 103)

A “desespetacularização” da linguagem, sua fluidificação crítica em sintonia com


os processos reais, torna-se tarefa da dialética em sua tentativa de religar o signo à
experiência efetiva e restabelecer a possibilidade de sua compreensão real.

Superar as clivagens através da reversão do mecanismo formal da linguagem


reificada. No entender de Hegel, torna-se necessário dotar a expressão de um
movimento que ela perdeu com sua formalização. Revitalizá-la através da dialética. Esta
revitalização, conforme esclarece Marcuse, altera a estrutura e o sentido da proposição,
tornando-a completamente diferente da proposição lógica tradicional. (Cf.: MARCUSE,
1978, p. 104) De fato, em oposição ao modo formal de considerar a proposição, Hegel
introduz na filosofia o “juízo especulativo”. “Este”, de acordo com Marcuse, “não tem
um sujeito estável e passivo. Seu sujeito é ativo e se autodesenvolve nos seus
predicados. Os predicados são formas diversas de existência do sujeito”. (MARCUSE,
idem)
120

Gadamer exemplifica a realização da tarefa de Hegel da seguinte maneira:

(...) o pensamento especulativo é pensamento conceitual. A natural captação da


determinação, para ir mais além do sujeito da proposição rumo a outros aspectos
pelos quais a coisa é determinada como isto ou aquilo, fica limitada. (...) Para o
conhecimento “representativo” ordinário constitui um desafio. Ao querer
experimentar algo novo sobre a coisa, vai-se mais além do fundamento do sujeito
em prol de algo outro que se deixa adscrever como predicado. Porém nas
proposições filosóficas (dialéticas) sucede algo completamente diferente. Nelas não
se dá nenhum fundamento firme do sujeito que, enquanto tal, permaneça
inquestionado. Aqui o pensamento não chega a um predicado que signifique algo
distinto, mas a um predicado que o força a retornar ao sujeito. Não se trata de captar
algo de novo ou diferente como predicado, pois ao pensar o predicado se está em
realidade afundando naquilo que o sujeito é. O subjectum, tomado como
fundamento firme, é abandonado, posto que o pensamento não pensa algo diferente
no predicado, mas, de fato, redescobre nele o sujeito mesmo. (...) (GADAMER. Pp.
27-28)

Note-se que a proposição filosófica a qual Gadamer se refere é, de fato a


proposição dialética que nasce sob o signo da diferença, embora enuncie a identidade.
Na verdade, a proposição descreve um movimento real de explicitação ontológica
daquelas potências que se atualizam constantemente, através da passagem das coisas de
um ponto ao outro de seu processo de realização, através do qual se opera,
efetivamente, uma identidade na diferença, característica do real em seu movimento
concreto. O tornar-se o que se é da realidade, essa contradição desconcertante para o
pensamento ordinário e para a lógica formal do discurso das ciências positivas, é
espelhado pelo movimento proposicional da linguagem dialética. Tal movimento não
pode ser captado pela proposição tradicional porque, como se percebe, esta trai o
processo, congela as determinações reais e as separa abstratamente, construindo uma
representação que não dá conta de captar o inteiro do ser em seu movimento de
diferenciação-identificação, através do qual o todo se manifesta essencialmente como
mudança e transformação daquilo que, não obstante, permanece. Permanece porque se
transforma e se transforma para permanecer. Segundo Marcuse, através dessa espécie de
desvio operado pela proposição dialética, “ a lógica tradicional e o conceito tradicional
de verdade são abalados nos seus fundamentos, não por imposição da filosofia, mas pela
penetração na dinâmica da realidade.” (MARCUSE, Idem, p 105)

Essa complexidade dos processos reais não pode ser captada senão pela mediação
do todo, cuja compreensão pelas categorias da linguagem, articuladas na proposição
dialética, deve permitir um aprofundamento do real em sua constituição movente, em
seu processo de construção da identidade através da diferença. “O verdadeiro é o todo”
diz Hegel, “mas o todo”, continua,
121

...é somente a essência que se implementa através de seu desenvolvimento. Sobre o


absoluto, deve-se dizer que é essencialmente resultado; que só no fim é o que é na
verdade. Sua natureza consiste justo nisso: em ser algo efetivo, em ser sujeito ou vir-
a-ser-de-si-mesmo. (HEGEL. Fen. Do Esp. § 20. Grifos nossos)

Diante do desafio de superar a representação ordinária, a linguagem da dialética


deve construir a ponte que une as figuras da proposição que a lógica formal separou a
fim de retornar ao real e captá-lo em sua totalidade, em sua concreção, na efetividade de
sua complexa malha de determinações moventes. Tornar a linguagem tão fluida como o
real. Neste sentido, como observa Gadamer,

A proposição filosófica não é, em absoluto, uma proposição. Nada se propõe nela


que deva permanecer. Porque o “é”, a cópula desta proposição, tem aqui uma função
completamente diferente. Não enuncia já o ser de algo com outro algo, mas descreve
o movimento no qual o pensamento passa do sujeito ao predicado para voltar a
encontrar nele o solo firma que perdeu. (GADAMER. P. 28. Grifos nossos.)

A proposição dialética nasce sob o signo do desvio e busca realizar-se através da


superação dos limites estruturais da proposição formal. Exige-se uma ruptura contra as
limitações espetaculares da sintaxe que governa as regras de organização da frase, que
delimitam os parâmetros da proposição formal em nome de uma exatidão e limites
estruturais que traem a experiência real, a constituição efetivamente real dos fenômenos
em sua plasticidade e movimento dialéticos. A proposição dialética em seu elemento e
conteúdo não é, concluímos com Hegel,

o abstrato e o inefetivo, mas sim o efetivo, que se põe a si mesmo e é em si vivente:


o ser-aí em seu conceito. E o processo que produz e percorre os seus momentos; e o
movimento total constitui o positivo e sua verdade. Movimento esse que também
encerra em si o negativo, que mereceria o nome de falso se fosse possível tratar o
falso como algo de que se tivesse de abstrair. Ao contrário, o que deve ser tratado
como essencial é o próprio evanescente; não deve ser tomado na determinação de
algo rígido, cortado do verdadeiro, deixado fora dele não se sabe onde; nem
tampouco o verdadeiro como um positivo morto jazendo do outro lado. A aparição é
o surgir e o passar que não surge nem passa, mas que é em si e constitui a
efetividade e o movimento da vida da verdade. (HEGEL, 1992, p 46)

A superação do formalismo é definitiva para as exigências da expressão dialética


porque, segundo Debord, a forma de uma linguagem que estabiliza os fluxos e
hierarquiza o real em nome de uma suposta verdade científica, opera, de fato, dentro dos
limites impostos pelo espetacular e os absolutiza. Corresponde ao veículo ideológico de
uma formação social que se estabiliza na consciência mediante o engano da expressão
espetacular. Segundo Debord, “não é possível apreciar determinadas épocas de
transformação de acordo com a consciência que a época tem delas; ao contrário, deve-se
122

explicar a consciência com a ajuda das contradições da vida material...” 24


(SE § 202)
Segue-se um parágrafo repleto de desvios pelos quais Debord expressa a necessidade de
se superar a falácia estruturalista rumo à compreensão dos processos vitais totais de um
ponto de vista extra-espetacular.

Tout comme on n'apprécie pas la valeur d'un homme selon la conception qu'il a de
lui-même” : [détournement de Marx, Prefácio à Crítica da economia-política] : De
même qu'on ne juge pas un individu sur l'idée qu'il se fait de lui-même, de même on
ne saurait juger une telle époque de boulversement sur la conscience qu'elle a d'elle-
même. (...) “On ne peut apprécier de telles époques de transformation selon la
conscience qu'en a l'époque ; bien au contraire, on doit expliquer la conscience à
l'aide des contradictions de la vie matérielle ...” : [citação de Marx, idem.] (SE §
202)

E aqui se chega ao essencial: “La structure est fille du pouvoir present”25. A


absolutização das categorias da linguagem separadas da existência concreta, como se
constituíssem uma entidade formal autônoma, regida pelas próprias leis, organizada em
um sistema hierárquico, “é o pensamento garantido pelo Estado, que pensa as atuais
condições da comunicação espetacular como um absoluto.” (SE § 203) “Seu modo de
estudar o código (Debord refere-se aqui ao estruturalismo) das mensagens em si mesmo
é apenas o produto e o reconhecimento de uma sociedade na qual a comunicação existe
sob a forma de cascata de sinais hierárquicos.” (SE § 203)

De sorte que ce n'est pas le structuralisme qui sert à prouver la validité


transhistorique de la société du spectacle ; c'est au contraire la société du spectacle
s'imposant comme réalité massive qui sert à prouver le rêve froid du
structuralisme.26 (SE § 202. Grifos nossos)

A concepção dialética da linguagem em Debord, depois de ter experimentado toda


a decepção do rapto da razão pelo poder, que constituiu uma das formas de se obter o
controle sob a falsa unidade na separação, através do pseudo-acordo das consciências

24
Citação de Marx. Crítica da economia política, em cuja tradução francesa pode ler: Dans toute science
historique et sociale en général, il faut toujours retenir que le sujet - ici la société bourgeoise moderne -
est donné aussi bien dans la réalité que dans le cerveau ; et que les catégories expriment des formes et des
modes d'existence. Debord insere-se aqui na vertente ontológica da dialética marxiana, aquela que
cumpre as diretrizes da linguagem especulativa hegeliana em sua articulação extra-formal como desafio à
superação da representação e mergulho nas categorias da existência. Citando Debord-Marx: “Comme
dans toute science sociale historique, il faut toujours garder en vue, pour la compréhension des catégories
« structuralistes » que les catégories expriment des formes d'existence et des conditions d'existence.”
Como representativas da existência as categorias não são pressupostos gnosiológicos formadores de uma
perspectiva subjetiva que se projeta sobre a existência e a modela, mas conceitos regidos por uma lógica
da negação-superação através da qual o cerne do existente é captado em sua realidade efetiva. A
linguagem não se tarela à lógica do poder, mas aos processos da vida.
25
Détournement de Swift : “O louvor é filho do poder presente”
26
Détournement de Marx, Crítica da economia política, Introdução: “Cet exemple du travail montre
d'une façon frappante que les catégories les plus abstraites elles-mêmes - malgré leur validité ( à cause de
leur abstraction) pour toutes les époques n'en sont pas moins, dans cette détermination abstraite, tout
autant le produit de conditions historiques et n'ont leur pleine validité que pour elles et dans leur limite.”
123

iludidas, não pode mais apenas descrever o fenômeno como se acompanhasse suas
peripécias e evoluções ontológicas. Deve, ao contrário, subtrair ao fenômeno sua lógica
e mostrar, por trás do movimento mesmo de construção do significado e da falácia do
código consueto de normas, a servidão sob a capa do sistema. Não apenas rearticular a
linguagem ao real, como Hegel fez, mas mostrar a dependência do significado em
relação às forças materiais que dele se apropriam. Libertar a linguagem de sua utilização
pelo poder. Para tal é necessário antes restabelecer os fluxos, quebrar a magia da
linguagem pensada como sistema formal, romper os limites abstratos das categorias
reconduzindo-as aos seus verdadeiros liames com a vida efetivamente vivida. Romper
os limites abstratos e as formas fixas da linguagem pelo desmonte de suas estruturas,
pelo substituição e realocação de seus elementos, enfim, pelo desvio operado como
modo de se penetrar na estática da linguagem formal e dinamizá-la pela subversão de
seu sentido. Um passo dentro da linguagem utilizada pelo poder corresponde a um
passo na direção da realidade que ele quer encobrir. Desviar a linguagem em seus
referencias proposicionais e sistêmicos corresponde, portanto, a realização de uma
crítica que não se detém nas categorias, nem se reduz apenas a análise lógica dos signos
e suas relações, mas penetra o mundo dos fenômenos reais, históricos e concretos,
religando a eles os símbolos autênticos de sua significação.

A dialética desvenda, desvia, não para representar, nem para construir o


significado de acordo com os parâmetros determinados pelos moldes comuns, mas para
romper o consenso e trabalhar pela verdade. Exibir o contrário, subverter o sentido,
desmontar a mecânica insidiosa do sistema de poder, que é o sistema de signos onde se
coagula a figura do controle em sua forma santificada e plena: a estrutura. A dialética
não pode mais servir à simples desconstrução da linguagem, deve mostrar a quem a
linguagem em sua forma atual serve, exibir os vínculos políticos das ideias e dos
discursos através da inversão da lógica do discurso, mecanismo que liberta o sentido de
sua prisão ideológica. Para tal é mister desviar não só a forma da proposição, mas a
estrutura, desconstruir o sistema, uma vez que nele se dá a forma invertida da verdade
em sua constituição ideológica plena. Nela o poder configura a unidade aparente das
divisões reais, pela qual sustenta a inversão que mascara a verdade, afastando os
símbolos da linguagem de sua função dialética, que deveria mediar a inserção dos
signos e suas relações na dinâmica dos processos históricos efetivos. O que veremos em
Debord mais adiante.
124

Debord escreve sobre as palavras como “signos da organização dominante da


vida” (DEBORD. All the King’s Men), contra os quais se deve lutar. Em uma virada
marxiana da consciência dialética, aponta os vínculos sociais do sentido, a dependência
da linguagem às determinações do poder. Exatamente o plano de aderência ao imediato
que a dialética deve romper.

As palavras trabalham para a organização dominante da vida. E contudo, elas


não estão robotizadas; para a infelicidade dos teóricos da informação, as palavras
não são elas mesmas “informacionistas”; nelas, manifestam-se forças que podem
frustrar os cálculos. As palavras coexistem com o poder numa relação análoga
àquela que os proletários (no sentido clássico, tanto quanto no sentido moderno
deste termo) podem manter com o poder. Empregadas durante quase todo o tempo,
utilizadas em tempo pleno, em pleno sentido e em pleno não-sentido, elas
permanecem em algum lado radicalmente estrangeiras.

O poder dá somente a carteira de identidade falsa das palavras; ele lhes impõe
um livre trânsito, determina seu lugar na produção (onde algumas fazem
visivelmente horas extras); libera-lhes de algum modo sua caderneta de pagamento.
Reconheçamos a seriedade do Humpty-Dumpty de Lewis Carroll que considera que
toda a questão, para decidir o uso das palavras, é a de “saber quem será seu senhor,
e ponto final”. E ele, patrão social na matéria, afirma que paga em dobro àquelas que
ele usa muito. Compreendamos também o fenômeno de insubmissão das palavras,
sua fuga, sua resistência aberta, que se manifesta em toda a escrita moderna (desde
Baudelaire até os dadaístas e Joyce), como o sintoma da crise revolucionária de
conjunto na sociedade. (DEBORD. All the king’s men)

Voltando ao ponto: na própria linguagem da dialética verifica-se a possibilidade


de uma crítica ao poder não conciliatória e total. A linguagem do desvio corresponde à
superação da falácia estruturalista, escrava do dogma positivista, cuja falsa
representação do real como sistema hierárquico, organizado em categorias abstratas,
apenas coincide com as diretrizes políticas de uma sociedade dividida, que se representa
como sistema apenas para provocar a conciliação das consciências igualmente
divididas. Submetê-las a um falso regime do significado atrelado aos interesses políticos
de classe. Esse regime apresenta-se imediatamente materializado na gramática lógica,
cujo componente estrutural atômico é a categoria abstrata e o mecanismo motor a
proposição reificada. Nela uma substância fixa relaciona-se mecanicamente a uma
abstração, igualmente fixa. Não há concretude na linguagem lógica uma vez que esta
rompeu todos os laços com a experiência para impor-se como sistema regulador da vida.
Tal sistema funciona sob o domínio das forças que dele se servem para perpetuar o
controle. Sendo assim, “Sob o controle do poder, a linguagem designa sempre outra
coisa que o vivido autêntico.” (DEBORD. All the king’s men)

A linguagem da dialética deve buscar correspondência ao “vivido autêntico”, mas,


para tal, parte de uma compreensão ontológica do fenômeno, não de uma orientação
125

gnosiológica de seus limites formais. A dialética deve descobrir mediante a restauração


do poder simbólico da linguagem a linguagem do existente em sua efetividade e, assim,
superar a perspectiva do poder. Debord percebe que a possibilidade de romper com o
uso dado à linguagem pelo poder, que a afasta da vida e a desnatura, reside exatamente
no fato de uma linguagem assim acabar por revelar sua falência, por mostrar em seus
próprios limites a imposição da norma que lhe é estranha. A norma política de uso do
signo como instrumento de controle. Para tal o símbolo deve ser reduzido a veículo de
informação e reificado no interior da estrutura de significação. “É precisamente aí que
reside a possibilidade de uma contestação completa. A confusão se desvela tal, na
organização da linguagem, que a comunicação imposta pelo poder se revela como uma
impostura e um logro.” (DEBORD. All the king’s men)

Despir a capa ideológica dos signos e revelar sua real fonte de significação. Nela
apresentar o esvaziamento do sentido, a localização dos signos em um reino abstrato de
relações formais mediante a crítica dialética mediada pela linguagem em desajuste com
os interesses do poder: a linguagem da contestação total. Um protesto contra a
separação da verdade, e suas formas, dos processos concretos; um protesto contra a
exclusão de qualquer influência diretora que a “verdade” a mando do poder pudesse ter
sobre a realidade.

A linguagem da crítica deve ser, ao mesmo tempo, a crítica da linguagem. Deve


já estar de posse de um mecanismo diferente de significação para desmontar os signos
ideológicos em seus vínculos políticos, em sua traição ao vivido autêntico. Violar as
regras em conformidade com a exigência da verdade no interior do movimento de
desvelamento da própria falência ontológica das regras. Nisto aproxima-se da exigência
criativa da poesia, da necessidade de efetuar a crítica no âmbito de uma linguagem
renovada: não a linguagem analítica, não a linguagem fetichizada, mas a linguagem real
que acompanha os fluxos e os desvenda em sua efetividade plena e se reaproxima da
vida. Uma linguagem difícil? Mas aqui temos de convir com Adorno que a insistência
na clareza coincide com o medo que o bom filho da civilização moderna tem de afastar-
se dos fatos. Fatos reificados como quer o bom positivista; clareza e distinção como
postula o bom burguês cartesiano.

Essas usanças também definem o conceito de clareza na linguagem e no pensamento


a que arte, a literatura e a filosofia devem se conformar hoje. Ao tachar de
complicação obscura e, de preferência, de alienígena o pensamento que se aplica
negativamente aos fatos, bem como às formas de pensar dominantes, e ao colocar
126

assim um tabu sobre ele, esse conceito mantém o espírito sob o domínio da mais
profunda cegueira. (ADORNO, 1985, p.14)

E aqui vem o decisivo para nós: a necessidade de uma revolução na linguagem a


fim de dotá-la do “poder do negativo” que a torne capaz de contestar a ordem existente
em sua própria forma, no próprio processo de reorganização da expressão divergente.
Não é possível à linguagem dialética usar os mesmos termos desgastados da antiga
filosofia positiva sem desviá-los. Para construir seus meios de aproximação à
concretude e à verdade que o conceito gasto da ideologia escondeu é necessário renovar
a linguagem da crítica. Torná-la estranha e não usual; desnaturá-la. Quebrar as vidraças
que embaçam a visão dos campos. Nos termos de Adorno,

É característico de uma situação sem saída que até mesmo o mais honesto dos
reformadores, ao usar uma linguagem desgastada para recomendar a inovação, adota
também o aparelho categorial inculcado e a má filosofia que se esconde por trás
dele, e assim reforça o poder da ordem existente que ele gostaria de romper. A falsa
clareza é apenas uma outra expressão do mito. Este sempre foi obscuro e iluminante
ao mesmo tempo. Suas credenciais têm sido desde sempre a familiaridade e o fato
de dispensar do trabalho do conceito. (ADORNO, 1985, p.14. grifos nossos)

Desvincular a linguagem do interesse do poder através de seu desvio. Segundo


nossos termos: é necessária uma renovação da linguagem pela astúcia da dialética.
Somente assim ela não reforça a ordem que quer romper e, ao mesmo tempo, concilia-se
com o fenômeno que procura representar plenamente em todas as suas articulações e
sentidos.

Neste ponto, é bom que se observe, a tarefa da dialética em Debord vai muito
além das operações linguísticas de Hegel, ela trabalha em comércio com a arte,
extraindo dela a força diferencial, a potência criativa que permite à linguagem da crítica
construir-se em dissidência completa com o poder e assim, restabelecer os laços com a
experiência vital. É preciso compreender que

O poder vive de furto encoberto. Ele não cria nada, ele recupera. Se ele criasse o
sentido das palavras, não haveria poesia, mas unicamente a “informação” útil. Não
se poderia jamais se opor na linguagem, e toda recusa lhe seria exterior, seria
puramente letrista. Ora, o que é a poesia, senão o momento revolucionário da
linguagem, não separável enquanto tal dos momentos revolucionários da história e
da história da vida pessoal?(DEBORD, All the King’s Men. Grifos nossos)

O momento revolucionário da linguagem não separável da vida. É preciso que se


repita. Lemos aqui uma diretriz fundamental para a compressão da linguagem dialética:
ela não pode ser abstrata, nem analítica, mas concreta e sintética. Deve trazer em seu
próprio movimento a totalidade do vivido como determinação essencial do sentido. A
127

linguagem do não separável que transita entre os momentos revolucionários da história


e da vida pessoal conectando-os como determinações englobantes de um mesmo
significado em erupção. Restituir à linguagem seu poder simbólico significa reatá-la ao
movimento global do concreto, restaurar sua referência à totalidade. Fazê-la funcionar
através de um contramovimento que reverta o sentido da mecânica do sistema, que a
desvie de seus vínculos com as forças da separação.

A ideia de uma revolução permanente como atributo da linguagem dialética


resolve-se em uma retomada da poesia como função de um projeto teórico-prático de
contestação total. Se a informação e a reificação são a poesia do poder, e o poder é a
força de manutenção de uma ordem de coisas coerente com os interesses de uma calasse
dominante, a contrapoesia da linguagem dialética deve ser a concreção simbólica da
força revolucionária que move os signos no rumo de sua comunicação com o real,
enquanto modificação deste mesmo real. Leiamos em Debord:

A apropriação da linguagem pelo poder é assimilável à sua apropriação da


totalidade. Somente a linguagem que perdeu toda referência imediata à totalidade
pode fundar a informação. A informação é a poesia do poder (a contrapoesia da
manutenção da ordem), é a trucagem mediatizada do que é. Inversamente, a poesia
deve ser entendida enquanto comunicação imediata no real e modificação real deste
real. (DEBORD. All the king’s men)

Segundo Ernst Bloch, “A linguagem de Hegel viola as regras da gramática,


simplesmente, porque tem coisas inauditas para dizer, coisas para as quais a gramática
anterior a ele não possui recursos.” (BLOCH, P. 21) Para Debord uma linguagem assim
compreendida é também uma linguagem que se libertou, que reconquistou a sua riqueza
mediante a quebra do controle ideológico sobre os seus signos. Que se vitalizou das
forças da criação para romper o laço com a conservação que delas se apropriou para
fazer veicular sentidos que lhe são estranhos. No entanto, a linguagem como
determinação ontológica vinculada à vida social na qual se insere, deve ser sempre um
movimento revolucionário, uma complexa mecânica construtiva pela qual busca
transcender as barreiras que a limitam e afastam do vivido.

A linguagem libertada é a linguagem real. Quebrar as barreiras, quer dizer,


realizar-se através da destruição dos limites impostos de fora à sua significação constitui
um movimento fundante de seu desvio rumo à retomada de sua potência ativa.

Ela não é outra coisa que a linguagem libertada, a linguagem que reconquista
sua riqueza e, quebrando seus signos, recobra ao mesmo tempo as palavras, a
música, os gritos, os gestos, a pintura, as matemáticas, os fatos. A poesia depende,
128

portanto, do nível da maior riqueza em que, em um estágio dado da formação


econômico-social, a vida pode ser vivida e mudada. É então inútil precisar que esta
relação da poesia para com sua base material na sociedade não é uma subordinação
unilateral, mas uma interação. (DEBORD. All the king’s men)

Diante da obscuridade da matéria, a totalidade real em suas complexas


articulações, a vida de suas determinações moventes, pode-se esperar comunicar apenas
através de uma “linguagem que reproduz com exatidão essa matéria obscura em
fermentação”. (BLOCH, P 23) “Hegel rompe, portanto, com a sintaxe das palavras ali
onde esta não combina com a única sintaxe que pode pautar o ponto de vista filosófico:
a sintaxe lógico-dialética.” (BLOCH,P 22. Grifos nossos) Em Debord, “O programa da
poesia realizada não é nada menos do que criar ao mesmo tempo acontecimentos e sua
linguagem, inseparavelmente.” (DEBORD. All the king’s men) Vale dizer, o programa
de restauração do poder expressivo da linguagem não pode mais ser pensado e realizado
senão no interior de um amplo movimento de revolução que parte da compreensão,
recupera a expressão e incide sobre as forças vitais realizando praticamente o
programa teórico. A linguagem poética, não da subordinação unilateral, mas da
interação, da expansão complexa do movimento dos signos em sua revolução
permanente. Em sua busca de interação com o vivido autêntico. A expressão da vida
mediante uma força semântica, componente da vida que a ela retorna e a expressa em
sua completude e complexidade. A linguagem da revolução é a linguagem da
transformação total da vida cotidiana, da superação da positividade alienante de sua
forma fraturada e submissa.27

A alienação e reificação da linguagem, por sua vez, assumem a forma da


totalidade abstrata através da descrição da língua como estrutura, como objeto, isolado
das condições vivas da sua utilização. Tal isolamento assume sua máxima abrangência
na figura do sistema, idealizado como apanhado sintético da das categorias universais
elevadas à máxima abrangência, portanto, isolada mais completamente das situações
efetivas da vida. A linguagem da dialética em Debord deve, assim, ser capaz de
recuperar a determinação ontológica das categorias, ao mesmo tempo em que se desvia
do falseamento operado pelo sistema em relação às condições concretas da existência.

27
Confere acima o capítulo sobre as perspectivas para a transformação da vida cotidiana, om o qual a
concepção dialética da linguagem deve ser pensada.
129

Um projeto marxiano realizado por Debord através da exigência revolucionária que


nutre o acordo entre teoria crítica e procedimento poético.28

A superação da separação sujeito-predicado em Hegel corresponde em Debord à


separação total entre indivíduo e a sua vida efetiva, sua experiência autêntica, mantidas
em separação pela linguagem servil, subordinada ao poder. A clivagem entre totalidade
social que paira diante da representação, que se separa dela e a ela se dirige como um
poder externo deve ser superada pela linguagem do desvio: a dialética realizada pela
arte.

A língua não é um sistema: é um aglomerado fragmentário de procedimentos que


só é completado pelo sistema do mundo, pela realidade em torno, na qual ela é uma
forma de instalação humana, articulada por sua vez com muitas outras.29 A ruptura com
a linguagem do poder, a criação de uma sintaxe adequada à expressão do vivido, da
realidade efetiva em todas as suas contradições, realiza-se como programa
revolucionário total de desvio do sistema concebido como afastamento do mundo.
Reinserção da linguagem no sistema da vida social concreta, restabelecimento de sua
forma de instalação histórica no âmbito do efetivamente vivido como determinação

28
Um longo trecho extraído dos Grundrisse de Marx deve servir para clarear a vinculação ontológica
entre Debord e Marx e estabelecer a diferença em relação a Hegel. Citemos:
O concreto é concreto, porque é a concentração de muitas determinações, isto é, unidade do diverso. Por
isso, o concreto aparece no pensamento como o processo da concentração, como resultado, não como
ponto de partida, embora seja o verdadeiro ponto de partida e, portanto, o ponto de partida também da
intuição e da representação. No primeiro caminho a representação plena volatiza-se na determinação
abstrata; no segundo, as determinações abstratas conduzem à reprodução do concreto por meio do
pensamento. Assim é que Hegel chegou à ilusão de conceber o real como resultado do pensamento que se
concentra, que se aprofunda em si mesmo e se apreende a partir de si mesmo como pensamento móvel;
enquanto o método que consiste em elevar-se do abstrato ao concreto não é senão a maneira de proceder
o pensamento para se apropriar do concreto, para reproduzi-lo espiritualmente como coisa concreta.
Porém, isto não é, de nenhum modo, o processo da gênese do próprio concreto. A mais simples categoria
econômica, suponhamos por exemplo o valor de troca, pressupõe a população, uma população que produz
em determinadas relações e também certo tipo de famílias, de comunidades ou Estados. Tal valor nunca
poderia existir de outro modo senão como relação unilateral, abstrata de um todo dado, concreto e vivo.
(...) a totalidade concreta, como totalidade de pensamento, como uma concreção de pensamento, é, na
realidade, um produto do pensar, do conceber; não é de nenhum modo o produto do conceito que se
engendra a si mesmo e que concebe separadamente e acima da intuição e da representação, mas é
elaboração da intuição e da representação em conceitos. O todo, tal como aparece na cabeça, como um
todo de pensamento, é um produto da cabeça pensante, que se apropria do mundo da única maneira em
que o pode fazer, maneira que difere do modo artístico, religioso e prático-espiritual de se apropriar dele.
O objeto real [reale Subjekt] permanece em pé antes e depois, em sua independência e fora da cabeça ao
mesmo tempo, isto é, a cabeça não se comporta senão especulativamente, teoricamente. No método
também teórico da economia política o objeto – a sociedade – paira como pressuposição diante da
representação.”
[MARX, Karl. O Método da economia-política. 1984, P 410. Grifos nossos].

29
OC. O método Derrida. In.: Jornal do Brasil, 12 de janeiro de 2006
130

concreta de um momento específico do processo social, que deve ser articulado aos
outros momentos sem perder a sua especificidade e nem abstrair-se do sistema do
mundo.30 A destruição de todos os meios de reprodução da separação, do controle, da
submissão e da mentira. Não a poesia a serviço da revolução, como esclarece Debord,
mas “a revolução a serviço da poesia.” (DEBORD. All the king’s men) Esta é a verdade
dialética da arte e da linguagem renovada pelo desvio.

O significado da revolução sintática hegeliana fica mais claro quando se tem em


mente a necessidade sentida por Hegel de traduzir-se a si mesmo através de um mundo
de pensamentos ainda carente de linguagem. Dotar de linguagem aquilo que a
linguagem havia colocado de parte como insignificável. Ao contrário, Hegel proclama:
“A palavra dá ao pensamento sua existência mais verdadeira e mais digna (...) E assim
como o pensamento verdadeiro é a coisa, também o é a palavra, quando um pensador
de verdade a emprega.” (BLOCH, idem)

Temos aqui todo o programa de restauração da linguagem filosófica seguido por


Debord. Embora ele se afaste, melhor se desvie de Hegel na maior parte de suas
intervenções dialéticas e sistêmicas, como veremos mais adiante, a concepção da
linguagem como uma potência real, como uma mediação social determinante e
determinada pelos sujeitos ativos em suas relações efetivamente reais, as quais a
linguagem deve traduzir de forma tão completa quanto significativa, é uma herança
hegeliana. Mas o programa dialético de conjunção da linguagem da crítica com a arte,
mediante a qual reverte-se a submissão do significado ao poder é uma conquista
debordiana. Devemos estuda-la mais detidamente após esses esclarecimentos sobre a
linguagem dialética. Aqui cabe dizer que esta conquista é o que chamamos de “astúcia
da dialética”. Conceito que nosso trabalho se esforça em traduzir e fundamentar através
do ensaio de tantos desvios.

3.4 Passagem para o desvio

Quando um pensador de verdade a emprega a palavra é a coisa, a proposição é a


conjunção simbólica das relações entre as coisas, das quais ela mesma é um componente
fundamental, e o conjunto das proposições, a totalidade das coisas em sua concretude
pensada, em suas relações de poder, em suas diferenças e hierarquias, reais ou não,

30
Uma tentativa de Hegel que naufraga em suas próprias circunstâncias como demonstraremos em nosso
capítulo sobre o desvio do sistema.
131

captadas pela linguagem. A reversão da forma abstrata da linguagem na direção das


coisas reais, a reestruturação da proposição mediante a reversão de sua lógica pelo
desvio, o ataque frontal à totalidade alienada através do desvio do sistema de Hegel, é o
que Debord traz de contribuição à dialética; sua maneira de concretizar o projeto
hegeliano pela subversão das pseudo-realizações do filósofo suábio através da
superação do dogma positivista coagulado na falácia estruturalista. Uma tarefa de
gigante que ele realiza através da conjunção da arte e da filosofia.

Da mesma forma que Debord, Hegel enfrentou, antes dele, o problema central que
abordamos em nossa tese, ou seja, como expressar conteúdos divergentes em uma
forma proposicional cujos limites evidentes nos impedem de ir além do que a linguagem
normal prescreve. Em outras palavras: como expressar a verdade do todo em seu
movimento e em suas articulações fundamentais sem renunciar à linguagem do conceito
nem se refugiar no irracional ou na intuição religiosa. “Somente a linguagem que perdeu
toda referência imediata à totalidade pode fundar a informação.” (DEBORD. All the
king’s men) Construir uma linguagem avessa aos limites e mentiras da linguagem da
informação, cara ao poder. Para tal a recuperação da categoria da totalidade torna-se
imprescindível e com ela o acordo com a dialética de Hegel.

Hegel percebeu que os limites que a linguagem nos impõe não podiam ser
transcendidos, o que equivale a dizer que ele reconheceu que não se poderia querer
buscar um ponto de apoio fora da linguagem que nos permitisse ultrapassar os limites
da linguagem. Ao contrário, ao construir a linguagem dialética a partir de um desvio
operado no interior da linguagem formal no rumo da proposição especulativa, Hegel
constrói uma primeira astúcia dialética: extrai dos limites do dado a potência que lhe
permite a criação de uma dinâmica expressiva não mais refém das contradições
insuperáveis dentro dos limites da forma lógica.

Se Hegel empregou a dialética como forma de superar os limites da linguagem


formal sem renunciar ao conceito, vale dizer, sem retroceder à expressão religiosa nem
à arte, Debord vai exatamente aproveitar das possibilidades do desmonte, do plágio e da
reutilização como formas de acesso a um diálogo possível com a tradição no interior da
própria lógica instaurada pela tradição. O desmonte se daria como procedimento
imanente de combate dialógico através do qual os elementos que se desviam são
extraídos de um contexto específico e reutilizados em outro contexto dentro do qual
132

assumem novos significados e apontam para novos fins. Apropriar-se do procedimento


fundado por Lautréamont, com quem Debord aprende uma intervenção artística capaz
de renovar o discurso da filosofia e permitir à dialética superar as limitações e
vinculações ideológicas da linguagem filosófica, na direção de uma superação da
filosofia enquanto postura teórica, contemplativa e espetacular desvinculada da práxis
social, aos moldes da filosofia de Kant e do estruturalismo.

Assim a dialética elabora sua astúcia: construir com as armas do inimigo a


artilharia que daria cabo das posições do inimigo, infiltrando-se em suas trincheiras e
desconstruindo suas posições. Se não é possível estabelecer um ponto para fora do
discurso normal e da ideologia é possível invadi-lo e desviá-lo reaproveitando seus
elementos para a construção de novos significados fins.

A proposição dialética em Debord vai experimentar variações muito mais amplas


a decisivas que as da dialética hegeliana-marxiana. Vai constituir um núcleo
micrológico em torno do qual Debord construiu sua variação macrológica mais
ambiciosa e significativa: o que chamamos “desvio do sistema”. Dentro dele, como
veremos, o movimento restaurado das “proposições desviantes” configuram um
contraponto dialético pelo qual o todo se comunica com as partes, e vice versa,
estabelecendo um diálogo aberto, no contexto de uma obra acabada, para além das
estruturas e dos limites formais, restabelecendo, pelo estilo, a vida dos conteúdos
concretos. A linguagem recriada como força prática contra o espetáculo através daquilo
que o espetáculo postula e põe como dado insuperável. A astúcia da dialética. Deixemos
a palavra final com Debord antes de passarmos ao desvio:

Sans doute, le concept critique de spectacle peut aussi être vulgarisé en une
quelconque formule creuse de la rhétorique sociologico-politique pour expliquer et
dénoncer abstraitement tout, et ainsi servir à la défense du système spectaculaire.
Car il est évident qu’aucune idée ne peut mener au delà du spectacle existant, mais
seulement au delà des idées existantes sur le spectacle. Pour détruire effectivement
la société du spectacle, il faut des hommes mettant en action une force pratique. La
théorie critique du spectacle n’est vraie qu’en s’unifiant au courant pratique de la
négation dans la société, et cette négation, la reprise de la lutte de classe
révolutionnaire, deviendra consciente d’elle-même en développant la critique du
spectacle, qui est la théorie de ses conditions réelles, des conditions pratiques de
l’oppression actuelle, et dévoile inversement le secret de ce qu’elle peut être. Cette
théorie n’attend pas de miracles de la classe ouvrière. Elle envisage la nouvelle
formulation et la réalisation des exigences prolétariennes comme une tâche de
longue haleine. Pour distinguer artificiellement lutte théorique et lutte pratique – car
sur la base ici définie, la constitution même et la communication d’une telle théorie
ne peut déjà pas se concevoir sans une pratique rigoureuse –, il est sûr que le
cheminement obscur et difficile de la théorie critique devra être aussi le lot du
mouvement pratique agissant à l’échelle de la société. (SE. 203)
133

Capítulo 4. Proposição desviante e as diretivas teórico-práticas

As palavras trabalham para a organização dominante da vida.

Guy Debord

4.1 Trabalho da palavra

Em sentido geral, pode-se afirmar que uma proposição desviada é uma


“proposição atualizada”, cuja forma inicial foi reinserida no movimento das
determinações históricas que espelha.

A correção do sentido da proposição original pelo desvio permitiu a esta reordenar


seus significados em função da adequação de seu conteúdo aos novos desdobramentos
da realidade social, da qual havia se distanciado pelo fato de a trama de seus conceitos
não mais especular a “dinâmica do concreto”. Em outras palavras, a realidade em seu
movimento se distanciou da proposição que não mais correspondia integralmente às
suas articulações fundamentais. Se sua forma mantinha em certa medida a fórmula
adequada à realização da captura pelo pensamento das determinações concretas o
mesmo não ocorria com a totalidade de seus conceitos. Uma correção semântica torna-
se necessária sem que a forma da proposição em sua configuração geral seja,
aparentemente, alterada. No entanto, uma vez que o conteúdo alterou-se
significativamente, é de se esperar que em certa medida a forma tenha-se atualizado
junto com o que significa. De fato, o quadro que ela agora delineia serve de referência
privilegiada ao diálogo que o desvio instaura com sua referência canônica, promovendo
um contraponto mediante o qual o sentido é atualizado em função do “sequestro de sua
forma”.31 Anima a linguagem de um movimento que a estrutura tradicional da lógica
formal em sua estabilidade abstrata assentada sobre o consenso e a norma padrão nega,
e isto exatamente por falsear a sua relação com o mundo.

Se o mundo é movimento, transformação, complexidade e a linguagem constituiu


o meio de a consciência se aproximar da verdade do mundo, ela (a linguagem) deve

31
Vale lembrar que Détournement é uma palavra francesa que significa desvio, diversão,
reencaminhamento, distorção, abuso, malversação, sequestro, ou virar ao contrário do curso ou propósito
normal. Ela (a palavra) foi apropriada para designar uma prática criativa pelo movimento situacionista,
especialmente por dois de seus líderes, Guy Debord e Gil J. Wolman.
134

animar-se da mesma complexidade e do mesmo dinamismo que a realidade possui. Em


outras palavras, uma vez que a realidade é dialética, movimento ontológico das
categorias em que as partes e o todo se articulam em um diálogo complexo, a realização
do sentido da linguagem, se esta pretender estabelecer vasos de comunicação ente a
consciência e o ser, deve acompanhar o sentido dialético do mundo.

Isto significa que a linguagem deve ser crítica e experimentar a sua própria
historicidade antes, ou exatamente, enquanto se aproxima de sua realização como
mediação socialmente eficaz a serviço da consciência revolucionária. A verdade da
expressão está ligada à historicidade da experiência que ela reflete, portanto deve-se
manter, por assim dizer, constantemente à deriva se pretende alcançar a comunhão com
a experiência integral que é o índice de sua própria verdade.

Pode-se dizer que a proposição desviante, ao negar estabilidade à sentença


destruindo a sua forma original recupera a possibilidade de sua adequação ao conteúdo
da experiência da qual se havia afastado, atualizando sua relação com as determinações
históricas que deveria refletir.

O casamento da arte com a filosofia realiza-se sob a forma do desvio no qual a


arte como estratégia serve aos propósitos críticos do discurso filosóficos em sua busca
de reatamento dos laços do pensamento com a vida, de superação do controle
ideológico, de ultrapassagem do regime de opinião pública e, enfim, de revitalização da
linguagem. A “astúcia da dialética” conforme a denominamos, como vimos acima,
possui amplo espectro estético-semântico-político, realizando-se como um assalto
universal e uma violação geral das regras canônicas do consenso coletivo e da
escravidão voluntária às normas gerais da banalidade cotidiana. Comecemos por sua
forma mais elementar. Vejamos um exemplo proposicional e seu sentido.

4.2 Proposição desviante e metafilosofia

A primeira sentença da Sociedade do Espetáculo busca criar uma tensão que não
se resolve, ao contrário, sustenta-se sobre a abertura de um leque semântico através do
diálogo inter-proposicional com a sentença de abertura de O Capital de Karl Marx.
Temos aqui um exemplo de desvio em que a voz do autor desviante dialoga com sua
base teórica criando um contraponto em que, sobre o fundo da tradição interpretativa
135

marxiana, projeta-se a voz dissonante que extrai da proximidade crítica com um autor
canônico a distância que, ao mesmo tempo, mantém a tensão e dinamiza o texto.

“Toute la vie des sociétés dans lesquelles règnent les conditions modernes de
production s’annonce comme une immense accumulation de spectacles.” (DEBORD.
SE, § 1)

“Der Reichtum der Gesellschaften, in welchen kapitalistische Produktionsweise


herrscht, erscheint als eine "ungeheure Warensammlung", die einzelne Ware als seine
Elementarform.” (MARX, Das Capital, Die Ware)

Se o leitor reparar bem a primeira sentença da Sociedade do Espetáculo, o acorde


que abre a sinfonia, a primeira peça da engrenagem, o lance de dados que abre o jogo
abolindo as regras do padrão-espetáculo, funda o estilo formular que será determinante
no resto da obra; configura sua consistência estilística, enquanto enuncia o conteúdo.
Um estilo sintético, epigramático, quase um conjunto de fragmentos, se não estivessem
tão intrincados, se não constituíssem uma articulação tão bem acabada e composta como
um grande quadro em que as proposições desviantes estabelecem o seu diálogo,
encenam sua deriva crítica.

A totalidade emergindo dos fragmentos em um aberto dialogismo no interior de


um mecanismo fechado.

Tentaremos levar o leitor a ver com maior detalhe como isso funciona. Iniciamos
por observar que a totalidade que se vai expressar no conjunto já está contida na
primeira formulação cuja forma do enunciado engloba todo o sentido do que está por
vir. Apresenta na abertura o tema central, o campo harmônico sob cujas regras serão
criadas as relações dialógicas em dissonância com a tradição, mediante a qual o
conteúdo da tradição é revisto, revertido e superado na própria dinâmica do estilo
formular. Nesse sentido, o desvio, que corrige a proposição de Marx, insere uma nota
estranha ao acorde original embora esteja potencialmente presente nele como uma
determinação virtual que Debord atualiza. Da mercadoria para o espetáculo não se trata
mais de analisar uma substância do valor conforme afirma Marx no Prefácio da
Primeira Edição de O Capital,32 mas denunciar uma imagem33 e revertê-la no corpo

Cito a passage: “Das Verständnis des ersten Kapitels, namentlich des Abschnitts, der die Analyse der
32

Ware enthält, wird daher die meiste Schwierigkeit machen. Was nun näher die Analyse der Wertsubstanz
136

crítico da obra: desfazer a “potência simbólica sistematicamente enganadora” da


imagem mediante uma presença poética, uma reorganização da forma que anule seu
efeito mediante a síntese que a subverta realizando o seu contrário, no mesmo
movimento que lhe enuncia o engodo. Não a análise de uma estrutura, mas a destruição
de uma representação em todas as suas formas de apresentação. Inicia-se com a
proposição que contém o todo. Termina-se com o todo que engloba o sentido de cada
proposição. Ao final um quadro coeso em que se materializa no desvio em todo o seu
significado, forma e extensão. Vejamos a proprosição.

Sobre a correção do sentido original da fórmula reutilizada emerge outro conjunto


significativo que confere a cada elemento um novo sentido. O texto debordiano revigora
a potência crítica do texto de Marx conferindo-lhe nova atualidade. Inscrito no núcleo
semântico da dialética entre o efetivo e o possível, a reformulação desviante evita
cristalizar-se em estrutura abstrata contraposta à complexidade movente do concreto.
Mantendo-se em relação dissonante com a tradição passada, da qual tira a forma que
constitui a roupagem sobre a qual borda a novidade da aproximação com o presente,
cujas determinações são renovadas na voz interpretativa que lhes confere sentido,
atualizando a antiga fórmula, os significados renascem, recuperando o conteúdo efetivo.

A deriva crítica da proposição reatualizada, enuncia na própria fórmula desviada a


constante atualização histórica do conceito que, ao se tornar imagem, perfaz o
movimento de sua própria realização; retorna, por assim dizer, a si mesmo em um grau
mais elevado de significação. A mercadoria, em certo sentido, já era imagem, porquanto
a fórmula abstrata de seu valor sob o capital extraiu dela tudo o que nela havia de
conteúdo, de trabalho humano sensível coagulado em sua presença material imediata. A
perda de substância da mercadoria, que é a sua volatilização na imagem, por outro lado,
afastou, na representação simbólica, o valor que ainda possuía certa aderência ao
sensível. Na pós-modernidade o processo social submetido ao mecanismo econômico,
liberta a forma de sua ligação com o trabalho humano que a realiza, tornando-a potência
autônoma, aparentemente independente das forças que lhe produzem, as quais submete
à sua lógica perversa. Como esclarecemos em outro lugar,

und der Wertgröße betrifft, so habe ich sie möglichst popularisiert.” (Das Kapital. Vorwort zur ersten
Auflage, grifo nosso).
33
Compare-se o trecho acima com o enunciado debordiano: “Tout ce qui était directement vécu s’est
éloigné dans une représentation.” (SE. § 1, Grifo nosso.)
137

O que a mercadoria era em potência o espetáculo atualizou: sua capacidade de


submeter os homens à dinâmica absolutizada do sistema de produção e reprodução
do capital, coagulado numa forma de representação que impõe a sua norma ao
mesmo tempo em que cristaliza o seu valor. A mercadoria revestiu-se de um poder
desumano na medida em que tornou o homem submisso à sua forma mais insidiosa e
menos detectável: a mediação simbólica corporificada na imagem espetacular.
(TOLEDO. P. 05)

A dialética entre a fórmula tradicional e o seu desvio restaura, portanto, a


possibilidade de uma superação em relação ao passado, sem que lhe descartemos
simplesmente o que ainda resta de verdade, mantendo dele o solo sobre o qual se edifica
a abordagem atualizada. Dialética entre o efetivo, seus limites intrínsecos e o possível.
Neste jogo de reaproveitamento da fórmula submetida a uma nova regra constitui-se
uma mecânica crítica montada sobre bases dialógicas.

Em O Capital Marx refere-se à mercadoria no sentido aristotélico de substância.


Portanto, como o substrato material do valor. Como seu fundamento ontológico e seu
segredo mais íntimo. Debord, aludindo obliquamente à Marx, transforma a substância
em relação, invertendo o objeto fixo que constitui a unidade atômica da sociedade
capitalista em processo, no interior do qual a matéria fantasia transmutações e
movimenta imagens separadas do todo, embora apareçam como formas integradas à
totalidade social, cujas relações unificam de maneira falsa e ilusória.

Através do espetáculo instituído como mediação simbólica total das relações


sociais entre sujeitos alienados, o movimento das mercadorias transformou-se numa
“cosmovisão reificada”. Nas palavras de Debord, “O espetáculo não pode ser
compreendido como um abuso do mundo da visão, o produto das técnicas de difusão
maciça das imagens. Ele é uma Weltanschauung que se tornou efetiva, materialmente
traduzida. É uma visão de mundo que se objetivou.” (DEBORD, 2006, p. 3)

Logo, o espetáculo é a confirmação daquilo que já havia sido expresso no capital;


ele é o produto de uma determinada força histórica que se fundamenta na economia, na
produção e distribuição de mercadorias, em função dos interesses materiais de uma
classe social específica. Ele é a imagem global da alienação econômica sob a forma de
poder simbólico e representação. No entanto, ele, o espetáculo, não é uma ilusão, mas
uma força material que necessita da produção de ilusões como forma de manter a sua
eficácia e reproduzir o seu próprio movimento. A imagem espetacular é, assim, produto
do fetichismo das mercadorias cuja lógica reproduz e reforça sob a forma da totalidade
das imagens que operam a pseudo-unificação das unidades sociais alienadas. Nelas o
138

objeto-mercadoria reificado atingiu uma culminância capaz de exercer sobre a


totalidade da consciência social um poder de submissão elevado ao máximo. Ele é a
ideologia materializada através do fetichismo da imagem. Uma força efetiva e real de
reprodução da lógica material que a produz. A mercadoria não desaparece sob as novas
condições da pós-modernidade, apenas ganha uma nova fundamentação ao seu valor
através do simulacro. O fundamento material e a força que confere unidade à totalidade
dos processos econômicos e sociais emergiu como representação, cuja forma inverteu
completamente a base de sustentação do valor. O valor simbólico da imagem sobrepôs-
se ao valor de uso da mercadoria, reforçando sua forma abstrata no mesmo movimento
pelo qual instaurou seu novo sentido. No entanto, sem alterar sua função alienante.
Apenas a conserva sob a aparência da mediação simbólica a mesma potência material
que se altera para permanecer a mesma.

Essa a dialética das aparências que Debord capta e evidencia na forma revisada do
desvio proposicional de Marx. Uma revisão que constitui uma confirmação da
permanência sob a capa da mudança. Revisão sutil que corporifica a crítica sintética em
um simples jogo de substituição. A troca de um elemento altera o significado do todo e
atualiza a máquina crítica, conferindo-lhe maior densidade dialética. Uma primeira
lição de como efetuar a crítica sintética através da presença do objeto poético. Uma
crítica não analítica, não descritiva, não espetacular elaborada em um único enunciado
revitalizado pelo desvio.

Nossa leitura do desvio proposicional nos mostra que o diálogo crítico com a
tradição dialética é evidente em Debord. Observe-se, a propósito, que Hegel e Marx são
os autores mais desviados e citados na Sociedade do Espetáculo, as referências com as
quais Debord mais trabalha na construção das bases teórico-críticas de sua abordagem
dialética.34 Duas linhas mestras com as quais Debord polemiza criticamente, vozes que
reaproveita, campos harmônicos dentro dos quais constrói sua melodia, ou melhor, o
tema sobre o qual elabora seu contraponto teórico.

O reaproveitamento crítico das vozes dialogantes, como referenciais e pontos de


superação caracteriza o metadiscurso de Debord. De fato uma metafilosofia em cuja
construção problemática a tradição filosófica é superada no mesmo movimento em que
é descontruída e avaliada criticamente. Um discurso feito de outros discursos, uma

34
Debord desvia e cita Hegel 41 vezes e Marx 61 vezes na Sociedade do Espetáculo.
139

filosofia composta de outras filosofias, a uma avaliação dialógica constituída por uma
retomada do atual na direção do possível.

Neste sentido, pressupõe um conhecimento prévio do leitor sem o qual o desvio


não faz nenhum sentido, porquanto não logra o efeito que somente a dissonância em
relação à fórmula original pode criar. Assim, ao abrir-se à tradição com a qual dialoga,
abre-se simultaneamente ao leitor presente, cujo pré-conhecimento exige e cuja situação
crítica pressupõe como necessária à conjunção de forças que movimenta o sentido do
texto e o realiza. A própria reutilização constitui um convite ao leitor, cuja participação
ativa na construção do sentido dialógico da fórmula é condição necessária para a tensão
polissêmica que a reutilização instaura.

Tem-se então uma relação com o passado, cuja potência presentifica, uma relação
com a conjuntura histórica que exige a atualização do enunciado, somada à uma
exigência do leitor crítico que completa a tríade semântica do desvio. A circulação
dinâmica do sentido que se move entre os polos da tradição, do contexto e da atividade
da leitura semeia no âmbito semântico do texto um campo de significação que se
enriquece no exercício dialético da teoria dinamizada pela prática.

A totalidade histórico-social é invadida pela máquina que se serve de suas


formulações tradicionais para criar o movimento teórico que, ao explicar a realidade
atual mediante o reajuste do referencial passado, atrai para o seu campo de forças a
atividade da leitura tornada práxis transformadora.

Constrói-se com esse material uma obra peculiar cujo furor dialético corporifica-
se no corpo do texto, o qual exibe materialmente a natureza do debate que nele se
instaura. A dinâmica da máquina de combate recupera no estilo, na sua constituição o
conteúdo daquilo a que se refere, que supera e, ao mesmo tempo, a possibilidade para a
qual aponta. O movimento reinventado no interior de uma desestruturação da tradição,
cuja fórmula, ao ser reorganizada pelo desvio, anima o texto de uma potência de
negação e elevação que constituem simultaneamente a verdade do todo restaurada.

Debord evidencia o limite da aproximação passada não só desqualificando-a como


pseudoconhecimento ou como totalização teórica das vertentes ideológicas da sociedade
burguesa corporificadas em uma cosmovisão sistemática, mas analisando sua lógica
caduca e trazendo a luz suas inconsistências. Parte, por assim dizer, para dentro do texto
140

filosófico, mergulha em sua aparente profundidade para demonstrar sua rasura,


desarticula-o de maneira irônica para demonstrar a falta de razão de sua construção
cambaleante e confusa.

Anuncia-se, portanto, uma batalha entre concepções, entre posturas teóricas


traduzidas em revisões críticas dos limites do antigo discurso: a frouxa e inconsistente
do passado superado pelo movimento da história contra a sistemática e conceitualmente
consistente do desvio dialeticamente construído como resgate das possibilidades de
diálogo entre texto e suas circunstâncias renovadas.

Note-se que a partir desse procedimento Debord irá construir um texto organizado
não como uma refutação do texto criticado, mas fundamentalmente como uma
desconstrução do texto que lhe desarticula a lógica e exibe, quase que visualmente, sua
falência teórica. A sobreposição da proposição desviante à proposição de base efetua a
crítica que é, ao mesmo tempo, correção e atualização. Uma refutação dialética,
repetimos, jamais analítica.

Assim, a construção espacial do texto, sua arquitetura bidimensional, realiza-se


através da superposição de planos e da interpolação de vozes. Vozes que soam ao
mesmo tempo numa primeira leitura, que se distinguem após uma análise atenta, até se
mostrarem em conflito dentro do jogo textual. O leitor tem diante de si um texto que se
descontrói no próprio movimento de interpretação que o integra. A virtude poética de tal
construção não reside apenas em seu arranjo bem ordenado, mas em sua eficácia como
forma dialógica que consegue potencializar a crítica ao realizá-la no plano de
composição do discurso.

Um belo exemplo de como se valer das possibilidades de articulação do texto, des


se apoderar do estilo e do procedimento estético para levar a efeito um empreendimento
demolidor como o anunciado neste combate em que se confrontam princípios.

4.3 Proposição desviante: alguns exemplos

Para compreendermos um pouco mais da mecânica da proposição desviante


apelemos para mais alguns exemplos. Podemos citar um desvio de Marx:
141

“Le spectacle n'est pas un ensemble d'images, mais un rapport social entre des
personnes, médiatisé par des images”

[“O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social mediada pelas
imagens”]

(SE. § 4)

Détournement de Marx, O Capital :

“Descobre-se, assim, que em lugar de ser uma coisa o capital é uma relação social entre
pessoas mediada pelas coisas.”

Vê-se aqui que a proposição desviante é uma autêntica proposição especulativa.


Uma proposição especulativa que alcançou sua verdade mediante o recurso a um
procedimento artístico a serviço da crítica revolucionária. Representa, no sentido que a
abordamos, uma provocação artística e um assalto à cultura mediante o qual a dialética
é movimentada como uma máquina de destruição eficiente a partir da reutilização de
diversas formas de lógica sequestradas, revertidas, quer dizer, reatualizadas.

O casamento da arte com a filosofia realiza-se sob a forma do desvio no qual a


arte como estratégia serve aos propósitos críticos do discurso filosófico em sua busca de
reatamento dos laços do pensamento com a vida, de superação do controle ideológico,
de ultrapassagem do regime de opinião pública e, enfim, de revitalização da linguagem.
A “astúcia da dialética” conforme a denominamos possui, como se vê, amplo espectro:
estético, semântico e político, realizando-se como um assalto universal e uma violação
geral das regras canônicas do consenso coletivo e da escravidão voluntária às normas
gerais da banalidade cotidiana.

O sequestro da lógica poderia, aqui, coincidir com o divórcio entre o referencial


linguístico e aquele que o subordinou ao uso comum como forma de estabelecer o
controle pela submissão da linguagem. Neste sentido a proposição desviante opera uma
ruptura total em relação a sua matriz, não a reatualizando simplesmente, mas exibindo
muitas vezes a sua lógica reversa e suas vinculações com o poder, bem como sua
sujeição ao mecanismo de controle ao qual se sujeita. Desvio neste caso significa
reversão-subversão do modelo no intuito de afirmar, pela sua negação, a verdade de seu
contrário.

Por exemplo, em um desvio de Hegel, Debord corporifica uma crítica radical ao


conceito de verdade como realização de um movimento imanente natural do ser que se
142

aproxima de si mesmo através da explicitação invertida de sua própria determinação


fundante, como:

“Où le mensonger s'est menti à lui-même” [“Onde o mentiroso mentiu para si


mesmo”] (SE. §2)

Quando o mentiroso mente para si mesmo o que era verdade torna-se falso no
próprio ato de sua realização enquanto verdade. A aparição da verdade mediada pelo
sistema de poder que dela se apropria serve para esconder, na aparição espetacular, a
verdade que o espetáculo esconde ou disfarça, promovendo o seu contrário.

A crença no que surge simplesmente como processo natural, sem sujeito que o
submete à sua vontade de domínio faz a linguagem, que é mediação social, desaparecer
como sistema objetivo; reificada torna-se natureza que se auto-desdobra explicitando
seu próprio processo imanente. Desvinculado, portanto, do sujeito social que dele se
apropriou.

A “verdade verdadeira” desviada por Debord exibe, ao contrário, sua inverdade


essencial: quando o mentiroso mente para si mesmo os polos se invertem: o que é na
aparência não é efetivamente o que se mostra.

A inversão espetacular não pode ser captada e descontruída senão pela reversão
imanente de seu sentido, mostrado como presença alienada de uma lógica que se
constitui pela vontade de sustentação do falso. O verdadeiro se torna, de fato, inverdade
quando o mentiroso mentiu para si mesmo. A coexistência do sujeito – mentiroso – com
o verbo – mentir – balizados pelo pronome reflexivo – si mesmo – torna a frase um só
bloco no qual linhas de fuga se distinguem a partir de um mesmo material que se
dissocia e, simultaneamente, dobra-se sobre si mesmo e se constrói pela divergência. Ao
mesmo tempo, o dobrar-se auto-reflexivo da frase dialética transcende, pelo desvio, sua
própria constituição monolítica, ao se referir ironicamente a uma frase de Hegel que
subverte.

“O verdadeiro se torna verdade”

Debord alcança com esse simples movimento elevar ao quadrado a força da


proposição dialética, produzindo um efeito estético, cuja função é justamente
potencializar a crítica. Através dela o mecanismo dialético cria, em seu próprio
143

movimento, o sentido que o dissocia do material desviado. Portanto, corporifica em um


corpo dançante de vetores semânticos que se desdobram, a mecânica desconstrutiva-
construtiva da crítica dialética.

Uma representação gráfica da frase poderia nos ajudar a melhor explicitar o que
afirmamos. Reduzida a três componentes substantivos simples poderia ser representada
como uma construção formal na qual os três elementos ligados se equivalem e se
repetem imediatamente. Uma frase destituída de conteúdo, poderíamos dizer. Vejamos:

MENTIROSO MENTIRA MENTIROSO

Temos aqui um processo simples em que o sujeito parece repetir-se no predicado,


correlacionando-se com este de forma direta pela correspondência tautológica que
afirma dos dois lados da sentença a mesma realidade. Portanto, a proposição aparenta
ser uma forma vazia de conteúdo, uma vez que os três termos que a constituem
significam a mesma coisa e se repetem em diferentes figuras de uma mesma
representação. No entanto, deve-se notar que aqui ocorre exatamente o contrário, pois o
substantivo e o pronome reflexivo não designam da mesma forma, vale dizer,
representam a mesma categoria em diferentes níveis: o primeiro corresponde ao
substrato material da proposição, o segundo sua repetição em um nível mais elevado de
abstração, porque ambos não podem possuir a mesma extensão lógica. A particularidade
do sujeito é elevada à universalidade reflexiva do predicado que o realiza e, ao mesmo
tempo, retorna a ele, o sujeito, de forma refletida, portanto invertida. No idioma
sintético de Debord o sujeito não se relaciona formalmente com o seu objeto através de
um ato de predicação, mas torna-se o objeto, quer dizer, objetiva-se ao mesmo tempo
em que o objeto se subjetiva transmutando-se em sujeito. A frase cria uma mobilidade
dialética na qual a clivagem sujeito-objeto é superada na fluidez da sentença dialética.
Assim exibe na forma dialética a mentira do sujeito ao presentificar poeticamente seu
movimento. A crítica pelo desvio se realiza através da construção que reverte o fluxo do
sentido realizando na forma fluidificada o exame dialético do conteúdo.

A inversão dos dois elementos da proposição e sua correspondência lógica cria na


frase um movimento reflexivo próprio da sentença dialética. Uma dobra barroca que
traz o sentido como movimento contraditório e auto-reflexivo realizado na dinâmica da
144

forma dialética. O que Hegel tentou em sua linguagem fluida e epigramática. Sendo
assim, Debord refere-se a Hegel na própria forma dialética da proposição desviante,
pela qual supera a posição formal da sentença hegeliana que critica.

Um diálogo de fluxos pelo qual se realiza um combate semântico cuja força da


crítica é potencializada pela crítica da forma. Uma crítica realizada pela superação da
forma-identidade da sentença tradicional na qual Hegel incorre ao afirmar simplesmente
que “o verdadeiro se verifica”. Em um mundo ideal talvez, mas no contexto de uma
sociedade invertida pela base a verificação do verdadeiro corresponde a afirmação do
falso. Assim, a proposição se projetando para além dela mesma pela alusão produzida
pelo desvio, cria um espaço semântico redimensionado pela mecânica da sentença
dialética.

O desvio pela reversão restaura a crítica do social pela subversão da crítica


proposicional materializada. Uma construção desviante carrega, pois, em seu
mecanismo de combate dialético muito mais do que aparenta. E aqui também supera o
imediato do aparecer no âmbito do sentido e de seus vínculos formais. O mentiroso
aprende que mentiu quando se exibe a forma de sua mentira.

Em outro exemplo, a repetição do mecanismo que subverte a verdade trocando-a


pela mentira pode ser captada pelo diálogo desviante com sua matriz dialética. Assim, o
détournement de Hegel, A Ciência da Lógica, onde se lê:

“o verdadeiro se torna verdade”

Que constitui uma proposição semelhante em sentido àquela do Prefácio à


Fenomenologia do Espírito que reza:

“O falso é um momento do verdadeiro (mas não mais enquanto falso).”

Le faux est un moment du vrai (mais non plus en tant que faux).

Que Debord desvia pela reversão que resulta em:

“Dans le monde réellement renversé, le vrai est un moment du faux.”

[No mundo realmente invertido o verdadeiro é um momento do falso.]


145

Pela ação desviante não só o sentido da proposição é corrigido, atualizado ou


revertido, mas a própria possibilidade de sua materialização implica em conceder a
linguagem uma forma não consensual pela qual se aponta a saída do universo da norma
configurada nos universo da cultura, que se impõe como cosmovisão social (da mentira
muitas vezes repetida): exatamente pela reatualização dos elementos tornados regulares,
portanto insuperáveis, pela própria normalização do consenso coletivo gerenciado pelo
poder.

Atente-se para um desvio de Kojéve que realiza as duas formas de atualização


crítica – o desvio e a reversão – que abordamos:

“est à la fois le résultat et le projet”

Détournement de A. Kojève, Introduction à la lecture de Hegel :

(...) “comme un résultat qui est un projet et comme un projet qui est un résultat, -
un résultat qui naît du projet et un projet engendré par un résultat ; en un mot, le réel se
révèle dans sa vérité dialectique comme une synthèse » ; « Il n'est pas un supplément au
monde réel, sa décoration surajoutée”.
E simultaneamente uma Reversão de Marx, Crítica da filosofia hegeliana do
Direito:

“La religion est la théorie générale de ce monde, son compendium encyclopédique


(...) son complément solennel (...).”

[A religião é a teoria geral desse mundo, seu compêndio enciclopédico (...) seu
complemento solene (...).”]

Exibe-se, pela via da contradição um diálogo crítico em que a sentença original é


invertida e realizada, ao mesmo tempo, através da contorção de sua lógica. Consegue-
se com isto atingir pela reapropriação e pelo reaproveitamento da forma dialética da
proposição uma forma desviante de construção na qual uma declaração de princípio,
que incide sobre a realidade como fórmula determinante, assume o caráter crítico de
uma contra-estrutura dinamizada pela polêmica.

A polêmica materializa-se em crítica social pela própria força de sua mecânica


dialética.

O estilo realiza a crítica.


146

A Sociedade do Espetáculo é uma obra concisa e densa, de força poética peculiar


posta a serviço da crítica realizada como síntese, portanto, uma crítica que não
compactua nem tampouco repete a lógica analítica das separações que a sociedade
capitalista privilegia e que a cultura assimilou como regra. Em seu todo, bem como em
cada uma de suas partes, a obra debordiana máxima realiza a astúcia da dialética. A
astúcia que abordaremos em seu conjunto como desvio do sistema e em suas partes no
estudo das proposições desviantes e sua lógica.

O exercício da crítica debordiana realiza-se, portanto, como um tipo muito


peculiar de crítica dialética realizada como presença poética cujo mecanismo nos cabe
agora explicitar.

4.4 Crítica sintética e presença poética

A “máquina de guerra” exercita sua astúcia resultante da elaboração estratégica de


uma forma não textual de expressão que limita com a síntese oracular e com o aforismo,
extraindo do choque dialógico uma potencialização do sentido.

Ao invés de citar o parágrafo original e discorrer sobre ele até chegar a uma
conclusão, procedimento tornado comum na academia, Debord substituindo diretamente
o que não mais servia, ou invertendo a lógica da proposição desviada, ou mesmo
reaproveitando o seu sentido original como pano de fundo sobre o qual projeta sua voz
dissonante, realiza uma crítica à forma tradicional de utilização da linguagem e de
construção da crítica que se tornou consensual e padrão.

Uma crítica que não discorre sobre o assunto como se este fosse um tema exterior
ao discurso que o aborda, mas que se insere no interior do próprio tema desviado
elevando-o a um grau de autorreflexão planejada pela qual a própria modificação do
tema torna-se sua realização e sua superação crítica.

A proposição desviante confere à linguagem filosófica uma potência poética que


materializa seu sentido na própria forma de sua representação. Com isso realiza um tipo
de crítica total não alienada, em que o elemento desviado produz mediante a tensão
dialógica a negatividade que lhe afirma a diferença e eleva a significação. Não mais
uma crítica efetuada a através da esquizofrenia da linguagem voltada contra si mesma
147

pela divisão de funções ou pela diferenciação hierárquica de categorias. Não como o


acontecimento inevitável que chega no dia em que a análise tomar a linguagem como
objeto compreendido por um sistema superior que a explicará.35

Ao invés da contraposição de planos em que a linguagem se divide como sistema


explicativo e objeto explicado, da fragmentação do discurso pelo procedimento
analítico, o desvio propõe uma forma de procedimento poético operado pela estratégia
imanente da síntese dialética: atualizando-revertendo-subvertendo os elementos
desviados, opera no interior da própria lógica do discurso tomado como auto-mediação
sua realização material e sua superação crítica.

A crítica não apenas avalia o discurso-objeto sobre o qual maneja seu


instrumental teórico, mas altera-lhe a configuração estrutural produzindo, com isso, uma
redefinição de sua forma-conteúdo pela qual uma nova materialização do sentido se
desdobra e, ao se desdobrar pela diferença, realiza a sua própria crítica.

Se se quiser, a crítica não é teórica nem prática, mas teórico-prática, ou seja,


material-concreta. Isto exatamente por servir-se da arte como estratégia de revitalização
da dialética, mostrando-lhe a saída da fragmentação e da instrumentalização da razão
em que se havia perdido a cultura pós-moderna. O beco sem saída da impossibilidade de
criar gera uma nova amplitude sintático-semântica para a criação, pela qual a
universalidade da crise volta-se sobre si mesma e se restaura do interior de suas próprias
limitações. Uma astúcia dialética? Certamente, mas não facilmente captável em
palavras, porquanto aquilo que realiza está como que incrustado na forma material do
conjunto de elementos desviado subvertidos pela ação dialética da crítica sintética.
Como se colocássemos um bigode nietzschiano em Hegel e, ao fazê-lo, pelo desvio
criássemos um novo sistema de alusões através do qual um conjunto de significados
ficasse compactado na fórmula crítica à espera de decifração. Deleuze percebeu a
potência crítica do desvio, sem nomeá-lo evidentemente, ao usá-lo de forma provocativa
em sua Diferença e Repetição onde escreve:

Parece-nos que a História da Filosofia deve desempenhar um papel bastante análogo


ao da colagem numa pintura. A História da Filosofia é a reprodução da própria
filosofia. Seria preciso que a resenha em História da Filosofia atuasse como um
verdadeiro duplo e que comportasse a modificação máxima própria do duplo.
(Imagina-se um Hegel filosoficamente barbudo, um Marx filosoficamente glabro, do
mesmo modo que uma Gioconda bigoduda.) Seria preciso expor um livro real da

35
Confere: BARTHES. Système de la Mode, Seuil, 1967, p 293.
148

Filosofia passada como se se tratasse de um livro imaginário ou fingido. (...) as


resenhas de História da Filosofia devem representar uma espécie de desaceleração,
de congelamento ou de imobilização do texto: não só do texto ao qual eles se
relacionam, mas também do texto no qual eles se inserem. Deste modo, elas têm
uma existência dupla e comportam, como duplo ideal, a pura repetição do texto
antigo e do texto atual um no outro. (DELEUZE. Diferença e Repetição, 1988,
P.19.)

Não obstante o desvio não é menção alusiva ou programa como sugere Deleuze,
que não o realiza senão abstratamente, mas objetivação.

A teoria do desvio não interessa muito a não ser que sirva de diretriz para a
realização prática da desaceleração, da reversão, da inversão e, portanto, do
reaproveitamento de materiais e contextos diversos em favor da perspectiva crítica-
revolucionária.

O desvio é mais uma questão de síntese poética do que de análise filosófica. Aliás,
a análise é anti-desviante, uma vez que colada ao sentido original do texto, respeitando
suas conexões e sua lógica, separa os elementos constituintes do sentido apenas para
confirmar sua significação ao explicitar exteriormente o que o texto corporifica.

Não se trata de desmontar o texto mediante a análise, mas desmontá-lo


internamente desestabilizando sua mecânica, revertendo sua lógica, ferindo sua
articulação e rearticulando seus elementos em uma configuração contrária ao que o
original dispunha. Um exercício prático de dimensões e consequências teóricas. Uma
prática da teoria que comporta em sua execução uma teoria da prática. A aparente
repetição da fórmula que comporta, no entanto, ou melhor, provoca o máximo de
modificação essencial no sentido do texto desviado. Diferença na repetição e repetição
na diferença, para usar os termos de Deleuze.

A diferenciação cada vez maior das frases ou das obras por meio da crítica
inserida em sua formulação normal desestabilizando o seu sentido, mostrando suas
potências ou corrigindo os seus equívocos. Desta forma, “atingindo de frente todas as
convenções mundanas e jurídicas, ele não pode deixar de se mostrar um poderoso
instrumento cultural a serviço de uma luta de classes bem compreendida.” (DEBORD.
Desvio: modo de usar. 1956.)

Enfim, a radicalidade da empresa dialética aponta para a sua própria superação:

A negação da concepção burguesa do gênio e da arte já foi em muito superada,


os bigodes da Gioconda não apresentam nenhum caráter mais interessante que a
149

primeira versão dessa pintura. É preciso agora prosseguir com esse processo até a
negação da negação. (DEBORD. Desvio: modo de usar. 1956. Grifos nossos)

4.5 Diretivas para a arte de viver


Mas vamos com calma. Como forma de auxílio à imaginação devemos, antes,
recorrer às evidências. Estamos nos referindo às Cinq Directives pintadas por Debord,
cuja realização nos permite observar o desvio em sua configuração mais clara: a
imagem da palavra e a palavra inscrita na moldura da imagem.

Quer dizer a superação do caráter imagético imediato da palavra na própria forma


da imagem como recurso do pensamento ativo construindo diretivas de convite à ação
revolucionária, no instante mesmo em que a realiza no objeto estético.

O que dizer das diretivas? Tratam-se de frases nominativas que convidam à ação.
Escritas em maiúsculas como em NE TRAVAILLEZ JAMAIS elas diferem por seu
modo de enunciação: proposições nominativas positivas e não injunções diretas
compostas na forma imperativa: slogans de caráter direto e imediato. Seu problema não
reside apenas no caráter pictórico de sua composição, mas em sua função política.
Directives significa, segundo o Trésor de la langue française: um “conjunto de
150

indicações , de instruções dadas por uma autoridade (administrativa, política, religiosa,


militar etc.) às quais alguém deve-se conformar segundo uma linha de conduta
determinada”. (COLLECTIF, Gallimard, 1982) Seria como dizer que o vocabulário é
escolhido segundo as necessidades estratégicas do comando que ressoam nas pinturas
de Debord. A seguinte citação de Bossuet é reveladora da posição de Debord: Les
princes ne sont pas soumis aux peines de lois, ou comme parle la théologie, ils sont
soumis aux lois, non quant à la puissance coactive, mais quant à la puissace directive36
.” Nas palavras de Céline Flécheux:

Une directive n’est pas une loi, mais est plus puissanante qu’une loi em ce
qu’elle porte en elle la puissance même de diriger. Ele est plus qu’une consigne, car
elle a um enjeu révolutionnaire; elle dit la direction selon laquelle il faut agir.
Contrairement à une loi, une directive ne se subit pas: elle enjoin à participation, elle
requiert l’accord implicite de celui qui la mène et elle est prescriptive; elle vise à sa
realization. (FLÉCHEUX. Guy Debord et la peinture: des directives à ne travaillez
jamais. In: Dérives pour Guy Debord, Van Dieren Editeur, 2010, p. 173.)

Ao leitor atento não escapará a semelhança de fundo entre e deriva das Cinq
directives, palavras pintadas sobre um fundo neutro como se fossem slogans em um
muro, e a deriva filosófica das proposições dialéticas da Sociedade do espetáculo:
ambas são teoremas corporificados em formas desviantes de ação, nas quais a
concepção encontra a práxis social que anima sua eficácia estratégica.

Há muito de estrategista no artista como há muita arte na estratégia: ambas


convergindo para formas de realização da filosofia como superação da arte no campo de
batalha da ação política; de condensação das forças semânticas em uma estética da
crise: absolutamente crítica, plenamente realizada como síntese que se anima de uma
tensão não resolvida entre as potências ativas da razão dialética e os elementos
reaproveitados como modos de configuração da composição pictórica vazada de linhas
de força filosóficas. Uma arte da guerra, uma filosofia militar, se se entende a natureza
da batalha como estrutura típica da zona de combate onde a tensão acirra o movimento
das determinações, animando-as de experiência vital; integrando-as às potências
concretas da sociedade da qual emergiram.

A integração da arte e da filosofia nos movimentos sociais vitais, compreendidas


como forças políticas e elevadas a formas de ação inseridas na práxis social torna a
linguagem um ato de recusa e de deliberada elevação do discurso acima dos fragmentos,
das separações e do isolamento em que foram lançados pela sociedade burguesa. Assim,

36
BOSSUET. Politique, IV, I, 4.
151

a crítica encarna-se no discurso materializando-se como forma dinâmica cujo


acabamento aponta para a própria superação, para um movimento de deriva da
linguagem quando esta está prenhe de vida. Ou a linguagem invadindo a vida para
cobrar seu tributo. Executando um movimento que correponde a um gesto pol´tico de
desafio à norma a linguagem retorna a si mesma como ato de desobediência e, por isso
mesmo, de recriação e desreificação. Invade a vida para mostrar que é componente
fundamental da s forças vitais, cujos vetores ela, a linguagem como mediação
simbólica, expressa em conjunção com os movimentos ontológicos da realidade que
nela vivem.

Uma cidade condensada numa estética cujo componente retórico não pode ser
desprezado, embora sua articulação como máquina de guerra seja mais reveladora de
seu valor enquanto força de combate e crítica construída como jogo entre a figura e o
fundo, entre o que se coloca como o cantus firmus da tradição ou mesmo os lugares
comuns e os slogans da cultura popular e da práxis política. De qualquer forma as
diretivas apontam para a necessidade de se compreender o ponto de contato ou a
conjunção entre a arte, a filosofia e a ação política.

Nas relações estabelecidas pelas várias formas de utilização das potências


criativas através do desvio das antigas determinações da cultura reside a constituição da
ultrapassagem como realização, plantadas sobre o solo da abolição da alienação
econômica: todos contra o espetáculo. Exatamente o que propõem as Cinco diretivas,
um programa revolucionário completo realizado pelo desvio: Depassement de l’art,
Réalisation de la philosophie, Tous contre le espectacle, Abolition du travail aliéné,
Non a tous les especialistes du pouvoir/Les conseils ouvriers partout.

No caso das diretivas o desvio beneficia-se do fato de contar com o aspecto visual
que, por assim dizer, lhe potencializa o efeito. As cinco proposições nominais pintadas
em quadros como comandos revolucionários extraem de sua vinculação à arte e à práxis
social a força que realça sua significação. Dotando-a de uma forma de expressão
oscilante entre a composição artística e a espontaneidade do movimento social, entre a
mediação da forma e a ação direta da vontade política, o desvio opera no espaço da
experiência cotidiana a realização da filosofia em sua forma diretiva e crítica.

A imagem desviada de seu propósito ideológico de distração e apelo à atenção


superficial e plana ganha novo sentido e profundidade quando subvertida pelo uso
152

crítico-projetivo que a diretiva lhe dá. O que possuía de apelo ao imediato é dotado de
dimensão crítica, de potência semântica que convida à reflexão ao mesmo tempo em
que obriga à participação: assim o desvio se realiza pela reversão do sentido da imagem.
Em outras palavras, o apelo visual é revertido em força semântica e intervenção crítica
através da qual o espaço da ação política, ocupado pela forma artística desviada,
desloca-se de sua orientação ideológica sob o influxo do sentido filosófico que lhe
anima. O que a neutralidade da palavra posta no papel não alcança. No entanto, é
preciso imaginar a página como se fosse um muro, ou um quadro em que se confrontam
linhas de significados densas de conteúdo vital, politicamente orientadas como
movimentos desdobrando-se em meio às solicitações da vida social; imaginar as
palavras como forças políticas, como determinações concretas grávidas de experiência
social, imaginar os signos como expressões nas quais se aninham forças que
movimentam a máquina de guerra na direção da destruição da separação e da submissão
ao espetáculo, reféns da ilusão e da violência, no rumo da reconstrução da experiência
autêntica. Isto se dá pelo convite a novas experiências de sentido pelas quais a arte
revitaliza a filosofia, realizando o seu potencial crítico: ambas integradas à vida como
momentos da comunhão entre teoria e prática. Pode-se imaginar, enfim, a diretiva como
desvio do imperativo categórico kantiano, pelo qual a força de contenção e controle que
a lei moral abriga, é transformada em princípio libertador e força de auto-superação
condensados em atos de linguagem que materializam forças sociais concretas, que tais
atos expressam, em cujo momento revolucionário se inscrevem, apontado direções
novas de realização das potências vitais. A forma da Moralität kantiana é transfigurada
na Sittlichkeit hegeliana.

Entre o enquadramento da palavra e a sua inclusão no espaço público como um


componente filosófico da vida cotidiana a diretiva encurta a distância entre a reflexão e
a ação. A perspectiva teórico-prática de orientação marxiana para a superação da
alienação pela abolição do trabalho alienado torna-se um convite à revolução do
cotidiano, inscrita na parede em que normalmente se afixam propagandas da sociedade
mercantil:
153

37

As três palavras escritas na parede contêm um programa inteiro de ação


revolucionária sintetizadas em uma fórmula breve de amplo alcance político. A estética
da crise a ou a arte da guerra levada às ruas. Pode-se ver aqui uma forma de fazer
filosofia através da arte em que ambas se conectam às urgências práticas da revolução
na forma de ver e de viver, na maneira como a experiência cotidiana precisa ser levada
para o âmbito do discurso como sua componente essencial, sua forma dialética de
significação em que a totalidade das relações entre a crítica revolucionária, o
procedimento estético e a filosofia são conjugadas com a situação concreta da vida
social. Jogada com os elementos do cotidiano: o muro, o grafite, a inscrição provocativa
de cunho político, a arte e a filosofia não se isolam das potências fundamentais da vida
que deve transformar para compreender, que compreendem para transformar.
Compreender aqui no sentido de trazer para dentro, realizar numa síntese os elementos
dispersos e dotá-los de vida e significação.

A conjunção das forças da criação entram em acordo com o jogo dialético da


reinvenção do mesmo. A crítica imanente como síntese extrai de seu objeto a tensão
dialógica pela qual a própria ilusão do objeto, ou seu vínculo ideológico, ou seu limite
teórico são praticamente negados, elevados e, portanto, superados.

Em um período de guerra é preciso construir máquinas de guerra. Segundo


Debord,

Na fase de guerra civil em que nos encontramos, e em contato direto com a


orientação que descobriremos para certas atividades superiores futuras, podemos
considerar que todos os meios de expressão conhecidos vão confluir em um

37
Em 1953 Debord pintou em uma parede na Rue de Sene a diretiva: NE TRAVAILLEZ JAMAIS.
154

movimento geral de propaganda que deve compreender todos os aspectos, em


perpétua interação, da realidade social. (DEBORD. Desvio: modo de usar. 1956)38

Portanto, o uso do desvio deve ser geral e irrestrito. Tudo pode ser desviado, de
um texto filosófico a uma peça de vestuário.

Nesse contexto, a herança literária e artística da humanidade deve ser utilizada para
fins de propaganda militante. (...) Todos os elementos, tomados não importa onde,
podem ser o objeto de novas abordagens. As descobertas da poesia moderna sobre a
estrutura de analogias da imagem demonstrou que entre dois elementos, de origens
totalmente distintas, sempre se pode estabelecer uma relação. Limitar-se ao contexto
de um arranjo pessoal de palavras não é mais que a convenção. A interação de dois
mundos sentimentais, a união de duas expressões independentes, superam seus
elementos primitivos para dar uma organização sintética de eficácia superior. Tudo
pode servir. (DEBORD. Desvio: modo de usar. 1956)

Voltando ao que nos ocupa diretamente – o desvio na Sociedade do Espetáculo


como mecanismo dialético –, cumpre ressaltar que em Debord o desvio como
procedimento artístico usado para fins críticos assume um papel central em sua
construção filosófica. Tomando textos da tradição dialética Debord faz emergir do
interior das próprias citações desviadas novas relações que corrigem os enunciados,
mudam o seu sentido, revertem seu significado ou atualizam o que neles exige
ultrapassamento. Ao fazer isto, sintetiza nos instrumentos de abordagem os próprios
objetos abordados, consolidando na forma do desvio a junção entre referencial e os
meios de sua ultrapassagem. Em um détournement de Hegel, Debord assim se expressa:
“les armes ne sont pas autre chose que l'essence des combattants mêmes.” (SE. 121) A
referencia à guerra é uma constante e a metáfora do combate como meio de
ultrapassagem da arte e realização da filosofia ressoa por todo o texto como um acorde a
determinar sua harmonia bélica (em modo dórico). O que é de se notar aqui, no entanto,
é a forma dialética de empregar o discurso: não só na alusão à proposição dialética
hegeliana, mas, fundamentalmente, em sua realização material.

Observa-se que em Debord, o desvio não é apenas uma brincadeira artística ou um


jogo bélico com a linguagem no intuito de produzir efeitos estéticos, longe disso. Mais
como um modo de corporificar uma crítica na construção de uma presença poética
autônoma e completa em si mesma: as armas são a essência dos combatentes, a função e
o instrumento não se diferenciam nem se separam substancialmente de seu uso.

38
A versão original foi publicada na edição de maio de 1956 da revista surrealista belga Les Lèvres Nues.
O período era de uma transição da Internacional Letrista para a Internacional Situacionista.
155

Com isso o discurso não opera a separação entre planos distintos artificialmente
constituídos como “objeto” e “linguagem analítica”, é bom ressaltar. Na própria
manifestação material dos signos desviados põe-se crítica como presença objetiva na
qual se inserem, numa dialética em exercício, o “combatente” e os “instrumentos de
combate” dentro da mecânica do objeto combatido, vale dizer, desviado.

A superação da clivagem entre sujeito e objeto, ontologia e método, significante e


significado, linguagem e referência constitui uma forma de ataque direto ao fundamento
da cultura burguesa: a alienação econômica que funda o espetáculo em todas as suas
manifestações, principalmente a sua forma abstrata materializada na linguagem normal
reificada e no controle político. Todas as diferenças experimentadas como separação são
negadas e elevadas na forma da diferença na repetição, para usarmos a linguagem de
Deleuze. No desvio se efetiva a construção de um duplo da linguagem unificada pela
repetição aparente na diferença real: “a pura repetição do texto antigo e do texto atual
um no outro.” (DELEUZE, Diferença e Repetição, 1988, P.19.)

O desvio esbarra na tarefa histórica que tenta realizar não pela teoria, não pela
prática, ou seja, não pela confirmação prática do reino da separação, mas pela sua
superação dialética na forma da ultrapassagem das clivagens que fundam o mundo
invertido burguês. Nas palavras de Alberto Burri, na Sociedade do Espetáculo,
portanto,

A través de un total de 221 tesis, Debord despliega cada una de las estrategias y
mecanismos de los que se sirven los nuevos gobiernos para controlar y anular la
intimidad y la racionalidad de los ciudadanos; donde la televisión, el ruido
permanente de lo ficticio y el simulacro se hacen lugar en la cotidianidad
obligándonos a olvidar lo realmente importante y modificando absolutamente
nuestra experiencia, nuestros deseos, nuestras necesidades. En esa sociedad del
espectáculo se instala una nueva pobreza en el corazón de la abundancia, la miseria
de la vida cotidiana de los trabajadores envuelta en postes publicitarios, anuncios,
descuentos y otras drogas. Espectáculo y alienación quedan así, estrechamente
ligados. Una teoría la de Guy Debord, de aunar arte y vida no para llevar a cabo una
revolución cultural, sino de índole radicalmente política y social. (BURRI. El arte
como revolución política, 2008.)39

A missão da arte, para a qual o desvio contribui como mecanismo dialético de


superação da reificação da linguagem e controle ideológico exercido pela lógica
formalizada em nome da dessocialização da experiência, assume desde o início
importância singular que nos cumpre ressaltar.

39
http://casamarela5b.blogspot.com.br/2008/05/arte-sociedade-de-consumo-e-histria.html. Acesso em
18/01/2014.
156

A serviço da auto-emancipação humana o desvio funciona como estratégia de


combate que tenciona invadir o campo da lógica inimiga e subverter as suas formas de
banalização da expressão, portanto de submissão da inteligência à reprodução dos
procedimentos protocolares que lhe colonizam a consciência, obrigando-a se afastar de
suas próprias bases individuais de afirmação. Quer dizer, afastar-se de sua própria
verdade.

A tarefa estética40 que se põe no âmbito da arte como forma de realização da


filosofia pela sua supressão enquanto forma de totalização da experiência alienada do
mundo burguês, com todas as suas consequências político-sociais, coincide com a tarefa
histórica de instaurar a verdade no mundo. Esta tarefa é construtiva, portanto poética e
não teórica ou prática, como se ambas as instâncias pudessem existir pela separação.
Podem, mas sob a forma da “consciência infeliz” que projeta num além, no futuro ou
em qualquer esfera ideal o plano que a prática teima em não ser capaz de realizar.

Ao contrário, no objeto poético construído em seu vigor crítico enquanto


presença, a teoria e a prática conjugam-se como acabamento material não mercantil, não
como mercadoria a ser equalizada pelo valor de troca, mas como mecanismo de
desconstrução do mesmo, de auto-realização do novo pelo desarticulação do velho. A
verdade a ser instaurada deve ser uma verdade construída. Nas palavras de Sven
Lütticken: “But perhaps work should here be read as travail rather than as oeuvre
(d’art), as activity rather than result.” (LÜTTICKEN, Guy Debord and the cultural
revolution. Grey Room 52. P. 109)

Ressalvamos, no entanto, que, em Debord, a revolução não é apenas cultural. Se


faz valer a cultura como suporte de suas intervenções poéticas, e da necessidade de
construção de uma linguagem em movimento que privilegie o processo de auto-
superação constante do próprio meio em direção à sua verdade, é porque percebe a arte
como um componente fundamental da revolução política em uma sociedade dominada
pelas aparências espetaculares cristalizadas em mercadorias; um campo em que grassa a
falsa consciência espetacular e que, portanto, deve ser tomado de assalto como base de
subversão e ultrapassagem das formas espetaculares.

40
Lembramos aqui que Debord em seu filme Sur le passage de quelques personnes à travers une assez
courte unité de temps usa o termo “atividade estética” como sinônimo de arte. É neste sentido que
empregamos aqui o termo estética.
157

Se a filosofia á a totalização teórica das relações alienadas do mundo burguês, seu


compêndio enciclopédico, a arte é a realização maior da comoditização da cultura pela
qual se reforça a separação e a falsa consciência do objeto. Aliar arte e filosofia no
âmbito da máquina dialética movida pelo desvio significa atacar as projeções sobre as
quais se erige a base invertida de sustentação ideológica do espetáculo, sem as quais não
haveria como reproduzir, sob o olhar passivo e anuente do espectador, a falsa
consciência que reforça sua gênese material. Em Debord: S'émanciper des bases
matérielles de la vérité inversée, voilà en quoi consiste l'auto-émancipation de notre
époque. Cette "mission historique d'instaurer la vérité dans le monde"41. (SE. 221.)

Portanto, a tarefa é, antes de tudo, política e não apenas cultural. Melhor dizendo,
é uma tarefa em que se deve empenhar a totalidade da inteligência e das forças criativas
da consciência anti-espetacular a fim de reverter as bases ideológicas historicamente
assentadas do espetáculo. A categoria da totalidade é algo que se deve ter sempre em
mira para não se entender a proposta de Debord no âmbito do fetichismo grosseiro em
que se troca o todo pela parte. A tarefa é econômica (abolition du travail aliéne) social
(tous contre le espectacle) estética (dépassement de l’art) filosófica (réalization de la
philosophie) e política (Non a tous les spécilalistes du pouvoir; les conseils ouvriers
partout). A tarefa apresenta-se espacialmente como diretrizes separadas, mas é
concebida e deve ser imaginada como momentos articulados de um mesmo trabalho
teórico-prático realizado como desafio total inserido no âmbito da práxis histórico-
social. Em outras palavras, pensadas em conjunto as diretivas debordianas compõem um
sistema em situação inserido como potência revolucionária no interior da vida
cotidiana.

41
Détournement de Marx, Crítica da Filosofia do Direito de Hegel : “Tal é a tarefa da história depois que
o além da verdade desapareceu: estabelecer a verdade do aquém.”
158

As “diretivas para a ação” se mostram, portanto, como construções acabadas em


que a síntese poética coloca-se a serviço da crítica revolucionária na direção da
superação da filosofia como discurso ideológico e da necessária construção da
sociedade livre dos especialistas do poder: socialista e anti-tecnocrática.

Escritas à mão em placas comuns pertencentes à esfera das realizações cotidianas,


sem artifícios nem polimento, diretas e, aos mesmo tempo, sugestivas, corrigem pelo
desvio uma expressão geralmente ligada à manifestação de conteúdos comuns.
Articuladas compõem um programa inteiro de crítica situacionista. Como se pode ver:
159
160

42

No entanto, sua realização se dá como trabalho concreto de reunião dos momentos


que a alienação econômica, junto com seus subprodutos político-culturais, separou.
Assim, não há uma tarefa da crítica e outra da ação política. De fato, ambas devem ser
realizadas no contexto da sua própria superação como momentos isolados. Superação da
base material sobre a qual se sustenta o espetáculo da cultura, ou melhor, de toda a
superestrutura ideológica.

As relações econômicas de produção são determinações ontológicas fundamentais


para a compreensão do espetáculo em sua gênese; as relações culturais de reprodução
são essenciais para a compreensão do espetáculo em sua conservação. A articulação
entre o ontológico (existência efetiva) e o gnosiológico (formas de organização da
consciência em sua relação com o existente) deve ser compreendida em sua mútua
determinação para que se possa efetivar a subversão da dominação espetacular sem que
se acabe por reproduzir ingenuamente seu mecanismo e, assim, reforçar a sua vigência
universal. É o que ocorreu com filósofos como Baudrillard. Como percebeu muito bem
Anselm Jappe em um trecho que citamos extensamente como exemplo do que
denominamos a “astúcia do espetáculo”:

Pode-se encontrar uma referência mais directa à teoria situacionista na teoria do


simulacro que nega de modo explícito qualquer possibilidade de distinguir o
verdadeiro do falso e, portanto, a existência de um autêntico que possa ser
falsificado. Particularmente, a análise feita por Baudrillard – influenciado de modo
evidente por Debord, tendo sido, aliás, o assistente de Lefebvre – aceita a
caracterização da sociedade existente como um “espectáculo”. Mas destaca este
conceito de sua base material e faz dele um sistema “auto-referencial”, em que os
signos não são mais um disfarce da realidade mas são, de facto, a realidade. É assim

42
Les Cinq Directives, que reproduzimos acima, foram elaboradas por Debord e Giuseppe Pinot Gallizio
em 1963, época em que Debord começa a escrever La Société du Espectacle (1967). Conforme explica
Debord em escrito de 1988 para o colecionador Paul Destribats:
“J’ai peint, si le mot n’est pas um peu excessif, comme une sorte d’hommage à la manière jornienne des
‘peintures modifiées (...) Ce tableau détourné étant donc celui de Gallizio, et la directive écrite de ma
main, c’est en somme une authentique synthèse; un excellent exemple de ce que Jorn appelait un
‘compromis situacionniste’, et finalement de ce que l’I.S. a été artistiquement et autrement”. (in:
DEBORD. Oeuvres, 2006, p. 654. Grifos nossos).
161

que ele se regozija de não ter mais que se ocupar de uma fastidiosa “verdade”, dado
que esta não está oculta mas é, simplesmente, inexistente. Para Baudrillard, a troca
dos signos ocupou todo o espaço social. Não pode, pois, haver nenhuma resistência
porque esta deveria referir-se a conceitos como conteúdo, significado ou sujeito, os
quais, segundo Baudrillard, se tornaram signos. É curioso observar como
Baudrillard retoma conceitos de Debord e, parecendo radicalizá-los, na verdade
transforma-os em seu contrário. Esta teoria pretensamente crítica não faz nada mais
que sonhar com um espectáculo perfeito que tivesse ficado livre de sua base material
– em outros termos: de um consumo que se livrasse da produção – e, pois, não tem
mais nada a temer de suas contradições. Interpretada assim, a expressão “sociedade
do espectáculo” tornou-se corrente no jargão jornalístico que podemos ouvir todos
os dias – uma possibilidade que o próprio Debord havia previsto (Sde, § 203).
(JAPPE. O Passado e o Presente da Teoria (de Debord), in: Krisis, 1999)43

Da relação de interdeterminação entre ambas as instâncias – material e ideológica


– nasce e se mantém o mundo do espetáculo, que é um mundo realmente invertido, não
idealmente invertido. A reorganização da forma de produção, de distribuição e controle
dos recursos econômicos torna-se fundamental à revolução, que deve ser feita pela base
e atingir a totalidade da experiência histórico-social alienada.

Debord faz uso aqui da categoria dialética da negação entendida materialmente


como destruição econômica, ou seja, como superação dialética do modo de produção
capitalista-burguês em sua totalidade. A negação se dá como negação da negação, quer
dizer, a negação efetiva e material de uma estado de coisas igualmente efetivo e
material que, em sua constituição econômica e em sua expressão superestrutural,
encontram-se invertidos.

O negativo do imediatamente dado deve ser negado. O dado que aparece como
natural deve ser socializado e historicizado (ideologicamente destruído e superado); no
entanto, deve ser, por meio da compreensão dialética, simultaneamente atacado em sua
matriz ontológica essencial, situada no âmbito das relações materiais efetivas.

O marxismo de Debord é, assim, de enfoque hegeliano, bem como seu


hegelianismo possui natureza marxiana. O que cumpre concluir, sobretudo aqui, é que o
ataque à separação, ao mundo de inverdades e inversões da cultura que a sustenta, não é
concebido em separado como uma tarefa específica da arte ou da filosofia, mas como
tarefa histórica total para a qual a filosofia e a arte devem contribuir, no plano da
cultura, com aquilo que se deve conquistar através da revolução de todos os setores da
vida econômico-social humana. Da vida cotidiana, por assim dizer, à sua expressão

43
http://www.krisis.org/1999/o-passado-e-o-presente-da-teoria-de-debord. Acesso em 19/01/2014.
162

cultural organizada em sistema superior de produção-criação e compreensão. Neste


sentido, devem contribuir com suas armas a filosofia e a arte.

Deve-se notar aqui que nem mesmo a imagem é desprezada por Debord,
porquanto esta não possui valor negativo intrínseco e sim aquele que assume no interior
da totalidade das relações alienadas. Inserida em outro sistema de referência e regida
por outras regras, a imagem, como se vê nas Diretivas, pode ser desviada em função da
consciência revolucionária e como instrumento político da teoria crítica. O próprio
Jappe nos adverte que

“Aqueles que (25) , a qualquer preço, querem atribuir a Debord uma hostilidade
metafísica em relação ao olhar e à imagem poderiam meditar, além de sobre seus
filmes, sobre o que ele disse, com desarmante simplicidade, no “Avis” Panégyrique,
Tomo II, composto sobretudo de fotos: “Os embustes dominantes da época estão
prestes a fazer esquecer que a verdade pode ser vista também nas imagens. A
imagem que não foi intencionalmente separada de seu significado acrescenta muita
precisão e certeza ao saber. Ninguém duvidou disto até há pouquíssimos anos” (26) .
(JAPPE. O Passado e o Presente da Teoria (de Debord), in: Krisis, 1999)

E conclui com acerto:

O que Debord critica não é, portanto, a imagem enquanto tal, mas a forma-imagem
enquanto desenvolvimento da forma-valor. Como esta última, a forma-imagem
precede todo conteúdo e faz com que as lutas entre os diversos actores sociais sejam
apenas lutas distributivas. Tanto os burgueses quanto os operários – para nos
limitarmos aos esquemas clássicos – têm seus interesses aparentemente
inconciliáveis expressos sob uma forma comum – o dinheiro – que de modo algum é
neutro ou “natural”, como se admite tacitamente, mas, ao contrário, constitui o
verdadeiro problema. Igualmente, no espectáculo, qualquer conteúdo, mesmo aquele
que se diz antagónico, sempre se apresenta sob a forma nada inocente da imagem
espectacular.

As aporias do sujeito e as perspectivas da acção. (JAPPE, O Passado e o Presente


da Teoria (de Debord), in: Krisis, 1999)

Conforme estamos trabalhando o texto debordiano, devemos apreciar sua ambição


dialética realizada como configuração concreta de potências em diálogo. Como
momentos que se articulam no texto e se expressam mutuamente através das relações de
inter-determinação que estabelecem. A arquitetura global do texto emerge das relações
entre as proposições que, por sua vez, realizam no plano micro-semântico e micro-
estrutural aquilo que o texto configura em sua arquitetura global.

Pela abordagem das proposições desviantes em sua configuração dialética revela-


nos, portanto, o segredo da composição geral, porquanto o enquadramento do texto
realiza-se como um macro-desvio em que as microunidades proposicionais dialogam
163

entre si e com o conjunto psicogeográfico da obra. Tomando como referência as Cinco


diretivas afirmamos que, da mesma maneira que as proposições dialéticas do texto da
Sociedade do Espetáculo, cada uma subsiste separadamente, mas só ganha pleno
sentido e se realiza como potência dialética pela relação que estabelecem com as outras,
mediadas pelo todo. Melhor, cada uma significa a totalidade do que se precisa realizar,
mas sua eficácia como máquina de guerra, de cujo trabalho ativo emerge seu sentido,
apenas assume o significado pleno como um ato de linguagem politicamente
insubmisso, por sua inserção no conjunto das diretivas, quer dizer, em relação auto-
mediada com o todo.

Assim as proposições da Sociedade do Espetáculo podem ser lidas como


pequenos mecanismos de desvio antiespetaculares pelos quais a linguagem atua em
escala elementar sem, no entanto, trabalhar como forma separada e contraposta ao
sentido da totalidade que lhes suprassume. Surgem como micro-mecanismos poéticos
cuja presença crítica espelha a máquina de guerra e a cria pela emergência das
propriedades que se expressam no todo. A entrada no sentido das proposições nos
permite o desmonte da máquina sem, no entanto, desfigurá-la ou mesmo traí-la em sua
função dialética; sem desfigurá-la naquilo que ela possui de maior valor: o fato de ser a
concreção da crítica em um objeto poético em cuja fluidez dialética o desvio põe-se
como trabalho revolucionário e não como resultado; como processo que engloba teoria e
prática, meios e fins, não como objeto mercantil inerte.

4.6 Crítica sintética e presença poética: o que os imbecis teimam em chamar de


citações

Há no objeto poético da proposição desviante, articulada em um amplo espaço


psicogeográfico da máquina de guerra antiespetacular, A Sociedade do Espetáculo, uma
realização da crítica que não se resolve na análise nem se conjuga pela separação. A
crítica integra em um meio dialético todas as peças que compõem o seu mecanismo
projetando-os em diálogo aberto com suas condições teórico-práticas de verdade a partir
da desconstrução de suas formas originais.

A compreensão da crítica como síntese poética é, portanto, fundamental para a


realização de nossa tarefa, pois é no microcosmo da sentença desviante em sua relação
164

com o mecanismo total desviado da articulação global da obra, que o embate se dá entre
a criação artística a razão filosófica e a missão política de superação do espetáculo.

Sem o recurso plástico da forma visual resta ao discurso composto em texto a


projeção de uma dimensão crítica possível através da reconfiguração de sua base
ideológica. Nesse movimento trata-se a palavra como imagem e a imagem como
palavra: ambas potencializadas e atraídas para a órbita do que lhes é aparentemente
estranho. Assim realizam seu contrário e negam a imediatidade de sua aparência
realizando-se mediante a sugestão do seu contrário. Não nomeado diretamente, mas
aludido e, assim, posto em movimento na vizinhança do sentido.

É desnecessário dizer que se pode não somente melhorar uma obra ou juntar
diversos fragmentos de obras ultrapassadas em uma nova, mas também mudar o
sentido desses fragmentos e montar da maneira que se achar melhor o que os
imbecis teimam em chamar de citações. (DEBORD. Desvio: modo de usar. 1956)

Pode-se ver numa crítica imanente a Hegel:

“Ce qui apparaît est bon, ce qui est bon apparaît.”


[“O que aparece é bom; o que é bom aparece.” (DEBORD.SE. §12)]

Alusão à Hegel, Prefácio dos Princípios da Filosofia do Direito onde se lê:

“O que é real é racional, o que é racional é real.”


Não significaria a aceitação do real como racional e do racional como real uma
violação do principio dialético da contradição e, de certa forma, uma resignação diante
do dado? Aceitar como racional todo real constituí, neste caso, uma postura espetacular
de submissão ao dado, ao que aparece, portanto, uma aceitação da lógica do espetáculo.
A substituição do conceito de ser – real – pelo de valor – bom – desvia a frase hegeliana
de sua significação original mostrando no mecanismo de sua lógica a sujeição do fato
ao valor, característica da perspectiva interessada da consciência burguesa que sobrepõe
o que deseja ao que considera verdadeiro. Neste sentido, O real é racional porque ambos
possuem não uma coincidência ontológica, mas porque equivalem axiologicamente ao
que a consciência espetacular considera superior. Uma espécie de tautologia em que
Ser=Valor equivale à fórmula consensual segundo a qual os meios correspondem aos
fins e se submetem a eles. Real=Racional corresponderia ao interesse escamoteado pela
proposição dialética, na qual somente no plano da aparência aquilo que se realiza
165

coincide com o que a razão postula. O trabalho da razão não se verificou, não há
nenhuma base material para se afirmar que a realidade tornou-se conforme apontava o
projeto da razão desde sua constituição primeira em Platão. A história não se revelou
prenhe de razão, mas determinada pelo interesse de classe que se apropriou do seu
sentido e o conduziu conforme a necessidade imposta pelo seu valor reducionista: o
valor de troca. O reducionismo axiológico exibido na imagem da sentença é
completamente destituído pela sua reversão. O desvio proposicional realiza a crítica
evidenciando a caducidade da proposição dialética hegeliana, o imediatismo de sua
imagética. Assim “Bom=O que um determinado sujeito histórico assim convencionou”.
O que aparece e o que se considera bom possuem a mesma potência semântica atrelada
ao sentido histórico que emerge de sua submissão ao interesse de classe. É bom o que
está aí porque o que está aí é bom. A tautologia é descoberta sob o manto da linguagem
dialética.

Esclarecemos o que se tenta explicitar aqui com uma sentença elusiva de Debord,
da qual se consegue o efeito pela sugestão:

“Le caractère fondamentalement tautologique du spectacle découle du simple fait que ses
moyens sont en même temps son but.”

[A característica fundamentalmente tautológica do espetáculo decorre do simples fato


de que seus meios são, ao mesmo tempo, seu fim. (DEBORD,SE. §13)]

Alude a uma fórmula aplicada ao Império Universal de Carlos V que assevera:

“Ele é o sol que jamais se esconde.”

Com um desvio liquida-se a falsa compreensão dos fins:

“Le but n'est rien, le développement est tout.”

[O fim não é nada; o desenvolvimento é tudo. (SE. §14.]

Détournement de E. Bernstein, Socialisme théorique et Social-démocratie pratique:

“Le mouvement est tout et la fin n'est rien.”

[O movimento é tudo; o fim não é nada.]


166

O parágrafo 17 refere-se a socialização dos sentidos; nela localizamos o lugar


teórico em que o significado do todo se deixa captar de forma peculiar pela lógica do
espetáculo; um exemplo da contaminação da percepção pelo valor-de-troca tornado
referência universal e forma consensual de avaliação. Inversão pela qual os sentidos são
moldados diretamente pela arquitetura teórica da práxis social tornada valor absoluto,
vale dizer, reificada. .

Aludindo aos Manuscritos econômico-filosóficos de Marx, nos quais se aborda a


“degradação do Ser em Valor”, Debord chega à explicitação da fórmula mediante um
tipo desviante de oscilação elusiva. Onde em Marx pode-se ler: “No lugar de todos os
sentidos físicos e intelectuais aparece, portanto, o sentido do ter, que não é mais que a
alienação de todos os sentidos.” Em Debord lê-se:

La première phase de la domination de l’économie sur la vie sociale avait entraîné


dans la définition de toute réalisation humaine une évidente dégradation de l’être en
avoir. La phase présente de l’occupation totale de la vie sociale par les résultats
accumulés de l’économie conduit à un glissement généralisé de l’avoir au paraître,
dont tout « avoir » effectif doit tirer son prestige immédiat et sa fonction dernière.
En même temps toute réalité individuelle est devenue sociale, directement
dépendante de la puissance sociale, façonnée par elle. En ceci seulement qu’elle
n’est pas, il lui est permis d’apparaître. (DEBORD, SE. § 17)

Acompanhamos o desenvolvimento da crítica através de diversos procedimentos


desviantes aplicados às proposições: a reversão, a substituição, a alusão, a sentença
elusiva, a subversão, o deslocamento. Todas as formas de exercício de uma dialética que
se apropria do outro como forma de negação do dado, elevação do sentido e afirmação
da divergência no interior de um jogo de signos que se estabelece, em primeiro lugar,
como gratuidade, como prazer de construir diálogos possíveis em que o sentido emerja
da própria mecânica do jogo. Uma espécie de construção da presença poética como
dinâmica da consciência crítica em ação. Em outros termos, uma crítica não textual, não
alienada, que não opera pela dissociação e pela diferença artificialmente estabelecida
pela análise entre objeto e sujeito, entre o dado e a construção teórica, cindidos em
instâncias exteriores independentes, uma das quais disseca a outra em busca do sentido,
dissolvido e perdido para sempre no próprio ato da análise. Da mesma maneira que a
proposição formal, a separação entre linguagem-objeto e sistema analítico estabelece a
distinção entre a forma espetacular que se mostra à contemplação e ao olhar
contemplativo do espectador. Também aqui o discurso mostra-se dominado pelas
categorias da visão distanciada e acrítica. Categorias essas que são o resultado da
reificação da linguagem operada pela alienação entre o sistema de mediações
167

simbólicas, percebido como forma da representação, e a experiência social que lhe


condiciona, não obstante, a forma. Neste sentido, “Le spectacle est l'héritier de toute la
faiblesse du projet philosophique occidental qui fut une compréhension de l'activité,
dominée par les catégories du voir”. (DEBORD. SE. § 19) Portanto, quando se pensa e
se exprime por intermédio de imagens visuais, “Il ne réalise pas la philosophie, il
philosophise la réalité.” (DEBORD, SE. § 19)

Encontramo-nos novamente diante de uma inversão de Marx pela qual se aponta o


caminho da crítica revolucionária ao mesmo tempo em que se exibe sua mecânica. Ou
melhor, o próprio procedimento desviante corporifica na proposição aquilo que a crítica
pretende dizer, realizando pelo jogo com a forma o que o conteúdo significa. A
superação é realização e aquilo que é negado na forma da apresentação é elevado e
afirmado, quer dizer, realizado concretamente na tensão constitutiva do jogo dialético.
Cumpre-se materialmente o que determina a proposição de Marx conforme se lê na
Crítica da Filosofia do Direito de Hegel:

“En un mot: vous ne pouvez surmonter la philosophie sans la réaliser (ihr könnt
die Philosophie nicht aufheben ohne sie zu verwirklichen).” (Marx, Oeuvres, t. III -
Oeuvres philosophiques, trad. Rubel, Gallimard/Pléiade, 1982, p. 388-389).

[“Não se pode superar a filosofia sem a realizar.”]

Se o leitor se recorda o que Debord propunha em sua Perspectivas para a


transformação consciente da vida Cotidiana (agosto, 1961), texto que abordamos acima
como referencial dialético que nos orientaria a leitura, é realizado plenamente aqui
através da utilização dialética do desvio. O que se anunciava como programa de
unificação teoria (perspectiva/consciente) e práxis (transformação) é materializado na
prática estratégica do desvio. Nela constrói-se não só o diálogo entre referencial teórico
e sua utilização revolucionária, entre regra e espontaneidade criativa, como se realiza a
crítica dialética mediante a superação da filosofia. E mais: por meio das Diretivas a arte
e a filosofia inserem-se nos movimentos da vida integrando à práxis suas formas de
desvio concretas que a forçam a sair dos limites impostos pelas contradições do
cotidiano; emergem como determinações não alienadas do cotidiano e reincidem sobre
ele propondo sua superação teórico-prática realizada pela própria forma desviante das
diretivas e das proposições articuladas no texto anti-espetacular; elas clamam pela
realização em um nível superior ao da imediatez pragmática e, portanto, reclamam sua
168

realização teórica em sistema concreto de pensamento configurado na linguagem. Desta


forma abrem espaço pelo desvio político da arte à inserção do texto filosófico como
componente essencial da vida.

4.7 Nossa época não deve mais escrever instruções poéticas, mas executá-las.

O texto filosófico desviado possui muito do espírito de sistema e, no entanto,


articula-se à vida quando visto em contraplano com as proposições diretivas. As
próprias sentenças ganham significado prático, porquanto não foram escritas para a
crítica roedora dos ratos, como afirmou Marx de sua Ideologia Alemã, nem se
constituem em peças ideológicas ou meros exercícios estéticos, ou mesmo teóricos. São
de fato componentes vitais de um aspecto da vida desviado, por cujo desvio ela deve se
reencontrar a si mesma e se iluminar por dentro. Um grande desvio imanente da vida
econômica, politica e social realizado como síntese concreta de suas determinações
teóricas mais exemplares. No livro Sociedade do Espetáculo a filosofia como discurso
da crise e relação negativa com seus elementos de sustentação desviadas é realizada
então como superação dos aspectos problemáticos do cotidiano pela ação dialética do
desvio, quer dizer, mediada pelo procedimento estético. Tal ação concretiza na
linguagem desviada a superação da filosofia pela realização da arte. Cumpre, portanto, o
programa debordiano de transformação consciente da vida cotidiana conforme
analisamos acima.

O enquadramento formal da crítica dentro dos parâmetros acadêmicos de correção


estrutural e de adequação normativa não serve mais à critica revolucionária, que deve se
livrar completamente da roupagem espetacular se se pretende realizar como superação
do espetacular em todas as suas formas. Assim, o desvio realiza, pela reapropriação do
particular, uma crítica total, ao mesmo tempo em que demonstra, pelo exercício prático
da realização da teoria, a verdade de sua concepção. Quer dizer, a concepção não é
anunciada, programada, estabelecida como marco ou referencial teórico, mas realizada
na prática conforme o andamento concreto de sua própria atualização. A teorização é
imanente ao texto e se inclui na efetivação de seu sentido global. A prática é invadida
pela teoria que se realiza mediante a prática. De certa forma um acordo que se exibe,
que se mostra no próprio ato de se estabelecer como distensão entre o que a teoria
propõe e a prática realiza ao se contraporem como determinações isoladas e
169

antagônicas. Não escreve instruções, mas as executa. Exatamente o que se espera de


uma época cuja maior virtude reside na necessidade de superação do maior problema.
Portanto, “Nossa época não deve mais escrever instruções poéticas, mas executá-las.”
(DEBORD. All the King’s Men.)

Não há modelo e modelado, mas o próprio ato de construir um modelo implica em


um tipo de “modelar-se a si mesmo do referencial expressivo”, o que denota uma
completa reorientação da linguagem em sua tradicional potência simbólica. Uma
sentença desviada realiza, portanto, um movimento particular pelo qual se atinge um
plano de realização total da crítica, sem precedentes. A troca de um conceito, a reversão
da fórmula ou a alusão à regra tradicional da qual se distancia pela atualização crítica da
linguagem produzem um efeito de alcance universal. Efeito a que se chega pela
destruição de uma forma particular. Tal destruição corresponde a um ato complexo de
conjunção arte-filosofia-vida pelo qual o desvio realiza-se amplamente como diversão,
reencaminhamento, distorção, abuso, malversação, sequestro, revertendo o curso ou
propósito normal a linguagem sequestrada pela ideologia e espetacularizada pelo
movimento global das abstrações que se deixaram apanhar pela lógica do valor de troca.

O fetichismo da linguagem é rompido pela ação da força dialética do desvio. Tal


força materializa-se no texto não analítico, não convencional, rebelde e avesso às regras
consensuais e aos protocolos acadêmicos. Neste sentido insere-se no movimento global
da vida e articula-se às mediações sociais de cuja força negativa se apropria e
transcende pela reversão dialética. O texto aparece como uma determinação do
cotidiano voltado contra seus aspectos alienados, realizando-se pela subversão das
mediações totalizantes da lógica do capital, que se apropriou de todos os aspectos da
vida social e os colonizou. Deve ser percebido, portanto, como uma presença poética
imanente ao cotidiano, em cuja expressão não-alienada e dialética as forças reativas e
alienadas do cotidiano são diagnosticadas em sua imediatez não redimida, elevadas ao
plano da consciência crítica e realizadas, enfim, pela superação das distâncias que a
separação estabelece entre pensamento e criação, arte e vida, momento predominante e
determinações particulares, totalidade e fragmento.

Debord afirmou que “O problema da linguagem está no centro de todas as lutas


pela abolição ou manutenção da alienação presente; inseparável do conjunto do terreno
destas lutas.” Isto porque, “Vivemos na linguagem como no ar viciado.” Quer dizer a
170

linguagem pode muito bem ser definida como o nosso meio, não apenas um veículo de
conteúdos, mas uma forma total de ser pela qual se pode também “deixar de ser”.
Através do feitiço da linguagem a possibilidade de libertação dos sujeitos, de construção
do projeto da razão rumo à emancipação fica comprometido, uma vez que aquilo que,
em certo sentido, nos consiste, nossa possibilidade de expressão e entendimento, o
vínculo que nos aproxima do outro, torna-se nossa própria destituição. A ideologia
desconstrói as singularidades e destrói pela linguagem a possibilidade de afirmação da
diferença e, com ela, a possibilidade de construção e comunicação dos conteúdos vitais
da existência social.

O teor revolucionário da crítica debordiana, por outro lado, a força que lhe
imprime significado e direção, “insiste e aposta na potencialidade poética da linguagem
e da escrita, potencialidade esta que, para os situacionistas, significa a capacidade de
recriação de sentidos, de desobediência ao dado, de reinvenção do existente, na e pela
linguagem.”44 O trabalho desviante com a proposição torna-se, portanto, fundamental à
reversão do sentido do que nos conquista e submente. No entanto, ele não é completo
sem o desvio da totalidade do sistema reificado, através da presença poética total e
diáfana do desvio do sistema, em cujo interior o complexo de relações entre as
proposições dialéticas ganha pleno sentido e movimento. A reversão do todo. É o que
veremos a seguir.

44
AQUINO, Emiliano. http://emilianoaquino.blogspot.com.br/2008/01/all-kings-men.html, acesso em
22/02/2011.
171

II A ASTÚCIA DA DIALÉTICA: DESVIO NA SOCIEDADE DO ESPETÁCULO


172

Capítulo 5. A dialética como desvio do sistema: ensaio de


psicogeografia

Comme un résultat qui est un projet et comme un projet qui est un résultat, - un
résultat qui naît du projet et un projet engendré par un résultat ; en un mot, le réel se
révèle dans sa vérité dialectique comme une synthèse. A. Kojève

Se olharmos as Diretivas em relevo com as proposições da Sociedade do


Espetáculo, ficaria fácil concluir que se está aqui diante de um exercício que visa a
concretizar um modelo de sistema muito peculiar. A categoria da totalidade é uma
constante teórica nas tentativas de Debord e os desvios particulares quando pensados em
conjunto nos evidenciam o quanto a perspectiva do concreto é para ele uma referência
incontornável para a realização do projeto crítico. Vale a pena examinarmos um pouco
esta característica fundamental do desvio: o que poderíamos denominar, de forma geral,
de desvio do sistema, realizado à maneira de uma deriva psicogeográfica. Quer dizer, o
desvio global de todos os elementos proposicionais desviados, considerados em
conjunto, quando deles emerge uma imagem concreta da totalidade abarcada, revisada e
revertida pelo desvio do sistema.

Para tal, um sistema prévio reaproveitado é tomado como mapa dentro do qual se
constroem possibilidades de fluxos de significados determinados pela deriva dos signos.
Toma-se uma totalidade planejada e dentro dela constroem-se variações de movimentos
proposicionais que instauram novos fluxos de sentido dentro de uma configuração
sistemática modelo desviada por um antissistema.

Pensemos melhor no caso. Como as Diretivas quando consideradas em conjunto,


a Sociedade do Espetáculo também realiza em sua composição global o que se poderia
chamar de macro-desvio. Se pensarmos no texto como um todo, veremos uma espécie
de mapa composto de vetores dialógicos que se projetam sobre o solo de um sistema de
referências reaproveitado e desviado. Melhor dizendo, um tipo de texto reurbanizado
pela deriva psicogeográfica, que toma emprestado a ideia de um projeto sistêmico como
referencial contra o qual dinamiza seu movimento. Se voltarmos à nossa metáfora da
máquina de guerra, poderíamos pensar em uma engrenagem construída a partir de um
modelo prévio que ela, em seu movimento diferencial, reverte.
173

A reversão do sistema executa-se mediante um movimento criativo que aproveita


o contorno geral de uma totalidade organizada e instaura em seu interior uma complexa
relação de signos em deriva psicogeorgráfica. Tem-se um desvio global, um vasto
desvio, obtendo um resultado de inversão crítica do modelo desviado pelo qual o texto
configura-se como um sistema de sistemas deslocados em seus referenciais atualizados.
Para tal ela se utiliza da vontade e da ideia de sistema como referencial do grande
projeto da cultura filosófica ocidental com o qual o texto dialoga criticamente. E o
grande ímpeto sistemático da cultura ocidental foi pensado como um projeto no qual
todos os aspectos da vida natural e histórico-social fossem articulados em um grande
esquema compreensivo, dentro do qual as determinações particulares e a estrutura
universal compusessem um diálogo pelo qual se realizaria a síntese concreta das
categorias em seu movimento e relações efetivamente reais.

A explicitação enciclopédica do concreto reproduzido pelo pensamento foi o


grande projeto da filosofia ocidental em seu ímpeto totalizador, que esbarrou em seus
limites em sua última grande realização: o sistema de Hegel, que se pode considerar o a
maior tentativa de elaborar uma compreensão sistemática do destino humano norteado
pelos esforços históricos da razão. Nele a mentalidade moderna desenha o mapa de suas
pretensões não realizadas, traçado como uma grande dinâmica sintética de categorias,
em cujas determinações e articulações ideais pretendiam-se compreender as próprias
determinações e articulações reais em seu movimento autônomo. Reaproveitar esse
anseio realizado em uma grande arquitetura teórica como quadro de referência dentro do
qual desviar seus vetores proposicionais e construir o sentido diferencial do texto,
fluidificando a mensagem, parece-nos um procedimento situado dentro das intenções
totalizantes do desvio debordiano em sua ambição mais radical e sintética.

Caracterizá-lo não será obra fácil, mas iremos delimitando os seus contornos,
significados e funções até especificarmos finalmente sua forma de articulação crítica
contra o sistema que reaproveita. Situando depois, dentro desse quadro, as proposições
como desvios particulares, cremos conseguir exibir a máquina dialética em movimento
destrutivo-criador sem trair sua natureza totalizante e polêmica.

Iremos tentar aqui a construção de uma base qualquer para delinear os contornos
mais universais da máquina de guerra debordiana. O quadro psicogeográfico dentro do
qual as proposições desviantes, que são as unidades atômicas do sentido, poderão exibir
174

a plena concretude de sua função dialética. Pretendemos com isso mostrar a grande
astúcia da dialética em sua macro e micro configurações: superar a clivagem parte todo
na própria composição totalizante da parte na qual, pelo estilo, o desvio materializa, no
mecanismo da proposição vetorializada, a luta sintático-semântica que empreende
contra o espetáculo em sua totalidade. Neste sentido, O referencial sistêmico é como um
mapa dentro do qual os conceitos articulados em proposições desviadas realizam sua
deriva psicogeográfica.

Denominamos desvio do sistema esse procedimento dialético total. Um tipo de


paródia do sistema. Um método usado não para provocar efeitos cômicos, mas para
sublimar as características do sistema tomado como modelo, no intuito de produzir uma
inversão irônica de seu sentido. A paródia é utilizada aqui como uma forma de arte em
que predomina a auto-reflexividade, proporcionando um novo modelo para o processo
artístico e para a referência crítica sem recorrer a citações nem ceder ao recorte
analítico. A utilização de um procedimento comum à arte permite ao discurso filosófico
realizar-se como obra independente das restrições da sociedade espetacular, violando
suas regras no intuito de promover a crítica de um ponto de vista não conciliatório nem
submisso aos parâmetros normais. “As descobertas da poesia moderna a respeito da
estrutura analógica das imagens demonstra que quando dois objetos são unidos, não
importa quão distantes os seus contextos originais, uma relação é sempre formada.”
(DEBORD. Guia prático para o desvio. Grifos nossos)

A relação dialética formada pela analogia é o que nos importa, pois, por meio
dela, a teoria crítica debordiana realiza-se, conforme já sustentamos repetidas vezes,
como presença poética, não como incisão analítica. Isto em benefício da necessidade de
elaborar a crítica sem se conciliar, em nenhum momento e sob nenhum aspecto, com as
determinações do mercado espetacular. Exige-se da consciência crítica a força criativa
capaz de reutilizar elementos desviados de seu contexto original em seu próprio
benefício. “A interferência mútua de dois mundos sensíveis, ou a união de duas
expressões independentes, supera os elementos originais e produz uma organização
sintética de grande eficácia.” (DEBORD. Guia prático para o desvio. Grifos nossos)

O leitor há de perceber que o conceito que Debord utiliza reforça tudo o que
tentamos demonstrar até aqui. Ao falar de “organização sintética” ele refere-se
diretamente ao método não espetacular que utiliza na concreção dialética de sua teoria
175

crítica. O que chamamos de “presença poética”: uma organização total contraposta à


logica do modelo que ela critica pelo desvio, vale dizer, que ela nega, reaproveita e
eleva a um plano superior de expressão e significação. Uma significação criada pelo
estranhamento e pela diferença em relação a uma forma canônica. O modelo colocado
contra si próprio produz uma forte tensão crítica que dinamiza o texto e realiza, por
meio da presença alusiva, a astúcia da dialética. A alteração do significado ou da forma
original de um modelo pela ação desviante abre um espaço ilimitado à intervenção
crítica. Todos os produtos do mercado espetacular podem ser reaproveitados, todas as
suas formas alienantes podem ser revertidas, todos os seus projetos reutilizados,
apropriados e dotados de novo sentido e significado, destituindo os antigos, realizando o
novo. Como afirma Debord,

Está implícito que não há limite para corrigir uma obra ou para integrar diversos
fragmentos de trabalhos obsoletos em um novo; pode-se alterar o significado desses
fragmentos de qualquer forma apropriada, deixando aos imbecis a sua escravidão às
referências e às “citações”. (DEBORD. Guia prático para o desvio. Grifos nossos)

O espetacular é subvertido pela lógica dialética do desvio e, assim, trabalha contra si


próprio. A máquina dialética insere-se no interior da mecânica espetacular e reverte seu
movimento, criando novos significados pelo desvio. Segundo Debord,

Tais métodos parodísticos foram frequentemente usados para obter efeitos


cômicos. Mas tal humor é o resultado de contradições dentro de uma condição cuja
existência não é posta em questão. Já que o mundo da literatura nos parece quase tão
distante quanto a idade da pedra, tais contradições não nos fazem rir. Torna-se
necessário conceber então um estágio paródico-sério no qual a acumulação de
elementos desviados, longe de procurar despertar indignação ou riso ao aludir a um
trabalho original, expressará nossa indiferença em relação a um original
insignificante e esquecido, e que procura proporcionar uma espécie de sublimação.
(DEBORD. Guia prático para o desvio. Grifos nossos)

Conforme esclarece Bernardina da Silveira Pinheiro, na Introdução à sua tradução


de Ulisses de Joyce,

A paródia moderna, afirma Linda Hutcheon, se distingue da imitação


ridicularizante mencionada nas definições padrões dos dicionários. Além de reativar
o passado, dando-lhe contexto novo e frequentemente irônico, ela exige do leitor
maior atualização e melhor conhecimento deste passado, levando-o, se preciso for, a
voltar a ele para uma maior integração com a obra. Em sua inversão irônica, é um
jogo de convenções múltiplas, uma prolongada repetição com diferença crítica, uma
confrontação estilística que, longe de desmerecer o original, ressalta nele apenas as
diferença. Por seu aspecto sofisticado, a paródia faz exigências não apenas daqueles
que a utilizam como também de seus intérpretes. De fato, tanto o escritor quanto o
leitor devem efetuar uma superposição estrutural dos textos, que incorpore o antigo
ao novo, visto que ela é uma síntese bitextual. (PINHEIRO. P. 2-3)
176

Bernardina da Silveira Pinheiro nos sugere, no trecho supracitado, todo um


programa de investigação do desvio, em seu aspecto paródico sério , que nos resta fazer
a partir de agora. Comecemos pelas bordas do texto, tentando ir gradativamente ao
assunto, indiretamente e por rodeios, até que estejamos no direito de sobrepor as formas
modelo e desviada a fim de situarmos, em uma complexo de referencias críticas, a
emergência do sentido universal do desvio mediado pela totalidade teórica que parodia.
Queremos que o douto leitor participe da cena que estamos prestes a exibir; que
examine cada um dos seus traços, que leve em conta o esforço necessário a esse tipo de
intervenção que tangencia a audácia, e constate por si mesmo a cautela, o cuidado com
o significado, a presença do estilo como um componente semântico do texto. Que
acompanhe os movimentos e, enfim que perdoe o nosso fracasso. Comecemos, então.
Temos uma tarefa difícil pela frente.

5.1 Refluxo e expansão: um mapa

Debord insere-se nessa vaga parodística da qual aproveita o método como recuso
para a utilização do desvio. Tal utilização pode ser feita desde uma unidade
microestética como a sentença, a proposição, o epigrama, até a construção mais vasta,
como uma obra ou um sistema inteiro. A compreensão da referência desviada torna-se
então condição insuperável para a compreensão de sua reversão e do significado que o
desvio cria a partir da auto reflexividade. É o que tentaremos compreender a partir
daqui. O sentido do desvio macro estilístico que denominamos “desvio do sistema”. O
próprio Debord mostra-se consciente da técnica ao referir-se a Lautréamont. Escreve
ele:

Lautréamont avançou tanto nessa direção que ele é ainda parcialmente mal
entendido mesmo pelos seus mais ostentosos admiradores. A despeito de ser óbvio
que ele aplicou esse método à linguagem teórica em Poésies - onde Lautréamont
(baseando-se particularmente nas máximas de Pascal e Vauvenargues) esforça-se
para reduzir o argumento, através de sucessivas concentrações, a simples máximas -
um certo Viroux causou bastante sensação três ou quatro anos atrás ao demonstrar
conclusivamente que Maldoror é um vasto desvio de Buffon e de outras obras de
história natural, além de outras coisas. (DEBORD. Guia prático para o desvio.
Grifos nossos)

O que tentaremos daqui por diante é demonstrar que a Sociedade do Espetáculo é


um grande desvio de Hegel, de sua Lógica e do sistema da história. Em contraponto
com o sistema de Hegel, Debord elabora uma inversão do todo que, pela paródia e pelo
177

efeito irônico-sério, cria uma confrontação estilística, uma inversão irônica que, longe
de desmerecer original, ressalta nele, e através dele apenas a diferença.
(BERNARDINA, P 2)

A imagem de um mapa psicogeográfico de Paris criado-desviado por Debord nos


fornece uma imagem do que se procura realizar na teoria-prática do “texto
psicogeográfico” que é a Sociedade do Espetáculo. Como na deriva, toma-se um mapa e
constrói-se a partir dele novos rumos, rearranjando a constituição da cidade de acordo
com a vontade criativa de indivíduos conscientes e livres, que buscam realizar suas
liberdades dentro do quadro preestabelecido do sistema urbano. Que se utilizam dos
limites e fronteiras do dado para construir novas possibilidades de deslocamento. O
deslocamento dos corpos livres dentro do ambiente psicogeográfico da ideologia
materializada.

Reorganizar novos trajetos no interior do antigo sistema já configurado, encontrar


novos rumos dentro de antigos mapas, libertar novas forças e novos sentidos no
contexto da prisão pasicogeográfica do sistema urbano. Eis um procedimento da deriva:
redesenhar o mapa da cidade e assim construir novas possibilidades dentro de velhos
trajetos significa tomar de assalto a vontade de controle do sistema, planejado em
função de seus próprios fins, e por intermédio de sua reversão reutilizá-lo em função do
desejo e da afirmação da diferença do indivíduo consciente e livre. O antigo projeto e
seus limites usados como meio de realização de uma liberdade possível, uma liberdade
crítica pelo reaproveitamento do espaço planejado da cidade. O projeto colocado em
ação e realizado como um movimento de criação de situações a partir da deriva
planejada pela geografia urbana soa como uma forma de inserção na vida cotidiana de
um procedimento artístico que, ao mesmo tempo, integra novas possibilidades de
experiência na cidade a um jogo cujas regras não estão previstas pelo código
materializado no planejamento urbano. Constitui-se como um jogo no qual as regras são
inventadas na própria imanência do movimento de errância que as produz e constitui.
No contexto de um espaço definido emerge a reivindicação do direito a uma liberdade
de errar, de se mover contra as regras configuradas no plano da cidade que moldam as
expectativas e as forças humanas.

Em essência, a deriva deveria ser um ato de revolta amparado em uma recusa em


deixar-se modelar por um projeto alheio a necessidade humana de movimento e
178

mudança em liberdade e autonomia, constitutiva de uma felicidade de não ter, por um


tempo, nem obrigações, nem objetivos, nem lugar fixo. O prazer de experimentar a vida
como, as palavras são de Montaigne, “um movimento material e corporal, ação
imperfeita por sua própria essência e desordenada.” (Citado por TOURNON, 2004,
155)

A psicogeografia seria então uma geografia afetiva, subjetiva, que buscava


cartografar as diferentes ambiências psíquicas provocadas basicamente pelas
deambulações urbanas que eram as derivas situacionistas. Segundo Debord,

Entre los diversos procedimientos situacionistas, la deriva se presenta como una


técnica de paso ininterrumpido a través de ambientes diversos. El concepto de deriva
está ligado indisolublemente al reconocimiento de efectos de naturaleza
psicogeográfica, y a la afirmación de un comportamiento lúdico-constructivo, lo que
la opone en todos los aspectos a las nociones clásicas de viaje y de paseo.
(DEBORD. Teoría de la deriva. Texto aparecido en el # 2 de Internationale
Situationniste.)

Citemos um mapa psicogeográfico de Debord para que o leitor visualize uma


astúcia da dialética.

Uma leitura do mapa:

The Naked City talvez seja a melhor ilustração do pensamento urbano situacionista,
a melhor representação gráfica da psicogeografia e da deriva, e também um ícone da
própria idéia de Urbanismo Unitário. Ele é composto por vários recortes do mapa de
179

Paris em preto e branco, que são as unidades de ambiência, e setas vermelhas que
indicam as ligações possíveis entre essas diferentes unidades. As unidades estão
colocadas no mapa de forma aparentemente aleatória, pois não correspondem à sua
localização no mapa da cidade real, mas demonstram uma organização afetiva
desses espaços ditada pela experiência da deriva.

As setas representam essas possibilidades de deriva e como estava indicado no


verso do mapa: “the spontaneous turns of direction taken by a subject moving
through these surroudings in disregard of the useful connections that ordinary
govern his conduct”. O título do mapa, The Naked City, também escrito em letras
vermelhas, foi tirado de um film noir americano homônimo (36). O seu subtítulo,
illustration de l’hypothèse des plaques tournantes, fazia alusão às placas giratórias
(plaques tournantes) e manivelas ferroviárias responsáveis pela mudança de direção
dos trens, que sem dúvida representavam as diferentes opções de caminhos a serem
tomados nas derivas.

The Naked City tem nítida influência de alguns mapas do livro do sociólogo urbano
Paul-Henry Chombart de Lauwe Paris et l’agglomération parisienne, de 1952, que
também foi citado nas páginas da IS, principalmente na Théorie de la dérive. Um
diagrama desse livro de Lauwe também figura na IS, ilustrando o comentário sobre a
deriva de Rumney em Veneza: um interessante mapa de Paris com o traçado de
todos os trajetos realizados em um ano por uma estudante, que se concentram no
bairro em que ela morava, nos percursos básicos entre a sua casa, a universidade e o
local de suas aulas de piano. (The Naked City, illustration de l’hypothèse des
palques tournantes. Texto extraído de “Diário de Cena”,
http://cidademcena.wordpress.com/category/pesquisas-arquitextos/guy-debord/.
Acesso em 21/01/2014.

Cumpre observar que a produção da abundância na sociedade capitalista significa


a universalização das formas de relação controladas por valores submetidos aos critérios
absolutistas do modo de produção que governa todos os aspectos da vida e os submete à
mesma lógica imperativa do espetáculo. Isto quer dizer que com a ampliação da esfera
da produção de mercadorias a todas as regiões da vida o absoluto , configurado em
sistema teórico por Hegel, torna-se uma abstração econômica sutil, invisível,
extremamente insidiosa e eficaz em sua abrangência.

Pela materialização de um absoluto estranho aos fins efetivamente humanos, um


absoluto de pedra a serviço da produção e circulação de mercadorias, o espetáculo
invade todos os setores da experiência social, desde a base econômica até as mais
diversas áreas das relações culturais: todas governadas pelo mesmo princípio de não
participação e de submissão do indivíduo ao sistema das necessidades de suas regras
cada vez mais impositivas. A vida passa a ser validada pelas normas produzidas por
interesses específicos de dominação, normas que, não obstante possuírem um teor
histórico, aparecem aos indivíduos como formas atemporais e universais de
regulamentação, sem as quais a vida mesma careceria de sentido e de propósito. A
contingência de uma forma singular assume o aspecto de uma necessidade universal. A
“imensa acumulação de mercadorias” (MARX, O Capital) tornando-se uma “imensa
180

acumulação de espetáculos” (DEBORD, SE) não só volatiliza-se na imagem mediadora


das relações entre indivíduos submissos, mas, fundamentalmente, invade a totalidade da
vida social condicionando a experiência empobrecida de pseudos-agentes ao imperativo
categórico de uma estrutura ubíqua e onipotente, governando os movimentos do
espetáculo material e imaterial ao qual a consciência submerge como uma segunda
natureza. Assim, valida-se o interesse abrangente de Debord – e dos Situacionistas – em
atacar o problema desde uma ampla frente de combate, uma vez que o espetáculo que
diagnostica, denuncia e contra o qual luta, possui o caráter da totalidade e do absoluto.
Pode-se dizer que possui uma feição material e uma feição imaterial não separadas, mas
inter-relacionadas através de uma lógica aparentemente autocatalítica da produção de
mediações e regras de relação infra e superestruturais. Apresenta-se presente desde o
aparentemente banal da vida cotidiana até as construções megalíticas das cidades
modernas, parentes dos sistemas teóricos em que a síntese da experiência humana
aprece mediada pelo interesse de controle do Estado cooptado pelo capital.

A reurbanização do pensamento pela inversão do sistema funciona como a


realização da deriva psicogeográfica acima. Delimitar um mapa, reaproveitar os
caminhos da cidade já estabelecidos e no interior deles traçar novas rotas: a liberdade
do pensamento materializada nas proposições desviadas, na violação das regras e no
vasto desvio do sistema, coincide com a liberdade do corpo em trânsito imaginativo
pela cidade desconstruída. A cidade das palavras e as palavras da cidade. Ambas
vetorializadas em forças que se afirmam pela negação dos antigos sentidos, que desviam
de seus rumos e propósitos. O poder da criação contra a criação do poder: a grande
astúcia da dialética. The naked city pensado em analogia com The naked system, ou A
Sociedade do Espetáculo.

Na descrição da composição textual em seus elementos básicos, em sua dinâmica


global e articulações dialéticas, poderemos observar o todo em diálogo aberto com as
partes, as placas em deslocamento dentro do replanejamento psicogeográfico do
sistema. A alusão irônica aos seus referenciais histórico-críticos, do qual emergirá o
sentido pleno de uma obra animada pelo desvio.

Pensemos o texto e seus capítulos como partes de um mapa reconstruído, dentro


de cujas relações as proposições desviadas em deriva extraem possibilidades concretas
de liberdade criativa pela qual se realiza o trânsito dialético do pensamento e da
181

imaginação reorientados de acordo com a vontade criadora do sujeito. Reaproveitar o


mapa do sistema como referência para o desvio; desviar-se dele mediante sua
reorganização e sua inversão no texto em que ele é desconstruído, nos mostrará um
diálogo de procedimentos entre a deriva psicogeográfica e o vasto desvio pelo quais
ambos os procedimentos dialéticos se revitalizam pela interconexão de estilos que se
expandem e se tangenciam. Deve-se compreender que

O modus operandi da Sociedade do Espetáculo repercute-se, igualmente, na sua


forma de produzir cidade, e os situacionistas dedicarão parte dos seus esforços à
crítica da cidade modernista, enquanto materialização do espetáculo. É neste
contexto que delineiam algumas das suas mais interessantes (no meu entender)
propostas. Criticam a cidade moderna enquanto fonte de tédio, pela sua infertilidade
em termos de criação de ambiências e de condições para a fruição de um quotidiano
excitante, aventuroso (Chtcheglov, 1953; Constant, 1959).
Debord pensava a cidade como um texto e o texto como uma cidade? É o que
devemos fazer se desejamos entender a riqueza e significado do desvio. Iniciemos com
considerações gerais sobre o sistema até entrarmos em nossa abordagem do desvio
psicogeográfico realizado por Debord na Sociedade do Espetáculo. O assunto é
complexo e fazem-se necessárias observações prévias.

Abordaremos primeiro o “mapa” para depois nos concentrarmos em sua


reinvenção pelo desvio amplo que reverte o sentido do todo determinando um novo
espaço para o movimento das sentenças dialéticas.

5.2 Tempo abstrato da produção econômica, linguagem e sistema

O sistema constitui uma espécie de contaminação da linguagem pela experiência


falsificada do tempo e pela vontade de planejamento do espaço como forma de
construir um quadro de referências abstrato – estrutural e pseudo-cíclico – dentro do
qual as categorias ocupam seus lugares específicos, suas posições na organização
hierárquica do pensamento. Uma ordem regular na qual o tempo é coisificado sob a
forma da divisão esquemática de momentos separados administrados pelo movimento
pseudo-circular do relógio. 45

45
Aliás, o relógio é o instrumento que realiza de fato a aliança entre a espacialização do tempo, o tempo-
mercadoria e o poder administrativo. Em um ensaio sobre a ditadura do relógio, George Woodcock
escreve que
(...) a influência do relógio imporia certa regularidade à vida da maior parte dos homens, regularidade que
antes só era observada nos monastérios. Na verdade, os homens se transformariam em relógios, a repetir
182

Em uma formulação densa Debord observa que a tirania da regularidade mecânica


estaria vinculada ao aparecimento de uma concepção de tempo linear associada ao
nascimento do poder político. A partir daí a sucessão de poderes substitui a
consanguinidade e os vínculos naturais que condicionavam a percepção do tempo
cíclico. Para Debord, “O tempo irreversível é o tempo daquele que reina; as dinastias
são a sua primeira forma da medi-lo. A escrita é sua arma. Na escrita a linguagem atinge
sua plena realidade independente de mediação entre as consciências.” (DEBORD, SE. §
131)

O surgimento de uma memória exterior e espetacular estaria, segundo Debord,


materializada na escrita, pela qual “aparece uma consciência que já não é sustentada e
transmitida na relação imediata dos vivos: uma memória impessoal que é a da
administração da sociedade” (DEBORD, SE. § 131). Essa memória impessoal não
poderia advir senão de uma separação fundamental pela qual a experiência da mudança
e da transformação tornam-se desligadas da vida, assumindo a forma de uma sucessão
de eventos abstratos pelos quis se mede definitivamente o sentido único, linear e
irredutível do tempo.

Ao tempo vital da experiência do individuo social, na qual se comungam


encontros e tangências entre os ciclos naturais em seu comércio rico de significado com
os movimentos dos sujeitos no contexto comunitário, substitui-se o tempo insensível da
memória abstrata, reservada para o registro apenas do que é significativo para o poder.
A memória exterior nasce escrava do tempo reificado e a ele fornece suporte
psicológico para a perpetuação do sentido abstrato das vivências genéricas construídas
como referencias exteriores ao sujeito. O tempo administrado não diz mais nada ao
tempo efetivo da experiência vivida e compartilhada. Erige-se, ao contrário, como juiz
da história e padrão de referência às perdas vitais registradas como conquistas do poder.

A submissão ao tempo abstrato faz-se, portanto, pela inserção da comunidade em


um sistema de referências alheio à sua própria experiência vital. De qualquer maneira,
com a ascensão histórica da classe burguesa ao lugar de poder que ocuparia, e de cuja
posição determinaria os destinos do planeta, o tempo da produção econômica
transforma a sociedade de modo permanente e absoluto. A partir desse momento, “O

sempre as mesmas ações com uma regularidade que em nada se pareceria aos ritmos naturais da vida.
(WOODCOCK,1981. P. 122.)
183

triunfo do tempo irreversível é também sua metamorfose em tempo das coisas, porque a
arma de sua vitória foi precisamente a produção em série de objetos, segundo as leis da
mercadoria”. (DEBORD, SE § 142. Grifos do autor). Com o desenvolvimento do
capitalismo o tempo irreversível unificou-se mundialmente. Então, “O tempo da
produção econômica, recortado em fragmentos abstratos iguais, se manifesta por todo o
planeta como o mesmo dia. O tempo irreversível unificado é o do mercado mundial e,
corolariamente, do espetáculo mundial”. (DEBORD, SE, § 145. Grifos do autor)

Em termos mais amplos, pode-se dizer que o tempo como espetáculo mundial
contamina o modo pelo qual as pessoas percebem suas relações e obrigações sociais.
Estas passam a ser mediadas pela limitação dos recortes abstratos dos momentos
separados diante dos quais o trabalhador deve regular sua vida. A totalidade da
experiência subordina-se a vivência abstrata do tempo que configura a maneira pela
qual o homem organiza e compreende sua própria existência.

Ajustar-se ao tempo mecânico torna-se uma obrigação e uma necessidade


imperiosa do sistema que governa, de agora em diante, a vida de todos. Aquele que não
conseguir ajustar-se deve enfrentar a desaprovação da sociedade e a ruina econômica.
(WOOCK,1981, p. 123.) O tempo da vida tornou-se o tempo linear medido pelas horas
dedicadas ao trabalho, as quais são avaliadas em seu decorrer sucessivo e regular
através do relógio de ponto. No interior do microfenômeno histórico da vida cotidiana o
tempo linear e abstrato torna-se a base para a aceitação comum do tempo histórico como
sucessão de eventos em direção a um fim. A macro-história reproduz a micro-história
cotidiana e ambas fornecem a base para a percepção da existência social como
dominada por uma força que empurra sempre para a frente os eventos e os atualiza de
acordo com os fins próprios à organização e manutenção do poder.

Dessa maneira a concepção escatológica da história domina a totalidade da


experiência social, impondo sobre a vivência humana do tempo, a ideia de uma divisão
de momentos constituídos pelos modos de organização da vida segundo uma orientação
linear e quantitativa, apontada para um telos próprio aos interesses do poder.

O tempo do poder é o tempo das coisas, o mecanismo regulador do valor da


produção, o sistema dos objetos alheio e, ao mesmo tempo, governante dos sentidos e
dos eventos, agora reduzidos a dimensão abstrata da sucessão contínua e regular. Uma
sucessão que aponta para um fim, uma realização coincidente com os interesses daquele
184

que governa. O sistema da história se torna instrumento nas mãos dos interesses de
dominação e controle. É bom que se tenha em mente esse vínculo entre administração
do tempo, história e poder para que se compreenda porque o tempo histórico do sistema
hegeliano, o tempo enteléquico das finalidades humanas está, de fato, sujeito a um
sentido escatológico que só existe como abstração, como projeto utópico. Tal projeto
torna-se ideologia na medida em que traz à imanência da história humana a promessa de
um além cuja finalidade era justamente promover o ópio que apaziguaria os ânimos dos
escravos, promovendo os interesses dos senhores. A realização da razão na história
substitui, em certa medida, o reino supraceleste da promessa de redenção daqueles que
sofrem a miséria universal.

A seta da história apontando para um fim entendido como a realização suprema


dos interesses da humanidade – liberdade e realização da vida ética concreta, em Hegel,
ou emancipação da natureza, segundo os moldes iluministas – assume a função de uma
diretriz ideológica a ocupar as esperanças de redenção pelo trabalho e autoconsciência
de uma classe alijada de todas as conquistas materiais que ela mesma materializou.

Pode-se pensar o tempo linear e o fim da história , entendido como um reino de


igualdade de justiça, como uma ideia profana a ocupar o que antes era função da
religião. Um ópio imanente a pacificar os anseios de uma humanidade explorada. Mas,
na verdade, “o retorno temporal a lugares semelhantes passa a ser o puro retorno do
tempo a um mesmo lugar, a repetição de uma série de gestos”. (DEBORD, SE, § 127).
O fim da história como fim da jornada de trabalho, como reino da providência,
idealizado como realização concreta da ideia de liberdade no próprio movimento
autônomo das categorias sociais, pela sucessão lógica dos modos de organização da
vida material, está compreendido no âmbito da própria história como repetição de uma
mesma sequência de eventos. A esperança da linearidade é capturada pela circularidade
efetiva da repetição do mesmo através da pseudo-auto-reprodução do sistema.

O tempo linear da disposição espacial dos segmentos percorridos pelo ponteiro do


relógio na verdade é o tempo destituído de conteúdo da repetição dos mesmos gestos e
ações que, em sua dimensão histórica, confina-se ao espaço de controle pela produção
do mesmo.

A imanência absoluta do domínio do tempo pseudo-linear constitui a


determinação ilusória de um futuro impossível. Assim, o projeto filosófico do sistema,
185

herdeiro de uma linguagem espetacular materializada na escrita, poderia ser


compreendido como uma tentativa de legitimar a visão burguesa do tempo
espacializado, vale dizer, reificado e ideal, que se impunha na forma da vivência
reduzida ao valor de troca da escala linear de produção no início da experiência
burguesa. Uma justificativa teórica da ilusão de desdobramento progressivo do que se
repetia e se consolidava na repetição.

O quanto o sistema ficou comprometido com essa concepção é o que Debord


percebe criticamente. O tempo do sistema é um tempo que avança não obstante estar
organizado em categorias espaciais que se reproduzem em distintos graus ontológicos.
Tal combinação resulta numa espiral que parece progredir, mas, de fato, repete sempre
as mesmas figuras.

A experiência do tempo como avanço progressivo das determinações da


existência se torna a esperança de um tempo futuro quando o tempo-mercadoria seria
abolido e a humanidade retornaria ao reino da experiência comunitária na qual o tempo
qualitativo da experiência comum seria recuperado. Quer dizer, no sistema histórico do
tempo linear subjaz uma dimensão do tempo-esperança como pseudo-cricularidade,
como retorno cíclico do mesmo. Um retorno ilusório que jamais acontecerá, mas que,
não obstante, ocupa os sonhos do que acreditam no futuro regido pelas leis cegas do
sistema de necessidades.

O tempo que avança sempre em frente seria, portanto, no limite, um tempo que
retrocede, uma vivência regressiva que quer para trás pensando caminhar para frente; o
domínio de um destituição que se acredita construção e realização. No centro da
experiência do tempo linear está a repetição dos gestos que perpetuam a ingerência do
poder sobre a totalidade da vivência social. A culminância da administração da vida
seria uma vida administrada conforme sua própria lei interna. A explicitação, sob a
forma da reação, de uma lógica inerente ao tempo abstrato.

O tempo linear efetivamente vivido é um tempo cíclico em que o retorno se dá


como realização final do avanço. Eis uma contradição fundamental da redução da
experiência efetiva sob a reificação do movimento e da transformação reduzidos a
momentos abstratos em uma sucessão. Aqui a base para identificar a contradição do
sistema e revertê-la. Um sistema só pode constituir, dentro desse quadro, o sonho de
uma organização espacial hierárquica das categorias regidas internamente pela ideia de
186

uma circularidade como momento predominante da dinâmica que presidiria suas


relações. Constitui uma arquitetura vazada pela falsa ideia do movimento de atualização
de potências, uma vez que o que predomina no arranjo sistemático é a organização
espacial real, esquematicamente estrutural, animada pela ideia do movimento que ela
mesma nega em sua própria construção.

5.3 Um antissistema?

Pensar um antissistema seria, portanto, projetar a possibilidade de uma


organização não hierárquica dos planos de expressão, veiculados em proposições nas
quais a totalidade do movimento real concretiza-se. Um sistema aberto e em expansão
que se apoiaria no sistema ideológico como sua contrapartida, como um espelho do qual
tira, pela força da inversão de perspectivas, a dinâmica de seu mecanismo crítico.

Ter-se-ia um desvio de sistema relativo à ideia de sistema ideal, pensado como


quadro referencial que experimentaria sua falência no próprio movimento irônico da
máquina na qual o sistema é superado. A consciência do sistema realizaria pela
efetivação de sua desconstrução teórica a prática de um sistema impossível que desvia
de seu rumo no próprio processo de sua realização e fale enquanto ideal. No entanto, tal
projeto de crítica só poderia se realizar plenamente no contexto de uma experiência do
tempo transformada. Assim, ele representa uma concepção tributária de uma
consciência não espetacular do tempo realizada no plano expressivo pela construção de
uma máquina dialética sistematicamente desviada, na qual o jogo determina regras
divergentes em relação ao sistema governado pelo tempo abstrato.

A projeção das unidades federadas do sistema crítico ocuparia a posição dos


esquemas abstratos desviados de sua subordinação ao mecanismo espaciotemporal
reificado, compondo um plano temporal articulado pelo movimento crítico de sua
própria construção em deriva. Pensar e realizar um movimento não abstrato, um
processo não coagulável em uma estrutura, uma dinâmica não constituída em
circularidade abstrata pela qual se repetem os mesmos gestos.

Põe-se aqui a possibilidade de superação total na qual o projeto de desvio da


linguagem contribui como combate anti-ideológico situado no interior das decisões
materiais efetivamente vitais. Integra-se, portanto, em outra forma de vida, de
187

restauração da verdadeira experiência social pelo projeto revolucionário total. Tal


projeto, sustenta Debord,

Le projet révolutionnaire d’une société sans classes, d’une vie historique


généralisée, est le projet d’un dépérissement de la mesure sociale du temps, au profit
d’un modèle ludique de temps irréversible des individus et des groupes, modèle dans
lequel sont simultanément présents des temps indépendants fédérés. C’est le
programme d’une réalisation totale, dans le milieu du temps, du communisme qui
supprime « tout ce qui existe indépendamment des individus ». (DEBORD, SE. §
163.)

Por outro lado, o tempo-espetáculo é o tempo mercadoria da não-experiência, da


negação espetacular da experiência sob a forma de sua divisão e da administração do
dividido. O tempo e o espaço espetaculares operam, portanto dentro do quadro burguês
da divisão do trabalho e administração das hierarquias: são resultados das divisões
imperantes na economia que se disseminaram pela vida social condicionando a
percepção do tempo e a organização do espaço.

O sistema ideológico em sua ambição universal funciona dentro do registro


espetacular do espaço-tempo abstratos do qual constitui a tentativa de compreensão
organizada e total. . Ele representa a reprodução ideal da experiência do tempo
espetacular e do espaço espetacular pela linguagem. A linguagem coisificada é,
portanto, a estrutura abstrata pela qual se submete toda a experiência vital ao controle
planejado do sistema.

Não se pode construir um modelo antiespetacular da referência global a não ser


pelo confronto com a ideia dominante do sistema configurada em seus elementos
artificialmente articulados em uma ordem, que nada mais é do que a expressão da
consciência espetacular do tempo desconstruída.

A construção de um antissistema dialético não poderia, no entanto, realizar-se


senão dentro do quadro espetacular do sistema, com o qual compõe um diálogo tenso
através do desvio. Não basta negar o sistema, o que constituiria uma ação espetacular
porquanto a negação pura se situa em um espaço ideal exterior ao negado, portanto
reproduz a separação no movimento que busca superar o separado. Por isso,
argumentamos, o antissistema como confronto com a concepção espetacular do sistema
só pode ocorrer como um jogo dialético pelo qual os elementos do sistema sejam
rearranjados em um espaço-tempo lúdico da liberdade criativa. Neles os componentes
proposicionais da linguagem desviada não estão submetidos a uma regra exterior que
188

lhes ordena a estrutura; podemos afirmar, ao contrário, que de suas relações emerge a
regra imanente que confere concretude e densidade ontológica ao próprio movimento
diferencial pelo qual as proposições se articulam no antissistema. Uma articulação pela
qual a linguagem alcança uma fluidez que a aproxima dos processos efetivos que
especula, evitando trair o movimento complexo das determinações reais e, ao mesmo
tempo, reproduzir da rigidez redutivista dos sistemas abstratos.

Um antissistema coloca em jogo as categorias mobilizando-as em suas relações


através da dinâmica do jogo e das contradições agônicas da guerra: retoma a força da
linguagem como fluxo de sentido, não coisa fixa. O tempo no interior do antissistema
fluido restaura sua vinculação com o movimento vital do qual é expressão autêntica: o
tempo não especializado da duração e da experiência concreta.

O estilo à deriva do desvio do sistema contém, portanto, a sua própria crítica,


porquanto recria-se prepetuamente como movimento englobante no qual a totalidade da
cultura é negada, elevada e superada. Neste mesmo movimento, no interior da própria
dinâmica dos signos, que o estilo à deriva instaura, o refluxo do sentido sobre suas
próprias construções moventes engloba a auto-referência pela qual a mediação crítica
avança sobre si mesma e se supera. Mantém-se aqui a fluidez dos signos em suas
relações tensas com a tradição da cultura da qual se desvia e pela própria auto-superação
como sistema crítico, quer dizer, sistema antissistemático que se mantém em
movimento. Se o leitor compreendeu, o que tentamos mostrar é que o antissistema,
exatamente por se manter em estado de tensão dinâmica, em contradição com seus
próprios procedimentos e elementos mobilizados pela dialética ao se sobrepor ao
sistema que nega, exerce sobre si mesmo um reflexo crítico. Dobra-se, por assim dizer,
sobre si mesmo, o que lhe mantem em movimento auto-especulativo. Tal procedimento
estilístico representa uma astúcia dialética pela qual se renova a expressão filosófica e
com ela restaura-se a vida da expressão através do procedimento artístico da reversão,
da colagem, da sobreposição e da inversão, vale dizer, do reaproveitamento de materiais
preexistentes através de um mecanismo parodístico.

A arte fornece à dialética uma forma de proceder que a permite criar entre a
expressão e seu referencial teórico um desvio pelo qual a dinâmica do jogo estabelece
um diálogo aberto entre os polos em tensão que mantém em movimento a linguagem.
No âmbito da proposição desviada a tensão é criada pela reversão do sentido através da
189

substituição. No âmbito do antissistema, o desvio dinamiza a totalidade dos elementos


em relação dialética pelo distanciamento crítico em relação às bases da tradição
filosófica tomadas como referenciais culturais. Portanto, nele predomina auto-
reflexividade teórico-prática.

Assim o projeto global de totalização sistemática é posto em questão e, ao mesmo


tempo, superado pela linguagem da crítica. Neste sentido, o fluxo temporal é
recuperado como componente dinâmico e o espaço do jogo e da experiência criativa
restaurado pelo reaproveitamento psicogeográfico do todo. Constroem-se proposições
desviadas componentes de um espaço textual “reurbanizado” pela deriva linguística.

5.4 Desvio do todo e crítica dialética

Na Sociedade do Espetáculo o desvio mostra-se uma poderosa arma da dialética,


uma máquina de guerra concebida como força de combate contra a expressão da
totalidade do existente alienado.

Através de um movimento integrado, em que o estilo mostra o que critica em sua


própria construção lúdica e polêmica, constrói-se uma força de organização do negativo
que atua como explicitação dialética pela qual os vetores do movimento materializados
em desvios particulares articulam-se criticamente no desvio do todo. O fluxo das partes
compõem microssistemas cujas relações compõem, por sua vez, o fluxo do todo que
dialoga criticamente com a referência cultural que elege na forma de totalização formal
do sistema filosófico. Um desvio tridimensional, se bem compreendido, no qual o
sistema de Debord usa ironicamente o sistema-referência hegeliano como elemento
universal desviado contra o qual projeta seu sentido.

Como já tivemos oportunidade de afirmar, efetiva-se a crítica realizada


amplamente e concretamente como função da presença poética que o texto instaura.
Nela o conteúdo da forma crítica total é o próprio projeto de sistema desviado.
Portanto, através do “desvio antissistemático do sistema” a dialética opera a crítica de
seu próprio proceder, mediante a qual se atualiza. O movimento do todo, sua fluidez, é
instaurada, assim, pelo processo autocrítico em que o continente contem seu próprio
desvio, enquanto crítica da forma em deriva que instaura. O conteúdo do continente
emerge da auto-referência a sua própria forma movente em desvio. Podemos arriscar a
190

denominação de desvio psicogeográfico para caracterizar tal tipo de procedimento


dialético. A dialética como desvio do sistema tomado como plano de combate geral
contra o espetáculo.

Atingimos aqui o cerne de nossa argumentação. Agora podemos finalmente


compreender porque Debord afirma de modo claro e inequívoco que

A teoria crítica deve comunicar-se em sua própria linguagem, a linguagem da


contradição, que deve ser dialética na forma como o é no conteúdo. É crítica da
totalidade e crítica histórica. Não é o grau “zero da escrita”, mas sua inversão. Não
é uma negação do estilo, mas o estilo da negação. (DEBORD, SE. § 204.)

Quer dizer, a astúcia da dialética torna-se palavra. A linguagem da crítica não


pode pretender retornar ao zero e expressar-se desde um ponto de partida absolutamente
original situado fora do domínio do espetáculo. Ao contrário, deve-se apropriar de todos
os elementos historicamente dispostos pelo espetáculo e subverte-los pela reorganização
de suas formas e relações problemáticas e polêmicas no interior de um antissistema
pensado e realizado como um grande desvio pelo qual, na configuração do divergente,
realiza-se o conteúdo negativo. Um movimento antiespetacular em que a forma e o
conteúdo não se distinguem essencialmente, mas se expressem mutuamente através da
tensão dialógica criada pelo desvio entre os elementos constitutivos do texto, eles
mesmos inseridos em proposições desviantes pelas quais se realiza, em cada uma das
partes, o sentido dialético do todo.

Não se tem assim contraposição parte-todo, sistema e não-sistema, ordem e caos,


abstrato concreto, mas processo de auto-superação das categorias mediado pela
linguagem consciente, que perfaz, em sua própria limitação constitutiva, o caminho da
libertação de seus conteúdos críticos por meio do estilo e da forma.

A verdadeira realização de um sistema dialético pelo desvio da ideia, do projeto


original, pela reversão crítica da totalidade do estilo do fazer filosófico pelo qual se
realiza a filosofia. E a realiazção da filosofia é conseguida através da superação da arte,
conforme sintetizou Debord nas diretivas críticas estudadas cima. Projeto total
debordiano de revolução pela qual a experiência negada é recuperada no espaço mesmo
de sua negação; em que a linguagem do espetáculo desviada em seus próprios eixos de
sustentação sob a forma de uma desconstrução sistemática do sistema, realiza a
linguagem da crítica como linguagem total da expressão do verdadeiro. A astúcia da
dialética.
191

Nas palavras de Debord, que aqui procuramos traduzir em termos alegóricos,


desviando-as de seu contexto para servir a nossos propósitos, na criação desse espaço
movente do jogo e das variações livremente escolhidas das regras do jogo, a autonomia
do texto pode se reencontrar e assim trazer de volta a realidade da viajem, e da vida
entendida como uma viagem que contém em si mesma a totalidade do seu sentido.
(DEBORD, SE. § 178.)

Portanto, poderemos sustentar que se está aqui diante de uma máscara de sistema,
de uma ironia suprema em relação à ideia espetacular de sistema realizada como desvio
do sistema.

5.5 Uma abordagem seca da forma

Em seu Primeiro Programa de um Sistema do Idealismo Alemão (1796/97?)


Hegel pensou o sistema como totalização da experiência histórica, cujo fim coincidia
com a unificação de todos os momentos particulares suprassumidos na ideia da beleza,
suprema realização da razão em seu trajeto autotélico. A estrutura teleológica do tempo
recuperado estava prenhe de esperança otimista na realização do melhor dos mundos. O
fim a que se dirigia a história, o caminho das categorias em seu afastamento progressivo
da base natural e das concepções mecânicas do estado e da moralidade, significava a
realização suprema da beleza pela unificação estética da experiência histórica em uma
convergência absoluta da representação e do conceito, ou melhor, da representação
mítico-religiosa e estética sintetizadas pelo trabalho imanente do conceito que as
superaria.

O progresso do conceito é dirigido pela ideia da razão; nela o desdobramento


auto-compreensivo das figuras se dobraria, ao final, sobre si mesmo, quando coincidiria
com o princípio, em cuja explicitação mostraria sua própria necessidade. O fim retorna
como adensamento do conteúdo daquilo que se delineava a princípio. De qualquer
forma, a circularidade de um tempo idealizado caminha rumo à atualização de uma
potência da razão em busca da explicitação de seu princípio. Passemos a palavra a
Hegel.46

46
Reproduzimos abaixo o original alemão:
192

Da natureza passo à obra humana. Com a ideia da humanidade diante de mim quero
mostrar que não existe uma ideia do Estado, posto que o Estado é algo mecânico;
assim como não existe tampouco a ideia de uma máquina. Somente o que é objeto
da liberdade se chama ideia. Portanto, temos que ir mais além do Estado! Porque
todo Estado tem que tratar os homens livres como engrenagens mecânicas, e, posto
que não o deve fazer, tem de deixar de existir. Podeis ver por vós mesmos que aqui
todas as ideias da paz perpétua, etc. são apenas ideias subordinadas de uma ideia
superior. Ao mesmo tempo quero assentar aqui a os princípios para a história da
humanidade e desnudar até pele toda a miserável obra humana: Estado, governo,
legislação.

Finalmente vêm as ideias de um mundo moral, divindade, imortalidade, derrocada


de toda fé degenerada, perseguição do estado eclesiástico que, ultimamente, finge
apoiar-se na razão, pela razão mesma. A liberdade absoluta de todos os espíritos que
levam em si o mundo intelectual e que não devem buscar nem a Deus nem a
imortalidade fora de si mesmos.

Finalmente, a ideia que unifica todas as outras, a ideia da beleza, tomando a palavra
em um sentido platônico superior estou agora convencido de que o ato supremo da
razão, ao abarcar todas as ideias, é uma ato estético, e que a verdade e a bondade
vêm-se irmanadas somente na beleza. (HEGEL. Primeiro programa de um Sistema
do Idealismo alemão. 1796/97)

O projeto de sistema idealista começa pela mecânica do estado, na qual a unidade


se dá como aglomerado de partes, e termina com a conquista da totalidade e da unidade
substancial pela realização da ideia da beleza na comunidade. Por ela a unidade
orgânica se realiza como tarefa da razão no contexto de seu drama histórico.

O sistema de Debord começa diagnosticando o espetáculo como reino da


separação e termina com a falência da realização da razão ao demonstrar, através do
retorno dialético do mesmo, o esvaziamento da promessa e a perpetuação da crise. Não
obstante permanece aberto na medida em que deposita nas mãos dos conselhos
operários a tarefa histórica de fundar o reino da justiça e da liberdade pela superação
global do espetáculo. O que na filosofia da história hegeliana, posterior ao projeto de
sistema, aparece como momento realizado, em Debord surge como problema; atualiza-
se em consciência da possibilidade e desafio à revolução.

Von der Natur komme ich aufs Menschenwerk. Die Idee der Menschheit voran, will ich zeigen, daß es
keine Idee vom Staat gibt, weil der Staat etwas Mechanisches ist, so wenig als es eine Idee von einer
Maschine gibt. Nur was Gegenstand der Freiheit ist, heißt Idee. Wir müssen also auch über den Staat
hinaus! – Denn jeder Staat muß freie Menschen als [235] mechanisches Räderwerk behandeln; und das
soll er nicht; also soll er aufhören. Ihr seht von selbst, daß hier alle die Ideen, vom ewigen Frieden u.s.w.
nur untergeordnete Ideen einer höheren Idee sind: Zugleich will ich hier die Prinzipien für eine
Geschichte der Menschheit niederlegen und das ganze elende Menschenwerk von Staat, Verfassung,
Regierung, Gesetzgebung bis auf die Haut entblößen. Endlich kommen die Ideen von einer moralischen
Welt, Gottheit, Unsterblichkeit, – Umsturz alles Afterglaubens, Verfolgung des Priestertums, das
neuerdings Vernunft heuchelt, durch die Vernunft selbst. – Absolute Freiheit aller Geister, die die
intellektuelle Welt in sich tragen und weder Gott noch Unsterblichkeit außer sich suchen dürfen.
Zuletzt die Idee, die alle vereinigt, die Idee der Schönheit, das Wort in höherem platonischen Sinne
genommen. Ich bin nun überzeugt, daß der höchste Akt der Vernunft, der, indem sie alle Ideen umfaßt,
ein ästhetischer Akt ist und daß Wahrheit und Güte nur in der Schönheit verschwistert sind. (HEGEL.
Das älteste Systemprogramm des deutschen Idealismus. 1796/97)
193

Hegel acreditava na realização da razão na história. Pensava que o sistema


mostrava-se como processo possível de ser captado pela razão, porque ele mesmo se
desenvolvia nos moldes da razão. Tudo o que é real é racional e o que é racional é real.
Neste sentido, para ele “os pensamentos estão implícitos na natureza, mas só aos poucos
os seres humanos os explicitam por meio de suas atividades teóricas e práticas”
(INWOOD, Hegel. P 611 In: Compêndio de filosofia.) Em síntese, Hegel acreditava

(...) não só que a mente ou as mentes existem, mas, em primeiro lugar, que os
pensamentos que constituem o núcleo da mente humana estão também
implicitamente incrustados nas coisas, e, em segundo lugar, que a natureza é
progressivamente superada ou “idealizada” pelas atividades espirituais dos seres
humanos. Com isso alcançamos a liberdade, uma vez que a liberdade consiste na
autodeterminação, em não ser determinado por um “outro”, e vemos a natureza
agora como não mais tão nitidamente diferente de nós mesmos. (...) Assim, o
crescimento de nossa autoconsciência acompanha o de nossa liberdade. (INWOOD,
Idem)

No paralelismo real=racional estava garantida a possiblidade de construção de um


sistema lógico-dialético em perfeita simetria com o processo histórico. A lógica e a
história convergiam porque ambas se baseavam no mesmo princípio e este, por sua vez,
garantiria, a partir de seu próprio desdobramento temporal, a consecução do seu telos
universal, que coincidia com a construção do reino da vida ética, a efetiva realização da
liberdade e da justiça na história.

Do ponto de vista da filosofia da religião a realização do belo aparece como


reconciliação; o que nos mostra que Hegel aborda a superação da alienação como tarefa
estrutural-histórica fundamental que cabe à dialética. Em uma passagem de sua
Filosofia da Religião afirma:

A reconciliação é filosofia. A filosofia é, nessa medida, teologia. Ela apresenta a


reconciliação de Deus consigo mesmo e com a natureza, mostrando que a natureza, a
alteridade, é implicitamente divina, e que a elevação de si mesmo em direção à
reconciliação é, por um lado, alcança essa reconciliação, ou a realiza, na história do
mundo. Esta reconciliação é a paz de Deus, que não “ultrapassa toda razão”, mas é antes
a paz que é primeiramente conhecida e pensada por meio da razão e é reconhecida como
o que é verdadeiro. [G. W. F. HEGEL, Lectures on the Philosophy of Religion, p. 489.]

No entanto, constata-se que a promessa hegeliana de construção de um reino da


razão não se cumpriu, a unidade da “paz de Deus” não se realizou pela ideia estética;
pelo contrário, o reino da separação encontrou o meio pelo qual se perpetuar e se
reproduzir, mesmo através dos esforços daqueles que o queriam negar. A astúcia do
espetáculo acabou por englobar toda a experiência histórico-social humana, tornando
parte de seu próprio movimento pseudo-linear até mesmo as tentativas frustradas de
194

resistência a sua aparente necessidade natural. A vitória do espetacular aparece de fato


como necessidade inescapável da qual não há fugir e, conforme percebeu Debord, em
um mundo globalizado não há mais como se exilar. Ademais, o aumento da consciência
é o conhecimento de nossa escravidão.

O que no sistema teórico aparecia como promessa, na realidade histórica cumpriu-


se como circuito de repetição do mesmo. As várias máscaras vestidas pelo espetáculo
em sua perene atualização escondiam os mesmos interesses mantidos dominantes pelo
mesmo mecanismo de exploração e subjugação universal invisível. No fim a escravidão
apareceu a todos inevitável e a submissão o único conforto daqueles que esperavam
inutilmente que a circularidade da experiência capitalista acabasse por se romper
abrindo espaço à realização humana. O dia em que não se cantaria mais a epopeia da
mercadoria, mas a restauração da jornada humana em direção a sua própria
emancipação. Mas toda força social foi cooptada pelo capital e o reino da separação
cantou elogios a si próprio. No entanto, cada indivíduo foi levado a acreditar que a
história cantava a si mesmo. O máximo do individualismo burguês coincidiu com o
máximo de ilusão de conquista universal.

O sistema filosófico com sua falsa promessa de liberdade, elevada por Hegel ao
estatuto de esperança histórica, com a diferença que esta esperança foi apresentada não
como promessa, mas necessidade da razão, venceu todas as batalhas materiais e se
impôs através do controle ideológico. O círculo globalizado fechou-se sobre si mesmo
através da instrumentalização, pelo pseudo-sistema, de sua própria ideia de perfeição
natural.

Seu fim era a perpetuação de si mesmo através da exploração e da falsa


consciência de sua necessidade.

Desde sua produção sob o econômico até sua reprodução ideológica pela
totalidade da cultura, o sistema espetacular não abriu nenhum espaço fora do seu
circuito à realização do bem, à conquista da liberdade ou à promoção da unidade em
comércio com a verdade. Ao contrário, trabalhou sempre em função da promoção de
seus próprios fins, que jamais foram os da razão, nem nunca coincidiram com os
anseios humanos. A razão instrumental foi apenas uma desrazão a serviço dos
propósitos de uma vontade de poder que se apropriou dela para realizar suas próprias
necessidades. Marcuse já havia percebido o vínculo entre a instrumentalização da razão
195

e a necessidade de perpetuação de uma força irracional que se produz como mentira


através da qual “As necessidades políticas da sociedade se tornam necessidades e
aspirações individuais, sua satisfação promove os negócios e a comunidade, e o
conjunto parece constituir a própria personificação da Razão.” (MARCUSE, Ideologia
da sociedade industrial, P. 13) Ao contrário,

essa sociedade é irracional como um todo. Sua produtividade é destruidora do livre


desenvolvimento das necessidades e faculdades humanas; sua paz é mantida pela
constante ameaça de guerra; seu crescimento, dependente da repressão das
possibilidades reais de amenizar a luta pela existência – individual, nacional e
internacional. (MARCUSE, Idem, p. 14. Grifo nosso.)

A “vontade política de poder”, a administração da vida, a tecnocracia como


sistema de controle pelo domínio dos especialistas, tudo conspirou contra a liberdade e
a autonomia, projeto de uma humanidade unida pela razão e governada pelos princípios
éticos da justiça, irmanadas pela verdade. Nem a reconciliação nem a paz; tudo se
mostrou ao espectador impotente como os cacos da história espalhados pela estrada do
caminhante solitário de Sebald em Os Anéis de Saturno. Os rastros da destruição
povoaram os sonhos da razão. A esperança de realização da história pela verdade, pela
beleza e pela justiça se mostrou frustrada. O “princípio esperança”47 é apenas a crença
desesperada da consciência impotente que apostava em um mais além aquilo que o
aquém da história não cumpriu.

De qualquer forma a história como sistema, o sistema da história ou a simples


concepção lógica do sistema como totalização da “experiência histórica da razão
autotélica” estava falida desde o princípio e se tornou apenas o suporte ideológico de
um estado de coisas perverso que necessitava esconder suas verdadeiras motivações,
seus meios e seus fins reais daqueles que, inconsciente e esperançosamente, contribuíam
para a consecução de uma realidade que lhes era estranha.

O projeto de compreender sistematicamente a história, planejado com o otimismo


daquele que acreditava na astúcia da razão em saber fazer cumprir o seu destino, apesar
dos descaminhos, dos desvios, das ilusões planejadas e das ingerências do poder cego e
irracional, revelou-se impossível. O sonho da unidade deparou-se com a astúcia do
espetáculo, a dura verdade da separação consumada, da injustiça mundializada, do
império da destruição vestido com a máscara da conservação de um mundo no qual o
humano não mais prospera. Era preciso à astúcia da dialética combater a sistema da

47
Referimo-nos aqui ao belo livro de Ernst Bloch.
196

alienação com as suas próprias armas e desarticulá-lo interiormente. Construir um


quadro antissistêmico como máquina de destruição que operasse com os meios do
espetáculo contra a sua disseminação. Eis o desafio.

Por isso acreditamos que Debord não poderia construir um projeto de sistema
externo ao próprio sistema. O projeto estava dado, era preciso apenas desviá-lo. Invadi-
lo e mudar a sua direção e, assim, restaurar a sua possibilidade pela revolução de sua
forma e de seu sentido. Assim partindo de um esquema já fixado na mentalidade
espetacular, desconstruí-lo a partir de seu próprio desvio, pelo qual se mostra na própria
forma derivada do texto a falência do sistema e, junto com ela, da falsa consciência que
o abriga.

É correto afirmar que se tem pelo “desvio do sistema”, pela criação de um espaço
psicogeográfico intertextual no interior do qual as proposições desviantes constroem
suas relações dinâmicas, um texto fundado não na estrutura, mas, apoiado sobre uma
dada estrutura que descontrói em seu movimento de deriva. A estrutura presta um
serviço à razão dialética e alimenta o discurso desviante com sua forma definitória que
se transforma no seu contrário ao ser ironicamente desviada de seu destino. Se o destino
da forma sistemática era louvar a Razão considerada como força histórica capaz de
construir o reino da justiça em conformidade com as exigências internas de sua própria
constituição universal e pura, o desvio revela o descaminho da razão pela explicitação
crítica de seu sentido ilusório e de sua esperança vã; sua função ideológica
materializada, enfim.

A forma da racionalidade sistemática serve à forma poética como meio pelo qual
o diálogo crítico se efetua no interior da própria estrutura, desestabilizando-a em sua
pretensão de verdade e efetuando a crítica do sistema pela inversão de sua realização
ideológica mais arrojada e pretensiosa. Voltamos a afirmar, não uma crítica analítica ou
descritiva, que apenas reproduziria a lógica do espetáculo, mas uma crítica sintética
realizada como presença poética pela produção da imagem especular do sistema, na
qual o sistema encontra sua verdade e se encaminha para o seu fim.

Necessário recorrer à arte, ao jogo, à guerra, tramados no texto como instrumentos


para a realização da filosofia, além dos valores restritivos da linguagem planejada, a
qual a filosofia acadêmica e técnica, com suas normas e padrões, reflete e realiza. Sendo
assim a filosofia em sua vertente ideológica poderia ser pensada como a cristalização
197

das normas da sociedade burguesa traduzidas em linguagem padrão, em cuja estrutura


os anseios da razão instrumental se materializam, configurando a sua forma reificada e
alienada de proceder.

Ao contrário, alheio a obrigação de um ordenamento estrutural exteriormente


imposto, em flagrante confronto com a necessidade arquitetônica universalmente aceita
como norma imposta pela razão como instrumento legitimador da coerência do texto
(como se esta brotasse de uma razão externa a ele, a ele agregada), razão que deve
conferir à obra certa aura de inteligência e distinção intelectual pela imposição de um
projeto alheio à dinâmica imanente do texto, que congela e obstrui a possibilidade
dinâmica dos signos em relação dialética pela imposição de uma forma que nada diz
senão a sua própria vigência vazia; portanto, fora do domínio das estruturas e dentro do
espaço amplo da dialética restaurada, Debord nos abona a conclusão ao explicar: “Eu
tento aqui (na Sociedade do Espetáculo) uma abordagem muito seca da forma: um
conjunto de teses, cuja leitura é provavelmente fatigante, mas que resultam em muito a
se pensar.” (DEBORD. Idem. 1965. Grifos nossos.) Em nota marginal Debord
esclarece: “sobre a releitura: é o inconsciente que escolhe os termos; não uma
brincadeira voluntária.” (DEBORD. Idem. 1965.)

Adiantando o possível arranjo das teses, Debord relata a Vaneigem o plano: A


obra seria originalmente dividida em 12 capítulos, cujos títulos e a ordenação seriam os
seguintes:

1/12. Generalidades sobre o espetáculo. Sua onipresença.

2/12. Fundamentos econômicos do espetáculo.

3/12. História do movimento operário.

4/12. O ambiente de objetos, e seu perfeito controle (caso-limite: urbanismo).

5/12. A representação do homem na sociedade do espetáculo ( a regra, a estrela).

6/12. As relações do espetáculo e do tempo.

7/12. As contradições internas da “mensagem espetacular”.

8/12. Estudo espetacular do espetáculo (a crítica sociológica moderna).


198

9/12. A superação (dépassement) da cultura.

10/12. A sobrevivência (survie) da cultura (= cultura da sobrevivência).

11/12. As condições de contestação na sociedade do espetáculo (aqui a


experiência da IS).

12/12. Limites deste livro (de todos os livros?). (DEBORD. A Raoul Vaneigem,
oito de março de 1965).

Depois a ordem mudou, bem como o número de capítulos, que foram reduzidos
para nove, cujos títulos alterados e rearranjados assumem a forma definitiva em 1967,
quando finalmente as 221 proposições ficaram dispostas da seguinte maneira:

I – A separação consumada.

II – A mercadoria como espetáculo.

III – Unidade e divisão na aparência.

IV – O proletariado como sujeito e como representação.

V – Tempo e história.

VI – O tempo espetacular.

VII – O planejamento do espaço.

VIII – A negação e o consumo na cultura.

IX – A ideologia materializada.

Por que Debord reduziu os capítulos dispondo-os em tríades cuja soma compõe
exatamente nove subdivisões temáticas? É o que tentaremos resolver ao final desse
capítulo. Por ora nos resta concluir em hipótese que o desmonte da falsa consciência
pela linguagem desviada deve revelar enfim, na forma problemática de articulação do
texto, o próprio progresso da realidade material que especula através do espelho do
sistema. O que Debord efetivamente faz na Sociedade do Espetáculo.
199

5.6 Falência do projeto sistemático e possibilidade da crítica dialética

Tudo deve ser enciclopedizado. Todos os conhecimentos básicos acabam por


ser esquecidos. Novalis

As abordagens que se ocuparam com a interpretação sistemática da realidade


burguesa, nas quais se encontram definidos seus conceitos, bem como as relações
fundamentais entre as categorias no interior dos sistemas, foram feitas. Aproximações
ao espetáculo desde perspectivas integradas, mas distintas, construíram um quadro que
deixou lacunas, que prescreveu ou que aderiu ao objeto, justificando suas linhas de
desenvolvimento ao invés de criticá-las. Não obstante, não importa mais construir
sistemas, não há mais espaço à criação de grandes arquiteturas sistemáticas no interior
de uma realidade que se mostrou avessa ao sistema. Por isso mesmo, a utilização do
sistema como função da crítica mostra-se indispensável, pois através dela não se
constrói nenhuma estrutura hierárquica fechada, muito embora se pense dentro de um
rigor sistemático. Pela sobreposição revela-se não só a falência de uma forma, mas a
inconsistência de um projeto que se deixou enfeitiçar pela astúcia de seu objeto.
Portanto, “espelhar o sistema” usando-o como máscara da crítica significa utilizar uma
grande arquitetura teórica de maneira desviante e, por intermédio de uma abordagem
irônica que o desvio propõe, estabelecer o limite crítico do sistema através do qual seu
alcance é superado. Na superação do sistema a filosofia realiza-se, corporifica-se como
crítica imanente através da organização desviante do todo pela qual supera a arte. A
reificação das categorias inseridas em uma arquitetura hierárquica é fluidificada pelo
desmonte efetuado pela máquina crítica. A linguagem retoma sua força negativa pela
qual pode construir seu tribunal crítico diante do qual os juízos acompanham o
movimento do todo e o superam. A pragmática não aderente da razão crítica acende na
linguagem seu fulgor simbólico reatando os laços entre expressão e experiência vital.

Por meio dessa reorientação global da linguagem filosófica atinge-se o grau de


elaboração crítica em que a originalidade serve de meio à potencialização do alcance
dialético dos signos em movimento. A construção de um objeto limitado por suas
próprias regras, dentro de cuja legalidade as figuras fundamentais da totalidade da
experiência histórica ocidental são exibidas em contraste com sua efetividade, alcança
produzir um meio expressivo não exterior ao próprio objeto de sua crítica. Um
procedimento sintético que se serve de sínteses anteriores como moldura legal que
200

dimensiona a violação efetuada pela crítica antiespetacular dentro de suas próprias


regras.48

À vontade universal abstrata do sistema de necessidades contrapõe-se a vontade


do indivíduo consciente que constrói, pelo desvio, regras para violação das normas
universais que lhe criam obstáculos à expressão dos conteúdos da experiência autêntica.

Debord percebe que, com a mundialização do espetáculo, o sistema de separações


se torna universal. Portanto, combatê-lo dentro de seus próprios limites é o que resta à
dialética herdeira das promessas não cumpridas do sistema. Ele não mais espera, como
Hegel, ascender à ideia do belo e da liberdade através de um processo teleológico pelo
qual a razão se realizaria historicamente. Isto não se deu e talvez jamais se dê. A própria
ideia estética tornou-se ideológica, prometendo um mundo unificado quando o que se
unia, através dela mesma, eram as forças da separação que se perpetuavam. No entanto,
a dialética debordiana nos mostrará, pelo détournement do sistema, que o projeto
estético pode configurar-se em forma crítica, mediante a qual sua reversão pelo desvio
põe a unidade como problema e tarefa a ser conquistada no interior do seu próprio
movimento contra-ideológico. O plano do antissistema coincide aqui com a superação
da ideologia mediante sua desconstrução sintático-semântica.

Pelo fato de manter em movimento crítico a ideia que lhe serve de sustentação, da
qual se apropria e contra a qual se erige, o sistema em deriva dinamiza as regras que
congelariam o referencial impondo à consciência um modo pseudo-consensual de
significação definida pelo poder. Com isso, servindo-se do procedimento poético erige a
presença material do significante como meio pelo qual o significado exibe-se em sua
concretude desviante, mantendo-se em dialogo aberto contra o pano de fundo de um
tecido sintático descosturado perpetuamente pela deriva crítica. Põe-se assim contra a
sua própria reificação. Restaura a dinâmica do movimento e, com ela, o tempo da
experiência. Contra o tempo abstrato do sistema o tempo concreto do desvio que, pela
negação, retorna a si mesmo e se reconstrói no próprio interior das categorias que lhe

48
Por isso o desvio do sistema serve-se de duas referencias legais universais: Hegel e Marx. O
antissistema de Debord ergue-se sobre o solo do sistema marxiano que, por sua vez, repousa sobre o solo
do sistema hegeliano. Em três níveis especulativos temos: o subsolo hegeliano, o solo marxiano e o
antissistema debordiano. É em confronto com as pretensões enciclopédicas do sistema do idealismo
alemão, com a abordagem totalizante tentada nos cursos de Filosofia da História e História da Filosofia
de Hegel e, principalmente, com a diagnose crítica da obra inacabada de Marx, O capital, que deve ser
projetada a empresa antissistemática debordiana.
201

aniquilavam. A imagem do tempo é dinamizada e assim o tempo da imagem ensaia sua


falência.

A imagem dinamizada pela dialética, a totalidade realizada como presença


poética em construção, serve-se da força do espetacular imediato contra a sua própria
imposição ideológica. A imagem desaparece na aparição do sistema crítico que, por sua
vez, só se efetiva finalmente através da configuração imagética, em que, finalmente,
desaparece...

Realiza-se no desvio a filosofia que em Hegel havia esbarrado na posição


ideológica do sistema matizado pelo limite espaço-tempo hierárquico e pseudocircular.
Desta maneira, “O modo de exposição da teoria dialética comprova o espirito negativo
que existe nela” (DEBORD, SE, § 206). Em que “a verdade não é mais como o produto
no qual já não se encontra vestígio do instrumento”. (Desvio de Hegel, § 206. )

O antissistema dinamiza a estética numa deriva psicogeográfica pela qual realiza


não o estético como ideia, mas descontrói a ideia do estético e, assim, realiza
materialmente a sua negação pela contradição interna do sistema em deriva. Tal
contradição deve significar a sua própria fluidez em que se verifica a negação da rigidez
da estrutura, portanto da pacificação do movimento pela sua suspenção artificial e falsa.
Ao contrário, em movimento derivado o sistema tangencia seu próprio fim, do qual
extrai a força de retomada da fluidez que o faz refluir criticamente sobre si mesmo e se
ultrapassar. Assim engloba na totalidade da superação dialética de seus momentos
derivados e desviados a totalidade da experiência histórica configurada na forma
dinâmica do desvio do sistema.

A forma exibe na imagem móvel da presença imediata as contradições que a


animam e, através do jogo das contradições, medeia o momento dialético de sua própria
superação. Os movimentos do estilo assim apanhados no fluxo da linguagem dialética
dinamizam a expressão e, exatamente por não determina-la de forma usual, vale dizer,
genérica e positiva, escapam à compreensão da mentalidade espetacular.

A inteligência comum espera sempre regras determinadas que tornem visíveis os


limites imobilizados na expressão universal. O consenso não consegue atingir o sentido
que não seja consensual, regular e estável. Portanto, a linguagem dialética representa
uma revolução e um convite à transformação da inteligência incapaz de acompanhar seu
202

fluxo. Para tal inteligência a expressão divergente e contraditória do movimento


dialético constitui um escândalo. Isto por desviar-se das regras da linguagem comum
cristalizadas no hábito. Segundo Debord,

Pelo próprio estilo, a exposição da teoria dialética é um escândalo e uma


abominação segundo as regras da linguagem dominante para o gosto que elas
educaram: no emprego positivo dos conceitos existentes, essa exposição inclui
também a compreensão de sua fluidez reencontrada, de sua destruição necessária.
(DEBORD. SE. § 205. grifos nossos)

A crítica histórica antissistemática e conjuntural faz-se através da configuração


material do texto que supera em seu estilo a forma ilusória da totalidade
ideologicamente sustentada. Segundo Debord,

Esse estilo que contém sua própria crítica deve expressar a dominação da crítica
presente sobre todo o seu passado. Por ele, o modo de exposição da teoria da
dialética comprova o espírito negativo que existe nela. (...) Essa consciência teórica
do movimento, na qual o próprio vestígio do movimento deve estar presente,
manifesta-se pela inversão das relações estabelecidas entre os conceitos e pelo
desvio de todas as aquisições da crítica anterior. (DEBORD. SE. § 206. Grifos
nossos)

Domínio sobre a totalidade da cultura passada, que deve ser posta em movimento
de atualização pelo qual seus elementos e o conjunto de suas conquistas significativas
são invertidos, resultando no desvio de todas as aquisições da crítica anterior.

5.7 Linguagem fluida da antiideologia ou o estilo insurrecional

O desvio é, essencialmente, um movimento global de reversão universal da


cultura, através da elaboração consciente de uma reversão sistemática de seus elementos
constitutivos fundamentais, tomados no conjunto de suas relações, o qual é negado e
superado dialeticamente. A inversão sujeito predicado de um título de livro, por
exemplo, pode afigurar concretamente um argumento dialético que, pelo desvio,
contradiz amplamente a obra criticada, sem que se precise operar uma análise ou um
discurso extenso que avalie o texto. Através de um simples procedimento de
substituição ou inversão afigura-se uma nova conjunção de elementos dentro da
proposição que exibe, pela reorganização da forma, a posição crítica como um
movimento de superação que anima o antigo enunciado, atualizando o seu sentido. O
enunciado, o conjunto de enunciados, a forma global do sistema podem, assim, ser
revitalizados, invertidos, atualizados e superados pela potência do procedimento
dialético que os movimenta. A força da presença poética de uma forma reorganizada
203

dessa maneira, exibe em sua constituição sintática, no movimento dos signos em novas
relações, a alteração semântica que lhe desvia o significado. Dessa maneira produz-se
um diálogo crítico no interior da própria forma revitalizada. Um movimento de deriva
do enunciado ou da estrutura pelo qual os mesmos entram em novas relações, criam
novos movimentos, assumem novos sentidos. Debord faz uso amplo de um proceder
estético que já era comum em alguns filósofos, principalmente Marx. Em A Miséria da
Filosofia Marx não apenas zomba da Filosofia da Miséria de Proudhon, demole na
própria ironia do título a totalidade da pretensão sistemática do anarquista francês. Ao
inverter a fórmula subverte o sentido. Um exemplo singelo do estilo a serviço da crítica
da totalidade. O que Debord denomina estilo insurrecional. A dialética em movimento
através do desvio que ele elevou à máxima potência na Sociedade do Espetáculo.
Escreve Debord

O jovem Marx, ao preconizar, seguindo o uso sistemático que Feuerbach fizera


disso, substituição do sujeito pelo predicado, chegou ao emprego mais consequente
desse estilo insurrecional que, da filosofia da miséria, extrai a miséria da filosofia.
O desvio subverte as conclusões críticas passadas que foram cristalizadas em
verdades respeitáveis , isto é, transformadas em mentiras. (DEBORD, SE. § 206)

No mundo realmente invertido a formulação às vezes está correta, na medida em


que adere ao fenômeno e o representa imediatamente. Como a descrição de um fato por
um jornal. No entanto, não possui nenhum potencial crítico, porque apenas realiza na
linguagem o que a realidade exibe em sua fachada diretamente apreensível. A verdade,
não obstante, global do sistema em seu movimento metabólico de reprodução do mesmo
está oculta naquilo que ele imediatamente parece negar. Assim, uma simples inversão
sujeito-predicado coloca a totalidade da descrição-aderente de ponta cabeça e revela
criticamente aquilo que ela, em sua ingenuidade, como parece ser o caso de Prouhon,
escondia. Pelo desvio a linguagem torna-se assim não conciliatória e crítica. O pano de
fundo do sistema de pensamento contra o qual a inversão projeta seu sentido reforça a
formulação crítica dotando-a de um potencial polissêmico, de uma peculiar ironia, de
uma força total de negação alusiva que uma descrição direta jamais conseguiria: o estilo
da insurreição.

Desta maneira, “O desvio subverte as conclusões críticas passadas que foram


cristalizadas em verdades respeitáveis, isto é, transformadas em mentiras”. (DEBORD,
SE. § 206)
204

Pelo desvio concretiza-se a síntese em uma formulação precisa e breve do estilo


como condutor da crítica através da materialização do conteúdo contraposto a sua
mentira sistemática e global pela cultura. Uma abordagem seca da forma, como queria
Debord.

A linguagem pelo desvio expande seus sentidos latentes, extrai da relação


dialógica com o termo, com os elementos e, fundamentalmente, com o sistema
desviado uma mobilidade, uma fluidez metabólica que a reinveste de uma força de
negação e afirmação pela qual ela se fluidifica e rompe com a rigidez abstrata das
formulações ideológicas, dos tópicos e chavões que impedem a consciência de pensar o
fenômenos em toda a sua negatividade essencial, mobilidade e, principalmente, em sua
conexão com a vontade do poder que os instrumentaliza. Ele, o desvio, é, no mais alto
nível, a linguagem que nenhuma referência antiga e supracrítica pode confirmar. Neste
sentido,

O uso desviado é o contrário da citação, da autoridade teórica sempre falsificada


pelo simples fato de ser tornado citação; fragmento arrancado do seu contexto, do
seu movimento, se sua época como referência global e da opção exata que
representava dentro dessa referência, exatamente reconhecida ou falseada. O
desvio é a linguagem fluida da antiideologia. Ele aparece na comunicação que sabe
que não pode deter nenhuma garantia em si mesma e definitivamente.. Ao contrário,
sua própria coerência, em si mesmo e com os fatos praticáveis, pode confirmar o
antigo núcleo de verdade que ele traz de volta. O desvio não fundamentou sua causa
sobre algo exterior à sua própria verdade como crítica presente. (DEBORD, SE. §
208)

“O desvio não fundamentou sua causa sobre algo exterior à sua própria verdade
como crítica presente.” (DEBORD, SE, § 208) Repetimos uma afirmação lapidar para
ressaltar sua importância. O desvio subverte uma dada organização ou mesmo a
totalidade da ordem em seu movimento. Assim efetua-se como crítica total, interior ao
sistema, desconstrutiva e presente. A ação do desvio sistêmico arrasta toda a ordem
existente. Violando as regras do jogo consensual e abstratamente universal presidido
pelo poder corrige aquilo que a imediatez apressada das perspectivas conciliadoras
perdem em suam formulações acríticas. Nesse ponto ele é total, abrangente e
irrestritamente negativo. Opera como uma inversão sistemática para restabelecer a
ordem das ideias que o sistema inverteu. A teoria também é uma forma de prática
invadida pelas influências do poder que controla seus sentidos, a forma de suas
proposições e a validade e legalidade de suas significações. O teórico não é, portanto,
autônomo e a linguagem, que é seu veículo, encontra-se submetida, ela mesma, à ordem
205

que reproduz e exibe como um componente abstrato e sistêmico de sua prática de


dominação.

A teoria não só apresenta as evidências, mas, ao apresentá-las conforme a vontade


do poder que a invade, ela domina e subjuga as potências ativas, dirigindo-as como o
mapa total de uma cidade projetada para determinar os caminhos que se podem seguir.
O sistema da cultura exerce um controle psicogeográfico sobre as possibilidades de
ação. O desvio psicogeográfico é, portanto, uma forma de correção da cultura em sua
totalidade alienada e reificada, para permitir o livre trânsito da consciência através do
espaço reconfigurado por sua atividade criativa teórico-prática. Ele, o desvio, desmente
o que se tem por assentado. Uma ação histórica e uma correção histórica.

O que, na formulação teórica, apresenta-se abertamente como desviado, ao


desmentir toda a autonomia durável da esfera do teórico enunciado, ao fazer nele
intervir por essa violência a ação que incomoda e arrasta toda ordem existente,
lembra que essa existência do teórico não é nada em si mesma. Só se pode conhecer
sua verdadeira fidelidade pela ação histórica e pela correção histórica. (DEBORD.
SE. § 209)

“A negação real da cultura, é a única coisa que lhe conserva o sentido. Já não pode ser
cultural. Desse modo, ele é o que se sobra, de certa forma, no nível da cultura, embora
numa acepção bem diferente.” (DEBORD, SE, § 210)

Na linguagem da contradição, a crítica da cultura se apresenta unificada: porque


domina toda cultura - seu conhecimento e sua poesia - , e porque ela já não se
separa da crítica da totalidade social. É essa crítica teórica unificada, e apenas ela,
que vai ao encontro da prática social unificada. (DEBORD, SE, § 211)

A superação das clivagens teoria-prática da qual a critica era refém e pela qual se
tornou espetacular em seu estilo e formulação, tornando-se escrava inconsciente do
espetáculo, é superado por meio de um estilo que, ao mesmo tempo em que revitaliza a
linguagem da dialética permite a superação de uma separação que se reproduzia
contaminando todas as esferas da cultura. O espelhamento do sistema, sua inversão total
insere-se no âmbito da dialética concreta, uma vez que reconcilia no movimento crítico
as esferas alienadas que o espetacular sustenta e nas quais se reproduz. Concreto por ser
uma pratica social unificada, que não se separa da totalidade social sobre a qual incide e
à qual, ao mesmo tempo pertence. A psicogeografia dirige as formas do conhecer
determinando as concepções e as maneiras de ser pelas quais, na organização do tempo-
espaço das cidades, a consciência torna-se refém de uma força de controle que a
subjuga. No interior dessa mesma força onipresente é necessário à crítica inventar
maneiras de invadir o espaço inimigo, utilizar seus elementos e inverter a força
206

ideológica de suas formas de controle total. Uma prática teórica inserida no presente, no
âmbito das lutas e dos movimentos que animam o social. De certa forma, o desvio, pela
astúcia da dialética, realiza uma crítica contracultural, que reconhece nos limites das
estruturas atuais as possibilidades da construção das estratégias de sua própria
superação. Assim, o movimento total da cultura é espelhado pelo estilo e, ao mesmo
tempo, desconstruído pelo desvio, que dialoga criticamente com a grande figura
ideológica do sistema, em cuja imagem a totalidade da experiência histórica que foi
falsificada pela ilusão idealista, pode ser restaurada pela astúcia dialética do desvio. A
linguagem torna-se prática social unificada, a linguagem fluida da antiideologia.

O espelho filosófico da realidade histórica, polido espetacularmente como sistema


global em que a potência negativa da crise sistêmica é mostrada como atualização
acrítica de um fim impróprio, é exibido no movimento mesmo que o ultrapassa. O
poder poético da imagem, de sua presença imediata à consciência torna-se um meio de
alcançar um fim que a própria imagem não previa. O espelho diante do espelho
fluidifica a imagem infinitamente. O estilo realiza pelo desvio a conjunção global das
determinações que a cultura separou.

5.8 O vasto desvio: a inversão do sistema

No grande quadro compreensivo do sistema não poderia ficar excluído nenhum


momento, não poderia ficar de fora nenhuma determinação. Assim, o universal
indistinto da vida cotidiana ganharia a distinção dos momentos particulares e, ao mesmo
tempo, elevados ao plano do universal concreto, restauraria a unidade das categorias
separadas pela razão instrumental, pelo entendimento analítico. Este, como produto da
consciência cindida da modernidade que, por sua vez, construiu suas representações no
âmbito das divisões imperantes no universo econômico-politico alienado, seria ao
mesmo tempo um modelo a ser considerado, tomado de assalto e superado: considerado
como esforço de elevação do pensamento ao plano da universalidade concreta, tomado
de assalto em sua forma presente, superado enquanto modelo esquemático no qual se
poderia verificar a linguagem reificada em seu máximo grau de expressão abstrata,
ainda aderida a totalidade social que especula. A ideia do sistema falha em realizar o
concreto, mas aponta a necessidade de superação das abstrações resultante da
contaminação da consciência pelas separações.
207

No entanto, se o sistema, como argumentamos, não pode jamais se realizar como


expressão do todo, uma vez que sua característica estrutural o afasta do fenômeno que
pretende especular, limitando o domínio de sua significação aos próprios referenciais
linguísticos isolados da práxis. No entanto, ele pode ser desviado e, pelo desvio, manter-
se em movimento de deriva através do qual não se isola das determinações reais nem se
congela na estrutura abstrata da razão espetacular. Aproxima-se, de fato, pela
vizinhança crítica estabelecida em relação ao sistema desviado, da realidade que não
mais representa, mas exibe em toda sua fluidez e complexidade. Usando a falência do
projeto de sistema como mediação crítica, apropria-se de uma mecânica linguística que
anima o texto do “poder do negativo do logos dialético” pelo qual ele restabelece o
fluxo semântico que garante o paralelismo vital com as determinações da práxis, elas
mesmas movimento e vida.

O desvio do sistema é uma exigência estilística e metodológica pelas quais é


possível compor um quadro referencial crítico, não esquemático, dentro do qual as
proposições, em sua articulação dinâmica e complexa, dialogam com a referência
abstrata da razão especulativa a que se referem e a superam. Assim, retornam ao
movimento concreto da vida cotidiana sob a forma de tensão diferencial configurada em
expressão crítica. Não a nega imediatamente nem sucumbe diante dos seus isolamentos.

O sistema da lógica e a lógica da história de Hegel, quando sobrepostos,


impressionam a imaginação com a figura concreta da totalidade processual articulada
segundo uma dinâmica composicional determinante de seu sentido global. Colocar o
sistema idealista lado a lado com a totalidade do texto debordiano, por outro lado,
reduzido aos lugares essenciais de sua organização em capítulos e, mais, ordenar os
capítulos em tríades e observar a figura que emerge de suas relações com o projeto da
história e a divisão fundamental da lógica, nos facultará ver a imagem global do desvio
psicogeográfico elaborado como desvio do sistema. Dessa imagem emergirá o
significado dialético total do mecanismo concebido em sua configuração geral com um
grande desvio do sistema. Duas categorias gerais nos permitem classificar esse tipo de
desvio segundo sua forma e função: o espelhamento da forma sistêmica e a inversão do
sentido.

Em seu plano geral A Sociedade do Espetáculo divide-se em nove capítulos, cada


qual orientado segundo o tema geral que aborda. Tais temas são delimitados por
208

epígrafes que funcionam como diretrizes críticas segundo as quais as teses serão
desenvolvidas. Cada capítulo, composto por um número particular de teses inter-
relacionadas, possui uma dinâmica interna própria, que emerge dos desvios
proposicionais, nos quais as alusões, as elusões, as substituições, as inversões subvertem
o sentido original das teses reaproveitadas, provocando uma fluidez micrológica interna
à forma-conteúdo das sentenças desviadas. Tais sentenças inseridas em 221 parágrafos
estabelecem relações dialógicas entre si e o conjunto articulado da obra. Relações que
determinam a fluidez do antissistema, composto de fluxos proposicionais em deriva
psicogeográfica no interior de um domínio intertextual vazado pela tensão criada entre
seus componentes desviados em contraste crítico com o modelo que reverte pelo
desvio.

As proposições dialogam internamente com a tradição, com a qual estabelecem


relações problemáticas pautadas pelo diálogo intertextual; dialogam entre si compondo
uma grande síntese dialética no âmbito macrológico do texto, o qual, por sua vez, é
construído como um grande desvio-espelhamento, em relação à pretensão sistemática
que constitui o projeto de totalização e apanhado concreto das determinação globais da
cultura ocidental em uma grande visão sintética totalizante: a filosofia.

O projeto maior da filosofia em sua pretensão mais arrojada confere densidade


crítica ao texto por estar em relação desviante com ele. Fornece o quadro
psicogeográfico em relação ao qual o texto se desvia e dentro do qual se movem suas
proposições desviantes.

Há exemplos na história do pensamento ocidental de desvios textuais que


orientam a compreensão e interpretação dos mesmos fora do ambiente poético. Melhor
dizendo, ensaios filosóficos cuja significação global emerge de sua relação complexa
com referenciais tradicionais com os quais estabelece diálogo. Tal diálogo promove a
tensão da qual emerge o sentido complexo do texto. Walter Kaufmann propôs, por
exemplo, uma leitura do Ecce Homo de Nietzsche em paralelo com a Apologia de
Sócrates de Platão.49 A observação das coincidências e dissidências na forma de
organização dos conteúdos das obras permitiria emergir um sentido absolutamente novo
do texto de Nietzsche. Da mesma forma, Curt Paul Janz propôs uma leitura de Assim

49
Confere: KAUFMANN, W. Nietzsche: philosopher, psychologist, antichrist. 4. Ed. New Jersey:
Princeton University Press, 1974, Pp. 408-409.
209

falou Zaratustra em cotejo com as Sagradas Escrituras.50 No terceiro volume de sua


biografia de Nietzsche, no capítulo intitulado “Meu filho Zaratustra”, Janz constrói uma
reflexão sobre as relações que se podem estabelecer entre a obra de Nietzsche com
algumas passagens bíblicas. O resultado para a compreensão é avassalador. O próprio
Nietzsche em sua obra O Crepúsculo dos Ídolos ensaia uma crítica sob a forma de um
vasto desvio da Filosofia da história de Hegel, em um capítulo intitulado “Como o
mundo verdade enfim tornou-se uma fábula”.51 Em Debord, O diálogo com o sistema
de Hegel parece-nos fundamental para a compreensão do desvio em seu alcance total.
Devemos, a partir de agora considerar esse autor como uma voz dissonante contra a
qual constrói Debord seus contrapontos dialéticos e, no conjunto, quadro teórico
abrangente que ele usa de forma crítica para melhor situar a posição totalizante de sua
investida sistêmica contra os domínios do capital. Sem tentarmos esse movimento não
teríamos concretizado a leitura dessa obra invulgar e única que é A Sociedade do
Espetáculo.

A máquina de guerra é composta, pois, de engrenagens dialéticas construídas


pelas proposições desviantes que, por sua vez, se articulam em um antissistema, quer
dizer, um sistema em desvio no qual se integram como as peças que se encaixam em
uma grande máquina de combate, na qual o todo emerge das relações entre as partes e
estas são animadas de sentido mediante o dimensionamento que lhes dá o sistema – essa
grande ambição de auto compreensão global da cultura filosófica moderna – espelhado
pelo todo.

Exibir essa máquina em seu conjunto não constitui tarefa fácil, mas sem isso
acreditamos que faltaria mostrar a principal forma de desvio que dá suporte e
sustentação às teses e proposições que a constituem como elementos divergentes e
dinâmicos de uma obra única e acabada.

Fica fácil compreender o que afirmamos aqui quando se dimensiona corretamente


o esforço geral empreendido por Debord em sua crítica ao sistema, no âmbito da tarefa
definida por Marx em sua Introdução à Crítica à Filosofia do Direito de Hegel.
Citemos:

50
Confere: JANZ, C. P. Friedrich Nietzsche: Los diez años del flósofo errante. Versión española de
Jacobo Muñoz e Isidoro Reguera. Madrid: Alianza Editorial, 1985, pp. 175-178.
51
Confere NIETZSCHE. Wie die “wahre Welt” endlich zur Fabel wurde. In: Götzen-Dämmerung.
Kritische Studienausgabe Herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzino Montinari. Berlin: Walter de
Gruyter, 1999, pp. 80-81.
210

Portanto, a tarefa da história, depois de desaparecido o além da verdade, é


estabelecer a verdade do aquém. A tarefa imediata da filosofia, que está a serviço da
história, é, depois de desmascarada a forma sagrada da autoalienação
(Selbstentfremdung) humana, desmascarar a autoalienação nas suas formas não
sagradas. A crítica do céu transforma-se, assim, na crítica da terra, a crítica da
religião, na crítica do direito, a crítica da teologia na crítica da política. (MARX.
2010, p. 146. Grifos do autor.)

A crítica deve ser enciclopédica e como se dirige contra o sistema invertido, pode
ser melhor realizada mediante o desvio. No estilo adotado pela crítica tem-se, portanto,
um primeiro diferencial de Debord em relação à suas influências canônicas. Ninguém
antes dele levou o estilo tão a sério em filosofia, nem trabalhou com tamanha
inventividade na revitalização da dialética como crítica total da engrenagem burguesa,
de subversão pela atividade poética, vale dizer, criativa e construtiva, daquilo que estava
materialmente invertido.

Penetrar a verdade do aquém e dela extrair o movimento de sua própria negação e


superação. Eis, mais uma vez, a astúcia da dialética.

O fim apontado por Marx efetiva-se no contorno de um vasto desvio dentro do


qual microunidades estilísticas compõem divergências epigramáticas características do
estilo hegeliano. O vasto diálogo Hegel-Marx mediado pelo desvio sistêmico totaliza a
dinâmica essencial do estilo de Debord. No entanto, embora Hegel seja a referência
geral mais importante à construção da máquina de combate verbal, o quadro sistêmico
contra o qual Debord projeta o sentido da crítica como antissistema configurado na
“dinâmica estrutural” do texto, sua contradição de base, Marx é o ponto fulcral, ou
melhor, a pedra fundamental sobre a qual se edifica a dialética como desvio. Tanto que
a proposição mais importante, na qual estão contidos os sentidos de todas as outras, a
partir da qual se expande em uma teia complexa de interpelações o sentido das
“unidades federadas de tempo proposicionais”.

Temos aqui a bussola a apontar para direções convergentes se concordarmos que


Hegel e Marx, mesmo considerando suas diferenças, o que só enriquece a perspectiva
crítica, formam figuras insubstituíveis e fundamentais na determinação da matriz
ontológica do ser social em sua dinâmica histórica como um processo dialético. Matriz
cuja referencia teórica Debord utiliza de forma inventiva renovando suas ressonâncias
críticas no âmbito de uma realização dialética da filosofia pelo viés da arte. O estilo da
crítica é essencial a realização de sua ambição teórica e o fundamento de sua conquista
dialética.
211

O sistema de Hegel, no entanto, com o qual Debord dialoga, é a figura exemplar


de uma pretensão de compreensão dinâmica e englobante da totalidade das
determinações ontológicas em suas relações dialéticas reais. O sistema, o desvio do
sistema, as proposições desviantes articuladas em uma engrenagem dialética só
poderiam extrair seu sentido pleno, no contexto do esgotamento expressivo da pós-
modernidade, através da revitalização da expressão da crise, de sua diagnose crítica
realizada como obra de invenção poética pelo estilo. E neste contexto, como
sustentamos, a criação apoia-se na recriação de elementos pré-existentes através do
desvio. Um procedimento da arte moderna a serviço da realização da filosofia.

O desvio do sistema de Hegel poderia nos oferecer neste ponto, a base de


sustentação em relação a qual poderíamos pensar a totalidade dialética da Sociedade do
Espetáculo em seu aspecto original e crítico, e nela situarmos as variações desviantes
das teses e proposições dialéticas recriadas mediante o procedimento artístico.

A projeção do estilo ao primeiro plano é um movimento essencial para situarmos


concretamente a dinâmica do texto debordiano em sua forma original de realizar a
dialética como máquina de combate contra a totalidade do existente alienado, pelo uso
amplo de seus elementos e formas dominantes, tomando impulso em suas próprias
forças. A astúcia da dialética: voltar contra si mesmas as formas fundamentais de
expressão e crítica do capitalismo. O mais amplo programa crítico do situacionismo
realizado em um livro.

Acima tentamos situar o primeiro projeto de sistema de Hegel em sua tentativa de


apreender o movimento histórico em seus nexos fundantes de acordo com a ideia do
desdobramento consequente da razão rumo ao seu destino. Uma concepção ainda refém
do tempo linear, embora tentasse pensar a circularidade do desenvolvimento dialético
das categorias em um movimento de realização que se explicita como atualização de
potências históricas, cujo momento predominante era a razão. Na Fenomenologia do
Espírito tal curso de desenvolvimento é retomado embora sua plena maturidade só seja
alcançada na grande Lógica, onde Hegel apresenta as tríades fundamentais de
desenvolvimento dialético em um amplo sistema que engloba a natureza, a lógica e o
espirito.

Espelhando o sistema de Hegel, Debord constrói um vasto desvio pelo qual o


tempo é recuperado em sua constituição dialética e a invenção preside as relações
212

configuradas na dinâmica do estilo. Vejamos primeiro, esquematicamente é claro, como


se dá o desenvolvimento em Hegel. Depois comparamos com Debord e concluímos a
apresentação da forma de seu vasto desvio, o que chamamos desvio do sistema. Ao fim,
resto-nos arrematar nossa série de aproximações ao desvio, concebido como astúcia
dialética, com as possibilidades estilísticas da Sociedade do Espetáculo em confronto
com a escrita anti-acadêmica e antissistemática do ensaio. O retorno ao movimento de
construção do texto nos permitirá fechar o círculo de nossa investigação, concluindo
pela singularidade absoluta e importância definitiva para o pensamento e a criação
artística da grande síntese debordiana.
213

Capítulo 6. O sistema da lógica, a história e seu desvio

Em toda crítica estratégica, o essencial é colocar-se exatamente na posição


dos que têm um papel ativo nos acontecimentos; é verdade que,
frequentemente, isso é muito difícil. (Clausewitz, citado por Debord no
Panegírico)

A crítica estratégica anuncia-se como um programa difícil. Colocar-se na posição


dos que têm um papel ativo nos acontecimentos pressupõe um conhecimento profundo
não só do objeto, mas, fundamentalmente, dos meios adequados à abordagem crítica do
mesmo. Adequação da forma à substância do fenômeno a ser criticado corresponde a
uma exigência da linguagem dialética que viemos abordando até aqui. A inserção na
lógica do fenômeno a ser desviado: uma estratégia de combate que denominamos
astúcia dialética. Uma estratégia que mobiliza as forças criativas da arte, reverte as
regras do jogo, supera os limites ideológicos e os valores burgueses, instaura uma nova
potência significativa a partir da desconstrução dos elementos tomados como modelos a
ser desviados. Avaliamos algumas variações em torno do desvio das proposições, a
microestratégia utilizada na Sociedade do Espetáculo, em conjunto com as intervenções
situacionistas, i.e. as Diretivas, como formas de revitalização do discurso dialético em
sua exigência de realização da filosofia através da superação da arte.

Tentamos desenhar um quadro complexo e abrangente do programa situacionista


debordiano, que articula sujeito e objeto, criação e reflexão teórica, procedimento
estético e estratégia de combate, determinações histórico-sociais e pensamento,
experiência e mediação simbólica, em função de uma perspectiva dialética em que se
superam as clivagens espetaculares, mediante a reinvenção da teoria crítica. Aquilo que
chamamos crítica sintética efetuada através da presença poética. Não o procedimento
analítico, refém das separações a das perspectivas fragmentadas, preso à força
centrífuga da separação, mas a organização sintética do todo em contraponto à
realidade fundamental que se quer superar, vale dizer, destruir e, ao mesmo tempo,
realizar.

O artifício poético debordiano através do qual a dialética é dinamizada,


revitalizada exige um trabalho ativo não apenas daquele que a utiliza, mas também de
seus intérpretes. De fato, tanto o escritor quanto o leitor, “devem efetuar uma
superposição estrutural dos textos, que incorpore o antigo ao novo, visto que ela é uma
214

síntese bitextual.” (PINHEIRO, Bernardina, P. 02) Como afirmamos acima, estamos


diante de um tipo de paródia em que uma totalidade teórica, orquestrada em um sistema,
serve de base à elaboração do contraponto crítico mediante o qual a presença desviante
do antissistema constrói seu significado pela reflexividade, pela especulação do modelo.
A dialética é aqui, através do desvio sistemático, tornada síntese suprema pela
reorganização global de uma totalidade revertida.

A natureza e a forma dessa síntese é o que nos falta avaliar agora para
completarmos o quadro do desvio como astúcia da dialética e finalizarmos nosso
esforço interpretativo. Hegel será o modelo ao qual nos reportaremos. A superposição
que mostraremos será feita a partir da comparação dialética entre a Ciência da lógica, a
Filosofia da história e a dinâmica de composição da Sociedade do Espetáculo, seu
estilo estratégico, polêmico e crítico. Esperamos conseguir um avanço na compreensão
desse texto exigente com nossa avaliação sintética. O leitor perdoe nosso arrojo e nossas
possíveis falhas. Não obstante, acreditamos que o que aqui iniciamos pode muito bem
render belos frutos para a futura abordagem do pensamento e do estilo de Debord. Se
non è vero, è ben trovato.

Devemos tomar por base dois movimentos em Hegel que Debord desvia: o
primeiro a estrutura da Ciência da lógica, o segundo o telos da Filosofia da história.
Vejamos primeiro a Ciência da lógica para projetar sobre ela o desvio do sistema,
depois veremos a libertação do tempo do discurso em relação à teleologia hegeliana em
sua Filosofia da História.

A Lógica hegeliana realiza a máxima pretensão da filosofia em sua ambição


englobante de espelhar, em um sistema de vastas proporções e alcance teórico
abrangente, a totalidade do real compreendida nas relações dialéticas de suas categorias
ontológicas fundamentais. Segundo esclarece Michael Inwood,

A lógica é um exame das determinações do pensamento ou categorias abstratas


que constituem o núcleo do espírito humano e estão envolvidas (com diversos graus
de explicitação) em nossa experiência e em nossos discursos usuais, em nossas
atividades práticas e instituições, em nossa maneira sistemática de compreender o
mundo – como a religião, as ciências e a filosofia – e na própria estrutura do
mundo. (INWOOD. 2002, P. 608)

O caminho trilhado pelas categorias na lógica hegeliana dirige-se do universal


abstrato para a singularidade concreta quando a clivagem sujeito-objeto é superada no
movimento auto- compreensivo do pensamento; Debord reflete o movimento hegeliano
215

mediante um espelhamento que subverte a lógica de seu desenvolvimento, revelando no


movimento do desvio textual sistêmico o verdadeiro trajeto das categorias, não no
interior do processo ideal, mas na realidade concreta da vida. Assim, inicia com a
concretude abstrata das separações – a separação e a unidade aparente na economia –
terminando com a abstração concreta do planejamento e administração total da vida
social – a ideologia materializada. Ou seja, o sistema hegeliano aparece formalmente
invertido na dinâmica composicional da Sociedade do Espetáculo, e esta inversão
corresponde a uma superposição paródica de duas formas em dialogo, através do qual o
que se quer dizer não se separa do movimento crítico de ultrapassagem do modelo sobre
o qual a síntese bitextual é construída. A própria reversão da forma atualiza a antiga
potência e produz a atualização do conteúdo.

Uma inversão que subverte o sistema e realiza, na imagem movente do vasto


desvio, sua resolução consequente com as determinações humanas vitais, histórico-
sociais. Servindo-se de um modelo pré-existente de organização categorial conforme os
ditames da razão, Debord subverte sua valência ontológica através da inversão operada
pelo estilo que, ironicamente, desvia o modelo original de sua antiga rota e exibe na
forma revertida o tamanho de nossa miséria; a distância que o movimento real tomou
em relação ao ideal. Pelo desvio do sistema atinge-se o grau supremo da crítica
materializada. Esta traça os limites dentro dos quais as proposições poderão executar
seus movimentos dialéticos e, em contraste com a forma desviada, ela mesma animada
pela dinâmica da relação desviante com seu modelo, compor uma articulação complexa
pela qual as variantes da consciência moderna serão apresentadas em suas proposições
fundamentais em deriva, vale dizer, realizadas concretamente na própria configuração
de seu desdobramento dialético.

Vejamos o modelo. Aproveitando uma síntese dos passos percorridos pela lógica
hegeliana, elaborada por Michael Winwood, tentamos explicitar as figuras fundamentais
da lógica a fim de que o leitor melhor visualize nossa argumentação posterior e se situe
com mais clareza em nossa exposição. Conforme resume Winwood:

A primeiro seção da Lógica, a "Doutrina do Ser", examina as categorias


relacionadas aos aspectos superficiais das coisas: inicia-se com o puro ser (o ponto
de partida óbvio, de uma vez que pode ser tudo menos um conceito vazio, algo mais
do que o espaço em branco de nosso pensamentos), que "se transforma" em nada, e
suscita assim o "ser determinado", a qualidade determinada que torna algo "distinto"
de outra coisa. Daí prossegue para "quantidade". As características quantitativas de
algo, como o tamanho de um campo, são de início vistas como independentes de sua
216

qualidade, do fato de ser um campo, mas na terceira fase dessa seção, "medida",
qualidade e quantidade são interdependentes: se, por exemplo, um campo aumenta
suficientemente de tamanho, ele se torna uma planície ou uma pradaria, deixando de
ser um campo, e a medição de quantidades "intensivas", como a temperatura,
pressupõe mudanças qualitativas abruptas (como a da água em gelo) em certo pontos
nodais numa escala contínua.

A segunda seção, a "Doutrina da Essência", considera os pares de conceitos em


termos dos quais os cientistas e Metafísicos (capítulo 2) tradicionais compreenderam
a relação entre a superfície externa das coisas e sua natureza intrínseca: entre estes
se incluem essência e aparência, coisa e propriedades, substância e acidente, causa e
efeito e a interação recíproca de substâncias.

A seção final, a "Doutrina do Conceito", inicia-se com o "conceito", em parte


como resposta à dificuldade de explicar, por exemplo, o crescimento de uma planta,
em termos causais, sem fazer referência ao conceito codificado na semente. Mas ela
se expande numa descrição das formas da lógica "subjetiva": conceitos universais
(como "colorido"), particulares (como "vermelho") e individuais; os tipos de juízo; e
os tipos de inferência ou silogismo. (Hegel tendia a considerar estes últimos como
formas não apenas de nosso pensamento, mas também de entidades objetivas como
o sistema solar e o Estado.)

Em seguida, Hegel se volta para a "objetividade" e considera três maneiras cada


vez mais sofisticadas pelas quais se concebem os objetos: mecanismo, quimismo e
teleologia ou finalidade. Enfim, ele chega à "ideia", à unificação da subjetividade e
da objetividade. A versão mais primitiva de tal unidade é a "vida". Daí, ele examina
nossas tentativas de alcançar unidade num plano superior, na cognição "do
verdadeiro" e na realização "do bem". o clímax da Lógica é a "ideia absoluta", que
representa a unificação última entre sujeito e o objeto e serve a diversos propósitos
do sistema de Hegel: representa, por exemplo, o empreendimento da própria lógica,
na qual o pensador não se distingue dos pensamentos sobre os quais ele (ou ela) se
detém - como a Fenomenologia, a Lógica termina com um investigação dos passos
que levaram até a conclusão. As lógicas do passado (como as de Aristóteles ou de
Kant) eram "finitas": deixaram de acomodar seus próprios pensamentos sobre os
pensamentos que elas descreviam. Já a lógica de Hegel é "infinita": a ideia absoluta
contém todos os pensamentos requeridos para pensar adequadamente a seu próprio
respeito. (INWOOD. 2002, Pp. 608-609)

Em um resumo esquemático poderíamos representar as três tríades lógicas como


segue:

Quantidade

SER Qualidade

Medida

Reflexão

ESSÊNCIA Aparência
217

Atualidade

Subjetividade

CONCEITO Objetividade

Ideia52

Um desvio em relação a esse tipo de sistema, no qual está englobada toda a


experiência humana representada pela evolução dialética dos movimentos categoriais do
pensamento, constituiria, portanto, a mais vasta contradição pela qual alguém ousaria
contrapor-se à ordem existente mediante o choque crítico com sua expressão teórica
máxima. Expressão teórica maior que pretendeu sintetizar em uma totalidade sistêmica
ideal toda a experiência humana sob a forma de um grande quadro compreensivo de sua
emergência desde a base natural até a sua libertação pela ideia.

Aqui, na máxima abrangência do desvio, estaria posta a máxima mobilidade de


um antissistema sistematicamente organizado dentro do qual os desvios particulares
estariam contextualizados no interior de um domínio especulativo único, produto da
invenção, do rigor teórico e da sutileza no trato com a palavra. O desvio neste sentido
recoloca em movimento um sistema pelo qual a mentalidade ocidental alcançou sua
auto-compreensão global e, assim, contrapõe-se globalmente a ela e a destrói em seu
interior. Movimenta-a no sentido de sua própria negação e , pela negação, a realiza. Em
um primeiro movimento veremos a expansão complexa da forma, num segundo a
libertação do tempo. Em uma mesma relação dialógica ampla e englobante a estrutura
lógica e a compreensão do tempo histórico superadas na dinâmica estilística do desvio
do sistema.

Neste movimento de choque estilístico com-contra o sistema, a teoria faz-se


prática de combate estratégico. Num único lance, supera as clivagens configuradas no
distanciamento do observador em relação ao seu objeto, que Debord considerava o

52
Confere: HEGEL, Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse. In.:
http://www.hegel.de/werke_frei/startfree.html. Acesso em 22,10, 2011. Há uma excelente edição
completa em português que se pode consultar: HEGEL, A Ciência da Lógica, Tradução de Paulo
Menezes. São Paulo: Loyola, 1995.
218

resumo enciclopédico das clivagens que dividiam a sociedade burguesa. Neste sentido
Debord observou que, “Le spectacle est l'héritier de toute la faiblesse du projet
philosophique occidental qui fut une compréhension de l'activité, dominée par les
catégories du voir.53” Portanto, em uma inversão magistral, a consciência dominada
pelas clivagens espetaculares, pelas separações que impedem a teoria de convergir com
a práxis e a realizar, “Il ne réalise pas la philosophie, il philosophise la réalité.”54

Vimos em suas “perspectivas críticas para a superação consciente da vida


cotidiana” o quanto a superação da separação sujeito-objeto era importante para a
abordagem correta do objeto sem excluir o sujeito da relação teórico-prática de
conhecimento e ação e, portanto, sem reproduzir a falsa consciência científica
positivista e o formalismo, alicerçados sobre a comum separação que invade todas as
instancias da vida social. Pois bem, aqui no desvio do sistema Debord realiza, de uma
vez por todas, a totalidade de sua crítica sob a forma de um amplo movimento de
superação das clivagens, das abstrações, da contradição teoria-prática, da separação,
sujeito-objeto, em um único movimento de compreensão científica, pelo qual se
constrói, em convergência com as situações concretas da vida, a verdadeira abordagem
filosófica dos problemas no contexto de sua própria superação. A ambição da dialética
realiza-se mediante o estilo, cuja construção paródico-polémica afigura no texto os
movimentos que os conceitos executam no interior das proposições desviadas e nas
relações mesmas entre as proposições dentro da engrenagem dialética da máquina de
combate verbal.

6.1 Abordagem da máquina

É curioso notar que as 9 subdivisões da Sociedade do Espetáculo, quando


consideradas em paralelo, formando grupos de três, lançam nova luz sobre o
significado do estilo do texto em sua função de combate dialético pelo desvio. Propõem
uma leitura não linear que deve seguir o desdobramento de todas as partes que evoluem
em relações dialógicas abordando temas que se completam. No todo, cada grupo

53
Alusão a Johan Huizinga, Le déclin du Moyen Age : “Un des traits fondamentaux du Moyen Age
déclinant est la prédominance du sens de la vue, prédominance qui semble être en rapport étroit avec
l'atrophie de la pensée. On pense et on s'exprime par images visuelles.”
54
Détournement de Marx, Crítica da Filosofia do Direito de Hegel : “Não se pode superar a filosofia sem
a realizar.”
219

ternário articula três subdivisões que se completam, traçando um mapa não-formal, não
linear e crítico da sociedade espetacular que é seu objeto. Comparando com as divisões
triádicas da Ciência da lógica hegeliana, teríamos um quadro paródico e dialógico a
partir do qual podemos visualizar o grande desvio estabelecendo seu diálogo com Hegel
através da síntese bitextual.

Em uma primeira aproximação, teríamos o seguinte esquema de divisões triádicas,


consideradas em paralelo com as divisões da Ciência da lógica:

I – A separação consumada

A mercadoria como espetáculo SER

Unidade e divisão na aparência

II – O proletariado como sujeito e como representação

Tempo e história ESSÊNCIA

O tempo espetacular

III – O planejamento do espaço

A negação e o consumo na cultura CONCEITO

A ideologia materializada

A partir de uma representação dinâmica em que os capítulos evoluem segundo um


progresso próprio à natureza auto-reflexiva da totalidade dialética do texto debordiano
da Sociedade do Espetáculo, observamos uma correlação e, ao mesmo tempo, um
movimento de superação imanente segundo o qual cada capítulo abre-se ao outro que o
220

explicita e supera. A forma dinâmica pode ser abordada em divisões ternárias


especulativas, como em Hegel.

DIVISÃO TERNÁRIA DOS CAPÍTULOS

cap cap 4 cap 5 cap 8 cap 9


1

cap 2 cap 3 cap 6 cap 7

Organizando em contraposição as duas posições que abordamos em paralelo – a


de Hegel e a do desvio do sistema de Debord – talvez uma imagem pudesse ajudar o
leitor a dirigir o olhar para os lugares fundamentais do argumento que pretende elucidar
os movimentos do estilo.

TRÍADES LÓGICAS HISTÓRIA DA LÓGICA = TEMPO


FILOSOFIA DA HISTÓRIA

•TRÍADES •HISTÓRIA E •DESVIO DO


ESPETACULARES TEMPO SISTEMA
ESPETACULARES •TEMPO VITAL DA
EXPERIÊNCIA

A partir deste quadro iremos traçando nossas considerações relativas ao estilo


debordiano em sua apresentação global, considerando a totalidade do texto da
221

Sociedade do Espetáculo como assentada sobre o diálogo aberto e crítico com a


concepção hegeliana do sistema, que Debord considera a visão mais completa e acabada
de uma totalização teórica ainda completamente aderente ao existente que, embora
reflexiva e extremante arrojada em sua proposta, mantém-se refém do estado de coisas
que especula. Debord considera:

Hegel fez, pela última vez, o trabalho do filósofo, a glorificação do que existe; mas,
para ele, o que existia só podia ser a totalidade do movimento histórico. A posição
exterior do pensamento, na verdade mantida, só podia ser disfarçada por sua
identificação com um projeto prévio do Espírito, herói absoluto que fez o que quis e
quis o que fez, e cuja realização coincide com o presente.

Portanto, a necessidade do desvio em relação a Hegel impõe-se como condição


para a construção de um vasto desvio que enfrente diretamente a totalidade em sua
versão mais ambiciosa e bem realizada e dela extraia seus movimentos dialéticos que
permitirão ao estilo a realização de um movimento interior ao pensamento que alcance
desconstruir uma abordagem sistêmica que coincide com o presente e o engloba. No
tribunal do estilo poderia ser proferida a sentença da verdade? Vejamos o quadro e
depois acompanhemos os comentários.

SOCIEDADE DO ESPETÁCULO CIÊNCIA DA LÓGICA

I – A separação consumada QUALIDADE

SER
A mercadoria como espetáculo QUANTIDADE

Unidade e divisão na aparência MEDIDA


222

II – O proletariado como sujeito REFLEXÃO

e como representação
ESSÊNCIA

Tempo e história APARÊNCIA

O tempo espetacular ATUALIDADE

III – O planejamento do espaço SUBJETIVIDADE

CONCEITO
A negação e o consumo na cultura OBJETIVIDADE

A ideologia materializada IDEIA

Reparem que o Ser da sociedade capitalista é o espetáculo, que é, por seu turno, o
contrário do Ser uma vez que nele o ser se dissolveu na imagem, tornando-se uma falsa
determinação ontológica; aquilo que se contempla, do qual o observador se encontra
separado e parece possuir consistência ontológica, mas não a possui e engana a visão.

Les images qui se sont détachées de chaque aspect de la vie fusionnent dans un
cours commun, où l’unité de cette vie ne peut plus être rétablie. La réalité considérée
partiellement se déploie dans sa propre unité générale en tant que pseudo-monde à
part, objet de la seule contemplation. La spécialisation des images du monde se
retrouve, accomplie, dans le monde de l’image autonomisé, où le mensonger s’est
menti à lui-même. Le spectacle en général, comme inversion concrète de la vie, est
le mouvement autonome du non-vivant. (DEBORD, SE, § 02)

Um Ser que se tornou relação no âmbito da divisão e da unidade ilusória que mantém a
aparência da organização total da experiência social sob a magia da imagem. O Ser é
dissolvido na separação consumada sem deixar de parecer ser. “Le spectacle n’est pas
223

un ensemble d’images, mais un rapport social entre des personnes, médiatisé par des
images.” (DEBORD, SE, § 04)

A Essência desse ser espetacular é o movimento abstrato figurado no tempo da


produção, o tempo mercantil medido pelo relógio pelo qual a rotina do trabalho é
controlada e o valor de seus produtos medido. Em seu interior a história parece
determinar-se por uma linha apontando para um fim, que, no entanto, é igualmente
falso. « ce dédoublement est lui-même dédoublée » ; « La réalité objective est présente
des deux côtés. Chaque notion ainsi fixée n'a pour fond que son passage dans l'opposé »
; « Cette aliénation réciproque est l'essence ». 55 (DEBORD, SE, § 08)

Trata-se do acalentado valor da realização plena da humanidade pelos frutos de


sua atividade produtiva, de sua emancipação pelo trabalho. O que não se realiza
porquanto o trabalho alienado movimenta a separação que se expande em todas as
esferas da vida social impedindo aquilo que deveria concretizar. A unidade não se dá
senão de forma ilusória e o fim torna-se apenas um esperança otimista de algo que
jamais virá.

La séparation fait elle-même partie de l’unité du monde, de la praxis sociale globale


qui s’est scindée en réalité et en image. La pratique sociale, devant laquelle se pose
le spectacle autonome, est aussi la totalité réelle qui contient le spectacle. Mais la
scission dans cette totalité la mutile au point de faire apparaître le spectacle comme
son but. Le langage du spectacle est constitué par des signes de la production
régnante, qui sont en même temps la finalité dernière de cette production.
(DEBORD. SE. § 07)

Chega-se, enfim, ao Conceito, vale dizer, a estrutura definitória do sentido do


todo. Esta é a ideologia, o limite ideal da cultura que se sustenta mediante a
confirmação de seu próprio valor, que falseia, portanto, na própria delimitação legal que
ela impõe, os fins a que serve, que não são os da ilustração pela ideia e conhecimento,
mas o controle pelo limite de uma falsa autoconsciência alienada que se deve manter na
alienação. “A ideologia está em casa; a separação construiu seu próprio mundo.”
(DEBORD, § 217)

Numa análise mais de perto podemos observar que os capítulos se relacionam


com as tríades da lógica hegeliana, usando-as como matriz ideal sobre a qual constroem
seu sentido abstrato. Assim, a esfera da economia, da separação consumada que

55
Détournements de Hegel
224

constitui o núcleo ontológico do espetáculo, seu Ser universal, também se divide em


três determinações fundamentais.

A primeira consiste em A separação consumada representa a pseudo-qualidade


que orienta as relações alienadas desde sua base econômica, determinando o movimento
global do sistema de necessidades como uma mecânica autônoma que se
autometaboliza. Tal movimento se dá através da dinâmica material objetivada em sua
forma ideológica pelo espelhamento ideal e sistemático de sua própria separação
falsamente unificada; a difusão das mediações imagéticas como pseudo-realização da
substância de uma realidade carente de ser.

On ne peut opposer abstraitement le spectacle et l’activité sociale effective ; ce


dédoublement est lui-même dédoublé. Le spectacle qui inverse le réel est
effectivement produit. En même temps la réalité vécue est matériellement envahie
par la contemplation du spectacle, et reprend en elle-même l’ordre spectaculaire en
lui donnant une adhésion positive. La réalité objective est présente des deux côtés.
Chaque notion ainsi fixée n’a pour fond que son passage dans l’opposé : la réalité
surgit dans le spectacle, et le spectacle est réel. Cette aliénation réciproque est
l’essence et le soutien de la société existante. (DEBORD. SE. § 08)

A segunda parte A mercadoria como espetáculo explicita a transformação da


qualidade das relações alienadas como quantidade de objetos-produtos desvinculados
da força produtora, que se mostram como mercadoria–espetáculo, movendo-se como
um grande sistema espetacular autônomo diante da impotência do espectador que, no
entanto, é a força que as cria e que produz seus movimentos.

À ce mouvement essentiel du spectacle, qui consiste à reprendre en lui tout ce qui


existait dans l’activité humaine à l’état fluide, pour le posséder à l’état coagulé, en
tant que choses qui sont devenues la valeur exclusive par leur formulation en négatif
de la valeur vécue, nous reconnaissons notre vieille ennemie qui sait si bien paraître
au premier coup d’œil quelque chose de trivial et se comprenant de soi-même, alors
qu’elle est au contraire si complexe et si pleine de subtilités métaphysiques, la
marchandise. (DEBORD. SE. § 35)

Por outro lado, tal movimento não pode se tornar visível em sua separação, o que
acenderia a consciência crítica do espectador comprometendo a ilusão de movimento
autônomo que sustenta a lógica do sistema em sua aparência imediata; portanto, deve-se
constituir como medida ilusória da unidade que, de fato, não existe: temos assim A
unidade e divisão na aparência. Nela a divisão real aparece como unidade ideal que se
mantêm separada exatamente na medida em que se mostra unitária. Assim a medida é
alcançada através de um movimento de aparente auto-superação ternária que, em
verdade, realiza-se como primeiro momento de um sistema cuja única lei é a
225

perpetuação das divisões e a perpetuação da “incorrigível lógica do capital”


(MÉSZÁROS, Para além do capital, p 25).

Le spectacle, comme la société moderne, est à la fois uni et divisé. Comme elle, il
édifie son unité sur le déchirement. Mais la contradiction, quand elle émerge dans le
spectacle, est à son tour contredite par un renversement de son sens ; de sorte que la
division montrée est unitaire, alors que l’unité montrée est divisée. (DEBORD. SE. §
54)

A próxima subdivisão considera a princípio o papel do proletariado cuja força de


trabalho deveria constituir a Essência da totalidade sistêmica que se sustenta sobre a
força produtiva. O trabalho como matriz ontológica do ser social constituiria a forma da
reflexão pela qual a objetividade constituir-se-ia como reflexo subjetivo, ponto de
contato e lugar da superação da separação sujeito-objeto. No entanto, o trabalho
estranhado aduz uma distância insuperável entre sujeito-produtor e seu objeto, tornando
a reflexão ilusória e inexistente. A apropriação do fruto do trabalho sob a forma da
propriedade privadas dos meios de produção induz uma falsa reflexão que tira do
proletariado a posição de sujeito, tornando-o mera representação. Sendo assim, o
processo de trabalho regulado pelo tempo da produção que se torna a determinação do
valor abstrato da ação humana produtiva, transforma-se no referencial para a avaliação
de todo processo de produção como fluxo abstrato especializado. Como subproduto do
tempo especializado-abstrato do sistema de necessidades (que se traduz filosoficamente
em sistema lógico). Por sua vez, o tempo da história reduz-se à forma abstrata do tempo
de produção.

Le mouvement réel qui supprime les conditions existantes gouverne la société à


partir de la victoire de la bourgeoisie dans l’économie, et visiblement depuis la
traduction politique de cette victoire. Le développement des forces productives a fait
éclater les anciens rapports de production, et tout ordre statique tombe en poussière.
Tout ce qui était absolu devient historique. (DEBORD. SE. § 73)

Tudo o que parece ser absoluto torna-se histórico. No entanto historicamente


falseado pela ilusão do tempo do trabalho unificado abstratamente como tempo linear,
como conjunto de momentos espaciais em sucessão contínua. A aparência se projeta
como essência do mecanismo regulador da vida e o tempo espetacular assume a figura
central de uma ordem linear e escatológica cujo fim aponta para a realização da
economia, para a atualização do reino das coisas como finalidade suprema da história. O
homem é colocado à margem do processo que ele movimenta e a sua história aparece
como história dos meios, movidos e criados por ele, para a sua própria dominação.
Dominação pelo estranhamento da história.
226

L’appropriation sociale du temps, la production de l’homme par le travail humain, se


développent dans une société divisée en classes. Le pouvoir qui s’est constitué au-
dessus de la pénurie de la société du temps cyclique, la classe qui organise ce travail
social et s’en approprie la plus-value limitée, s’approprie également la plus-value
temporelle de son organisation du temps social : elle possède pour elle seule le
temps irréversible du vivant. La seule richesse qui peut exister concentrée dans le
secteur du pouvoir pour être matériellement dépensée en fête somptuaire, s’y trouve
aussi dépensée en tant que dilapidation d’un temps historique de la surface de la
société. (DEBORD. SE. 128)

“L’histoire survient donc devant les hommes comme un facteur étranger, comme ce
qu’ils n’ont pas voulu et ce contre quoi ils se croyaient abrités.” (DEBORD, SE, 128) O
sistema da história projeta-se sobre a experiência humana como uma grande abstração
que arrasta o destino dos homens, através das ondas sucessivas das transformações
sobre as quais as potências produtivas subjazem ao poder de controle do tempo
espetacular. Sendo assim, em cada uma das sociedades dominadas pelo tempo da
produção, “uma estruturação definitiva excluiu a mudança. O conformismo absoluto
tornou-se a prática social existente.” (DEBORD, SE, § 130) “Os possuidores da história
colocaram no tempo um sentido: uma direção que é também um significado.”
(DEBORD, SE, § 130. Grifos do autor)

O processo enfim é regulado pelos interesses do poder e correspondem ao


movimento da produção e reprodução dos objetos, sob cujas leis as potências humanas
são atualizadas mediante os instrumentos que determinam sua própria submissão. A
atualização pelo trabalho estranhado, pela divisão real mantida pela unidade na
aparência, realiza-se como um perpétuo refluxo do movimento de objetos que criam a
aaparência de organização estrutural, de ordem e sistema. No entanto, a atualização
como processo ontológico, é a da economia e a realização da potência histórica
explicita-se submetida ao domínio das coisas.

Le temps de la production, le temps-marchandise, est une accumulation infinie


d’intervalles équivalents. C’est l’abstraction du temps irréversible, dont tous les
segments doivent prouver sur le chronomètre leur seule égalité quantitative. Ce
temps est, dans toute sa réalité effective, ce qu’il est dans son caractère échangeable.
C’est dans cette domination sociale du temps-marchandise que le « le temps est tout,
l’homme n’est rien ; il est tout au plus la carcasse du temps » (Misère de la
Philosophie). C’est le temps dévalorisé, l’inversion complète du temps comme «
champ de développement humain ». (DEBORD, SE, § 147)

Termina a segunda tríade antihegeliana; o segundo desvio da lógica em sua


composição ternária, de cuja forma Debord se apropriou exatamente para demonstrar,
através do “desvio da forma pela forma do desvio”, o quanto de ideológico e aderente à
lógica do Capital a filosofia se tornou.
227

Sua expressão máxima na dialética hegeliana é a confirmação da perpetuação da


lógica da separação e da crise. Aproveitando-se de uma forma espetacularizada Debord
movimenta a máquina de combate contra o reino da separação construindo, pelo desvio
paródico sério, a imagem concreta de sua falência. A antilógica do sistema espelhada
em sua negação estrutural.

O terceiro movimento trata da reprodução ideológica do sistema através da


ocupação do espaço e da urbanização, cujos efeitos psicogeográfico foram amplamente
discutidos por Debord; a negação e o consumo na cultura e, por fim, a ideologia
materializada. O ciclo parece fechar-se na reprodução superestrutural do mecanismo
sistêmico e o capital mantém-se em movimento auto-afirmativo e, agora,
conceitualmente autônomo. A pseudo-autonomia atinge o âmbito da cultura e constrói
uma imagem de si mesma que reflui sobre seus elementos fundantes e os sustenta. O
fim da narrativa é apenas o começo da sua vigência sob a forma de controle
psicogeográfico.

O urbanismo representa o aspecto subjetivo do controle pela organização do


espaço, pela determinação psicogeográfica da imagem do capital em sua configuração
material como ocupação e planejamento do espaço habitável. Pelo urbanismo a
ideologia se materializa e se torna efetiva como determinação do movimento, da
impossibilidade do encontro, da dissolução dos laços pelo isolamento espacial das
unidades psicobiológicas perdidas em meio à multidão, da concretização da separação
como isolamento dos corpos e das mentes, enfim, como realização de um sujeito
administrativo invisível e universal que determina os fluxos e os lugres como fluxos e
lugares do capital.

L’urbanisme est l’accomplissement moderne de la tâche ininterrompue qui


sauvegarde le pouvoir de classe : le maintien de l’atomisation des travailleurs que
les conditions urbaines de production avaient dangereusement rassemblés.
(DEBORD, SE, § 172)

O sujeito determinante do conceito se mostra no conceito-espaço como domínio


de uma subjetividade anônima. Um planejamento anônimo de uma geografia urbana
figurada como recortes espaciais construídos para separar e potencializar o fluxo das
mercadorias. Não mais um espaço de convívio e encontro entre sujeitos, mas de
desencontro e de “dessubjetivação repressiva”. A primeira figura da terceira tríade da
lógica desviada.
228

La lutte constante qui a dû être menée contre tous les aspects de cette possibilité de
rencontre trouve dans l’urbanisme son champ privilégié. L’effort de tous les
pouvoirs établis, depuis les expériences de la Révolution française, pour accroître les
moyens de maintenir l’ordre dans la rue, culmine finalement dans la suppression de
la rue. (DEBORD. SE. § 172)

Afigura-se então a cultura como a esfera da separação vivida coma falsa unidade,
como unidade ideológica de uma separação real. Segundo Debord, “A cultura é a esfera
geral do conhecimento e das representações do vivido, na sociedade histórica dividida
em classes; o que equivale a dizer que ela é o pode da generalização que existe à parte,
como divisão do trabalho intelectual e trabalho intelectual da divisão”. (DEBORD. SE.
§ 180) Na cultura, portanto, a separação continua seu reino e se reafirma como conceito;
no entanto não imediatamente como força modeladora dos limites ideais dentro dos
quais se organizam as esferas das representações em relações hierárquicas, mas,
também e fundamentalmente, como separação universal do objeto projetado para além
do plano material da ação humana histórico-social, pela qual é produzido.

Acima e além dos sujeitos efetivamente reais, destaca-se o domínio global de uma
objetividade universal, imaterial e autônoma das representações ideais. “A cultura se
desligou da unidade típica da sociedade do mito” (...) e, ao ganhar independência ela
“começa um movimento imperialista de enriquecimento, que é, ao mesmo tempo o
declínio de sua independência”. (DEBORD, SE, § 180) Como objetividade abstrata,
separada das determinações reais, a cultura exibe suas contradições e se nega. Sua
própria constituição contraditória limita sua persistência como reino do separado e
determina o seu fim.

A cultura pretende aquilo que sua própria constituição nega. Ela é o trabalho
humano materializado que, no entanto, assume o lugar ontológico de uma objetividade
autônoma e separada do trabalho humano. Ela é a configuração sensível da
subjetividade que perdeu por completo a natureza subjetiva que lhe determinou.
Portanto, o fracasso da busca de uma unidade no plano de uma objetividade cindida que
não lhe pode realizar. “A cultura é o lugar da busca da unidade perdida. Nessa busca da
unidade, a cultura como esfera separada é obrigada a negar a si própria.”(DEBORD, SE,
§ 180) Aponta-se para o fim da cultura. Incipit spectaculum.

A ideia, portanto, que se materializa em uma sociedade acrítica que não exibe
imediatamente as contradições que destroem sua unidade, não obstante sua aparente
coerência, não é uma noção limite que se realiza através de seus próprios
229

desdobramentos históricos, mas sim uma ideia que se deve manter através da negação
daquilo que ela afigura falsamente como ideal. Uma ideia sem efetividade ontológica
que, no entanto, efetiva-se exatamente mediante sua natureza irreal dotada de uma
eficácia real sobre os movimentos que determina.

A ideia domina pelo recorte que opera no todo social afigurando-o de acordo com
sua própria imagem. O espaço autodilacerado da cultura assume a forma de uma
imagem global, “em uma vontade abstrata do universal e sua ilusão”. “Encontra-se
legitimada na sociedade moderna pela abstração universal e pela ditadura efetiva da
ilusão, ela já não é a luta voluntariosa do parcelar, mas seu triunfo.” (DEBORD, §
213. Grifos nossos)

O espetáculo vence o jogo. Não há, como esperava Hegel, a superação das
clivagens pelo domínio do universal concreto da ideia plenamente realizada, quando
sujeito e objeto se reconheceriam como facetas de uma mesma força histórica,. A lógica
falha em sua diagnose dialética e se mostra como esperança vã, como vontade abstrata
de uma concretude que se auto-dilacerou, assumindo a forma parcelar de um universal
separado da vida que, no entanto, domina os movimentos vitais e impõe sua regra como
um modelo ilusório da verdade invertida.

O que se situa no plano mais abstrato, o que se deveria compreender como


resultado de um mundo dividido em cuja divisão ocupa o lugar transcendente de um
modelo ideal torna-se o fundamento, a base sobre a qual se assenta toda a estrutura da
sociedade de classes. A realidade social está virada de ponta cabeça. A inversão
suprema operada pelo espetáculo é também sua maior astúcia: ele modela a vida social e
se apresenta como esfera ideal, não obstante sua origem e fundamento estejam situados
na base matéria de uma organização especializada da produção, de uma economia
baseada na posse privada e na alienação do trabalho. O trabalho opera a produção e
sustenta as divisões sociais, no entanto a ideologia modela as formas pelas quais a
sociedade dividia se organiza em sua divisão e reproduz as separações. Debord escreve:

L’idéologie est la base de la pensée d’une société de classes, dans le cours


conflictuel de l’histoire. Les faits idéologiques n’ont jamais été de simples chimères,
mais la conscience déformée des réalités, et en tant que tels des facteurs réels
exerçant en retour une réelle action déformante ; d’autant plus la matérialisation de
l’idéologie qu’entraîne la réussite concrète de la production économique
autonomisée, dans la forme du spectacle, confond pratiquement avec la réalité
sociale une idéologie qui a pu retailler tout le réel sur son modèle. (DEBORD, SE, §
212)
230

A sociedade do espetáculo se organiza pela ideologia. Portanto, fecha-se o ciclo;


desde a base material até a superestrutura espiritual o espetáculo determinou o seu
domínio pela separação, pela inversão, pela ilusão da unidade e pela reprodução de sua
própria dinâmica. O projeto de emancipação, para colocarmos em termos iluministas, ou
a realização da ideia hegeliana da comunhão, da bela totalidade, da comunidade feliz
traduzida na superação das clivagens que dilaceravam a experiência social burguesa
mostra-se uma questão ainda aberta. Algo a que se pode, no máximo, almejar e não
considerar como concretizado.

No deslocamento das fases invertidas dentro do vasto desvio da lógica hegeliana


Debord nos demonstra, na negação da forma, na sua irresolução essencial ou mesmo em
sua falácia cultural, em sua ideia desrealizada como casca abstrata de um projeto
ilusório, a linguagem fluida da antiideologia pela qual se realiza a crítica dialética. No
entanto, a última tese da Sociedade do Espetáculo aponta para um futuro possível,
deixando aberta a dinâmica textual, querendo apontar não para um fim, mas uma
incógnita histórica. Não exatamente uma incógnita uma vez que a realização de todas as
promessas negadas pelo sistema foi colocada nas mãos de uma última esperança. A
organização dos conselhos. A inversão de Hegel encontra-se na forma aberta a
promessa marxiana. “Emancipar-se das bases materiais da verdade invertida, eis no que
consiste a auto-emancipação de nossa época.” (DEBORD, SE, § 221) Essa

missão histórica de instaurar a verdade no mundo” tarefa que cabe, ainda s sempre, à
classe que é capaz de ser a dissolução de todas as classes ao resumir todo o poder na
forma desalienante da democracia realizada, o Conselho, no qual a teoria prática
controla a sim mesma e vê sua ação. Somente ali os indivíduos estão “diretamente
ligados à história universal”; somente ali o diálogo se armou para tornar vitoriosas
suas próprias condições. (DEBORD, SE, § 221)

A tarefa hegeliana realizada no âmbito da promessa marxiana. A superação da


clivagem teoria prática como tarefa histórica a ser realizada pelo Conselho.

A linha da história e sua pseudo-realização quebra-se em um ciclo auto-reprodutor


que a dinâmica do texto afigura. Podemos exemplificar em uma imagem:
231

SEPARAÇÃO/UNIDADE
APARENTE
(PRODUÇÃO-ECONOMIA)

PROLETARIADO: SUJEITO E
IDEOLOGIA E REPRESENTAÇÃO
PLANEJAMENTO (CONTROLE-
(REPRODUÇÃO-CULTURA) POLÍTICO)TEMPO E
HISTÓRIA

POSSIBILIDADE DE EMANCIPAÇÃO:

PROLETARIADO COMO SUJEITO

Dessa forma pelo paralelismo das partes dispostas ironicamente em conjunção


ideal pelo estilo, o movimento espetacular retorna sobre si mesmo e se reafirma sob a
forma de ideologia, não da libertação pela ideia. Ao mesmo tempo, a dinâmica de
desenvolvimento do texto nega a circularidade autoafirmativa da ideologia, a forma
final do espetáculo, disseminando-se em rede através da dialética das proposições
desviadas e negando no próprio estilo aquilo que o estilo exibe na forma: a vitória final
da falsa consciência espetacular que ampara e serve de força reprodutora da separação.
Por isso finaliza com uma abertura para a esperança efetiva e concreta que o sonho
burguês obscureceu: a tarefa ainda por fazer colocada nas mãos do proletariado, o
verdadeiro sujeito da história tornado representação pelo espetáculo.

O desvio de Schopenhauer no título do capítulo IV faz sentido: o mundo como


vontade e representação – quer dizer, um mundo cuja essência, modelada pelas formas
232

aparentes através das quais se torna visível, não se constitui das imagens nas quais se
perde, mas esconde-se por trás da fachada que é sua expressão imediata e negação.
Assim o proletariado, cuja essência é a atividade que lhe torna o verdadeiro sujeito,
reduz às formas da representação que lhe desvia de sua verdadeira missão histórica. Há
aqui muito da influência de Lukács e de sua História e Consciência de Classe. O que
nos importa, no entanto é que na forma abertada obra, em seu dinâmico acabamento, a
possibilidade é figurada: ela realiza o conteúdo crítico, no movimento mesmo de sua
constituição estilística.

Assim, na última proposição a voz do autor, que vinha tecendo diálogos através
do desvio e da condução segura de sua inventividade crítica, assume a proposição e
declara:

S’émanciper des bases matérielles de la vérité inversée, voilà en quoi consiste


l’auto-émancipation de notre époque. Cette « mission historique d’instaurer la vérité
dans le monde », ni l’individu isolé, ni la foule atomisée soumise aux manipulations
ne peuvent l’accomplir, mais encore et toujours la classe qui est capable d’être la
dissolution de toutes les classes en ramenant tout le pouvoir à la forme désaliénante
de la démocratie réalisée, le Conseil dans lequel la théorie pratique se contrôle elle-
même et voit son action. Là seulement où les individus sont « directement liés à
l’histoire universelle » ; là seulement où le dialogue s’est armé pour faire vaincre ses
propres conditions. (DEBORD, § 221)

Lembrem-se que a concepção estilística em Debord é a realização de um desvio,


portanto, deve ser compreendida dialeticamente negando aquilo que afirma e
subvertendo aquilo que mostra. Assim, ao usar a estrutura da lógica hegeliana o desvio
do sistema nos exibe na imagem dialética o antiespetáculo de uma dinâmica crítica que
afigura a essência perversa da forma de dominação espetacular no próprio estilo que a
anula. Destrói por assim dizer o inimigo mostrando no interior de sua própria estratégia
a astúcia que ele desmonta: a astúcia da dialética compõe uma máquina antiespetacular
com a própria ideia do movimento de autoafirmação do espetáculo.

Há outra abordagem sistemática da história em Hegel que Debord desvia e,


através do desvio, liberta o tempo de sua prisão na linearidade de sua própria negação
enquanto tempo vital. O grande tempo dialético que se expande em movimento concreto
inaugura uma nova concepção não linear, não otimista, não ideológica da história. E isto
também é realizado por intermédio do estilo, da organização não linear nem abstrata do
texto que afigura em sua composição a ideia que supera na própria configuração formal.
Vejamos.
233

6.2 Sentido enteléquico da realização hegeliana e seu desvio

C'est dans cette lutte que chaque marchandise, en suivant sa passion, réalise en fait
dans l'inconscience quelque chose de plus élevé. (...)

le devenir-monde de la marchandise, qui est aussi bien le devenir-marchandise du


monde. Debord

Hegel considerava os grandes desdobramentos da história como uma evolução


progressiva da razão na direção da realização da ideia de liberdade. O fim da história
coincidiria com a realização das conquistas do tempo dispostas em linha evolutiva
através dos períodos que se sucediam. Nessa sucessão linear, um germe ideal desdobrar-
se-ia na direção de sua própria explicitação. Segundo Hegel,

Tudo o que acontece no céu e na terra; o que acontece eternamente, a vida de Deus e
tudo aquilo que se faz no tempo, tende somente em direção a um fim: que o Espírito
conheça-se a si mesmo, que se faça objeto para si mesmo, que se encontre, devenha
para si mesmo, conflua consigo mesmo. (HEGE,. A razão na Historia)

Apesar das várias vicissitudes históricas pelas quais a ideia da razão passava até
encontrar-se consigo mesma no final dos tempos, seu caminhar era sempre um avanço
e, mesmo seus retrocessos aparentes uma conquista. A razão se fazia através de suas
aparentes perdas, dos conflitos, injustiças e da violência. Cada evento sendo necessário
no caminho evolutivo da liberdade. Cumpre-se em Hegel a diretriz socrática, cuja
importância na determinação dos motivos presentes na obra do filósofo alemão nunca
foram suficientemente avaliadas. A máxima de Sócrates “conhece-te a ti mesmo”
(Gnothi seauton) resume o telos de toda a filosofia hegeliana e lhe dirige o trajeto como
processo histórico de conquista da liberdade através do autoconhecimento, com a
diferença que o Eu autoconsciente de Hegel não é o eu individual, mas o eu humano que
progride historicamente até a conquista de sua essência universal, realizando-se na
ideia. O fim da lógica coincide com o fim da história: ambas apontam para a superação
das diferenças vividas como contradições insuperáveis até a síntese final pela qual todas
as oposições são apaziguadas na concretude do absoluto.

A progressão é, desse modo, uma formação da consciência, e não simplesmente


quantitativa, mas uma série de fases de diferentes referências ao que é essencial eme seu
processo autônomo. Uma busca de si pela qual a potências da razão explicitam-se
gradualmente através da superação das oposições e do reconhecimento de sua própria
consistência como sujeito autônomo e livre. Portanto, a história universal representa a
234

gradação do desenvolvimento do princípio cujo conteúdo é a consciência da liberdade.


(...) [HEGEL, PP. 131-133]

As diversas fases desse desenvolvimento são apresentas por Hegel de forma a


concretizar a Ideia trazendo para o chão da experiência histórica o aparentemente
abstrato da concepção lógica. Aqui, na forma do pensamento dialético, a
autoconsciência ganha especificidade, sem perder em universalidade, ao encarnar-se no
processo histórico. Resume Hegel o trajeto nos seguintes termos:

A primeira época em que consideramos o espírito é comparável, portanto, ao


espírito infantil. Reina aqui a chamada unidade do espírito com a natureza, que
encontramos no mundo oriental. Este espírito natural é o que ainda se encontra na
natureza, e não junto de si mesmo; por isso, ainda não é livre, não saiu vitorioso do
processo da liberdade. Também nesta situação do espírito encontramos Estados,
artes, começos das ciências; mas todos eles se encontram no terreno da natureza.
Neste primeiro mundo patriarcal, o espiritual é algo de substancial a que se
acrescenta o indivíduo somente como acidente. À vontade de um pertencem os
outros como crianças, como subordinados.

A segunda condição do espírito é a da separação, da reflexão do espírito em si, a


saída da simples obediência e confiança. Tal situação divide-se em duas. A primeira
é a juventude do espírito; este tem uma liberdade por si, mas ainda conexa à
substancialidade. A liberdade não renasceu ainda da profundidade do espírito. Tal é
o mundo grego. A outra situação é a da idade viril do espírito, em que o indivíduo
tem os seus fins para si, mas só os alcança ao serviço de um universal, do Estado.
Eis o mundo romano. Aqui se encontra a oposição entre a personalidade do
indivíduo e o serviço perante o universal.

Em quarto lugar, segue-se então a época germânica, o mundo cristão. Se aqui se


pudesse comparar também o espírito com o indivíduo deveria chamar-se a esta
época a senectude do espírito. O peculiar da velhice é viver apenas da recordação,
do passado, e não no presente; e, por isso, a comparação é aqui impossível. O
indivíduo, segundo a sua negatividade, pertence ao elemento e desvanece-se. Mas o
espírito retorna aos seus conceitos. Na época cristã, o Espírito divino veio ao mundo,
pôs a sua sede no indivíduo, que agora é perfeitamente livre, tem em si uma
liberdade substancial. Tal é a reconciliação do espírito subjetivo com o objetivo. O
espírito reconciliou-se, fez-se um com o seu conceito, no qual se cindira em vista da
subjetividade, saindo para tal do estado da natureza.- Ora tudo isto é o a priori da
história, a que a experiência deve corresponder.

Estas fases são os princípios fundamentais do processo universal. [HEGEL, p.


131-133.]

Os conflitos em Hegel, por outro lado, ocorrem como antagonismos no âmbito das
lutas sociais, como confrontos de interesses opostos que devem ser conciliados para que
o trabalho da razão em sua tarefa histórica de construção da liberdade alcance o seu fim.
A universalidade da razão em sua história é levada ao extremo por Hegel. A ponto de as
conquistas e perdas individuais serem ofuscadas em nome da realização da Idéia
universal do espírito do mundo em seu trajeto teleológico.
235

O sujeito último da história, explica Marcuse, “é chamado por Hegel o Espírito do


mundo (Weltgeist). Sua realidade se condensa naquelas ações, tendências, esforços e
instituições que encarnam os interesses da liberdade e da razão”. [MARCUSE, P 214]
Marcuse esclarece que,

O verdadeiro sujeito da história é o universal, e não o indivíduo; o conteúdo


verdadeiro é a realização da auto-consciência da liberdade, e não os interesses,
necessidades e ações do indivíduo. “A história do mundo nada mais é que o
progresso da consciência da liberdade”. Contudo, “um primeiro olhar para história
nos convence de que as ações dos homens procedem de suas necessidades, paixões,
características e talentos; e nos dá a certeza de que tais necessidades, paixões e
interêsses são a única fonte de ação – os agentes eficientes neste palco de atividade”.
Explicar a história significa, pois, “descrever as paixões da humanidade, seu gênio,
seus poderes ativos”. Como Hegel resolve esta aparente contradição? Não se pode
duvidar de que as necessidades e interesses dos indivíduos sejam as alavancas de
toda ação histórica, e de que na história devesse ocorrer a realização individual.
Entretanto é outra coisa que se faz valer: a razão histórica. Ao seguir seus próprios
interesses, os indivíduos promovem o progresso do espírito, isto é, realizam uma
tarefa universal que favorece a liberdade. MARCUSE, P. 211-212.]

Hegel chamou de astúcia da razão o desenvolvimento da ideia através de condições e


eventos que lhe contradiziam.

(...) na História universal, o mais nobre e o mais belo é sacrificado no seu altar. A
razão não pode quedar-se no fato de indivíduos singulares terem sido lesados, os fins
particulares perdem-se no universal. A razão vê no nascer e no perecer a obra que
brotou do trabalho universal do gênero humano, uma obra que existe efetivamente
no mundo a que pertencemos. (HEGE. A razão na Historia)

A busca de autodomínio, de controle racional das paixões conciliadas no ethos


particular do sábio, torna-se o caminho histórico que conduz as forças sociais à
superação das paixões que a dilaceram rumo à conquista da liberdade e da emancipação
humanas na concretização da vida ética.

O cumprimento da potência como realização da Ideia coincide não com o fim da


história, mas com a perfeição para a qual tende o Espírito do mundo identificado com a
conquista de sua autoconsciência. Diz Hegel,

(...) Ao conceber a história universal, tratamos da história, antes de mais, como de


um passado; mas temos também de lidar simplesmente com o presente. O que é
verdadeiro é eterno em si e para si, não é nem de ontem nem de amanhã, mas pura e
simplesmente presente, "agora", no sentido do presente absoluto. Na Ideia conserva-
se eternamente o que também se afigura passado. A Ideia é presente, o Espírito é
imortal; não há outrora algum em que ele não existisse ou não existiria; não passou,
não pode dizer-se que ainda não é, mas é absolutamente agora. Afirmou-se já assim
que o mundo e a figura presentes do espírito, a sua autoconsciência, compreendem
em si todos os estádios anteriores da história. Estes desenvolveram-se
sucessivamente como autônomos; mas o espírito foi em si sempre o que é e a
236

diferença é somente o desdobramento deste em si. O espírito do mundo atual é o


conceito que o espírito de si mesmo elaborou (...). Assim devemos apreender a
história universal; nela depara-se-nos o trabalho do espírito, o modo como este
chega ao conhecimento do que ele é e o realizou nas distintas esferas por ele
condicionadas. (...) O espírito tem ainda em si todos os estádios do passado, e a vida
do espírito na história é um ciclo de fases distintas, em parte actuais, em parte
surgidas numa configuração passada. (...) Os momentos que o espírito parece ter
atrás de si tem-nos também na sua profundidade actual. E assim percorreu os seus
momentos na história, assim igualmente os deve percorrer no presente- no conceito
de si. [HEGEL, 153-154]

Desta forma, pode-se afirmar, Hegel ampliou o ideal de autoconhecimento


filosófico, que se impunha como projeto desde os gregos, ao plano histórico,
transformando a Weltgeschichte no drama do espírito em sua busca pela liberdade. Tal
busca coincide inteiramente com a luta da razão pela realização de sua potência no
processo de desdobramento da história do mundo. Junto com a Ciência da Lógica, a
filosofia da história de Hegel é, como tentamos demonstrar, o projeto mais abrangente
de um sistema compreensivo situado dentro dos limites da modernidade. Portanto,
dentro dos limites da consciência burguesa.
A crença no poder da razão torna-se muitas vezes em Hegel um impedimento à
compreensão dos desvios históricos e dos obstáculos que a razão mesma deveria
enfrentar se pretendesse construir seu reino em liberdade e justiça. Fica no domínio
ideológico das ideias legitimadoras de um estado de coisas intolerável. Chega a
argumentar contra si mesma para salvar-se de sua própria impotência. Reflete, assim,
uma esperança que inverte a ordem das coisas e a vê sob a ótica de um finalismo e um
otimismo certamente insustentável. Neste sentido é preciso uma astúcia dialética que
restaure a verdadeira astúcia da razão. Esta se dá pela subversão da razão invertida no
sistema, como queríamos demonstrar. Vejamos mais.

Em Hegel, a marcha de realização da ideia através de todas as fases pelas quais


ela se aproximava de si mesma e se reconhecia se fazia apesar das contradições
aparentes que lhe estorvavam o caminho. Compreendendo-se a razão via no “nascer e
no perecer a obra que brotou do trabalho universal do gênero humano, uma obra que
existe efetivamente no mundo a que pertencemos.” (HEGEL. A razão na Historia) Uma
obra da razão, não obstante se pense que coincida com a realização humana.

Uma obra progressiva e linear que se aproxima de sua consecução através de


todos os descaminhos pelos quais ela se realiza. No geral um caminhar progressivo que
atinge sua meta desde o início, quando se apresenta in nuce nas categorias lógicas e
237

históricas, desde sua aurora até o ocaso, quando, como o sol de Apolo em seu trajeto
ilumina as conquistas de Minerva.

Em uma imagem rica de significado, Hegel comparou os desdobramentos da


razão com a passagem do sol no horizonte desde a aurora até o crepúsculo, dividindo
metaforicamente em três fases históricas as três posições elementares ocupadas pelo
astro rei: o nascer, o meio dia e o crepúsculo. Tais movimentos espelhavam o próprio
movimento da razão em seu desenvolvimento histórico do ponto de vista da conquista
da liberdade.

No quadro geral do sistema enteléquico da história da filosofia, um evento que,


para Hegel não se desenvolve à margem da história, mas constitui o “centro da história
universal”, as etapas capitais da auto-libertação do Espírito, momentos de
desenvolvimento da ideia no tempo, que se iniciam no leste e terminam no oeste. A
história do mundo começa com os grandes impérios orientais da China, da Índia e da
Pérsia, depois se procura, após a vitória decisiva dos gregos sobre os persas, através da
formação dos estados gregos e romanos às margens do mediterrâneo e, enfim, se
completa com os impérios germânico-cristãos da Europa ocidental.

Em suma, Hegel considera que a Europa representa o oeste e, ao mesmo tempo, o


fim da história universal, ao passo que a Ásia é o leste e o início da história; e o espírito
geral do mundo é o sol que se eleva ao leste para se pôr a oeste. Neste movimento, o
Espírito realiza, através de duros combates, o aprendizado de sua liberdade. Então a
sentença medular da imagem finalista hegeliana: “O oriente sabia e sabe unicamente
que apenas um só indivíduo é livre; o mundo grego e romano sabia que alguns são
livres; o mundo romano sabe que todos são livres.” (HEGEL, Cit. Por LÖWYTH. P. 51.
Grifos nossos). Conforme comenta Karl Löwith,

A liberdade que pertence propriamente ao mundo germânico-cristão não representa


mais o arbítrio de um déspota isolado, ela não é também a liberdade dos gregos e
romanos nascidos livres, liberdade que supõe a escravidão, mas ela é a liberdade de
cada cristão. A história do oriente representa a infância da evolução universal, a dos
gregos e dos romanos é a sua adolescência e a sua maturidade – da mesma forma
que a de Hegel ele mesmo – realiza-se finalmente como fim último do mundo
germânico-cristão vive e pensa “na velhice do Espírito”. (LÖWITH, 1969, p. 51)

Assim a liberdade e a razão, como a coruja da filosofia, só cantavam ao


entardecer. Comparando com os progressos das grandes civilizações Hegel estabeleceu
três períodos autotélicos da liberdade em seu desdobramento histórico: a civilização
238

oriental, a civilização ocidental começando com a Grécia e o apogeu com a cultura


germânica, da qual ele e a sua filosofia eram os profetas.

A história caminha assim na direção da coincidência entre a os fatos que se


desdobram teleologicamente e a sua representação que amadurece na forma da própria
filosofia hegeliana. Esta seria, portanto, a expressão final e concreta de uma verdade que
se desenvolveria progressivamente através de suas várias categorias lógicas, de suas
figuras fenomenológicas e de seus vários momentos históricos até se revelar na forma
da eticidade vivida no mundo cristão e na filosofia, resumo enciclopédico e realização
na concretude da Ideia do caminho difícil e tortuoso seguido pela razão até sua
autoconsciência em liberdade. De acordo com o que argumenta Karl Löwith,

O fundamento último da construção enteléquica de Hegel reside na atribuição de um


valor absoluto ao cristianismo e à sua crença escatológica que faz de Cristo o início
e o fim dos tempos. Portanto, como Hegel recoloca a esperança cristã do fim dos
tempos no interior da evolução do mundo e o absoluto da fé cristã na Razão da
História, é lógico que ele conceba, então, o último grande evento da história do
mundo e do espírito como a realização do que estava no início. A história do
“conceito” é em realidade acabada em Hegel, que concebe retrospectivamente toda
a história “de lá até aqui” como a realização do tempo. (LÖWITH, 1969, p 52.
Grifos nossos)

O principio do acabamento governa igualmente o movimento de todas as formas


categoriais no sistema de Hegel, da grande Lógica à filosofia da história, que é
igualmente história da filosofia. Não importa que neste sistema fechado e acabado a
ideia do fim coincida com o princípio. De fato ela, a ideia, estabelece uma falsa
consciência do acabamento do tempo que não se realizou de fato; de um progresso do
conceito que não foi acompanhado pelo tempo histórico, mas que foi efetivamente
contaminado pela ideia de um tempo progressivo e linear, linear mesmo na
circularidade que tenta estabelecer, que acaba sendo uma ficção, sempre caminhando na
direção de seu fim. Neste fim, a história não se acaba, mas atinge o amadurecimento que
permite a realização, em máximo grau, das potências humanas que vinham lutando para
se atualizar e se realizar durante todo o processo histórico.

O tempo da história era o tempo abstrato dos eventos encadeados de acordo com o
fim, um fim que se conhecia apenas no interior de sua própria pseudo-realização após os
movimentos históricos culturais do iluminismo e das revoluções burguesas. No entanto,
sabemos que as conquistas que este tempo escatológico (refém do tempo abstrato da
produção e da determinação do valor do trabalho e das mercadorias) prometia não se
realizaram. A conquista das promessas do tempo pela filosofia naufragou na própria
239

ilusão do tempo prometido. A filosofia não se realizou e não se podia realizar porque
seu objeto havia caminhado por uma trilha que ela mesma não previra ou não enxergara
por estar demasiadamente contaminada pelas promessas do tempo. “O mentiroso mentiu
para si mesmo” porque se deixou arrastar pelo “processo autônomo do não vivo”.
(DEBORD, SE, § 2) neste sentido, “Il ne réalise pas la philosophie, il philosophise la
réalité”. (DEBORD, § 19) Mediante duas alusões a Feuerbach Debord sentencia:

(...) n'a pas dissipé les nuages religieux où les hommes avaient placé leurs propres
pouvoirs détachés d'eux : elle les a seulement reliés à une base terrestre. Ainsi c'est
la vie la plus terrestre qui devient opaque et irrespirable. Elle ne rejette plus dans le
ciel, mais elle héberge chez elle sa récusation absolue, son fallacieux paradis. Le
spectacle est la réalisation technique de l'exil des pouvoirs humains dans un au-delà ;
la scission achevée à l'intérieur de l'homme. (DEBORD, SE, § 20)

O sentido enteléquico da realização hegeliana esperava seu desvio. Quer dizer, só


poderia ser corretamente e completamente exibida em suas vulnerabilidades e limites
por uma reapropriação crítica de suas incoerências.

Revertida pelo estilo debordiano, a tríade histórica de Hegel naufraga no seu fim e
a filosofia mostra que ainda está à espera da realização. “Assim, a filosofia que termina
no pensamento da história só pode glorificar seu mundo negando-o, pois, para tomar a
palavra, é-lhe necessário supor terminada essa história total à qual ela reduziu tudo e
encerrada a sessão do único tribunal no qual pode ser proferida a sentença da verdade.”
(DEBORD, SE.)

6.3 Supressão e realização

Em termos situacionistas, desaparecimento do artista. É a supressão e realização da


arte. Hakim Bei

Portanto, o encerramento do tribunal implica na abertura de um novo processo


onde a sentença da verdade encontre sua resolução pela atualização da crítica, que não
pode mais congelar o texto na esperança de um tempo final. Deve abri-lo ao que virá
pelo desvio do sistema teleológico otimista, que era a figura do tempo aprisionado em
um esquema finalista simples que lhe era estranho.

A realização torna-se assim processo e rede de interconexões em que são postas as


possibilidades moventes de um sistema em deriva. Nele o tempo se liberta de sua
própria redução formalista. Realiza-se de alguma maneira pelo diálogo
240

interproposicional e intertextual que torna a linguagem dinâmica, não coisificada, mas


realizada como um amplo domínio de relações móveis centradas no sentido e não em
uma decisão exterior do poder.

A sua realização pelo desvio implicava em uma nova consciência do tempo


materializada no texto. Se o tempo enteléquico hegeliano era um tempo finalista que se
havia realizado, o tempo debordiano deveria ser o tempo complexo dos fenômenos
vitais em que a vida em todas as suas determinações concretas pudesse ser espelhada no
texto que, ao mesmo tempo, se integra à realidade social, aos momentos vitais
cotidianos. Ao contrário de uma linha apontando para um fim coincidente com o início,
a ruptura da linha através da criação de microestruturas de uma experiência da vida
cotidiana reinventada abre-se, na própria constituição dinâmica da forma descontruída,
aos movimentos concretos do tempo recuperado. Um tempo que não é sequencia de
eventos, que não se reduz à linearidade abstrata do tempo da produção, mas que se
expande e reflui, que se altera a partir das vinculações que estabelece entre a expressão,
o sistema e a realidade vital. É difícil enxergar o que se realiza aqui, mas deve-se tentar
o esforço. Observar a imagem móvel da experiência realizada pelos momentos vividos
em que se sobrepõem a concepção abstrata, sua inversão e, mediante esta, sua realização
pelo jogo de espelhos em que o movimento se determina. A reprodução do movimento
da vida em que se descontrói o sistema, reconstrói uma mecânica pela qual a vida
mesma é especulada nas contradições que compõe o processo total de sua concretude
histórica. Nem finalidade, nem circularidade, mas complexo de categorias articuladas
em uma máquina de destruição que revitaliza estrategicamente pelo domínio da arte a
linguagem reificada e a reconecta aos momentos integrantes do fluxo vital.

Desenvolver um arcabouço metodológico-estilístico que desafie o reducionismo


inerente na priorização da forma, função ou estrutura no interior do discurso filosófico
que não mais o remeta ao tempo-espaço espetacular da ideologia. Relacionar momentos
que consigam exaurir ao máximo o ato de estar vivo através do jogo, da guerra contra o
capital, o conhecimento real e a poesia. A articulação mais clara que o texto debordiano
realiza pode ser prevista em um ancestral filosófico da teoria dos momentos na última
doutrina de Leibniz do “vínculo susbstancial” (vinculum substantiale) entre mônadas.

Tomemos aqui as unidades proposicionais desviadas como mônadas integradas


em uma rede de relações e teremos uma ideia da libertação do tempo da vida do sistema
241

que o reduziu a tempo da produção. Aqui a linha do tempo tripartida se expande numa
rede de conexões dialéticas. Nela a proposição nuclear como momento predominante se
expande em proposições derivadas dialógicas que estabelecem uma rede de sentido na
qual não se aponta para um fim, mas em cujas relações o fim está à espera de sua
efetivação pela ação construtiva do leitor não espetacular. Os capítulos em deriva
constroem um espaço dialético no qual o texto hegeliano é reurbanizado pelo desvio,
deslocado de seu locus semântico pela reformulação de seu sentido, pela desconstrução
de suas unidades estíticas, pela mudança de sua direção. A descontrução linguística
aspira por uma presença que desaparece de forma progressiva de todsas as estruturações
de linguagem e sistemas de significação. (Cf.; HAKIM BEY, TAZ, P 12) Uma presença
elusiva, evanescente da forma desviada, sutil: “o Estranho Atrator ao redor do qual os
memes advêm, caoticamente, formando novas e espontâneas ordens.” (HAKIM BEY,
TAZ, P 12) Eles expandem-se e se interconectam, criam redes de significados, rompem
os fluxos predeterminados pelo tempo espaço da ideologia. Reconfiguram a forma
absoluta da consciência burguesa pelo desvio de sua constituição teórica, pela
desmontagem de seu sistema, pelo dialogismo da forma desviante.

Cette conscience théorique du mouvement, dans laquelle la trace même du


mouvement doit être présente, se manifeste par le renversement des relations
établies entre les concepts et par le détournement de toutes les acquisitions de la
critique antérieure. (DEBORD. SE. § 206. Grifos nossos)

Na dinâmica do estilo realiza-se a presença poética total da teoria crítica. A maior


astúcia da dialética.

La théorie critique doit se communiquer dans son propre langage. C’est le langage
de la contradiction, qui doit être dialectique dans sa forme comme il l’est dans son
contenu. Il est critique de la totalité et critique historique. Il n’est pas un « degré
zéro de l’écriture » mais son renversement. Il n’est pas une négation du style, mais
le style de la négation. (DEBORD. SE. § 207. Grifos nossos)

O estilo da negação que é crítica da totalidade e crítica histórica, vale dizer, crítica
do sistema que se faz mediante a inversão do sistema da história: sua supressão e
realização através da arte e da metafilosofia. A língua da contradição que deve ser
dialética na forma como no conteúdo. Que não pode conciliar-se com as separações, que
não deve se sujeitar às ilusões, que não se permite estagnar-se sob a forma de uma
“consciência infeliz do tempo”, que encontra na totalidade do sistema e da compreensão
histórica apenas a projeção ideológica de sua própria decepção prática.
242

O resultado, como apontamos acima,56 é a transformação não só da atividade da


leitura, uma vez que pressupõe a transformação da experiência do leitor, que o autor
espera, cujo resultado é a transformação de suas formas de ver e viver. Libertação do
tempo do discurso e libertação da consciência espacial do espetáculo.

Voltamos à dinâmica da deriva pensando o desvio como deslocamento das


fronteiras, descontrução do mapa, e construção de passagens intertextuais, através do
desvio das proposições dentro do desvio do sistema. O sistema como mapa
descontruído no qual se abrem novas passagens no contexto de uma obra acabada,
delineada em suas articulações e limites, mas aberta à novas intervenções
interpretativas, vale dizer, construtivas.

Se representarmos a forma de sistêmica de desenvolvimento da filosofia da


história, veremos o agudo contraste entre a máquina dialética em sua negação do tempo
histórico espetacular pelo estilo. Vamos à tríade hegeliana:

SOMENTE UM É ALGUNS SÃO TODOS SÃO LIVRES


LIVRE (Mundo LIVRES (Mundo (Mundo
Oriental) greco-romano) germânico-cristão)

No âmbito de um tempo concebido como linha, não se tem a liberdade realizada,


mas a reprodução do sistema e a perpetuação da separação sob a forma do planejamento
e da administração da vida, para os quais o tempo linear serve como instrumento e a
história como promessa. Ambos constroem uma referência ideológica que apaga a
experiência diferencial do tempo vital e a substitui pela do tempo do controle
econômico-político. Tempo universal e abstrato que domina os processos econômicos e
submete as consciências.

O desvio do sistema da história exibe na subversão da forma a forma do domínio


da ideologia e sua função reprodutora do sistema. Desmascara a ilusão da liberdade e da
autonomia e coloca na consciência crítica o peso inteiro da tarefa não cumprida. Mostra

56
Confere supra: “Autores a espera de um leitor”.
243

como a aparente linearidade da realização plena é repetição cíclica mesmo. O eterno


retorno do movimento das mercadorias, tornadas espetáculos que se produzem e
reproduzem sob o império da separação, o alfa e o ômega do espetáculo, segundo
Debord.

No interior desse movimento ninguém é nem nunca será livre. Somos apenas
componentes da mecânica do um jogo cujas regras não presidimos embora
movimentemos as peças todos os dias em nosso trabalho. A separação perpetuada nos
impede de saber e de ser os gestores de nossos próprios fins. Sendo assim constitui um
pseudo-sistema cíclico que se perpetua pela escravidão. A metáfora de Hegel é bela,
mas não coincide com a forma pela qual se desdobrou a história. Esta foi contida no
interior de um processo, aparentemente autônomo, desde que o capital passou a ser o
sujeito e o homem o objeto de uma força impessoal e universal de domínio.
244

SEPARAÇÃO (NASCER)

TEMPO ESPETACULAR
CONTROLE DA
HISTÓRIA (MEIO DIA)

REPRODUÇÃO
IDEOLÓGICA
(CREPÚSCULO)

Por intermédio da invenção estética uma verdadeira ciência e neste sentido, uma
ironia com Hegel que afirmou em sua Fenomenologia do Espírito:

A verdadeira figura em que a verdade existe não pode ser senão o sistema
científico dela. Contribuir para que a filosofia se aproxime da forma da ciência –
quando enfim poderá deixar de chamar-se amor pelo saber para se tornar o saber
real: eis aqui o que me proponho. (HEGEL, Ph. Gs.)57

Mas não um saber real apartado da vida, mas um saber da vida que reflui sobre as
determinações da vida e as ilumina por dentro, como faróis cuja luz delineia o contorno
das ilusões e os desmascara. Ali onde o saber encontra com a vida, a vida acha-se a si
mesma. No entanto, é evidente que por meio de um texto não se pode pretender viver a
vida concreta, mas pode-se encontrar num fragmento de vida, em suas expressões mais

57
“Die wahre Gestalt, in welcher die Wahrheit existiert, kann allein das wissenschaftliche System
derselben sein. Daran mitzuarbeiten, daß die Philosophie der Form der Wissenschaft näher komme--dem
Ziele, ihren Namen der Liebe zum Wissen ablegen zu können und wirkliches Wissen zu sein--, ist es, was
ich mir vorgesetzt." (HEGEL. Phänomenologie des Geistes. Köln: Anaconda Verlag, 2010, P. 12.)
245

arriscadas e amplas, um meio de reconduzir a consciência na direção da retomada de


sua tarefa esquecida.

6.4 Tempo do estilo e superação do espetáculo: retorno à vida cotidiana

Não se trata de colocar a poesia a serviço da revolução, mas sim de colocar a


revolução a serviço da poesia. É somente assim que a revolução não trai seu próprio
projeto. Não reeditaremos o erro dos surrealistas colocando-se ao seu serviço
quando precisamente ela não existia mais. Ligado à lembrança de uma revolução
parcial rapidamente abatida, o surrealismo se tornou rapidamente um reformismo do
espetáculo, uma crítica de uma certa forma do espetáculo reinante, conduzida no
interior da organização dominante deste espetáculo. Os surrealistas parecem ter
negligenciado o fato de que o poder impõe, para todo melhoramento ou
modernização internos do espetáculo, sua própria leitura, uma decriptação da qual
ele tem o código.

Guy Debord

O texto da Sociedade do Espetáculo promove em seu estilo, pois, uma nova


experiência do tempo. Um tempo radicado na dinâmica da exposição, quando as
proposições e os parágrafos críticos se conectam em um grau de complexidade que não
se pode mais chamar de estrutural; um tempo realizado não como sucessão, mas como
expansão, cuja configuração radical privilegia as relações entre unidades atômicas
desviadas, entre parágrafos articulados como presenças poéticas concretas compondo
um vasto desvio sistêmico. Um desvio de desvios, portanto. Uma composição fluida e
dinâmica que se processa como uma rede de interconexões proposicionais alusivas,
invertidas pelo desvio, sentenças revertidas, frases recuperadas em sentidos insuspeitos,
elusões tudo, enfim, funcionando no interior de um mecanismo diferencial composto
como vasto desvio.

Todos os referenciais se deslocam dentro da malha poética movente, se expandem


e se desdobram em possibilidades críticas. Pode-se dizer que no domínio de um vasto
desvio concebido como reversão do sistema da lógica e da história, a dinâmica
macrológica movimenta as unidades micrológicas num fluxo de expansão relativa que
preside a configuração de uma temporalidade materializada como superação da vivência
comum do tempo da produção burguesa.

O tempo dialético antiespetacular é o tempo concreto da experiência efetivamente


vivida, não um tempo cujo fluir apartado dos eventos serve de medida para o controle
246

do movimento por um poder que necessita de domesticar o fluxo e planejar o espaço a


fim de estabelecer os limites do possível, quer dizer, de uma experiência vital
impossível.

Restaurar a temporalidade real significaria então colocar a vida como sujeito no


interior de cujas relações a concretude da experiência pode ser recuperada, e os
elementos vivos libertos em suas possibilidades de se experimentarem como projetos de
vida inseridos no fluxo que os compreende, na complexidade das potências que lhes
determina sempre novas vias de realização. Uma revolução na forma concebida e
realizada como revolução total mediada pelo desvio, cuja função potencializa a crítica,
supera a arte e realiza a filosofia. A articulação expressiva das três instâncias em que se
tenta uma nova forma de criação do sentido, deve ser pensada em sua relação com as
circunstancias históricas em que se insere e contra as quais movimenta a máquina. O
leitor não espetacular deve concluir a síntese. O que tencionamos aqui.

Traçar o texto como um mapa psicogeográfico construído em função do desvio do


sistema de controle, das regras de contenção, significa libertar os fluxos não como
movimentos caóticos, não como dispersão e arbítrio, mas como expansão de vetores que
se deixam mover de acordo com as regras constantemente renovadas de uma
temporalidade que se afirma na própria vida de seus elementos em relações auto-
construtivas. O tempo imanente que se processa nas próprias relações criadoras das
possibilidades de transformação. Atento ao tempo da vida em direção a superação do
tempo da produção alienada, o texto constrói um estilo que não progride em linha reta,
um poema em progressão descontínua derivada dos desvios micrológicos, cujas relações
abertas abarcam o todo de um quadro antissistêmico desviante.

Uma imagem:
247

O quadro se compõe, portanto, de uma rede de conexões interproposicionais cujas


teses, por meios do trabalho ativo do desvio textual, compõe uma rede complexa de
conexões intertextuais. Micro sistemas críticos dentro de um antissistema. Não as coisas
nem os objetos-mercadorias, mas as relações constituem os pontos nevrálgicos do
complexo textual. Este não se organiza em hierarquias de categorias abstratas, não se
compõe como produto, mas se expande em redes de relações pelas quais o movimento
do concreto é atualizado pela dinâmica do estilo.

O estilo faz o que promete. No entanto, ele não promete, não se propõe como
método, apenas realiza na configuração do texto o movimento crítico que o conteúdo
materializa. As relações em rede consideradas em sua dialogia promovem o fluxo do
texto, o processo pelo qual ele restaura o tempo da experiência concreta e destrói a
linearidade abstrata do tempo instrumentalizado.

Emerge do estilo a máquina de guerra, se vale a metáfora, que destrói pelo desvio,
pela reconfiguração do espaço-tempo textual, os fundamentos da reificação e do
controle pelo abstrato criando o tempo do jogo e da criação das diferenças no âmbito
dialético da unidade real.

Através da reversão do poder persuasivo do medium – neste caso o Sistema – da


apropriação de sua força contra si mesmo (conceitos e proposições criticam o
248

argumento no qual se inserem e ressaltam seu próprio papel nele, e a função geral do
espetáculo em sua amplitude maior) constantemente o desvio contra-ataca a tendência
dos espectadores de se identificarem com o argumento lógico, com a estrutura verbal,
com as ideias afiguradas no texto, lembrando-os que a aventura real – ou a perda dela –
está em suas próprias vidas.

Além do mais, há algo que o desvio consegue que o aproxima da atividade


hodierna dos haktivistas. Se o leitor me permite uma comparação, o desvio, como o
haking, não é exatamente uma codificação, e sim um questionamento, uma modificação
do sistema, seja um sistema filosófico, um sistema de computador, seja um modo de
vida. Porém, a inversão produzida pelo desvio no sistema atinge um ponto fundamental:
ela questiona o sistema ao mesmo tempo em que expõe sua vulnerabilidade. Por assim
dizer, atinge um duplo propósito através de um simples recurso estilístico herdado da
arte de vanguarda. O que esta mesma arte não realizou, por esbarrar na astúcia do
sistema, que transformou suas invenções em produtos, neutralizando o poder
revolucionário das investidas estéticas, Debord parece conseguir ao potencializar a
crítica através da dinamização da linguagem pelo desvio, superando os limites da arte ao
mesmo tempo em que a realiza como revolução política. A poética como instrumento de
realização da filosofia; a presença concreta do texto em sua complexidade e construção
dialógica. A linguagem da revolução pelo desvio. E, observamos com Debord,

Toda revolução nasceu na poesia, fez-se de início pela força da poesia. Este é um
fenômeno que escapou e continua a escapar aos teóricos da revolução – é verdade
que não se pode compreendê-lo se se atém ainda à velha concepção da revolução ou
da poesia – mas que geralmente foi sentido pelos contra-revolucionários. A poesia,
lá onde ela existe, lhes faz medo; eles se obstinam a se desembaraçarem dela através
de diversos exorcismos, do auto da fé à pesquisa estilística pura. O momento da
poesia real, que “tem todo o tempo diante dela”, quer a cada vez reorientar,
conforme seus próprios fins, o conjunto do mundo e todo o futuro. (DEBORD. All
the King’s Men. Grifos nossos)

Ao reinstaurar o fluxo do sentido mediante o diálogo aberto com os referenciais


teóricos, afrontou o sistema em sua formulação dialética pela qual rompeu os vínculos
com o estado de coisas presente. As potências do discurso estavam libertas como
elementos críticos capazes de enfrentar o espetáculo em seu próprio território, tornando-
o vulnerável, abalando seus fundamentos ou simplesmente zombando de suas ilusões e
falsas promessas. A promessa do futuro continuava incólume dentro das possibilidades
da verdadeira criação, instrumento da revolução pela construção de um espaço à poesia
249

dentro da vida desencantada e instrumentalizada pelo sistema. Deixemos a palavra final


a Debord:

A poesia é cada vez mais claramente, enquanto lugar vazio, a antimatéria da


sociedade de consumo, porque ela não é uma matéria consumível (segundo os
critérios modernos do objeto consumível: equivalente para uma massa passiva de
consumidores isolados). A poesia não é nada quando ela é citada, ela pode somente
ser desviada (détournée), recolocada em jogo. O conhecimento da poesia antiga é,
de outro modo, somente exercício universitário, realçando funções de conjunto do
pensamento universitário. A história da poesia é somente, então, uma fuga diante da
poesia da história, se entendermos por este termo não a história espetacular dos
dirigentes, mas sim a da vida cotidiana, de sua ampliação possível; a história de
cada vida individual, de sua realização. (DEBORD. All the King’s Men. Grifos
nossos)

Retornamos assim à vida cotidiana, ao verdadeiro substrato das possibilidades


humanas que analisamos acima. É nela que se devem acertar as contas com as
solicitações do mercado, com as separações operadas pelo estranhamento da produção,
pela perda da posse das potências humanas efetivamente reais, e com as ilusões de
unidade que se disseminaram no cotidiano pelo controle político e pela invenção
ideológica de uma organização plana a e abstrata da vida. Organização que trai a vida
real, que a nega. Organização que se configurou em um sistema abstrato que a queria
compreender, mas que apenas reforçou sua banalização; que afastou cada vez mais seus
agentes e os submeteu a um domínio cego e alienante. A grande construção teórica
desviada seria então a restauração do cotidiano em toda a sua riqueza, a simplicidade de
sua riqueza sem distinções artificiais, sem as reduções e isolamentos dos lugares e dos
tempos organizados pelo poder: o resgate de um futuro possível no interior de um
presente impossível. Nosso ciclo se fecha. Nossa empresa crítica se define em seu
próprio circuito.

Devemos ensaiar adiante uma reflexão sobre a vizinhança metodológica entre o


desvio e o ensaio. Isso para finalizar o exame de todas as possibilidades e potências do
desvio em sua forma de ação teórico-crítica e resolver alguns mal entendidos que
possam advir de nossa abordagem.

Tentamos conceituar, até agora, o desvio como um tipo de poética reflexiva que
corrige, por intermédio de um contra-movimento especular, o sentido ideológico do
sistema, opondo a ele uma força imanente que se aproveita da forma apenas para revisar
suas vinculações históricas e inverter suas esperanças idealistas. O desvio do sistema
opera, assim, uma revisão na forma e, por meio dela, constrói um mecanismo de
produção de sentido pela negação daquilo que especula. Nele e por meio dele, vale
250

dizer, por meio de uma sintaxe da revisão estrutural, abre-se o espaço ao movimento de
significados purificados dos vínculos ao sistema global de produção do espetáculo.

No desvio global das estruturas de sustentação ideológica da cosmovisão


burguesa, totalizadas em sua mais arrojada concepção estética, articuladas em sua mais
alta pretensão lógica na forma-imagem do sistema filosófico, aquela que serve de
legitimação às finalidades mais ambiciosas e, no entanto, mais vazias de conteúdo e de
sentido histórico projetadas pela sensibilidade espetacular, a sintaxe da linguagem
insubmissa encontra a sua dinâmica revolucionária pela superação dialética dos limites
da forma contida na reapropriação crítica da forma desviada. Mediante a posição de
uma forma global desviante, que se afasta e corrige a totalidade da expressão que
critica, a dialética debordiana abre um espaço dialógico que não resulta da negação
direta nem, tampouco, da afirmação imediata, ambas parciais e acríticas, mas vive do
seu próprio movimento e se alimenta de sua própria invenção, que consiste na
reinvenção de um material preexistente do qual se serve para expressar os conteúdos
divergentes postulados pela razão insubmissa. Através de uma dinâmica da criação em
que se coloca a invenção estética a serviço da verdade, a expressão crítica recupera, pelo
desvio, o poder do negativo necessário à restauração da linguagem como expressão do
concreto.

Mediante a construção de uma ponte crítica entre a forma mais madura atingida
pela sintaxe filosófica, em sua busca pela superação dialética da representação abstrata e
da imagem artística, o desvio sistemático de Debord recoloca a filosofia no caminho da
criação poética, da arte como potência inventiva insubmissa e, com isso, resolve o
problema da banalização da linguagem e do esvaziamento da expressão filosófica
produzido por sua separação da esfera da experiência concreta da vida histórico social.
Se não é possível construir um novo sistema, se não se pode postular mais o vínculo
entre a expressão e seu conteúdo material como relação fundante da verdade, se a
linguagem perdeu sua função de expressar a diferença e a verdade do indivíduo, junto
com a banalização de sua forma simbólica nas mãos da ideologia, dos interesses do
controle político e da manipulação das mídias; se não há uma experiência exterior do
sentido a qual recorrer para recriar a possibilidade da crítica, talvez seja possível
mediante o desvio, abrir espaço a um novo movimento pela utilização consciente e
inventiva do velho. A diferença na repetição, o outro extraído do mesmo, a superação
os limites entre a teoria e a pratica a representação e o conceito, a arte e a filosofia. A
251

astúcia da dialética cria um novo universo de sentido a partir do corte, do recorte, da


reutilização corretiva do velho sistema de referências, do velho material colocado à mão
pela distribuição e consumo dos objetos.

E aqui, quem sabe, o desvio debordiano realiza sua maior astúcia: a construção de
um quadro não formal de referência teórico-prática elaborada como um grande
movimento desconstrutivo, dentro do qual as proposições desviantes assumem seu
significado pleno como micro-desvios integrados e suprassumidos no todo do
antissistema.

O desvio vive da tensão externa estabelecida com suas referencias negativas, as


quais insere em seu quadro de relações como componentes internos, e de suas tensões
internas geradas a partir de proposições desviantes que, por sua vez, se externam através
da potência negativa de suas relações críticas com o material do qual se apropriam.

Percebendo esse jogo dialético com a forma, mediante o que denominamos desvio
sistemático, através do qual Debord caminha no limite entre a reflexão filosófica e a
invenção literária, não podemos, por outro lado, deixar de estabelecer o vínculo entre o
que se coloca como tensão formal e aquilo que a própria forma problematizada carrega
como evidência de seu destino polissêmico e plural: a tentativa enciclopédica de revisar
a tradição filosófica em uma espécie de suma revisional e crítica que se anima de todas
as principais vozes do discurso dialético inseridos na máquina de guerra como
determinantes proposicionais desviadas.

Dentro do sistema desviado os desvios proposicionais colocam em diálogo as


diversas posições dialéticas refeitas e restituídas à sua dimensão crítica pela voz de um
autor onisciente que se manifesta no texto como um rapsodo a tecer as várias vertentes
de seu discurso composto de discursos de acordo com a trama problemática e fluida de
sua construção filosófica.

A linguagem dialética restaura sua potência expressiva pela via da invenção, pelo
caminho da criação literária. Assim, desfaz o equívoco de Hegel que considerava a arte
uma forma de expressão datada cuja representação havia encontrado seus próprios
limites, tendo de dar lugar à linguagem conceitual. Debord encontra, para além de
Hegel, o ponto exato em que a arte e a filosofia confluem em benefício da expressão
divergente, do discurso da crítica. Mobiliza-se a filosofia e se supera seu limite
252

conceitual e formal exatamente pela reanimação do discurso filosófico, por sua


revitalização através da arte. Parece que aqui o estilo de Debord encontra ressonância na
forma do ensaio. Não seria enganoso pensar assim?

Restam-nos então alguns esclarecimentos conclusivos. A vizinhança do


procedimento debordiano com a arte do ensaio é sugestiva. No entanto, devemos
observar que o estilo do desvio não se resolve senão ambiguamente como ensaio. O que
devemos enfim realizar em nosso movimento final. Acreditamos com isso ter esgotado,
até onde nos foi dado ir, nosso tema. Ter mostrado em todas as formas a astúcia da
dialética.
253

Capítulo 7. O desvio do sistema e o ensaio como forma

Olhe, eu não sou um filósofo, sou um estrategista.

Debord

Poder-se-ia encontrar aqui uma aproximação fácil entre o desvio do sistema e a


forma do ensaio. Mas em Debord nada é fácil. A ambivalência dialética do texto junto
com a fluidez da forma convida-nos a traçar paralelos que não se resolvem de maneira
linear e precisam ser matizados. Considerar o estilo debordiano dentro de um parâmetro
formal já seria trair o texto em sua configuração singular e única, além de limitá-lo por
meio de uma categoria abstrata que Debord rejeitava, da qual se distanciou em todas as
suas intervenções críticas e a qual subverteu em sua audaciosa busca de uma fluidez
dialética para a composição das proposições e do conjunto do texto em conformidade
com as estratégias do desvio.

O leitor poderia ser tentado a ver aqui uma forma ensaística de proceder da
dialética. No entanto, cabe notar que a “forma do ensaio” não parece, pelo menos
conforme conceitualizada por Adorno (ADORNO, O ensaio como forma.), coincidir
ponto por ponto com a “forma do desvio”. A experiência debordiana com o texto não
admite outro qualificativo senão aquele extraído diretamente de sua própria
configuração, percebido em seus próprios movimentos constitutivos, considerado em
sua natureza ímpar em, em alto grau, inqualificável. Quando dizemos inqualificável
apontamos para a importância de não se subsumir o desvio a nenhuma categoria, limitá-
lo por nenhum recorte conceitual externo ao seu próprio movimento ou mesmo tentar
qualificá-lo sob a marca de qualquer gênero discursivo ou literário.

Incluir a forma dialética do escrito debordiano a uma moldura que se considere


mais ampla ou abrangente que ele e o contenha seria limitar e separar aquilo que se
insurge contra limite e a separação em sua própria forma de organizar-se enquanto
configuração sintático-semântica singular, desde a proposição até a arquitetura global de
sua forma desviante. Fazê-lo, quer dizer, classificar, rotular ou mesmo considerar a
“forma do desvio” como se esta pudesse ser incluída em um conjunto maior e mais
amplo, ou como sendo a aplicação particular de algum procedimento geral, significaria
retornar aos parâmetros espetaculares que Debord rejeita e supera na própria
configuração singular de seu texto, vale dizer, recusa em sua posição política
254

insubmissa e refratária ao sistema das separações e supera, ao mesmo tempo, em seu ato
de discurso revolucionário, que estudamos até aqui em suas determinações essenciais,
através do exame do desvio proposicional e da mecânica global do desvio do sistema.

O que esperamos ter demonstrado até aqui é que Debord não rejeita pura e
simplesmente a totalidade como mediação necessária à realização de uma busca que se
materializa em um texto invulgar. Embora Debord critique radicalmente a estreiteza do
método científico de matriz positivista e se ponha em desacordo flagrante com a
positividade, que serve de princípio e, ao mesmo tempo, afigura-se como fim balizador
daquilo que a ciência burguesa postula, ao mesmo tempo sabe que a razão não se reduz
ao exercício de uma forma de conduta protocolar redutivista e não pode ser abandonada
como tal. E a razão dialética nos diz que a totalidade é uma mediação necessária à
realização adequada de uma transformação não só na forma do texto, mas na forma do
texto em conformidade com as formas da vida, que não perca a verdade como meta e
não isole os fios que atam o sujeito revolucionário ao seu objeto, tanto resultado como
princípio de sua experiência real. Lukács nos mostra que há uma dialética entre a parte e
o todo que não pode ser desconsiderada porquanto não se pode, obviamente, entender a
totalidade sem entender cada uma de suas partes, porém as partes só têm significado se
forem relacionadas com a totalidade. (cf. LÖVY, Entrevista, p 10) Embora busque uma
dinâmica expressiva que, como o ensaio, seja capaz de possibilitar uma nova forma de
expressão e de pensamento em conformidade com a singularidade da experiência do
sujeito, Debord jamais perde de vista que tal singularidade determina e está determinada
dialeticamente pelo conjunto da experiência histórico-social na qual se inere e da qual
busca se distinguir. Mesmo a revolução na forma que se pretende com o desvio não se
afasta, sob nenhuma hipótese, da revolução política: ela se instaura, com tentamos
demonstrar até aqui, no campo da ação e reflui sobre ele como determinação teórico-
prática de uma consciência da revolta que não se conduz pelo caminho de uma simples
submissão ao dado nem, tampouco, pela adoção ingênua de um método prévia e
universalmente estipulado. Portanto, nenhum texto dialético pode se construir a partir de
uma ideia formal, de um recorte metodológico ou mediante uma aproximação
positivista, em que se isole os fios e se separe as categorias particulares do momento
determinante universal que as inclui, em relação ao qual elas realizam sua singularidade
concreta.
255

Assim como o ensaio, o método, o caminho que se percorre, deve ser construído
em divergência com as circunstâncias históricas burguesas, representadas teoricamente
pelas ideologias de matriz positivista e estruturalista, que arrastam toda a tentativa
revolucionária para a órbita do espetáculo aniquilando, ou melhor, neutralizando sua
natureza insubmissa. Não há nenhum caminho prévio que se possa adotar como forma
de orientar a consciência revolucionária. O caminho deve ser construído juntamente
com as regras de articulação, no próprio processo, sempre complexo e difícil, de
construção do texto desviante. Tal texto, no entanto, busca, pelo desvio, a correção dos
descaminhos da investigação filosófica e da produção artística, através da revisão crítica
de suas principais realizações. Não se contrapõe imediatamente a elas, mas as desvia de
seus antigos itinerários, corrige seus erros, e as revigora e dota de um novo poder
expressivo pela mediação da ação criadora e crítica do sujeito em comércio dialógico
com as suas circunstâncias. A propósito, Adorno lembra:

Desde Bacon – ele mesmo um ensaísta – o empirismo, não menos que o


racionalismo tem sido um “método”. Nos processos do pensamento, a dúvida quanto
ao direito incondicional do método foi levantada quase tão-somente pelo ensaio.
Este leva em conta a consciência da não-identidade, mesmo sem expressá-la; é
radical no não radicalismo, ao se abster de qualquer redução a um princípio e ao
acentuar, em seu caráter fragmentário, o parcial diante do total. (ADORNO, Pp. 24-
25. Grifos nossos)

O caráter fragmentário do texto da Sociedade do espetáculo, embora se imponha


na primeira impressão e se evidencie na primeira leitura, não pode ser considerado
como uma acentuação do parcial sobre o total, o que o colocaria na órbita espetacular da
separação, reproduzindo as clivagens que animam a consciência científica refém da
lógica espetacular. A revolta da parte, o desvio da proposição, articula-se à revolta do
todo, o desvio do sistema, e movimentam uma obra articulada como um todo acabado,
uma investida ampla e totalizante contra a totalidade da vida alienada. Os fragmentos
proposicionais correspondem, de fato, a microssistemas especulares que se relacionam
entre si e, ao mesmo tempo, com a moldura contra-sistemática antiespetacular do texto
sem deixar nenhuma fissura que comprometa a mecânica pensada e realizada como uma
obra de arte total, na qual dialogam em constante deriva as várias vozes consonantes e
dissonantes alinhavadas pelo autor-revisor que domina completamente o trabalho que
executa. Colocar o parcial contra o total seria, mais uma vez, operar a divisão, acentuar
a clivagem, pensando segundo a lógica da disjunção e da reificação o que foi concebido
como diálogo aberto e fluxo verbal dentro de uma construção, em grande medida,
fechada pela consciência filosófica-estética do artífice que a elaborou.
256

A própria mecânica poética da presença do todo em confronto com o sistema


constituiu um movimento antiespetacular em que a força do espetáculo contrapõe-se e
se supera a si mesma. As qualidades que se evidenciam a uma leitura mais atenta são o
caráter enciclopédico da obra debordiana, a natureza sintética do texto, sua mecânica
lúdica e polêmica em que evoluem, através de um movimento dialético de auto-
superação, os fragmentos em diálogo com o todo: no conjunto não se pode afirmar que
a obra arquitetada a partir da lógica do desvio seja um exercício de autoafirmação do
indivíduo isolado, no qual os fragmentos se revoltam contra a totalidade opressiva.
Debord é mais sutil e muito mais consciente das astúcias do espetáculo para incorrer em
equívoco tão grosseiro. A dialética não pode ser pensada nem, tampouco, realizada sob
as regras da separação, nem sob o redutivismo do método. Nem mesmo pode conciliar-
se com um procedimento artístico que acabe se irmanando com a reificação. Se utiliza a
arte e investe o texto de qualidades estéticas, de uma presença poética marcante é
porque encontra no terreno da arte e do jogo os recursos capazes de dinamizar aquilo
que se coagulou sob a forma de discurso padrão, de normas comuns, de regras de
composição ou de caminhos predefinidos que canonizaram pela forma o que se deveria
erigir em confronto com os parâmetros reguladores formais externos.

A revitalização do pensamento pela arte não exclui, não contrapõe, mas dialoga
com as forças da separação e com suas antilogias e as suprassume num texto que é o
resumo enciclopédico de uma guerra contra o espetáculo levado a efeito no próprio
campo de batalha definido pelo espetáculo. A astúcia da dialética evita a incorreção de
se conciliar com a lógica insidiosa da ideologia, e o faz no campo de combate
antiideológico da dialética animada pelo desvio. Nesse ponto temos de concordar com
Adorno quando afirma que “embora a arte e a ciência tenham se separado na história,
não se deve hipostasiar o seu antagonismo.” (ADORNO, P 22)

O campo em que Debord trafega, em que exercita as evoluções de sua máquina


revolucionária, não se dispõe como uma moldura reguladora dos movimentos, mas
delineia-se mais como um terreno movente que acompanha, através da transformações
do todo, a dinâmica das partes em diálogo aberto com suas circunstâncias. Acolhe o
procedimento estético e sintetiza o trabalho da arte com a tarefa sempre difícil da
investigação filosófica, como meio de superar as divergências empobrecedoras que
anulam a vida do discurso em sua necessidade de inserção nos movimentos históricos
concretos da vida real.
257

A pretensão à verdade do discurso filosófico deve encontrar no procedimento


criador uma força capaz de permitir o cumprimento do que promete. Neste movimento,
o ímpeto criador da parte conjuga-se perfeitamente com e exigência da verdade só
atingida pela mediação do todo. Um projeto difícil e exigente ao qual Debord não se
furta. Se ele o realizou de fato não é matéria para discutirmos aqui. O que nos importa é
mostrar a força de sua proposta, seu modo de realização e a exigência dialética a que
seu texto se se vincula e cumpre.

Pisando conscientemente no terreno da arte, no qual ampara a visão da filosofia,


compõe pela mistura uma obra híbrida, que extrai sua maior virtude exatamente das
conexões planejadas, da crítica potencializada, do avanço do pensamento crítico em
conluio com arte que tal hibridismo permite. Se o leitor nos permitisse, diríamos que
Debord jamais se fechou em setores avessos ao diálogo e à liberdade de movimentos do
negativo. Jamais renunciou ao ímpeto de destruição sem, tampouco, deixar de lado os
projetos de construção. A destruição mediada pela arte é construtiva e a filosofia
dialética renovada pela linguagem dos fluxos e conexões atinge mais o seu propósito ao
não isolar os fios nem recusar as misturas; ao contrário da consciência da modernidade
com suas separações planejadas em vista da purificação metodológica. No entanto,
como percebeu Adorno,

(...) embora arte e ciência tenham se separado na história, não se deve hipostasiar
seu antagonismo. A aversão a essa mistura anacrônica não absolve uma cultura
organizada em ramos e setores. (...) Os ideais de pureza e asseio, compartilhados
tanto pelos empreendimentos de uma filosofia veraz, aferido por valores eternos,
quanto por uma ciência sólida, inteiramente organizada e sem lacunas, e também por
uma arte intuitiva, desprovida de conceitos, trazem a marca de uma ordem
repressiva. Passa-se a exigir do espírito um certificado de competência
administrativa, para que ele não transgrida a cultura oficial ao ultrapassar as
fronteiras culturalmente demarcadas. (ADORNO, P 22)

Embora a transgressão das fronteiras entre arte e filosofia, e o desrespeito com as


regras assépticas da sociedade dividida e, ao mesmo tempo, organizada segundo
parâmetros instrumentais de asseio e ordem bem definida, seja uma característica
comum entre o desvio e o ensaio, parece-nos forçar a barra querer ver em um texto com
as qualidades singulares do texto debordiano, que é efetivamente o caso da Sociedade
do Espetáculo, experimento único de construção dialética pensada e executada em todas
as suas dimensões, desde a proposição nuclear desviante até a arquitetura
antissistemática. Um evento único não se pode ver sob a ótica do típico, vale dizer,
através das lentes restritivas e generalizantes das qualificações espetaculares. Na própria
258

unicidade do texto, esperamos ter demonstrado até aqui, se revela uma estranheza
fundamental, uma força de distensão do sentido que se investe da dinâmica peculiar da
máquina dialética. Por isso termos usado designações originais e, muitas vezes,
estranhas, para abordar o texto de Debord. Acontece que não encontramos outro jeito de
entrar na máquina de guerra sem violar os próprios princípios que a sustentam. Por
exemplo, a ideia de uma forma como limite estrutural é absolutamente estranha a uma
empresa que se coloca em dissidência direta contra o formalismo. Que desmonta o
formalismo no próprio processo de construção dialógica do texto, para o qual o desvio
representa o procedimento determinante. Um desvio não constitui uma forma stricto
sensu. Deveríamos ser tautológicos aqui: o desvio é um desvio. Perceber o que ele é
significa encontrar o sentido da tarefa debordiana em seu próprio meio. O que fazemos
aqui.

Rigorosamente, para Debord a forma pensada como limite, não pode ser senão um
modo espetacular de proceder através do qual o espetáculo ocupa o texto impondo a ele
sua própria rigidez e abstração estrutural. Aqui poderíamos ver alguma coincidência
com Adorno. Em seu escrito O Ensaio como forma, Wiesengrund considera que o
ensaio, ao contrário dos gêneros e das categorias mortas que encapsulam o sentido das
singularidades moventes do texto, arruinando a possibilidade de se expressar a diferença
em seu próprio meio, “se aproxima de uma autonomia estética que pode ser facilmente
acusada de ter sido apenas tomada de empréstimo à arte, embora o ensaio se diferencie
da arte tanto por seu meio específico, os conceitos, quanto por sua pretensão à verdade
desprovida de aparência estética.” (ADORNO, Notas, p 18) O ensaio, nesse sentido,
apresenta-se como construção singular resultante de um ato de criação e afirmação da
diferença através da forma peculiar e única que, no entanto, não se delimita como
“forma artística”, não se deixa prender nas malhas das abstrações formais. Nas palavras
de Adorno, o ensaio não “admite que seu âmbito de competência lhe seja prescrito”.
(ADORNO. P. 16) Sendo assim, ele, o ensaio, deveria constituir uma espécie muito
peculiar de “forma sem prescrição”, vale dizer, de forma livre da forma através da qual
se permite ou se exige plena liberdade de construção de um texto que se define através
de si mesmo. Que vive em seu próprio elemento do qual extrai o movimento de sua
própria significação. Portanto, não seria lícito afirmar que o ensaio corresponde a uma
categoria tão geral quanto vazia e que, por isso, não nos diz nada? De Montaigne a
Adorno o ensaio foi experimentado de muitas maneiras e realizado em uma variedade
259

de formas tão distintas que fica difícil perceber alguma unidade temática ou estilística
em seu propósito. Isso se considerarmos os movimentos do sujeito montaigniano, os
fragmentos de Pascal58, as máximas de La Rochefoucault e Nietzsche, “a
superficialidade erudita de Sainte-Beuve” (ADORNO, P 19), os densos exercícios de
Adorno como pertencentes à mesma classe de objetos.

Mas o ensaio não é um objeto no sentido formal e não se define por antecedência.
Nele não se separa o ato da criação da coisa criada nem mesmo se contrapõe o sujeito
criador à sua obra. O anti-positivismo do “estilo ensaio” ensaia a própria morte das
classificações inertes e das disjunções forçadas e abstratas. O artigo de Debord, que
estudamos mais acima, Perspectivas de modificação consciente da vida cotidiana já
apontava para a necessidade da investigação filosófica – aquela que pretende atingir a
verdade acerca de seu tema – não postular nem realizar nenhum tipo de separação
forçada entre sujeito e objeto, que o sujeito mesmo deve se encontrar em diálogo aberto
com seu objeto para melhor compreendê-lo. Para tal ela, a filosofia, devia se apropriar
do procedimento estético como meio de promover um comércio não alienado entre
conteúdo e forma e, ao mesmo tempo, produzir uma ruptura radical em relação aos
protocolos estabelecidos pela razão normativa como balizas da investigação.

A ruptura com a ciência tradicional impõe-se como exigência da abertura do


diálogo entre conteúdo e forma e tal diálogo é estabelecido exatamente no contexto de
uma reapropriação crítica da forma e do protocolo, levando a uma revolução em seus
postulados niveladores. Mediante o desvio as regras do sistema são quebradas pela
subversão das normas que coordenam o seu jogo. Ele se desfaz ao ser inserido em outro
contexto de regras que ressignificam suas relações e significações normais. Eis o desvio.
Ele deve, por assim dizer, trazer o evento sintático para dentro de sua perspectiva e
modificá-lo como condição do confronto mediado pela invenção estética e pelo jogo,
através do qual é superada a perspectiva da separação e do isolamento que a rigidez do
sistema instaura.

A forma de aproximação à verdade e a necessidade de dar voz à totalidade a fim


de não trair o real em sua manifestação concreta, na articulação global de suas

58
Embora tenha tentado vários arranjos Pascal jamais chegou a atinar com uma forma definitiva para seus
escritos. Debord, ao contrário, organizou seu texto de uma única vez e jamais alterou o que havia feito. A
Sociedade do Espetáculo constitui, neste sentido, um texto pronto, um conjunto de proposições e de
ensaios articulados no interior de um mecanismo dialético definitivo. A abertura que possui é de outra
natureza, não a do inacabamento.
260

determinações ontológicas fundamentais, constituía uma exigência estilística colocada


desde o início por Debord como condição fundante para a construção de um mecanismo
crítico que se movimentasse contra as contraposições falseadas pela positividade
fabricada e ilusória. Como notou Adorno59,

Também aqui como em todos os outros momentos, a tendência geral positivista, que
contrapõe rigidamente ao sujeito qualquer objeto possível como sendo um objeto de
pesquisa, não vai além da mera separação entre forma e conteúdo: como seria
possível, afinal, falar do estético de modo não estético, sem qualquer proximidade
com o objeto, e não sucumbir à vulgaridade intelectual e nem se desviar do próprio
assunto? Na prática positivista, o conteúdo, uma vez fixado conforme o modelo da
sentença protocolar, deveria ser indiferente à sua forma de exposição, que por sua
vez, seria convencional e alheia às exigências do assunto. (ADORNO, P 18. Grifos
nossos)

A forma não deve ser como não é indiferente ao assunto. De fato ela diz tudo
sobre ele e o realiza. No entanto, há que se notar que a própria ideia da forma como
elemento definitório do sentido restringe a expressão às exigências espetaculares do
protocolo. Inserem a tentativa da crítica em um sistema de regras exteriores ao seu
movimento constitutivo (que deve ser sempre singular) que a torna neutra e a aniquila.
Portanto, mesmo a forma deve ser desconstruída em seu próprio benefício. Ela deve ser
utilizada como um contraplano dialógico sobre o qual se projeta a diferença que a nega
e a supera dentro do próprio enquadramento que ela cria. A forma sobreposta à forma
extrai efeitos do limite autoimposto que leva à transcendência absoluta da separação e
da limitação, da clivagem conteúdo-estrutura, do recorte metodológico apriorístico e
nivelador. A sobreposição realiza, no interior das balizas definidas pelo inimigo, a
superação dos limites que ele mesmo instaura e, assim, abre ao significado um novo
espaço dentro do diálogo crítico entre os significantes. Não se tem aqui uma negação
imediata, mas uma negação mediada pelo comércio crítico com o todo. Duas totalidades
em confronto do qual emerge o novo conteúdo ligado à forma divergente, que esta exibe
em sua presença poética dialeticamente construída. O desvio mostra que mesmo o
modelo protocolar da sentença e do sistema serve de veículo à reconstrução dialética da
linguagem em seu comércio com a verdade, com a expressão do concreto e com seu
compromisso com a totalidade. Mais uma vez, a astúcia da dialética.

O desvio realiza, mediado pelo espelhamento do sistema, uma desterritorialização


da forma global constituída como matriz absoluta do sentido. Dota o sistema de um

59
Neste ponto devemos observar que a crítica adorniana vai de encontro à perspectiva debordiana e a
confirma.
261

novo sentido e com isso o eleva a uma nova significação. Redirecionamento e


ressignificação substituem a forma e o conteúdo: insuflam conteúdo vital no discurso,
restaurando o movimento da linguagem não reificada que acompanha o movimento da
vida e o especula.

Podemos mesmo afirmar que em sua aparente extraterritorialidade se encontra sua


maior virtude, uma vez que ele não se prende a nenhuma predeterminação positiva nem
se deixa capturar em nenhum gênero? Pois o texto invadido pela ação do desvio e a
forma submetida à corrosão de sua estrutura pela inteligência dialética que a
desconfigura a fim de penetrar em seus motivos internos e fazer fluir, a partir da
subversão de seu destino, a verdade que se ocultava por trás do véu ideológico que a
forma escondia, como quisemos mostrar em nosso exame do desvio do sistema, não se
caracteriza como ensaio a não ser por aproximação, por uma espécie de ar de família ou
parentesco que compartilha com a forma ensaística. Não se pode pretender aproximá-lo,
no entanto, daquilo que Lukács pensava como ensaio ao caracterizá-lo como arte
concebida como forma, como um desafio para a forma que se ocupa dos fatos vitais e os
transmuta através da formulação artística. A questão em Debord é muito mais aguda
investindo contra a pretensão positivista que ainda parece permear o texto lukacsiano
“que não aceita considerar como filosófico senão aquilo que se reveste da dignidade do
universal, do permanente.” (ADORNO. )

O universal permanente, tomado como algo estável, que pode ser nomeado pelo
texto, separa a concepção do teor revolucionário da criação, inserindo a tentativa de
ruptura radical no domínio da lógica espetacular com suas separações e mediações
alienantes. Neste sentido, a proposta do desvio afasta-se da natureza formal do texto
ensaístico uma vez que pretende fazer fluir a linguagem petrificada pela ação
espetacular da consciência alienada sem conciliar-se com qualquer predeterminação
genérica. O gênero ou a forma tomados como limites da formulação, determinando o
que se deve estruturar de acordo com um recorte externo que fixa a sua natureza e
define, de um vez por todas, seu território coincide com a maneira pela qual o
espetáculo submete a inteligência criadora a ingerência alienante de seus protocolos, de
suas normas estranhas á vontade criadora do sujeito insubmisso. Externar uma lei que
determine a articulação e a configuração formal do texto, corresponde a uma aceitação
da existência de uma regra de composição que fixa de uma vez por todas as direção da
criação e a aniquila. O “texto dialético” que se deixa modelar passivamente por uma
262

ideia previa de método ou de forma, aceita passivamente o postulado positivista, que


deveria, por outro lado, combater pela própria articulação não espetacular de seus
elementos organizados. Portanto, deve-se fundar na divergência absoluta criada pelo
comércio crítico com as formas subvertidas pela ação desviante da máquina de guerra
dialética; pela astúcia da dialética.

Seja ela linguagem comum, forma artística, ou sistema filosófico, qualquer


fórmula expressiva pode ser captada pela força do espetáculo. Nem a arte nem a
filosofia estão imunes ao que se dissemina no cotidiano, uma vez que não são senão
expressões do cotidiano sob diversos matizes e formas. Aliás, são formas de expressão
pelas quais se eleva, muitas vezes, as forças que se apoderam do cotidiano a um grau de
abstração tamanho que, aquilo que se tornava visível em sua aparência imediata é
obscurecido pela falsa dignidade da forma. Da forma apartada da vida, estabilizada e
segura que retorna sobre a vida e a normaliza com sua falsa segurança.

O protocolo que governa a vida reificada retorna sobre ela e a confirma através de
sua expressão banal.

O terreno do comum instaura-se como parâmetro orientador do sentido e


confirmador da adequação da forma expressiva.

Sob a capa teórica do discurso difícil e sofisticado a filosofia pode esconder uma
sensibilidade muito comum que se eleva acima de si mesma sem deixar de ser aquilo
que originariamente era. Aliás, sua expressão sistemática parece apenas conferir
credibilidade a um discurso que se mostra na imediatez de sua configuração formal
como evento acima do comum que, não obstante, apenas confirma a lógica que se
apoderou do comum. Neste sentido, o desvio debordiano, operando o redirecionamento
da forma e a recuperação do significado que se move ao ritmo da dinâmica discursiva
que o orienta, recusa a lógica do espetáculo e, ao mesmo tempo, a transgride e supera,
sem se deixar apanhar por sua astúcia.

Desde a proposição até a configuração universal do texto, a linguagem é


reorientada pela dinâmica do desvio através da qual se põe em movimento dialético.
Através desse movimento realiza, na direção que estabelece a tensão entre o todo e as
partes em diálogo, a linguagem como ação e presença poética perpetuamente recriada
em cada ato de leitura. O sistema é abordado pela ação desviante que o revoluciona. Em
263

confronto com a forma, o desvio serve-se do universal como meio de promover aquilo
que o universal negou, quando se realizou como totalização das forças que se
apropriaram do cotidiano.

Neste sentido, o sistema não poderia ser pensado como a forma universal do
conjunto das relações alienadas que se elava do cotidiano e impõe sobre o cotidiano a
sua própria fantasia de unidade? Quebrar a rigidez do sistema em sua falsa promessa de
unidade e sentido não significa restaurar a consciência da perda através da superação de
sua forma abstrata? Restaurar o movimento do vivente através de um longo desvio que
se serve da força alienada do cotidiano como ponte para reunir, sob o ditame da
consciência desiludida, a possível restauração do que no cotidiano se mostra como
negação? A desapropriação do sistema, o roubo de sua lógica ilusória não seria a astúcia
suprema da dialética em seu projeto anti-espetacular? O combate contra a totalidade
levado a efeito através do desvio da totalidade e não mediante à sua renúncia?
Desviando o sistema Debord poderia atingir o sentido universal que se oculta sob as
várias formas de totalização do sentido apresentadas historicamente como tentativas de
concreção da linguagem fracassadas. Na modernidade a maior delas, que resume todos
os esforços anteriores em uma grande síntese foi a de Hegel. Também ela não foi vítima
do espetáculo, na medida em que se vinculou, de certa forma, ao otimismo burguês que,
sob a máscara do sistema, cantou a sua própria glória? O sistema da lógica e o sistema
da história enquadravam o drama da razão como um esforço histórico realizado; como o
avanço de uma potência universal que já havia chegado ao seu destino e cumprido sua
tarefa. Punha-se, portanto, como um tipo muito especial de ingenuidade romântica que
servia, sem querer, aos interesses específicos de uma determinada classe. O sistema
total resolvia-se em ideologia total.60

Ao contrário, a força do desvio endereça sua potência contra todas as formas da


alienação, contra a alienação da forma, vale dizer, contra o universal alienado que se
configura como falsa consciência espetacular amparada na projeção ideal do sistema.
Ela precisa assim de um alto grau de organização aliado a uma grande potência
destrutiva para realizar-se como sentido e revolução. Não se define de modo nenhum
pela fórmula, nem pela forma, mas pela dinâmica da máquina de guerra. Não se define

60
Convidamos o leitor a um exame da Crítica da filosofia do Direito de Hegel empreendida por Marx,
onde se pode encontrar um desenvolvimento crítico bastante frutífero do que afirmamos.
264

senão por sua própria peculiaridade. Se considerarmos o ensaio como forma não se
define, então, como ensaio.

Mesmo se retrocedermos a Montaigne, encontraremos diferenças essenciais entre


o estilo do desvio e o ensaio. Para começar, Debord não canta a passagem, ele canta o
espetáculo que é uma forma invertida do Ser. Sendo assim, seu objeto se apresenta não
como uma simples aparência, nem tampouco um simulacro, ou mesmo uma realidade
insubstancial. De fato o Espetáculo é, como esperamos que tenha ficado claro até aqui,
uma realidade opressiva constituída por imagens que se articulam em uma totalidade
sistemática cuja força de controle se expande desde as forças econômicas até as
representações ideológicas.

Esse sistema constituído por mediações econômicas e sociais invertidas não é


ilusório, ele representa de fato uma força que não se percebe com facilidade, mas que
possui eficácia e existência real. Não é transitória, uma vez que se reproduz mesmo
através de suas transformações; não é dialética, no sentido de que se mantém como
identidade sob as suas diversas formas de manifestação, pelas quais se reproduz como o
mesmo; (repete o mesmo canto sob diversos disfarces); constitui uma pseudo-unidade,
porquanto seu efeito fundamental consiste em separar e, simultaneamente, produzir na
representação a sensação, a impressão de unidade. Esse “anti-ser” sutil e insidioso é o
que Debord canta. No entanto, o seu cantar não compõe uma constatação, mas numa
tentativa de diagnose destrutiva de seu objeto. O que ele afigura na própria “anti-forma”
de seu texto desviante, como esperamos ter demonstrado.

É difícil assumir isso hoje com todo o policiamento ideológico exercido pela
experiência pós-moderna em relação a totalidade e o sistema, mas é impossível concluir
outra coisa quando se lê detidamente Debord: a fluidez do inacabamento não faz parte
de seu texto, não condiz com sua forma de composição. O movimento que instaura e a
fluidez que recupera são os das categorias em relação dialética pela qual se apreende a
vida do todo. Uma empresa hegeliana e marxiana. Em sua crítica do método da
economia-política Marx apontava, exatamente na impossibilidade de atingir o concreto,
portanto de superar o reino ilusório das abstrações, o grande defeito do método dos
economistas ingleses. Marx propunha como verdadeiro método da dialética aquele pelo
qual as categorias do pensamento apreendem as categorias do ser em suas relações
históricas concretas.
265

A dialética canta o ser, não a passagem. É temerário dizer isso, mas não há outra
forma de entender Debord. Ele mesmo afirmou, e relembramos aqui, na introdução à
edição italiana da Sociedade do Espetáculo que não mudaria uma palavra do que tinha
escrito porque as condições históricas não haviam mudado substancialmente a ponto de
exigir uma alteração da perspectiva crítica.

Às vezes o anseio superficial pela mudança constitua uma forma espetacular de


observar a transformação. Um modo de consumir a novidade sem se ocupar em
determinar o que é de fato novo e o que se repete sob a aparência da modificação.
Apreender o verdadeiro movimento e fazê-lo mediante a construção de uma dinâmica
textual que acompanhe realize e supere na forma o próprio movimento que tematiza. Eis
a forma do desvio.

7.1 Abertura ensaística e abertura dialética

A arte de escrever livros ainda não foi inventada. Está, porém, a ponto
de ser inventada. Fragmentos desta espécie são sementes literárias.
Pode sem dúvida haver muito grão mouco entre eles – mas contanto
que alguns brotem. Novalis

Por outro lado, cumpre observar, Montaigne insere-se em um momento histórico


no qual se observa um esforço, que talvez culmine em Descartes, de construção do
sujeito. O mesmo sujeito que se encobria na idade média, conforme terminologia de
Foucault (...), revela-se finalmente como um importante fundamento para a construção
de uma nova concepção da tarefa histórica da filosofia, desde então amparada na razão e
na subjetividade. Debord não participa evidentemente desse movimento que acompanha
a emergência do ensaio como estilo que melhor se adequa às solicitações de uma
subjetividade em processo, em um esforço oscilante de autoconstrução. “Um projeto
desordenado e extravagante, bizarria”, conforme admite o próprio Montaigne. Pois,
“trata-se aqui do projeto de tomar-se a si mesmo como tema e como assunto”
(TOURNON. Montaigne, p.??). Uma errância intelectual em busca de um sujeito
impermanente em formação, sempre em fuga e a ponto de se perder; prenunciada pela
afirmação montaigniana da heterogeneidade de cada experiência humana. Esse
subjetivismo em processo de construção, cuja radicalidade da mirada constituirá o foco
a partir do qual a modernidade definirá seu território, não coincide com a perspectiva
dialética, na qual se articula o sujeito às suas determinações histórico-sociais.
266

Corresponde a um momento fundante, mas superado, da constituição de um suporte ao


conhecimento contrário ao substancialismo realista do final da Idade Média. Se este
orientava-se para fora, na direção do objeto, cuja determinação ontológica buscava
captar, a modernidade apoia-se no “eu cartesiano” sobre cujas bases edificará a
perspectiva gnosiológica idealista, contrária à direção tomada pela cultura clássica. 61 No
trânsito entre esses dois momentos situam-se os esforços de Montaigne às voltas com as
incertezas de sua subjetividade cambiante.

A forma do ensaio em Montaigne acompanha essas oscilações de um sujeito que


se apresenta sempre sem artifícios e em estado de construção; assim a importância e o
caráter peculiar dos acréscimos que ele foi incorporando ao texto, como nos informa
Rosa Freire D’Aguiar, “desde que escreveu o primeiro ensaio, por volta de 1571, até
morrer, em 1592, mostram que seu projeto não parou de evoluir e se adensar ao fio das
edições.” (D’AGUIAR. Os ensaios, de Montaigne, in: MONTAIGNE, Ensaios, p 31)

Uma das principais características formais do ensaio montaigniano é que ele não
possui forma, senão aquela que vai conquistando ao longo de um processo aberto em
que não se vislumbra nenhum fim, não se admite nenhum acabamento. O ensaio evolui

61
Em benefício da clareza podemos identificar aqui duas principais fases no desenvolvimento histórico
do pensamento filosófico: uma caracterizada pelo primado do objeto e pela busca consequente do
fundamento subjacente à ordem do mundo (ontológica, portanto), diante da qual a consciência curiosa se
colocava na posição de uma potência intermediária, denominada por Platão metaxy, que tentava encontrar
uma forma de dirigir-se ao segredo que lhe transcendia, através da construção de uma linguagem em cuja
estrutura esse mesmo segredo se revelava; outra caracterizada pela interiorização e subjetivação da
consciência com Descartes, culminando na Crítica da Razão Pura Kantiana, marcada pelo primado do
sujeito cognoscente como força ativa a modelar o objeto do conhecimento e suas relações de acordo com
suas próprias formas e categorias espirituais estruturantes (gnosiológica, portanto).
Em um terceiro momento a crítica hegeliana a Kant, entendida, muito rapidamente, como uma síntese na
qual se salvavam as duas posições anteriores sem que se perdessem os dois momentos necessários à
construção histórica de nossa forma de ser e de conhecer. O pensamento hegeliano pode ser
compreendido como a autoconsciência da modernidade na qual a antiguidade e a Idade Média foram
salvas integralmente mediante o diálogo onto-gnosiológico em cujo interior as separações são superadas e
a consciência, reconciliada com o objeto, realiza-se, enfim, como tarefa histórica e movimento
autoconstrutivo. (dialética)
A transcrição da vida e da experiência humanas em conceitos filosóficos configurados como momentos
necessários ao trabalho autônomo da consciência, que Hegel inicia na Fenomenologia do Espírito,
corresponde a um esforço que culmina na Filosofia da História e da Religião, sendo abrangidos em sua
forma mais abstrata e universal pelo Sistema da Lógica. História, religião e direito se interligam na
concepção dialética, que se move de maneira nova e abrangente de modo a totalizar os conteúdos da
experiência como verdades profundas de nossas vidas, não somente por meio de histórias e
representações, mas, também, por meio de uma estrutura conceitual publicamente acessível a todos. e,
como um entendimento partilhado da experiência, pode fornecer a base de uma vida em comum.
A síntese é alcançada quando, enfim, o Espírito de braços abertos unificar os planos. Após realizar todo o
trajeto de sua paixão, a consciência individual (sujeito) estará novamente ligada à experiência social
(objeto) como a representação da essência de sua liberdade, na qual ela mesma se reconhece e com a qual
ela se harmoniza. Chegamos ao reino da “eticidade” – comunidade ética (Sittlichkeit) e da liberdade
concreta realizados no Estado e na ordem normativa do Direito.
267

com o sujeito que o redige acompanhando as peripécias de uma subjetividade aberta às


descobertas que lhe determinam a natureza movente e incerta. Não declara o autor que
ele mesmo é a matéria do livro que escreve (MONTAIGNE, Ao leitor, p 37) , e que por
isso aconselha cautela ao leitor que se aproxima de “assunto tão frívolo e vão”
(MONTAIGNE, Idem)? Segundo Auerbach, nos movimentos do ensaio de Montaigne
“Os dois temas que se entrelaçam são premissa menor e conclusão do pensamento
principal: sou um ser que se modifica constantemente, logo devo também adaptar a
representação a este fato.” (AUERBACH, Mimesis, p 253. Grifos nossos)

O ensaio aparece, assim, desde o princípio, como uma construção que, por se
adequar a natureza do objeto que representa, quebra a moldura do tratado teórico.
Polimorfo e móvel o ensaio,

(...) elaborando a cada vez um novo ponto de vista, uma nova particularidade, uma
nova imagem, de tal forma que o pensamento irradia em todas as direções. (...) Isto
está em relação com a maneira segundo a qual ele está empenhado em apreender o
seu objeto, isto é, a si próprio (...) trata-se de uma constante audição das vozes
mutantes que ressoam dentro dele, e vacila, no seu nível, entre a ironia com
segundas intenções, um pouquinho presumida, e uma seriedade muito enérgica.
(AUERBACH. Mimesis, Pp. 244-255)

Debord, ao contrário, opera outro movimento de quebra da moldura através do


desvio. Não como o ensaio que acompanha as modificações do sujeito, mas como um
mecanismo regido por leis próprias que alcança a verdade de sua forma pela inversão da
forma protocolar da qual se apropria, não pela abertura em direção a um processo sem
fim de modificação de uma forma derivada das oscilações e vacilações do sujeito, que é
seu objeto, mas através do agenciamento com uma forma preexistente que desvia, sob
cujo efeito são restabelecidos os fluxos do sentido em torno de um centro dialógico, de
uma bifurcação e de uma deriva da forma.

A “estrutura dialógica” que se cria a partir dai não corresponde nem a uma forma
abstrata fixa, nem tampouco a uma deriva sem rumo. Consiste na execução de um
projeto de construção cujo acabamento cria a abertura em função do diálogo
desconstrutivo com as estruturas que “ironicamente imitam”, cujo sentido e organização
subvertem. Sendo assim, a obra está pronta. Não há o que acrescentar. Nenhuma
mudança a ser feita. Não afirma Debord que ele não é um autor que se corrige em sua
Advertência da edição francesa de 1992 da Sociedade do Espetáculo? “Não costumo
corrigir meus textos”, declara Debord e conclui: “uma teoria crítica como esta não se
268

altera”, pelo menos enquanto não forem destruídas as condições gerais que ela foi a
“primeira a definir com precisão”.

Definir com precisão é tudo o que o ensaio montaigniano não persegue ou não crê
ser possível, porquanto seu objeto não deixa de se modificar, de aprender
constantemente novas perspectivas e novos ângulos de si mesmo em confronto com
suas circunstâncias, que a forma do ensaio acompanha. As circunstâncias em que se
encontrava Debord, no entanto, não se alteravam substancialmente; ao contrário,
mantinham-se através de um processo de reprodução em que o mesmo aparecia sempre
com as vestes do outro. E o texto debordiano atento às astúcias do espetáculo, não
poderia acompanhar seus movimentos ingenuamente, aderindo de forma acrítica às suas
oscilações. Deveria, como de fato fez, perceber a astúcia de um mundo que não muda e,
não obstante, parece ser sempre outro, investindo contra ele a dinâmica crítica de sua
dialética, cuja função fundante é destruir o espetáculo ao exibir sua mentira. Não
acompanhar o objeto em suas oscilações, mas desvendar o objeto e suas ilusões de
unidade. E esse objeto não é um sujeito em construção, mas um sujeito à mercê do
engano, que não pode confiar nem, tampouco, refletir sem mediações críticas globais o
sistema material que lhe submete e desnatura junto com a ideologia que o sustenta. O
que ensaia Debord é um combate contra a totalidade do existente alienado. Diagnose
crítica e desconstrução em um mesmo ato de linguagem revolucionário anticapitalista.

De fato, o mundo de Debord observa a desconstrução do sujeito e a renúncia à


racionalidade em nome de um relativismo tão providencial quanto problemático.
Permite-se aqui um paralelo quando se percebe que o esforço de Debord, que se oculta
sob as peripécias do estilo e se apropria da evolução crítica da forma submetida a um
mecanismo dialético demolidor, representa uma tentativa de reconstrução do sujeito
dilacerado pelas forças alienantes do espetáculo. Forças históricas abstratas que se
colocaram no lugar do homem e o substituíram como personagem que protagonizava as
lutas pelo reconhecimento e emancipação, características do ser social. No entanto,
quando a economia passou a centralizar no sistema de necessidades o destino dos
esforços humanos e dirigi-los em função de objetivos alheios ao homem, quando a
revolução copernicana burguesa colocou a humanidade na órbita das mercadorias
elevando o valor abstrato do sistema de trocas, controlado por esse outro fantasma, o
mercado, ao valor supremo pelo qual se combate, não resta nenhum outro combate
digno senão aquele que visa a restituir ao homem o seu lugar, restabelecendo os valores
269

sociais da comunidade como palco onde se encena o verdadeiro drama histórico do


sujeito em construção.

Debord aposta nos conselhos operários, influenciado sem dúvida pelo Lukács de
História e Consciência de Classe, mas as diretrizes de sua criação, diante de desafio tão
difícil em um contexto histórico tão opressor, sente a ameaça da derrota e se aprofunda
na polémica. O radicalismo do mecanismo dialético em Debord ultrapassa qualquer
limite formal, exige uma atenção ao esforço do sujeito que se projeta através da obra
singular que é sua máquina de combate. Os paralelos com o ensaio deixam de valer
diante da peculiar estranheza do estilo debordiano. Não resistem a uma mirada honesta
que deve orientar-se em um conjunto de proposições, em um encadeamento de teses
muito bem articuladas, situadas em uma montagem demasiadamente composta e bem
acabada que não permite nenhum remendo, nenhuma alteração, que não podem evoluir
ao sabor do acaso como o texto montaigniano, que não se pode ir ajustando conforme
evolui ou regride a matéria sobre a qual se dobra. Que não reifica o dado aderindo a um
estado de coisas que necessita ser compreendido no mesmo movimento em que é
superado, cuja superação represente uma força social inserida nas batalhas reais dos
sujeitos reais pela construção ainda em aberto, do ser social. O que está em jogo não é
apenas a forma do texto, mas sua função revolucionária, que começa pela revolução na
forma, ou melhor, pela não aceitação da forma como limite da construção, como
determinante legal da criação que a separa dela mesma anulando sua potência vital de
afirmação da diferença. O combate contra a equalização da forma é a luta fundamental
que Debord empreende contra a astúcia do espetáculo. A construção de uma “máquina
produtora da diferença” no interior da forma equalizante constitui a astúcia dialética
maior, considerada no plano do estilo. A maneira singular de dizer a singularidade por
intermédio “desse mesmo dizer”: afirmar uma diferença desconstrutiva que fluidifica o
discurso e o movimenta no âmbito de sua própria construção significante em
divergência total. O discurso revolucionário construído com os elementos da
conservação no interior do desvio da lógica da normalidade.

Voltemos à possibilidade de expansão quase ilimitada do ensaio, nos moldes de


Montaigne, e seu inacabamento formal. Não que ele, o ensaio, não tenha forma, apenas
que sua forma fluida ao extremo permite ou quase exige uma aderência às
circunstâncias sempre moventes da existência cujo progresso acompanha. Há também o
caso de Pascal que não chegou a atinar com uma forma final para seus pensamentos, os
270

quais ficaram provisórios e incompletos, posto que a vida do autor foi mais breve que a
obra. A arte do ensaio é longa, a vida do autor é breve, sendo assim não é possível que
ela realize a arte.

O que não é o caso de Debord. A forma da Sociedade do Espetáculo não possui


essa abertura ao que virá advinda da falta de realização final. Pelo menos não em
sentido imediato. Como já afirmamos acima, o autor alerta para o fato de as
circunstâncias não terem mudado ao ponto de exigir uma correção no conteúdo de suas
sentenças, nem tampouco na forma da construção de seu texto. Este, como sustentamos
e acreditamos ter mostrado até aqui, é acabado, não permitindo uma evolução na
direção das modificações dos eventos que deveria acompanhar. A não ser que esses
eventos mudassem substancialmente, o que implicaria não em uma correção formal,
mas uma modificação total da forma e do conteúdo da obra. A renúncia completa a sua
verdade.

De fato, a maneira pela qual está organizado o todo, sua relação negativa com as
circunstâncias sociais que espelha, atrelada a uma costura quase perfeita no diálogo
entre as partes, não permitiria uma modificação circunstancial sem alterar o sentido
global do texto, sem descaracterizá-lo. A máquina debordiana está muito bem ordenada
e sua função dialética a conecta especulativamente, vale dizer, negativamente, com a
situação, movendo-a de acordo com a substância da sociedade espetacular que ela
combate. Não se situa no plano reflexivo imediato e simples que deveria acompanhar as
transformações na superfície que, por serem superficiais, não alteram a configuração do
todo. A mediação do todo como momento predominante do estilo garante sua
imunização frente às oscilações aparentes de um estado de coisas que se quer ou se
mostra volátil, mas que possui solidez e permanência. O espetáculo não é uma categoria
abstrata, reafirmamos, nem tampouco um simulacro ou uma simulação, mas, conforme
já demonstramos, uma determinação ontológica, cuja lei universal encontra-se no
terreno da economia e se reproduz na esfera político-ideológica, mantendo sempre em
movimento de auto-conservação sua força alienante e sua realidade material. O segredo
do espetáculo está bem escondido, mas não escapou ao olhar crítico da dialética. 62 Suas
mudanças superficiais enganam, não obstante foram percebidas corretamente por
Debord como transformações cosméticas de uma realidade que se perpetuava

62
Confere acima o capítulo intitulado O segredo do templo.
271

substancialmente a custa do engano e da ilusão. A dialética deve, portanto, cuidar em


não reproduzir as oscilações de superfície, mas alcançar a lei geral e a subverter pelo
estilo, cuja força desviante lhe desvela o conteúdo. A força do negativo aplacada sobre
os fenômenos que revelam em sua inversão constitutiva.

A linguagem dialética do desvio, mediante o recurso a um tipo de abertura muito


mais complexo do que a do ensaio, envolve uma mecânica dialógica que se abre para o
leitor embora se feche internamente, vale dizer, abre-se às suas referencias canônicas
que desvia e por isso mesmo exige o trabalho paciente do leitor em sua decodificação,
no acompanhamento atento de seus encaixes, na descoberta de suas regras, no deslinde
de suas alusões, na percepção da ironia fundamental de sua forma elusiva.

Uma abertura no acabamento que exige um movimento de atualização da leitura,


o qual, por sua vez, deve descobrir as referências que o texto oculta, cuja revelação
constitui etapa fundamental de sua realização. Segundo o princípio de Novalis,
“Somente mostro que entendi um escritor quando sou capaz de agir dentro de seu
espirito, quando sou capaz de, sem estreitar sua individualidade, traduzi-lo e alterá-lo
multiplamente.” (NOVALIS, Pólen, § 22) Põe-se aqui a possibilidade da abertura no
diálogo, não no inacabamento, mas na construção exigente. A exigência da forma que
se desdobra na leitura, na leitura como um componente fundamental da mecânica do
texto que o dinamiza. Mas isso apenas se o texto for de tal maneira organizado que
convide o leitor ao trabalho paciente e atento do conceito, que ele postule o leitor como
um componente de sua fluidez objetiva. Não que ele espere o acabamento, mas que
exija a resolução.

Um duplo movimento que poderíamos exemplificar mais uma vez na linguagem


dialética de Novalis, a linguagem do fragmento, essa forma ultracondensada de ensaio:

Retornar para dentro de si significa, para nós, abstrair do mundo exterior. Para os
espíritos, a vida terrestre significa, analogicamente, uma consideração interior – um
entrar dentro de si – um atuar imanente. Assim a vida terrestre origina-se de uma
reflexão originário – um primitivo entrar-dentro-de-si, concentrar-se em si mesmo –
que é tão livre quanto nossa reflexão. Inversamente, a vida espiritual neste mundo
origina-se de um irromper daquela reflexão primitiva – o espirito volta a desdobrar-
se – o espirito volta a sair em direção a si mesmo – volta a suspender em parte
aquela reflexão – e nesse momento diz pela primeira vez – eu. Vê-se aqui quão
relativo é o sair e entrar. O que chamamos entrar é propriamente sair – uma
retomada da figura inicial. (NOVALIS. Pólen, § 43)

Esse entrar dentro de si a que se refere Novalis compõe um movimento cuja


resolução depende de um exteriorizar-se na direção das referências que espelha e do
272

trabalho de leitura que exige. Um desdobrar-se consequente de uma forma acabada que
se move, no entanto, como um mecanismo autotélico e autocatalítico que se alimenta de
suas circunstâncias e se renova de acordo com uma perpétua atualização de sua potência
dialética. A obra deve ser amalgamada, composta de referências mediadas pela ironia,
pela subversão, pelas formas do desvio, enfim, que se movem dentro do universo crítico
que produzem. “Fragmentos desta espécie são sementes literárias. Pode sem dúvida
haver muito grão mouco entre eles – mas contanto que alguns brotem.” (NOVALIS,
Pólen, 104)

Embora exista certa convergência entre o trabalho de Debord e a poética do


fragmento, não se pode, também neste caso, superpor as duas propostas, nem considera-
las de natureza semelhante. A utilização estética do desvio com a finalidade crítica de
construir uma poética da presença que possa compor um texto não analítico, cuja
virtude maior reside no fato de não se submeter aos postulados da separação, impõe a
necessidade do limite e da determinação como elementos constitutivos da obra
desviante. Mais uma vez reforça-se a sua característica acabada e finita, sua não
“incompletude poética” aberta à descontinuidade e incoerência presentes na proposta
estética do romantismo. Não se trata em Debord de “se empenhar em projetos de grande
fôlego, porque muda muito frequentemente de direção e propósito”, conforme Mario
Perniola caracteriza a incompletude da poética romântica, (PERNIOLA, Desgostos, p.
139), mas de determinar a natureza do espetáculo mediante a composição de um texto
que não se deixe apanhar pela sua lógica, portanto, que não se invalide por uma
contradição interna, consistente em conciliar-se praticamente com a situação que critica
teoricamente.

Neste sentido, o texto de Debord apresenta uma coerência ímpar, realiza-se


efetivamente como texto antiespetacular contra o espetáculo. Não está de acordo com o
dinamismo convulso e febril de uma realidade material que se constitui essencialmente
pela dilaceração da experiência submetida à potência alienante da separação. Não pode
implicar, por isso mesmo, “uma incompletude, uma imperfeição essencial que elimina o
modo finito” (PERNIOLA, P 140), como ocorre com o fragmento. A obra não afirma a
sua impossibilidade de realizar-se. Está de fato realizada, cabendo ao leitor, às gerações
futuras que enfrentem a tarefa de decifrá-la, o empenho de compreendê-la naquilo que
efetivamente é: proposta e realização, potência e atualização, acabamento e convite,
finitude e exigência. Tal realização e atualização pressupõe a própria “atualização
273

prática” do leitor em processo individual e social de autoconstrução: o leitor a que o


autor se dirige e espera. Um leitor que somente existirá quando as condições
espetaculares da dissolução do sujeito social estiverem superadas, como afirmamos em
capítulo acima.63

Um livro, assim, não é apenas um livro que segue os movimentos do autor, suas
mudanças subjetivas, suas alterações de perspectivas. Um conjunto de teses rapsódicas
intercaladas, em suma. Há uma qualidade objetiva fundamental aqui que não se pode
negligenciar. Um livro como a Sociedade do Espetáculo foi escrito em função da
destruição de um estado de coisas negativo, como um movimento construído dentro do
movimento espetacular para lhe desestabilizar e destruir. Não se deixa levar pelo
movimento de desestabilização infinita do espetáculo, nem se afirma como reprodução
da lógica do valor de troca, que consiste em equiparar tudo com tudo e, assim, destituir
o valor singular de todas as coisas.

A projeção ad infinitum do valor abstrato descontruiu todas as potências da


diferença e, com elas, o sujeito. Não cabe mais acompanhar o movimento da separação
sem mediações que lhe resistam à força dissolutiva. Há que construir o texto em acordo
com a afirmação do sujeito. O texto como potência objetiva de uma subjetividade me
construção: ao mesmo tempo possível e real. Pela trilha problemática do desvio,
constrói-se também a subjetividade do autor como pressuposto de uma retomada do
projeto humano, como condição fundante da tarefa histórica da dialética.64

A reconstrução do sujeito que o livro exige, que realiza como condição do autor e
provoca como condição do leitor tornam a Sociedade do Espetáculo mais que uma
livro, muito mais que um ensaio, mais que um mero trabalho de estilo. “Tão raramente
um livro é escrito em vista do livro”, sentencia Novalis. Um livro não se escreve em
vista do livro, diríamos, mas do que ele realiza de fato e exige de direito.

A cumplicidade é essencial para a manutenção da máquina em movimento, para a


perpetuação de sua finalidade diante da possibilidade de seu movimento. A dialética

63
Confere: “Autores a procura de um leitor”
64
Não estamos, portanto, diante de um texto comum, no sentido que não se caracteriza apenas como
texto, mas como tarefa histórica de destruição-reconstrução no contexto de uma derrota: a derrota do
sujeito. Não do sujeito atomizado, mas do sujeito social. Não o sujeito romântico alienado de suas
condições sociais, mas do sujeito humano inserido em suas determinações concretas.
274

envolve o leitor cúmplice; o autor em busca do leitor é aquele que fala para um futuro
possível. Nesse sentido,

O verdadeiro leitor tem de ser o autor amplificado. É a instancia superior, que recebe
a causa já preliminarmente e elaborada da instancia inferior. O sentimento, por
intermédio do qual o autor separou os materiais de seu escrito, separa novamente,
por ocasião da leitura, o que é rude e o que é formado no livro – e se o leitor
elaborasse o livro segundo sua ideia, um segundo leitor apuraria ainda mais, e assim,
pelo fato de a massa elaborada entrar sempre de novo em recipientes frescamente
ativos, a massa se torna por fim componente essencial – membro do espirito eficaz.

Através da releitura imparcial de seu livro o autor pode ele mesmo apurar seu livro.
Com estranhos, o peculiar costuma perder-se, porque é tão raro o dom de adentrar
plenamente numa ideia alheia. Frequentemente com o próprio autor. Não é nenhum
indicio de maior cultura, ou de maiores forças, fazer sobre um livro a censura certa.
Diante de impressões novas a maior agudeza do sentido é totalmente natural.
(NOVALIS, Pólen, 125)

De qualquer maneira, temos diante de nós um artífice habilidoso que trabalha


referências enciclopédicas, que desvia a forma canônica através de uma ironia sutil, que
se abre à alteridade das condições externas, às múltiplas determinações históricas que
matizam a construção do texto, ao mesmo tempo em que o realiza internamente como
obra acabada, o que a torna aberta ao diálogo com o leitor, sem o qual permanece
imóvel e incompleta. Essa relação entre acabamento e abertura, incompletude e
resolução caracteriza a “forma do desvio”, e ele não é, a não ser de uma maneira muito
específica, uma forma ensaística caraterística. Ele, o desvio, não pretende, de forma
nenhuma “eternizar o efêmero.” (ADORNO, P. 23) Não se vincula uma
descontinuidade em movimento que se isola da totalidade e se recusa dialogar com a
identidade. Ao contrário, busca no todo e na identidade de um movimento de
autonstrução mediada a “forma em deriva” de estabelecer um campo de forças coerente
e unificado contra a falsa coerência e a pseudo-identidade do fenômeno espetacular.
Não se constitui o desvio na expressão de uma filosofia da não identidade (ADORNO),
nem, tampouco, em uma clivagem pela qual o estético é tomado como futuro possível
de uma estrutura que se congelou nos protocolos de uma ciência que apresenta “os fatos
e seus encadeamentos” contra a arte que mostra “as almas e seus destinos”. (LÚKACS,
P 25) A presença poética que emerge do texto antiespetacular desviante já realiza em
seu próprio movimento diferencial a superação das clivagens, mostra o destino dos
isolamentos, aproxima-se de uma identidade mediada pelo fluxo do discurso em
autoconstrução, pelo qual o sujeito se afirma se projeta nos eventos sociais cotidianos,
dos quais busca a confirmação de sua negatividade e o reconhecimento de seu esforço,
no campo de forças dialético que estabelece com o leitor.
275

A díade autor-obra, inserida nas circunstâncias históricas, cujas contradições


reflete de forma mediada e crítica, vale dizer, que supera na construção mesma do texto,
conjugada à ação construtiva da leitura, compõe uma tríade dialética em movimento. O
caráter acabado da obra, sua mecânica consequente não a impede de conter em si
mesma a plenitude, a exuberância, a vivacidade criativa características do ensaio
pensado como inacabamento formal e movimento infinito. A finitude do texto abre-se
às condições de sua produção mediada pela leitura, da qual se apropria como um ato de
criação. Isto porque se resolve consequentemente em suas próprias regras, que devem
orientar o diálogo com suas circunstâncias, dentro das quais se localiza o leitor.

Assim, a obra A Sociedade do Espetáculo situa-se no centro da batalha pelo


sentido histórico, na qual se disputa a possibilidade de autoconstrução do ser
automediado da natureza, o homem. Está cravada no cerne da vida cotidiana como
força transformadora, como movimento e auto-superação, de forma semelhante a uma
diretriz pintada num muro: uma provocação ao presente e um desafio à posteridade.

Talvez um ensaio de transformação realizado como determinação política em que


se reúnem as principais vertentes da crítica revolucionária como uma grande síntese
teórico-prática.

Um estilo sintético cuja força poética atua como presença una, compacta e, ao
mesmo tempo, complexa a desafiar a simplicidade abstrata das oposições e das
generalizações apressadas. Concebida e realizado como perspectiva de transformação da
vida cotidiana – lugar em que se disputa o jogo decisivo, campo onde se trava a batalha
final pela reconquista da liberdade, palco em que se encena o enredo das lutas pela
conquista da emancipação – a Sociedade do Espetáculo fecha seu circuito com uma
aposta: justamente na classe que representa a ausência de todas as classes em cujas
mãos está o destino que se configura no texto e se decide na vida. E aqui está sua
abertura fundamental: na direção do leitor-criador, no entanto concebido como autor de
uma obra que só se concretiza na vida material, através da ação politica de tomada de
posse das diretrizes da história, da revolução como ato final do drama humano que o
texto encena criticamente. Talvez por isso, a possível potência ensaística de A
Sociedade do Espetáculo talvez resida mais naquela característica apontada por Alfonso
Berardinelli em seu livro La forma del saggio, Definizione e attualità di um genere
letterario.
276

7.2 Desvio do método, antiformalismo e ensaio: contra a linguagem oficial da


separação generalizada

O espetáculo apresenta-se ao mesmo tempo como a própria


sociedade, como uma parte da sociedade, e como instrumento de
unificação. Enquanto parte da sociedade, ele é expressamente o setor
que concentra todo o olhar e toda a consciência. Pelo próprio fato de
este setor ser separado, ele é o lugar do olhar iludido e da falsa
consciência; e a unificação que a realiza não é outra coisa senão uma
linguagem oficial da separação generalizada (Debord,1991, p. 10).

Abordando o problema acerca da definição da forma estilística do ensaio e sobre


que função esta forma pode desempenhar na literatura contemporânea, Berardinelli
chega a três motivos principais, dos quais apenas um nos interessa aqui.

O primeiro motivo nasceu no interior de uma longa discussão sobre o papel,


conteúdo e linguagem da crítica literária, em polêmica com a invasividade, com o
mecanicismo crescente da teoria e metodologia semiológica e estruturalista. Segundo
Berardinelli “a leitura científica do texto substituiu o contato direto com o texto,
pressupondo que o ato da leitura deveria ser desempenhado por especialistas e teóricos
que empreenderiam a tarefa que lhes era própria com os instrumentos da análise
previamente estabelecidos pelo método.” (BERARDINELLI, P 11) A reificação do
método, sua formalização implicava em uma espécie de desconsideração em relação aos
aspectos singulares de cada obra. De fato, os textos perdiam sua especificidade sob o
postulado formalista que os considerava objetos fechados sobre si mesmos, organizados
segundo regras universais de construção, não entrando jamais em relação referencial
com o mundo, como fazem frequentemente as frases de nosso discurso cotidiano.
(TODOROV, 1975, P 14)

O texto não é representativo de outra coisa senão de si mesmo, exatamente por


isso ele participa da tautologia: ele significa a si próprio. (TODOROV, Int a Lit Fant. P
14) Vemos aqui a marca da separação e do fetichismo que deve governar a ciência da
literatura de molde formalista. O texto como obra fechada sobre si mesma separa-se da
realidade cotidiana e se insere em um mundo abstrato de relações e regras próprias que
não tem mais nada a ver com o mundo real. Ele não é percebido, então, como um
componente da realidade social, um objeto particular inserido em uma totalidade que
lhe determina a natureza, o valor e orienta sua forma de construção e seu significado.
Ao contrário, o objeto estético é isolado de suas determinações históricas e
277

compreendido como uma estrutura autônoma governada por leis abstratas. “A obra
literária, como a literatura em geral, forma um sistema; nela nada é devido ao acaso. Ou
como escreve Frye: ‘O primeiro postulado deste salto indutivo (que ele nos convida a
dar) é o mesmo de toda a ciência: é o postulado da coerência total’.” (TODOROV,
idem)

Vemos aqui uma orientação de índole positivista que governou a maioria das
concepções modernas determinadas pelo postulado gnosiológico. Como tal seguiu, sem
perceber, uma direção comum apontada pelas forças históricas demasiadamente
confiantes no método científico. Este se estabeleceu em lugar de honra a partir do
século XIX, dominando a totalidade da consciência científica moderna, que se curvou
passivamente diante de suas diretrizes abstratas. Ao invés de buscar adequação aos
eventos em suas relações efetivamente reais, exercitando a pertinência ontológica
voltada à adequação do método aos processos efetivos em sua singularidade e diferença,
portanto, adequando o método aos objetos e relações diversos sobre os quais deveria ser
aplicado, um único procedimento metodológico impôs-se sobre a compreensão,
guardando em um único recipiente toda a variedade das determinações ontológicas
objetivas. Tais determinações foram deturpadas em função de uma aplicação
apriorística de formas e estruturas, muitas vezes estranhas a sua natureza. Eric Voegelin
nos adverte que

A destruição causada pelo positivismo é consequência de duas premissas


fundamentais. Em primeiro lugar, o esplêndido desenvolvimento das ciências
naturais foi responsável, juntamente com outros fatores, pela premissa segunda a
qual os métodos utilizados nas ciências matematizantes do mundo exterior possuíam
uma virtude inerente, razão por que todas as demais ciências alcançariam êxitos
comparáveis se lhe seguissem o exemplo e aceitassem tais métodos como modelo.
Essa crença, por si só, era uma idiossincrasia inofensiva, e teria desaparecido
quando os entusiasmados admiradores do método-modelo se pusessem a trabalhar
em sua própria ciência e não obtivessem os resultados esperados. Ela tornou-se
perigosa por se haver combinado com uma segunda premissa, qual seja a de que os
métodos das ciências naturais constituíam um critério para a pertinência teórica em
geral. A combinação desses dois conceitos resultou na bem conhecida série de
afirmações no sentido de que qualquer estudo da realidade somente poderia ser
qualificado como científico se usasse os métodos das ciências naturais; de que os
problemas colocados em outros termos eram apenas ilusórios; de que as questões
metafísicas, em especial, que não admitem resposta através dos métodos das
ciências fenomenológicas, não deveriam ser formuladas; de que os domínios da
existência que não fossem acessíveis à exploração por meio dos métodos-modelo
não eram pertinentes; e num ponto extremo, de que tais domínios da existência nem
ao menos existiam.

A segunda premissa é a verdadeira fonte do perigo. É a chave para a compreensão


da destrutividade positivista e não tem recebido, de modo algum, a atenção que
merece. Isto porque essa segunda premissa subordina a pertinência teórica ao
método e, por conseguinte, perverte o significado da ciência. A ciência é a busca da
278

verdade com respeito aos vários domínios da existência. Para ela, é pertinente o que
quer que contribua para o êxito dessa busca. Os fatos são pertinentes não na medida
em que seu conhecimento contribua para o estudo da essência, enquanto que os
métodos são adequados na medida em que possam ser usados efetivamente como
meios para chegar a esse fim. Objetos diferentes requerem métodos diferentes. Um
cientista político que deseje compreender o significado da República de Platão não
encontrara muita utilidade na matemática; um biólogo que estude a estrutura da
célula não julgará convenientes os métodos da filologia clássica ou os princípios da
hermenêutica. Isto pode parecer trivial, mas ocorre que a desatenção para com as
verdades elementares é uma das características da atitude positivista; daí que se
torne necessário elaborar o óbvio. Talvez sirva como consolo lembrar que essa
desatenção é um problema perene na história da ciência, uma vez que o próprio
Aristóteles teve de recordar a alguns elementos nocivos do seu tempo que “um
homem educado” não deve esperar exatidão de tipo matemático em um tratado sobre
política. (VOEGELIN, 1982, p.19)

O vício positivista contaminou as humanidades, em geral, e os estudos literários,


em particular. Como tal, produziu uma imagem do texto, aliada a uma falsa concepção
da leitura, completamente dependente da ideia fetichista da objetividade científica.
Observa Berardinelli que

Ler se tornou coisa de ingênuos e diletantes. A nova, moderna e verdadeira leitura


apresentava-se como uma ciência do texto, considerado um objeto imóvel, um corpo
a ser dissecado ou um esqueleto estrutural do qual seria suficiente nominar
analiticamente as partes. (BERARDINELLI. La forma del saggio. P. 11 Grifos do
autor e nossos)

Na França, pais em que o positivismo foi gerado e o estruturalismo observou seus


melhores analistas, a situação tornou-se modelar. Ali a literatura foi suplantada pela
Teoria, “não havia romancista ou poeta que podia competir com o prestígio e a
notoriedade internacional das vedettes estruturalistas.” (BERARDINELLI, La forma del
saggio. P, 11) O efeito geral de tal tendência absolutizante foi que a gramática do texto
literário parecia ser mais importante que o usos que se fazia da literatura; suplantava a
escrita e impunha-se como referencial absoluto acima das condições histórico-sociais de
produção e consumo do objeto literário. “Por outro lado, o livro era escrutado como
entidade mineral e como se não existissem autores que lhe haviam escrito, sobretudo
não porque os leitores os liam, mas porque estudantes e estudiosos os analisavam
segundo métodos e teorias.” (BERARDINELLI, P 11)

Esqueceu-se que a literatura era, antes de tudo, uma experiência,


(BERARDINELLI, P 12) isto é, um encontro real entre certos indivíduos e certos textos
em determinada situação histórica. Que o texto era não um objeto verbal organizado
segundo regras universais e abstratas, não uma objetividade absoluta separada de suas
condições de produção, mas o resultado de um empreendimento criador resultante das
inquietações de um sujeito singular que se dirigia ao seu público leitor através da
279

maneira pela qual organizava sua visão de mundo e a tramava em uma obra igualmente
singular. Tal obra reflete necessariamente o estado de coisas em que se encontra e o
apresenta ao leitor mediado pela construção específica do artificio verbal. Nela e em
suas relações com a situação social, nas quais se inclui o público, encontra-se uma
dinâmica peculiar que o estruturalismo não podia captar, porquanto afastava do ato de
leitura do texto a situação em que ele era produzido e, com ela, as forças que lhe
determinavam a expressão a partir da inserção, do imediatismo ou da recusa diante da
situação social. O texto não poderia ser compreendido como um objeto natural, mas
como resultado de um processo complexo dentro do qual se compreendem as relações
sociais de produção na sociedade moderna.

Do ponto de vista de uma compreensão dialética, o isolamento das partes, junto


com a perda da mediação da totalidade, tornava o estudo um mero exercício formal sem
nenhum resultado concreto para a compreensão efetiva do significado da produção
verbal, em acordo com a sua forma peculiar de organização. Isolar os fatos estéticos
como se fossem mundos autocentrados, como se nada tivessem a ver com os fatos
econômicos, sociais e políticos, ou seja, como se nada tivessem a ver com o resto das
determinações históricas no interior das quais foram gerados, é o melhor caminho para
não entender a função e o significado desses fenômenos na história. Quer dizer, não
entender absolutamente nada. Nesse contexto, o ensaio veio a calhar como forma de
escrita que se mostrava capaz de possibilitar novas formas de expressão e de
pensamento. Segundo Henrique Iafelice, “por sua ruptura com aquilo que é mais caro ao
método científico, a saber, os modelos totalizantes e unificadores” (IAFELICE, Adorno
e o ensaio como forma, Revista filosofia) isolados da experiência efetiva. Atentos ao
que aconselha Kierkegaard acreditamos importante construir um método conforme o
fenómeno que aborda, “Pois, se bem que o observador traga o conceito consigo,
importa, mesmo assim, que o fenômeno não seja violentado, e se veja o conceito
surgindo a partir do fenômeno” (Kierkegaard, O Conceito de ironia). Para que o
conceito surja a partir do fenômeno é necessário que ele acompanhe o fenômeno
mesmo em seu processo de explicitação, que ele colha no fenômeno aquilo que lhe é
próprio. O que exercitamos aqui. No entanto, é preciso que se reforce, acompanhar o
fenômeno significa aderir as suas formas e forças centrífugas, o que não é,
evidentemente, o que um dialético como Debord pretende. É preciso, de fato, fazer
emergir a lei do fenômeno no contexto de sua própria negação. Neste sentido, é mister
280

construir uma expressão do mesmo que o negue a partir do movimento constitutivo de


uma diferença que o reflete e o inverta na reflexão. Em outros termos, que o reflita de
forma negativa desviando-o de sentido usual.

Assim, nosso entendimento de Debord procurou sempre se mover junto com o


objeto complexo que estudamos. Ensaiamos caminhos para melhor compreender o que
nos interessa, em conformidade com sua natureza peculiar e sua função. E a função do
desvio não pode, senão com ressalvas, ser classificada, portanto não pode ser
caracterizada com ensaio.65 No entanto, devemos admitir, comunga com o ensaio
daquele ímpeto antiformalista que serve à construção de um texto atento à necessidade
de invenção sem descuidar, por um minuto, da importância da correspondência aos
eventos da situação que especula dialeticamente. Procuramos entender como o texto se
forma a partir das pressões e urgências de determinações sociais e trama o seu tecido,
dialeticamente, em consonância com o movimento da realidade agônica que ele reflete
de maneira crítica.66

Uma obra de combate como a de Debord constitui um campo de forças complexo


e dinâmico, inserindo-se de forma visceral no contexto histórico social do qual extrai
seus motivos e contra o qual movimenta seu estilo. Certa vez Giorgio Agamben disse a
Debord que o considerava um grande filósofo, ao que ele respondeu: “Eu não sou um
filósofo, sou um estrategista”. Citemos:

Muitos anos atrás, eu discutia com Guy Debord questões que a mim pareciam ser de
filosofia política, até que em certo ponto Guy me interrompe e diz: ‘Olhe, eu não
sou um filósofo, sou um estrategista’. Esta frase me chocou porque eu o considerava
um filósofo, assim como considerava a mim mesmo um filósofo, e não um

65
Sabemos que Debord possuía muitas armas e as usou de forma integrada. O que exige do estudioso um
sentido diferenciado do método uma vez que não pode estabelecer caminhos prévios que possam servir de
via de acesso a uma obra singular como a de Debord. A dificuldade começa, aqui, em saber quais foram
as circunstâncias nas quais se encontram os atores com os quais dialoga o texto; compreender, em
seguida, o sentido de suas realizações para, enfim, dimensionar o modo como Debord utiliza-se de seus
referenciais, deslocando-os de seus contextos originais e movimentando-os no rumo de novos sentidos:
no texto filosófico-literário, nas cartas, directivas, intervenções, artigos de revista, notas, cinema. Não há
uma porta de acesso para Debord. Talvez ao invés de um método seria melhor, seguindo o traçado de sua
própria experiência construir “estratégias de aproximação”, leitura e interpretação. Tais estratégias
devem-se basear nas articulações internas e externas da própria obra.
66
Nossa tentativa de investigação buscou, portanto, seguir de perto as trilhas traçadas pelo próprio objeto,
descobrindo, a partir da leitura imanente das fontes primárias, aquilo que o texto realiza, efetivamente, em
sua construção própria. É claro que na imanência do texto insere-se a totalidade social presente que lhe
determina a formação do conteúdo e contra a qual o texto reflui dialeticamente. Também dialogam com
ele as nossas pré-concepções situadas no plano de nossos interesses e motivadas por nossos valores.
Sendo assim, não é possível estabelecer um único método previamente escolhido que seja adequado à
abordagem de um tema complexo como o nosso situando-nos, ao mesmo tempo, em uma perspectiva
crítica e consciente de nossas próprias limitações.
281

estrategista. Mas creio que aquilo que Guy queria dizer é que todo pensamento, por
mais puro, por mais geral e por mais abstrato que seja, é sempre marcado por
assinaturas históricas, temporais e, portanto, sempre preso, de alguma maneira, a
uma estratégia e a uma urgência. (AGAMBEN, Metropolis, 2010, p. 01)

Debord considerou o seu tempo como uma guerra sem fim na qual sua vida inteira
estava empenhada na construção de uma estratégia. Por isso, penso ser necessário
perguntar sobre o sentido de tal estratégia, que começava na vida e prolongava-se na
obra, ou melhor, que unia vida e obra em um todo harmônico. O que ele entendia por tal
estratégia e como a complexidade de suas obras articulam-se na construção de suas
frentes de combate contra a sociedade do espetáculo. Para tal nos servimos de uma
metáfora de forjada por Michael Löwy com a qual acompanhamos nossa investigação
até aqui: a máquina dialética. O desvio como máquina dialética constitui uma
conjunção de forças contra o espetacular. Em relação ao método científico de matriz
positivista e seus descendentes espirituais estruturalistas, representa uma afronta, uma
inversão através da ironia daquilo que era mais caro ao método: o sistema. O desvio
como ironia. E aqui identificamos um elemento importante compartilhado pela crítica
debordiana com a forma do ensaio. Seu anti-estruturalismo de base, seu anti-positivismo
que já se manifestava no texto fundamental de suas perspectivas para a transformação
da vida cotidiana, que nos serviu de diretriz e bússola até aqui. O anti-positivismo
orientou o princípio de construção do texto desviante, como um motivo e o desvio se
relacionou com ele como uma direção da qual se afasta através da desconstrução de sua
expectativa mais universal e abstrata.

O texto da Sociedade do Espetáculo foi elaborado em desconformidade com as


regras do método científico e em dissonância com as esperanças do sistema hegeliano.
Com isso, construiu uma estratégia de combate que o levou a destruir, na forma de
organização do todo que medeia a relação dinâmica das partes, uma mecânica
antiespetacular cuja eficácia consistiu, entre outras coisas, em revitalizar a linguagem e
salvar expressão abstrata de suas submissão ao poder ideológico que controla todas as
formas de consciência a partir do estabelecimento de regras comuns e princípios
universais de conduta e pensamento. A verdadeira ciência que o texto da Sociedade do
Espetáculo exercita tem muito a ver com o ensaio, na medida em que não se deixa
submeter às regras, que não aceita passivamente o dado, que exercita o método em
conformidade com a compreensão do objeto real, qual seja, o conteúdo efetivo da
experiência traído pelo dogma positivista.
282

Contra a forma espetacular do texto que se apresenta como obra isolada e fechada,
alheia às condições históricas e aos eventos reais, um texto que se mostra espetacular
em sua imobilidade acabada, em sua anuência à norma protocolar do método, contra o
apriorismo lógico que afastou a linguagem da realidade vital que ela deveria espelhar e
acompanhar em seus desdobramentos dialéticos, a construção de um antitexto desviante.
Um texto que problematiza na própria forma a forma de organização do texto. Tem-se
aqui o ensaio debordiano que rompe com a própria possibilidade do ensaio, uma vez
que em Debord o texto acaba, atinge sua meta, finaliza seu propósito: a construção de
uma estratégia, de um “corpo de combate” que se coloca exatamente na posição dos que
têm um papel ativo nos acontecimentos, descobrindo as circunstâncias em que se
encontravam os atores num determinado momento a fim de estar em condições de julgar
escrupulosamente a série de escolhas necessárias à condução de sua guerra. (Cf.:
DEBORD, Panegírico, p 10).

No entanto, como vimos, sem se imobilizar, sem se afastar de suas condições


concretas de produção e sem deixar de mediar criticamente as próprias condições
espetaculares que descontrói violentamente. A estratégia ensaiada por Debord quebra
completamente com o formalismo vazio em nome da verdade da expressão dialética.
Nisso aproxima o ensaio do antiformalismo do desvio. Usa o ensaio como estratégia
inserindo seu movimento no interior das formas que examina criticamente,
desestruturando sua arquitetura e desestabilizando completamente sua segurança e
acabamento.

Assim, vimos que a crítica desviante não opera através da análise, como um
exame exterior ao formalismo do sistema, mas o destrói por dentro instaurando em seu
lugar uma nova perspectiva, um novo movimento do negativo na direção da restauração
da verdade da experiência conforme a experiência da verdade. A crítica ensaia a
presença poética no interior da forma protocolar e a descontrói estrategicamente. Efetua
uma parodia dos sistema e, assim, avança em um território próprio, que a linguagem do
desvio determina e palmilha a partir de seu próprio movimento crítico. Somente nesse
sentido o desvio não deve ser classificado. Nem mesmo de ensaio. A própria
classificação desnaturaria o ensaio e o afastaria definitivamente do desvio.

O ensaio classificado, determinado por uma forma, reverteria sobre suas próprias
pretensões antidogmáticas, anti-formalistas e anti-generalizantes, generalizando-se
283

como uma classe formal de procedimento positivo. O que tornaria o ensaio uma forma,
por problemática que seja, de um proceder universal e abstrato. Um método como tantos
outros. Cair-se-ia novamente na astúcia do espetáculo. Criar-se-ia o fetichismo do
ensaio. O que se quer evitar com a astúcia da dialética.

7.3 Uma literatura menor enfim?

É ousado admitir que o texto de Debord possui a qualidade ambivalente da


dialética? Que ele abre-se tanto mais à intervenção do leitor quanto mais ele se revela
acabado? A fluidez do estilo, a revitalização da linguagem perseguida por Debord na
construção de sua máquina de guerra não se beneficiam do inacabamento de uma obra
aberta, ela se fecha sobre sua própria perfeição e é exatamente aí que ela se abre como
um desafio à leitura: como uma obra à procura do leitor, como um texto que necessita
de uma contrapartida dialógica fora de si mesmo para que sua mecânica funcione.

A obra acabada de Debord evidencia-se no fato de ele em nenhum outro texto ter
seguido o caminho da Sociedade do Espetáculo e tentado, a partir dela, construir
mecanismo semelhante. Uma forma que não possui fórmula, uma fórmula que vive de
sua própria força e se esgota por completo em sua auto-realização singular.

O aforismo, a sentença oracular, os parágrafos autônomos formando constelações


do sentido: autocentrados e, ao mesmo tempo, articulados ao todo. A relação dialética
parte e todo na construção da máquina de combate: não há como compreendê-la sem
entrar em sua engrenagem e se deixar envolver ativamente com seu mecanismo de
montagem-desmontagem dos elementos que a constituem, considerado desde seu
procedimento singular de formulação da divergência absoluta. O antissistema
debordiano das proposições desviantes que se alimentam de sua própria divergência e se
movem ao ritmo da diferença absoluta: a parte e o todo em relação dialógica no interior
dos referenciais maiores das convenções da linguagem, das totalizações da linguagem
da filosofia que a máquina dialética aproveita e redime pelo desvio. Há uma confluência
aqui com o conceito de “literatura menor” de Deleuze/Guatarri, no sentido daquela
forma de expressão que resiste a miséria da condição social da qual participa e opõe
resistência às suas formas de reprodução, tornando-se um vetor da produção de
superação dessa miséria, arquitetando possibilidades de libertação. “Uma literatura
284

menor não é a de uma língua menor, mas antes a que uma minoria faz em uma língua
maior.” (DELEUZE E GUATARRI, Kafka, p.25)

Literatura menor: subverter uma língua, fazer com que ela seja o veículo de
desagregação dela própria. A revolução começa aqui na ruptura com o código e na
criação de novas formas de expressão que resistam e oponham-se às formas maiores
consagradas e assimiladas pela sociedade com a qual se conciliam. O espetáculo: síntese
na forma/conteúdo dos aspectos fundamentalmente perversos do existente imediato. O
texto/ação atuando nas micro-relações cotidianas e nas produções teóricas, construindo
um mundo dentro do mundo, cavando trincheiras do desejo, colocando em alerta as
potências de libertação através do movimento restaurado do negativo.

O estilo menor enfim cria trincheiras a partir das quais se promove uma política
de resistência que pode desembocar nas relações diretas entre os indivíduos, que por sua
vez exercem efeito sobre as macro relações sociais. O texto perfaz um circuito em que
se realiza como exercício de estilo, máquina de combate, distanciamento crítico,
resistência ás formas maiores de conciliação e despertar das formas menores de
resistência: uma máquina de combate dialética, em um sentido renovado de dialética.
Um estratégia de combate em que se resolve a filosofia mediada pela criação artística. O
jogo, a arte da guerra e o pensamento dialético comungando da proposta de subversão
global dos meios em função da restauração total da possibilidade da experiência
autêntica no contexto da vida social efetiva. Nenhuma estratégia desse tipo, que
pretenda a construção, pode-se afastar da destruição. As duas forças devem estabelecer
o comércio dialético em que o novo emerge do belicismo da forma em deriva.

Veja-se a advertência:

“Il faut lire ce livre en considérant qu'il a été sciemment écrit dans l'intention de
nuire à la société spectaculaire. Il n'a jamais rien dit d'outrancier.” (DEBORD. SE)

Um conceito interessante para se pensar a forma da desarticulação revolucionária


da expressão, da materialidade do texto que é um combate pela reorganização da
expressão: que concretiza o que formula construindo uma máquina de resistência.

As alusões, elusões, paráfrases, paródias incorporações de sentenças e


pensamentos alheios recontextualizados, vale dizer, ressignificados para além de sua
significação normal espetacular: os conceitos orbitam em torno de centros de força que
285

se deslocam: a errância nômade à deriva das formulações que não se petrificam. No


entanto, exibem um acabamento perfeito, uma montagem sem lacunas, densa, difícil,
impossível de desmontar, desafiadora, aberta à leitura como uma partitura em que tudo
se encontra em seu lugar e, no entanto, tudo está ainda para se fazer: leitura, estudo,
interpretação, execução: abertura à ação do leitor: desespetacularização da leitura.

O uso das mediações como provocação, incitação à tomada de posição ativa do


leitor. A provocação como meio de movimentar a leitura arrancando da inércia e da
pura repetição o pensar. Paráfrase e paródia; recontextualização e revitalização do que
foi uma vez formulado e que necessita não ser negado, mas inserido em uma nova
constelação de sentido.

A linguagem filosófica se desgastou e se degradou na mera inventividade verbal,


na dificuldade imposta como condição de um hermetismo como fim em si mesmo. Que
quer dizer tudo ao não dizer nada. No jogo dos conceitos e nas fórmulas artificiais
esconde-se o vazio da fraseologia oca: o jargão como mistificação não do falso, mas
como máscara do vazio essencial que esconde.

O uso criativo usado como forma de ludibriar o leitor, levá-lo a pensar: o que há
aqui de tão importante e profundo que eu não consigo captar? O que se esconde na
floresta densa dos conceitos? Caminhos não trilhados ou trilhas que não dão em lugar
nenhum. O mergulho de cabeça no que se acreditava profundo fracassa no choque
inesperado com o raso: para quem foi até o fim a desilusão resulta na quebra das
expectativas contra o fundo falso. O passante observando as vitrines do shopping tenta
se aproximar dos produtos, dispostos de forma a atrair sua atenção passiva, bate a
cabeça no vidro blindado que o separa de uma constelação inerte.

Ao contrário, no cunho dialógico do pensamento difícil o hermetismo aparente


não esconde o nada, mas força ao desdobramento de suas potências na direção da
construção do sentido do todo: mais rico e pleno do que se apresentava na formulação
primária.

Sendo assim, as formas decodificadas revelam-se mais do que apresentavam: há


uma tensão entre a forma de apresentação e o conteúdo que dialogam na estrutura
dinâmica do mecanismo verbal. A forma concentrada é símbolo/imagem (no sentido de
Otávio Paz, O arco e a Lira): concentrado de sentidos que se resolvem e se amplificam
286

na e pela leitura. Que só existem na atualização da leitura que lhe arranca da inércia
protocolar e a intensifica

Não se pede o mergulho, mas a averiguação mediada pelo conceito da


profundidade antes de entrar nela.

Não há a vidraça da linguagem fetichizada entre o leitor e o sentido, ao contrário,


a linguagem serve como instrumento que, devidamente posto em ação pelo leitor,
quebra o vidro e permite articulação mediada dos conteúdos em tensão. Há a arte de
construir a partir da necessidade da destruir, da revisão da tradição e da abertura de
novo caminho à expressão. O uso da arte como procedimento que não enclausura o
dizer, mas liberta a expressão filosófica esvaziada pela tradição. Que cria um capo de
forças entre a tradição e o novo em que a busca de uma revitalização da linguagem
resolva-se na derrocada do mundo administrado. Um movimento estratégico da
antiideologia tentado como literatura menor, como máquina de combate inserida no
interior do consenso coletivo, cristalizado em suas expressões canônicas, que permita a
restauração das forças vitais da experiência recuperada pelo trato negativo com as
potências espetaculares que a esvaziam.

O passeio na velha cidade ainda é capaz de revelar novas paisagens.

Pensar perigosamente mediante o artifício significa construir formas de inserção


crítica no existente através das potências liberadas do negativo. Destruir a mecânica da
repetição que se instalou na vida cotidiana e fincou ali suas raízes, que e se apoderou do
discurso em todas as suas formas, que produziu um mecanismo sutil de controle
ideológico pela submissão da inteligência à norma abstrata, produto e uma sociedade
composta de personalidades autoritárias ansiosas pelo mesmo. Um exemplo da posição
de Adorno:

O momento coletivo dentro da linguagem tonal evolui cada vez mais para um
momento da comparação de tudo com tudo, para a nivelação e a convenção. (...) o
que uma vez, na música, era linguagem, tornou-se mera repetição. (...) parece ter
uma tendência um tanto mecânico-matemática”. (ADORNO, Por que é difícil a
Nova Música.)

A máxima condensação de significados na expressão verbal registra o momento


propício em que a obra traga o real conservando, ao mesmo tempo, sua singularidade e
suas tensões essenciais. Sendo assim, não há métodos pré-estabelecidos para a leitura do
texto, uma vez que, ele mesmo, é a corporificação de uma harmonia cujos elementos
287

constituintes articulam-se segundo uma lógica própria, peculiar e adequada à realização


singular do que pretende, como os acordes em claster de György Ligeti, que se movem
para cima e para baixo criando na relação de suas partes a forma total cujas regras de
decifração estão emaranhadas em sua dinâmica; como a nova música que fugindo ao
padrão tonal estabelece para cada composição singular a necessidade de criar suas
próprias leis de composição e organização: aqui também formulações sem fórmula.

O termo de Ligeti para o resultado de sua concepção é micropolifonia, vale dizer,


um trabalho em que a complexa polifonia de cada parte é incorporada em um fluxo
harmônico-musical no qual as harmonias não mudam inesperadamente, mas se fundem
umas nas outras; uma combinação de intervalos evanesce gradualmente e dessa
nebulosidade se descobre que uma nova combinação de intervalos toma forma. O
indivíduo à deriva do sujeito em autoconstrução debordiano extrai a ordem do caos
mediante um arranjo em que o sujeito se afirma. Mais uma vez a filosofia dialoga com a
arte.

Há aqui, na imagem concentrada, a condensação de uma ampla frente de batalha


que aponta para múltiplas direções sem se perder na fragmentação de um estilo plural e
altamente singular.

A rigor não se pode catalogar, portanto, o texto debordiano nem como ensaio,
nem como fragmento, nem como enciclopédia ou suma dialógica. A classificação não
tentada por nós esbarra nas peculiaridades incontornáveis do texto desviante, em sua
forma absolutamente desconcertante de se renovar internamente a partir do recurso a um
procedimento simples mediante o qual dialoga com a tradição e extrai o novo do velho.
A maneira como põe o discurso em movimento de autoconstrução, de determinação
autônoma e livre. Melhor seria falar em desvio, e o desvio não faz nenhum sentido fora
do sistema de regras criado com uma função própria, com fins específicos no contexto
de uma obra particular. Sendo assim, e se é verdade o que afirmamos, a obra de Debord
caracteriza-se pela singularidade com que trata assuntos universais, pela forma como se
desvia da forma, pela peculiaridade de sua composição não redutível a nenhuma norma
previa de construção textual, não fixada em nenhuma regra considerada sacrossanta,
mas na liberdade de invenção através da qual o jogo, a guerra, a ironia, o
enciclopedismo, o desvio sistemático do sistema, a deriva psicogeográfica do todo,
(considerado o texto como uma urbe psicoliterária), o rearranjo desconstrutivo das
288

ambições filosóficas, se articulam em uma dinâmica única de produção não alienada,


não refém das separações, totalizante e absolutamente crítica.

A astúcia da dialética é o desvio e o desvio é o estilo. Este, por sua vez, é o ponto
em que a arte e pensamento se encontram, fecundam-se mutuamente permitindo a
destruição do efeito espetacular que enfeitiçava a linguagem impedindo-a de relacionar-
se com o conteúdo da experiência de forma própria e original. Um resgate da força
simbólica da linguagem através de um procedimento radical que se serve da arte para
recuperar a valência crítica da filosofia.

Esse é o estilo do desvio. Eis a astúcia da dialética que viemos examinando,


delineando e tentando exibir em todas as suas formas e funções, em todos os seus
matizes. É claro que não conseguimos atingir a meta de esgotar um texto tão rico. E
aqui reside a prova final de nosso argumento: o texto acabado segue aberto a discussões
à espera do novo leitor que sabemos que um dia virá.
289

CONSIDERAÇÕES FINAIS:

Uma última astúcia da dialética: o desvio da vontade

As leis e os princípios não vivem nem se impõem imediatamente por si mesmos. A


atividade que os torna operatórios e lhes confere o ser é a necessidade do homem, o
seu desejo, a sua inclinação e sua paixão. Hegel

Ao contrário do que pensava Hegel, a razão moderna não trilhou o caminho de


sua realização histórica através da construção do reino da liberdade. Deixou, ao
contrário, atrás de si seus “rastros de destruição”, o termo é de Sebald, rastros que
constituem testemunhos de que os fins para os quais foi construída foram desviados,
que a razão serve desde então a um outro senhor que observa o mundo como um campo
de batalha de onde pode extrair seus lucros a custa de muitas vidas. Neste sentido, o
mundo completamente iluminado, é preciso repetir com Adorno, resplandece sob o
signo do infortúnio radical. Aqueles que pretendem reagir a tal estado de coisas
sustentado pela mentira devem ousar a verdade aborrecida de quem experimentou a
falácia da promessa burguesa e contra ela se indispôs, isto aprendemos com Debord.
Depois de um exame detalhado do desvio em suas investidas contra o reino do
espetáculo, devemos ter compreendido as implicações amplas de um estilo de combate
que se serve do texto para melhor se inserir na vida. Parte de um impulso de indignação,
constrói-se na forma de uma recusa e se serve do passado como instrumento. A
indisposição provocada pelo desconforto impulsiona o movimento que, na tentativa de
potencializar a força da revolta, busca o passado no qual se apoia para lançar-se mais
além da situação presente e entendê-la desde uma perspectiva deslocada. O passado é
relido, corrigido, em uma palavra, desviado em função da crítica presente, em virtude da
promessa futura. A razão ensaia seus desejos de realização através das formas da
tradição da qual se serve dialeticamente. Tal impulso não significa necessariamente
saudosismo, embora aqueles que o experimentem sejam taxados como tal. Ao contrário,
pertence a um movimento sutil em que se opera a conjunção e confluência de tempos,
em que o presente associa-se a contextos seminais cujo parentesco com suas urgências
mais singulares alimenta esperanças de renovação e resgate de continuação de um
projeto possível. Talvez se faça necessária aqui uma tarefa de anti-historiador – como
Walter Benjamin a concebia – aquela que procura tornar visível o elemento utópico no
presente, trabalhando de frente para trás na direção do passado, onde resida quem sabe
290

uma promessa que ainda possamos resgatar. Em Debord, o desvio resgata alguma
esperança de construção a partir de seu comércio com o passado do qual extrai o
impulso para a transformação do presente? Para se lançar além do presente tomando pé
no que lhe antecede, no que lhe justifica e naquilo que o constitui? Rumar para um
presente possível através de um desvio na direção que, desde um passado próximo,
corporificado no corpo histórico da tradição filosófica, o presente tomou? Um presente
em que as forças da separação atingem sua expressão universal, sua vigência cega a
serviço de uma necessidade de administração absoluta da vida. De negação da vida. De
sua inversão em mercadoria e no valor abstrato, totalizante da mercadoria. A
mercantilização precisa de uma resposta ilustrada e astuta, o combate contra a miséria
presente necessita de um amplo conhecimento que se possa resolver em ação.

A possibilidade humana de superação das contradições históricas que nos


aniquilam não nasceu em nossa época; ela apenas se repete nela quando fatores reais lhe
fornecem no presente um novo fundamento fático sobre o qual possa gerar novos frutos.
Dessa forma, o passado conjugado no presente constitui a possibilidade de restauração
de um momento sepultado pela história que encontra de novo o seu kairós, vale dizer, o
momento propício à sua ressurreição.

A antiga imagem encontra no presente uma nova encarnação. Benjamin nos


ensina que a história não é uma coleção de fatos descritos por um estudioso neutro.
Também no estudo do passado o interesse tem de ser movido pela decepção que
impulsiona o homem em um momento de perigo. Neste sentido,

Articular o passado historicamente não significa conhecê-lo “tal como ele


propriamente foi” significa apoderar-se de uma lembrança tal como ela
lampeja num instante de perigo. Importa ao materialismo histórico capturar
uma imagem do passado como ela inesperadamente se coloca para o sujeito
histórico no instante do perigo. O perigo ameaça tanto o conteúdo dado da
tradição quanto os seus destinatários. Para ambos o perigo é único e o
mesmo: deixar-se transformar em instrumento da classe dominante. Em
cada época é preciso tentar arrancar a transmissão da tradição ao
conformismo que está na iminência de subjugá-la. Pois o Messias não vem
somente como redentor; ele vem como vencedor do Anticristo.
(BENJAMIN, Tese VI sobre o conceito de história, citado por LÖWY, 2005,
65)

As imagens do passado que ilustram o presente e servem para arrancá-lo do


comodismo que o desespero alimenta devem ser colocadas na trilha da verdadeira
emancipação humana. Portanto, deve ser desviada de sua antiga rota, o caminho que a
291

razão tomou sob o comando do poder. Que os frutos da criação humana foram
apropriados por forças particulares que usaram o resultado do trabalho social humano
em função de interesses privados. E a razão só pode construir o seu reino se for capaz de
alimentar a esperança de um tempo futuro com as chamas da revolta passada: lá onde
fomos derrotados repousa a semente de nossa possível vitória. Nos termos de Debord –
que aqui repetimos, a propósito – significa ousar abordar o passado com o interesse
daquele que não deseja mais “viver conforme as instruções daqueles que atualmente
detêm a produção econômica e o poder de comunicação com o qual ela se armou.”
(DEBORD, 2002, 49). Lembrar que o Messias não apenas proclama um reino possível,
mas combate um mal presente não é saudosismo que busca refúgio na tradição. É fazer
a imagem de uma recusa e resistência passada brilhar no presente em um momento de
necessidade. Portanto, “O dom de atear ao passado a centelha de esperança pertence
somente àquele historiador que está perpassado pela convicção de que também os
mortos não estrão seguros diante do inimigo, se ele for vitorioso. E esse inimigo não
tem cessado de vencer.” (BENJAMIN, idem.)

É preciso, pois, passear no campo de escombros do passado não como saudosista,


mas como alguém que busca tanto afinidades nas quais se inspirar quanto antipatias que
combater. Evitar o banal é não resignar-se ao abandono das ilusões da modernidade.
Desilusão como um estado de alerta em relação aos desvios alimentados pelos novos
mitos plantados nos campos da história. Atento às ilusões do mundo banalizado Debord
escreve:

“O mundo é desilusão”, resumiu Villon num único octassílabo ( “Le monde


n’est qu’abusion” é um octassílabo, ainda que um diplomado dos dias de hoje
provavelmente não consiga reconhecer mais de seis sílabas nesse verso). A
decadência geral é um meio a serviço do império da servidão, e é somente por ser
esse meio que lhe é permitido fazer-se denominar progresso. (DEBORD. 2002,
75/76. Grifos nossos.)

Servindo-nos ainda das palavras de Walter Benjamin, o “alarme de incêndio”


precede o movimento de desvio e anuncia a sua necessidade em meio à premonição
histórica das ameaças do progresso: se o deslocamento e o desvio de trajeto não forem
realizados “antes de um momento quase calculável da evolução técnica e científica (...)
tudo está perdido. É preciso cortar o estopim que queima antes que a faísca atinja a
dinamite.”(BENJAMIN, Sens Unique, citado por LÖWY, OP. CIT., 23)
292

O estilo debordiano do desvio nos mostra o que se pode esperar de um autor


crítico que sabe da necessidade de construir a forma de seu escrito em completa
desconformidade com o que lhe desconforta e contra o qual se põe: operando como uma
espécie de montagem literária elaborada em um campo textual enciclopédico,
configura-se como um instrumento dialético, articulando no texto – os termos são de
Benjamin – “momentos da história colocados em sobreposição adequada”.
(BENJAMIN, citado por PARINI, 93). Construir o futuro possível com os elementos
colhidos entre os rastros da destruição?

As “citações sem aspas”, as inversões, as colagens, as desapropriações dos valores


da propriedade, a ironia das subversões semânticas, as dobras do texto nas quais se
escondem potências a serem explicitadas, colocam em diálogo vários momentos da
história do pensamento criando uma montagem suprema que dinamiza a linguagem,
dissolvendo e recuperando a história em um único e ousado golpe: o desvio: a astúcia da
dialética. Seria uma confusão lastimável interpretar o resultado avançado dessa revolta,
movida pela desilusão corporificada no texto, como saudosismo, embora o autor transite
sempre no tempo passado com se estivesse em casa, em seu lugar de origem.

Quase como fragmentos em um sistema por conceber que não se congela e não se
resigna à feitura acabada do dogma, o estilo de Debord nos lembra das “sementes
literárias” de Novalis, seus grãos de pólen a serem acolhidos e estudados como “textos a
pensar”; ou então os fragmentos de Schlegel compostos como forma genuína da
filosofia crítica, que não pode aceitar e deve estar pronta para combater a letargia de
qualquer pensamento que se apresente como um sistema fechado. Pois a filosofia
crítica, instrumento de expressão e meio pelo qual se efetiva a revolta do indivíduo
contra o universo de imitação que o escraviza, só existe como um sistema em vias de
realização, como um 'sistema em deriva' , uma enciclopédia de proposições desviadas e
recortes descontextualizados reunindo várias épocas, em cuja composição dialógica do
texto desviante superam os momentos fraturados do tempo espetacular; um sistema,
enfim, desviado do sistema abstrato que pairava como uma totalidade vazia sobre os
atores passivos, escravos das estruturas, confiantes no futuro, cegos para o presente.
Não um corpo coerente de ideias enrijecidas, ou um sistema reificado, governado por
uma regra alheia ao seu próprio movimento, mas um conjunto articulado de elementos
interdependentes, orbitando em torno de suas regras provisórias e singulares, ensaiadas
como mediações abertas entre a expressão que se alça ao plano universal da revolta e
293

sua forma de construção, que lhe segue os passos a cada nova intervenção criativa. Eis o
desvio mais uma vez traduzido.

Stephen Dedalus ofuscado e constrangido pelo arrogante Buck Mulligan antes do


despertar que a consciência de sua própria pessoa produziria, exprime sua indigência
nas frases “Sou agora outro mas ainda assim o mesmo. Um servidor também. O servo
de um servidor.” (JOYCE, Ulisses.) Sabe que serve alguém que, por sua vez, também é
servo. No contexto desse mundo de servidões em que ninguém ou nada pode manifestar
o orgulho de sua autonomia, em que escravos são servos dos seus senhores e os próprios
senhores servos dos seus escravos, conforme mostrou Hegel em sua Fenomenologia do
Espírito67, as relações entre as forças assume regularmente a forma da sujeição de umas
às outras, de domínio e submissão. Nietzsche, que pensava o mundo do ponto de vista
das estruturas de dominação vigentes e no seu amor fati construiu uma doutrina
justificativa da submissão, percebeu muito bem a dinâmica da realidade histórica em
que vivia. Traçou poeticamente o quadro do confronto entre potências que se modelam
através da distância que assumem em suas posições relativas: alto e baixo, nobre e
escravo. Aqui a razão submerge na miríade de desejos que se querem afirmar e que em
suas afirmações relativas a subjugam. Torna-se cabível a pergunta: se a razão torna-se
serva da vontade na transição histórica para o capitalismo a vontade ela mesma é serva
de quem? A vontade é serva do desejo que se deve educar.

Historicamente a razão subiu ao trono do qual hoje foi tirada através de um


movimento de conquista experimentado como processo de autoconsciência e
autoconstrução do Eu: “No primeiro momento em que isto aconteceu – justamente a
época de Rousseau e de Kant – o Eu foi vivenciado como a nascer do sol que anunciava
a nova manhã” ( SAFRANSKI, 209, 2011) e a consciência que se experimentava como
motor da história humana ainda estava embriagada de si mesma e de seu próprio
reconhecimento como força criadora; ainda não havia tido a oportunidade de olhar para
trás e contemplar os rastros de destruição mostrados em seus escombros. No momento
em que a razão é situada no centro da experiência humana como ato produtor de seu
próprio mundo e tarefa projetada rumo à construção de seu futuro, ela ainda começava a
caminhada e o horizonte de seu destino estava iluminado por promessas de futuro. Os
artífices da racionalidade moderna não podiam prever a que fins ela seria destinada.

67
Confere: Fen Esp, Livro IV.
294

Rüdiger Safranski em seu livro sobre Schopenhauer nos deixou um belo resumo sobre o
movimento histórico de ocultamento, descoberta e estranhamento do sujeito racional
que nos trouxe até a desilusão. (cf. SAFRANSKI, P 209.)

No limite, o sujeito descobre-se como construtor de seu próprio mundo, logo


escravo de suas criações. No entanto, aquela que teria sido sempre a senhora de seu
destino a traçar os rumos de sua trilha, a orientá-lo em sua busca pela ordem justa é
deposta de seu lugar, reduzida a mecanismo de relojoaria e máquina de calcular. No
momento em que a política se tornava expansiva e exaltava paixões, passando a ser o
poder capaz de transformar as vidas, a razão se recolhia e se isolava no interior do eu de
onde se projetava e traçava à sua imagem e semelhança os contornos da natureza
desencantada.

A inteligência instrumentalizada diante do espaço vazio de conteúdo organizado


segundo padrões geométricos. No âmago de tudo a vontade como força propulsora e
potência infinita a cobrar seu tributo e fazer valer suas diretrizes sombrias dirigindo o
espetáculo político no qual os pequenos “eus” lutam pela supremacia e pelo poder.
Diante do mundo transformado em canteiro de obras, a razão oferecia as ferramentas
para o cálculo, no interior das lutas sociais colocava à disposição dos príncipes a técnica
através da qual o poder podia ser conquistado e mantido, não através do conhecimento
do ser que seria fonte da ordem social, mas por meio da astúcia, da mentira, do medo e
da violência. De qualquer maneira, a razão passou a ser o meio utilizado para a
conquista da natureza através das operações do entendimento e para a conquista do
poder através da elaboração de estratégias políticas adequados aos fins da vontade de
domínio.

A condição moderna aparece como conflito entre duas formas de vontade


mediadas pelo aparato político e apaziguadas pela ideologia que as orienta na mesma
direção. O Estado moderno medeia entre as singularidades dispersas e a organização
econômica, ambas as instâncias genéricas e constitutivas de uma mesma força de
vontade que anseia pelo poder e pelo domínio da propriedade do outro. As distintas
forças são assim uma só vontade que se desdobra em dois sentidos: a microvontade civil
e a macrovontade política. O que não se enfatizou o suficiente até agora é que o
domínio é tornado possível – através das diversas formas do exercício do controle do
295

grande aparato burocrático-administrativo, que defende os interesses macroeconômicos


sobre as vontades singulares –, pelo fato das vontades desejarem o mesmo.

Os prazeres da existência foram, há pouco, redefinidos autoritariamente; primeiro, as


respectivas prioridades, e, depois, a sua substância por inteiro. E estas autoridades,
que os redefiniam, viam-se também em condições de decidir, a cada momento, sem
terem de inquietar-se com quaisquer outras considerações, qual alteração mais
lucrativa a introduzir nas técnicas da fabricação desses prazeres, inteiramente
liberta da necessidade de agradar. (DEBORD, 1993, p.32)

Dessa maneira a representação política constituída como ordenamento jurídico e


organização administrativa pode conciliar os interesses aparentemente diferentes do
dominador e do dominando, do explorador e do explorado, porque aquilo que o poder
anseia em sua configuração monumental e abstrata ele também quer em sua forma
mínima e igualmente abstrata. A sociedade do desejo coletivo como desejo do outro,
que vai desembocar na sociedade de consumo constituindo as singularidades como
forças destituídas de propósito próprio e autenticidade, como formas iguais de
reprodução do mesmo, regidas pelo sistema de necessidades, funda uma falsa
comunidade cimentada pela vontade unanime, cuja equalização do sentido objetivo das
forças dirige todas as esferas no mesmo rumo. Facilita-se o arranjo artificial das
contradições no sentido da falsa conciliação entre desejos inconciliáveis porquanto as
estruturas abstratas da racionalidade administrativa podem determinar fins que todos
reconhecem como seus. O que ela, a razão abstrata, parece dirigir, na verdade ela apenas
apascenta em função de interesses que ela mesma obedece.

A necessidade por “poder mais” que guia as vontades no sentido da realização


comum das mesmas metas: a disputa pelo mercado de trabalho, a especialização, o
aumento da renda, o consumo das mercadorias, tudo o que constitui os fantasmas da
realização, não surgem diretamente dentro de nós; elas são sugeridas a nós por aqueles
que esperam obter algum lucro da sua criação, eles mesmos escravos daquilo que criam.
Nossa escravidão voluntária radica na unidade de propósito da vontade equalizada que
se diferencia em estratos de poder sem, no entanto, deixar de manter idêntico o seu
conteúdo. Debord percebe o fenômeno com clareza quando considera que “La Boétie
mostrou, no Discurso sobre a servidão voluntária, como o poder do tirano precisa
encontrar vários apoios nos círculos concêntricos dos indivíduos que disso retiram, ou
pensam retirar, alguma vantagem.” (DEBORD. Comentários sobre a Sociedade do
Espetáculo. In: A Sociedade do Espetáculo, P 215).
296

Tanto o senhor quanto o escravo exercem suas vontades como interesses privados
contrapostos, falsamente conciliados pelos mesmos motivos que os norteiam: o domínio
e a submissão. Tais vontades chocam-se na sociedade civil até encontrarem o espelho
burocrático no qual se reconhecem como desejo abstrato de poder traduzido na forma
jurídico-administrativa do controle político. As vontades aprendem a falar a mesma
língua, a obedecer às mesmas regras: mostram-se vontades de um senhor: a força
administrativa de retificação e equalização do múltiplo pela imposição da forma padrão
da regra consensual e universal. É contra essa regra que se deve mobilizar o texto, é ela,
em última instância, que fornece os meios para a sua própria deposição pelo desvio. Ela
representa a universalização da perda e, portanto, sua subversão pode significar a
conquista universal da liberdade criativa que fundaria a nova verdade da filosofia.

O desejo individual morre como singularidade para se configurar como


coletividade; como desejo comum abstrato, passível de ser formalmente representado
como universal genérico; aquilo que a vontade macropolítica dos interesses econômicos
corporativos mediados pela instância burocrática do Estado burguês impõe como regra.
Primeira vontade: a multidão dispersa; segunda vontade: o poder unificador; terceira
vontade: a coletividade unificada pela força que lhe nega realização no ato mesmo do
pôr ilusório de sua pseudo-unidade simbólica. Negar a configuração dessa unidade
simbólica significa incidir sobre ela a força revolucionária que reverte as condições que
a produzem e a sustentam. A astúcia da dialética.

A racionalidade subjetiva emerge do conflito como força unificadora, como


promessa conciliatória; no entanto, esconde seu verdadeiro propósito: a sustentação do
poder pelo exercício de um saber que se tornou meio, portanto, instrumento a serviço de
objetivos privados voltados a consecução dos imperativos da eficiência máxima, da
melhor relação custo-benefício, (TAYLOR, A ética da autenticidade, P 14) da
regulamentação da vida. O critério que doravante se aplica é o da razão instrumental.
Uma vez que as potências da vontade abstrata são libertas do lugar que ocupavam na
antiga ordem do ser estabelecida pela razão substancial dos antigos, o embate das
criaturas no mercado pode ser tratado como matéria prima ou instrumentos para projetos
alheios às suas próprias necessidades e anseios. Melhor, podem ser tratados como
projetos de realização coletiva que escondem seus motivos privados de dominação e
controle. As vontades que falam a mesma língua contribuem para o domínio e a
conquista de regiões cada vez mais abrangentes da experiência humana, operando
297

através da racionalização da existência, pela qual “as demandas do crescimento


econômico são usadas para justificar distribuições bastante desiguais de riqueza e
renda” (TAYLO, P 15) e do planejamento social “dominado por formas de análise de
custo-benefício que envolvem cálculos grotescos, colocando valores tributáveis em
vidas humanas.” (TAYLOR, P 15)

No universo padronizado da vontade do mesmo corporificado nas personalidades


autoritárias todos aprendem a falar a linguagem do objeto, a se orientar pelo código
consensual das regras formais em que o comum e o banal exercem controle universal
sobre a vida cotidiana colonizada pelas suas próprias forças subvertidas, dirigidas contra
si mesmas.

Se tivermos a força da vontade de poder em mente e o saber que se tornou


escravo do capital, nossas considerações podem, em diálogo com as de Adorno e
Horkheimer, construir a ponte que nos permita transitar até a linguagem espetacular,
considerada como a representação formal da regra de subordinação, através da qual o
consenso coletivo é submissão coletiva ao padrão universal, que corresponde aos
anseios da vontade autoritária. Vale uma leitura cruzada. Citemos integralmente um
trecho bastante significativo da Dialética do Esclarecimento:

La ilustración, en el más amplio sentido de pensamiento progresivo, ha perseguido


desde siempre el objetivo de quitar a los hombres el miedo y convertirlos em señores. Pero
la Tierra enteramente ilustrada resplandece bajo el signo de una triunfal calamidad. El
programa de la Ilustración era el desencantamiento del mundo. Quería disolver los mitos y
derrocar la imaginación mediante el saber. Bacon, “el padre de la filosofía experimental”,
reunió ya los motivos. Despreciaba a los partidarios de la tradición, que “primero creen que
otros saben lo que ellos no saben; y despues, que ellos mismos saben lo que no saben. Sin
embargo, la credulidad, la aversión a la duda, la irreflexión en las respuestas, la jactancia
cultural, el temor a contradecir, la interés personal, la negligencia en las propias
investigaciones, el fetichismo verbal, el quedarse en conocimientos parciales: todas estas
actitudes y otras semejantes han impedido el feliz matrimonio del entendimento humano
con la naturaleza de las cosas, y en su lugar lo han amancebado con conceptos vanos y
experimentos desordenados. Es fácil imaginar los frutos y la descendencia de tan gloriosa
relación. La imprenta, una tosca invención; el cañón, una que se veía venir; la brújula, en
cierto modo ya conocida antes: ¡qué cambios no han traído estos tres inventos, uno en el
dominio de la ciencia, otro en el de la guerra, y el tercero en el de la economía, el comercio
y la navegación! Y digo que nos hemos topado y tropezado con ellos sólo de casualidad. La
superioridad del hombre reside en el saber: de ello no cabe la menor duda. En él se
conservan muchas cosas que los reyes, con todos sus tesoros, no pueden comprar, sobre las
cuales no rige su autoridad, de las cuales sus espías y delatores no recaban ninguna noticia
y a cuyas tierras de origen sus navegantes y descubridores no pueden arribar. Hoy
dominamos la naturaleza en nuestra mera opinión, mientras estamos sometidos a su
necesidad; pero si nos dejásemos guiar por ella en la invención, podríamos ser sus amos en
la práctica.”

Aunque ajeno a la matemática, Bacon supo captar bien el modo de pensar de la


ciencia que vino tras él. El matrimonio feliz entre el entendimiento humano y la naturaleza
298

de las cosas en que él pensaba es patriarcal: el intelecto que vence a la superstición debe
mandar sobre la naturaleza desencantada. El saber, que es poder, no conoce límites, ni en la
esclavización de las criaturas ni en la condescendencia con los amos del mundo. Del mismo
modo que está a la disposición de los objetivos de la economía burguesa en la fábrica y en
el campo de batalla, se halla también a la disposición de los emprendedores sin distinción
de origen. Los reyes no disponen de la técnica más directamente que los comerciantes: ella
es tan democrática como el sistema económico con el que se desarrolla. La técnica es la
esencia de tal saber. Éste no aspira a conceptos e imágenes, a la felicidad del
conocimiento, sino al método, a la explotación del trabajo de otros, al capital. Las muchas
cosas que, según Bacon, todavía reserva son a su vez sólo instrumentos: la radio como
imprenta sublimada; el avión de caza como artillería más eficaz; el telemando como la
brújula más segura. Lo que los hombres quieren aprender de la naturaleza es la manera de
servirse de ella para dominarla por completo; y también a los hombres. Nada más que eso.
Sin consideración hacia sí misma, la Ilustración ha consumido hasta el último resto de su
propia autoconciencia. Sólo el pensamiento que se hace violencia a sí mismo es lo
suficientemente duro para triturar los mitos. Frente al triunfo actual del sentido de los
hechos, incluso el credo nominalista de Bacon resultaria sospechoso de ser una metafísica y
caería bajo el veredicto de vanidad que él mismo dictó sobre la escolástica. Poder y
conocimiento son sinónimos. La estéril felicidad del conocimiento es lasciva para Bacon,
tanto como para Lutero. Lo que importa no es aquella satisfacción que los hombres llaman
verdad, sino la “operación”, el procedimiento eficaz. “El verdadero fin y la verdadera
función de la ciencia” residen no “en discursos plausibles, amenos, memorables o llenos de
efecto, o en supuestos argumentos evidentes, sino en el actuar y trabajar, y en el
descubrimiento de datos antes desconocidos para una mejor provisión y ayuda en la vida”.
No debe haber ningún misterio, pero tampoco el deseo de su revelación. (ADORNO E
HORKHEIMER. Dialéctica de la ilustración. Fragmentos filosóficos. Pp. 19-21. Grifos
nossos).

Na modernidade a razão como capacidade de determinar, antes que compreender,


a ordem tornou-se uma questão de poder e o poder uma questão de vontade, força,
cálculo. A força do cálculo sujeita a um projeto de manipulação, administração e
planejamento.

É exatamente a relativização da razão, produto de seu esvaziamento pela


modernidade que ainda se faz necessário atacar. E isso deve ser feito com uma astúcia
que consiga, trafegando em seu próprio elemento, destituí-la, uma vez que o vazio
universalizado como valor de troca a regular o comércio dos símbolos não permite que
a crítica seja operada de fora de seu próprio espaço. Operar pelo desvio significa
construir a consciência crítica a partir da revolução na forma que subverte a razão em
sua mecânica, recuperando sua força expressiva e seu valor de verdade no interior de
sua própria autocrítica, destituindo a razão de seu uso instrumental sem abandoná-la,
sem renunciar ao significado nem se vergar à sedução do significante vazio que torna a
linguagem uma prostituta a serviço de quem puder mais. Deve-se operar um desvio da
vontade soberana através do desvio do desejo. Uma última astúcia da dialética?

A renúncia à racionalidade em nome do clichê já desgastado do combate ao


“projeto iluminista” é não só muito genérico, mas autodestrutivo. A esquerda crítica e
299

revolucionária em função da necessidade de viabilizar seu projeto não pode


simplesmente renunciar à razão. A própria crítica à racionalidade moderna deve ser
tentada a partir do respeito aos critérios lógicos construídos pela razão, como forma de
manter os enunciados imunes a contaminação das vontades subjetivas que se querem
afirmar a despeito da objetividade. É a própria tentativa de construção de uma teoria
social razoável que sofre quando o absurdo e os jogos de palavras substituem a análise
critica e rigorosa das realidades sociais. (SOKAL e BRICMONT, 2010, 223.) Chomsky
observa que, em passado não tão distante,

Os intelectuais de esquerda tomaram parte ativa na vigorosa cultura da classe


trabalhadora. Alguns buscaram contrabalançar o caráter de classe das instituições
culturais através de programas de educação dos trabalhadores, ou escrevendo livros
de grande vendagem sobre matemática, ciência e outros temas, para o público em
geral. É extraordinário que seu equivalentes de esquerda hoje em dia procurem,
constantemente, privar o povo trabalhador desses instrumentos de emancipação,
alardeando que o “projeto do Iluminismo” esta morto e que portanto devemos
abandonar as “ilusões” da ciência e da racionalidade – uma mensagem que irá
alegrar o coração dos poderosos, encantados por poder monopolizar esses
instrumentos em proveito próprio. (CHOMSKY 1993, p. 286)

Sabemos que a razão na história foi adquirindo diferentes formas, tornando-se


diferentes instrumentos, constituindo diferentes estratégias. Assim, assumiu valores
distintos para distintos usuários que dela se serviram, de tal modo que não se pode falar,
com o conhecimento que temos hoje, de uma razão universal ou universalmente válida
sem distingui-la como forma, sem avaliá-la em seus propósitos, sem situá-la em relação
aos seus fins. O que efetivamente fez Max Horkheimer em seu volume O Eclipse da
Razão (2002). Também nós devemos com Debord falar do interior de uma certa forma
de razão contra o mau uso da razão: contra a vontade de poder que se apoderou da
razão. Uma “razão dialética” entendida, em amplo sentido, como aquela que se situa
acima das fraturas e oposições dicotômicas que distorcem o entendimento limitando sua
vigência e validade. Nem uma razão subjetiva nem uma razão absoluta acima do sujeito,
mas uma razão situada na tensão entre a objetividade que se oferece a inteligência que
procura. O desvio da razão por meio da astúcia de uma razão dialética.

Defender a indeterminação como valor pode funcionar como uma força ideológica
que isenta a todos do compromisso com o significado, fornecendo suporte ao próprio
projeto de poder que nivelou tudo pelo valor abstrato do significante. Conhecer as
artimanhas de uma linguagem universalizada que carrega em sua estrutura um valor de
troca que anula todo sentido por permitir qualquer sentido, impondo a toda a expressão
o vazio do nivelamento, constitui condição fundamental para empreender uma crítica da
300

razão não contaminada pelas falsas escolhas determinadas pela própria lógica da
submissão e do controle. Foi exatamente isso que acompanhamos em Debord. De certa
forma a astúcia da dialética nos disse isso: que há sempre a possibilidade de se reverter
as forças de controle, de se vivificar o banal e restaurar a possibilidade de experiência
autêntica através dos próprios meios que a destruíram. Há sempre uma esperança na
desilusão. Há sempre uma razão à espreita que se consegue sobrepor aos subprodutos de
seus próprios projetos irrealizados.

Em um mundo em que a miséria e a falta de sentido se universalizaram servindo a


uma vontade de dominação corrompida em suas próprias bases; neste mundo em que a
linguagem, serva de interesses mesquinhos, empobreceu o pensamento ao ponto deste
tornar-se um grito impotente, presa de uma lógica universal que o sufoca, o revoltado
corre o risco de errar o alvo se não calibrar bem a sua arma. Se não for capaz de
identificar a vontade egoísta na razão quando a razão ensaiar suas vontades. E a arma do
revoltado é a própria linguagem comprometida com a razão e consciente de seus limites
e das armadilhas que tem de superar com sua astúcia.

Evidentemente, a crítica à razão na linguagem, à vontade de sistema, ao sistema


da vontade alienada, não poderia ter como consequência a renúncia à própria razão, uma
vez que, dessa forma, ela acabaria por inviabilizar os seus pressupostos, tornando-os
todos frutos de escolhas arbitrárias e subjetivas e não resultados de conceitos bem
construídos, ligados por argumentos intersubjetivamente reconhecíveis e logicamente
sustentáveis. Por outro lado, a deposição pura e simples da razão só levaria à libertação
da vontade de todas as formas de contenção, de todos os limites necessários ao
equilíbrio, mesmo que instável, de uma realidade tendente ao excesso, elevando ao
infinito a força cega de uma potência brutal e destrutiva. Aqui se coloca em questão a
obsessão poética pela interação entre a contenção e a liberdade, aquilo que Terry
Eagleton denominou “o choque entre o finito, o mortal, o necessariamente limitado e a
arrogância.” (EAGLETON. A tarefa do Crítico) Em termos marxianos Eagleton resume:

... a crença letal no infinito (...) pode mais uma vez voltar à distinção entre o valor de
uso e o valor de troca. O valor de uso é limitado e específico, ao passo que o valor
de troca é potencialmente infinito. Hoje, de maneira bem alarmante, com o trabalho
de Deleuze, Badiou, Zizek e outros, a noção de infinito está sendo reabilitada –
naturalmente não como no sonho americano, mas mesmo assim, creio eu, de odo
desencaminhado. (EAGLETON. A tarefa do Crítico. P. 97. Grifos nossos.)
301

A renúncia à razão pode, no entanto, assemelhar-se à impotência da raposa que


justifica seu fracasso desprezando o objeto. Nós, por outro lado, devemos reconhecer as
dificuldades interiores aos esforços da razão, seus desvios e maus usos, mas não
podemos jamais virar às costas para o mundo nem tampouco considera-lo mero produto
de construções do imaginário social. Devem-se converter os desejos ilegítimos da razão
escrava, na vontade autolibertadora da razão dialética. E a razão dialética de certa
forma reabilita pelo desvio os maus usos da razão. Reativa a força da ironia que desde
Sócrates motivou a consciência crítica contra as artimanhas do poder. A astúcia da
dialética não é, como queríamos demonstrar, uma fuga para o irracional, mas uma
realimentação da razão através da criação e do jogo, da reversão da linguagem movida
pelo consenso ideológico à linguagem da diferença, da possibilidade de restauração do
poder simbólico dos signos em suas relações no contexto de seu esvaziamento pelo
valor de troca, da afirmação da declaração de guerra contra o espetáculo, essa forma
absoluta de se conquistar a adesão inconsciente de indivíduos enfeitiçados pela magia
do engano, cristalizada na totalidade dos efeitos espetaculares que colonizam vontade e
conduzem os destinos. A luta contra a linguagem realizada como revolução total
mediante a ampla mobilização das forças políticas contidas na cultura, das
possibilidades de reutilização variadas dos elementos da cultura, da paródia que reverte
a potência ideológica do sistema.

O que está em jogo em todos os lances realizados pela astúcia debordiana são as
formas humanas de vida, não apenas a interpretação de símbolos ou a consciência dos
simulacros. Pois os simulacros são de fato a roupagem ideológica de forças reais de
dominação, de submissão e separação, de perda do ser genérico, de dissolução dos laços
sociais, de impossibilidade de afirmação do sujeito e suas vontades, guiadas pela razão,
em liberdade e autonomia.
302

BIBLIOGRAFIA

Bibliografia primária

Para o estudo da obra de Debord nos servimos de uma ampla pesquisa. No


entanto, nosso caminho foi norteado pela bússola que cremos ter encontrado em sua
magnum opus: A Sociedade do Espetáculo. Ela nos servirá de senha para entrada na
floresta densa de significado e tensões na qual iremos nos aventurar, em busca do
sentido da crítica e da criação do mestre francês. O leitor atento já terá percebido a
ambiguidade presente no nosso título, alusivo aos rumos que nossa pesquisa deverá
tomar: a análise da obra, a sociedade contra a qual a obra se insurge e, por fim, o
conceito nuclear que se dissemina por toda a produção debordiana, dando-lhe unidade.

O texto a Sociedade do Espetáculo foi também, simultaneamente a coisa a ser


interpretada e a chave da interpretação. A análise de sua constituição exemplar nos
permitiu o diálogo crítico com toda a produção significativa de Debord, sem nos
perdermos nesse universo singular, tão múltiplo quanto coeso, tão denso quanto difícil.

Debord se posiciona sobre muitos temas: a arte, o urbanismo, a arquitetura, a


literatura, a crítica social, a filosofia, a política, a economia. No entanto, todos eles
orbitam o mesmo centro de gravidade formando as “unidades federadas”, conforme
Debord mesmo classificou a fórmula de articulação de seu texto.

Afortunadamente, possuímos a edição de suas obras completas que nos oferecem


o material para o amplo estudo que empreendemos. Esse conjunto de textos, dos quais A
Sociedade do Espetáculo é a matriz, será o referencial teórico que orientará o nosso
trabalho e, ao mesmo tempo, o texto sobre o qual incidirá nossa interpretação. É com
base nessas fontes primárias, e nos critérios apresentados acima em nossas estratégias
metodológicas, que construiremos nossa própria aventura na sociedade do espetáculo.

A recente publicação das Obras Completas, com cerca de 2.000 páginas, de Guy
Debord (1931-1994) fornece-nos uma excelente ocasião para uma viagem para além da
sua lenda situacionista e que permita observar a prodigiosa coerência de um pensamento
que, por nunca ter renegado a sua dimensão revolucionária, oferece-nos as melhores
chaves para compreender a sua obra e o nosso tempo.
303

DEBORD, Guy. Oeuvres. Édition Établie et annotée par Jean-Louis Rançon en


collaboration avec Alice Debord; preface et introductions de Vincent Kaufmann. Paris:
Gallimard, 2006, 1998 pp.
As pricipais obras de Debord referidas no texto de nossa tese, cuja versão original
usamos a partir da coletânea supracitada, são:
DEBORD. L’internationale Lettriste (1952-1957) pp. 76-147.
________. Potlatch. pp. 174-217.
________. L’internationale Situationniste (1957-1972) pp. 298-371.
________. Critique de la Séparation (1961) pp. 541-557.
________. “All the King’s Men”, I.S. nº 8, janvier 1963. pp. 613-620.
________. La Societé du spectacle, novembre 1967. pp. 764-861.
________. Relevé provisoire des citations et des détournements de La Societé du
spectacle, janvier 1973. pp. 862-873.
________. La Societé du spectacle (film), octobre 1973. pp. 1196-1268.
________. In girum imus nocte et consumimur igni, mars 1978. pp. 1334-1410.
________. Panégyrique, tome premier 1989. pp. 1656-1686
________. Panégyrique, tome second 1990. pp. 1690-1760

Versões portuguesas utilizadas:

DEBORD, Guy. Panegírico. Tradução de Edison Cardoni. São Paulo: Conrad Editora
do Brasil, 2002.
_____________. A Sociedade do espetáculo; seguido do prefácio à 4ª edição italiana.
Comentários sobre a sociedade do espetáculo. Tradução de Estela dos Santos Abreu.
Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
_____________. All the King’s Men. Tradução de Emiliano Aquino. In: “Poiesis,
trabalho e cultura”, endereço eletrônico:
http://emilianoaquino.blogspot.com.br/2008/01/all-kings-men.html.

Esta edição em um volume nos fornece a obra e a vida de Guy Debord (1931 –
1994) através de todas as suas manifestações , legíveis e visíveis: tratados, artigos de
revistas, cartazes, fotografias, planos “psico-geográficos”, colagens, grafites, letras de
canções, cartas, apresentadas em sua ordem cronológica. Encontra-se aqui A Sociedade
304

do Espetáculo e os livros já publicados pela Gallimard e todos os roteiros de filmes das


Oeuvres cinématographiques completes, que foram reeditadas em DVD por Gaumont.
Mas, sobretudo, a obra reúne e organiza, pela primeira vez, um grande número de
documentos de arquivos de Guy Debord e do Internacional Situacionista, a maioria
inédita e não encontráveis. A sequência dos eventos, dos encontros, das amizades e das
rupturas é apresentada por um comentário colocado às margens do texto e pelas
legendas de uma abundante iconografia.

Como dissemos acima, tal edição constitui nossa base de operações e dispensaria
qualquer bibliografia adicional, senão aquelas fontes secundárias que podem servir de
referência para discussões acerca de nossa abordagem da estratégia debordiana. No
entanto, nos servimos de textos das mais variadas procedências e traduções para melhor
situarmos o sentido da construção estilística de Debord. Sempre que encontramos uma
boa tradução em português nos servimos dela para as citações.

Quando as passagens debordianas não foram bem traduzidas em português


optamos por reproduzir os originais franceses. Espero que o leitor tenha um pouco de
paciência com essa forma não usual de citação. Mas acontece que nada em Debord pé
usual e, assim, seguimos o mestre no estranhamento, para compormos nosso texto
desviante, inclusive nas menções bibliográficas.

Acrescentamos em seguida algumas referências explicativas da ordem de


composição de algumas obras fundamentais de Debord, que usamos em nossa pesquisa
e que estão reproduzidas integralmente nas Oeuvres publicadas in quarto pela Gallimard
em 2006, a qual já se encontra mencionada acima. excluída a Sociedade do Espetáculo,
e seus trabalhos cinematográficos.

DEBORD, Guy. Préface à la quatrième édition italienne de “La Société du Spectacle”


(Champ Libre, 1979; in: 1992 Gallimard edição dos Commentaires). Traduzido por
Lucy Forsyth and Michel Prigent as Preface to the Fourth Italian Edition of “The
Society of the Spectacle” (Chronos, 1979).

—— “A los libertarios.” Tratado anônimo em defesa dos prisioneiros anarquistas


espanhóis. Incluido in Appels de la prison de Ségovie (Champ Libre, 1980).

—— Considérations sur l’assassinat de Gérard Lebovici (Lebovici, 1985; Gallimard,


1993).

—— (with Alice Becker-Ho), Le “Jeu de la Guerre”: Relevé des positions successives


de toutes les forces au cours d’une partie (Lebovici, 1987). Relato sobre um jogo de
305

tabuleiro inventado por Debord com comentários estratégicos. Traduzido para o ingles
por Donald Nicholson-Smith como A Game of War e publicado em uma caixa junto
com o tabuleiro e as peças.(Atlas Press, 2007).

—— Commentaires sur la société du spectacle (Lebovici, 1988; Gallimard, 1992).


(Verso, 1990).

—— Panégyrique, (Lebovici, 1989; Gallimard, 1993). Reflexões autobiográficas


bastante esclarecedoras da ligação em Debord da vida com o pensamento e a arte, bem
como da absoluta coerência de seu modo de ser e, agir e pensar. . Suas várias
referências a estrategistas militares nos mostram uma constante em seu pensamento: a
utilização da guerra como metáfora e como forma de construção do texto dialético.

—— “Cette mauvaise réputation...” (Gallimard, 1993). Respostas a vários rumores e


mal entendidos sobre Debord.

—— Des contrats (Le Temps Qu’il Fait, 1995). Contratos dos filmes de Debord.

—— Panégyrique, tome second (Fayard, 1997). Consists mostly of photographs


illustrating Volume 1. Uma tradução inglesa feita por John McHale, combinada com
uma versão revisada da tradução de James Brook’s do Volume 1. Foi publicada como
Panegyric, Volumes 1 & 2 (Verso, 2005).

—— Correspondance, volume 1: 1957-1960 (Fayard, 1999).

—— Correspondance, volume 2: 1960-1964 (Fayard, 2001).

—— Correspondance, volume 3: 1965-1968 (Fayard, 2003).

—— Correspondance, volume 4: 1969-1972 (Fayard, 2004).

—— Correspondance, volume 5: 1973-1978 (Fayard, 2005).

—— Correspondance, volume 6: 1979-1987 (Fayard, 2007).

—— Correspondance, volume 7: 1988-1994 (Fayard, 2008). Cobre os últimos anos de


1957 e inclui também várias cartas que foram descobertas muito tarde para serem
icluídas no volume acima.

—— Le Marquis de Sade a des yeux de fille (Fayard, 2004). Edição Facsimile de


algumas cartas da juventude de Debord (1949-1954).

Jean-François Martos’s Correspondance avec Guy Debord (Le Fin Mot de l’Histoire,
1998) Inclui cartas entre Debord e alguns de seus colaboradores de 1981-1991. Este
livro não é mais possível de ser encontrado, tendo sido legalmente condenado por
infringir os direitos de cópia da Librairie Arthème Fayard. Foram feitos arranjos junto a
viúva de Debord Alice (Becker-Ho) Debord para serem publicadas na edição de suas
obras completas citada acima.
306

Debord também traduziu os seguintes textos para o francês: Protestation devant les
libertaires du présent et du futur sur les capitulations de 1937 (texto da mais radical
corrente anarquista durante a Guerra Civil espanhola: Champ Libre, 1979); Stances sur
la mort de son père (poema clássico espanhol por Jorge Manrique: Champ Libre, 1980;
Le Temps Qu’il Fait, 1995); e Sanguinetti’s Véridique rapport .

Obras cinematográficas:

Hurlements en faveur de Sade (Films Lettristes, 1952). 75 minutes.

Sur le passage de quelques personnes à travers une assez courte unité de temps (Dansk-
Fransk Experimentalfilmskompagni, 1959). 20 minutes.

Critique de la séparation (Dansk-Fransk Experimentalfilmskompagni, 1961). 20


minutes.

La Société du Spectacle (Simar Films, 1973). 80 minutes.

Réfutation de tous les jugements, tant élogieux qu’hostiles, qui ont été jusqu’ici portés
sur le film “La Société du Spectacle” (Simar Films, 1975). 25 minutes.

In girum imus nocte et consumimur igni (Simar Films, 1978). 100 minutes.

Todos os filmes são 35mm, B&W. Oeuvres cinématographiques complètes: 1952-1978


(Champ Libre, 1978; Gallimard, 1994) contém roteiros ilustrados de todos os seis
filmes. Existe também uma edição separada anotada da voz narrativa do texto de In
girum (Lebovici, 1990; Gallimard, 1999). A edição anotada da Gallimard inclui também
documentos adicionais, bem como alguns comentários e resenhas de In Girum
originalmente organizadas sob o título Ordures et décombres déballés à la sortie du film
“In girum imus nocte et consumimur igni” (Champ Libre, 1982). O roteiro de In girum
foi também traduzido por Lucy Forsyth (Pelagian, 1991). Traduções dos outros seis
filmes foram feitas por vários tradutores e organizadas (e algumas revisadas) em
Richard Parry (ed.), Society of the Spectacle and Other Films (Rebel, 1992). Essas
versões forma superadas pela Complete Cinematic Works (AK, 2003), que inclui novas
traduções de Ken Knabb dos seis filmes acrescidas de ilustrações, documentos e
extensas anotações.
307

Debord também fez um filme de 60 minutos Guy Debord, son art et son temps,em
colaboração com Brigitte Cornand (Canal Plus, 1994). O roteiro não está incluído em
Oeuvres cinématographiques complètes ou nas Complete Cinematic Works.

Após ter ficado indisponível por aproximadamente vinte anos, as versões francesas
originais de todos os filmes de Debord ( incluindo o vídeo de Cornand) estão agora
disponíveis em uma caixa contendo três DVDs

Bibliografia Secundária

ADORNO, T. W. A filosofia Muda o Mundo ao manter-se como teoria. Publicado


originalmente na revista Spiegel, em 1968. Tradução de Gabriel Cohn. In: COHN, S.;
PIMENTA, H. Maio de 68. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008.

_____________. A posição do narrador no romance contemporâneo. In: Benjamin,


Habermas, Horkheimer, Adorno. Textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1983
(Col. Os Pensadores).

_____________. Notas de Literarura I. Organização da edição alemã Ralf Tiederman.


Tradução e apresentação Jorge de Almeida. São Paulo: Livraria Duas Cidades. Ediotra
34, 2003.

_____________. Notas sobre literatura. Traducción Alfredo Brotons Muñoz. . Madird;


Akal, 2009.

ADORNO, T. W. ; HORKHEIMER, M. Dialéctica de la ilustración. Traducción


Joaquín Chamorro Mielke. Madrid: Akal, 2007.

_____________. Dialética do Esclarecimento. Fragmentos filosóficos. Tradução de


Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor: 1985.

ALIGHIERI, Dante. De Vulgari Eloquentia. In:


http://www.greatdante.net/texts/vulgari/vulgari.html. Acesso em 15/03/2013.

AUERBACH, Erich. Mimesis A representação da realidade na literatura ocidental.


São Paulo: Perspectiva: 2004.

AUSTIN, John Langshaw. How to do things with words. Cambridge: Harvard


University Press, 1975.

BAUMAN, Zygmunt. Sobre educação e juventude. Tradução de Carlos Alberto


Medeiros. Editora Zahar. Rio de Janeiro:2013.
308

BARROS, Revista correio do livro daUnB; 2000.

BEI, Hakim. TAZ: Zona Autônoma Temporária. Tradução de Patrícia Decia e Renato
Rezende. São Paulo: ed. Conrad, 2011.

BENJAMIN, W alter. Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo. Tradução


de José Carlos Martins Barbosa e Hemerson Alves Baptista. São Paulo: Ed. Brasiliense,
2000.

BERARDINELLI, Afonso. Da poesia à prosa. Organização e prefácio: Maria Betânia


Amoroso. Tradução: Maurício Santana Dias. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

______________________. La forma del saggio: definizione e attualitá di um genere


letterario. Venezia: ed. Marsílio, 2008.

BLOCH, Ernst. Sujeito- Objeto El Pensamiento de Hegel. México: 1983.

BLOOM, Harold. Como e por que ler. Tradução de José Roberto O’Shea; Revisão
Marta Miranda O’Shea. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

BRANCO, Guilherme Castelo. Foucault em três tempos: a subjetividade na arqueologia


do saber. In: Revista Mente, Cérebro e Filosofia. São Paulo: Duetto Editorial, 2007.

BRIENT, Jean-François. Da Servidão Moderna (Filme). In:


https://www.youtube.com/watch?v=xAVYFYMFAag. Acesso em 24/02/2012.

BURCH, Noël. Práxis do cinema. Editora Perspectiva, São Paulo, 1969, pp. 11-12.

BUTLER, Chris. Henri Lefebvre: Spatial Politics, Everyday Life and the Right to the
City. New York: Routledge, 2012.

CÂMARA, Rui. Contos de Outono. O romance da vida de Lautréamont. Editora


Recorde. Rio de Janeiro: São Paulo: 2003.

CASARES, Adolfo Bioy. La Invencion de Morel-El Gran Serafin. Edición de Trinidad


Barrera. Madrid: Cátedra Ediciones, 1982.

CHOMSKY, Noam. Year 501: The Conquest Continues, Boston; South end Press,
1993. Citado por SOKAL, Alan; BRICMONT, Jean. Imposturas intelectuais. O abuso
da Ciência pelos filósofos pós-modernos. Tradução de Max Altman. Revisão técnica de
Alexandre Tort. 4 ed. São Paulo: Editora Record, 2010.

COELHO, Teixeira. Antonin Artaud: posição da carne. São Paulo: Brasiliense, 1982.

CORRÊA, José de Anchieta. Loucura e Imperialismo da Razão. In: Extensão –


Cadernos da Pró-Rreitoria de Extensão da PUC-MG- v.1, n.1 (março 1991) – Belo
Horizonte: PUC-MG, 1991.
309

D’AGUIAR, Rosa Freire. Os ensaios, de Montaigne. In: MONTAIGNE, M. E. Os


Ensaios. Tradução e notas de Rosa Freire D’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras,
2010.

DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Tradução de Luiz Orlandi e Roberto


Machado. Rio de Janeiro; Edições Graal,1988.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka; por uma literatura menor. Tradução de
Júlio Castanon Guimarães. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1977.

DURANT, Will. História da filosofia. Vida e ideias dos grandes filosofos. Tradução de
Godofredo Rangel e Monteiro Lobato. Companhia Editora Nacional. São Paulo:1938.

EAGLETON, Terry; BEAUMONT, Matthew. A Tarefa do Crítico. Tradução de


Matheus Corrêa. São Paulo: Ed. Unesp, 2010.

EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura: uma Introdução. Tradução de Waltensir


Dutra. São Paulo: Ed. Martins Fontes,2003.

FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da Lírica Moderna. Tradução: Marise M. Curione. São


Paulo; Livraria Duas Cidades, 1991.

GADAMER, H. G. La Dialectica de Hegel. 3 ed . Tradução de Manuel Garrido.


Madrid: Ediciones Cátedra,1988.

HARTMANN, Nicolai. A filosofia do idealismo alemão. Tradução de José Gonçalves


Belo. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1983.

HARVEY, David. O enigma do capital e as crises do capitalismo. Tradução de João


Alexandre Peschanski. São Paulo: Boitempo Editorial. 2012.

HAVELOCK, Eric. Prefácio a Platão. Tradução de Enid Abreu Dobränzsky. São


Paulo: Papirus Editora, 1996.

HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. Tradução de Paulo Meneses com a


colaboração de José Nogueira Machado. Petrópolis: Ed. Vozes, 1993.

______________. Phänomenologie des Geistes. Köln: Anaconda Verlag GmbH, 2010.

_______________. Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse


(1830) http://www.hegel.de/werke_frei/hw108000.htm Acesso em 15/06/2013

______________. Science de la logique, 3 vol. Traction présentation et notes par Pirre-


Jean Labarrière et Gwendoline Jarczyk. Paris: Aubier, 1981.

______________. Fenomenologia Del Espiritu. Tradução de Wenceslao Roces con la


colaboración de Ricardo Guerra. México: Fondo de Cultura Econômica, 1987.
310

______________. A Razão na História; uma introdução geral à filosofia da história.


Introdução de Robert S.Hartman. Tadução: Beatriz Sidou. São Paulo: Editora Centauro,
2001.

______________. Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio (1830). Vol I. A


ciência da lógica. Texto completo, com os Adendos Orais, traduzido por Paulo Meneses
com a colaboração do Pe. José Machado. São Paulo: Edições Loyola,1995.

HOFFMANN, E. T. A. A Janela de Esquina de Meu Primo. São Paulo: Ed. Cosacnaify,


2010.

HOMERO. Odisseia. Tradução e prefácio de Frederico Lourenço. Introdução e notas de


Bernard Knox. São Paulo: Ed Companhia das Letras. 2011.

HUIZINGA, Johan. Homo Luden: o jogo como elemento da cultura. Tradução: João
Paulo Monteiro, Revisão: Mary Amazonas Leite de Barros; Produção: Ricardo W.
Neves e Raquel Fernandes Abranches. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2010.

_______________. O Outono da Idade Média: estudos sobre as formas de vida e de


pensamento dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos. Tradução de Francis
Petra Janssen; revisão técnica de Tereza Aline Pereira de Queiroz. São Paulo: Cosac
Naify, 2010.

INWOOD, Michael. Heidegger. Tradução de Adail Ubirajara Sobral. São Paulo: Ed.
Loyola, 2004.

________________. Hegel. In: BUNNIN, Nicholas; Tsui-James E. P. (org) Compêndio


de Filosofia. Tradução de Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Edições Loyola, 2002.

JANIK, Allan ; TOULMIN, Stephen. La Viena de Wittgenstein. Madrid: Taurus


ediciones, 1983.

JANZ, C. P. Friedrich Nietzsche: Los diez años del flósofo errante. Versión española de Jacobo
Muñoz e Isidoro Reguera. Madrid: Alianza Editorial, 1985.

JAPPE, Anselm. Guy Debord. Traducción de Luis A. Bredlow. Barcelona: Editora


Anagrama, 1998.

____________. Sic Transit Gloria Artis. O “Fim da Arte” segundo Theodor W. Adorno
e Guy Debord. Ed. Centelha Viva. Almada: Sem data.

JAY, Martin. A imaginação dialética: História da Escola de Frankfurt e do Instituto de


Pesquisas Sociais, 1923-1950. Tradução de Vera Ribeiro; revisão da tradução de César
Benjamin. Rio de Janeiro: 2008.

KANT, I. Crítica da Razão Pura. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre
Fradique Morujão; introdução e notas de Alexandre Fradique Morujão. 7 ed. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 2010.
311

KAUFMANN, Vincent. Guy Debord: Revolution in the service of poetry. Translated


by Robert Bononno. Minneapolis: London: 2006.

KELSEN, Hans. O Estado como Integração: um confronto de princípios. Tradução de


Plínio Fernandes Toledo. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

KNABB, Ken. (Org.) Situationist International Anthology. Revised and Expanded


Edition. Berkeley: Bureau of Public Secrets, 2006.

KOJÈVE. Essai d’une Histoire Raisonnee de la Philosophie Paienne. 3 vol, Paris:


Gallimard, 1997.

________. La Dialectica Del Amo y Del Esclavo en Hegel. Traducción de Juan José
Sebreli. Buenos Aires: Editorial la Pleyade, 1987.

LEVI, Primo. É isto um homem? Traduzido por Luigi del Re. Rio de Janeiro: Rocco,
2013.

LOCKE, John. Concerrning Civil Government, Second Essay. Chicago: Encyclopaedia


Britannica, 1994.

____________. Segundo tratado sobre o governo. Tradução de Anoar Aiex e E. Jacy


Monteiro. 2. Ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (os pensadores).

LÖWITH, Karl. De Hegel à Nietzsche. Traduit de L’allemand par Rémi Laureillard.


Paris: Éditions Gallimard, 1969.

LÖWY, Michael. A Estrela do Manhã; Surrealismo e marxismo. Tradução: Eliana


Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.

LUKÁCS, Georg. A Teoria do Romance: um ensaio histórico-filosófico sobre as formas


de grande épica. Tradução de José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Livraria
duas cidades-editora 34, 2000.

______________. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista.


Ttradução de Rodnei Nascimento; revisão da tradução de Karina Jannini. São Paulo:
Ed. Martins Fontes, 2003.

______________. Soul and form. Translated by Anna Bostock. London: Merlin Press,
1974.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia Alemã. Tradução de José Carlos Bruni e
Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Editora Hucitec, 1987.

MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. Tradução, apresentação e notas de


Jesus Ranieri. São Paulo: Boitempo editorial, 2004.
312

__________. Das Kapital: Die zwei Faktoren der Ware: Gebrauchswert und
Wert(Wertsubstanz, Wertgröße). In:
http://www.mlwerke.de/me/me23/me23_049.htm#Kap_1_1. Acesso em 16/06/2013.

__________________. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Tradução de Rubens


Enderle e Leonardo de Deus. São Paulo: Boitempo editorial, 2010.

_________. O Capital. Crítica da Economia Política. Tradução de Regis Barbosa e


Flávio R. Kothe. São Paulo: Ed. Nova Cultural, 1985.

_________. O Método da economia-política, in: MARX; Karl ; ENGELS, Friedrich.


História. Organizador Florestan Fernandes; Tradução Florestan Fernandes et al. 2 ed.
São Paulo: Ática, 1984.

MARCUSE, Herbert. Razão e Revolução. 2 ed. Tradução de Marília Barroso. Rio de


Janeiro: editora Paz e Terra, 1978.

_________________. Ideologia da Sociedade Industrial. Tradução de Giasone Rebuá.


Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967.

MCDONOUGH, Tom. (Org.) Guy Debord and the Situationist International: Texts
and documents. Massachusetts: MIT Press, 2004.

MERRIFIELD, Andy. Guy Debord (Critical Lives). London: Reaktion Books Ltd,
2005.

MÉSZÁROS. István. Marx; a teoria da alienação. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de


Janeiro: Zahar editores, 1981.

________________. A educação para além do Capital. São Paulo: Boitempo Editorial,


2005.

MONDIN, B. O Homem, quem é ele? Elementos de Antropologia Filosófica. Tradução


de R. Leal Ferreira e M.A.S. Ferrari. São Paulo: Edições Paulinas, 1983.

MONTAIGNE, M. E. Os Ensaios. Tradução e notas de Rosa Freire D’Aguiar. São


Paulo: Companhia das Letras, 2010.

MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? A questão fundamental da democracia. Tradução


de Peter Naumann. 3. Ed. São Paulo: Max Limonad, 2010.

NIETZSCHE, Friedrich. Götzen-Dämmerung. In: Friedrich Nietzsche Kritische


Studienausgabe Vol 6. Herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzino Montinari.
Berlin: Walter de Gruyter GmbH & Co., 1999.

NOVALIS. Pólen. Fragmentos, diálogos, monólogos. Tradução, apresentação e notas


de Rubens Rodrigues Torres Filho. 2. Ed. São Paulo: Iluminuras, 2001.
313

________. Notes for a Romantic Encyclopaedia. Translated, Edited, and with an


Introduction by David W. Wood. State University of New York,2007.

________. La encyclopedia. (Notas y fragmentos). Traducción del alemán: Fernando


Montes. Madrid: Espiral, 1996.

ONG, Walter. Oralidade e Cultura escrita: a tecnologização da palavra. Tradução de


Enid Abreu Dobránszky. Campinas: Papirus editora, 1998.

ORWELL,George. 1984. Tradução de Wilson Velloso. 15 Ed. São Paulo: Editora


Companhia Editora Nacional,1982.

PARINI, Jay. A travessia de Benjamin. Tradução de Maria Alice Máximo. São Paulo:
Ed. Record, 1999.

PASCAL, Blaise. Pensées. Édition présentée, établie et annotée par Michel le Guern,
Paris: Gallimard, 1977.

PERNOUD. As Origens da Burguesia. Tradução de F. S. Lisboa: Publicações Europa-


América, 1973

POE, Edgar Allan. Contos de Imaginação e Mistério. Prefácio de Charles Baudelaire;


tradução de Cássio de Arantes Leite. São Paulo: Tordesilhas, 2012.

PINTO, Manuel da Costa. Albertcamus; um elogio do ensaio. São Paulo; Ateliê


Editorial, 1998.

PERNIOLA, Mario. Desgostos; novas tendências estéticas. Tradução de Davi Pessoa


Carneiro. Apresentação de Aurora Bernardini. Florianópolis: Editora UFSC, 2010.

REALE, Giovanni ; ANTISERI, Dario. História da Filosofia, do humanismo a Kant.


São Paulo: Paulus, 1994.

ROGOSINSKI, Jacob ; VANNI, Michel (orgs). Dérives pour Guy Debord. Lausanne,
2001.

ROSZAK, Theodore. A Contracultura. Tradução de Donaldson M. Garschagen. Rio de


Janeiro: Editora Vozes, 1972.

SAFRANSKI, Rüdiger. Schopenhauer; e os anos mais selvagens da filosofia. Tradução


de William Lagos. São Paulo: Geração Editorial, 2011.

SARLO, Beatriz. Sete Ensaios sobre Walter Benjamin e um Lampejo. Tradução de


Joana Angélica D’avila Meio. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2013.

SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo; a imaginação; questão de


método. Traduções de Rita Correia Guedes, Luiz Roberto Salinas forte, Bento Prado
Júnior. São Paulo: Nova Cultural, 1987.
314

SILVA, Arlenice Almeida da. Georg Lukács: autonomia e heteronomia da arte. In:
ALMEIDA, Jorge de; BADER, Wolfgang. O pensamento Alemão no século XX. São
Paulo: Cosac Naify, 2013.

SOKAL, Alan; BRICMONT, Jean. Imposturas intelectuais. O abuso da Ciência pelos


filósofos pós-modernos. Tradução de Max Altman. Revisão técnica de Alexandre Tort.
4 ed. São Paulo: Editora Record, 2010.

SORIA. Ana Carolina Soliva. Adorno: Minima Moralia. O passado preservado no


presente. In: Revista Mente Cérebro e Filosofia. Ed nº 7: Adorno, Horkheimer, Fromm
e Benjamin - O homem no caos do capitalismo moderno – vários, Duetto, 2007.

STENDHAL. O vermelho e o negro. Tradução de Raquel Prado. São Paulo: Cosac


Naify, 2010.

TAYLOR, Charles. A ética da autenticidade. Tradução de Talyta de Carvalho. São


Paulo: Realizações editora. 2011.

_______________. As fontes do Self; A construção de identidade moderna. Tradução


de Adail Ubirajara Sobral e Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Edições Loyola,1997.

TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica. Tradução de Maria Clara


Correa Castello. São Paulo: Editora Perspectiva, 1975.

TOUCHARD, Jean (org). História da ideias políticas. Quarto volume. Lisboa:


Publicações Europa América, 1970.

TOURNON, André. Montaigne. Tradução de Edson Querubini. São Paulo: Discurso


editorial, 2004.

VANEIGEM, Raoul. A arte de viver para as novas gerações. Tradução Leo Vinicius.
São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2002.

___________________. Banalidades de base. 3 Ed. Tradução de Paulo da Costa


Domingos, prefácio de Júlio Henriques. Lisboa: Frenesi, 1998.

VOEGELIN, Eric. Ordem e História, Vol. V. Introdução: Ellis Sandoz; Tradução:


Luciana Pudenzi, Revisão técnica: Marcelo Perine. São Paulo: ed. Loyola, 2010.

______________. A nova ciência da política. 2 ed. Tradução de José Viegas Filho.


Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1982.

_______________. Autobiographical Reflections. Edited with na introduction by Ellis


Sandoz. Baton Rouge and London: Louisiana State University Press, 1989.

WHEEN, Francis. O Capital de Marx. Tradução de Sérgio Lopes. Rio de Janeiro: Ed.
Zahar, 2007.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Logische-philosophische Abhandlung. London, 1957.


315

______________________. Philosophical investigations. 4 edition. Transleted by


G.E.M. Anscomb, P.M.S. Hacker and Joachim Schulte. London: Wiley-Blackwell,
2009.

SITES NA INTERNET SOBRE DEBORD CONTENDO TEXTOS E


REFERÊNCIAS

http://www.notbored.org/debord.html

http://www.ubu.com/

http://baixacultura.org/?s=situacionismo

http://en.wikipedia.org/wiki/Psychogeography

http://it.wikipedia.org/wiki/Situazionismo#Il_vocabolario_dei_situazionisti

http://it.wikipedia.org/wiki/Psicogeografia

http://kaganof.com/kagablog/category/contributors/the-society-of-the-spectacle/page/3/

http://www.reocities.com/projetoperiferia4/critica.htm

http://pt.protopia.at/wiki/Desvio:_modo_de_usar

http://simpleappareil.free.fr/lobservatoire/index.php?2007/11/08/42-in-girum-imus-
nocte-et-consumimur-igni

http://emilianoaquino.blogspot.com.br/2008/01/all-kings-men.html

http://www.tumblr.com/tagged/internacional-situacionista

Você também pode gostar