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A ASTÚCIA DA DIALÉTICA:
Rio de Janeiro
2014
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A ASTÚCIA DA DIALÉTICA
Rio de Janeiro
Junho de 2014
3
Examinado por:
_________________________________________________
Presidente, Prof.. Doutor André Luiz de Lima Bueno - UFRJ
_________________________________________________
Prof. Doutor Victor Manuel Ramos Lemus - UFRJ
_________________________________________________
Profa. Doutora Danielle dos Santos Corpas - UFRJ
_________________________________________________
Profa. Doutora Elvira Maria Godinho de Seixas Maciel - FIOCRUZ
_________________________________________________
Prof. Doutor Ricardo Pinto de Souza - UFRJ
_________________________________________________
Prof. Doutor João Roberto Maia da Cruz – FIOCRUZ
_________________________________________________
Prof. Doutor Luis Alberto Nogueira Alves - UFRJ
Rio de Janeiro
Junho de 2014
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À Nhá Chica, mãe que zela por nós que somos pequenos;
AGRADECIMENTOS
Professor Dr André Bueno, meu orientador, muito obrigado pela honestidade intelectual
e competência profissional com as quais me acompanhou durante todo o trajeto de
minha pesquisa, qualidades que serviram de apoio e norte na elaboração de minha tese.
Muito obrigado pela generosa recepção de minhas ideias, compreensão de minhas
angústias, pela confiança depositada em mim e por toda a ajuda que me deu.
Prof Dr Carlos Boucault, meu amigo verdadeiro, por ter descoberto em mim um talento
que eu acreditava já ter-se apagado junto com os anos de minha juventude. Obrigado
por toda a ajuda e confiança sem as quais seria impossível chegar até aqui.
Profª Drª Tatiana Ribeiro, por ter me acolhido em sua casa nos primeiros dias e ter
partilhado comigo sua simpatia e hospitalidade.
À minha esposa e cúmplice, Itala Maria Toledo, que me acompanha em todos os passos,
que vive comigo todas as incertezas, compartilha minhas alegrias e tristezas; sempre
fiel, sempre linda, sempre do meu lado me mostrando que tudo ainda é possível se
permanecermos juntos. A você tudo para sempre.
Aos meus filhos, Maria Cristina, Jorge Luis, Luis Fernando e meus netos Bruno e Leo,
razões de minha vida e força de minha inspiração. Vocês sorriem para mim em cada
linha do meu trabalho, semeando-o com o amor que nutre todos os meus esforços e dá
sentido à minha trajetória.
A minha mãe Olga e meu pai João Toledo (in memorian), que avalizaram todas as
promissórias e nunca receberam nada em troca da dívida. A eles meu amor e gratidão
eternos.
À querida Prof ª Drª Elvira Maciel, amiga, irmã, alma igual a quem eu tanto admiro e
respeito.
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À Prof ª Drª Danielle Corpas, a quem conheci da melhor forma, ou seja, através da
leitura de seu belíssimo texto sobre Rosa, pela aceitação gentil de participar da
avaliação do trabalho de um humilde operário como eu, muito obrigado.
RESUMO
ABSTRACT
SUMÁRIO
PRIMEIRAS PALAVRAS............................................................................................12
I - AS RAZÕES DA DIALÉTICA...............................................................................31
1.1 Prelúdio......................................................................................................................32
4.7 Nossa época não deve mais escrever instruções poéticas, mas executá-las............168
5.3 Um antissistema?.....................................................................................................186
CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................................289
BIBLIOGRAFIA.........................................................................................................302
12
PRIMEIRAS PALAVRAS
.
Il faut lire ce livre en considérant qu'il a été sciemment écrit
dans l'intention de nuire à la société spectaculaire. Il n'a jamais
rien dit d'outrancier.
Guy Debord
Em que consiste este mundo e como escapar dele? Pois não basta saber que ele
existe, uma vez que ele existe dentro de nós e governa o que pensamos e o que sentimos
de maneira ampla e determinante. O Príncipe Próspero do conto A máscara da morte
vermelha de Edgar Allan Poe (POE, 2012, P 143), tentando escapar da peste que
assolava sua aldeia, busca o isolamento trancando-se, com todos os seus amigos e
parentes, num castelo fortificado, mas não sabe que a praga os acompanha, pois subsiste
dentro deles e os destrói a todos apesar do confinamento, ou melhor, em decorrência
dele. O personagem de Bioy Casares apaixona-se pela imagem de Faustine projetada
por uma máquina em La Invención de Morel (CASARES, 1982) e termina por inserir-se
no mundo ilusório que descobre para perpetuar sua paixão pela aparição fantasmagórica
de sua obsessão. Aprisiona-se voluntariamente num mundo de simulacros, no qual nada
mais resta de sólido, senão a subjetividade aniquilada e reconstruída como sombra de si
mesma em um mundo fabricado para perpetuar a ilusão e o isolamento. Um Hades
moderno povoado por fantasmas a repetir eternamente as mesmas ações inconscientes,
neutralizadas pelo falso e isoladas pela impossibilidade do contato humano. Um mundo
no qual a vida não mais pode “se reencontrar a si mesma através da suma de sua própria
diversidade”.(DEBORD, SE, O Filme)
realidade exibe a subversão irônica do sentido na sociedade moderna, pois quem leu o
livro 1984 de George Orwell (ORWELL, 1982) – uma ficção anti-utópica e crítica da
onipresença do poder sob a forma de controle absoluto em uma sociedade autocrática –
sabe que o olhar ubíquo do Grande Irmão significava o contrário do que a mídia fez dele
nos deploráveis reality shows modernos. Se em Orwell ele representava a visão
onipresente do poder cuja eficácia servia-se de uma sociedade na qual as
individualidades haviam sido suprimidas pelo controle psicológico, hoje ele se tornou a
mirada abstrata da massa para a qual todos querem se exibir. Se o Big Brother de
Orwell nomeava a aniquilação do indivíduo sob a forma da invasão dos mecanismos do
controle sobre a vida privada, o Big Brother moderno representa a submissão do
indivíduo ao simulacro e ao culto da imagem, uma vez que buscando os seus quinze
minutos de fama anula-se no próprio processo de sua afirmação ilusória e falsa. A
lógica da submissão e do isolamento tornou-se mais cínica e insidiosa do que imaginou
Orwell, pois hoje o indivíduo sente-se valorizado no contexto de sua própria liquidação
absoluta como imagem volátil, como pseudo-identidade passageira. Uma metáfora
crítica do poder é transformada pela força negativa da sociedade do espetáculo em seu
oposto positivado. Apresenta o espaço criado pelo poder para a destituição do humano
como lugar em que todos querem estar, como vigília onipresente a que todos se expõem
aparentemente de forma consciente e voluntária. Não há mais resistência consciente,
mas apenas adesão passiva. “É preciso saber”, observa melancolicamente Debord, “que
doravante a servidão quer ser verdadeiramente amada por si mesma e não mais porque
proporcionaria alguma vantagem extrínseca.” (DEBORD, 2002, p. 76) Que ela “não
procura se justificar pretendendo ter conservado, seja onde for, outro encanto que não o
simples prazer de conhecê-la.” (Idem, 2002)
comum pode vencer. Ainda que as celebridades tenham existido durante toda a história,
Rojek afirma que este é um fenômeno moderno, pois só hoje é possível criar a ilusão de
intimidade por meio da inserção massiva do “famoso” no cotidiano. O espetáculo
estende seus tentáculos a todos os setores da vida, recriando perpetuamente sua força de
controle mediante a efetivação do falso, através da mundialização dos recursos
tecnológicos de comunicação que permite a invasão de todas as esferas da existência.
Em um mundo globalizado não há mais para onde fugir. E se o exílio não é mais
possível, como combater uma ordem autoritária que aumenta seu poder de controle pela
inserção de seu movimento autônomo de produção e reprodução em todos os níveis e
em todos os lugares da vida social? Como Debord resolve o problema da teoria crítica
em um mundo em que a crítica arrisca-se, a todo momento, a reproduzir a lógica do
mecanismo que critica, tornando-se acrítica? Como resolver o problema da alienação e
das fraturas que impedem o pensamento e a criação de apropriar-se da vida por
submetê-los ao movimento fragmentado do não vivo? Como criar num contexto de
transformação global em que a força criadora da arte, que deveria constantemente
movimentar-se em direção à afirmação da diferença e da construção de uma relação
aberta e dialógica entre o singular e o universal, esvai-se e se dissipa? Quando tudo o
que movimenta a criação acaba congelado em princípios rígidos que generalizam e
isolam separando as normas gerais das situações concretas efetivamente vividas? Como
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O conceito debordiano pode ser, aqui, parcialmente percebido como aquilo que
não é. Torna-se fácil o engano em virtude da evidenciação onipresente do espetáculo em
seu movimento englobante. O espetáculo envolve todos os setores da vida social, atrai
todos os movimentos para a sua órbita e subverte todas as interveções, aniquilando-as
no próprio movimento desagregador que as separa, através da força que as neutraliza
como perspectivas superficiais e particulares. Debord afirma, a propósito, que a função
do crítico possui uma amplitude que não pode ser desdenhada sob nenhuma hipótese. O
espetáculo é uma condição global sustentada pela veiculação integral de sua lógica que
domina todas as instâncias da vida econômica e social, repetimos. Portanto, a única
saída para o crítico dialético que não se pretende deixar apanhar pela lógica insidiosa e
totalizante de su objeto é refutar a totalidade, cujo centro é este estilo de vida, de onde
podemos avaliar nossa força, porém nunca usá-la, conforme as palavras do próprio
Debord. Pois, as aventuras que nos são apresentadas formam parte das lendas
transmitidas pelo cinema ou de outras formas; fazem parte de toda a farsa espetacular da
história. (Potlatch) O “socialismo ou a barbárie”, no plano teórico desvia-se para: “a
refutação da totalidade ou nada”. Leiamos:
Sendo assim, o trabalho crítico pode, facilmente, servir como sustento daquilo que
denuncia, pois no contexto do aperfeiçoamento dos mecanismos de controle e
dominação, todo ato de aparente discordância tem lugar num espetáculo de âmbito
mundial que o anula. A vida transformada em um show do qual não podem escapar nem
mesmo os que contestam sua liquidação midiática. Os movimentos mais radicais da
revolta rapidamente tornam-se parte da peça, integram-se ao conjunto do que lhes
aprisiona e nega. A interpretação equivocada inverte o papel dos atores e dos conceitos
e o resultado é aquilo que um crítico feroz dos situacionistas alardeou: “a despeito de
seus protestos, os situacionistas logo se tornaram apenas mais um produto no
supermercado cultural”. Eis o que chamamos a “astúcia do espetacular”: digerir todas as
representações e metabolizá-las em formas falseadas: tanto as posições apologéticas
quanto as posições críticas. Pior, a crítica tende a servir de apoio à apologia de um
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mundo reificado cuja lógica historicamente construída aparece como uma lei natural da
qual não se pode escapar.
Por tudo isso, o trabalho de Debord ainda espera ser compreendido em sua justa
dimensão. Sua palavra ser salva mediante o correto dimensionamento de sua
negatividade e amplitude dialéticas. O que faremos no aprofundamento analítico do
estudo das conexões entre filosofia e arte em Debord. Conexões resultantes da
elaboração de uma dinâmica expressiva que constrói o seu sentido numa relação
dialógica com as mediações do mundo no qual está inserida, deslocando-as; das quais
não pode escapar senão pelo desvio crítico e descontrução dialética do presente estado
de coisas.
ideologia. Debord estava absolutamente certo quando dizia que o urbanismo estava se
tornando uma ideologia. A partir de 1961, data em que é criado o código urbanístico na
França, é o momento em que o urbanismo se torna uma ideologia. Isto não significa que
o problema da cidade estava resolvido, longe disso. Mas, nesse momento, os
Situacionistas coerentemente abandonam a teoria do urbanismo unitário. A deriva e os
movimentos de deriva foram sendo pouco a pouco abandonados por essa época
também, pois corriam o risco de se cristalizarem em princípios doutrinários negando
aquilo que pretendiam ser: a abertura da possibilidade da liberdade crítica e criativa no
contexto de um plano de ação singular de renovação e transformação das cidades e da
vida nas cidades. A arte de viver para as novas gerações poderia estar se transformando
em algo muito velho e enrijecido. Se a potência do abstrato se apropriasse dela, o
despertar da consciência das novas gerações que propunha acabaria se transformando
num sonho gregário programado pelos órgãos competentes para o entorpecimento do
rebanho. Raoul Vaneigen soube se cuidar? Debord certamente soube. Era inteligente
demais para se deixar apanhar pela potência nulificadora do espetáculo. Somos nós que
devemos nos cuidar ao lê-lo.
“A cultura é o lugar da busca pela unidade perdida. Nesta busca pela unidade, a
cultura como esfera separada é constrangida a negar-se a si mesma” afirma Debord.
(DEBORD, SE, 180)1 É preciso, pois, criar novos movimentos criadores de novas
identidades. Em torno do culto às aparências, produzido pela indústria da cultura
forjam-se identidades tão volúveis quanto falsas. Esse tipo de falsa consciência que
emerge da imposição de falsas representações é governado pelo principio do fetichismo
da mercadoria cuja lógica Debord já havia desnudado em sua tese 36 do livro A
Sociedade do Espetáculo. Lá ele percebe que
1
“La culture est le lieu de la recherche de l’unité perdue. Dans cette recherche de l’unité, la culture
comme sphère séparée est obligée de se nier elle-même.”
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seleção de imagens que existem acima dele, e que ao mesmo tempo se fez
reconhecer como o sensível por excelência. (DEBORD, SE, § 36).
Uma linguagem sem fraturas em que a filosofia e a arte integram-se num todo
dinâmico, cujo movimento negativo instaura novos horizontes para a crítica social no
interior de uma ampla renovação da expressão. Em que consiste a dialética como
estratégia criativa no contexto de um diálogo crítico com a tradição? Diálogo que
instaura um trânsito renovado da expressão aproveitando-se da força das relações
intertextuais para elaborar uma nova sintaxe anti-espetacular. Debord serve-se de uma
astúcia. Em que ela consiste? São muitas as perguntas, mas um só problema: em que
consiste a estratégia do negativo em Debord? Como se organizam suas frentes de
combate? Através de quais procedimentos constrói a sua força criativa que destrói?
Como constrói ele a máquina que lhe permite descer ao inferno da vida reificada e
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Este texto não vai, portanto, apresentar o trabalho de Debord como se fosse
possível abordá-lo didaticamente. É impossível. Não podemos ler Debord
didaticamente, separando e organizando em lugares distintos o que só sobrevive em seu
sentido pleno no interior do movimento em que as categorias fluidificam a linguagem
restaurando sua potência dialética. Após anos de contato com um texto e uma vida que
nos desafiam constantemente a compreensão uma certeza aflorou: a de que não
podemos enquadrar Debord em uma moldura analítica formal ou metodológica, o que
significaria espetacularizar uma obra anti-espetacular, anulando a astúcia da dialética.
A própria ideia ignora praticamente tudo o que Debord disse ou fez ao escrever.
Tematizar ou ordenar Debord sob a pretensa ou equívoca, embora bem intencionada,
crença de que alguém tem que começar em algum lugar com Debord é acreditar na ideia
da representação esquemática, finita ou “contenível” de Debord, do escrito ou
pensamento de Debord, da deriva, do desvio, da psicogeografia e assim por diante.
Tratar Debord dessa forma significa para nós dissecá-lo e, ao mesmo tempo, enquadrá-
lo na moldura de um sistema que ele mesmo recusava, cuja lei restritiva e perversa ele
quis superar integralmente.
Uma moldura que contraditoriamente banaliza e desfigura aquilo que não pode ser
tratado senão em sua dimensão mais ampla como um apanhado totalizante do diálogo
entre a vida e o pensamento mediado pelo estilo do texto, apanhado na plenitude de seu
vigor,no diálogo frutífero que estabelece entre referenciais diversos modelados pelas
interveções inventivas da ironia, dos jogos de guerra, da subversão de sentidos que,
noentanto , ao exibirem sua precariedade pelo desvio, elevam-se acima de si mesmos e
se realizam. Abordar um fazer teórico praticamente realizado pela superação da arte,
nos fazer inserir em um movimento antiespetacular que reverte o sentido das
proposições, que revira as estruturas e as desconstrói em seu vórtice sem, no entanto,
perder a coesão e o espírito de sutileza. Decupar os sistemas sem, no entanto, perder de
vista o “espírito de sistema”, não o “espírito sistemático” que a tudo congela na
abstração fria e a tudo submete às regras da razão administrativa. Atente-se para um
paralelo, uma aproximação à distinção feita por Pascal entre “l’esprit de géométrie et
l’esprit de finesse”. (PASCAL, 1977, p 328) Em cada um repousa uma parte do que se
precisa para apreender a totalidade da experiência, movimentar a compreensão
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mediante um estilo que integrasse o raciocínio claro com as coisas sutis e indistintas
postas pelo uso comum que se patenteia aos olhos de todos. Seria precisao que os
geômetras fossem sutis e que os espíritos sutis fossem um pouco mais geômetrtras. Ter-
se-ia, pela intermediação dialética de um estilo que aspira à superação das clivagens, o
movimento concreto de um texto que se harmoniza e integra pela própria diferença. O
geômetra sutil que constrói seu antissistema mediante a modelagem desviante dos
elementos arrancadaos da tradição, que aspira à dinâmica dos signos em relação
dialética pelo recorte que resulta na “feitura mais íntima da obra acabada, resultante da
convergência de uma decupagem no espaço e de uma decupagem no tempo” (BURCH,
1969, pp 11-12), de uma reinvenção do espaço-tempo do texto recriado pelo estilo.
É oportuna a menção a Lukács uma vez que o contraste entre a postura de Debord
e a do filósofo húngaro nos permite uma última consideração metodológica que nos
orientará a leitura durante todo o nosso trabalho. Sabemos que Lukács não cansou de se
corrigir nos prefácios de suas obras, de forma que a constante atualização de sua teoria
até a culminância na Ontologia do Ser Social tornou, de certa forma, ultrapassados aos
olhos do autor muitos de seus trabalhos anteriores à sua magnum opus. Dois exemplos
confirmam o que asseveramos. Ao final do Prefácio autocrítico de 1962 a sua Teoria
do Romance (1915/1916) Lukács adverte o leitor que
2
La Société du spectacle foi publicada em 1967 pelas Éditions Buchet-Chastel, em1971 pelas Éditions
Champ Libre e em 1992 pelas Éditions Gallimard. O trecho da advertência citada acima consta da edição
da Gallimard de 1992.
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Um autor que não costuma corrigir seus textos não só é um autor incorrigível, mas
que crê ter alcançado um estatuto teórico que ainda não foi desmentido pelas condições
histórico-sociais que ele definiu. Portanto, é mister concluir que “Uma teoria crítica
como esta não se altera, pelo menos enquanto não forem destruídas as condições gerais
do longo período histórico que ela foi a primeira a definir com precisão.” (DEBORD,
SE, 1997, p 9)
O fato de Debord ter assumido uma posição tão radical possui efeito
metodológico para nós que estudamos o autor da Sociedade do Espetáculo a partir do
diálogo entre as fontes primárias, pois, se ele admite jamais ter alterado suas posições e
seu modo de pensar, então seus textos possuem validade equivalente no conjunto de sua
obra, podendo servir de mediações uns aos outros para facultar a compreensão do que
está em jogo no pensamento situacionista-debordiano. Em seu Panegírico, texto
admirável sob todos os aspectos e bastante ilustrativo das posições de nosso autor,
Debord declara: “Minhas preferências e minhas ideias não mudaram, mantendo-se
rigorosamente opostas ao que a sociedade era, bem como a tudo aquilo em que ela
anunciava querer se transformar”. (DEBORD, 2002, p 27. Grifos nossos)
Persistência, coerência total, teimosia crítica, recusa absoluta, não importa: todas
as posições de Debord, a totalidade dos seus escritos, estão submetidas a uma única
froça negativa que se reafirma a cada intervenção, que se reforça, não obstante o meio
em que se expresse. Quer dizer, podemos ler Debord remetendo os textos uns aos outros
como recurso que permite adensar o significado da sua obra e clarear a complexidade de
suas posições políticas de maneira talvez única na história do pensamento dialético. O
diálogo intertextual entre diversas formas de intervenção, construções literárias e
filosóficas torna-se um “recurso metodológico imanente” a ser explorado, de forma que
as partes e o todo se ilustrem e se fecundem mutuamente pela leitura. A posição
intransigente do autor nos garante que uma mesma ideia se desdobrou em diversas
épocas e sob diversas formas ganhando mais nitidez em uma ou outra objetivação
político-literária, sem jamais ter se alterado a ponto de exigir uma revisão ou uma
alteração radical por parte do autor daquilo que ele queria originalmente dizer.
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I – AS RAZÕES DA DIALÉTICA
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1.1 Prelúdio
A tarefa da leitura que buscamos realizar requer uma nova consciência e esta
necessita radicar-se em uma forma de experiência renovada: aquela que não reproduz no
ato interpretativo os limites ilusórios das separações nem, tampouco, restringe-se à
facilidade do amálgama indiferenciado dos momentos não elevados dialeticamente, vale
dizer, não suprassumidos no movimento global da unidade vivente, que realiza seu
33
Por outro lado, cumpre notar, quanto mais dialógica a obra mais aberta a
equívocos, pois o diálogo joga necessariamente com elementos que critica,
aproximando-se deles de maneira irônica, extraindo de sentidos prévios a força do novo
sentido que elabora, a partir do qual constrói novas direções. O diálogo crítico que
constitui o procedimento nuclear da obra de Debord deve ser entendido não como
simples artifício de exposição, mas como uma obra dramática em que duas forças ou
mais se enfrentam diante de uma terceira força, invisível, mas presente e de igual
importância: o leitor ouvinte. Em uma passagem do Panegírico, por exemplo, em uma
imagem poderosamente reflexiva dialogam o filósofo e seu contexto; nela a
autoconsciência crítica fala:
Prevendo que dentro em pouco devo dirigir-me à humanidade com a mais séria
exigência que jamais lhe foi colocada, parece-me indispensável dizer quem sou. Na
verdade já se deveria sabê-lo, pois não deixei de “dar testemunho” de mim. Mas a
desproporção entre a grandeza de minha tarefa e pequenez de meus contemporâneos
35
3
É bom esclarecer que os exemplos usados aqui constituem apenas uma forma de ilustrar a tese que
sustentamos nesse capítulo, segundo a qual o desvio exige uma nova forma de inteligência e uma nova
sensibilidade que não se realizam no espectador moderno, acostumado fruir fórmulas e jargões que não
36
Para nós que lemos Debord em conformidade com uma estratégia própria,
situando-o no horizonte de um tipo de expressão que ele mesmo crítica, a filosofia, não
obstante valha-se dela para construir seu movimento de recusa em completa dissonância
com as circunstancias e com os poderes de sua época, devemos não só atentar para a
forma de um texto que se projeta a partir da relação extremamente problemática com a
moldura do quadro que escolhe como máscara, mas construirmos nós mesmos um texto
não espetacular, que não se refugie na facilidade da mera adesão à norma. Devemos
ferir algumas sensibilidades e frustrar muitas expectativas. Não procurando fazer como
Debord, mas fazendo como devemos fazer ao nos aproximarmos de Debord: uma leitura
configurada em um texto que se articula dialeticamente da maneira como ele pode
dialeticamente se articular. Há aqui também muita coisa por trás da máscara.
Devemos notar, de início, que o dialético deve, por assim dizer, encontrar sua via
ao caminhar por veredas já trilhadas e somente a partir delas determinar novos sentidos.
Um escritor que se apropria da dialética - como Debord - recolhe elementos pré-
firam sua sensibilidade rasteira nem quebrem a ordem banal de suas expectativas cotidianas. O espectador
busca a repetição e o desvio produz a diferença no interior da repetição, quebrando, no interior da regra,
aquilo que a regra postula. Exploraremos com mais detalhes e mais profundidade em nosso capítulo final
todas as formas do desvio, suas funções e significados específicos. Aqui adiantamos um exemplo em
função do contexto de nossa argumentação.
37
Conta-se que Walter Benjamin teria entabulado diálogo com um conhecido diretor
de teatro de sua época no qual este lhe aconselhava a escrever de forma mais
equilibrada e compreensível. Referindo-se à Rua de Mão Única dizia que um bom
escritor não escreve apenas frases bonitas, densas e memoráveis. Na obra de Tolstoi ou
de Gogol, por exemplo - lembrava Bernhard Reich a Benjamin – a proporção de frases
esplêndidas para frases medíocres fica por volta de uma para trinta. “Mas no seu texto –
repreendia – quase metade das frases são densas e memoráveis. Isso resulta em coisas
demais para o leitor se lembrar. É-lhe negada a possibilidade de expectativa”. Ao ouvir
isso, Walter Benjamin teria, a princípio, parecido se perturbar, mas depois disse:
“Receio que você esteja coberto de razão. Nunca vou ter um público.” Ao que Bernhard
Reich respondeu: “A não ser que você modifique o seu estilo.” Benjamin, então,
completa: “Isso eu não posso fazer. Seria imoral.” (Ver: PARINI, 1999, 218-219)
conciliatória com os poderes e expectativas da época. Uma integridade , cabe dizer, que
constitui elemento essencial de um texto representativo de um esforço teórico exemplar
de conjunção da vida com a obra em que o pensado representa o signo de uma recusa e
o emblema de uma honestidade sem a qual a proposta crítica se invalidaria por
completo. Do ponto de vista do espectador o que parece ser o sinal de uma perda e o
indício de um fracasso é, de fato, a marca de uma vitória em relação às seduções do
mercado e, ao mesmo tempo, uma conquista sobre si mesmo e sobre a banalidade que
esvazia qualquer tentativa não concessiva nem conciliatória de confrontar o comum. A
afirmação da diferença e da integridade da obra se vale da insubmissão diante das forças
que separam o que se é do que se faz, ameaçando desnaturar a singularidade e a
potência negativa do esforço crítico. Colocada a moldura podemos citar a passagem de
Sarlo em que a incompetência administrativa benjaminiana se transforma em absoluta
competência humana e filosófica. “Benjamin nunca soube administrar sua vida nem seu
trabalho.” (SARLO. Sete ensaios sobre Benjamin. P 26) Sentença absolutamente falsa.
A não ser que a interpretemos de forma invertida ou a leiamos como declaração irônica
acerca da falência da avaliação comum em determinar o significado de uma vida e de
uma obra inabarcáveis em categorias administrativas. Leitura que nos autoriza a
própria autora ao observar que “Na resistência a normalizar sua escritura segundo as
regras da cultura acadêmica ou do mercado editorial reside uma das chaves ideológicas
e formais de toda a sua obra.” (SARLO. Sete ensaios sobre Benjamin. P 26-27)
Portanto, embora sob a perspectiva profissional as condutas de Benjamin foram
desastradas, “e cada uma das dificuldades que ele encontrou para publicar seus escritos
foi antecipada por estratégias desviadas em relação a fins que ele dizia perseguir.”
(SARLO. Sete ensaios sobre Benjamin. P 27) Não obstante, seu modo de ser e de se
comportar em relação às exigências da norma e as expectativas do mercado, que
driblava no mesmo movimento com o qual fingia persegui-las, “isso configuraria
apenas um estilo intelectual se não se tivesse entrelaçado, de maneira indissolúvel, com
seus projetos, com a extensão de seus escritos e com os objetos”, junto à forma
peculiar, diríamos, “que ele abordava.” (SARLO. Sete ensaios sobre Benjamin. P 27)
Nesse caso, cumpre ressaltar que talvez Benjamin seja o autor que mais possua
proximidade com Debord, embora suas obras não tenham se comunicado, senão pela via
indireta e mediada do diálogo que aqui propomos. A condição benjaminiana ilustra em
muito a situação de Debord, guardadas as diferenças ou mesmo em virtude delas. Em
39
Uma trilha pelas montanhas é diferente quando se está caminhando por ela e
quando se passa voando sobre ela em um avião. Da mesma forma, a força de um
texto lido é diferente quando, além de lido, ele é copiado a mão. O passageiro do
avião vê apenas o caminho se estendendo pela paisagem, obedecendo aos ditames
do terreno. Só aquele que segue a pé pela trilha passa a compreender a força que
ela tem e como essa força se manifesta. O que para o passageiro de avião é apenas
uma paisagem a se descortinar, para o caminhante significa distâncias, belvederes,
clareiras, expectativas a cada curva do caminho; a trilha é como um comandante
dando ordens aos soldados na frente de batalha. (Citado por PARINI, 1999, 317)
Por outro lado, por ser incapaz de seguir a trilha obedecendo aos sentidos que sua
forma impõe, quer dizer, sem se dispor a palmilhar o caminho em toda a sua extensão
seguindo os rumos que ele determina, o leitor comum, ou lança mão de um mapa que
lhe dê uma ideia geral do trajeto, ou proclama a inexistência do mesmo e segue os
rumos que sua vontade lhe dita. Em qualquer um dos casos perde a possibilidade de
compreensão por se sujeitar ao que lhe impõe o hábito. Acomoda-se à prisão da
sensibilidade preordenada pela miséria de seu tempo. Aqui toda a confusão advinda da
conformidade da sensibilidade moderna às expectativas comuns deve ser evitada pelo
intérprete e reclamada pelo autor. Mais uma vez Nietzsche nos serve de exemplo ao
escrever: “Não desejo ser confundido – para tanto, é preciso que eu mesmo não me
confunda.” (NIETZSCHE, 2008, 50)
romper pelo desvio, vale dizer, pela força da construção dialética, com o mundo
alienado do reino das separações e com a vida cotidiana em fragmentos que se atrela as
normas gerais e à consciência comum como se essas fossem tábuas de salvação de sua
condição alienada.
É nesse sentido que é lícito pensar que a veracidade desta narrativa sobre o meu
tempo será satisfatoriamente comprovada por seu estilo. O próprio tom deste relato
será garantia suficiente, pois todos compreenderão que somente à força de ter vivido
desta maneira pode-se alcançar a excelência neste gênero de exposição.
(DEBORD, 2002, 18 Grifos nossos)
exterior, para frear aquele movimento dissolutório ou dissipar aquelas vãs aparências
que os homens seguem, combatendo-se e oprimindo-se uns aos outros.
Uma provocação de Debord mostra a distância irônica que seu estilo toma em
relação às expectativas do presente. Em um mundo fragmentado e acêntrico onde um
homem de verdade não encontra mais o lugar a partir do qual possa situar-se e ser
compreendido, cumpre operar um deslocamento: é necessário colocar-se novamente no
centro do mundo. Viver a experiência a partir de uma situação que coloque o indivíduo
de novo em condição de salvar-se do esfacelamento imposto pela vivência moderna:
não contra o texto, mas com o texto e através dele. “Quem pode escrever a verdade
44
senão aqueles que a sentiram?” pergunta-nos Debord. E quem pode sentir a verdade
senão aqueles que aprenderam a inscrevê-la no tecido inconsútil da experiência vital?
Debord parece nos alertar: minha obra e minha vida serão mal compreendidas;
meus raciocínios mal interpretados, confundidos com aqueles elaborados conforme o
uso tradicional do discurso. Não obstante, o aparentemente comum, o operar conforme
as regras esconde um proceder irônico que lhe singulariza como expressão de uma
diferença inconciliável com a norma do sistema. O novo se afirma mascarando-se do
velho, a revolução veste-se com as roupas da reforma, mas detrás do aparecer imediato
dos signos opera uma lógica nova cuja natureza é preciso compreender adequadamente
no intuito de situar sua verdade. Rebelar-se significa também lançar-se ao proibido, mas
45
para tal proeza é preciso ter coragem e consciência dos perigos. “Quanta verdade
suporta”, pergunta Nietzsche, “quanta verdade ousa um espírito?” (NIETZSCHE, 2008,
16. Grifos do autor).
Ousar a verdade é saber como alcançá-la e no trajeto conceber uma nova forma de
referir-se a ela, sem a qual a invenção se perde na formulação vazia que informa o
conformismo. Eis uma dificuldade para a qual Nietzsche tinha uma fórmula própria que
nos revela ao afirmar “eu não refuto os ideais, apenas ponho luvas diante deles...”
(NIETZSCHE, 2008, 16).
Uma vez que cada sentimento particular, não é mais que a vida parcial e não a vida
inteira, a vida deseja fundir-se numa completa multiplicação dos sentimentos, e
assim se reencontrar a si mesma através dessa suma de sua própria diversidade. No
amor o separado ainda existe, mas não mais como separado: como uma unidade em
que o vivo reencontra o vivo. Guy Debord
tal deve encontrar, como contrapartida de sua própria restituição, um outro reconstruído.
Mas no mundo em que o homem puder se reconhecer no homem, encontrando na
diferença não um obstáculo a sua autoconstrução, mas a possibilidade de si mesmo
como afirmação de uma singularidade própria e irredutível ao banal, o sistema
capitalista não mais existirá, uma vez que estarão depostas as condições de sua
produção e reprodução: a alienação econômica, o empobrecimento da experiência e a
incomunicabilidade como condição da linguagem degradada.
Quer dizer, Marx deseja uma coisa simples que, no entanto, não existe na
sociedade capitalista dominada pelo espetacular: alguém capaz de pensar por conta
própria. O leitor que ele almeja é alguém que não mais existe ou que poderia existir.
Dirige-se a uma condição passada ou uma possibilidade futura. O leitor presente não
tinha as qualidades interpretativas com as quais pudesse exercitar a compreensão
verdadeira.
Plusieurs excellentes raisons justifient, à mes yeux, une telle conduite ; et je vais
les dire.
Tout d’abord, il est assez notoire que je n’ai nulle part fait de concessions aux
idées dominantes de mon époque, ni à aucun des pouvoirs existants.
Par ailleurs, quelle que soit l’époque, rien d’important ne s’est communiqué en
ménageant un public, fût-il composé des contemporains de Périclès ; et, dans le
miroir glacé de l’écran, les spectateurs ne voient présentement rien qui évoque les
citoyens respectables d’une démocratie.
Le public de cinéma, qui n’a jamais été très bourgeois et qui n’est presque plus
populaire, est désormais presque entièrement recruté dans une seule couche sociale,
du reste devenue large : celle des petits agents spécialisés dans les divers emplois de
ces « services » dont le système productif actuel a si impérieusement besoin :
gestion, contrôle, entretien, recherche, enseignement, propagande, amusement et
pseudo-critique. C’est là suffisamment dire ce qu’ils sont. Il faut compter aussi, bien
sûr, dans ce public qui va encore au cinéma, la même espèce quand, plus jeune, elle
n’en est qu’au stade d’un apprentissage sommaire de ces diverses tâches
d’encadrement. (DEBORD. In girum imus nocte et consusmimur igni.1978)
A restauração da experiência não se pode dar senão pela via da destruição total
das condições presentes de recepção e estas só ocorreriam no contexto de uma
subversão total das formas de vida empobrecidas sob o domínio do capital, para cuja
49
Somente quando o sentido da vinculação social já não é bastante vigoroso para dar à
vida realidades concretas, é então que a imprensa (mídia) está na posição de criar a
abstração de ‘o público’ consistente em indivíduos irreais que não estão nunca
unidos, nem podem estar, em uma situação ou organização reais. E, no entanto, são
unidos e mantidos em um conjunto. (TOULMIN e IANIK. P. 199. Grifos nossos.)
Poderia ser esse conjunto a sala de exibição? Seria dentro dela, portanto, que se
poderia projetar um discurso cuja forma constitui-se em negação e combate à ilusão do
público pela distância tomada em relação ao mero leitor, esse fantasma passivo
representante de uma humanidade destituída que vai ao cinema?
50
grandes recursos do espetáculo para não dizer nada sobre o seu uso.” (DEBORD.
Comentários. P 170. Grifos do autor).
No início está o logos e o logos situa-se em nós e nos constitui. Somos o que ele é
e ele é o que somos. Apropriá-lo pelo desvio significa desviarmo-nos de nós mesmos
como indivíduos abstratos e ensaiar a construção de nossa realidade concreta como
seres sociais.
Nossa forma de viver carece de originalidade. A vida nos é dada pronta em uma
embalagem cujas instruções determinam a direção genérica que deve tomar a
experiência de todos: “vida, modo de usar”. Sem tais instruções a vida genérica nos
seria impossível; no entanto, por causa delas afastamo-nos de nós mesmos. Vivemos a
realidade de um grande outro que se impõe a nós com suas exigências sociais, suas
normas de conformidade, suas promessas de segurança e aceitação. Entregamo-nos à
vida coletiva e perdemos a vida própria. Com esta perda deixamos de aprender a
considerar aquilo que é diferente de nós e nos desafia. O que nos toca como uma
potência estranha que nos solicita.
Atento para a direção que tomaria a interpretação não só de seus textos, mas de
sua posição teórico-prática em relação a uma sociedade na qual ele se inscrevia ao
mesmo tempo em que rejeitava, Debord alude ao fato de que seus raciocínios não
seriam aprovados universalmente e, pior, em sua maioria, deturpados. Suas máscaras
lidas ou descritas em sua apresentação imediata e suas ironias interpretadas ao pé da
letra. Não como o que efetivamente são: “algo cujo real significado difere do conteúdo
óbvio, às vezes chegando mesmo a dizer o oposto de que é dito”. (BLOOM, 2001, P.
182.) Máscaras escondem aquilo que significam e o conteúdo que veiculam de forma
oblíqua só se explicita através do diálogo contra a forma sob a qual se escondem.
Novamente dirigindo-se ao leitor Debord escreve:
55
O leitor espera poder ter uma empatia imediata e uma apreensão ligeira daquilo
que não se mostra por inteiro em sua crosta sensível e nem pede identificação imediata.
A esperança de manter o encontro com uma linguagem totalmente transparente e
objetiva, como a dos jornais, ou então a procura de um texto que se confunde com a
fala, que se apresenta como um colóquio em que se articulam tópicos da vivência
comum fraturada e da realidade invertida, denuncia que a sensibilidade cotidiana não
quer superar seus próprios limites. Que ela alcança sempre o contrário daquilo que
pretende se o que pretende é não sair de seu círculo vicioso. Em um mundo cuja
pobreza se tornou geral e o banal se imiscuiu na experiência cotidiana contaminando
todos os setores da vida social, a própria pretensão do imediato tornou-se falsa. O
imediato é a mediação do poder que se esconde por trás de um disfarce.
às pressas, de forma despropositada, o que ninguém lerá uma só vez até o fim, nos
jornais ou nos livros, exaltam com muita convicção o estilo da linguagem falada,
porque a consideram muito mais moderna, direta, fácil. Mas eles mesmos não sabem
falar. Seus leitores tampouco, pois a linguagem efetivamente falada nas modernas
condições de vida se encontra socialmente reduzida à sua representação, eleita
56
indiretamente pelo sufrágio da mídia, composta por cerca de seis ou oito expressões
fastidiosamente repetidas e menos de duas centenas de vocábulos, a maioria do
quais, neologismos, estando esse conjunto sujeito à renovação de um terço a cada
seis meses. Tudo isso favorece uma forma de empatia ligeira. (DEBORD, 2002, P.
17, grifos nossos.)
Da mesma maneira que o filósofo se insere no seu tempo, do qual não há fugir, a
linguagem dialética inscreve-se nos moldes normativos globais de um mecanismo de
expressão que não pode evitar ao mesmo tempo em que rejeita frontal e essencialmente.
Debord afirma ironicamente que escreve sem esforço e sem cansaço na língua que
aprendeu e que não coube a ele modifica-la. (DEBORD. idem) No entanto, não deixa de
perceber que o imenso crescimento dos meios de dominação moderna marcou de tal
forma o estilo dos enunciados que se veiculam na linguagem comum, que o
entendimento dos raciocínios que confrontam o poder e se colocam fora de sua
jurisdição tornou-se um privilégio de pessoas realmente inteligentes. Mesmo a
expressão veiculada na língua comum exige um leitor incomum, pois hoje “os donos de
tudo o que se faz são também os mestres de tudo o que a respeito de se diz”.
(DEBORD, 2002, P 74).
Se a Nietzsche foi necessário dar testemunho de si, uma vez que previa os abusos
que seriam cometidos com sua filosofia, o caso Debord parece ser mais grave. A
assimilação de sua crítica à sociedade do espetáculo por aqueles que a louvavam sem
conhecê-la – que faziam uso apressado do conceito sem compreendê-lo – anulou a sua
força dialética mutilando seu diagnóstico crítico da totalidade do existente subjugado
pelo sistema do capital. O resultado da apropriação privada do capital debordiano por
57
Nuestra época, por el contrario –nos referimos a los últimos decenios dela
Europa occidental-, há tenido a sus pensadores, y geralmente no sin razón, por gente
totalmente inofensiva. Más de uno que se declaraba enemigo jurado de lo existente
fue acogido con los brazos abiertos em las universidades o em la televisión, y las
más de las veces el amor fue recíproco. Entre las pocas personas consideradas de
todo punto inaceptables se halla sin duda Guy Debord. Durante mucho tiempo se
interesó por él más la policía que los órganos normalmente encargados de la
difusión del pensamiento. Pero finalmente tal actitud ya no bastaba, puesto que las
teorias elaboradas por él y sus amigos los situacionistas habían comenzado, a pesar
de todo, a despertar la atención de la época. Desde entonces se observa otra técnica
de ocultación: la banalización. Hay pocos autores contemporâneos cuyas ideas
hayan sido utilizadas de manera tan deformada como las de Debord, y por lo general
sin mencionar siquiera su nombre.
A estas alturas todo el mundo, desde los directores de televisión hasta el último
de sus clientes, admite que vivimos en una “sociedade del espectáculo”. Ante la
invasión de los mass media y los efectos que ocasiona en los niños que crecen ante
el televisor; o ante la deplorada “espectacularización” de la información sobre
sucesos trágicos como guerras y catástrofes, la referencia a la “sociedade del
espectáculo” es hoy em día de rigor. Los más informados llegan a veces a afirmar
que dicho término es el titulo de um libro de um tal Debord, dando a entender que se
trata de uma especie de McLuhan más oscuro; pero raras veces se dice algo más
preciso.
Nietzsche tinha razão ao dizer que era preciso temer os discípulos? Porque parece
que os que nos causam maiores males são aqueles que concordam conosco: “leitores
espetaculares”, aqueles que dependem da pseudo-imediatez da mensagem ou do manual
de instruções.
Quem se entrega somente ao curso de suas representações não chegará muito longe.
Ver-se-á aprisionado, ao fim de algum tempo, por um conjunto de frases e tópicos
tão pálidos quanto imóveis. O gato cai sempre de pé, porém o homem que não
58
aprendeu apensar, que não sai dos breves e usuais enlaces das representações, cai
sempre no eterno ontem. Repete o que outros já repetiram; marcha ao passo de
ganso da fraseologia. Ao contrário, o pensamento, diferente do curso estabelecido
das representações, começa imediatamente como um pensar por conta própria;
move-se ao ritmo do homem que está por trás dele e o impulsiona. Aprende para
saber onde nos encontramos; acumula saber para ajustar a ele a conduta. O homem
acostumado a pensar por conta própria não aceita nada como fixo e definitivo, nem
os fatos amansados nem as generalidades inertes, menos ainda os chavões cheios de
odor cadavérico. Longe disso, vê-se sempre a si mesmo e todo o entorno em
constante fluir; encontra-se sempre como a sentinela avançada nos postos
fronteiriços da vanguarda. O que se aprende tem de achar-se afetado ativamente por
sua matéria, pois todo saber deve considerar-se capaz de viver sobre a marcha, de
romperas cascas das coisas. Quem, ao aprender, comporte-se passivamente,
limitando-se, a assentir com a cabeça, logo cairá no sono. Ao contrário, quem esteja
na coisa e marche com ela, por seus caminhos não trilhados, alcança a maioridade e
se encontra, enfim, em condições de distinguir entre o amigo e o inimigo e de saber
onde a verdade abre caminho. O trote do burro levado pelas rédeas é cômodo, sem
dúvida, mas os conceitos enérgicos são valentes; são os que correspondem à
juventude e a virilidade”. (BLOCH, 1983, P)
Da mesma maneira não é possível ler Debord com as lentes de MacLuhan, como
se ele fosse um teórico das mídias. Mais correto seria estabelecer os contornos corretos
de seu pensamento atingindo sua plenitude mais íntima. Nesse sentido, é necessário
dissociá-lo do espírito comum e associá-lo àquela tradição crítica de matriz hegeliano-
marxiana à qual ele se liga de pleno direito e da qual ele se afasta com razões
particulares que buscamos compreender. Do contrário apenas se ecoa a mesma
discussão vazia sobre o espetáculo no âmbito do próprio espetáculo, o que anularia sua
potência crítica comprometendo completamente a compreensão.
4
Por essas razões melhor seria considerar um teórico como McLuhan como “o primeiro apologista do
espetáculo, que parecia o imbecil mais convicto do século” até mudar de opinião ao descobrir, enfim, em
1976, que “a pressão dos mass media conduz ao irracional” e que “seria urgente moderar o uso desses
meios. O pensador de Toronto havia passado décadas a louvar as múltiplas liberdades trazidas pela
‘aldeia global’, de acesso tão instantâneo a todos, sem esforço. As aldeias, ao contrário das cidades,
sempre foram dominadas pelo conformismo, pelo isolamento, pelo controle mesquinho, pelo tédio, pelos
mesmos mexericos sobre as mesmas famílias.”
60
destacam-se os grandes recursos do espetáculo, a fim de não dizer nada sobre seu
uso. Em vez de espetáculo, preferem chamá-lo de domínio da mídia. Com isso
querem designar um simples instrumento, uma espécie de serviço público que
gerenciaria com imparcial “profissionalismo” a nova riqueza da comunicação de
todos por mass media, comunicação que teria enfim atingido a pureza unilateral, na
qual se faz calmamente admirar a decisão já tomada. o que é comunicado são
ordens; de forma altamente harmoniosa, os responsáveis por essas ordens são os
mesmos que vão dizer o que pensam delas. (DEBORD. Comentários. Pp. 170-171.
Grifos do autor.)
Situar Debord como um teórico das mídias corresponde a anular a força de seu
pensamento dialético tornando-o um idiota acrítico aderido ao espetáculo. Ao contrário,
é preciso buscar compreendê-lo como alguém cujo esforço revolucionário insere-se na
vaga contra cultural da exigência negativa do pensamento dialético como apanha
totalizante da práxis social a partir da necessidade de sua transformação revolucionária.
Eis aqui uma razão para a banalidade das interpretações debordianas: o espírito
comum move-se num universo completamente estranho às exigências da dialética.
Hartmann esclarece que
Nada é tão estranho nem tão resistente a um espírito comum tal exigência,
porque nada há que este atraiçoe mais facilmente do que o cerne, a totalidade, a
visão simultânea. A índole do homem atual mão é favorável à valorização do
patrimônio de Hegel, pois o homem moderno isola os fios e põe na balança o que
em si mesmo carece de peso, já que esse reside num todo que ele não vê. Desta
maneiram o espírito comum não encontra a plenitude: retém formas vazias estranho
ao seu carácter dialético e abstrato; e depois de os ter tornado artificiais afasta-se
deles com indiferenças. No seu pensamento não se cumpre o que se havia realizado
no de Hegel: a vida do conceito. Só ouve o ritmo monótono do seu próprio e oco
pensamento, só escuta ¨tagarelice inculta da dialética¨ - como tem sido designada - e
crê que isso é a dialética hegeliana. (HARTMANN. 1983, 293)
Não faltam exposições de Hegel que nos ensinam como não devemos lê-lo. Da
mesma maneira não faltam apropriações de Debord que nos ensinam como não
devemos compreendê-lo. As informações correntes desqualificam um autor cujo cerne
do pensamento permanece, de certo modo, inédito. Diz Jappe,
“Os ciganos consideram, com razão, que somente devemos dizer a verdade em
nossa própria língua; na do inimigo a mentira deve reinar.” (DEBORD, 2002, P. 17)
Sendo assim, é preciso aprender a língua que se fala e deixar aflorar o próprio no
contexto do impróprio, afrontando o inimigo oculto no terreno em que ele se oferece a
nós com sua mentira universal e sua perspectiva invertida. Também aqui se necessita de
ironia, torna-se preciso vestir a máscara que revela o sentido oculto do que se combate
pelo desvio. Mas como se constrói um leitor capaz de percorrer as trilhas de um autor
que traça caminhos deslocados de suas antigas rotas sobre mapeamentos desnorteantes?
Para o romântico o modo exprimir a verdade aceita deveria ser original. Pouco
depois de Alexander Pope, a era romântica exigia uma originalidade ainda maior. Para o
romântico radical, o poeta perfeito deveria ser como o próprio Deus, criando ex nihilo:
“quanto melhor ele fosse, menos previsível era tudo o que houvesse no poema. Apenas
iniciantes ou poetas irremediavelmente medíocres utilizavam material pré-fabricado”.
(Ver: ONG. 1998, 32) Hoje sabemos que é mediante o diálogo entre as exigências
subjetiva e as determinações objetivas que se poderia dar o ato original de criação, vale
dizer, não é mais possível a pretensão criativa não mediada pela consciência crítica. É
64
exatamente nesse equilíbrio difícil que Debord constrói sua linguagem singular, cuja
expressão revela a força de sua personalidade insubmissa e crítica capaz de se afirmar
como “astúcia dialética”, que contorna as dificuldades de um referencial simbólico
comum universalizado pela ação criadora da recombinação do mesmo, submetido a uma
regra do jogo imprevista e nova.
essência por um sistema que transformou tudo em moeda comum. A linguagem ergue-
se aqui como o instrumento máximo de controle na medida em que é ela a mediação
fundamental pela qual o indivíduo traduz sua experiência em significado e modela sua
relação com o mundo. A linguagem que, de certa forma, é o indivíduo e o mundo. Essa
mesma linguagem que nos individua nos padroniza. Nela e em seu mecanismo de
submissão à norma reside o grande perigo.
5
Veremos adiante como Debord procede a tal desconstrução através do diálogo crítico com a linguagem
da filosofia.
68
complexa e total, o problema que nos ocupou até agora. No decorrer da exposição
esperamos que fiquem claros para o leitor todos os movimentos da máquina debordiana
em sua proposta antiespetacular, na qual se realiza o desvio como astúcia da dialética.
Como a revolução linguística de Debord opera a realização da filosofia através da
superação da arte, ambas situadas, como forças de restauração da experiência vital do
ser social, no âmbito da vida cotidiana.
69
apreende e que resolve no âmbito singular de sua recusa, no ato de criação forjado no
interior de um movimento de destruição total que é uma dinâmica de recriação integral.
Portanto, não só não faz sentido como seria antidialético tentar o desmonte da
máquina. Não é a leitura correta de um texto que não se afigura como estrutura
artificial, erigida em contraste com o movimento que trai ao tentar representar; não
como forma de representação articulada em graus categoriais hierárquicos ou em
diferenças de significantes. Tentar o desmonte das peças pressupõe a aceitação do texto
como um conjunto de peças montadas em uma estrutura autossuficiente, autocontida e
separada da totalidade da experiência social na qual deveria se inserir criticamente.
Melhor, que se insere criticamente e cuja relação problemática e dinâmica com o todo
que refuta, ao se integrar dialeticamente ao movimento de sua crise, constitui a força
fundamental que anima o texto, força que se perderia no desmonte da máquina.
Por outro lado, o texto debordiano da Sociedade do Espetáculo não constitui uma
máquina em sentido estrito. Abusamos dele ao tratá-lo como tal. No entanto a metáfora
de Löwy nos serve se adiantarmos algumas considerações de esclarecimento.
Não se pode tratar o texto como uma máquina, no sentido de uma estrutura
mecânica constituída pelas diferenças entre significantes, articulada como arquitetura
lógica, elevada acima das condições efetivas e das contradições presentes na
experiência cotidiana, como representativa abstrata delas, mas uma máquina em
movimento acoplada aos eventos aos quais se relaciona dialeticamente, de maneira que
esses eventos sejam, ao mesmo tempo negados na imediaticidade de sua apresentação
espetacular, destruídos, portanto, e elevados ao grau crítico em que sua destituição
significa a possibilidade de sua restauração plena. Uma máquina cuja dinâmica se ocupa
em contradizer o movimento imediato do falso e do ilusório construído pela ideologia e
reproduzido pela opinião.
Não se pode pretender encontrar aqui uma estrutura, pois Debord não deixou de se
contrapor a ideia da estrutura e as ideologias estruturalistas, consideradas por ele formas
da separação e concepções reféns do mecanismo alienante que se apoderou da
representação e a fez girar em torno de uma mesma lógica das abstrações não razoáveis.
Neste caso, a recusa em aceitar a validade do termo “Situacionismo” não afiguraria uma
intenção claramente anti-estrutural, uma vez que, ao nomear o movimento que
caracterizava a dimensão coletiva da ruptura em relação ao espetáculo e suas
71
Debord não construiu sua máquina como um ajuntamento de peças, como parcelas
articuladas, nem como um todo abstrato desvinculado da situação vivente. Mas uma
totalidade concreta caracterizada pelo arranjo dialético em que as partes e o todo
dialogam no interior de um movimento especular, ao mesmo tempo em que se integra
dialeticamente à situação concreta que elabora em texto de denso significado crítico.
Lautréamont, Poésies.
72
(Deusa, canta para mim a cólera de Aquiles filho de Peleu, que tanta destruição
trouxe ao campo dos Aqueus)
6
In: http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus:text:1999.01.0133 Acesso em 21/10/2013
7
Citado por COURI, Norma Das aventuras de Pi ao plágio de Scliar. In:
http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/imprimir/52294 acesso em 20/13/2013.
73
O texto realiza pelo sequestro das mais diversas expressões da cultura moderna
uma dinâmica em que as formas particulares entram em acordo pela integração em uma
máquina de combate dialética antiideológica, cuja função de fundo, embora não menos
importante, constitui em questionar frontalmente o valor da autoria e, com ele, a forma
burguesa da propriedade privada.
O ato poético que em Homero constituía, não obstante, uma inserção no contexto
da vida da comunidade para cuja coesão o poeta contribuía com a forma e o teor de sua
narrativa, em Debord, ao contrário, constitui um ato declarado de confronto contra o
valor supremo da sociedade burguesa, aquele sobre o qual ela edificou seus muros e
protegeu suas posses: a forma petrificada do trabalho alienado cuja manutenção material
8
Confere: HAVELOCK, Eric. Prefácio a Platão.
75
Kierkegaard já fizera uso disso deliberadamente, acrescentando por sua vez uma
denúncia: “Mas não obstante as voltas e rodeios , como a geleia volta sempre para o
armário, você sempre acaba acrescentando uma palavrinha que não é sua e que
perturba pela lembrança que ele evoca” (Miettes philosophiques). A obrigação da
distância para com o que foi falsificado como verdade oficial determina esse
emprego do desvio, assim confessado por Kierkegaard no mesmo livro: “Ainda uma
última observação a propósitos de suas inúmeras alusões, todas referentes à
acusação de que, nas minhas afirmações, misturo palavras tiradas de outros. Não
nego e á não vou esconder que era deliberado. Na continuação deste texto, se algum
dia eu escrevê-la, tenho a intenção de chamar o objeto por seu verdadeiro nome e
revestir o problema com roupagem histórica”. (DEBORD. SE, § 206)
76
A inversão dialética operada pelo desvio corrige o que estava assentado sobre os
usos costumeiros, hábitos que sedimentaram a mentira comum pela repetição de sua
fórmula. Uma mentira dita muitas vezes torna-se verdade e uma verdade repetida acaba
transformando-se em mentira. Uma frase, uma formulação, uma fórmula que poderia
servir no passado, pode ter-se deteriorado pelo desgaste do tempo e deixado de valer.
No entanto, o hábito pode tê-la entronizado como verdade definitiva. Assim a mentira
origina-se da verdade. Da mesma forma, os sentidos e as formas de relação econômico-
sociais possuem validade histórica, estão determinadas pelo contexto que lhes legitima,
e este possui sua própria legitimidade demarcada pelo tempo. Constitui as formas de
relação com a propriedade, das quais a forma burguesa é apenas um fragmento histórico
tornado verdade absoluta. Contestá-lo pelo estilo ativa a potência crítica da linguagem
em sua valência dialética mais radical. Por isso é lícito afirmar com Lautréamont, “As
ideias melhoram. O sentido das palavras entra em jogo. O plágio é necessário. O
progresso supõe o plágio. Ele se achega à frase de um autor, serve-se de suas
expressões, apaga uma ideia errônea, a substitui pela ideia correta”. (DEBORD, SE, §
207) Por isso, “o desvio é a linguagem fluida da antiideologia”, a revolta tornada
expressão, vale dizer, um ato político revolucionário.
Ele aparece na comunicação que sabe que não pode deter nenhuma garantia em si
mesma e definitivamente. Ele é, no mais alto nível, a linguagem que nenhuma
referência antiga e supracrítica pode confirmar. Ao contrário, sua própria coerência,
em si mesmo e com os fatos praticáveis, pode confirmar o antigo núcleo de verdade
que ele traz de volta. O desvio não fundamentou sua causa sobre algo exterior à sua
própria verdade como crítica presente. (DEBORD, SE, § 208)
O desvio como plágio assumido destaca-se, portanto, como uma forma de ação
situada fora das regras do consenso burguês e, ao mesmo tempo, dentro das ilimitadas
possibilidades humanas. Um ato total de reversão do falso, de correção histórica pela
qual se restaura a possibilidade do significado crítico eleito como juiz do existente e seu
executor por meio do ato judicativo e revolucionário.
Não se confina o desvio ao espaço restrito do texto, portanto, mas opera uma
transcendência somente possível no interior do próprio movimento imanente de
reversão histórica das aparências, de confronto com a situação presente elaborado como
um ato de linguagem fundado pelo desvio. Situa-se mais no domínio das lutas no qual a
ação teórica desempenha o papel fundamental de confronto contra a totalidade do
existente invertido. A desapropriação pelo desvio funciona, portanto, como um ataque
77
frontal ao todo, não uma intervenção episódica e pontual. Em sua linguagem dialética
Debord sentencia:
Tal correção histórica que o desvio promete e realiza só poderia efetuar-se sobre a
base daquilo que se encontra desvirtuado ou sobre o que falsamente impera como
fundamento de uma ordem de coisas que não pode revelar seus pressupostos sobre os
quais assenta seus resultados perversos. Não basta apenas dizê-los, é preciso corrigir
também o dizer rearticulando-o conforme novas regras do jogo dialético e, ao mesmo
tempo, assentá-lo sobre a ação revolucionária, pela qual a violação da forma representa
e realiza a violação do valor de base da inversão espetacular.
O primeiro recorte material da vida sobre o qual se edificou o direto burguês foi a
propriedade privada. Sobre ela construíram-se todas as barreiras que isolaram os
homens e os impediram de apropriar-se de si mesmos em liberdade e contato direto com
a totalidade da vida. No recorte que delimitam as cercas, nas cancelas que fecham as
entradas e impedem as saídas trancaram-se todas as formas de contato humano efetivo,
isolando-se os afetos em nome de um afeto possessivo, da necessidade imperiosa do ter
que, de agora em diante, tinha de ser resguardada, protegida, defendida pela lei. John
Locke é o primeiro profeta do mundo que se fecha sobre a propriedade privada; o jus
naturalismo moderno a primeira naturalização de uma espécie social de roubo, de
apropriação real pela desapropriação virtual futura de todas as possibilidades de relação
realmente humanas.
78
De acordo com Locke assentou-se a ideia que teria longa vida na história da
sociedade burguesa, animando os desejos e direcionando os projetos de todas as pessoas
que, doravante, deveriam viver em função do ter e organizar seu destino conforme o
aumento da posse de bens e mercadorias. Para Locke, que resume todos os principais
argumentos em sustentação ao direto de propriedade privada baseado no valor natural
da posse e não em sua relatividade social, a propriedade é natural e benéfica, não apenas
para o proprietário, mas também para o conjunto da humanidade. Conforme um
argumento difícil de entender, defende que “aquele que se apropria duma terra, mercê
do seu trabalho, não diminui, antes aumenta, os recursos comuns do gênero humano.”
(LOCK,. 1994, p. 30) Sustenta ainda que a propriedade confere a felicidade, e a maior
felicidade coincide com o maior poder: “A maior felicidade consiste, não em usufruir os
maiores prazeres, mas em possuir as coisas que produzem os maiores prazeres.”
(LOCKE, 1994, pp. 30-36)9 Desta forma se acha definido aquilo que Leo Strauss
chamou de “hedonismo capitalista”. (TOUCHARD, História das ideias políticas, P
34.).
Por outro lado, devemos notar que a delimitação do espaço, simultânea a criação
do território ocupado, realiza materialmente a grande estrutura psicogeográfica de
domínio do corpo e, por extensão, de controle da consciência. Pois a consciência
projeta-se do corpo como sua expressão mais elevada e a ele está vinculada
estreitamente como sua forma imaterial. O que o corpo sente a consciência experimenta
e as limitações materiais são as suas próprias fronteiras delimitadas em barreiras diante
das quais o sentimento de si retrocede ou experimenta o limite inatural e histórico como
se este fosse lei natural. Sobre o isolamento dos corpos e o, consequente sentimento de
posse, edificou-se o reino da mercadoria, o reino burguês da apropriação privada.
9
Ao leitor interessado em acompanhar as ideias da Locke sobre direito civil, e conferir o que aqui
argumentamos, convido-o a leitura do ensaio: Concerning Civil Government, second essay. Alerto que
usamos aqui a edição anotada por Alexander Campbell Fraser, da Oxfor University Press, quinta
impressão, 1994.
79
burguês foi com as regras metodológicas para a delimitação territorial das ciências, das
filosofias e das artes. Sob o império do capital imperou as divisões e a alienação fez a
sua morada entre os homens.
10
A necessidade de pureza metodológica no trato com um objeto cuja natureza havia sido
ontologicamente demarcada e isolada de qualquer contaminação tornou-se o pressuposto fundamental
subjacente a todas as construções teóricas que servirá de base argumentativa à crítica virulenta que um
Hans Kelsen, por exemplo, endereça a Smend e aos neo-hegelianos em seu opúsculo combativo O estado
como integração.
80
pela deriva psicogeográfica e escapar dos limites ideológicos fixados pela posse do
domínio do significado e das estruturas do sentido: um ato de linguagem de dimensões
políticas.
Pois a influência do espaço ocupado como posse privada cria a ilusão do território
como limite do sentido e com ele a ilusão do significado restrito ao campo temático das
classificações. O que sustenta essa ilusão do limite senão as “leis de cercamento”
tornadas forma da consciência e determinações do espírito? Ora, não é difícil perceber
que a própria arte se deixou apanhar neste sistema de demarcações em que necessitam
estabelecer limites para se determinar a posse do sentido. E aqui esbarrou na própria
impotência. Alfonso Berardinelli demonstrou à ideia fixa das estruturas o vazio radicado
em sua impossibilidade. Na sua brilhante crítica ao livro de Estrutura da lírica
moderna, pondera:
Para conhecer as fronteiras de qualquer região é preciso antes ter uma ideia dessa
região. Dito de outro modo: é o conhecimento das fronteiras que nos permite
entender de que território estamos falando. Com a poesis, essa discussão dos
fronteiras e dos limites se torna um b belo cipoal. De fato, como todos sabem,
sabemos e não sabemos o que é a oesia e de que falamos ao falar de poesia.”
(BERARDINELLI, 2007, P 13)
A propriedade comanda não só os anseios materiais, mas põe-se como fim para o
qual se dirigem todos os esforços no âmbito do mundo burguês. O que todos sonham,
83
aquilo porque se luta, o telos universal que governa todos os desejos. Desejos
impróprios mediados pelo modelo que se põe a todos como diretriz absoluta: o objeto, a
posse do objeto.
Desta forma a consciência se deixa apanhar na teia das ilusões de posse abrindo
espaço à realidade do controle. De qualquer forma, a propriedade privada, resultado do
trabalho alienado e forma objetiva da separação, é o fundamento e o valor maior do
mundo do espetáculo. A propriedade privada é espetacular em sua própria condição
originária e espetaculariza-se cada vez mais à medida que as regras do capital impõem-
se como determinações de ferro.
"[...] é não admira mais." Sobre estado democrático de direito e cinismo: "O código
jurídico está subordinado ao código político, o direito está subordinado à economia,
o Estado está subordinado à atividade econômica – com as consequências já
insinuadas para os economicamente fracos, quer dizer, para a maior parte da
população. Então já não admira mais que a reivindicação de direitos de cidadania
por parte dos subcidadãos excluídos, subintegrados, seja identificada constantemente
com subversão”. (Friedrich Müller,Quem é o povo, P 95-96)
“Les idées s'améliorent. Le sens des mots y participe. Le plagiat est nécessaire. Le
progrès l'implique. Il serre de près la phrase d'un auteur, se sert de ses expressions,
efface une idée fausse, la remplace par l'idée juste”. (DEBORD, A Sociedade do
Espetáculo, § 207. Citação de Lautréamont, Poesies.)
84
O desvio como ato político possui sua razão fundadas sobre as desrazões e as
ilusões dos proprietários violados. O desrespeito à propriedade privada constitui um
“ato de fala”, uma maneira primeira de “fazer coisas com palavras”, vale dizer, de tirar
as palavras do isolamento do discurso formal separados dos movimentos vitais e,
através da própria reorganização dos significantes, executar na forma desviada uma
ação crítica situada no cerne dos processos vitais. Um processo de superação criativa
posto no próprio âmbito da proposição reconfigurada. A proposição reutilizada pelo
plágio consciente vira-se muitas vezes contra o próprio valor que a constitui e o reverte:
destrói o reino da apropriação privada da qual era refém.
11
Desvio de Stirner , The Ego and his Own (O ego e sua propriedade) : “Eu fundei minha causa sobre
nada.”
85
importância, pois, como mestre e teórico do desvio, “Debord as trata como os bandidos
da estrada tratam os bens de suas vítimas. Ele arranca as passagens citadas de seu
contexto para integrá-las em seu discurso, o que lhes dá assim um sentido novo.”
(LÖWY,A estrela da manhã, P 2002. Pp 85.)
Um sentido, diríamos, criado pelo roubo. Procedimento que jamais seria aceito
dentro das regras que regulam a propriedade privada artística e intelectual na sociedade
burguesa. Regras que Debord conscientemente despreza e viola com um fim muito
específico: criar significado através da subversão das normas. Portanto, assentamos que:
- resulta na composição de um texto cujo estilo traz como marca distintiva de sua
consequência pragmática a organização dos signos segundo critérios anti-capitalistas.
Quer dizer, o próprio estilo é uma afronta e, ao mesmo tempo, uma ruptura em relação à
sociedade mercantil que se legitima sobre o direito de posse privada.
ato político. O que equivale a dizer que o progresso em direção à destruição das bases
de sustentação do mundo burguês efetiva-se como diálogo crítico, como estilo dialético
que resulta em combate material na direção da constituição dos fundamentos possíveis à
reconstrução da experiência em um território não mais refém das determinações
burguesas. O ataque à propriedade privada como base de sustentação não só dos
referenciais jurídicos, mas dos valores burgueses constitui uma ação de dimensões
políticas que se efetua como progresso em vista da conquista prática posta no plano
teórico-crítico da emancipação.
Uma intervenção atual e uma promessa de futuro. Por isso o plágio é necessário e
o progresso o exige. E o plagio deixa de sê-lo se é conscientemente elaborado como um
ato de criação, vale dizer, se ele dota-se de sentido por integrar-se a um plano maior de
combate total que tira, das possibilidade do jogo, um tipo de gratuidade impossível no
âmbito da experiência poética sob as regras do individualismo possessivo burguês.
Guy Debord
Stendhal
O desvio, com sua base econômica e jurídica, bem como suas inflexões políticas,
por ligar-se aos procedimentos da arte e, fundamentalmente, por se caracterizar como
máquina de guerra, insere-se nos domínios do jogo, do qual herda a dimensão lúdica e
12
Détournement de Héraclito, Fragmento 53 : “A guerra é o pai de todas as coisas.”
87
hedônica das ações sociais desprovidas de valor de troca, portanto, carregadas de valor
vital. E a dimensão lúdica é extremante densa de sentido humano e rica de significado
porque, nas palavras de Mondin, “compreende inteligência e vontade, ação e habilidade,
mas, ao mesmo tempo, supera o conhecer, o querer, o agir porque implica também em
alegria, satisfação e liberdade.” (MONDIN, 1980, p 216.)
Com o jogo sai-se da artificialidade das regras convencionais e vazias, pelas quais
se repetem indefinidamente as mesmas formas sociais de ação preestabelecidas, as
mesmas fórmulas padronizadas e se começa a adentrar na vida em sua dimensão mais
verdadeira e plena.
13
Confere: MARX. Manuscritos econômico-filosóficos. Principalmente o fragmento intitulado, na
excelente tradução de Jesus Ranieri, “Trabalho estranhado e propriedade privada”. São Paulo:
Boitempo, 2010, pp. 79-91.
88
Chamar “jogo” à guerra é um hábito tão antigo como a própria existência dessas
duas palavras.(...) O mais provável é que em toda a parte a linguagem tenha definido
as coisas dessa maneira, a partir do momento em que surgiram palavras para
designar jogo e combate. (...) e não há dúvida que toda luta submetida a regras,
devido precisamente a essa limitação, apresenta as características formais do jogo.
(HUIZINGA, 2010, p. 101)
89
pelo que é, não possui um sentido pré-definido de uma vez por todas. Ao contrário,
ganha sentido exatamente ao se inserir no contexto de novas relações. Desta forma a
palavra espetáculo assume novos matizes semânticos ao ser inserida em uma frase
desviada de Marx, assim como o bigode de Nietzsche ganharia novo sentido se fosse
aplicado sobre uma figura de Hegel.
Da mesma maneira que com um mesmo maço de cartas se podem fazer tantos
jogos quanto se queira, segundo as regras que se decide criar, podemos com os mesmos
signos linguísticos desenvolver muitas formas diferentes de comunicação e de ação,
modificar ou criar novas sentidos, de acordo com as regras que se decida inventar, sob
as quais os signos desviados assumem novas possibilidade de significação.
14
Este texto, publicado na revista Internacional Situacionista (nº 8, janeiro de 1963, p. 29-33) é, segundo
Emiliano Aquino, teoricamente um dos mais ricos documentos da reflexão situacionista sobre a
linguagem. Utilizamos o texto publicado nas Oeuvres de Debord da Gallimard, 2006, pp. 613-619. Para a
citação servimo-nos da tradução de Emiliano Aquino conforme publicada no site “Poiesis, trabalho e
cultura”, endereço eletrônico: http://emilianoaquino.blogspot.com.br/2008/01/all-kings-men.html, acesso
em 18/02/2012.
91
ideológicos com o poder, de seus limites referenciais e fazer coisas com elas,15 inseri-
las no mundo das ações e das relações sociais dentro do qual se assumem como forças
reativas ou transformadoras, conforme o uso que lhes dermos, melhor dizendo, de
acordo com o contexto em que as incluímos como manifestações de potências reais em
relação de combate ou de submissão. Palavras desempenham ações não representam
apenas ideias e a ação combativa é a primeira potência revolucionária do desvio.
A mudança das regras, essencial ao jogo dialético do desvio, opera uma mudança
do sentido. Assim, a forma dialética da proposição desviada e do texto psicogeográfico,
desvia os elementos de sua antiga órbita normal, pela reorganização da lei que ordena
sua relação, cuja eficácia sintática incide sobre o significado e o reconstrói segundo um
novo sentido. O efeito decorre da suspensão temporária das regras, que vigoram em
concordância com as normas públicas, e a consequente abertura de um espaço lúdico à
margem dos parâmetros burgueses. No interior desse espaço um novo código que
preside às relações entre os signos é criado. No entanto, tal código não possui valor
universal e nem pode ser indiscriminadamente reutilizado, sob pena de tornar-se mais
uma regra restritiva-padronizante, o que significa que concorreria para a sua própria
anulação. Como na música atonal moderna, o código relativo é criado em conjunto com
a construção da obra particular, valendo apenas para a determinação do sentido de seus
elementos singulares, segundo uma forma de organização imanente que extrai de seu
próprio movimento constitutivo as regras que presidem a sua significação.
15
How to do things with words é um importante livro de John L. Austin, no qual se procura entender os
significados das palavras em um contexto pragmático em que estas se revelam como potências ativas e
não apenas como formas de expressão de significados. Austin entende as palavras no âmbito das relações
humanas sociais e caracteriza a dimensão ativa da linguagem com a sua teoria dos atos de fala (speech
acts). Neste contexto é possível perceber as palavras como atos do poder, como formas que trabalham
ativamente para a organização dominante da vida.
92
ressaltar que Debord compôs apenas uma obra utilizando a técnica de desvio do
repertório filosófico no intuito de, pela mediação dialógica do sistema, criar um novo
contexto de significação para a filosofia a partir da destruição da filosofia-mercadoria.
Nenhum outro desvio foi tentado como obra acabada, em que se desvia o repertório da
filosofia em função da reconstrução de sua verdade, porque o que se queria realizar já
estava feito. A repetição do procedimento em outro texto acabaria por desautorizar o
procedimento desviante como intervenção singular capaz de revitalizar o discurso
filosófico e realizar a filosofia. O Panegírico, por exemplo, foi escrito conforme um
plano completamente distinto do plano utilizado na Sociedade do Espetáculo, assim
como La Planète malade. Cada realização constitui um universo definido por suas
próprias regras, composto de acordo com seus próprios parâmetros de articulação
interna. Cada obra compõe um jogo com-contra o que se pretende combater, em favor
do que deseja alcançar e, fundamentalmente, constrói meios para a autorealização e o
gozo de um sujeito reconstruído através de sua própria invenção. Regras que se
impõem através da própria dissolução de todas as regras. Um tipo de subversão total
que procede pelo movimento rearticulado dos signos, todos expressões verdadeiras de
uma loucura imediatamente revertida, a reversão de sua coexistência pseudo-natural
com o poder.
Hakim Bei, um pensador-criador cuja teoria da TAZ muito deve a Debord e aos
situacionistas, elabora uma concepção moderna da linguagem que muito nos poderia
ajudar a melhor compreender a concepção desviante dos signos em suas relações com o
código e com as injunções do poder. Em analogia com as teorias modernas da
informação, Bei pensa as possibilidades da linguagem a partir da modelagem dos signos
em sistemas dinâmicos complexos.
A partir de nossa abordagem do desvio, devemos, por nossa conta, afirmar que,
desde a perspectiva dialética debordiana, as gramáticas não seriam então inatas ou
modelos segundo os quais se definem parâmetros regulares de organização, mas
emergiriam da dança dos signos organizados pela própria emergência do sentido em seu
movimento dialético de contradição: pela supressão, conservação e elevação das bases
comuns de articulação sintática a um grau de singularidade único. Estaríamos aqui
93
diante de uma manifestação concreta do modelo em sua inserção no movimento que vai
da consciência individual, passando pela sua relação polêmica com as formas
consensuais das quais se apropria até a emergência de um novo sentido no contexto das
novas possibilidades de relações criadas pelo jogo dialético do desvio. Uma dança dos
significantes criando significados a partir da afirmação da potência criativa do sujeito
lúdico. Uma brincadeira séria, um jogo de guerra em benefício da expressão e da vida
autênticas.
O sentido não conforme definido pelo poder, mas que emerge das relações
dialéticas no jogo quase espontâneo dos signos. Aqui o significado também é criado a
cada lance de dados do jogo, pelo qual, se não se consegue abolir o acaso, alcança-se
dimensionar o novo sentido. Linguagem como jogo, linguagem como forma de ação:
linguagem como guerra contra a subordinação da linguagem pelo poder de nivelar o
sentido segundo os parâmetros políticos de uma razão administrativa. A linguagem
supera seu rigor formal e entra no jogo como um movimento imanente das potências
sociais, dotadas, por um instante, de significado singular, pela ação criativa do sujeito
emancipado, que dela se serve como meio não só de expressão, mas fundamentalmente
de libertação.
Não se deve, portanto, considerar o jogo de que tratamos aqui uma bem planejada
obra de arquitetura sistemática conduzida pela inteligência matemática, more
geométrico demonstrata. Ao contrário, e tão contrário que deve tocar os limites do
prazer liberado por uma força alheia, do que a sociedade burguesa ávida pelo
planejamento encarcerou: a alegria de viver e de criar objetivada pela realização
prazerosa e lúdica da obra. Como a deriva, o desvio resulta da “afirmação de um
comportamento lúdico-construtivo” (DEBORD, Teoria da deriva, 1958.)
Um sistema que emerge, por assim dizer, das relações sempre densas de sentido
entre as proposições e seus referenciais elementares desviados. Mas isto veremos mais à
frente.
95
“Eu penso que vencemos aqui uma importante batalha.” (DEBORD, Idem, 1965)
16
Wittgenstein afirma na proposição 6.52 de seu Tractatus logico-philosophicus: “Minhas proposições
são esclarecedoras deste modo: que quem as compreende acaba por reconhecer que carecem de sentido,
sempre que aquele que compreenda saia através delas e fora delas. (Deve, por assim dizer, tirar a escada
depois de ter subido.) (WITTGENSTEIN. Logische-philosophische Abhandlung. London, 1957.)
96
17
Ao leitor de Marx não escapará nossa alusão ao Prefácio da Primeira Edição de O Capital, em que o
autor afirma que tratará da análise da “substância do valor” e da grandeza do valor cuja forma acabada e
vazia de conteúdo é o dinheiro.
97
Existem laços íntimos unindo o jogo e a beleza, visto que em suas formas mais
complexas o jogo possui os “mais nobres dons de percepção estética” (HUIZINGA,
1938, p.10) disponibilizados ao homem: ritmo e harmonia, residindo nisto “seu
caráter profundamente estético” (HUIZINGA, 1938, p.5). (DANIEL. O Conceito de
“Jogo” em Johan Huizinga e Hans Ulrich Gumbrecht.)18
Soma-se a isto o fato de ser o jogo uma atividade voluntária e, portanto, ligada a
uma livre escolha; de ser a criação no cerne do real de uma esfera de atividade
temporária - uma espécie de intervalo na vida cotidiana banalizada, pelo qual a vida
cotidiana é restabelecida como esfera da comunhão e da festa, um campo de procura e
de encontro submetido às regras postas à margem do acordo comum, do contrato
burguês; capaz de absorver o jogador de maneira intensa e total.
Uma vez que se faz ser isolado, isto é, distinto da vida “comum”; indiferente aos
limites de tempo e de espaço; ato inventivo e criador de ordem e também ordem
singular; enfim, na medida em que motiva o surgimento de grupos sociais que tendem a
se diferenciar do restante da sociedade, o jogo abre ao jogador a possibilidade de
ocupação de um território situado além das delimitações restritas à regra de apropriação
privada e de posse. (cf. DANIEL) Eleva-se, portanto, ao plano da troca socialmente
mediada, do mútuo reconhecimento e da gratuidade. Ele não vale pelo lucro que
objetiva ganhar, mas pelo próprio jogo. Quer dizer, pela participação ativa em uma
forma de combate em que se coloca constantemente a possibilidade não da vitória, mas
da auto-superação pela negação.
18
In: http://blogdoprofessordaniel.blogspot.com.br/2011/01/o-conceito-de-jogo-em-johan-huizinga-
e.html, acesso em 22/08/2013.
98
O jogo satisfaz pela própria alegria que provoca ao ser realizado, como uma festa
em se suspendem as convenções do cotidiano e se adentra o território da liberdade de
criar. E esta é também uma liberdade de destruir.
(...) o jogo autêntico e espontâneo também pode ser profundamente sério. O jogador
pode entregar-se de corpo e alma ao jogo, e a consciência de tratar-se 'apenas' de um
jogo pode passar para segundo plano. A alegria que está indissoluvelmente ligada ao
jogo pode transformar-se, não só em tensão, mas também em arrebatamento. A
frivolidade e o êxtase são os dois polos que limitam o âmbito do jogo. (HUIZINGA,
2010, p.24)
Caracterizando-se como jogo, portanto, vale não pelos resultados, mas pelo
processo enquanto este se desnovela e no próprio desnovelamento dos signos em
rotação, convida o leitor não à resignação passiva diante de um significado dado e
consensual, mas à decifração da diferença que a tensão propõe; a vivência não planejada
da tensão como experiência de sentido; decifração que é ação; trabalho em que se
participa da constituição do sentido por meio da interpretação. Trabalho da dialética em
sua busca da linguagem da poiesis. Não pela origem nem pelo resultado: pela totalidade
do processo que engloba as determinações em um diálogo.
Vale aqui uma breve citação de Hegel. Como em Debord, a linguagem hegeliana
tenta abraçar a totalidade das determinações em seu movimento concreto. Mediante a
imanentização dos signos inseridos em jogos complexos de relações dialéticas, as
100
Com efeito, a Coisa mesma não se esgota em seu fim, mas em sua atualização;
nem o resultado é o todo efetivo, mas sim o resultado junto com o seu vir-a-ser. O
fim para si é o universal sem vida, como a tendência é o mero impulso ainda carente
de sua efetividade; o resultado nu é o cadáver que deixou atrás de si a tendência.
Igualmente, a diversidade é, antes, o limite da Coisa: está ali onde a Coisa deixa de
ser; ou é o que a mesma não é. (HEGEL. Fenomenologia do Espírito. P. 23.)
N'a pas dissipé les nuages religieux où les hommes avaient placé leurs propres
pouvoirs détachés d'eux : elle les a seulement reliés à une base terrestre. Ainsi c'est
la vie la plus terrestre qui devient opaque et irrespirable. Elle ne rejette plus dans le
ciel, mais elle héberge chez elle sa récusation absolue, son fallacieux paradis. Le
spectacle est la réalisation technique de l'exil des pouvoirs humains dans un au-delà ;
la scission achevée à l'intérieur de l'homme. (DEBORD, SE, § 20.)
O dialético nos mostra que, assim como no jogo, a finalidade do escritor, seja no
mito ou na lírica, na tragédia ou na epopeia, nas lendas ou em um romance moderno, ou
na trama dialógica das proposições filosóficas é “criar uma tensão” que provoque o
leitor. A linguagem poética joga com as palavras põe-nas ordenadas de forma
surpreendente, desafiando a racionalidade a se ocupar da reorganização da forma,
supondo-se que haja uma forma, pela participação no sentido ativo que a palavra ou a
sentença propõem.
Em princípio, como em Artaud, temos aqui uma tarefa cuja realização Debord
perseguiu até a morte: “fazer a vida ser penetrada pela arte, soldar a arte tão
fisiologicamente à vida, de modo a ser quimérico pretender isolar uma da outra.”
(COELHO, P. 14) O que ele tentou foi poetizar a existência até a medula,
existencializar radicalmente a prática poética: esse o sentido de realização da filosofia
para Debord. Em outros termos, não se trata simplesmente de existencializar a arte. A
arte, já no momento de Debord, era uma coisa, uma propriedade que se colocava no
mercado, etiquetada com um preço, pertencente não ao artista, mas aos interesses do
mercado gerido pelos comerciantes do belo. Uma coisa “desgastada, descaroçada, um
produto semi-industrializado, na época entregue ao consumo passivo dos outros, os não
artistas.” (COELHO, P. 15)
Ilustra o que queremos dizer a comparação estabelecida por Coelho entre a arte
como produto, resultado e a poética como trabalho a atividade. Citemos:
A arte era frequentemente e continua sendo essa atividade feita À parte, depois
de se ter gasto algumas horas numa profissão para ganhar a vida; ou então é uma
prática terapêutica, um modo de ganhar a vida. A prática poética é outra coisa:
operação de construção do ser, incessante, a todo momento retomada, demolida e
reconstruída. (COELHO, 1982, P 15)
O valor do que não tem preço não pode ser avaliado. E o que não pode ser
avaliado, mas executado é jogo: o que é enquanto é feito, quer dizer, o ser que se
constrói no seu próprio devir.
O desvio alegremente concorda com isso, mas adiciona que a linguagem pode
superar a linguagem ressoando como uma complexidade autoexpansiva; que a arte pode
revitalizar-se em seu próprio meio e se desvincular das potências alienantes que a
dominam; que a filosofia pode realizar-se como atividade concreta contra o sistema que
dela se apropriou, tornando-a instrumento ideológico de submissão à regra geral, pela
própria ação de desviar-se do sistema. A linguagem pode criar liberdade a partir da
confusão e da decadência da tirania sintática. Isto é o que veremos em exame mais
detido logo a seguir quando discorrermos sobre os dois tipos fundamentais de desvio na
Sociedade do Espetáculo: a proposição desviante e o sistema.
103
A única aventura, afirmamos, é refutar a totalidade, cujo centro é este estilo de vida,
de onde podemos avaliar nossa força, porém nunca usá-la. Finalmente, nenhuma
aventura é criada diretamente para nós. As aventuras que nos são apresentadas
formam parte das lendas transmitidas pelo cinema ou de outras formas; fazem parte
de toda a farsa espetacular da história.
Guy Debord
A lei abstrata quando elevada à norma absoluta atinge uma amplitude tamanha
que nada pode mais escapar de sua ação alienante; nada pode se colocar à margem de
sua força de separação e submissão; nenhum agente está efetivamente fora de sua
influência. Necessita-se aqui de uma astúcia própria da dialética para que se possa não
escapar, mas ao menos usar conscientemente a “regra oculta” contra si própria e tirar de
da própria abrangência de seu poder os elementos submetidos a uma nova lógica que lhe
reverta internamente a força dissolutiva e pseudo-unificante, que crie, a partir de sua
própria potência inercial, o movimento que lhe destrua. O desvio, portanto, deve ser
entendido em sua função a partir das leis que regulam seu sentido e seus fins:
Operado a partir da própria condição dada, o desvio elege-se como astúcia que
subverte as regras do jogo desde um tipo de reapropriação das condições presentes em
nome da construção das possibilidades futuras. Extrai, por assim dizer, seu sentido do
diálogo critico com/contra suas próprias circunstâncias, aproveitando-se delas para
operar conforme uma estratégia que lhes reconfigure o sentido e assim determine novas
direções aos elementos apropriados e desviados de seus fins comuns. “O baixo preço de
seus produtos é a pesada artilharia com a qual se derrubam todas as muralhas da China
105
A máquina dialética movida pelo desvio e inserida como uma estratégia de guerra
no interior da vida cotidiana, onde se trava a batalha pela reconquista de uma condição
universalmente perdida. Primeiro como desvio do comum, depois, ou simultaneamente
como desvio da universalização da falsa condição sob a forma do discurso que totaliza o
seu sentido e o eleva à condição ideológica de estrutura e padrão universal de
significação e juízo: a linguagem comum e a filosofia. Pois a filosofia também, em sua
configuração universal e, por isso mesmo, ilusória não representa senão a totalização
positiva da vida de uma sociedade que ela reproduz no plano da expressão simbólica.
As várias formas de totalização da experiência imediata de uma determinada situação
histórico social, sua expressão mais universal é a filosofia. Acompanhemos Sartre:
19
A versão original foi publicada na edição de maio de 1956 da revista surrealista belga Les Lèvres Nues.
106
20
Taylor define a “Vida cotidiana” como um termo técnico que ele introduz em sua argumentação para
“designar os aspectos da vida humana referentes à produção e reprodução, isto é, ao trabalho, à fabricação
das coisas necessárias à vida e à nossa existência como seres sociais, incluindo casamento e família.”
(TAYLOR, p. 274)
108
social, bem como a cultura e sua forma superior de totalização, a filosofia tradicional, o
espetáculo a tudo engloba e submete à sua lógica envolvendo todos os setores com sua
dupla determinação alienante e, ao mesmo tempo, pseudo-unificante. Mostra-se como
articulação imediata e acrítica daquilo que Aristóteles compreendia como “zén kai
euzén”, quer dizer, “a vida e o bem viver”. (TAYLOR, p. 274).
Basicamente, o espetáculo engloba o que se precisa fazer para manter e renovar a
vida comum como ela se apresenta imediatamente, da forma como ela se organiza
presentemente: o modo de produção material e suas formas de manutenção e reprodução
ideológica. Desdobra-se, portanto desde a vida cotidiana até seus epifenômenos e suas
determinações superestruturais, reincidindo sobre o movimento de produção do
cotidiano como lei e norma absoluta que, tornadas imagens descoladas do movimento
que as produz, retornam a ele como mecanismos alienados e estranhos de regulação.
Consegue-se combinar aqui, a partir dos aspectos referentes à vida cotidiana,
situada na dupla determinação da produção e reprodução dos meios necessários à
manutenção do equilíbrio social, articulando à procura do “bem viver” duas das
atividades mais frequentemente citadas pelas tradições éticas posteriores como
superiores à vida cotidiana: a contemplação teórica – cujo ápice, repetimos, configura-
se no discurso filosófico – e atividade política, cuja participação requer dos cidadãos
uma espécie de acordo involuntário, de adesão irrefletida, conseguida mediante o
postulado ilusório do contrato social.
Nesse circuito reprodutivo, localizado em duas esferas articuladas, o cotidiano e
seus fantasmas, suas representações superestruturais, das quais a filosofia é a mais
acabada e total, deve-se encontrar o ponto de sustentação ilusória do todo, cuja lógica
pode ser abalada através da investida desviante da dialética. Nas palavras de Debord, a
única aventura é refutar a totalidade, e esta, deve-se notar, faz-se presente em todos os
níveis da vida social, devendo ser confrontada desde as situações mais corriqueiras até
suas expressões mais abstratas.
O mais abstrato, no entanto, traz em si mesmo a representação teórica mais
elevada da totalidade alienada. Sendo assim, uma aventura teórico-prática de amplos
resultados dialéticos seria a refutação do todo mediante o desvio de sua forma mais
sofisticada e acabada. Mediante o desvio de sua pretensão ao absoluto totalizada. Aqui
nada escaparia, nem a banalidade da experiência comum, nem a aparente superioridade
do saber erudito.
109
21
Cof. KOJÈVE. Essai d’une Histoire Raisonnee de la Philosophie Paienne. 3 vol, Paris: Gallimard,
1997.
110
O ser não habita a linguagem ou, o que dá no mesmo, a linguagem não é a morada
do ser, mas um meio pelo qual alguns recortes desse mesmo ser podem ser elevados ao
plano da consciência humana e articulados em sua inteligibilidade. Em sua as atuais
condições de uso ela é instrumento do poder. Forma por excelência da legitimação das
forças sociais que se impõem como formas regulares de vida através da linguagem
normalizada, espetacular. Aquilo que se diz não apenas veicula informações, mas define
as normas do dizer e, por isso, estabelece as formas da experiência comum. Vivemos
em uma linguagem que nos vive, mas esta não é a linguagem da autoafirmação humana,
ela é, antes, o médium pelo qual se normaliza as maneiras de ser e conhecer de acordo
com os postulados do poder. Neste sentido, vivemos na linguagem como no ar viciado.
(DEBORD, All the King’s Men) Não obstante, a malha de conceitos construída pela
razão deve buscar corresponder de alguma maneira à malha ontológica constitutiva do
próprio real. Romper as grades e as cancelas que a limitam a uma espécie de
autoafirmação alienada de suas próprias normas padronizadas. Sair para o mundo e
reconstruir as bases da experiência efetiva. Deixar de ser a linguagem espetacular do
poder para ser novamente a linguagem humana da experiência social.
simples da antiga estrutura. A dialética, através do desvio, o que veremos com nossa
análise de Debord, deve ser capaz de se criar em meio a uma tensão, vale dizer, no
espaço aberto entre o dizer singular que se impõe como autônomo e a antiga fórmula
que constrange, não obstante permita a comunicação, criando ali o seu sentido.
Recapturar a experiência como algo que se coloca no contexto da comunicação dialética
entre o fluxo subjetivo da consciência e os objetos do mundo externo, mediados pela
ação humana criadora de conceitos e metáforas. Na tensão entre a expressão e o mundo
subsiste a força da dialética, em sua constante atualização das potência da linguagem na
direção da captação da experiência autêntica em sua determinação concreta. A dialética
não se situa em nenhum dos polos em que se costuma dividir a vida, nem sujeito nem
objeto, mas se insinua entre as esferas, mobilizando o diálogo interior aos processos
históricos concretos de uma experiência real que ela atualiza permanentemente pelo
discurso. Segundo Martin Jay, Uma verdadeira epistemologia dialética deve por fim ao
fetiche do conhecimento, consubstanciado pelo fetiche da linguagem que conduz à
sistematização abstrata. A verdade não é, ao contrário, sustenta Jay, “o que ‘sobrava’
quando ocorria uma redução do sujeito ao objeto, ou vice-versa. Ao contrário, residia no
“campo de força” entre o sujeito e o objeto. O realismo absoluto e o nominalismo
absoluto (...) levavam a reificação igualmente falaciosas. (JAY, 2008, p. 114)
significado para construir um novo projeto. Um novo projeto construído com partes do
antigo.
pela qual se destrói no próprio ato constitutivo de sua missão os compromissos que a
razão espetacular em sua forma reificada instaurou. Não o diálogo fácil das instâncias
políticas em busca da clareza na ação argumentativa e do equilíbrio intersubjetivo nas
relações sociais pseudodemocráticas. A construção de um diálogo possível em Debord
passa necessariamente pelo distanciamento crítico em relação a qualquer compromisso
que não seja o da libertação plena do indivíduo e a ruptura das amarras materiais e
ideológicas que o prendem a uma falsa situação apoiada em uma falsa concepção
legitimante. A razão deve dialogar com as suas circunstâncias e colocar em conflito as
situações pelas quais se propagam as perdas e se reproduzem os mecanismos de
sustentação da alienação. Um diálogo imanente no qual as partes em conflito não se
resolvem numa síntese artificial, mas mantém-se em tensão ressaltando a natureza
aberta, problemática e crítica de sua própria realização.
Porém o mais importante é saber que nesta filosofia todos os conceitos são
fluidos. Ernst Bloch
22
“E desde que a linguagem não é mais que o veículo indispensável ao nosso pensamento, como um
cavalo é para um cavaleiro, e desde que os melhores cavalos são mais adequados aos melhores cavaleiros,
deve-se dizer, a melhor linguagem é adequada ao melhor pensador. Mas, o melhor pensador não se pode
encontrar senão onde conhecimento e inteligência estão presentes; portanto, a melhor linguagem é
adequada apenas aqueles que possuem inteligência e conhecimento.” (DANTE, De Vulgari Eloquentia,
Trad. Plinio F Toledo)
115
A linguagem abstrata da lógica formal não só não pode dar conta da realidade
efetiva dos eventos em sua multiplicidade e movimento como , de fato, trai e falsifica o
conteúdo concreto da experiência, transformando-o em um procedimento mecânico de
articulação de representações coisificadas e formas substancializadas.
23
Lemos em O Crepúsculo dos ídolos: Contrapomos a isto, enfim, o modo distinto como nós ( - digo
nós por cortesia...) vemos o problema do erro ( Irrthums) e da aparência (Scheinbarkeit) . Em outro tempo
tomava-se a modificação (Veränderung), a mudança (Wechsel), o devir em geral (Werden überhaupt)
como prova de aparência, como signo de que aí tem de haver algo que nos induz a erro. Hoje, ao
contrário, na exata medida em que o prejuízo da razão (Vernunft-Vorurtheil) nos obriga a atribuir unidade
(Einheit), identidade (Identität), duração (Dauer), substância (Substanz), causa (Ursache), coisidade
(Dinglichkeit), ser (Sein), nos vemos, de certo modo, capturados em erro, necessitados do erro; mesmo
quando, baseados em uma verificação rigorosa, em nosso interior nos asseguremos de que é aí onde se
encontra o erro. Ocorre com isto o mesmo que com os movimentos de uma grande constelação: aqui o
erro tem como advogado permanente o nosso olho, lá nossa linguagem. Por sua gênese a linguagem
pertence à época da forma mais rudimentar de psicologia: penetramos em um fetichismo grosseiro
quando adquirimos consciência dos pressupostos da metafísica da linguagem, dito com clareza: da razão.
Esse fetichismo vê por toda parte agentes e ações (Täter und Tun): crê que a vontade é a causa geral; crê
no “eu”, crê que o “eu” é um ser, que o “eu” é uma substância, e projeta sobre todas as coisas a crença na
substância-eu – e assim cria-se o conceito “coisa”... O ser é adicionado com o pensamento, é introduzido
116
sub-repticiamente em todas as partes como causa (Ursache); do conceito “eu” é que se segue, como
derivado, o conceito “ser” ... (NIETZSCHE. Götzen-Dämmerung. KSA. 1999, p. 77. Tradução feita por
nós direto do original alemão)
117
A forma, única e imóvel, é adaptada pelo sujeito sabedor dos dados presentes: o
material é mergulhado de fora nesse elemento tranquilo. Isso porém – e menos ainda
fantasias arbitrárias sobre o conteúdo – não constitui o cumprimento do que se
exige; a saber, a riqueza que jorra de si mesma, a diferença das figuras que a si
mesmas se determinam”. (HEGEL, Fen. Esp. P. 28. Grifos nossos)
em fazer juízos em com isto não se atém à coisa, senão que passa por cima dela”.
(GADAMER. 27) Citando Hegel exemplifica: “em lugar de permanecer nela, esquecer-
se de si nela, semelhante saber se lança sempre em favor de algum outro, porém o certo
é que permanece junto de si mesmo, em vez de manter-se junto à coisa e entregar-se a
ela.” (Phän., 11) Porém o mais importante, lembra Gadamer,
Na filosofia, a verdade é um processo real, que não cabe em uma proposição. Não é
o abstrato ou o que está privado de realidade que constitui o elemento e o conteúdo
de filosofia, mas o real, o que se auto-estabelece, o que em si mesmo, o que existe
no seu próprio conceito. O elemento da filosofia é o processo cujo movimento cria e
percorre seus próprios momentos, e é este movimento, na sua totalidade, que
constitui seu conteúdo positivo, sua verdade. Uma proposição isolada não pode
apreender este movimento. (Citado por MARCUSE, 1978, p 103)
Essa complexidade dos processos reais não pode ser captada senão pela mediação
do todo, cuja compreensão pelas categorias da linguagem, articuladas na proposição
dialética, deve permitir um aprofundamento do real em sua constituição movente, em
seu processo de construção da identidade através da diferença. “O verdadeiro é o todo”
diz Hegel, “mas o todo”, continua,
121
Tout comme on n'apprécie pas la valeur d'un homme selon la conception qu'il a de
lui-même” : [détournement de Marx, Prefácio à Crítica da economia-política] : De
même qu'on ne juge pas un individu sur l'idée qu'il se fait de lui-même, de même on
ne saurait juger une telle époque de boulversement sur la conscience qu'elle a d'elle-
même. (...) “On ne peut apprécier de telles époques de transformation selon la
conscience qu'en a l'époque ; bien au contraire, on doit expliquer la conscience à
l'aide des contradictions de la vie matérielle ...” : [citação de Marx, idem.] (SE §
202)
24
Citação de Marx. Crítica da economia política, em cuja tradução francesa pode ler: Dans toute science
historique et sociale en général, il faut toujours retenir que le sujet - ici la société bourgeoise moderne -
est donné aussi bien dans la réalité que dans le cerveau ; et que les catégories expriment des formes et des
modes d'existence. Debord insere-se aqui na vertente ontológica da dialética marxiana, aquela que
cumpre as diretrizes da linguagem especulativa hegeliana em sua articulação extra-formal como desafio à
superação da representação e mergulho nas categorias da existência. Citando Debord-Marx: “Comme
dans toute science sociale historique, il faut toujours garder en vue, pour la compréhension des catégories
« structuralistes » que les catégories expriment des formes d'existence et des conditions d'existence.”
Como representativas da existência as categorias não são pressupostos gnosiológicos formadores de uma
perspectiva subjetiva que se projeta sobre a existência e a modela, mas conceitos regidos por uma lógica
da negação-superação através da qual o cerne do existente é captado em sua realidade efetiva. A
linguagem não se tarela à lógica do poder, mas aos processos da vida.
25
Détournement de Swift : “O louvor é filho do poder presente”
26
Détournement de Marx, Crítica da economia política, Introdução: “Cet exemple du travail montre
d'une façon frappante que les catégories les plus abstraites elles-mêmes - malgré leur validité ( à cause de
leur abstraction) pour toutes les époques n'en sont pas moins, dans cette détermination abstraite, tout
autant le produit de conditions historiques et n'ont leur pleine validité que pour elles et dans leur limite.”
123
iludidas, não pode mais apenas descrever o fenômeno como se acompanhasse suas
peripécias e evoluções ontológicas. Deve, ao contrário, subtrair ao fenômeno sua lógica
e mostrar, por trás do movimento mesmo de construção do significado e da falácia do
código consueto de normas, a servidão sob a capa do sistema. Não apenas rearticular a
linguagem ao real, como Hegel fez, mas mostrar a dependência do significado em
relação às forças materiais que dele se apropriam. Libertar a linguagem de sua utilização
pelo poder. Para tal é necessário antes restabelecer os fluxos, quebrar a magia da
linguagem pensada como sistema formal, romper os limites abstratos das categorias
reconduzindo-as aos seus verdadeiros liames com a vida efetivamente vivida. Romper
os limites abstratos e as formas fixas da linguagem pelo desmonte de suas estruturas,
pelo substituição e realocação de seus elementos, enfim, pelo desvio operado como
modo de se penetrar na estática da linguagem formal e dinamizá-la pela subversão de
seu sentido. Um passo dentro da linguagem utilizada pelo poder corresponde a um
passo na direção da realidade que ele quer encobrir. Desviar a linguagem em seus
referencias proposicionais e sistêmicos corresponde, portanto, a realização de uma
crítica que não se detém nas categorias, nem se reduz apenas a análise lógica dos signos
e suas relações, mas penetra o mundo dos fenômenos reais, históricos e concretos,
religando a eles os símbolos autênticos de sua significação.
O poder dá somente a carteira de identidade falsa das palavras; ele lhes impõe
um livre trânsito, determina seu lugar na produção (onde algumas fazem
visivelmente horas extras); libera-lhes de algum modo sua caderneta de pagamento.
Reconheçamos a seriedade do Humpty-Dumpty de Lewis Carroll que considera que
toda a questão, para decidir o uso das palavras, é a de “saber quem será seu senhor,
e ponto final”. E ele, patrão social na matéria, afirma que paga em dobro àquelas que
ele usa muito. Compreendamos também o fenômeno de insubmissão das palavras,
sua fuga, sua resistência aberta, que se manifesta em toda a escrita moderna (desde
Baudelaire até os dadaístas e Joyce), como o sintoma da crise revolucionária de
conjunto na sociedade. (DEBORD. All the king’s men)
Despir a capa ideológica dos signos e revelar sua real fonte de significação. Nela
apresentar o esvaziamento do sentido, a localização dos signos em um reino abstrato de
relações formais mediante a crítica dialética mediada pela linguagem em desajuste com
os interesses do poder: a linguagem da contestação total. Um protesto contra a
separação da verdade, e suas formas, dos processos concretos; um protesto contra a
exclusão de qualquer influência diretora que a “verdade” a mando do poder pudesse ter
sobre a realidade.
assim um tabu sobre ele, esse conceito mantém o espírito sob o domínio da mais
profunda cegueira. (ADORNO, 1985, p.14)
É característico de uma situação sem saída que até mesmo o mais honesto dos
reformadores, ao usar uma linguagem desgastada para recomendar a inovação, adota
também o aparelho categorial inculcado e a má filosofia que se esconde por trás
dele, e assim reforça o poder da ordem existente que ele gostaria de romper. A falsa
clareza é apenas uma outra expressão do mito. Este sempre foi obscuro e iluminante
ao mesmo tempo. Suas credenciais têm sido desde sempre a familiaridade e o fato
de dispensar do trabalho do conceito. (ADORNO, 1985, p.14. grifos nossos)
Neste ponto, é bom que se observe, a tarefa da dialética em Debord vai muito
além das operações linguísticas de Hegel, ela trabalha em comércio com a arte,
extraindo dela a força diferencial, a potência criativa que permite à linguagem da crítica
construir-se em dissidência completa com o poder e assim, restabelecer os laços com a
experiência vital. É preciso compreender que
O poder vive de furto encoberto. Ele não cria nada, ele recupera. Se ele criasse o
sentido das palavras, não haveria poesia, mas unicamente a “informação” útil. Não
se poderia jamais se opor na linguagem, e toda recusa lhe seria exterior, seria
puramente letrista. Ora, o que é a poesia, senão o momento revolucionário da
linguagem, não separável enquanto tal dos momentos revolucionários da história e
da história da vida pessoal?(DEBORD, All the King’s Men. Grifos nossos)
Ela não é outra coisa que a linguagem libertada, a linguagem que reconquista
sua riqueza e, quebrando seus signos, recobra ao mesmo tempo as palavras, a
música, os gritos, os gestos, a pintura, as matemáticas, os fatos. A poesia depende,
128
27
Confere acima o capítulo sobre as perspectivas para a transformação da vida cotidiana, om o qual a
concepção dialética da linguagem deve ser pensada.
129
28
Um longo trecho extraído dos Grundrisse de Marx deve servir para clarear a vinculação ontológica
entre Debord e Marx e estabelecer a diferença em relação a Hegel. Citemos:
O concreto é concreto, porque é a concentração de muitas determinações, isto é, unidade do diverso. Por
isso, o concreto aparece no pensamento como o processo da concentração, como resultado, não como
ponto de partida, embora seja o verdadeiro ponto de partida e, portanto, o ponto de partida também da
intuição e da representação. No primeiro caminho a representação plena volatiza-se na determinação
abstrata; no segundo, as determinações abstratas conduzem à reprodução do concreto por meio do
pensamento. Assim é que Hegel chegou à ilusão de conceber o real como resultado do pensamento que se
concentra, que se aprofunda em si mesmo e se apreende a partir de si mesmo como pensamento móvel;
enquanto o método que consiste em elevar-se do abstrato ao concreto não é senão a maneira de proceder
o pensamento para se apropriar do concreto, para reproduzi-lo espiritualmente como coisa concreta.
Porém, isto não é, de nenhum modo, o processo da gênese do próprio concreto. A mais simples categoria
econômica, suponhamos por exemplo o valor de troca, pressupõe a população, uma população que produz
em determinadas relações e também certo tipo de famílias, de comunidades ou Estados. Tal valor nunca
poderia existir de outro modo senão como relação unilateral, abstrata de um todo dado, concreto e vivo.
(...) a totalidade concreta, como totalidade de pensamento, como uma concreção de pensamento, é, na
realidade, um produto do pensar, do conceber; não é de nenhum modo o produto do conceito que se
engendra a si mesmo e que concebe separadamente e acima da intuição e da representação, mas é
elaboração da intuição e da representação em conceitos. O todo, tal como aparece na cabeça, como um
todo de pensamento, é um produto da cabeça pensante, que se apropria do mundo da única maneira em
que o pode fazer, maneira que difere do modo artístico, religioso e prático-espiritual de se apropriar dele.
O objeto real [reale Subjekt] permanece em pé antes e depois, em sua independência e fora da cabeça ao
mesmo tempo, isto é, a cabeça não se comporta senão especulativamente, teoricamente. No método
também teórico da economia política o objeto – a sociedade – paira como pressuposição diante da
representação.”
[MARX, Karl. O Método da economia-política. 1984, P 410. Grifos nossos].
29
OC. O método Derrida. In.: Jornal do Brasil, 12 de janeiro de 2006
130
concreta de um momento específico do processo social, que deve ser articulado aos
outros momentos sem perder a sua especificidade e nem abstrair-se do sistema do
mundo.30 A destruição de todos os meios de reprodução da separação, do controle, da
submissão e da mentira. Não a poesia a serviço da revolução, como esclarece Debord,
mas “a revolução a serviço da poesia.” (DEBORD. All the king’s men) Esta é a verdade
dialética da arte e da linguagem renovada pelo desvio.
30
Uma tentativa de Hegel que naufraga em suas próprias circunstâncias como demonstraremos em nosso
capítulo sobre o desvio do sistema.
131
Da mesma forma que Debord, Hegel enfrentou, antes dele, o problema central que
abordamos em nossa tese, ou seja, como expressar conteúdos divergentes em uma
forma proposicional cujos limites evidentes nos impedem de ir além do que a linguagem
normal prescreve. Em outras palavras: como expressar a verdade do todo em seu
movimento e em suas articulações fundamentais sem renunciar à linguagem do conceito
nem se refugiar no irracional ou na intuição religiosa. “Somente a linguagem que perdeu
toda referência imediata à totalidade pode fundar a informação.” (DEBORD. All the
king’s men) Construir uma linguagem avessa aos limites e mentiras da linguagem da
informação, cara ao poder. Para tal a recuperação da categoria da totalidade torna-se
imprescindível e com ela o acordo com a dialética de Hegel.
Hegel percebeu que os limites que a linguagem nos impõe não podiam ser
transcendidos, o que equivale a dizer que ele reconheceu que não se poderia querer
buscar um ponto de apoio fora da linguagem que nos permitisse ultrapassar os limites
da linguagem. Ao contrário, ao construir a linguagem dialética a partir de um desvio
operado no interior da linguagem formal no rumo da proposição especulativa, Hegel
constrói uma primeira astúcia dialética: extrai dos limites do dado a potência que lhe
permite a criação de uma dinâmica expressiva não mais refém das contradições
insuperáveis dentro dos limites da forma lógica.
Sans doute, le concept critique de spectacle peut aussi être vulgarisé en une
quelconque formule creuse de la rhétorique sociologico-politique pour expliquer et
dénoncer abstraitement tout, et ainsi servir à la défense du système spectaculaire.
Car il est évident qu’aucune idée ne peut mener au delà du spectacle existant, mais
seulement au delà des idées existantes sur le spectacle. Pour détruire effectivement
la société du spectacle, il faut des hommes mettant en action une force pratique. La
théorie critique du spectacle n’est vraie qu’en s’unifiant au courant pratique de la
négation dans la société, et cette négation, la reprise de la lutte de classe
révolutionnaire, deviendra consciente d’elle-même en développant la critique du
spectacle, qui est la théorie de ses conditions réelles, des conditions pratiques de
l’oppression actuelle, et dévoile inversement le secret de ce qu’elle peut être. Cette
théorie n’attend pas de miracles de la classe ouvrière. Elle envisage la nouvelle
formulation et la réalisation des exigences prolétariennes comme une tâche de
longue haleine. Pour distinguer artificiellement lutte théorique et lutte pratique – car
sur la base ici définie, la constitution même et la communication d’une telle théorie
ne peut déjà pas se concevoir sans une pratique rigoureuse –, il est sûr que le
cheminement obscur et difficile de la théorie critique devra être aussi le lot du
mouvement pratique agissant à l’échelle de la société. (SE. 203)
133
Guy Debord
31
Vale lembrar que Détournement é uma palavra francesa que significa desvio, diversão,
reencaminhamento, distorção, abuso, malversação, sequestro, ou virar ao contrário do curso ou propósito
normal. Ela (a palavra) foi apropriada para designar uma prática criativa pelo movimento situacionista,
especialmente por dois de seus líderes, Guy Debord e Gil J. Wolman.
134
Isto significa que a linguagem deve ser crítica e experimentar a sua própria
historicidade antes, ou exatamente, enquanto se aproxima de sua realização como
mediação socialmente eficaz a serviço da consciência revolucionária. A verdade da
expressão está ligada à historicidade da experiência que ela reflete, portanto deve-se
manter, por assim dizer, constantemente à deriva se pretende alcançar a comunhão com
a experiência integral que é o índice de sua própria verdade.
A primeira sentença da Sociedade do Espetáculo busca criar uma tensão que não
se resolve, ao contrário, sustenta-se sobre a abertura de um leque semântico através do
diálogo inter-proposicional com a sentença de abertura de O Capital de Karl Marx.
Temos aqui um exemplo de desvio em que a voz do autor desviante dialoga com sua
base teórica criando um contraponto em que, sobre o fundo da tradição interpretativa
135
marxiana, projeta-se a voz dissonante que extrai da proximidade crítica com um autor
canônico a distância que, ao mesmo tempo, mantém a tensão e dinamiza o texto.
“Toute la vie des sociétés dans lesquelles règnent les conditions modernes de
production s’annonce comme une immense accumulation de spectacles.” (DEBORD.
SE, § 1)
Tentaremos levar o leitor a ver com maior detalhe como isso funciona. Iniciamos
por observar que a totalidade que se vai expressar no conjunto já está contida na
primeira formulação cuja forma do enunciado engloba todo o sentido do que está por
vir. Apresenta na abertura o tema central, o campo harmônico sob cujas regras serão
criadas as relações dialógicas em dissonância com a tradição, mediante a qual o
conteúdo da tradição é revisto, revertido e superado na própria dinâmica do estilo
formular. Nesse sentido, o desvio, que corrige a proposição de Marx, insere uma nota
estranha ao acorde original embora esteja potencialmente presente nele como uma
determinação virtual que Debord atualiza. Da mercadoria para o espetáculo não se trata
mais de analisar uma substância do valor conforme afirma Marx no Prefácio da
Primeira Edição de O Capital,32 mas denunciar uma imagem33 e revertê-la no corpo
Cito a passage: “Das Verständnis des ersten Kapitels, namentlich des Abschnitts, der die Analyse der
32
Ware enthält, wird daher die meiste Schwierigkeit machen. Was nun näher die Analyse der Wertsubstanz
136
und der Wertgröße betrifft, so habe ich sie möglichst popularisiert.” (Das Kapital. Vorwort zur ersten
Auflage, grifo nosso).
33
Compare-se o trecho acima com o enunciado debordiano: “Tout ce qui était directement vécu s’est
éloigné dans une représentation.” (SE. § 1, Grifo nosso.)
137
Essa a dialética das aparências que Debord capta e evidencia na forma revisada do
desvio proposicional de Marx. Uma revisão que constitui uma confirmação da
permanência sob a capa da mudança. Revisão sutil que corporifica a crítica sintética em
um simples jogo de substituição. A troca de um elemento altera o significado do todo e
atualiza a máquina crítica, conferindo-lhe maior densidade dialética. Uma primeira
lição de como efetuar a crítica sintética através da presença do objeto poético. Uma
crítica não analítica, não descritiva, não espetacular elaborada em um único enunciado
revitalizado pelo desvio.
Nossa leitura do desvio proposicional nos mostra que o diálogo crítico com a
tradição dialética é evidente em Debord. Observe-se, a propósito, que Hegel e Marx são
os autores mais desviados e citados na Sociedade do Espetáculo, as referências com as
quais Debord mais trabalha na construção das bases teórico-críticas de sua abordagem
dialética.34 Duas linhas mestras com as quais Debord polemiza criticamente, vozes que
reaproveita, campos harmônicos dentro dos quais constrói sua melodia, ou melhor, o
tema sobre o qual elabora seu contraponto teórico.
34
Debord desvia e cita Hegel 41 vezes e Marx 61 vezes na Sociedade do Espetáculo.
139
filosofia composta de outras filosofias, a uma avaliação dialógica constituída por uma
retomada do atual na direção do possível.
Tem-se então uma relação com o passado, cuja potência presentifica, uma relação
com a conjuntura histórica que exige a atualização do enunciado, somada à uma
exigência do leitor crítico que completa a tríade semântica do desvio. A circulação
dinâmica do sentido que se move entre os polos da tradição, do contexto e da atividade
da leitura semeia no âmbito semântico do texto um campo de significação que se
enriquece no exercício dialético da teoria dinamizada pela prática.
Constrói-se com esse material uma obra peculiar cujo furor dialético corporifica-
se no corpo do texto, o qual exibe materialmente a natureza do debate que nele se
instaura. A dinâmica da máquina de combate recupera no estilo, na sua constituição o
conteúdo daquilo a que se refere, que supera e, ao mesmo tempo, a possibilidade para a
qual aponta. O movimento reinventado no interior de uma desestruturação da tradição,
cuja fórmula, ao ser reorganizada pelo desvio, anima o texto de uma potência de
negação e elevação que constituem simultaneamente a verdade do todo restaurada.
Note-se que a partir desse procedimento Debord irá construir um texto organizado
não como uma refutação do texto criticado, mas fundamentalmente como uma
desconstrução do texto que lhe desarticula a lógica e exibe, quase que visualmente, sua
falência teórica. A sobreposição da proposição desviante à proposição de base efetua a
crítica que é, ao mesmo tempo, correção e atualização. Uma refutação dialética,
repetimos, jamais analítica.
“Le spectacle n'est pas un ensemble d'images, mais un rapport social entre des
personnes, médiatisé par des images”
[“O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social mediada pelas
imagens”]
(SE. § 4)
“Descobre-se, assim, que em lugar de ser uma coisa o capital é uma relação social entre
pessoas mediada pelas coisas.”
Quando o mentiroso mente para si mesmo o que era verdade torna-se falso no
próprio ato de sua realização enquanto verdade. A aparição da verdade mediada pelo
sistema de poder que dela se apropria serve para esconder, na aparição espetacular, a
verdade que o espetáculo esconde ou disfarça, promovendo o seu contrário.
A crença no que surge simplesmente como processo natural, sem sujeito que o
submete à sua vontade de domínio faz a linguagem, que é mediação social, desaparecer
como sistema objetivo; reificada torna-se natureza que se auto-desdobra explicitando
seu próprio processo imanente. Desvinculado, portanto, do sujeito social que dele se
apropriou.
A inversão espetacular não pode ser captada e descontruída senão pela reversão
imanente de seu sentido, mostrado como presença alienada de uma lógica que se
constitui pela vontade de sustentação do falso. O verdadeiro se torna, de fato, inverdade
quando o mentiroso mentiu para si mesmo. A coexistência do sujeito – mentiroso – com
o verbo – mentir – balizados pelo pronome reflexivo – si mesmo – torna a frase um só
bloco no qual linhas de fuga se distinguem a partir de um mesmo material que se
dissocia e, simultaneamente, dobra-se sobre si mesmo e se constrói pela divergência. Ao
mesmo tempo, o dobrar-se auto-reflexivo da frase dialética transcende, pelo desvio, sua
própria constituição monolítica, ao se referir ironicamente a uma frase de Hegel que
subverte.
Uma representação gráfica da frase poderia nos ajudar a melhor explicitar o que
afirmamos. Reduzida a três componentes substantivos simples poderia ser representada
como uma construção formal na qual os três elementos ligados se equivalem e se
repetem imediatamente. Uma frase destituída de conteúdo, poderíamos dizer. Vejamos:
forma dialética. O que Hegel tentou em sua linguagem fluida e epigramática. Sendo
assim, Debord refere-se a Hegel na própria forma dialética da proposição desviante,
pela qual supera a posição formal da sentença hegeliana que critica.
Le faux est un moment du vrai (mais non plus en tant que faux).
(...) “comme un résultat qui est un projet et comme un projet qui est un résultat, -
un résultat qui naît du projet et un projet engendré par un résultat ; en un mot, le réel se
révèle dans sa vérité dialectique comme une synthèse » ; « Il n'est pas un supplément au
monde réel, sa décoration surajoutée”.
E simultaneamente uma Reversão de Marx, Crítica da filosofia hegeliana do
Direito:
[A religião é a teoria geral desse mundo, seu compêndio enciclopédico (...) seu
complemento solene (...).”]
Ao invés de citar o parágrafo original e discorrer sobre ele até chegar a uma
conclusão, procedimento tornado comum na academia, Debord substituindo diretamente
o que não mais servia, ou invertendo a lógica da proposição desviada, ou mesmo
reaproveitando o seu sentido original como pano de fundo sobre o qual projeta sua voz
dissonante, realiza uma crítica à forma tradicional de utilização da linguagem e de
construção da crítica que se tornou consensual e padrão.
Uma crítica que não discorre sobre o assunto como se este fosse um tema exterior
ao discurso que o aborda, mas que se insere no interior do próprio tema desviado
elevando-o a um grau de autorreflexão planejada pela qual a própria modificação do
tema torna-se sua realização e sua superação crítica.
35
Confere: BARTHES. Système de la Mode, Seuil, 1967, p 293.
148
Não obstante o desvio não é menção alusiva ou programa como sugere Deleuze,
que não o realiza senão abstratamente, mas objetivação.
A teoria do desvio não interessa muito a não ser que sirva de diretriz para a
realização prática da desaceleração, da reversão, da inversão e, portanto, do
reaproveitamento de materiais e contextos diversos em favor da perspectiva crítica-
revolucionária.
O desvio é mais uma questão de síntese poética do que de análise filosófica. Aliás,
a análise é anti-desviante, uma vez que colada ao sentido original do texto, respeitando
suas conexões e sua lógica, separa os elementos constituintes do sentido apenas para
confirmar sua significação ao explicitar exteriormente o que o texto corporifica.
A diferenciação cada vez maior das frases ou das obras por meio da crítica
inserida em sua formulação normal desestabilizando o seu sentido, mostrando suas
potências ou corrigindo os seus equívocos. Desta forma, “atingindo de frente todas as
convenções mundanas e jurídicas, ele não pode deixar de se mostrar um poderoso
instrumento cultural a serviço de uma luta de classes bem compreendida.” (DEBORD.
Desvio: modo de usar. 1956.)
primeira versão dessa pintura. É preciso agora prosseguir com esse processo até a
negação da negação. (DEBORD. Desvio: modo de usar. 1956. Grifos nossos)
O que dizer das diretivas? Tratam-se de frases nominativas que convidam à ação.
Escritas em maiúsculas como em NE TRAVAILLEZ JAMAIS elas diferem por seu
modo de enunciação: proposições nominativas positivas e não injunções diretas
compostas na forma imperativa: slogans de caráter direto e imediato. Seu problema não
reside apenas no caráter pictórico de sua composição, mas em sua função política.
Directives significa, segundo o Trésor de la langue française: um “conjunto de
150
Une directive n’est pas une loi, mais est plus puissanante qu’une loi em ce
qu’elle porte en elle la puissance même de diriger. Ele est plus qu’une consigne, car
elle a um enjeu révolutionnaire; elle dit la direction selon laquelle il faut agir.
Contrairement à une loi, une directive ne se subit pas: elle enjoin à participation, elle
requiert l’accord implicite de celui qui la mène et elle est prescriptive; elle vise à sa
realization. (FLÉCHEUX. Guy Debord et la peinture: des directives à ne travaillez
jamais. In: Dérives pour Guy Debord, Van Dieren Editeur, 2010, p. 173.)
Ao leitor atento não escapará a semelhança de fundo entre e deriva das Cinq
directives, palavras pintadas sobre um fundo neutro como se fossem slogans em um
muro, e a deriva filosófica das proposições dialéticas da Sociedade do espetáculo:
ambas são teoremas corporificados em formas desviantes de ação, nas quais a
concepção encontra a práxis social que anima sua eficácia estratégica.
36
BOSSUET. Politique, IV, I, 4.
151
Uma cidade condensada numa estética cujo componente retórico não pode ser
desprezado, embora sua articulação como máquina de guerra seja mais reveladora de
seu valor enquanto força de combate e crítica construída como jogo entre a figura e o
fundo, entre o que se coloca como o cantus firmus da tradição ou mesmo os lugares
comuns e os slogans da cultura popular e da práxis política. De qualquer forma as
diretivas apontam para a necessidade de se compreender o ponto de contato ou a
conjunção entre a arte, a filosofia e a ação política.
No caso das diretivas o desvio beneficia-se do fato de contar com o aspecto visual
que, por assim dizer, lhe potencializa o efeito. As cinco proposições nominais pintadas
em quadros como comandos revolucionários extraem de sua vinculação à arte e à práxis
social a força que realça sua significação. Dotando-a de uma forma de expressão
oscilante entre a composição artística e a espontaneidade do movimento social, entre a
mediação da forma e a ação direta da vontade política, o desvio opera no espaço da
experiência cotidiana a realização da filosofia em sua forma diretiva e crítica.
crítico-projetivo que a diretiva lhe dá. O que possuía de apelo ao imediato é dotado de
dimensão crítica, de potência semântica que convida à reflexão ao mesmo tempo em
que obriga à participação: assim o desvio se realiza pela reversão do sentido da imagem.
Em outras palavras, o apelo visual é revertido em força semântica e intervenção crítica
através da qual o espaço da ação política, ocupado pela forma artística desviada,
desloca-se de sua orientação ideológica sob o influxo do sentido filosófico que lhe
anima. O que a neutralidade da palavra posta no papel não alcança. No entanto, é
preciso imaginar a página como se fosse um muro, ou um quadro em que se confrontam
linhas de significados densas de conteúdo vital, politicamente orientadas como
movimentos desdobrando-se em meio às solicitações da vida social; imaginar as
palavras como forças políticas, como determinações concretas grávidas de experiência
social, imaginar os signos como expressões nas quais se aninham forças que
movimentam a máquina de guerra na direção da destruição da separação e da submissão
ao espetáculo, reféns da ilusão e da violência, no rumo da reconstrução da experiência
autêntica. Isto se dá pelo convite a novas experiências de sentido pelas quais a arte
revitaliza a filosofia, realizando o seu potencial crítico: ambas integradas à vida como
momentos da comunhão entre teoria e prática. Pode-se imaginar, enfim, a diretiva como
desvio do imperativo categórico kantiano, pelo qual a força de contenção e controle que
a lei moral abriga, é transformada em princípio libertador e força de auto-superação
condensados em atos de linguagem que materializam forças sociais concretas, que tais
atos expressam, em cujo momento revolucionário se inscrevem, apontado direções
novas de realização das potências vitais. A forma da Moralität kantiana é transfigurada
na Sittlichkeit hegeliana.
37
37
Em 1953 Debord pintou em uma parede na Rue de Sene a diretiva: NE TRAVAILLEZ JAMAIS.
154
Portanto, o uso do desvio deve ser geral e irrestrito. Tudo pode ser desviado, de
um texto filosófico a uma peça de vestuário.
Nesse contexto, a herança literária e artística da humanidade deve ser utilizada para
fins de propaganda militante. (...) Todos os elementos, tomados não importa onde,
podem ser o objeto de novas abordagens. As descobertas da poesia moderna sobre a
estrutura de analogias da imagem demonstrou que entre dois elementos, de origens
totalmente distintas, sempre se pode estabelecer uma relação. Limitar-se ao contexto
de um arranjo pessoal de palavras não é mais que a convenção. A interação de dois
mundos sentimentais, a união de duas expressões independentes, superam seus
elementos primitivos para dar uma organização sintética de eficácia superior. Tudo
pode servir. (DEBORD. Desvio: modo de usar. 1956)
38
A versão original foi publicada na edição de maio de 1956 da revista surrealista belga Les Lèvres Nues.
O período era de uma transição da Internacional Letrista para a Internacional Situacionista.
155
Com isso o discurso não opera a separação entre planos distintos artificialmente
constituídos como “objeto” e “linguagem analítica”, é bom ressaltar. Na própria
manifestação material dos signos desviados põe-se crítica como presença objetiva na
qual se inserem, numa dialética em exercício, o “combatente” e os “instrumentos de
combate” dentro da mecânica do objeto combatido, vale dizer, desviado.
O desvio esbarra na tarefa histórica que tenta realizar não pela teoria, não pela
prática, ou seja, não pela confirmação prática do reino da separação, mas pela sua
superação dialética na forma da ultrapassagem das clivagens que fundam o mundo
invertido burguês. Nas palavras de Alberto Burri, na Sociedade do Espetáculo,
portanto,
A través de un total de 221 tesis, Debord despliega cada una de las estrategias y
mecanismos de los que se sirven los nuevos gobiernos para controlar y anular la
intimidad y la racionalidad de los ciudadanos; donde la televisión, el ruido
permanente de lo ficticio y el simulacro se hacen lugar en la cotidianidad
obligándonos a olvidar lo realmente importante y modificando absolutamente
nuestra experiencia, nuestros deseos, nuestras necesidades. En esa sociedad del
espectáculo se instala una nueva pobreza en el corazón de la abundancia, la miseria
de la vida cotidiana de los trabajadores envuelta en postes publicitarios, anuncios,
descuentos y otras drogas. Espectáculo y alienación quedan así, estrechamente
ligados. Una teoría la de Guy Debord, de aunar arte y vida no para llevar a cabo una
revolución cultural, sino de índole radicalmente política y social. (BURRI. El arte
como revolución política, 2008.)39
39
http://casamarela5b.blogspot.com.br/2008/05/arte-sociedade-de-consumo-e-histria.html. Acesso em
18/01/2014.
156
40
Lembramos aqui que Debord em seu filme Sur le passage de quelques personnes à travers une assez
courte unité de temps usa o termo “atividade estética” como sinônimo de arte. É neste sentido que
empregamos aqui o termo estética.
157
Portanto, a tarefa é, antes de tudo, política e não apenas cultural. Melhor dizendo,
é uma tarefa em que se deve empenhar a totalidade da inteligência e das forças criativas
da consciência anti-espetacular a fim de reverter as bases ideológicas historicamente
assentadas do espetáculo. A categoria da totalidade é algo que se deve ter sempre em
mira para não se entender a proposta de Debord no âmbito do fetichismo grosseiro em
que se troca o todo pela parte. A tarefa é econômica (abolition du travail aliéne) social
(tous contre le espectacle) estética (dépassement de l’art) filosófica (réalization de la
philosophie) e política (Non a tous les spécilalistes du pouvoir; les conseils ouvriers
partout). A tarefa apresenta-se espacialmente como diretrizes separadas, mas é
concebida e deve ser imaginada como momentos articulados de um mesmo trabalho
teórico-prático realizado como desafio total inserido no âmbito da práxis histórico-
social. Em outras palavras, pensadas em conjunto as diretivas debordianas compõem um
sistema em situação inserido como potência revolucionária no interior da vida
cotidiana.
41
Détournement de Marx, Crítica da Filosofia do Direito de Hegel : “Tal é a tarefa da história depois que
o além da verdade desapareceu: estabelecer a verdade do aquém.”
158
42
42
Les Cinq Directives, que reproduzimos acima, foram elaboradas por Debord e Giuseppe Pinot Gallizio
em 1963, época em que Debord começa a escrever La Société du Espectacle (1967). Conforme explica
Debord em escrito de 1988 para o colecionador Paul Destribats:
“J’ai peint, si le mot n’est pas um peu excessif, comme une sorte d’hommage à la manière jornienne des
‘peintures modifiées (...) Ce tableau détourné étant donc celui de Gallizio, et la directive écrite de ma
main, c’est en somme une authentique synthèse; un excellent exemple de ce que Jorn appelait un
‘compromis situacionniste’, et finalement de ce que l’I.S. a été artistiquement et autrement”. (in:
DEBORD. Oeuvres, 2006, p. 654. Grifos nossos).
161
que ele se regozija de não ter mais que se ocupar de uma fastidiosa “verdade”, dado
que esta não está oculta mas é, simplesmente, inexistente. Para Baudrillard, a troca
dos signos ocupou todo o espaço social. Não pode, pois, haver nenhuma resistência
porque esta deveria referir-se a conceitos como conteúdo, significado ou sujeito, os
quais, segundo Baudrillard, se tornaram signos. É curioso observar como
Baudrillard retoma conceitos de Debord e, parecendo radicalizá-los, na verdade
transforma-os em seu contrário. Esta teoria pretensamente crítica não faz nada mais
que sonhar com um espectáculo perfeito que tivesse ficado livre de sua base material
– em outros termos: de um consumo que se livrasse da produção – e, pois, não tem
mais nada a temer de suas contradições. Interpretada assim, a expressão “sociedade
do espectáculo” tornou-se corrente no jargão jornalístico que podemos ouvir todos
os dias – uma possibilidade que o próprio Debord havia previsto (Sde, § 203).
(JAPPE. O Passado e o Presente da Teoria (de Debord), in: Krisis, 1999)43
O negativo do imediatamente dado deve ser negado. O dado que aparece como
natural deve ser socializado e historicizado (ideologicamente destruído e superado); no
entanto, deve ser, por meio da compreensão dialética, simultaneamente atacado em sua
matriz ontológica essencial, situada no âmbito das relações materiais efetivas.
43
http://www.krisis.org/1999/o-passado-e-o-presente-da-teoria-de-debord. Acesso em 19/01/2014.
162
Deve-se notar aqui que nem mesmo a imagem é desprezada por Debord,
porquanto esta não possui valor negativo intrínseco e sim aquele que assume no interior
da totalidade das relações alienadas. Inserida em outro sistema de referência e regida
por outras regras, a imagem, como se vê nas Diretivas, pode ser desviada em função da
consciência revolucionária e como instrumento político da teoria crítica. O próprio
Jappe nos adverte que
“Aqueles que (25) , a qualquer preço, querem atribuir a Debord uma hostilidade
metafísica em relação ao olhar e à imagem poderiam meditar, além de sobre seus
filmes, sobre o que ele disse, com desarmante simplicidade, no “Avis” Panégyrique,
Tomo II, composto sobretudo de fotos: “Os embustes dominantes da época estão
prestes a fazer esquecer que a verdade pode ser vista também nas imagens. A
imagem que não foi intencionalmente separada de seu significado acrescenta muita
precisão e certeza ao saber. Ninguém duvidou disto até há pouquíssimos anos” (26) .
(JAPPE. O Passado e o Presente da Teoria (de Debord), in: Krisis, 1999)
O que Debord critica não é, portanto, a imagem enquanto tal, mas a forma-imagem
enquanto desenvolvimento da forma-valor. Como esta última, a forma-imagem
precede todo conteúdo e faz com que as lutas entre os diversos actores sociais sejam
apenas lutas distributivas. Tanto os burgueses quanto os operários – para nos
limitarmos aos esquemas clássicos – têm seus interesses aparentemente
inconciliáveis expressos sob uma forma comum – o dinheiro – que de modo algum é
neutro ou “natural”, como se admite tacitamente, mas, ao contrário, constitui o
verdadeiro problema. Igualmente, no espectáculo, qualquer conteúdo, mesmo aquele
que se diz antagónico, sempre se apresenta sob a forma nada inocente da imagem
espectacular.
com o mecanismo total desviado da articulação global da obra, que o embate se dá entre
a criação artística a razão filosófica e a missão política de superação do espetáculo.
É desnecessário dizer que se pode não somente melhorar uma obra ou juntar
diversos fragmentos de obras ultrapassadas em uma nova, mas também mudar o
sentido desses fragmentos e montar da maneira que se achar melhor o que os
imbecis teimam em chamar de citações. (DEBORD. Desvio: modo de usar. 1956)
coincide com o que a razão postula. O trabalho da razão não se verificou, não há
nenhuma base material para se afirmar que a realidade tornou-se conforme apontava o
projeto da razão desde sua constituição primeira em Platão. A história não se revelou
prenhe de razão, mas determinada pelo interesse de classe que se apropriou do seu
sentido e o conduziu conforme a necessidade imposta pelo seu valor reducionista: o
valor de troca. O reducionismo axiológico exibido na imagem da sentença é
completamente destituído pela sua reversão. O desvio proposicional realiza a crítica
evidenciando a caducidade da proposição dialética hegeliana, o imediatismo de sua
imagética. Assim “Bom=O que um determinado sujeito histórico assim convencionou”.
O que aparece e o que se considera bom possuem a mesma potência semântica atrelada
ao sentido histórico que emerge de sua submissão ao interesse de classe. É bom o que
está aí porque o que está aí é bom. A tautologia é descoberta sob o manto da linguagem
dialética.
Esclarecemos o que se tenta explicitar aqui com uma sentença elusiva de Debord,
da qual se consegue o efeito pela sugestão:
“Le caractère fondamentalement tautologique du spectacle découle du simple fait que ses
moyens sont en même temps son but.”
“En un mot: vous ne pouvez surmonter la philosophie sans la réaliser (ihr könnt
die Philosophie nicht aufheben ohne sie zu verwirklichen).” (Marx, Oeuvres, t. III -
Oeuvres philosophiques, trad. Rubel, Gallimard/Pléiade, 1982, p. 388-389).
4.7 Nossa época não deve mais escrever instruções poéticas, mas executá-las.
linguagem pode muito bem ser definida como o nosso meio, não apenas um veículo de
conteúdos, mas uma forma total de ser pela qual se pode também “deixar de ser”.
Através do feitiço da linguagem a possibilidade de libertação dos sujeitos, de construção
do projeto da razão rumo à emancipação fica comprometido, uma vez que aquilo que,
em certo sentido, nos consiste, nossa possibilidade de expressão e entendimento, o
vínculo que nos aproxima do outro, torna-se nossa própria destituição. A ideologia
desconstrói as singularidades e destrói pela linguagem a possibilidade de afirmação da
diferença e, com ela, a possibilidade de construção e comunicação dos conteúdos vitais
da existência social.
O teor revolucionário da crítica debordiana, por outro lado, a força que lhe
imprime significado e direção, “insiste e aposta na potencialidade poética da linguagem
e da escrita, potencialidade esta que, para os situacionistas, significa a capacidade de
recriação de sentidos, de desobediência ao dado, de reinvenção do existente, na e pela
linguagem.”44 O trabalho desviante com a proposição torna-se, portanto, fundamental à
reversão do sentido do que nos conquista e submente. No entanto, ele não é completo
sem o desvio da totalidade do sistema reificado, através da presença poética total e
diáfana do desvio do sistema, em cujo interior o complexo de relações entre as
proposições dialéticas ganha pleno sentido e movimento. A reversão do todo. É o que
veremos a seguir.
44
AQUINO, Emiliano. http://emilianoaquino.blogspot.com.br/2008/01/all-kings-men.html, acesso em
22/02/2011.
171
Comme un résultat qui est un projet et comme un projet qui est un résultat, - un
résultat qui naît du projet et un projet engendré par un résultat ; en un mot, le réel se
révèle dans sa vérité dialectique comme une synthèse. A. Kojève
Para tal, um sistema prévio reaproveitado é tomado como mapa dentro do qual se
constroem possibilidades de fluxos de significados determinados pela deriva dos signos.
Toma-se uma totalidade planejada e dentro dela constroem-se variações de movimentos
proposicionais que instauram novos fluxos de sentido dentro de uma configuração
sistemática modelo desviada por um antissistema.
Caracterizá-lo não será obra fácil, mas iremos delimitando os seus contornos,
significados e funções até especificarmos finalmente sua forma de articulação crítica
contra o sistema que reaproveita. Situando depois, dentro desse quadro, as proposições
como desvios particulares, cremos conseguir exibir a máquina dialética em movimento
destrutivo-criador sem trair sua natureza totalizante e polêmica.
Iremos tentar aqui a construção de uma base qualquer para delinear os contornos
mais universais da máquina de guerra debordiana. O quadro psicogeográfico dentro do
qual as proposições desviantes, que são as unidades atômicas do sentido, poderão exibir
174
a plena concretude de sua função dialética. Pretendemos com isso mostrar a grande
astúcia da dialética em sua macro e micro configurações: superar a clivagem parte todo
na própria composição totalizante da parte na qual, pelo estilo, o desvio materializa, no
mecanismo da proposição vetorializada, a luta sintático-semântica que empreende
contra o espetáculo em sua totalidade. Neste sentido, O referencial sistêmico é como um
mapa dentro do qual os conceitos articulados em proposições desviadas realizam sua
deriva psicogeográfica.
A relação dialética formada pela analogia é o que nos importa, pois, por meio
dela, a teoria crítica debordiana realiza-se, conforme já sustentamos repetidas vezes,
como presença poética, não como incisão analítica. Isto em benefício da necessidade de
elaborar a crítica sem se conciliar, em nenhum momento e sob nenhum aspecto, com as
determinações do mercado espetacular. Exige-se da consciência crítica a força criativa
capaz de reutilizar elementos desviados de seu contexto original em seu próprio
benefício. “A interferência mútua de dois mundos sensíveis, ou a união de duas
expressões independentes, supera os elementos originais e produz uma organização
sintética de grande eficácia.” (DEBORD. Guia prático para o desvio. Grifos nossos)
O leitor há de perceber que o conceito que Debord utiliza reforça tudo o que
tentamos demonstrar até aqui. Ao falar de “organização sintética” ele refere-se
diretamente ao método não espetacular que utiliza na concreção dialética de sua teoria
175
Está implícito que não há limite para corrigir uma obra ou para integrar diversos
fragmentos de trabalhos obsoletos em um novo; pode-se alterar o significado desses
fragmentos de qualquer forma apropriada, deixando aos imbecis a sua escravidão às
referências e às “citações”. (DEBORD. Guia prático para o desvio. Grifos nossos)
Debord insere-se nessa vaga parodística da qual aproveita o método como recuso
para a utilização do desvio. Tal utilização pode ser feita desde uma unidade
microestética como a sentença, a proposição, o epigrama, até a construção mais vasta,
como uma obra ou um sistema inteiro. A compreensão da referência desviada torna-se
então condição insuperável para a compreensão de sua reversão e do significado que o
desvio cria a partir da auto reflexividade. É o que tentaremos compreender a partir
daqui. O sentido do desvio macro estilístico que denominamos “desvio do sistema”. O
próprio Debord mostra-se consciente da técnica ao referir-se a Lautréamont. Escreve
ele:
Lautréamont avançou tanto nessa direção que ele é ainda parcialmente mal
entendido mesmo pelos seus mais ostentosos admiradores. A despeito de ser óbvio
que ele aplicou esse método à linguagem teórica em Poésies - onde Lautréamont
(baseando-se particularmente nas máximas de Pascal e Vauvenargues) esforça-se
para reduzir o argumento, através de sucessivas concentrações, a simples máximas -
um certo Viroux causou bastante sensação três ou quatro anos atrás ao demonstrar
conclusivamente que Maldoror é um vasto desvio de Buffon e de outras obras de
história natural, além de outras coisas. (DEBORD. Guia prático para o desvio.
Grifos nossos)
efeito irônico-sério, cria uma confrontação estilística, uma inversão irônica que, longe
de desmerecer original, ressalta nele, e através dele apenas a diferença.
(BERNARDINA, P 2)
The Naked City talvez seja a melhor ilustração do pensamento urbano situacionista,
a melhor representação gráfica da psicogeografia e da deriva, e também um ícone da
própria idéia de Urbanismo Unitário. Ele é composto por vários recortes do mapa de
179
Paris em preto e branco, que são as unidades de ambiência, e setas vermelhas que
indicam as ligações possíveis entre essas diferentes unidades. As unidades estão
colocadas no mapa de forma aparentemente aleatória, pois não correspondem à sua
localização no mapa da cidade real, mas demonstram uma organização afetiva
desses espaços ditada pela experiência da deriva.
The Naked City tem nítida influência de alguns mapas do livro do sociólogo urbano
Paul-Henry Chombart de Lauwe Paris et l’agglomération parisienne, de 1952, que
também foi citado nas páginas da IS, principalmente na Théorie de la dérive. Um
diagrama desse livro de Lauwe também figura na IS, ilustrando o comentário sobre a
deriva de Rumney em Veneza: um interessante mapa de Paris com o traçado de
todos os trajetos realizados em um ano por uma estudante, que se concentram no
bairro em que ela morava, nos percursos básicos entre a sua casa, a universidade e o
local de suas aulas de piano. (The Naked City, illustration de l’hypothèse des
palques tournantes. Texto extraído de “Diário de Cena”,
http://cidademcena.wordpress.com/category/pesquisas-arquitextos/guy-debord/.
Acesso em 21/01/2014.
45
Aliás, o relógio é o instrumento que realiza de fato a aliança entre a espacialização do tempo, o tempo-
mercadoria e o poder administrativo. Em um ensaio sobre a ditadura do relógio, George Woodcock
escreve que
(...) a influência do relógio imporia certa regularidade à vida da maior parte dos homens, regularidade que
antes só era observada nos monastérios. Na verdade, os homens se transformariam em relógios, a repetir
182
sempre as mesmas ações com uma regularidade que em nada se pareceria aos ritmos naturais da vida.
(WOODCOCK,1981. P. 122.)
183
triunfo do tempo irreversível é também sua metamorfose em tempo das coisas, porque a
arma de sua vitória foi precisamente a produção em série de objetos, segundo as leis da
mercadoria”. (DEBORD, SE § 142. Grifos do autor). Com o desenvolvimento do
capitalismo o tempo irreversível unificou-se mundialmente. Então, “O tempo da
produção econômica, recortado em fragmentos abstratos iguais, se manifesta por todo o
planeta como o mesmo dia. O tempo irreversível unificado é o do mercado mundial e,
corolariamente, do espetáculo mundial”. (DEBORD, SE, § 145. Grifos do autor)
Em termos mais amplos, pode-se dizer que o tempo como espetáculo mundial
contamina o modo pelo qual as pessoas percebem suas relações e obrigações sociais.
Estas passam a ser mediadas pela limitação dos recortes abstratos dos momentos
separados diante dos quais o trabalhador deve regular sua vida. A totalidade da
experiência subordina-se a vivência abstrata do tempo que configura a maneira pela
qual o homem organiza e compreende sua própria existência.
que governa. O sistema da história se torna instrumento nas mãos dos interesses de
dominação e controle. É bom que se tenha em mente esse vínculo entre administração
do tempo, história e poder para que se compreenda porque o tempo histórico do sistema
hegeliano, o tempo enteléquico das finalidades humanas está, de fato, sujeito a um
sentido escatológico que só existe como abstração, como projeto utópico. Tal projeto
torna-se ideologia na medida em que traz à imanência da história humana a promessa de
um além cuja finalidade era justamente promover o ópio que apaziguaria os ânimos dos
escravos, promovendo os interesses dos senhores. A realização da razão na história
substitui, em certa medida, o reino supraceleste da promessa de redenção daqueles que
sofrem a miséria universal.
O tempo que avança sempre em frente seria, portanto, no limite, um tempo que
retrocede, uma vivência regressiva que quer para trás pensando caminhar para frente; o
domínio de um destituição que se acredita construção e realização. No centro da
experiência do tempo linear está a repetição dos gestos que perpetuam a ingerência do
poder sobre a totalidade da vivência social. A culminância da administração da vida
seria uma vida administrada conforme sua própria lei interna. A explicitação, sob a
forma da reação, de uma lógica inerente ao tempo abstrato.
5.3 Um antissistema?
lhes ordena a estrutura; podemos afirmar, ao contrário, que de suas relações emerge a
regra imanente que confere concretude e densidade ontológica ao próprio movimento
diferencial pelo qual as proposições se articulam no antissistema. Uma articulação pela
qual a linguagem alcança uma fluidez que a aproxima dos processos efetivos que
especula, evitando trair o movimento complexo das determinações reais e, ao mesmo
tempo, reproduzir da rigidez redutivista dos sistemas abstratos.
A arte fornece à dialética uma forma de proceder que a permite criar entre a
expressão e seu referencial teórico um desvio pelo qual a dinâmica do jogo estabelece
um diálogo aberto entre os polos em tensão que mantém em movimento a linguagem.
No âmbito da proposição desviada a tensão é criada pela reversão do sentido através da
189
Portanto, poderemos sustentar que se está aqui diante de uma máscara de sistema,
de uma ironia suprema em relação à ideia espetacular de sistema realizada como desvio
do sistema.
46
Reproduzimos abaixo o original alemão:
192
Da natureza passo à obra humana. Com a ideia da humanidade diante de mim quero
mostrar que não existe uma ideia do Estado, posto que o Estado é algo mecânico;
assim como não existe tampouco a ideia de uma máquina. Somente o que é objeto
da liberdade se chama ideia. Portanto, temos que ir mais além do Estado! Porque
todo Estado tem que tratar os homens livres como engrenagens mecânicas, e, posto
que não o deve fazer, tem de deixar de existir. Podeis ver por vós mesmos que aqui
todas as ideias da paz perpétua, etc. são apenas ideias subordinadas de uma ideia
superior. Ao mesmo tempo quero assentar aqui a os princípios para a história da
humanidade e desnudar até pele toda a miserável obra humana: Estado, governo,
legislação.
Finalmente, a ideia que unifica todas as outras, a ideia da beleza, tomando a palavra
em um sentido platônico superior estou agora convencido de que o ato supremo da
razão, ao abarcar todas as ideias, é uma ato estético, e que a verdade e a bondade
vêm-se irmanadas somente na beleza. (HEGEL. Primeiro programa de um Sistema
do Idealismo alemão. 1796/97)
Von der Natur komme ich aufs Menschenwerk. Die Idee der Menschheit voran, will ich zeigen, daß es
keine Idee vom Staat gibt, weil der Staat etwas Mechanisches ist, so wenig als es eine Idee von einer
Maschine gibt. Nur was Gegenstand der Freiheit ist, heißt Idee. Wir müssen also auch über den Staat
hinaus! – Denn jeder Staat muß freie Menschen als [235] mechanisches Räderwerk behandeln; und das
soll er nicht; also soll er aufhören. Ihr seht von selbst, daß hier alle die Ideen, vom ewigen Frieden u.s.w.
nur untergeordnete Ideen einer höheren Idee sind: Zugleich will ich hier die Prinzipien für eine
Geschichte der Menschheit niederlegen und das ganze elende Menschenwerk von Staat, Verfassung,
Regierung, Gesetzgebung bis auf die Haut entblößen. Endlich kommen die Ideen von einer moralischen
Welt, Gottheit, Unsterblichkeit, – Umsturz alles Afterglaubens, Verfolgung des Priestertums, das
neuerdings Vernunft heuchelt, durch die Vernunft selbst. – Absolute Freiheit aller Geister, die die
intellektuelle Welt in sich tragen und weder Gott noch Unsterblichkeit außer sich suchen dürfen.
Zuletzt die Idee, die alle vereinigt, die Idee der Schönheit, das Wort in höherem platonischen Sinne
genommen. Ich bin nun überzeugt, daß der höchste Akt der Vernunft, der, indem sie alle Ideen umfaßt,
ein ästhetischer Akt ist und daß Wahrheit und Güte nur in der Schönheit verschwistert sind. (HEGEL.
Das älteste Systemprogramm des deutschen Idealismus. 1796/97)
193
(...) não só que a mente ou as mentes existem, mas, em primeiro lugar, que os
pensamentos que constituem o núcleo da mente humana estão também
implicitamente incrustados nas coisas, e, em segundo lugar, que a natureza é
progressivamente superada ou “idealizada” pelas atividades espirituais dos seres
humanos. Com isso alcançamos a liberdade, uma vez que a liberdade consiste na
autodeterminação, em não ser determinado por um “outro”, e vemos a natureza
agora como não mais tão nitidamente diferente de nós mesmos. (...) Assim, o
crescimento de nossa autoconsciência acompanha o de nossa liberdade. (INWOOD,
Idem)
O sistema filosófico com sua falsa promessa de liberdade, elevada por Hegel ao
estatuto de esperança histórica, com a diferença que esta esperança foi apresentada não
como promessa, mas necessidade da razão, venceu todas as batalhas materiais e se
impôs através do controle ideológico. O círculo globalizado fechou-se sobre si mesmo
através da instrumentalização, pelo pseudo-sistema, de sua própria ideia de perfeição
natural.
Desde sua produção sob o econômico até sua reprodução ideológica pela
totalidade da cultura, o sistema espetacular não abriu nenhum espaço fora do seu
circuito à realização do bem, à conquista da liberdade ou à promoção da unidade em
comércio com a verdade. Ao contrário, trabalhou sempre em função da promoção de
seus próprios fins, que jamais foram os da razão, nem nunca coincidiram com os
anseios humanos. A razão instrumental foi apenas uma desrazão a serviço dos
propósitos de uma vontade de poder que se apropriou dela para realizar suas próprias
necessidades. Marcuse já havia percebido o vínculo entre a instrumentalização da razão
195
47
Referimo-nos aqui ao belo livro de Ernst Bloch.
196
Por isso acreditamos que Debord não poderia construir um projeto de sistema
externo ao próprio sistema. O projeto estava dado, era preciso apenas desviá-lo. Invadi-
lo e mudar a sua direção e, assim, restaurar a sua possibilidade pela revolução de sua
forma e de seu sentido. Assim partindo de um esquema já fixado na mentalidade
espetacular, desconstruí-lo a partir de seu próprio desvio, pelo qual se mostra na própria
forma derivada do texto a falência do sistema e, junto com ela, da falsa consciência que
o abriga.
É correto afirmar que se tem pelo “desvio do sistema”, pela criação de um espaço
psicogeográfico intertextual no interior do qual as proposições desviantes constroem
suas relações dinâmicas, um texto fundado não na estrutura, mas, apoiado sobre uma
dada estrutura que descontrói em seu movimento de deriva. A estrutura presta um
serviço à razão dialética e alimenta o discurso desviante com sua forma definitória que
se transforma no seu contrário ao ser ironicamente desviada de seu destino. Se o destino
da forma sistemática era louvar a Razão considerada como força histórica capaz de
construir o reino da justiça em conformidade com as exigências internas de sua própria
constituição universal e pura, o desvio revela o descaminho da razão pela explicitação
crítica de seu sentido ilusório e de sua esperança vã; sua função ideológica
materializada, enfim.
A forma da racionalidade sistemática serve à forma poética como meio pelo qual
o diálogo crítico se efetua no interior da própria estrutura, desestabilizando-a em sua
pretensão de verdade e efetuando a crítica do sistema pela inversão de sua realização
ideológica mais arrojada e pretensiosa. Voltamos a afirmar, não uma crítica analítica ou
descritiva, que apenas reproduziria a lógica do espetáculo, mas uma crítica sintética
realizada como presença poética pela produção da imagem especular do sistema, na
qual o sistema encontra sua verdade e se encaminha para o seu fim.
12/12. Limites deste livro (de todos os livros?). (DEBORD. A Raoul Vaneigem,
oito de março de 1965).
Depois a ordem mudou, bem como o número de capítulos, que foram reduzidos
para nove, cujos títulos alterados e rearranjados assumem a forma definitiva em 1967,
quando finalmente as 221 proposições ficaram dispostas da seguinte maneira:
I – A separação consumada.
V – Tempo e história.
VI – O tempo espetacular.
IX – A ideologia materializada.
Por que Debord reduziu os capítulos dispondo-os em tríades cuja soma compõe
exatamente nove subdivisões temáticas? É o que tentaremos resolver ao final desse
capítulo. Por ora nos resta concluir em hipótese que o desmonte da falsa consciência
pela linguagem desviada deve revelar enfim, na forma problemática de articulação do
texto, o próprio progresso da realidade material que especula através do espelho do
sistema. O que Debord efetivamente faz na Sociedade do Espetáculo.
199
Pelo fato de manter em movimento crítico a ideia que lhe serve de sustentação, da
qual se apropria e contra a qual se erige, o sistema em deriva dinamiza as regras que
congelariam o referencial impondo à consciência um modo pseudo-consensual de
significação definida pelo poder. Com isso, servindo-se do procedimento poético erige a
presença material do significante como meio pelo qual o significado exibe-se em sua
concretude desviante, mantendo-se em dialogo aberto contra o pano de fundo de um
tecido sintático descosturado perpetuamente pela deriva crítica. Põe-se assim contra a
sua própria reificação. Restaura a dinâmica do movimento e, com ela, o tempo da
experiência. Contra o tempo abstrato do sistema o tempo concreto do desvio que, pela
negação, retorna a si mesmo e se reconstrói no próprio interior das categorias que lhe
48
Por isso o desvio do sistema serve-se de duas referencias legais universais: Hegel e Marx. O
antissistema de Debord ergue-se sobre o solo do sistema marxiano que, por sua vez, repousa sobre o solo
do sistema hegeliano. Em três níveis especulativos temos: o subsolo hegeliano, o solo marxiano e o
antissistema debordiano. É em confronto com as pretensões enciclopédicas do sistema do idealismo
alemão, com a abordagem totalizante tentada nos cursos de Filosofia da História e História da Filosofia
de Hegel e, principalmente, com a diagnose crítica da obra inacabada de Marx, O capital, que deve ser
projetada a empresa antissistemática debordiana.
201
Esse estilo que contém sua própria crítica deve expressar a dominação da crítica
presente sobre todo o seu passado. Por ele, o modo de exposição da teoria da
dialética comprova o espírito negativo que existe nela. (...) Essa consciência teórica
do movimento, na qual o próprio vestígio do movimento deve estar presente,
manifesta-se pela inversão das relações estabelecidas entre os conceitos e pelo
desvio de todas as aquisições da crítica anterior. (DEBORD. SE. § 206. Grifos
nossos)
Domínio sobre a totalidade da cultura passada, que deve ser posta em movimento
de atualização pelo qual seus elementos e o conjunto de suas conquistas significativas
são invertidos, resultando no desvio de todas as aquisições da crítica anterior.
dessa maneira, exibe em sua constituição sintática, no movimento dos signos em novas
relações, a alteração semântica que lhe desvia o significado. Dessa maneira produz-se
um diálogo crítico no interior da própria forma revitalizada. Um movimento de deriva
do enunciado ou da estrutura pelo qual os mesmos entram em novas relações, criam
novos movimentos, assumem novos sentidos. Debord faz uso amplo de um proceder
estético que já era comum em alguns filósofos, principalmente Marx. Em A Miséria da
Filosofia Marx não apenas zomba da Filosofia da Miséria de Proudhon, demole na
própria ironia do título a totalidade da pretensão sistemática do anarquista francês. Ao
inverter a fórmula subverte o sentido. Um exemplo singelo do estilo a serviço da crítica
da totalidade. O que Debord denomina estilo insurrecional. A dialética em movimento
através do desvio que ele elevou à máxima potência na Sociedade do Espetáculo.
Escreve Debord
“O desvio não fundamentou sua causa sobre algo exterior à sua própria verdade
como crítica presente.” (DEBORD, SE, § 208) Repetimos uma afirmação lapidar para
ressaltar sua importância. O desvio subverte uma dada organização ou mesmo a
totalidade da ordem em seu movimento. Assim efetua-se como crítica total, interior ao
sistema, desconstrutiva e presente. A ação do desvio sistêmico arrasta toda a ordem
existente. Violando as regras do jogo consensual e abstratamente universal presidido
pelo poder corrige aquilo que a imediatez apressada das perspectivas conciliadoras
perdem em suam formulações acríticas. Nesse ponto ele é total, abrangente e
irrestritamente negativo. Opera como uma inversão sistemática para restabelecer a
ordem das ideias que o sistema inverteu. A teoria também é uma forma de prática
invadida pelas influências do poder que controla seus sentidos, a forma de suas
proposições e a validade e legalidade de suas significações. O teórico não é, portanto,
autônomo e a linguagem, que é seu veículo, encontra-se submetida, ela mesma, à ordem
205
“A negação real da cultura, é a única coisa que lhe conserva o sentido. Já não pode ser
cultural. Desse modo, ele é o que se sobra, de certa forma, no nível da cultura, embora
numa acepção bem diferente.” (DEBORD, SE, § 210)
A superação das clivagens teoria-prática da qual a critica era refém e pela qual se
tornou espetacular em seu estilo e formulação, tornando-se escrava inconsciente do
espetáculo, é superado por meio de um estilo que, ao mesmo tempo em que revitaliza a
linguagem da dialética permite a superação de uma separação que se reproduzia
contaminando todas as esferas da cultura. O espelhamento do sistema, sua inversão total
insere-se no âmbito da dialética concreta, uma vez que reconcilia no movimento crítico
as esferas alienadas que o espetacular sustenta e nas quais se reproduz. Concreto por ser
uma pratica social unificada, que não se separa da totalidade social sobre a qual incide e
à qual, ao mesmo tempo pertence. A psicogeografia dirige as formas do conhecer
determinando as concepções e as maneiras de ser pelas quais, na organização do tempo-
espaço das cidades, a consciência torna-se refém de uma força de controle que a
subjuga. No interior dessa mesma força onipresente é necessário à crítica inventar
maneiras de invadir o espaço inimigo, utilizar seus elementos e inverter a força
206
ideológica de suas formas de controle total. Uma prática teórica inserida no presente, no
âmbito das lutas e dos movimentos que animam o social. De certa forma, o desvio, pela
astúcia da dialética, realiza uma crítica contracultural, que reconhece nos limites das
estruturas atuais as possibilidades da construção das estratégias de sua própria
superação. Assim, o movimento total da cultura é espelhado pelo estilo e, ao mesmo
tempo, desconstruído pelo desvio, que dialoga criticamente com a grande figura
ideológica do sistema, em cuja imagem a totalidade da experiência histórica que foi
falsificada pela ilusão idealista, pode ser restaurada pela astúcia dialética do desvio. A
linguagem torna-se prática social unificada, a linguagem fluida da antiideologia.
epígrafes que funcionam como diretrizes críticas segundo as quais as teses serão
desenvolvidas. Cada capítulo, composto por um número particular de teses inter-
relacionadas, possui uma dinâmica interna própria, que emerge dos desvios
proposicionais, nos quais as alusões, as elusões, as substituições, as inversões subvertem
o sentido original das teses reaproveitadas, provocando uma fluidez micrológica interna
à forma-conteúdo das sentenças desviadas. Tais sentenças inseridas em 221 parágrafos
estabelecem relações dialógicas entre si e o conjunto articulado da obra. Relações que
determinam a fluidez do antissistema, composto de fluxos proposicionais em deriva
psicogeográfica no interior de um domínio intertextual vazado pela tensão criada entre
seus componentes desviados em contraste crítico com o modelo que reverte pelo
desvio.
49
Confere: KAUFMANN, W. Nietzsche: philosopher, psychologist, antichrist. 4. Ed. New Jersey:
Princeton University Press, 1974, Pp. 408-409.
209
Exibir essa máquina em seu conjunto não constitui tarefa fácil, mas sem isso
acreditamos que faltaria mostrar a principal forma de desvio que dá suporte e
sustentação às teses e proposições que a constituem como elementos divergentes e
dinâmicos de uma obra única e acabada.
50
Confere: JANZ, C. P. Friedrich Nietzsche: Los diez años del flósofo errante. Versión española de
Jacobo Muñoz e Isidoro Reguera. Madrid: Alianza Editorial, 1985, pp. 175-178.
51
Confere NIETZSCHE. Wie die “wahre Welt” endlich zur Fabel wurde. In: Götzen-Dämmerung.
Kritische Studienausgabe Herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzino Montinari. Berlin: Walter de
Gruyter, 1999, pp. 80-81.
210
A crítica deve ser enciclopédica e como se dirige contra o sistema invertido, pode
ser melhor realizada mediante o desvio. No estilo adotado pela crítica tem-se, portanto,
um primeiro diferencial de Debord em relação à suas influências canônicas. Ninguém
antes dele levou o estilo tão a sério em filosofia, nem trabalhou com tamanha
inventividade na revitalização da dialética como crítica total da engrenagem burguesa,
de subversão pela atividade poética, vale dizer, criativa e construtiva, daquilo que estava
materialmente invertido.
A natureza e a forma dessa síntese é o que nos falta avaliar agora para
completarmos o quadro do desvio como astúcia da dialética e finalizarmos nosso
esforço interpretativo. Hegel será o modelo ao qual nos reportaremos. A superposição
que mostraremos será feita a partir da comparação dialética entre a Ciência da lógica, a
Filosofia da história e a dinâmica de composição da Sociedade do Espetáculo, seu
estilo estratégico, polêmico e crítico. Esperamos conseguir um avanço na compreensão
desse texto exigente com nossa avaliação sintética. O leitor perdoe nosso arrojo e nossas
possíveis falhas. Não obstante, acreditamos que o que aqui iniciamos pode muito bem
render belos frutos para a futura abordagem do pensamento e do estilo de Debord. Se
non è vero, è ben trovato.
Devemos tomar por base dois movimentos em Hegel que Debord desvia: o
primeiro a estrutura da Ciência da lógica, o segundo o telos da Filosofia da história.
Vejamos primeiro a Ciência da lógica para projetar sobre ela o desvio do sistema,
depois veremos a libertação do tempo do discurso em relação à teleologia hegeliana em
sua Filosofia da História.
Vejamos o modelo. Aproveitando uma síntese dos passos percorridos pela lógica
hegeliana, elaborada por Michael Winwood, tentamos explicitar as figuras fundamentais
da lógica a fim de que o leitor melhor visualize nossa argumentação posterior e se situe
com mais clareza em nossa exposição. Conforme resume Winwood:
qualidade, do fato de ser um campo, mas na terceira fase dessa seção, "medida",
qualidade e quantidade são interdependentes: se, por exemplo, um campo aumenta
suficientemente de tamanho, ele se torna uma planície ou uma pradaria, deixando de
ser um campo, e a medição de quantidades "intensivas", como a temperatura,
pressupõe mudanças qualitativas abruptas (como a da água em gelo) em certo pontos
nodais numa escala contínua.
Quantidade
SER Qualidade
Medida
Reflexão
ESSÊNCIA Aparência
217
Atualidade
Subjetividade
CONCEITO Objetividade
Ideia52
52
Confere: HEGEL, Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse. In.:
http://www.hegel.de/werke_frei/startfree.html. Acesso em 22,10, 2011. Há uma excelente edição
completa em português que se pode consultar: HEGEL, A Ciência da Lógica, Tradução de Paulo
Menezes. São Paulo: Loyola, 1995.
218
resumo enciclopédico das clivagens que dividiam a sociedade burguesa. Neste sentido
Debord observou que, “Le spectacle est l'héritier de toute la faiblesse du projet
philosophique occidental qui fut une compréhension de l'activité, dominée par les
catégories du voir.53” Portanto, em uma inversão magistral, a consciência dominada
pelas clivagens espetaculares, pelas separações que impedem a teoria de convergir com
a práxis e a realizar, “Il ne réalise pas la philosophie, il philosophise la réalité.”54
53
Alusão a Johan Huizinga, Le déclin du Moyen Age : “Un des traits fondamentaux du Moyen Age
déclinant est la prédominance du sens de la vue, prédominance qui semble être en rapport étroit avec
l'atrophie de la pensée. On pense et on s'exprime par images visuelles.”
54
Détournement de Marx, Crítica da Filosofia do Direito de Hegel : “Não se pode superar a filosofia sem
a realizar.”
219
ternário articula três subdivisões que se completam, traçando um mapa não-formal, não
linear e crítico da sociedade espetacular que é seu objeto. Comparando com as divisões
triádicas da Ciência da lógica hegeliana, teríamos um quadro paródico e dialógico a
partir do qual podemos visualizar o grande desvio estabelecendo seu diálogo com Hegel
através da síntese bitextual.
I – A separação consumada
O tempo espetacular
A ideologia materializada
Hegel fez, pela última vez, o trabalho do filósofo, a glorificação do que existe; mas,
para ele, o que existia só podia ser a totalidade do movimento histórico. A posição
exterior do pensamento, na verdade mantida, só podia ser disfarçada por sua
identificação com um projeto prévio do Espírito, herói absoluto que fez o que quis e
quis o que fez, e cuja realização coincide com o presente.
SER
A mercadoria como espetáculo QUANTIDADE
e como representação
ESSÊNCIA
CONCEITO
A negação e o consumo na cultura OBJETIVIDADE
Reparem que o Ser da sociedade capitalista é o espetáculo, que é, por seu turno, o
contrário do Ser uma vez que nele o ser se dissolveu na imagem, tornando-se uma falsa
determinação ontológica; aquilo que se contempla, do qual o observador se encontra
separado e parece possuir consistência ontológica, mas não a possui e engana a visão.
Les images qui se sont détachées de chaque aspect de la vie fusionnent dans un
cours commun, où l’unité de cette vie ne peut plus être rétablie. La réalité considérée
partiellement se déploie dans sa propre unité générale en tant que pseudo-monde à
part, objet de la seule contemplation. La spécialisation des images du monde se
retrouve, accomplie, dans le monde de l’image autonomisé, où le mensonger s’est
menti à lui-même. Le spectacle en général, comme inversion concrète de la vie, est
le mouvement autonome du non-vivant. (DEBORD, SE, § 02)
Um Ser que se tornou relação no âmbito da divisão e da unidade ilusória que mantém a
aparência da organização total da experiência social sob a magia da imagem. O Ser é
dissolvido na separação consumada sem deixar de parecer ser. “Le spectacle n’est pas
223
un ensemble d’images, mais un rapport social entre des personnes, médiatisé par des
images.” (DEBORD, SE, § 04)
55
Détournements de Hegel
224
Por outro lado, tal movimento não pode se tornar visível em sua separação, o que
acenderia a consciência crítica do espectador comprometendo a ilusão de movimento
autônomo que sustenta a lógica do sistema em sua aparência imediata; portanto, deve-se
constituir como medida ilusória da unidade que, de fato, não existe: temos assim A
unidade e divisão na aparência. Nela a divisão real aparece como unidade ideal que se
mantêm separada exatamente na medida em que se mostra unitária. Assim a medida é
alcançada através de um movimento de aparente auto-superação ternária que, em
verdade, realiza-se como primeiro momento de um sistema cuja única lei é a
225
Le spectacle, comme la société moderne, est à la fois uni et divisé. Comme elle, il
édifie son unité sur le déchirement. Mais la contradiction, quand elle émerge dans le
spectacle, est à son tour contredite par un renversement de son sens ; de sorte que la
division montrée est unitaire, alors que l’unité montrée est divisée. (DEBORD. SE. §
54)
“L’histoire survient donc devant les hommes comme un facteur étranger, comme ce
qu’ils n’ont pas voulu et ce contre quoi ils se croyaient abrités.” (DEBORD, SE, 128) O
sistema da história projeta-se sobre a experiência humana como uma grande abstração
que arrasta o destino dos homens, através das ondas sucessivas das transformações
sobre as quais as potências produtivas subjazem ao poder de controle do tempo
espetacular. Sendo assim, em cada uma das sociedades dominadas pelo tempo da
produção, “uma estruturação definitiva excluiu a mudança. O conformismo absoluto
tornou-se a prática social existente.” (DEBORD, SE, § 130) “Os possuidores da história
colocaram no tempo um sentido: uma direção que é também um significado.”
(DEBORD, SE, § 130. Grifos do autor)
La lutte constante qui a dû être menée contre tous les aspects de cette possibilité de
rencontre trouve dans l’urbanisme son champ privilégié. L’effort de tous les
pouvoirs établis, depuis les expériences de la Révolution française, pour accroître les
moyens de maintenir l’ordre dans la rue, culmine finalement dans la suppression de
la rue. (DEBORD. SE. § 172)
Afigura-se então a cultura como a esfera da separação vivida coma falsa unidade,
como unidade ideológica de uma separação real. Segundo Debord, “A cultura é a esfera
geral do conhecimento e das representações do vivido, na sociedade histórica dividida
em classes; o que equivale a dizer que ela é o pode da generalização que existe à parte,
como divisão do trabalho intelectual e trabalho intelectual da divisão”. (DEBORD. SE.
§ 180) Na cultura, portanto, a separação continua seu reino e se reafirma como conceito;
no entanto não imediatamente como força modeladora dos limites ideais dentro dos
quais se organizam as esferas das representações em relações hierárquicas, mas,
também e fundamentalmente, como separação universal do objeto projetado para além
do plano material da ação humana histórico-social, pela qual é produzido.
Acima e além dos sujeitos efetivamente reais, destaca-se o domínio global de uma
objetividade universal, imaterial e autônoma das representações ideais. “A cultura se
desligou da unidade típica da sociedade do mito” (...) e, ao ganhar independência ela
“começa um movimento imperialista de enriquecimento, que é, ao mesmo tempo o
declínio de sua independência”. (DEBORD, SE, § 180) Como objetividade abstrata,
separada das determinações reais, a cultura exibe suas contradições e se nega. Sua
própria constituição contraditória limita sua persistência como reino do separado e
determina o seu fim.
A cultura pretende aquilo que sua própria constituição nega. Ela é o trabalho
humano materializado que, no entanto, assume o lugar ontológico de uma objetividade
autônoma e separada do trabalho humano. Ela é a configuração sensível da
subjetividade que perdeu por completo a natureza subjetiva que lhe determinou.
Portanto, o fracasso da busca de uma unidade no plano de uma objetividade cindida que
não lhe pode realizar. “A cultura é o lugar da busca da unidade perdida. Nessa busca da
unidade, a cultura como esfera separada é obrigada a negar a si própria.”(DEBORD, SE,
§ 180) Aponta-se para o fim da cultura. Incipit spectaculum.
A ideia, portanto, que se materializa em uma sociedade acrítica que não exibe
imediatamente as contradições que destroem sua unidade, não obstante sua aparente
coerência, não é uma noção limite que se realiza através de seus próprios
229
desdobramentos históricos, mas sim uma ideia que se deve manter através da negação
daquilo que ela afigura falsamente como ideal. Uma ideia sem efetividade ontológica
que, no entanto, efetiva-se exatamente mediante sua natureza irreal dotada de uma
eficácia real sobre os movimentos que determina.
A ideia domina pelo recorte que opera no todo social afigurando-o de acordo com
sua própria imagem. O espaço autodilacerado da cultura assume a forma de uma
imagem global, “em uma vontade abstrata do universal e sua ilusão”. “Encontra-se
legitimada na sociedade moderna pela abstração universal e pela ditadura efetiva da
ilusão, ela já não é a luta voluntariosa do parcelar, mas seu triunfo.” (DEBORD, §
213. Grifos nossos)
O espetáculo vence o jogo. Não há, como esperava Hegel, a superação das
clivagens pelo domínio do universal concreto da ideia plenamente realizada, quando
sujeito e objeto se reconheceriam como facetas de uma mesma força histórica,. A lógica
falha em sua diagnose dialética e se mostra como esperança vã, como vontade abstrata
de uma concretude que se auto-dilacerou, assumindo a forma parcelar de um universal
separado da vida que, no entanto, domina os movimentos vitais e impõe sua regra como
um modelo ilusório da verdade invertida.
missão histórica de instaurar a verdade no mundo” tarefa que cabe, ainda s sempre, à
classe que é capaz de ser a dissolução de todas as classes ao resumir todo o poder na
forma desalienante da democracia realizada, o Conselho, no qual a teoria prática
controla a sim mesma e vê sua ação. Somente ali os indivíduos estão “diretamente
ligados à história universal”; somente ali o diálogo se armou para tornar vitoriosas
suas próprias condições. (DEBORD, SE, § 221)
SEPARAÇÃO/UNIDADE
APARENTE
(PRODUÇÃO-ECONOMIA)
PROLETARIADO: SUJEITO E
IDEOLOGIA E REPRESENTAÇÃO
PLANEJAMENTO (CONTROLE-
(REPRODUÇÃO-CULTURA) POLÍTICO)TEMPO E
HISTÓRIA
POSSIBILIDADE DE EMANCIPAÇÃO:
aparentes através das quais se torna visível, não se constitui das imagens nas quais se
perde, mas esconde-se por trás da fachada que é sua expressão imediata e negação.
Assim o proletariado, cuja essência é a atividade que lhe torna o verdadeiro sujeito,
reduz às formas da representação que lhe desvia de sua verdadeira missão histórica. Há
aqui muito da influência de Lukács e de sua História e Consciência de Classe. O que
nos importa, no entanto é que na forma abertada obra, em seu dinâmico acabamento, a
possibilidade é figurada: ela realiza o conteúdo crítico, no movimento mesmo de sua
constituição estilística.
Assim, na última proposição a voz do autor, que vinha tecendo diálogos através
do desvio e da condução segura de sua inventividade crítica, assume a proposição e
declara:
C'est dans cette lutte que chaque marchandise, en suivant sa passion, réalise en fait
dans l'inconscience quelque chose de plus élevé. (...)
Tudo o que acontece no céu e na terra; o que acontece eternamente, a vida de Deus e
tudo aquilo que se faz no tempo, tende somente em direção a um fim: que o Espírito
conheça-se a si mesmo, que se faça objeto para si mesmo, que se encontre, devenha
para si mesmo, conflua consigo mesmo. (HEGE,. A razão na Historia)
Apesar das várias vicissitudes históricas pelas quais a ideia da razão passava até
encontrar-se consigo mesma no final dos tempos, seu caminhar era sempre um avanço
e, mesmo seus retrocessos aparentes uma conquista. A razão se fazia através de suas
aparentes perdas, dos conflitos, injustiças e da violência. Cada evento sendo necessário
no caminho evolutivo da liberdade. Cumpre-se em Hegel a diretriz socrática, cuja
importância na determinação dos motivos presentes na obra do filósofo alemão nunca
foram suficientemente avaliadas. A máxima de Sócrates “conhece-te a ti mesmo”
(Gnothi seauton) resume o telos de toda a filosofia hegeliana e lhe dirige o trajeto como
processo histórico de conquista da liberdade através do autoconhecimento, com a
diferença que o Eu autoconsciente de Hegel não é o eu individual, mas o eu humano que
progride historicamente até a conquista de sua essência universal, realizando-se na
ideia. O fim da lógica coincide com o fim da história: ambas apontam para a superação
das diferenças vividas como contradições insuperáveis até a síntese final pela qual todas
as oposições são apaziguadas na concretude do absoluto.
Os conflitos em Hegel, por outro lado, ocorrem como antagonismos no âmbito das
lutas sociais, como confrontos de interesses opostos que devem ser conciliados para que
o trabalho da razão em sua tarefa histórica de construção da liberdade alcance o seu fim.
A universalidade da razão em sua história é levada ao extremo por Hegel. A ponto de as
conquistas e perdas individuais serem ofuscadas em nome da realização da Idéia
universal do espírito do mundo em seu trajeto teleológico.
235
(...) na História universal, o mais nobre e o mais belo é sacrificado no seu altar. A
razão não pode quedar-se no fato de indivíduos singulares terem sido lesados, os fins
particulares perdem-se no universal. A razão vê no nascer e no perecer a obra que
brotou do trabalho universal do gênero humano, uma obra que existe efetivamente
no mundo a que pertencemos. (HEGE. A razão na Historia)
históricas, desde sua aurora até o ocaso, quando, como o sol de Apolo em seu trajeto
ilumina as conquistas de Minerva.
O tempo da história era o tempo abstrato dos eventos encadeados de acordo com o
fim, um fim que se conhecia apenas no interior de sua própria pseudo-realização após os
movimentos históricos culturais do iluminismo e das revoluções burguesas. No entanto,
sabemos que as conquistas que este tempo escatológico (refém do tempo abstrato da
produção e da determinação do valor do trabalho e das mercadorias) prometia não se
realizaram. A conquista das promessas do tempo pela filosofia naufragou na própria
239
ilusão do tempo prometido. A filosofia não se realizou e não se podia realizar porque
seu objeto havia caminhado por uma trilha que ela mesma não previra ou não enxergara
por estar demasiadamente contaminada pelas promessas do tempo. “O mentiroso mentiu
para si mesmo” porque se deixou arrastar pelo “processo autônomo do não vivo”.
(DEBORD, SE, § 2) neste sentido, “Il ne réalise pas la philosophie, il philosophise la
réalité”. (DEBORD, § 19) Mediante duas alusões a Feuerbach Debord sentencia:
(...) n'a pas dissipé les nuages religieux où les hommes avaient placé leurs propres
pouvoirs détachés d'eux : elle les a seulement reliés à une base terrestre. Ainsi c'est
la vie la plus terrestre qui devient opaque et irrespirable. Elle ne rejette plus dans le
ciel, mais elle héberge chez elle sa récusation absolue, son fallacieux paradis. Le
spectacle est la réalisation technique de l'exil des pouvoirs humains dans un au-delà ;
la scission achevée à l'intérieur de l'homme. (DEBORD, SE, § 20)
Revertida pelo estilo debordiano, a tríade histórica de Hegel naufraga no seu fim e
a filosofia mostra que ainda está à espera da realização. “Assim, a filosofia que termina
no pensamento da história só pode glorificar seu mundo negando-o, pois, para tomar a
palavra, é-lhe necessário supor terminada essa história total à qual ela reduziu tudo e
encerrada a sessão do único tribunal no qual pode ser proferida a sentença da verdade.”
(DEBORD, SE.)
que o reduziu a tempo da produção. Aqui a linha do tempo tripartida se expande numa
rede de conexões dialéticas. Nela a proposição nuclear como momento predominante se
expande em proposições derivadas dialógicas que estabelecem uma rede de sentido na
qual não se aponta para um fim, mas em cujas relações o fim está à espera de sua
efetivação pela ação construtiva do leitor não espetacular. Os capítulos em deriva
constroem um espaço dialético no qual o texto hegeliano é reurbanizado pelo desvio,
deslocado de seu locus semântico pela reformulação de seu sentido, pela desconstrução
de suas unidades estíticas, pela mudança de sua direção. A descontrução linguística
aspira por uma presença que desaparece de forma progressiva de todsas as estruturações
de linguagem e sistemas de significação. (Cf.; HAKIM BEY, TAZ, P 12) Uma presença
elusiva, evanescente da forma desviada, sutil: “o Estranho Atrator ao redor do qual os
memes advêm, caoticamente, formando novas e espontâneas ordens.” (HAKIM BEY,
TAZ, P 12) Eles expandem-se e se interconectam, criam redes de significados, rompem
os fluxos predeterminados pelo tempo espaço da ideologia. Reconfiguram a forma
absoluta da consciência burguesa pelo desvio de sua constituição teórica, pela
desmontagem de seu sistema, pelo dialogismo da forma desviante.
La théorie critique doit se communiquer dans son propre langage. C’est le langage
de la contradiction, qui doit être dialectique dans sa forme comme il l’est dans son
contenu. Il est critique de la totalité et critique historique. Il n’est pas un « degré
zéro de l’écriture » mais son renversement. Il n’est pas une négation du style, mais
le style de la négation. (DEBORD. SE. § 207. Grifos nossos)
O estilo da negação que é crítica da totalidade e crítica histórica, vale dizer, crítica
do sistema que se faz mediante a inversão do sistema da história: sua supressão e
realização através da arte e da metafilosofia. A língua da contradição que deve ser
dialética na forma como no conteúdo. Que não pode conciliar-se com as separações, que
não deve se sujeitar às ilusões, que não se permite estagnar-se sob a forma de uma
“consciência infeliz do tempo”, que encontra na totalidade do sistema e da compreensão
histórica apenas a projeção ideológica de sua própria decepção prática.
242
56
Confere supra: “Autores a espera de um leitor”.
243
No interior desse movimento ninguém é nem nunca será livre. Somos apenas
componentes da mecânica do um jogo cujas regras não presidimos embora
movimentemos as peças todos os dias em nosso trabalho. A separação perpetuada nos
impede de saber e de ser os gestores de nossos próprios fins. Sendo assim constitui um
pseudo-sistema cíclico que se perpetua pela escravidão. A metáfora de Hegel é bela,
mas não coincide com a forma pela qual se desdobrou a história. Esta foi contida no
interior de um processo, aparentemente autônomo, desde que o capital passou a ser o
sujeito e o homem o objeto de uma força impessoal e universal de domínio.
244
SEPARAÇÃO (NASCER)
TEMPO ESPETACULAR
CONTROLE DA
HISTÓRIA (MEIO DIA)
REPRODUÇÃO
IDEOLÓGICA
(CREPÚSCULO)
Por intermédio da invenção estética uma verdadeira ciência e neste sentido, uma
ironia com Hegel que afirmou em sua Fenomenologia do Espírito:
A verdadeira figura em que a verdade existe não pode ser senão o sistema
científico dela. Contribuir para que a filosofia se aproxime da forma da ciência –
quando enfim poderá deixar de chamar-se amor pelo saber para se tornar o saber
real: eis aqui o que me proponho. (HEGEL, Ph. Gs.)57
Mas não um saber real apartado da vida, mas um saber da vida que reflui sobre as
determinações da vida e as ilumina por dentro, como faróis cuja luz delineia o contorno
das ilusões e os desmascara. Ali onde o saber encontra com a vida, a vida acha-se a si
mesma. No entanto, é evidente que por meio de um texto não se pode pretender viver a
vida concreta, mas pode-se encontrar num fragmento de vida, em suas expressões mais
57
“Die wahre Gestalt, in welcher die Wahrheit existiert, kann allein das wissenschaftliche System
derselben sein. Daran mitzuarbeiten, daß die Philosophie der Form der Wissenschaft näher komme--dem
Ziele, ihren Namen der Liebe zum Wissen ablegen zu können und wirkliches Wissen zu sein--, ist es, was
ich mir vorgesetzt." (HEGEL. Phänomenologie des Geistes. Köln: Anaconda Verlag, 2010, P. 12.)
245
Guy Debord
Uma imagem:
247
O estilo faz o que promete. No entanto, ele não promete, não se propõe como
método, apenas realiza na configuração do texto o movimento crítico que o conteúdo
materializa. As relações em rede consideradas em sua dialogia promovem o fluxo do
texto, o processo pelo qual ele restaura o tempo da experiência concreta e destrói a
linearidade abstrata do tempo instrumentalizado.
Emerge do estilo a máquina de guerra, se vale a metáfora, que destrói pelo desvio,
pela reconfiguração do espaço-tempo textual, os fundamentos da reificação e do
controle pelo abstrato criando o tempo do jogo e da criação das diferenças no âmbito
dialético da unidade real.
argumento no qual se inserem e ressaltam seu próprio papel nele, e a função geral do
espetáculo em sua amplitude maior) constantemente o desvio contra-ataca a tendência
dos espectadores de se identificarem com o argumento lógico, com a estrutura verbal,
com as ideias afiguradas no texto, lembrando-os que a aventura real – ou a perda dela –
está em suas próprias vidas.
Toda revolução nasceu na poesia, fez-se de início pela força da poesia. Este é um
fenômeno que escapou e continua a escapar aos teóricos da revolução – é verdade
que não se pode compreendê-lo se se atém ainda à velha concepção da revolução ou
da poesia – mas que geralmente foi sentido pelos contra-revolucionários. A poesia,
lá onde ela existe, lhes faz medo; eles se obstinam a se desembaraçarem dela através
de diversos exorcismos, do auto da fé à pesquisa estilística pura. O momento da
poesia real, que “tem todo o tempo diante dela”, quer a cada vez reorientar,
conforme seus próprios fins, o conjunto do mundo e todo o futuro. (DEBORD. All
the King’s Men. Grifos nossos)
Tentamos conceituar, até agora, o desvio como um tipo de poética reflexiva que
corrige, por intermédio de um contra-movimento especular, o sentido ideológico do
sistema, opondo a ele uma força imanente que se aproveita da forma apenas para revisar
suas vinculações históricas e inverter suas esperanças idealistas. O desvio do sistema
opera, assim, uma revisão na forma e, por meio dela, constrói um mecanismo de
produção de sentido pela negação daquilo que especula. Nele e por meio dele, vale
250
dizer, por meio de uma sintaxe da revisão estrutural, abre-se o espaço ao movimento de
significados purificados dos vínculos ao sistema global de produção do espetáculo.
Mediante a construção de uma ponte crítica entre a forma mais madura atingida
pela sintaxe filosófica, em sua busca pela superação dialética da representação abstrata e
da imagem artística, o desvio sistemático de Debord recoloca a filosofia no caminho da
criação poética, da arte como potência inventiva insubmissa e, com isso, resolve o
problema da banalização da linguagem e do esvaziamento da expressão filosófica
produzido por sua separação da esfera da experiência concreta da vida histórico social.
Se não é possível construir um novo sistema, se não se pode postular mais o vínculo
entre a expressão e seu conteúdo material como relação fundante da verdade, se a
linguagem perdeu sua função de expressar a diferença e a verdade do indivíduo, junto
com a banalização de sua forma simbólica nas mãos da ideologia, dos interesses do
controle político e da manipulação das mídias; se não há uma experiência exterior do
sentido a qual recorrer para recriar a possibilidade da crítica, talvez seja possível
mediante o desvio, abrir espaço a um novo movimento pela utilização consciente e
inventiva do velho. A diferença na repetição, o outro extraído do mesmo, a superação
os limites entre a teoria e a pratica a representação e o conceito, a arte e a filosofia. A
251
E aqui, quem sabe, o desvio debordiano realiza sua maior astúcia: a construção de
um quadro não formal de referência teórico-prática elaborada como um grande
movimento desconstrutivo, dentro do qual as proposições desviantes assumem seu
significado pleno como micro-desvios integrados e suprassumidos no todo do
antissistema.
Percebendo esse jogo dialético com a forma, mediante o que denominamos desvio
sistemático, através do qual Debord caminha no limite entre a reflexão filosófica e a
invenção literária, não podemos, por outro lado, deixar de estabelecer o vínculo entre o
que se coloca como tensão formal e aquilo que a própria forma problematizada carrega
como evidência de seu destino polissêmico e plural: a tentativa enciclopédica de revisar
a tradição filosófica em uma espécie de suma revisional e crítica que se anima de todas
as principais vozes do discurso dialético inseridos na máquina de guerra como
determinantes proposicionais desviadas.
A linguagem dialética restaura sua potência expressiva pela via da invenção, pelo
caminho da criação literária. Assim, desfaz o equívoco de Hegel que considerava a arte
uma forma de expressão datada cuja representação havia encontrado seus próprios
limites, tendo de dar lugar à linguagem conceitual. Debord encontra, para além de
Hegel, o ponto exato em que a arte e a filosofia confluem em benefício da expressão
divergente, do discurso da crítica. Mobiliza-se a filosofia e se supera seu limite
252
Debord
O leitor poderia ser tentado a ver aqui uma forma ensaística de proceder da
dialética. No entanto, cabe notar que a “forma do ensaio” não parece, pelo menos
conforme conceitualizada por Adorno (ADORNO, O ensaio como forma.), coincidir
ponto por ponto com a “forma do desvio”. A experiência debordiana com o texto não
admite outro qualificativo senão aquele extraído diretamente de sua própria
configuração, percebido em seus próprios movimentos constitutivos, considerado em
sua natureza ímpar em, em alto grau, inqualificável. Quando dizemos inqualificável
apontamos para a importância de não se subsumir o desvio a nenhuma categoria, limitá-
lo por nenhum recorte conceitual externo ao seu próprio movimento ou mesmo tentar
qualificá-lo sob a marca de qualquer gênero discursivo ou literário.
insubmissa e refratária ao sistema das separações e supera, ao mesmo tempo, em seu ato
de discurso revolucionário, que estudamos até aqui em suas determinações essenciais,
através do exame do desvio proposicional e da mecânica global do desvio do sistema.
O que esperamos ter demonstrado até aqui é que Debord não rejeita pura e
simplesmente a totalidade como mediação necessária à realização de uma busca que se
materializa em um texto invulgar. Embora Debord critique radicalmente a estreiteza do
método científico de matriz positivista e se ponha em desacordo flagrante com a
positividade, que serve de princípio e, ao mesmo tempo, afigura-se como fim balizador
daquilo que a ciência burguesa postula, ao mesmo tempo sabe que a razão não se reduz
ao exercício de uma forma de conduta protocolar redutivista e não pode ser abandonada
como tal. E a razão dialética nos diz que a totalidade é uma mediação necessária à
realização adequada de uma transformação não só na forma do texto, mas na forma do
texto em conformidade com as formas da vida, que não perca a verdade como meta e
não isole os fios que atam o sujeito revolucionário ao seu objeto, tanto resultado como
princípio de sua experiência real. Lukács nos mostra que há uma dialética entre a parte e
o todo que não pode ser desconsiderada porquanto não se pode, obviamente, entender a
totalidade sem entender cada uma de suas partes, porém as partes só têm significado se
forem relacionadas com a totalidade. (cf. LÖVY, Entrevista, p 10) Embora busque uma
dinâmica expressiva que, como o ensaio, seja capaz de possibilitar uma nova forma de
expressão e de pensamento em conformidade com a singularidade da experiência do
sujeito, Debord jamais perde de vista que tal singularidade determina e está determinada
dialeticamente pelo conjunto da experiência histórico-social na qual se inere e da qual
busca se distinguir. Mesmo a revolução na forma que se pretende com o desvio não se
afasta, sob nenhuma hipótese, da revolução política: ela se instaura, com tentamos
demonstrar até aqui, no campo da ação e reflui sobre ele como determinação teórico-
prática de uma consciência da revolta que não se conduz pelo caminho de uma simples
submissão ao dado nem, tampouco, pela adoção ingênua de um método prévia e
universalmente estipulado. Portanto, nenhum texto dialético pode se construir a partir de
uma ideia formal, de um recorte metodológico ou mediante uma aproximação
positivista, em que se isole os fios e se separe as categorias particulares do momento
determinante universal que as inclui, em relação ao qual elas realizam sua singularidade
concreta.
255
Assim como o ensaio, o método, o caminho que se percorre, deve ser construído
em divergência com as circunstâncias históricas burguesas, representadas teoricamente
pelas ideologias de matriz positivista e estruturalista, que arrastam toda a tentativa
revolucionária para a órbita do espetáculo aniquilando, ou melhor, neutralizando sua
natureza insubmissa. Não há nenhum caminho prévio que se possa adotar como forma
de orientar a consciência revolucionária. O caminho deve ser construído juntamente
com as regras de articulação, no próprio processo, sempre complexo e difícil, de
construção do texto desviante. Tal texto, no entanto, busca, pelo desvio, a correção dos
descaminhos da investigação filosófica e da produção artística, através da revisão crítica
de suas principais realizações. Não se contrapõe imediatamente a elas, mas as desvia de
seus antigos itinerários, corrige seus erros, e as revigora e dota de um novo poder
expressivo pela mediação da ação criadora e crítica do sujeito em comércio dialógico
com as suas circunstâncias. A propósito, Adorno lembra:
A revitalização do pensamento pela arte não exclui, não contrapõe, mas dialoga
com as forças da separação e com suas antilogias e as suprassume num texto que é o
resumo enciclopédico de uma guerra contra o espetáculo levado a efeito no próprio
campo de batalha definido pelo espetáculo. A astúcia da dialética evita a incorreção de
se conciliar com a lógica insidiosa da ideologia, e o faz no campo de combate
antiideológico da dialética animada pelo desvio. Nesse ponto temos de concordar com
Adorno quando afirma que “embora a arte e a ciência tenham se separado na história,
não se deve hipostasiar o seu antagonismo.” (ADORNO, P 22)
(...) embora arte e ciência tenham se separado na história, não se deve hipostasiar
seu antagonismo. A aversão a essa mistura anacrônica não absolve uma cultura
organizada em ramos e setores. (...) Os ideais de pureza e asseio, compartilhados
tanto pelos empreendimentos de uma filosofia veraz, aferido por valores eternos,
quanto por uma ciência sólida, inteiramente organizada e sem lacunas, e também por
uma arte intuitiva, desprovida de conceitos, trazem a marca de uma ordem
repressiva. Passa-se a exigir do espírito um certificado de competência
administrativa, para que ele não transgrida a cultura oficial ao ultrapassar as
fronteiras culturalmente demarcadas. (ADORNO, P 22)
unicidade do texto, esperamos ter demonstrado até aqui, se revela uma estranheza
fundamental, uma força de distensão do sentido que se investe da dinâmica peculiar da
máquina dialética. Por isso termos usado designações originais e, muitas vezes,
estranhas, para abordar o texto de Debord. Acontece que não encontramos outro jeito de
entrar na máquina de guerra sem violar os próprios princípios que a sustentam. Por
exemplo, a ideia de uma forma como limite estrutural é absolutamente estranha a uma
empresa que se coloca em dissidência direta contra o formalismo. Que desmonta o
formalismo no próprio processo de construção dialógica do texto, para o qual o desvio
representa o procedimento determinante. Um desvio não constitui uma forma stricto
sensu. Deveríamos ser tautológicos aqui: o desvio é um desvio. Perceber o que ele é
significa encontrar o sentido da tarefa debordiana em seu próprio meio. O que fazemos
aqui.
Rigorosamente, para Debord a forma pensada como limite, não pode ser senão um
modo espetacular de proceder através do qual o espetáculo ocupa o texto impondo a ele
sua própria rigidez e abstração estrutural. Aqui poderíamos ver alguma coincidência
com Adorno. Em seu escrito O Ensaio como forma, Wiesengrund considera que o
ensaio, ao contrário dos gêneros e das categorias mortas que encapsulam o sentido das
singularidades moventes do texto, arruinando a possibilidade de se expressar a diferença
em seu próprio meio, “se aproxima de uma autonomia estética que pode ser facilmente
acusada de ter sido apenas tomada de empréstimo à arte, embora o ensaio se diferencie
da arte tanto por seu meio específico, os conceitos, quanto por sua pretensão à verdade
desprovida de aparência estética.” (ADORNO, Notas, p 18) O ensaio, nesse sentido,
apresenta-se como construção singular resultante de um ato de criação e afirmação da
diferença através da forma peculiar e única que, no entanto, não se delimita como
“forma artística”, não se deixa prender nas malhas das abstrações formais. Nas palavras
de Adorno, o ensaio não “admite que seu âmbito de competência lhe seja prescrito”.
(ADORNO. P. 16) Sendo assim, ele, o ensaio, deveria constituir uma espécie muito
peculiar de “forma sem prescrição”, vale dizer, de forma livre da forma através da qual
se permite ou se exige plena liberdade de construção de um texto que se define através
de si mesmo. Que vive em seu próprio elemento do qual extrai o movimento de sua
própria significação. Portanto, não seria lícito afirmar que o ensaio corresponde a uma
categoria tão geral quanto vazia e que, por isso, não nos diz nada? De Montaigne a
Adorno o ensaio foi experimentado de muitas maneiras e realizado em uma variedade
259
de formas tão distintas que fica difícil perceber alguma unidade temática ou estilística
em seu propósito. Isso se considerarmos os movimentos do sujeito montaigniano, os
fragmentos de Pascal58, as máximas de La Rochefoucault e Nietzsche, “a
superficialidade erudita de Sainte-Beuve” (ADORNO, P 19), os densos exercícios de
Adorno como pertencentes à mesma classe de objetos.
Mas o ensaio não é um objeto no sentido formal e não se define por antecedência.
Nele não se separa o ato da criação da coisa criada nem mesmo se contrapõe o sujeito
criador à sua obra. O anti-positivismo do “estilo ensaio” ensaia a própria morte das
classificações inertes e das disjunções forçadas e abstratas. O artigo de Debord, que
estudamos mais acima, Perspectivas de modificação consciente da vida cotidiana já
apontava para a necessidade da investigação filosófica – aquela que pretende atingir a
verdade acerca de seu tema – não postular nem realizar nenhum tipo de separação
forçada entre sujeito e objeto, que o sujeito mesmo deve se encontrar em diálogo aberto
com seu objeto para melhor compreendê-lo. Para tal ela, a filosofia, devia se apropriar
do procedimento estético como meio de promover um comércio não alienado entre
conteúdo e forma e, ao mesmo tempo, produzir uma ruptura radical em relação aos
protocolos estabelecidos pela razão normativa como balizas da investigação.
58
Embora tenha tentado vários arranjos Pascal jamais chegou a atinar com uma forma definitiva para seus
escritos. Debord, ao contrário, organizou seu texto de uma única vez e jamais alterou o que havia feito. A
Sociedade do Espetáculo constitui, neste sentido, um texto pronto, um conjunto de proposições e de
ensaios articulados no interior de um mecanismo dialético definitivo. A abertura que possui é de outra
natureza, não a do inacabamento.
260
Também aqui como em todos os outros momentos, a tendência geral positivista, que
contrapõe rigidamente ao sujeito qualquer objeto possível como sendo um objeto de
pesquisa, não vai além da mera separação entre forma e conteúdo: como seria
possível, afinal, falar do estético de modo não estético, sem qualquer proximidade
com o objeto, e não sucumbir à vulgaridade intelectual e nem se desviar do próprio
assunto? Na prática positivista, o conteúdo, uma vez fixado conforme o modelo da
sentença protocolar, deveria ser indiferente à sua forma de exposição, que por sua
vez, seria convencional e alheia às exigências do assunto. (ADORNO, P 18. Grifos
nossos)
A forma não deve ser como não é indiferente ao assunto. De fato ela diz tudo
sobre ele e o realiza. No entanto, há que se notar que a própria ideia da forma como
elemento definitório do sentido restringe a expressão às exigências espetaculares do
protocolo. Inserem a tentativa da crítica em um sistema de regras exteriores ao seu
movimento constitutivo (que deve ser sempre singular) que a torna neutra e a aniquila.
Portanto, mesmo a forma deve ser desconstruída em seu próprio benefício. Ela deve ser
utilizada como um contraplano dialógico sobre o qual se projeta a diferença que a nega
e a supera dentro do próprio enquadramento que ela cria. A forma sobreposta à forma
extrai efeitos do limite autoimposto que leva à transcendência absoluta da separação e
da limitação, da clivagem conteúdo-estrutura, do recorte metodológico apriorístico e
nivelador. A sobreposição realiza, no interior das balizas definidas pelo inimigo, a
superação dos limites que ele mesmo instaura e, assim, abre ao significado um novo
espaço dentro do diálogo crítico entre os significantes. Não se tem aqui uma negação
imediata, mas uma negação mediada pelo comércio crítico com o todo. Duas totalidades
em confronto do qual emerge o novo conteúdo ligado à forma divergente, que esta exibe
em sua presença poética dialeticamente construída. O desvio mostra que mesmo o
modelo protocolar da sentença e do sistema serve de veículo à reconstrução dialética da
linguagem em seu comércio com a verdade, com a expressão do concreto e com seu
compromisso com a totalidade. Mais uma vez, a astúcia da dialética.
59
Neste ponto devemos observar que a crítica adorniana vai de encontro à perspectiva debordiana e a
confirma.
261
O universal permanente, tomado como algo estável, que pode ser nomeado pelo
texto, separa a concepção do teor revolucionário da criação, inserindo a tentativa de
ruptura radical no domínio da lógica espetacular com suas separações e mediações
alienantes. Neste sentido, a proposta do desvio afasta-se da natureza formal do texto
ensaístico uma vez que pretende fazer fluir a linguagem petrificada pela ação
espetacular da consciência alienada sem conciliar-se com qualquer predeterminação
genérica. O gênero ou a forma tomados como limites da formulação, determinando o
que se deve estruturar de acordo com um recorte externo que fixa a sua natureza e
define, de um vez por todas, seu território coincide com a maneira pela qual o
espetáculo submete a inteligência criadora a ingerência alienante de seus protocolos, de
suas normas estranhas á vontade criadora do sujeito insubmisso. Externar uma lei que
determine a articulação e a configuração formal do texto, corresponde a uma aceitação
da existência de uma regra de composição que fixa de uma vez por todas as direção da
criação e a aniquila. O “texto dialético” que se deixa modelar passivamente por uma
262
O protocolo que governa a vida reificada retorna sobre ela e a confirma através de
sua expressão banal.
Sob a capa teórica do discurso difícil e sofisticado a filosofia pode esconder uma
sensibilidade muito comum que se eleva acima de si mesma sem deixar de ser aquilo
que originariamente era. Aliás, sua expressão sistemática parece apenas conferir
credibilidade a um discurso que se mostra na imediatez de sua configuração formal
como evento acima do comum que, não obstante, apenas confirma a lógica que se
apoderou do comum. Neste sentido, o desvio debordiano, operando o redirecionamento
da forma e a recuperação do significado que se move ao ritmo da dinâmica discursiva
que o orienta, recusa a lógica do espetáculo e, ao mesmo tempo, a transgride e supera,
sem se deixar apanhar por sua astúcia.
confronto com a forma, o desvio serve-se do universal como meio de promover aquilo
que o universal negou, quando se realizou como totalização das forças que se
apropriaram do cotidiano.
Neste sentido, o sistema não poderia ser pensado como a forma universal do
conjunto das relações alienadas que se elava do cotidiano e impõe sobre o cotidiano a
sua própria fantasia de unidade? Quebrar a rigidez do sistema em sua falsa promessa de
unidade e sentido não significa restaurar a consciência da perda através da superação de
sua forma abstrata? Restaurar o movimento do vivente através de um longo desvio que
se serve da força alienada do cotidiano como ponte para reunir, sob o ditame da
consciência desiludida, a possível restauração do que no cotidiano se mostra como
negação? A desapropriação do sistema, o roubo de sua lógica ilusória não seria a astúcia
suprema da dialética em seu projeto anti-espetacular? O combate contra a totalidade
levado a efeito através do desvio da totalidade e não mediante à sua renúncia?
Desviando o sistema Debord poderia atingir o sentido universal que se oculta sob as
várias formas de totalização do sentido apresentadas historicamente como tentativas de
concreção da linguagem fracassadas. Na modernidade a maior delas, que resume todos
os esforços anteriores em uma grande síntese foi a de Hegel. Também ela não foi vítima
do espetáculo, na medida em que se vinculou, de certa forma, ao otimismo burguês que,
sob a máscara do sistema, cantou a sua própria glória? O sistema da lógica e o sistema
da história enquadravam o drama da razão como um esforço histórico realizado; como o
avanço de uma potência universal que já havia chegado ao seu destino e cumprido sua
tarefa. Punha-se, portanto, como um tipo muito especial de ingenuidade romântica que
servia, sem querer, aos interesses específicos de uma determinada classe. O sistema
total resolvia-se em ideologia total.60
60
Convidamos o leitor a um exame da Crítica da filosofia do Direito de Hegel empreendida por Marx,
onde se pode encontrar um desenvolvimento crítico bastante frutífero do que afirmamos.
264
senão por sua própria peculiaridade. Se considerarmos o ensaio como forma não se
define, então, como ensaio.
É difícil assumir isso hoje com todo o policiamento ideológico exercido pela
experiência pós-moderna em relação a totalidade e o sistema, mas é impossível concluir
outra coisa quando se lê detidamente Debord: a fluidez do inacabamento não faz parte
de seu texto, não condiz com sua forma de composição. O movimento que instaura e a
fluidez que recupera são os das categorias em relação dialética pela qual se apreende a
vida do todo. Uma empresa hegeliana e marxiana. Em sua crítica do método da
economia-política Marx apontava, exatamente na impossibilidade de atingir o concreto,
portanto de superar o reino ilusório das abstrações, o grande defeito do método dos
economistas ingleses. Marx propunha como verdadeiro método da dialética aquele pelo
qual as categorias do pensamento apreendem as categorias do ser em suas relações
históricas concretas.
265
A dialética canta o ser, não a passagem. É temerário dizer isso, mas não há outra
forma de entender Debord. Ele mesmo afirmou, e relembramos aqui, na introdução à
edição italiana da Sociedade do Espetáculo que não mudaria uma palavra do que tinha
escrito porque as condições históricas não haviam mudado substancialmente a ponto de
exigir uma alteração da perspectiva crítica.
A arte de escrever livros ainda não foi inventada. Está, porém, a ponto
de ser inventada. Fragmentos desta espécie são sementes literárias.
Pode sem dúvida haver muito grão mouco entre eles – mas contanto
que alguns brotem. Novalis
Uma das principais características formais do ensaio montaigniano é que ele não
possui forma, senão aquela que vai conquistando ao longo de um processo aberto em
que não se vislumbra nenhum fim, não se admite nenhum acabamento. O ensaio evolui
61
Em benefício da clareza podemos identificar aqui duas principais fases no desenvolvimento histórico
do pensamento filosófico: uma caracterizada pelo primado do objeto e pela busca consequente do
fundamento subjacente à ordem do mundo (ontológica, portanto), diante da qual a consciência curiosa se
colocava na posição de uma potência intermediária, denominada por Platão metaxy, que tentava encontrar
uma forma de dirigir-se ao segredo que lhe transcendia, através da construção de uma linguagem em cuja
estrutura esse mesmo segredo se revelava; outra caracterizada pela interiorização e subjetivação da
consciência com Descartes, culminando na Crítica da Razão Pura Kantiana, marcada pelo primado do
sujeito cognoscente como força ativa a modelar o objeto do conhecimento e suas relações de acordo com
suas próprias formas e categorias espirituais estruturantes (gnosiológica, portanto).
Em um terceiro momento a crítica hegeliana a Kant, entendida, muito rapidamente, como uma síntese na
qual se salvavam as duas posições anteriores sem que se perdessem os dois momentos necessários à
construção histórica de nossa forma de ser e de conhecer. O pensamento hegeliano pode ser
compreendido como a autoconsciência da modernidade na qual a antiguidade e a Idade Média foram
salvas integralmente mediante o diálogo onto-gnosiológico em cujo interior as separações são superadas e
a consciência, reconciliada com o objeto, realiza-se, enfim, como tarefa histórica e movimento
autoconstrutivo. (dialética)
A transcrição da vida e da experiência humanas em conceitos filosóficos configurados como momentos
necessários ao trabalho autônomo da consciência, que Hegel inicia na Fenomenologia do Espírito,
corresponde a um esforço que culmina na Filosofia da História e da Religião, sendo abrangidos em sua
forma mais abstrata e universal pelo Sistema da Lógica. História, religião e direito se interligam na
concepção dialética, que se move de maneira nova e abrangente de modo a totalizar os conteúdos da
experiência como verdades profundas de nossas vidas, não somente por meio de histórias e
representações, mas, também, por meio de uma estrutura conceitual publicamente acessível a todos. e,
como um entendimento partilhado da experiência, pode fornecer a base de uma vida em comum.
A síntese é alcançada quando, enfim, o Espírito de braços abertos unificar os planos. Após realizar todo o
trajeto de sua paixão, a consciência individual (sujeito) estará novamente ligada à experiência social
(objeto) como a representação da essência de sua liberdade, na qual ela mesma se reconhece e com a qual
ela se harmoniza. Chegamos ao reino da “eticidade” – comunidade ética (Sittlichkeit) e da liberdade
concreta realizados no Estado e na ordem normativa do Direito.
267
O ensaio aparece, assim, desde o princípio, como uma construção que, por se
adequar a natureza do objeto que representa, quebra a moldura do tratado teórico.
Polimorfo e móvel o ensaio,
(...) elaborando a cada vez um novo ponto de vista, uma nova particularidade, uma
nova imagem, de tal forma que o pensamento irradia em todas as direções. (...) Isto
está em relação com a maneira segundo a qual ele está empenhado em apreender o
seu objeto, isto é, a si próprio (...) trata-se de uma constante audição das vozes
mutantes que ressoam dentro dele, e vacila, no seu nível, entre a ironia com
segundas intenções, um pouquinho presumida, e uma seriedade muito enérgica.
(AUERBACH. Mimesis, Pp. 244-255)
A “estrutura dialógica” que se cria a partir dai não corresponde nem a uma forma
abstrata fixa, nem tampouco a uma deriva sem rumo. Consiste na execução de um
projeto de construção cujo acabamento cria a abertura em função do diálogo
desconstrutivo com as estruturas que “ironicamente imitam”, cujo sentido e organização
subvertem. Sendo assim, a obra está pronta. Não há o que acrescentar. Nenhuma
mudança a ser feita. Não afirma Debord que ele não é um autor que se corrige em sua
Advertência da edição francesa de 1992 da Sociedade do Espetáculo? “Não costumo
corrigir meus textos”, declara Debord e conclui: “uma teoria crítica como esta não se
268
altera”, pelo menos enquanto não forem destruídas as condições gerais que ela foi a
“primeira a definir com precisão”.
Definir com precisão é tudo o que o ensaio montaigniano não persegue ou não crê
ser possível, porquanto seu objeto não deixa de se modificar, de aprender
constantemente novas perspectivas e novos ângulos de si mesmo em confronto com
suas circunstâncias, que a forma do ensaio acompanha. As circunstâncias em que se
encontrava Debord, no entanto, não se alteravam substancialmente; ao contrário,
mantinham-se através de um processo de reprodução em que o mesmo aparecia sempre
com as vestes do outro. E o texto debordiano atento às astúcias do espetáculo, não
poderia acompanhar seus movimentos ingenuamente, aderindo de forma acrítica às suas
oscilações. Deveria, como de fato fez, perceber a astúcia de um mundo que não muda e,
não obstante, parece ser sempre outro, investindo contra ele a dinâmica crítica de sua
dialética, cuja função fundante é destruir o espetáculo ao exibir sua mentira. Não
acompanhar o objeto em suas oscilações, mas desvendar o objeto e suas ilusões de
unidade. E esse objeto não é um sujeito em construção, mas um sujeito à mercê do
engano, que não pode confiar nem, tampouco, refletir sem mediações críticas globais o
sistema material que lhe submete e desnatura junto com a ideologia que o sustenta. O
que ensaia Debord é um combate contra a totalidade do existente alienado. Diagnose
crítica e desconstrução em um mesmo ato de linguagem revolucionário anticapitalista.
Debord aposta nos conselhos operários, influenciado sem dúvida pelo Lukács de
História e Consciência de Classe, mas as diretrizes de sua criação, diante de desafio tão
difícil em um contexto histórico tão opressor, sente a ameaça da derrota e se aprofunda
na polémica. O radicalismo do mecanismo dialético em Debord ultrapassa qualquer
limite formal, exige uma atenção ao esforço do sujeito que se projeta através da obra
singular que é sua máquina de combate. Os paralelos com o ensaio deixam de valer
diante da peculiar estranheza do estilo debordiano. Não resistem a uma mirada honesta
que deve orientar-se em um conjunto de proposições, em um encadeamento de teses
muito bem articuladas, situadas em uma montagem demasiadamente composta e bem
acabada que não permite nenhum remendo, nenhuma alteração, que não podem evoluir
ao sabor do acaso como o texto montaigniano, que não se pode ir ajustando conforme
evolui ou regride a matéria sobre a qual se dobra. Que não reifica o dado aderindo a um
estado de coisas que necessita ser compreendido no mesmo movimento em que é
superado, cuja superação represente uma força social inserida nas batalhas reais dos
sujeitos reais pela construção ainda em aberto, do ser social. O que está em jogo não é
apenas a forma do texto, mas sua função revolucionária, que começa pela revolução na
forma, ou melhor, pela não aceitação da forma como limite da construção, como
determinante legal da criação que a separa dela mesma anulando sua potência vital de
afirmação da diferença. O combate contra a equalização da forma é a luta fundamental
que Debord empreende contra a astúcia do espetáculo. A construção de uma “máquina
produtora da diferença” no interior da forma equalizante constitui a astúcia dialética
maior, considerada no plano do estilo. A maneira singular de dizer a singularidade por
intermédio “desse mesmo dizer”: afirmar uma diferença desconstrutiva que fluidifica o
discurso e o movimenta no âmbito de sua própria construção significante em
divergência total. O discurso revolucionário construído com os elementos da
conservação no interior do desvio da lógica da normalidade.
quais ficaram provisórios e incompletos, posto que a vida do autor foi mais breve que a
obra. A arte do ensaio é longa, a vida do autor é breve, sendo assim não é possível que
ela realize a arte.
De fato, a maneira pela qual está organizado o todo, sua relação negativa com as
circunstâncias sociais que espelha, atrelada a uma costura quase perfeita no diálogo
entre as partes, não permitiria uma modificação circunstancial sem alterar o sentido
global do texto, sem descaracterizá-lo. A máquina debordiana está muito bem ordenada
e sua função dialética a conecta especulativamente, vale dizer, negativamente, com a
situação, movendo-a de acordo com a substância da sociedade espetacular que ela
combate. Não se situa no plano reflexivo imediato e simples que deveria acompanhar as
transformações na superfície que, por serem superficiais, não alteram a configuração do
todo. A mediação do todo como momento predominante do estilo garante sua
imunização frente às oscilações aparentes de um estado de coisas que se quer ou se
mostra volátil, mas que possui solidez e permanência. O espetáculo não é uma categoria
abstrata, reafirmamos, nem tampouco um simulacro ou uma simulação, mas, conforme
já demonstramos, uma determinação ontológica, cuja lei universal encontra-se no
terreno da economia e se reproduz na esfera político-ideológica, mantendo sempre em
movimento de auto-conservação sua força alienante e sua realidade material. O segredo
do espetáculo está bem escondido, mas não escapou ao olhar crítico da dialética. 62 Suas
mudanças superficiais enganam, não obstante foram percebidas corretamente por
Debord como transformações cosméticas de uma realidade que se perpetuava
62
Confere acima o capítulo intitulado O segredo do templo.
271
Retornar para dentro de si significa, para nós, abstrair do mundo exterior. Para os
espíritos, a vida terrestre significa, analogicamente, uma consideração interior – um
entrar dentro de si – um atuar imanente. Assim a vida terrestre origina-se de uma
reflexão originário – um primitivo entrar-dentro-de-si, concentrar-se em si mesmo –
que é tão livre quanto nossa reflexão. Inversamente, a vida espiritual neste mundo
origina-se de um irromper daquela reflexão primitiva – o espirito volta a desdobrar-
se – o espirito volta a sair em direção a si mesmo – volta a suspender em parte
aquela reflexão – e nesse momento diz pela primeira vez – eu. Vê-se aqui quão
relativo é o sair e entrar. O que chamamos entrar é propriamente sair – uma
retomada da figura inicial. (NOVALIS. Pólen, § 43)
trabalho de leitura que exige. Um desdobrar-se consequente de uma forma acabada que
se move, no entanto, como um mecanismo autotélico e autocatalítico que se alimenta de
suas circunstâncias e se renova de acordo com uma perpétua atualização de sua potência
dialética. A obra deve ser amalgamada, composta de referências mediadas pela ironia,
pela subversão, pelas formas do desvio, enfim, que se movem dentro do universo crítico
que produzem. “Fragmentos desta espécie são sementes literárias. Pode sem dúvida
haver muito grão mouco entre eles – mas contanto que alguns brotem.” (NOVALIS,
Pólen, 104)
Um livro, assim, não é apenas um livro que segue os movimentos do autor, suas
mudanças subjetivas, suas alterações de perspectivas. Um conjunto de teses rapsódicas
intercaladas, em suma. Há uma qualidade objetiva fundamental aqui que não se pode
negligenciar. Um livro como a Sociedade do Espetáculo foi escrito em função da
destruição de um estado de coisas negativo, como um movimento construído dentro do
movimento espetacular para lhe desestabilizar e destruir. Não se deixa levar pelo
movimento de desestabilização infinita do espetáculo, nem se afirma como reprodução
da lógica do valor de troca, que consiste em equiparar tudo com tudo e, assim, destituir
o valor singular de todas as coisas.
A reconstrução do sujeito que o livro exige, que realiza como condição do autor e
provoca como condição do leitor tornam a Sociedade do Espetáculo mais que uma
livro, muito mais que um ensaio, mais que um mero trabalho de estilo. “Tão raramente
um livro é escrito em vista do livro”, sentencia Novalis. Um livro não se escreve em
vista do livro, diríamos, mas do que ele realiza de fato e exige de direito.
63
Confere: “Autores a procura de um leitor”
64
Não estamos, portanto, diante de um texto comum, no sentido que não se caracteriza apenas como
texto, mas como tarefa histórica de destruição-reconstrução no contexto de uma derrota: a derrota do
sujeito. Não do sujeito atomizado, mas do sujeito social. Não o sujeito romântico alienado de suas
condições sociais, mas do sujeito humano inserido em suas determinações concretas.
274
envolve o leitor cúmplice; o autor em busca do leitor é aquele que fala para um futuro
possível. Nesse sentido,
O verdadeiro leitor tem de ser o autor amplificado. É a instancia superior, que recebe
a causa já preliminarmente e elaborada da instancia inferior. O sentimento, por
intermédio do qual o autor separou os materiais de seu escrito, separa novamente,
por ocasião da leitura, o que é rude e o que é formado no livro – e se o leitor
elaborasse o livro segundo sua ideia, um segundo leitor apuraria ainda mais, e assim,
pelo fato de a massa elaborada entrar sempre de novo em recipientes frescamente
ativos, a massa se torna por fim componente essencial – membro do espirito eficaz.
Através da releitura imparcial de seu livro o autor pode ele mesmo apurar seu livro.
Com estranhos, o peculiar costuma perder-se, porque é tão raro o dom de adentrar
plenamente numa ideia alheia. Frequentemente com o próprio autor. Não é nenhum
indicio de maior cultura, ou de maiores forças, fazer sobre um livro a censura certa.
Diante de impressões novas a maior agudeza do sentido é totalmente natural.
(NOVALIS, Pólen, 125)
Um estilo sintético cuja força poética atua como presença una, compacta e, ao
mesmo tempo, complexa a desafiar a simplicidade abstrata das oposições e das
generalizações apressadas. Concebida e realizado como perspectiva de transformação da
vida cotidiana – lugar em que se disputa o jogo decisivo, campo onde se trava a batalha
final pela reconquista da liberdade, palco em que se encena o enredo das lutas pela
conquista da emancipação – a Sociedade do Espetáculo fecha seu circuito com uma
aposta: justamente na classe que representa a ausência de todas as classes em cujas
mãos está o destino que se configura no texto e se decide na vida. E aqui está sua
abertura fundamental: na direção do leitor-criador, no entanto concebido como autor de
uma obra que só se concretiza na vida material, através da ação politica de tomada de
posse das diretrizes da história, da revolução como ato final do drama humano que o
texto encena criticamente. Talvez por isso, a possível potência ensaística de A
Sociedade do Espetáculo talvez resida mais naquela característica apontada por Alfonso
Berardinelli em seu livro La forma del saggio, Definizione e attualità di um genere
letterario.
276
compreendido como uma estrutura autônoma governada por leis abstratas. “A obra
literária, como a literatura em geral, forma um sistema; nela nada é devido ao acaso. Ou
como escreve Frye: ‘O primeiro postulado deste salto indutivo (que ele nos convida a
dar) é o mesmo de toda a ciência: é o postulado da coerência total’.” (TODOROV,
idem)
Vemos aqui uma orientação de índole positivista que governou a maioria das
concepções modernas determinadas pelo postulado gnosiológico. Como tal seguiu, sem
perceber, uma direção comum apontada pelas forças históricas demasiadamente
confiantes no método científico. Este se estabeleceu em lugar de honra a partir do
século XIX, dominando a totalidade da consciência científica moderna, que se curvou
passivamente diante de suas diretrizes abstratas. Ao invés de buscar adequação aos
eventos em suas relações efetivamente reais, exercitando a pertinência ontológica
voltada à adequação do método aos processos efetivos em sua singularidade e diferença,
portanto, adequando o método aos objetos e relações diversos sobre os quais deveria ser
aplicado, um único procedimento metodológico impôs-se sobre a compreensão,
guardando em um único recipiente toda a variedade das determinações ontológicas
objetivas. Tais determinações foram deturpadas em função de uma aplicação
apriorística de formas e estruturas, muitas vezes estranhas a sua natureza. Eric Voegelin
nos adverte que
verdade com respeito aos vários domínios da existência. Para ela, é pertinente o que
quer que contribua para o êxito dessa busca. Os fatos são pertinentes não na medida
em que seu conhecimento contribua para o estudo da essência, enquanto que os
métodos são adequados na medida em que possam ser usados efetivamente como
meios para chegar a esse fim. Objetos diferentes requerem métodos diferentes. Um
cientista político que deseje compreender o significado da República de Platão não
encontrara muita utilidade na matemática; um biólogo que estude a estrutura da
célula não julgará convenientes os métodos da filologia clássica ou os princípios da
hermenêutica. Isto pode parecer trivial, mas ocorre que a desatenção para com as
verdades elementares é uma das características da atitude positivista; daí que se
torne necessário elaborar o óbvio. Talvez sirva como consolo lembrar que essa
desatenção é um problema perene na história da ciência, uma vez que o próprio
Aristóteles teve de recordar a alguns elementos nocivos do seu tempo que “um
homem educado” não deve esperar exatidão de tipo matemático em um tratado sobre
política. (VOEGELIN, 1982, p.19)
maneira pela qual organizava sua visão de mundo e a tramava em uma obra igualmente
singular. Tal obra reflete necessariamente o estado de coisas em que se encontra e o
apresenta ao leitor mediado pela construção específica do artificio verbal. Nela e em
suas relações com a situação social, nas quais se inclui o público, encontra-se uma
dinâmica peculiar que o estruturalismo não podia captar, porquanto afastava do ato de
leitura do texto a situação em que ele era produzido e, com ela, as forças que lhe
determinavam a expressão a partir da inserção, do imediatismo ou da recusa diante da
situação social. O texto não poderia ser compreendido como um objeto natural, mas
como resultado de um processo complexo dentro do qual se compreendem as relações
sociais de produção na sociedade moderna.
Muitos anos atrás, eu discutia com Guy Debord questões que a mim pareciam ser de
filosofia política, até que em certo ponto Guy me interrompe e diz: ‘Olhe, eu não
sou um filósofo, sou um estrategista’. Esta frase me chocou porque eu o considerava
um filósofo, assim como considerava a mim mesmo um filósofo, e não um
65
Sabemos que Debord possuía muitas armas e as usou de forma integrada. O que exige do estudioso um
sentido diferenciado do método uma vez que não pode estabelecer caminhos prévios que possam servir de
via de acesso a uma obra singular como a de Debord. A dificuldade começa, aqui, em saber quais foram
as circunstâncias nas quais se encontram os atores com os quais dialoga o texto; compreender, em
seguida, o sentido de suas realizações para, enfim, dimensionar o modo como Debord utiliza-se de seus
referenciais, deslocando-os de seus contextos originais e movimentando-os no rumo de novos sentidos:
no texto filosófico-literário, nas cartas, directivas, intervenções, artigos de revista, notas, cinema. Não há
uma porta de acesso para Debord. Talvez ao invés de um método seria melhor, seguindo o traçado de sua
própria experiência construir “estratégias de aproximação”, leitura e interpretação. Tais estratégias
devem-se basear nas articulações internas e externas da própria obra.
66
Nossa tentativa de investigação buscou, portanto, seguir de perto as trilhas traçadas pelo próprio objeto,
descobrindo, a partir da leitura imanente das fontes primárias, aquilo que o texto realiza, efetivamente, em
sua construção própria. É claro que na imanência do texto insere-se a totalidade social presente que lhe
determina a formação do conteúdo e contra a qual o texto reflui dialeticamente. Também dialogam com
ele as nossas pré-concepções situadas no plano de nossos interesses e motivadas por nossos valores.
Sendo assim, não é possível estabelecer um único método previamente escolhido que seja adequado à
abordagem de um tema complexo como o nosso situando-nos, ao mesmo tempo, em uma perspectiva
crítica e consciente de nossas próprias limitações.
281
estrategista. Mas creio que aquilo que Guy queria dizer é que todo pensamento, por
mais puro, por mais geral e por mais abstrato que seja, é sempre marcado por
assinaturas históricas, temporais e, portanto, sempre preso, de alguma maneira, a
uma estratégia e a uma urgência. (AGAMBEN, Metropolis, 2010, p. 01)
Debord considerou o seu tempo como uma guerra sem fim na qual sua vida inteira
estava empenhada na construção de uma estratégia. Por isso, penso ser necessário
perguntar sobre o sentido de tal estratégia, que começava na vida e prolongava-se na
obra, ou melhor, que unia vida e obra em um todo harmônico. O que ele entendia por tal
estratégia e como a complexidade de suas obras articulam-se na construção de suas
frentes de combate contra a sociedade do espetáculo. Para tal nos servimos de uma
metáfora de forjada por Michael Löwy com a qual acompanhamos nossa investigação
até aqui: a máquina dialética. O desvio como máquina dialética constitui uma
conjunção de forças contra o espetacular. Em relação ao método científico de matriz
positivista e seus descendentes espirituais estruturalistas, representa uma afronta, uma
inversão através da ironia daquilo que era mais caro ao método: o sistema. O desvio
como ironia. E aqui identificamos um elemento importante compartilhado pela crítica
debordiana com a forma do ensaio. Seu anti-estruturalismo de base, seu anti-positivismo
que já se manifestava no texto fundamental de suas perspectivas para a transformação
da vida cotidiana, que nos serviu de diretriz e bússola até aqui. O anti-positivismo
orientou o princípio de construção do texto desviante, como um motivo e o desvio se
relacionou com ele como uma direção da qual se afasta através da desconstrução de sua
expectativa mais universal e abstrata.
Contra a forma espetacular do texto que se apresenta como obra isolada e fechada,
alheia às condições históricas e aos eventos reais, um texto que se mostra espetacular
em sua imobilidade acabada, em sua anuência à norma protocolar do método, contra o
apriorismo lógico que afastou a linguagem da realidade vital que ela deveria espelhar e
acompanhar em seus desdobramentos dialéticos, a construção de um antitexto desviante.
Um texto que problematiza na própria forma a forma de organização do texto. Tem-se
aqui o ensaio debordiano que rompe com a própria possibilidade do ensaio, uma vez
que em Debord o texto acaba, atinge sua meta, finaliza seu propósito: a construção de
uma estratégia, de um “corpo de combate” que se coloca exatamente na posição dos que
têm um papel ativo nos acontecimentos, descobrindo as circunstâncias em que se
encontravam os atores num determinado momento a fim de estar em condições de julgar
escrupulosamente a série de escolhas necessárias à condução de sua guerra. (Cf.:
DEBORD, Panegírico, p 10).
Assim, vimos que a crítica desviante não opera através da análise, como um
exame exterior ao formalismo do sistema, mas o destrói por dentro instaurando em seu
lugar uma nova perspectiva, um novo movimento do negativo na direção da restauração
da verdade da experiência conforme a experiência da verdade. A crítica ensaia a
presença poética no interior da forma protocolar e a descontrói estrategicamente. Efetua
uma parodia dos sistema e, assim, avança em um território próprio, que a linguagem do
desvio determina e palmilha a partir de seu próprio movimento crítico. Somente nesse
sentido o desvio não deve ser classificado. Nem mesmo de ensaio. A própria
classificação desnaturaria o ensaio e o afastaria definitivamente do desvio.
O ensaio classificado, determinado por uma forma, reverteria sobre suas próprias
pretensões antidogmáticas, anti-formalistas e anti-generalizantes, generalizando-se
283
como uma classe formal de procedimento positivo. O que tornaria o ensaio uma forma,
por problemática que seja, de um proceder universal e abstrato. Um método como tantos
outros. Cair-se-ia novamente na astúcia do espetáculo. Criar-se-ia o fetichismo do
ensaio. O que se quer evitar com a astúcia da dialética.
A obra acabada de Debord evidencia-se no fato de ele em nenhum outro texto ter
seguido o caminho da Sociedade do Espetáculo e tentado, a partir dela, construir
mecanismo semelhante. Uma forma que não possui fórmula, uma fórmula que vive de
sua própria força e se esgota por completo em sua auto-realização singular.
menor não é a de uma língua menor, mas antes a que uma minoria faz em uma língua
maior.” (DELEUZE E GUATARRI, Kafka, p.25)
Literatura menor: subverter uma língua, fazer com que ela seja o veículo de
desagregação dela própria. A revolução começa aqui na ruptura com o código e na
criação de novas formas de expressão que resistam e oponham-se às formas maiores
consagradas e assimiladas pela sociedade com a qual se conciliam. O espetáculo: síntese
na forma/conteúdo dos aspectos fundamentalmente perversos do existente imediato. O
texto/ação atuando nas micro-relações cotidianas e nas produções teóricas, construindo
um mundo dentro do mundo, cavando trincheiras do desejo, colocando em alerta as
potências de libertação através do movimento restaurado do negativo.
O estilo menor enfim cria trincheiras a partir das quais se promove uma política
de resistência que pode desembocar nas relações diretas entre os indivíduos, que por sua
vez exercem efeito sobre as macro relações sociais. O texto perfaz um circuito em que
se realiza como exercício de estilo, máquina de combate, distanciamento crítico,
resistência ás formas maiores de conciliação e despertar das formas menores de
resistência: uma máquina de combate dialética, em um sentido renovado de dialética.
Um estratégia de combate em que se resolve a filosofia mediada pela criação artística. O
jogo, a arte da guerra e o pensamento dialético comungando da proposta de subversão
global dos meios em função da restauração total da possibilidade da experiência
autêntica no contexto da vida social efetiva. Nenhuma estratégia desse tipo, que
pretenda a construção, pode-se afastar da destruição. As duas forças devem estabelecer
o comércio dialético em que o novo emerge do belicismo da forma em deriva.
Veja-se a advertência:
“Il faut lire ce livre en considérant qu'il a été sciemment écrit dans l'intention de
nuire à la société spectaculaire. Il n'a jamais rien dit d'outrancier.” (DEBORD. SE)
O uso criativo usado como forma de ludibriar o leitor, levá-lo a pensar: o que há
aqui de tão importante e profundo que eu não consigo captar? O que se esconde na
floresta densa dos conceitos? Caminhos não trilhados ou trilhas que não dão em lugar
nenhum. O mergulho de cabeça no que se acreditava profundo fracassa no choque
inesperado com o raso: para quem foi até o fim a desilusão resulta na quebra das
expectativas contra o fundo falso. O passante observando as vitrines do shopping tenta
se aproximar dos produtos, dispostos de forma a atrair sua atenção passiva, bate a
cabeça no vidro blindado que o separa de uma constelação inerte.
na e pela leitura. Que só existem na atualização da leitura que lhe arranca da inércia
protocolar e a intensifica
O momento coletivo dentro da linguagem tonal evolui cada vez mais para um
momento da comparação de tudo com tudo, para a nivelação e a convenção. (...) o
que uma vez, na música, era linguagem, tornou-se mera repetição. (...) parece ter
uma tendência um tanto mecânico-matemática”. (ADORNO, Por que é difícil a
Nova Música.)
A rigor não se pode catalogar, portanto, o texto debordiano nem como ensaio,
nem como fragmento, nem como enciclopédia ou suma dialógica. A classificação não
tentada por nós esbarra nas peculiaridades incontornáveis do texto desviante, em sua
forma absolutamente desconcertante de se renovar internamente a partir do recurso a um
procedimento simples mediante o qual dialoga com a tradição e extrai o novo do velho.
A maneira como põe o discurso em movimento de autoconstrução, de determinação
autônoma e livre. Melhor seria falar em desvio, e o desvio não faz nenhum sentido fora
do sistema de regras criado com uma função própria, com fins específicos no contexto
de uma obra particular. Sendo assim, e se é verdade o que afirmamos, a obra de Debord
caracteriza-se pela singularidade com que trata assuntos universais, pela forma como se
desvia da forma, pela peculiaridade de sua composição não redutível a nenhuma norma
previa de construção textual, não fixada em nenhuma regra considerada sacrossanta,
mas na liberdade de invenção através da qual o jogo, a guerra, a ironia, o
enciclopedismo, o desvio sistemático do sistema, a deriva psicogeográfica do todo,
(considerado o texto como uma urbe psicoliterária), o rearranjo desconstrutivo das
288
A astúcia da dialética é o desvio e o desvio é o estilo. Este, por sua vez, é o ponto
em que a arte e pensamento se encontram, fecundam-se mutuamente permitindo a
destruição do efeito espetacular que enfeitiçava a linguagem impedindo-a de relacionar-
se com o conteúdo da experiência de forma própria e original. Um resgate da força
simbólica da linguagem através de um procedimento radical que se serve da arte para
recuperar a valência crítica da filosofia.
CONSIDERAÇÕES FINAIS:
uma promessa que ainda possamos resgatar. Em Debord, o desvio resgata alguma
esperança de construção a partir de seu comércio com o passado do qual extrai o
impulso para a transformação do presente? Para se lançar além do presente tomando pé
no que lhe antecede, no que lhe justifica e naquilo que o constitui? Rumar para um
presente possível através de um desvio na direção que, desde um passado próximo,
corporificado no corpo histórico da tradição filosófica, o presente tomou? Um presente
em que as forças da separação atingem sua expressão universal, sua vigência cega a
serviço de uma necessidade de administração absoluta da vida. De negação da vida. De
sua inversão em mercadoria e no valor abstrato, totalizante da mercadoria. A
mercantilização precisa de uma resposta ilustrada e astuta, o combate contra a miséria
presente necessita de um amplo conhecimento que se possa resolver em ação.
razão tomou sob o comando do poder. Que os frutos da criação humana foram
apropriados por forças particulares que usaram o resultado do trabalho social humano
em função de interesses privados. E a razão só pode construir o seu reino se for capaz de
alimentar a esperança de um tempo futuro com as chamas da revolta passada: lá onde
fomos derrotados repousa a semente de nossa possível vitória. Nos termos de Debord –
que aqui repetimos, a propósito – significa ousar abordar o passado com o interesse
daquele que não deseja mais “viver conforme as instruções daqueles que atualmente
detêm a produção econômica e o poder de comunicação com o qual ela se armou.”
(DEBORD, 2002, 49). Lembrar que o Messias não apenas proclama um reino possível,
mas combate um mal presente não é saudosismo que busca refúgio na tradição. É fazer
a imagem de uma recusa e resistência passada brilhar no presente em um momento de
necessidade. Portanto, “O dom de atear ao passado a centelha de esperança pertence
somente àquele historiador que está perpassado pela convicção de que também os
mortos não estrão seguros diante do inimigo, se ele for vitorioso. E esse inimigo não
tem cessado de vencer.” (BENJAMIN, idem.)
Quase como fragmentos em um sistema por conceber que não se congela e não se
resigna à feitura acabada do dogma, o estilo de Debord nos lembra das “sementes
literárias” de Novalis, seus grãos de pólen a serem acolhidos e estudados como “textos a
pensar”; ou então os fragmentos de Schlegel compostos como forma genuína da
filosofia crítica, que não pode aceitar e deve estar pronta para combater a letargia de
qualquer pensamento que se apresente como um sistema fechado. Pois a filosofia
crítica, instrumento de expressão e meio pelo qual se efetiva a revolta do indivíduo
contra o universo de imitação que o escraviza, só existe como um sistema em vias de
realização, como um 'sistema em deriva' , uma enciclopédia de proposições desviadas e
recortes descontextualizados reunindo várias épocas, em cuja composição dialógica do
texto desviante superam os momentos fraturados do tempo espetacular; um sistema,
enfim, desviado do sistema abstrato que pairava como uma totalidade vazia sobre os
atores passivos, escravos das estruturas, confiantes no futuro, cegos para o presente.
Não um corpo coerente de ideias enrijecidas, ou um sistema reificado, governado por
uma regra alheia ao seu próprio movimento, mas um conjunto articulado de elementos
interdependentes, orbitando em torno de suas regras provisórias e singulares, ensaiadas
como mediações abertas entre a expressão que se alça ao plano universal da revolta e
293
sua forma de construção, que lhe segue os passos a cada nova intervenção criativa. Eis o
desvio mais uma vez traduzido.
67
Confere: Fen Esp, Livro IV.
294
Rüdiger Safranski em seu livro sobre Schopenhauer nos deixou um belo resumo sobre o
movimento histórico de ocultamento, descoberta e estranhamento do sujeito racional
que nos trouxe até a desilusão. (cf. SAFRANSKI, P 209.)
Tanto o senhor quanto o escravo exercem suas vontades como interesses privados
contrapostos, falsamente conciliados pelos mesmos motivos que os norteiam: o domínio
e a submissão. Tais vontades chocam-se na sociedade civil até encontrarem o espelho
burocrático no qual se reconhecem como desejo abstrato de poder traduzido na forma
jurídico-administrativa do controle político. As vontades aprendem a falar a mesma
língua, a obedecer às mesmas regras: mostram-se vontades de um senhor: a força
administrativa de retificação e equalização do múltiplo pela imposição da forma padrão
da regra consensual e universal. É contra essa regra que se deve mobilizar o texto, é ela,
em última instância, que fornece os meios para a sua própria deposição pelo desvio. Ela
representa a universalização da perda e, portanto, sua subversão pode significar a
conquista universal da liberdade criativa que fundaria a nova verdade da filosofia.
de las cosas en que él pensaba es patriarcal: el intelecto que vence a la superstición debe
mandar sobre la naturaleza desencantada. El saber, que es poder, no conoce límites, ni en la
esclavización de las criaturas ni en la condescendencia con los amos del mundo. Del mismo
modo que está a la disposición de los objetivos de la economía burguesa en la fábrica y en
el campo de batalla, se halla también a la disposición de los emprendedores sin distinción
de origen. Los reyes no disponen de la técnica más directamente que los comerciantes: ella
es tan democrática como el sistema económico con el que se desarrolla. La técnica es la
esencia de tal saber. Éste no aspira a conceptos e imágenes, a la felicidad del
conocimiento, sino al método, a la explotación del trabajo de otros, al capital. Las muchas
cosas que, según Bacon, todavía reserva son a su vez sólo instrumentos: la radio como
imprenta sublimada; el avión de caza como artillería más eficaz; el telemando como la
brújula más segura. Lo que los hombres quieren aprender de la naturaleza es la manera de
servirse de ella para dominarla por completo; y también a los hombres. Nada más que eso.
Sin consideración hacia sí misma, la Ilustración ha consumido hasta el último resto de su
propia autoconciencia. Sólo el pensamiento que se hace violencia a sí mismo es lo
suficientemente duro para triturar los mitos. Frente al triunfo actual del sentido de los
hechos, incluso el credo nominalista de Bacon resultaria sospechoso de ser una metafísica y
caería bajo el veredicto de vanidad que él mismo dictó sobre la escolástica. Poder y
conocimiento son sinónimos. La estéril felicidad del conocimiento es lasciva para Bacon,
tanto como para Lutero. Lo que importa no es aquella satisfacción que los hombres llaman
verdad, sino la “operación”, el procedimiento eficaz. “El verdadero fin y la verdadera
función de la ciencia” residen no “en discursos plausibles, amenos, memorables o llenos de
efecto, o en supuestos argumentos evidentes, sino en el actuar y trabajar, y en el
descubrimiento de datos antes desconocidos para una mejor provisión y ayuda en la vida”.
No debe haber ningún misterio, pero tampoco el deseo de su revelación. (ADORNO E
HORKHEIMER. Dialéctica de la ilustración. Fragmentos filosóficos. Pp. 19-21. Grifos
nossos).
Defender a indeterminação como valor pode funcionar como uma força ideológica
que isenta a todos do compromisso com o significado, fornecendo suporte ao próprio
projeto de poder que nivelou tudo pelo valor abstrato do significante. Conhecer as
artimanhas de uma linguagem universalizada que carrega em sua estrutura um valor de
troca que anula todo sentido por permitir qualquer sentido, impondo a toda a expressão
o vazio do nivelamento, constitui condição fundamental para empreender uma crítica da
300
razão não contaminada pelas falsas escolhas determinadas pela própria lógica da
submissão e do controle. Foi exatamente isso que acompanhamos em Debord. De certa
forma a astúcia da dialética nos disse isso: que há sempre a possibilidade de se reverter
as forças de controle, de se vivificar o banal e restaurar a possibilidade de experiência
autêntica através dos próprios meios que a destruíram. Há sempre uma esperança na
desilusão. Há sempre uma razão à espreita que se consegue sobrepor aos subprodutos de
seus próprios projetos irrealizados.
... a crença letal no infinito (...) pode mais uma vez voltar à distinção entre o valor de
uso e o valor de troca. O valor de uso é limitado e específico, ao passo que o valor
de troca é potencialmente infinito. Hoje, de maneira bem alarmante, com o trabalho
de Deleuze, Badiou, Zizek e outros, a noção de infinito está sendo reabilitada –
naturalmente não como no sonho americano, mas mesmo assim, creio eu, de odo
desencaminhado. (EAGLETON. A tarefa do Crítico. P. 97. Grifos nossos.)
301
O que está em jogo em todos os lances realizados pela astúcia debordiana são as
formas humanas de vida, não apenas a interpretação de símbolos ou a consciência dos
simulacros. Pois os simulacros são de fato a roupagem ideológica de forças reais de
dominação, de submissão e separação, de perda do ser genérico, de dissolução dos laços
sociais, de impossibilidade de afirmação do sujeito e suas vontades, guiadas pela razão,
em liberdade e autonomia.
302
BIBLIOGRAFIA
Bibliografia primária
A recente publicação das Obras Completas, com cerca de 2.000 páginas, de Guy
Debord (1931-1994) fornece-nos uma excelente ocasião para uma viagem para além da
sua lenda situacionista e que permita observar a prodigiosa coerência de um pensamento
que, por nunca ter renegado a sua dimensão revolucionária, oferece-nos as melhores
chaves para compreender a sua obra e o nosso tempo.
303
DEBORD, Guy. Panegírico. Tradução de Edison Cardoni. São Paulo: Conrad Editora
do Brasil, 2002.
_____________. A Sociedade do espetáculo; seguido do prefácio à 4ª edição italiana.
Comentários sobre a sociedade do espetáculo. Tradução de Estela dos Santos Abreu.
Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
_____________. All the King’s Men. Tradução de Emiliano Aquino. In: “Poiesis,
trabalho e cultura”, endereço eletrônico:
http://emilianoaquino.blogspot.com.br/2008/01/all-kings-men.html.
Esta edição em um volume nos fornece a obra e a vida de Guy Debord (1931 –
1994) através de todas as suas manifestações , legíveis e visíveis: tratados, artigos de
revistas, cartazes, fotografias, planos “psico-geográficos”, colagens, grafites, letras de
canções, cartas, apresentadas em sua ordem cronológica. Encontra-se aqui A Sociedade
304
Como dissemos acima, tal edição constitui nossa base de operações e dispensaria
qualquer bibliografia adicional, senão aquelas fontes secundárias que podem servir de
referência para discussões acerca de nossa abordagem da estratégia debordiana. No
entanto, nos servimos de textos das mais variadas procedências e traduções para melhor
situarmos o sentido da construção estilística de Debord. Sempre que encontramos uma
boa tradução em português nos servimos dela para as citações.
tabuleiro inventado por Debord com comentários estratégicos. Traduzido para o ingles
por Donald Nicholson-Smith como A Game of War e publicado em uma caixa junto
com o tabuleiro e as peças.(Atlas Press, 2007).
—— Des contrats (Le Temps Qu’il Fait, 1995). Contratos dos filmes de Debord.
Jean-François Martos’s Correspondance avec Guy Debord (Le Fin Mot de l’Histoire,
1998) Inclui cartas entre Debord e alguns de seus colaboradores de 1981-1991. Este
livro não é mais possível de ser encontrado, tendo sido legalmente condenado por
infringir os direitos de cópia da Librairie Arthème Fayard. Foram feitos arranjos junto a
viúva de Debord Alice (Becker-Ho) Debord para serem publicadas na edição de suas
obras completas citada acima.
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Debord também traduziu os seguintes textos para o francês: Protestation devant les
libertaires du présent et du futur sur les capitulations de 1937 (texto da mais radical
corrente anarquista durante a Guerra Civil espanhola: Champ Libre, 1979); Stances sur
la mort de son père (poema clássico espanhol por Jorge Manrique: Champ Libre, 1980;
Le Temps Qu’il Fait, 1995); e Sanguinetti’s Véridique rapport .
Obras cinematográficas:
Sur le passage de quelques personnes à travers une assez courte unité de temps (Dansk-
Fransk Experimentalfilmskompagni, 1959). 20 minutes.
Réfutation de tous les jugements, tant élogieux qu’hostiles, qui ont été jusqu’ici portés
sur le film “La Société du Spectacle” (Simar Films, 1975). 25 minutes.
In girum imus nocte et consumimur igni (Simar Films, 1978). 100 minutes.
Debord também fez um filme de 60 minutos Guy Debord, son art et son temps,em
colaboração com Brigitte Cornand (Canal Plus, 1994). O roteiro não está incluído em
Oeuvres cinématographiques complètes ou nas Complete Cinematic Works.
Após ter ficado indisponível por aproximadamente vinte anos, as versões francesas
originais de todos os filmes de Debord ( incluindo o vídeo de Cornand) estão agora
disponíveis em uma caixa contendo três DVDs
Bibliografia Secundária
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Rezende. São Paulo: ed. Conrad, 2011.
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1993. Citado por SOKAL, Alan; BRICMONT, Jean. Imposturas intelectuais. O abuso
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Godofredo Rangel e Monteiro Lobato. Companhia Editora Nacional. São Paulo:1938.
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Paulo Monteiro, Revisão: Mary Amazonas Leite de Barros; Produção: Ricardo W.
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http://emilianoaquino.blogspot.com.br/2008/01/all-kings-men.html
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