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Onde está a memória?

 Houve esse ponto de dificuldade na última conversa com o Valdei. Para ele, a
memória é um existencial do Dasein e, portanto, não pode ser vista como um
ente – assim como a historicidade e a temporalidade não poderiam o ser.
Assinalou que a memória não se reduz à dimensão ôntica, pois ela é ôntico-
ontológica. Também assinalou que ela compõe, enquanto existencial, uma
dimensão igualmente originária das estruturas da abertura – ressaltou que não
pode haver compreensão e disposição sem memória, por exemplo.

Minha resposta começa lembrando as estruturas que compõem a


existencialidade do Dasein segundo Heidegger. De acordo com Márcia Schuback,
“existencial remete às estruturas que compõem o ser do homem a partir da existência
em seus desdobramentos advindos da presença” (ST, p.563). Existencial não se
confunde com as “categorias”, pois estas se referem às determinações dos entes.
Por outro lado, Heidegger também mobiliza a ideia de existenciário, o qual,
segundo a mesma tradutora, “indica a delimitação fatual do exercício de existir que
sempre se propaga numa pluralidade de singularidades, situações, épocas, condições,
ordens, etc.” (p.562). Existenciário refere-se, portanto, às possibilidades abertas no
próprio movimento de ser, de acordo com a facticidade da própria existência (estar-
lançado, um projetar que atualiza o ter sido).
A existencialidade da existência constitui-se pelos existenciais e pelas
(possibilidades) existenciárias.
A questão então é saber onde está a memória nessa rede de estruturas.

Antes, porém, é importante considerar a questão do ôntico e do ontológico.


Como se sabe, Heidegger reserva o termo “ôntico” para se referir à descrição dos
entes, e “ontológico” para a dimensão do ser, dos modos de ser. Porém, o ente não é
só uma coisificação destituída de qualquer ontologia. Uma cadeira é um ente, que
possui o modo de ser do simplesmente dado. Portanto, mesmo o ente que não pertence
ao modo de ser do Dasein é também ôntico-ontológico.
Por isso, é preciso afastar de saída a ideia de um suposto alinhamento entre,
por um lado, existencial e ontológico, e por outro, existenciário e ôntico. Esses termos
tratam de coisas distintas. Pois na medida que só o Dasein existe, só a ele compete as
estruturas da existencialidade. Já o par ôntico/ontológico indica regiões distintas da
análise, em função da “diferença ontológica” entre ser e ente; o par diz respeito,
portanto, às diferentes entificações – sendo o Dasein o ente privilegiado por possui
um primado ôntico-ontológico na busca pelo sentido do ser.

Não há dúvidas de que a historicidade é apresentada como um existencial em


Ser e Tempo. Isso significa que ela pertence originariamente ao modo de ser do
Dasein, e compõe as estruturas fundamentais da existencialidade – que se desvela
como cura. A temporalidade, enquanto o sentido ontológico da cura, temporaliza-se
facticamente no mundo histórico. Por isso Heidegger chega a dizer que a historicidade
é na verdade apenas uma dimensão mais concreta da temporalidade originária.
Historicidade indica o acontecer do Dasein (isto é, a temporalização de sua
temporalidade) na sua extensão entre nascimento e morte. Essa extensão compõe-se
de uma dinâmica entre movimentação e permanência – e portanto responde ao
problema do “nexo de vivências” de uma maneira mais própria (do ponto de vista
existencial). Compreender o sentido ontológico do acontecer humano significa
alcançar uma compreensão ontológica da historicidade (ST, p. 466/375).
O acontecer da presença se dá faticamente no mundo histórico. Ela se
temporaliza, portanto, no modo da historicidade. Esse acontecer constitui-se na
dinâmica entre “extensão, movimentação e permanência específicas da presença”
(p.466/375). É a partir dessa estrutura existencial do acontecer como historicidade que
surge a possibilidade existenciária de abertura (compreensiva e disposta) para o seu
próprio ser-histórico.

A memória, enquanto fenômeno existencial, pertence à constituição histórica


do ser do homem. A dificuldade está em precisar esse pertencimento.
Para responder essa pergunta, será necessário uma abordagem que veja na
memória não apenas o conjunto de propriedades e categorias que conformam sua
dimensão ôntica, mas analisá-la em relação ao ser-histórico (ontológico).
A historicidade (em sentido próprio) não é um ente, mas um modo de ser
(existencial) próprio do ser-no-mundo. Será que o mesmo vale para a memória? Ou
ela seria, mais exatamente, uma possibilidade existenciária que atualiza (facticidade) a
estrutura existencial da historicidade?

A historicidade é o acontecer da presença, que se temporaliza na dinâmica entre


extensão, movimentação e permanência que lhe são próprias. Essa dinâmica perfaz
então o próprio movimento de ser, o que se dá também como abertura. A memória
seria, então a efetivação dessa abertura, e

A memória, afinal, onde se situa nessa rede conceitual?


Não há dúvidas de que, conforme a descrição de Ser e Tempo, a historicidade
é um existencial do Dasein. “A existência é histórica” – não apenas no sentido de que
ela se encontra em uma história, mas de que ela existe sempre no modo da
historicidade. O fenômeno da cura já traz em sua própria constituição a determinação
do ser-histórico (como um de seus momentos estruturantes).
A historicidade pertence à constituição ontológica do Dasein. Ao contrário dos
seres simplesmente dados, a existência humana acontece na forma de uma dinâmica
entre movimento e permanência, que se dá facticamente no modo do ser-histórico.
Essa dinâmica de movimento e permanência própria do acontecer da
existência é possível graças à sua constituição histórica fundamental. Mas como essa
dinâmica se manifesta no mundo fático? Que fenômenos surgem a partir dessa
constituição existencial do ser histórico? E como a historicidade pode se abrir à
compreensão do ente que coloca em jogo seu próprio ser(-histórico)? A resposta a
essas perguntas

A memória é exclusiva do modo de ser do Dasein? Ou entes que não são


Dasein são também portadores de memória? A resposta a essa questão vai variar
conforme o significado e a extensão atribuída à memória.

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