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Toda liberdade é regulada?

Karla Saraiva

Liberdade é uma palavra que vem sendo usada de modo demasiado livre, há muito
tempo. Existe liberdade na Revolução Francesa, existe liberdade na Teologia da Libertação,
existe liberdade no liberalismo e no neoliberalismo, existe liberdade em Foucault. Neste
breve texto, gostaria de discutir um pouco a questão da liberdade no liberalismo e no
neoliberalismo e buscar entre as frestas o que se poderia pensar como liberdade a partir de
Foucault.
De saída, já coloco minha perspectiva teórica sobre o tema: nenhuma liberdade é
absoluta, a liberdade não é um estado último a ser alcançado, mas um processo em contínua
transformação. Penso do que melhor de liberdade é falarmos em espaços de liberdade. E
parece-me que a partir de uma perspectiva foucaultiana, poderíamos entender que sua
proposta de pensarmos diferente do que se pensa teria como propósito ampliar os espaços
de liberdade por entre os quais nos movemos. Se tudo é perigoso, parece-me que a escolha
dos perigos a enfrentar esteja relacionada com a possibilidade de ampliação dos espaços de
liberdade, da redução da potência das tecnologias de dominação.
Retomando o curso Nascimento da Biopolítica, observamos que ali Foucault
apresenta a liberdade inventada pelo liberalismo no século XVIII como uma naturalidade
do mercado. A liberdade inventada pelo liberalismo consistia, simplesmente, em permitir
que o mercado funcionasse de modo espontâneo, sem intervenção. Nesse sentido, a
liberdade seria deixar que as coisas acontecessem sem intervenções.
Já ao analisar o neoliberalismo, Foucault mostra que um dos deslocamentos que se
fizeram no pensamento liberal para constituir o pensamento neoliberal foi justamente o de
uma liberdade que deve ser produzida. A intervenção já não deve ser evitada, mas deve ser
realizada para produzir a liberdade. A produção de sujeitos livres, capazes de competirem
no mercado é o substrato necessário para o crescimento do neoliberalismo. Parece-me que
nesse contexto podemos falar das liberdades reguladas. A liberdade neoliberal se resumiria,
segundo Lazzarato, a escolha entre diferentes opções previamente construídas. O
neoliberalismo neutralizaria a potência da invenção e reduziria o exercício da liberdade a
uma escolha tal como se escolhem produtos em um supermercado. O neoliberalismo em um
mesmo movimento estaria engajado na produção de subjetividades capazes de realizar
escolhas dentro de um menu de opções e na produção da ideia de que nada poderia ser
inventado, bloqueando o acontecimento. Nesse sentido, parece-me que faz sentido falar em
uma liberdade regulada, utilização a noção de regulação que Foucault associa à norma da
seguridade, no curso Segurança, Território e População. A regulação estaria associada à
seguridade, enquanto a regulamentação estaria associada à disciplina. A regulamentação
determina o que deve ser feito, a regulação indica o que pode ser feito. Na regulamentação
penso que só existem duas possibilidades: acatar o regulamento, adequar-se à norma, ou
escapar, seguir as linhas de fuga. Escapar do regulamento pode não ser, necessariamente,
da ordem da diferença, da invenção, tendo em vista que produzir a diferença, que
efetivamente afasta-se da norma vigente, é bastante raro. Contudo, será pelo menos da
ordem da repetição, que retoma a norma e produz ligeiras transformações. A repetição,
nesse sentido, parece-me que pode ser entendida como as pequenas revoltas cotidianas de
que nos fala Foucault. A repetição, conforme mostra Lazzarato, é distinta da reprodução,
que nada desloca.
Na regulação, que apenas indica o que é possível ser feito, existe uma gama de
possibilidades aceitáveis, que não se caracterizam por linhas de fuga, que estão dentro da
região da normalidade. Portanto, a governamentalidade neoliberal, que enfatiza a regulação,
produz uma liberdade regulada. Entendo, junto com Lazzarato, que a liberdade oferecida
pelo capitalismo contemporâneo é a escolha entre possíveis que outros instituíram (os
mundos que as instituições criaram), não compreendendo a invenção, nem o direito de criar
mundos, de formular problemas e inventar soluções (reservado às instituições).
Desse modo, pode-se perceber que a regulação, ao se abrir para um menu de opções,
trabalha com relações de poder mais sutis, que recobrem o caráter coercitivo e apresentam
uma determinada noção de liberdade, que estaria ausente da regulamentação. Apresentar
uma gama de opções desejáveis e aceitáveis minimiza a chance de que a conduta dos
sujeitos escape do controle. A regulamentação, com suas imposições rígidas, exercia um
poder muito dispendioso, uma poder muito sujeito a questionamentos e ao aparecimento de
contracondutas e revoltas. A flexibilização e a multiplicação das ações válidas, adequadas,
legitimadas oferecidas pela regulação abriram espaços de liberdade que anteriormente não
eram possíveis. Contudo, a ampliação desses espaços de liberdade torna o poder mais
econômico, necessitando menores investimentos para conter questionamentos e impedir o
aparecimento de contracondutas. Ampliam-se os espaços de liberdade para conter as linhas
de fuga. As liberdades reguladas seriam uma forma de condução das condutas que
permitiria uma economia no exercício de poder e uma maximização dos resultados.
Foucault poucas vezes se manifesta sobre o tema da liberdade, a não ser para
apresentar entendimentos que existem sobre ela. Parece-me que aonde esse tema aparece de
modo mais explícito será no texto O Sujeito e o Poder (p.244): “o poder só se exerce sobre
‘sujeitos livres’, enquanto ‘livres’ – entendendo-se por isso sujeitos individuais ou coletivos
que têm diante de si um campo de possibilidade onde diversas condutas, diversas reações e
diversos modos de comportamento podem acontecer. Não há relação de poder onde as
determinações estão saturadas”. E é nesse entendimento que busco apoio para pensar a
liberdade não como um produto, um fim, mas como possibilidades de ação. Evidentemente
que não seria possível pensar numa liberdade ideal – o que equivale a dizer total, sem
qualquer restrição –, mas uma liberdade prática, o que implica pensar em práticas de
liberdade. As práticas de liberdade estariam implicadas com a possibilidade de mudarmos
nossa história, de nos colocarmos “nas pequenas revoltas cotidianas”. Não mais uma
liberdade permitida, concedida, mas a criação de contracondutas. Criações que não são
autoria de um indivíduo, mas criação social.
Conforme Foucault: “Si un individu peut rester libre, si limitée que puisse être sa
liberté, le pouvoir peut l'assujettir au gouvernement. Il n'est pas de pouvoir sans refus ou
révolte en puissance”. A revolta e a recusa não constam no menu das liberdades reguladas.
E nesse sentido considero útil manter a noção de liberdade regulada como aquela
produzida pelas regulações neoliberais, pelas governamentalidade do novo capitalismo.
Essa liberdade regulada é uma liberdade autorizada, que não se contrapõe a uma liberdade
“verdadeira”, que estaria no mundo das idéias, mas a outras práticas de liberdade não
autorizadas, liberdades anormais, liberdades delinqüentes. Práticas de liberdade limitadas,
constrangidas, mas que permitem ampliar os espaços de liberdade para além dos limites
estabelecidos pelas regulações.
Finalizando esta precária reflexão, trago as palavras de Larrosa no texto A
libertação da liberdade:
Se a noção comum de liberdade é a de um livre arbítrio ou de uma
vontade livre, [...] o que habitualmente se pensa como liberdade é a
potência do sujeito [...]. Por isso a liberdade se representa como a
propriedade ou atributo de um sujeito que é dono de seus pensamentos, de
seus atos, de seu futuro; de um sujeito que é consciente de si mesmo,
dono de si mesmo. Mas a liberdade foucaultiana não é a captura racional,
reflexiva e global da realidade, por parte de um sujeito soberano com
vistas a dominá-la, mas que está, ao contrário, do lado do acontecimento,
da experimentação, da transgressão, da ruptura, da criação.

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