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Título Original: Histoire de la Musique Occidentale

© Messidor - Temps Actuels, 1983


© Fayard/Messidor - Temps Actuels, 1985 para edição n ã o ilustrada.

Direitos de edição da obra em língua portuguesa no Brasil adquiridos pela


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Equipe de p r o d u ç ã o
Leila Name
SUMÁRIO
Regina Marques
Sofia Sousa e Silva
Michelle Chao
Mareio Araújo

Edição de originais SOBRE OS COLABORADORES xiii


Antônio Monteiro Guimarães
César Benjamin PREFÁCIO xvii
Brigitte e Jean Massin
índice onomástico
Isabel Grau
Nana Vaz de Castro LÉXICO MUSICAL EXPLICATIVO 1
Pedro de Moura Aragão
Os instrumentos, a orquestra, as vozes 3
Revisão Philippe Beaussant, com a colaboração de Jean-Yves Bosseur e Jean Massin
Ana Lúcia Kronemberger O solfejo e a harmonia 45
Ângela Pessoa Michèle Reverdy
Marcelo Eufrasia
As formas e os gêneros musicais 63
Projeto gráfico e editoração eletrônica Philippe Beaussant, com a colaboração de Brigitte e Jean Massin
Silvia Negreiros e de Marc Vignal
A notação e a interpretação 99
CIP - BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES D E LIVROS
Jean-Yves Bosseur

M371h Massin, Jean Primeira Parte


História da m ú s i c a ocidental / Jean 8c Brigitte Massin ; tradução de Maria
DAS ORIGENS CRISTÃS AO SÉCULO XIV 123
Teresa Resende Costa, Carlos Sussekind, Angela Ramalho Viana. - Rio de Janeiro :
Nova Fronteira, 1997 1. Pensar a música na Idade Média 125
Françoise Ferrand
Tradução de: Histoire de la musique ocidentale
2. Os primeiros cânticos da Igreja 135
I S B N 85-209-0907-8
Françoise Ferrand
1. Mús ica - História e crítica. I . Massin, Brigitte. I I . Título. 3. Técnica e notação do canto gregoriano 141
Michel Hugh
97-1719. C D D 780.9 4. A liberdade e a brecha: tropos, seqüências, dramas litúrgicos 151
C D U 78(091) Françoise Ferrand
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CLAUDE DEBUSSY
(1862-1918)

Debussy antes do prelúdio (1862-1893)


Claude-Achille Debussy nasceu em 1862, em Saint-Germain-en-Laye, em uma fa-
mília de comerciantes. Afilhado de um corretor, Achille Arosa, passou momentos
felizes em Cannes, na casa do padrinho, e ali teve dois encontros determinantes:
com a música e com o mar. Em Paris, onde os pais passaram a residir, o jovem
Debussy foi apresentado a Mme. Mauté de Fleurville, a sogra de Paul Verlaine,
excelente pianista (que se dizia discípula de Chopin) e que se propôs a dar aulas ao
menino, no qual pressentiu dons musicais.
"Devo-lhe o pouco que sei de piano", disse mais tarde Debussy. Os pais de
Claude-Achille decidiram que a carreira de pianista — virtuose, é claro! — era o
futuro que se delineava para o filho.
Em 1872, Debussy entrou para o Conservatório de Paris, onde passou por
duro aprendizado que durou doze anos. Seu temperamento independente adap-
tou-se mal ao arbitrário currículo escolar. Encontrou estima e compreensão em
alguns professores — Albert Lavignac, por exemplo, que na aula de solfejo o fez
descobrir Tannhãuser e os quartetos de cordas de Haydn e de Mozart —, mas em
outros chocou-se contra um muro de conveniências diante do qual iriam fenecer
sua fantasia e sua liberdade. Marmotel, seu professor de piano, constatou com
reprovação que "Debussy gosta mais de música do que de piano". Piores ainda
foram suas relações com Emile Durand, verdadeiro sargento no ensino de har-
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monia. Quando Debussy abandonava-se ao improviso de seus acordes preferi- As reticências de Debussy diante de certos conformismos jamais iriam ceder.
dos, recebia a tampa do piano sobre os dedos... Ambroise Thomas, diretor do A personagem de Monsieur Croche antidiletante, que criou em 1900 a partir do
Conservatório e aplaudido autor da ópera Mignon, achava a interpretação pianís- modelo da personagem de Monsieur Teste, de Paul Valéry, empenhava-se em atacar
tica de Debussy excessivamente pessoal: afinal, o jovem aluno tinha a audácia de esse tipo de instituição, conforme testemunha, por exemplo, o seguinte diálogo
tocar o Cravo bem temperado, de Johann Sebastian Bach, com expressão, e não fictício entre "Monsieur Croche" e Debussy:
como um simples exercício.
— Entre as instituições de que a França se honra, v o c ê conhece alguma mais ridícula do
Suprema decepção para os pais do futuro "virtuose", Debussy jamais ganhou
que a instituição do P r ê m i o de Roma?
qualquer prêmio de piano. No entanto, as lembranças deixadas por seus contem-
E u ousei responder-lhe que... ter ou n ã o ter ganho o P r ê m i o de R o m a resolvia a
porâneos dão testemunho de uma notável capacidade de interpretação; momen- questão de saber se u m m ú s i c o tinha ou n ã o talento.
tos de violência, de aspereza, que davam lugar a episódios de uma doçura impal-
pável. "Deus! Como aquele homem tocava bem piano!" escreveu Stravinski. A despeito do seu desdém pela competição artística, Debussy seguiu os conse-
Enquanto isso, a família Debussy renegou aquele filho indigno, que, felizmente, lhos de Vasnier e ganhou o famigerado prêmio em 1884 com a cantata L'Enfant
encontrou outros caminhos: haveria de ser compositor. Em 1880, Debussy inscre- prodigue [O filho pródigo]. Mas suportou muito mal a temporada na Villa Médi-
veu-se no curso de composição de Ernest Guiraud, jovem professor que se interes- cis. Estranhamente, suas cartas a Vasnier lembram certas páginas do diário de Ber-
sava muito por seus alunos, a ponto de tornar-se amigo deles: passeios noturnos, lioz. Perdeu muito tempo, não chegou a trabalhar e se desinteressou por tudo o
discussões nos bares, Guiraud irradiava uma simpatia que fascinou Debussy na- que o rodeava, inclusive a arte italiana. A ópera deixou-o indiferente; mencionou
queles tempos de definição e reflexão. somente um encontro com Verdi. Mesmo assim, ficou maravilhado com as obras
Reflexões bem distantes, de resto, da música que era possível ouvir na Paris de de Michelangelo e fascinado por Liszt, que se apresentara em Roma, em uma tur-
1880: época em que Carmen, de Bizet, era considerada como uma linguagem difícil né de concertos.
e Massenet obtinha grandes sucessos. O grupo da Schola Cantorum tomou como Durante esse período obscuro de gestação e exploração de si mesmo, Debussy
missão reagir contra a germanização da música, mas estava destinado a forjar um teve a premonição de suas pesquisas futuras: "Sinto a obrigação de inventar novas
novo academicismo em torno de Vincent d'Indy. Quanto às óperas de Wagner, formas. Wagner poderia me servir..."
depois do escândalo da estréia de Tannhãuser em Paris, em 1861, só era possível
conhecê-las indo a Bayreuth. Debussy foi lá em 1887, mas uma segunda estada em
A época de Pelléas (1894-1902)
Bayreuth (1889) deixou-o mais crítico, principalmente com relação ao uso exces-
sivamente rígido do Leitmotiv. De volta a Paris, Debussy freqüentou os meios literários, principalmente a Li-
Nesse período de sua vida, durante três verões consecutivos, Debussy foi con- brairie de l'Art Indépendant, na rua Chaussée-d'Antin, onde era possível encon-
tratado como "músico faz-tudo" por uma aristocrata rüssa, Mme. Von Meck, a trar Mallarmé, Gide, Claudel. Fez ali as primeiras amizades duradouras, com
famosa protetora de Tchaikovski. Professor de piano dos filhos da baronesa Von Robert Godet e Pierre Louys.
Meck, pianista acompanhador e integrante de um trio, o jovem Debussy natural- Incontestada escola do gosto no final do século, Paris era o centro de uma
mente consumiu Tchaikovski demais. Nessas temporadas, nada fazia além de to- espantosa fermentação de vida intelectual. O simbolismo, lançado com grande
car, percorrendo toda a Europa (foi até Moscou) e assistindo aos espetáculos mais rumor pelas pequenas revistas que se multiplicaram a partir de 1880, destronava
interessantes (teve a revelação de Tristan und Isolde em Viena, em 1882). Elas re- o naturalismo: era a vingança do sonho contra a "fatia de vida". Desse modo expli-
presentaram um descanso e uma abertura para o estudante um pouco gauche, ca-se o sucesso das peças de Maurice Maeterlinck, o poeta belga que tentava ex-
freqüentemente taciturno, que tinha relações tão difíceis com seus colegas do pressar o mistério das regiões subconscientes.
Conservatório. A pintura seguia o mesmo movimento que a literatura, e o impressionismo
Foi ganhando a vida como pianista acompanhador que Debussy ligou-se a sucedeu as obras de Coubert e de Daumier. Sempre como reação contra o natu-
Mme. Vasnier, a quem dedicaria as primeiras mélodies que compôs, e depois ao ralismo e com seu horror característico ao utilitarismo do século, a inteligentsia
marido desta, Pierre Vasnier, arquiteto que abriu sua biblioteca a Debussy, aju- negava a soberania da razão. Oflorescimentode diversos movimentos dá mos-
dou-o a encontrar uma disciplina de trabalho e incentivou-o a concorrer ao Prê- tras disso: esteticismo, mas também teosofía, ocultismo. O "mago" Pédalan fun-
mio de Roma. dou a ordem da Rosa-Cruz à qual aderiu Erik Satie; um dos raros compositores
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que escaparam ao interdito que Debussy haveria de lançar contra os meios musi- O texto de Maeterlinck respondia plenamente às exigências de Debussy que —
cais, Satie tornou-se um dos seus amigos mais fiéis: amizade tormentosa, mas já enfeitiçado pela ópera Tristan und Isolde, de Wagner — fugia da ópera histórica
indestrutível. ou anedótica e sonhava com personagens que "não discutissem, mas seguissem o
No final do século XIX, o internacionalismo econômico fazia-se acompanhar curso da vida e do destino".
de um internacionalismo intelectual: desejava-se desfrutar de todas as culturas. Debussy rejeitou as críticas de Pierre Louys, hostil a essa escolha, conseguiu
Durante esse período de "incubação", Debussy descobriu as magias do exotismo: o obter a autorização de Maeterlinck e pôs-se ao trabalho: a difícil elaboração de
gamelão javanés da Exposição Universal de 1889 deixou nele uma marca indelével. Pelléas et Mélisande durou quase dez anos.
Finalmente, em 1893, a descoberta de Boris Godunov perturbou-o profunda- Enquanto isso, surgiram outras obras importantes: as Chansons de Bilitis [Can-
mente: sentiu que tinha parentescos espantosos com Mussorgski, tanto na forma ções de Bilitis], os Nocturnes [Noturnos] para orquestra e a suíte dita Pour le piano
de abordar o mundo harmônico, como no desejo de modelar a forma musical [Para o piano].
segundo as necessidades de cada obra. As três Chansons de Bilitis — La Flûte de Pan [Aflautade Pã], La Chevelure [A
Até 1894 nenhuma obra capital aparece na produção de Debussy, somente es- cabeleira], Le Tombeau des Naïades [O túmulo das Naiades] — foram compostas
boços, projetos abortados — a ópera Rodrigue et Chimène [Rodrigo e Ximena], em 1897 com textos de Pierre Louys. Na verdade, o poeta havia escrito deliciosos
com texto de Catulle Mendès, poeta da moda, bem parisiense, que conhecera no pastiches de poemas gregos, afirmando que nada mais fizera do que traduzir um
café Pousset —, e alguns começos: as Arierres oubliées [Arietas esquecidas], com texto antigo até então desconhecido. Fica-se chocado com a correspondência que
poemas de Verlaine, Cinc poèmes [Cinco poemas], de Baudelaire, a Suite bergamas- existe entre aqueles textos, em que nada era afirmado, mas apenas murmurado ou
que [Suite bergamanesca] para piano, e sobretudo, o Quarteto de cordas, obra sugerido, e a poética de Debussy, que parte de um sentimento ambíguo, constituído
cíclica onde se percebe a influência de d'Indy e de Franck, mas cuja personalidade a um só tempo de reserva falsamente cândida e de audaciosa impertinência. A pri-
não escapou à perspicácia de Paul Dukas: "Tudo nesta obra é claro e claramente meira audição dessas canções teve lugar em 1900, com Debussy ao piano.
desenhado, a despeito de uma grande liberdade de forma. A essência melódica é Dois anos mais tarde, Debussy escreveu os Nocturnes, que estão na origem do
concentrada, mas de rico sabor, e suficiente para impregnar o tecido harmônico mito da "música impressionista": na verdade, no fim do século XIX, taxava-se de
de uma poesia penetrante e original." impressionismo tudo o que cheirasse a vanguarda. Criados em duas etapas, os
Depois de 1892, contudo, Debussy começou a trabalhar em uma obra sinfôni- Nocturnes obtiveram grande sucesso. O mérito dessas composições deve-se em
ca inspirada pelo célebre poema de Mallarmé: L'Après-midi d'un faune [A tarde de grande parte à instauração de um prodigioso cenário orquestral próprio a cada
um fauno]. Projetou uma composição em três partes: um prelúdio, um interlúdio Nocturne: uma orquestra sem metais para Nuages [Nuvens], que desenrola seu
e uma paráfrase. Somente o prelúdio foi composto. Sua execução, em 1894, valeu lento cortejo de acordes em torno de uma parte central animada por uma flauta;
a Debussy o primeiro sucesso público. um brilhante scherzo, ao contrário, para Fêtes [Festas], verdadeira exaltação do
No prelúdio à L'Après-midi d'un faune, a liberdade da estrutura, de que parti- ritmo; e, para Sirènes [Sereias], um coro de vozes femininas que Debussy tratou de
cipam a um só tempo a forma sonata, a forma Lied e o procedimento da variação, forma instrumental, misturando coro e orquestra: por esse motivo, esse terceiro
alia-se a uma maravilhosa flexibilidade orquestral: deslocamento contínuo das fi- Nocturne, infelizmente, é pouco tocado.
guras temáticas pela orquestra em movimento; utilização sutil das cordas, não Na suíte Pour le piano (1901) — prélude, sarabande, toccata —, Debussy dá
mais tratadas tradicionalmente como material de base da orquestra, mas encarre- mostras de um desejo de arcaísmo, procurando ir ao encontro da tradição dos
gadas de conformar diferentes luminosidades, tudo isso dentro de uma profunda cravistas do século XVIII. Aliás, ele se vale do procedimento de repetição melódica,
unidade de linguagem. renovando-a por meio de luminosidades harmônicas sempre diversas.
Certo dia de maio de 1893, Debussy saiu do teatro Bouffes Parisiens encantado Outro acontecimento importante: em 1899, Debussy casara-se com uma en-
com as réplicas da nova peça de Maeterlinck, Pelléas et Mélisande [Péleas e Mefi- cantadora jovem parisiense, de origem bastante humilde, chamada Lily Texier. Na-
sandra]. Buscando, desde os anos do Conservatório, um poeta que soubesse "dizer quela época, as soirées musicais nos salões em que Debussy executava obras de
as coisas pela metade", Debussy acabara de descobrir finalmente o texto ideal para Wagner ao piano — na casa de Ernest Chausson —, algumas aulas particulares e
compor a sua ópera. A peça era uma transposição do mito de Tristão e Isolda: o uma quantia fixa que lhe era paga pelo editor Hartmann permitiam que o compo-
amor irresistível de dois jovens, interditado pela presença de um marido idoso e sitor trabalhasse em Pelléas et Mélisande. A morte de Hartmann, em 1900, foi um
violentamente ciumento, só pode realizar-se com a morte. duro golpe para ele. Mas, depois do sucesso dos Nocturnes, o diretor da Revue
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Blanche — uma revista de vanguarda — propôs-lhe escrever crítica musical: foi Conservando uma profunda admiração por certas páginas de Wagner, Debus-
então que nasceu Monsieur Croche. sy insurgiu-se contra um wagnerismo excessivamente ardente e observou com hu-
Em 27 de abril de 1902, depois de uma série de dificuldades, das quais a querela mor, na saída de uma representação da Tetralogía: "Como essas pessoas com capa-
de Debussy com Maeterlinck não foi a menor, foi apresentada pela primeira vez a cete e peles de animais se tornam insuportáveis na quarta noite!... Imaginem, elas
ópera Pelléas et Mélisande, no Théâtre de l'Opéra Comique de Paris. nunca aparecem sem seu maldito Leitmotiv.."
Cinco atos, dezenove quadros: Debussy adotara musicalmente a técnica wagne- Nesse período, Debussy compôs muito, principalmente para piano: as Estam-
riana da continuidade: as cenas encadeiam-se sem interrupção, ligadas por interlu- pes [Estampas]: Pagodes [Pagodes], La Soirée à Grenade [A noite em Granada],
dios. Os Leitmotiv, mais elaborados do que em Wagner, por vezes verdadeiros temas Jardins sous la pluie [Jardins sob a chuva]; as Images [Imagens]: Rejlets dans l'eau
que se prendem aos personagens, evoluem de acordo com a progressão psicológica. [Reflexos na água], Hommage à Rameau [Homenagem a Rameau], Mouvement
O estilo vocal, próximo de um recitativo melódico, linear, sem grandes saltos, [Movimento]; Children's Corner [O recanto das crianças], seis fragmentos infan-
respeita o fraseado e a acentuação tônica da língua francesa. A rítmica bastante tis escritos para sua filha, Chouchou, que lhe fora dada por sua segunda mulher,
flexível e a orquestração sutil sustentam uma rara intensidade dramática; tudo é Emma Bardac; dois hvros de Préludes [Prelúdios, 1908 e 1913], cada qual com
apenas sugerido, nada afirma-se graças a um "efeito" qualquer. O próprio Debussy doze fragmentos bem curtos, cuja estrutura depende apenas de uma incitação
declarou durante uma entrevista: poética — procedimento semelhante ao que havia orientado o Prélude à l'Après-
midi d'un faune. A escrita pianística contrastada e a escolha harmonica que se
Quis que a ação nunca cessasse, que ela fosse contínua, ininterrupta. A melodia é anti¬
aplica a criar um cenário sonoro próprio a cada peça dão aos Préludes um encan-
lírica. E l a é impotente para traduzir a mobilidade das almas e da vida. Nunca consenti
que, por efeito de exigências técnicas, minha m ú s i c a acelerasse ou retardasse o movi-
to poético que não é desmentido pela popularidade dessas peças: é impossível
mentos dos sentimentos e das paixões dos meus personagens. E l a se ofusca sempre que resistir à sucessão de acordes das Danseuses de Delphes [Dançarinas de Delfos], à
c o n v é m deixar aos personagens inteira liberdade para seus gestos e gritos, para sua ale- tarantela das Collines d'Anacapri [Colinas de Anacapri], ou à canção arcaica de La
gria e sua dor. Fille aux cheveux de lin [A moça de cabelos de finho]...
Em 1915, Debussy compôs Douze études [Doze estudos] na tradição de Chopin
Na primeira representação, o caos foi tamanho que a polícia teve que mtervir.
e de Liszt, referindo-se, cada um deles, a uma dificuldade pianística particular:
A réplica de Mélisande "Não sou feliz", toda a platéia urrava: "Nem nós." Somente
Pour les Tierces [Vaia as terças], Pour les Degrés chromatiques [Para os graus cromá-
alguns espíritos elevados — Valéry, Mfrbeau, Régnier, Toulet — ousaram tomar a
ticos], etc. O mais surpreendente desses estudos — Pour les Sonorités opposées [Pa-
defesa de Debussy que, entrincheirado no gabinete do diretor do teatro, não quis
ra as sonoridades opostas] — põe em evidência todas as possibilidades acústicas
ver ninguém. Corajosamente, o maestro André Messager segurou a batuta até o
do piano e nisso é o augúrio de uma preocupação que se tornaria corrente em
fim, e depois sufocou-se em lágrimas atrás da cortina abaixada. O diretor do Con-
meados do século XX — Messiaen, depois Boulez, Stockhausen etc. A suíte para
servatório, Théodore Dubois, proibiu que os alunos assistissem às récitas da ópe-
dois pianos En Blanc et noir [Em branco e preto, 1917] veio pôr um ponto final
ra. E Vincent d'Indy escreveu: "Esta música não viverá, porque não tem forma."
nessa notável produção pianística.
Debussy também escreveu obras-primas para orquestra. A primeira delas de-
O "Debussysme" monstra uma paixão que remontava à infância. Desde sempre Debussy fora um
Essa incompreensão não impediu que Debussy chegasse à celebridade, e o editor enamorado do mar... Para aquele sonhador "de horizontes quiméricos", o mar era
Jacques Durand garantiu ao compositor condições de trabalho que ele jamais co- ao mesmo tempo o símbolo da mãe e uma coquette sedutora: "O mar foi muito
nhecera. Nascera uma nova religião: o "debussysme". "Pelléastres" e "contrapontis- bom para mim, ele me mostrou todas as suas vestimentas. Ainda estou completa-
tas" trocavam idéias "agridoces". mente aturdido..." (1906).
Agora Debussy dominava sua própria linguagem. Seu estilo harmônico afirma- Encontra-se o mar em várias obras de Debussy: nos Nocturnes (Sirènes), em
ra-se, sem recusar qualquer possibilidade de enriquecimento. Foi quando escreveu: Pelléas et Mélisande (cena 3, por exemplo), nos Préludes— Voiles [Velas], La Ca-
thédrale engloutie [A catedral submersa] —, mas ele é sobretudo o motivo de uma
N ã o creio mais na o n i p o t ê n c i a de vosso sempiterno d ó , ré, mi, fá, sol, lá, si, d ó . N ã o se
deve excluí-lo, mas dar-lhe companhia, desde a gama de seis tons até a gama de 21
grande obra sinfônica em três movimentos, que Debussy modestamente intitulou
graus... C o m os 24 semitons contidos na oitava, tem-se sempre à disposição acordes Trois Esquisses symphoniques [Três esboços sinfônicos].
a m b í g u o s que pertencem a 36 tons ao mesmo tempo. Curiosamente, Debussy começou a compor essa obra na Borgonha, em 1903,
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Afona parte: a virada do século XX

apoiado em inúmeras lembranças: "Isso é melhor (...) do que uma realidade cujo com mímica, dança e fala. O texto grandiloqüente de d'Annunzio pouco convinha
encanto geralmente torna-se muito pesado em nosso pensamento." à personalidade excessivamente interiorizada de Debussy. Por isso, falta unidade à
Terminado em 1905, La Mer [O mar] foi apresentado, porém mal interpretado, partitura, e certas páginas chegam a irritar um pouco.
nos Concerts Lamoureux, e decepcionou o público, que esperava uma obra mais Debussy, que descobrira ter câncer em 1910 e que fora operado em 1915, sen-
descritiva. Mais uma vez, só o nosso amigo Paul Dukas não se enganou: "Nunca tia-se cada vez mais fraco quando a guerra começou a devorar a Europa. Um na-
um autor deu prova maior de virtuosismo técnico; sente-se que ele está em plena cionalismo de última hora suscitou, certamente sob a pressão de uma loucura
posse de seu domínio." coletiva, obras de circunstância: Noël des enfants qui n'ont plus de maison [Natal
A obra está construída em três movimentos. O primeiro — De l'Aube à midi das crianças que não têm mais casa], para vozes, e a Berceuse héroïque [Cantiga
sur la mer [Da aurora ao meio-dia no mar] — segue a lenta progressão da luz, heróica], para piano ou orquestra. No mesmo espírito de fervor patriótico, aquele
desde o esboço tateante dos primeiros motivos, até a apoteose dos últimos com- que agora assinaria "Claude Debussy, músico francês" tentou retornar às formas
passos, sob o sol ofuscante do meio-dia. Em Jeux des vagues [Movimento das on- tradicionais dos concertos de Rameau em três sonatas: para violoncelo e piano;
das], a dispersão sonora chega ao ápice; a orquestra vive de todos os lados ao para flauta, viola e harpa; para violino e piano.
mesmo tempo: o fluxo e refluxo das flautas e das clarinetas, o chamado velado das Claude Debussy morreu em 26 de março de 1918. Pioneiro da arte contempo-
trompas, a frase perturbadora do corne inglês, retomada achante pelos calorosos rânea, recusou-se a adotar uma forma preexistente à obra, buscou uma escrita que
violoncelos, o frêmito das cordas, o hábil emprego das percussões finas (címbalos, escapasse à tirania tonal e utilizou os timbres instrumentais por sua beleza intrín-
triângulo, Glockenspiel). Aquele mundo fluido e constantemente em movimento, seca, sem submetê-los obrigatoriamente a temas, m^tribuindo, ao contrário, esses
aquela orquestra matingível transportam o ouvinte para um sentimento de tempo temas por toda a orquestra. Nessa óptica, foi o primeiro compositor a preocupar-
musical indeterminado. Le Dialogue du vent et de la mer [O diálogo do vento e do se com uma imagem sonora global da obra musical, agenciando matérias musicais
mar] retoma certos elementos do primeiro movimento, cujos desenvolvimentos à maneira de um jogo complexo de construções.
levam a uma brilhante coda. Finalmente, inscrevendo-se na linhagem de um Chopin, fez avançar a escrita
Como em todas as suas obras sinfônicas, Debussy inventa uma forma original pianística rumo a uma maior precisão (posta a serviço da expressão) e ampliou a
com La Mer. a obra, em um fluxo ininterrupto, parece construir-se na audição. utilização do teclado, preparando assim o caminho das futuras gerações.
Nas Images [Imagens] para orquestra, concluídas em 1911, Debussy sacrifi-
cou-se à moda, tomando de empréstimo elementos do folclore escocês, em
Um grande "Defaussysta": André Caplet
Gigues [Gigas], e espanhol, em Ibéria. Jeux [Jogos], obra composta para os Ballets
Russes sobre um argumento de Nijinski, é uma apologia plástica do homem de Entre os amigos e colaboradores de Claude Debussy, André Caplet (1878-1925)
1913. A primeira geração do século XX nascente comprazia-se em exaltar a vida ocupou um lugar privilegiado. Brilhante regente internacional, esteve à frente da
física e honrava o esporte: uma partida de tênis ocasionava brincadeiras entre os orquestra na estréia de Le Martyre de Saint-Sébastien em 1911 (influenciara tam-
jogadores. A música de Debussy, incompreensível, é um emaranhado de motivos bém na orquestração da obra). Uma grande amizade passou a ligá-lo a Claude
distribuídos por toda a orquestra — segundo o princípio da "melodia de tim- Debussy, cuja influência certamente recebeu. De Caplet compositor, conhecemos
bres" ou Klangfarbenmelodie —, figuras que aparecem e desaparecem, em um sobretudo as obras religiosas: Le Miroir de Jésus [O espelho de Jesus] e a Missa.
discurso fragmentado que recusa a idéia de desenvolvimento. Acolhida pelo pú- Também surpreendem a beleza e a modernidade de sua música de câmara, em
blico de 1913 na maior indiferença, essa obra tornou-se a obra-manifesto de toda particular Le Masque rouge de la mort [A máscara vermelha da morte] — a partir
uma corrente contemporânea, particularmente dos defensores da "obra aberta", de um conto de Edgar Allan Poe — para harpa e quarteto de cordas.
por um lado no que diz respeito ao uso do timbre pelo timbre (preocupação que
estabelece uma filiação Debussy-Webern), por outro do ponto de vista de uma
apreensão original da duração, que impõe ao ouvinte uma escuta imediata.
Em 1911, foi representada no Théâtre du Châtelet uma obra curiosa, fruto da
colaboração de Debussy com o poeta italiano Gabriele d'Annunzio, encomendada
pela bailarina Ida Rubinstein, estrela dos Ballets Russes. Le Martyre de Saint-
Sébastien [O martírio de São Sebastião] é uma espécie de "mistério" moderno,

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