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Artigo Autoficção Ana C
Artigo Autoficção Ana C
AUTOFICÇÃO
O termo teórico autoficção foi cunhado por Serge Doubrovsky, em
1977, na quarta capa de seu romance Fils (1977). Segundo o autor, esse
termo designaria práticas ficcionais de fatos reais da vida do próprio autor.
Doubrovsky criou o neologismo, pois se sentiu desafiado por Philippe
Lejeune, que em O pacto autobiográfico (2008) questiona-se se seria
possível um romance, em que o narrador-personagem assumisse o nome
próprio do autor.
A partir da criação do termo teórico, apareceu um surto de teorização
em torno desse vocábulo. Principalmente na França, onde o termo surgiu; ao
que tudo indica por causa do grande problema, como bem apontou Antoine
Compagnon, do demônio da Teoria, em seu livro de título homônimo. A
despeito disso, esses teóricos concordam ao menos no aspecto de que a
autoficção têm como características serem narrativas descentradas,
fragmentadas e com sujeitos instáveis.
O segundo teórico de importância a tratar da autoficção seria Vicent
Colonna, que defendeu em 1989 uma tese sobre autoficção, distinguindo
tipologias dentro dessa prática: autoficção fantástica, biográfica, especular,
intrusiva. Têm em comum apenas coincidir o nome do autor, narrador e
personagem. Essa tese foi publicada somente 15 anos após a criação do
termo, quando os debates já se encontravam acirrados.
É intrigante que apesar do vocábulo já constar dos dicionários
franceses, ainda não haja um consenso acerca de seu significado. A
definição que consta no dicionário Robert Culturel: “Ficção de fatos e
acontecimentos estritamente reais. (2014.P120)”. Como bem aponta
Doubrovsky, essa definição não pode coincidir com aquelas formuladas por
Colonna, posto que para esse a coincidência entre autor-narrador-
personagem é imprescindível.
Ainda conforme o criador do termo teórico, somente esse nome
teórico seria novo. No entanto, designaria uma prática antiga. Para
exemplificar isso, Serge aponta obras de grandes autores, como O
nascimento do dia; De castelo em castelo; Diário de um ladrão; Nadja; de
Colette; Céline; Genet; Breton, respectivamente.
A autoficção enquanto gênero; inclusive seu criador não sabe ao
certo se essa prática seria um gênero, gravita em torno de um problema.
Ainda que um escritor decida escrever suas memórias, contar sua história,
ele enfrenta um grave problema para o qual não há solução eficaz: a
falibilidade da memória, na qual entraria tanto rememoração, quanto
fabulação. A própria Ana C. reconhece isso, em uma entrevista: “A
intimidade... não é comunicável literariamente(1999.P259)”. Assim vemos
que há algo que sempre escapa.
No ensaio “A decadência da ilusão ou a morte da biografia”, de
Marcio Markendorf (2010) é apresentada uma ideia interessante e plausível.
Após a morte do autor, nada mais natural que se seguisse a morte da
biografia. Compreendendo que “a vida vê-se completamente ágrafa”
(MARKENDORF, 2010, p. 24-25), podemos afirmar que mesmo as partes
de cunho autobiográficas podem ser entendidos somente como ficção. “A
narrativa biográfica é um artifício mínimo contra a falta de sentido máxima
do mundo” (MARKENDORF, 2010, p. 19-20). Ou seja, “qualquer biografia
a respeito de um sujeito só pode ser compreendida como ficção”
(MARKENDORF, 2010, p. 24).
Desse modo, até mesmo as Confissões, de Jean-Jacques Rousseau,
poderiam ser encaradas como autoficção. O que não invalida a criação do
termo, embora possa se assemelhar à autobiografia, muitas vezes sendo
considerada um sinônimo. O que distinguiria uma da outra seria, portanto, a
intenção. Quando se pretende contar a história de sua vida, sem fabulação,
seria autobiografia. Já quando se pretende contar sua vida, sem se ater a
fidelidade, autoficção.
Outra distinção importante refere-se ao movimento realizado.
Enquanto na autobiografia se parte da vida para o texto, na autoficção se
daria o movimento inverso, do texto para a vida.
A autobiografia procederia assim, pois seria um artifício das grandes
personalidades. Famosos no geral, como cantores, políticos, etc
(MARTINS). Ainda, a autobiografia, no geral, pretende abarcar a vida da
pessoa e possui certa linearidade; bem como busca se ater ao vivido. Em
suma, um relato retrospectivo de uma vida.
Já a autoficção, seria uma escrita do presente. Esse presente marca as
fraturas absolutas do eu; engaja o leitor em suas obsessões históricas; assim,
o passado é geralmente presentificado. Desse modo, o texto é semeado de
biografemas e o procedimento da escrita aparece em primeiro plano.
LUVAS DE PELICA
O “romance” pode se enquadrar no grupo de narrativas, que segundo
Serge, são práticas de autoficção, posto que em seu conteúdo ocorre a
ficcionalização de fatos estritamente reais. Somente para citar algumas
referências diretas, tendo como exemplo passagens de Luvas de pelica: é
possível observar que a maior parte do relato se passa na Inglaterra, onde a
autora estava fazendo um mestrado em tradução literária, então.
Eu só enjôo quando olho o mar, me disse a
comissária do sea-jet.
Estou partindo com um suspiro de alívio. A paixão,
Reinaldo, é uma fera que hiberna precariamente.
Esquece a paixão, meu bem; nesses campos
ingleses, nesse lago com patos, [...]
Referências