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Título Original: Histoire de la Musique Occidentale

© Messidor - Temps Actuels, 1983


© Fayard/Messidor - Temps Actuels, 1985 para edição n ã o ilustrada.

Direitos de edição da obra em língua portuguesa no Brasil adquiridos pela


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Equipe de p r o d u ç ã o
Leila Name
SUMÁRIO
Regina Marques
Sofia Sousa e Silva
Michelle Chao
Mareio Araújo

Edição de originais SOBRE OS COLABORADORES xiii


Antônio Monteiro Guimarães
César Benjamin PREFÁCIO xvii
Brigitte e Jean Massin
índice onomástico
Isabel Grau
Nana Vaz de Castro LÉXICO MUSICAL EXPLICATIVO 1
Pedro de Moura Aragão
Os instrumentos, a orquestra, as vozes 3
Revisão Philippe Beaussant, com a colaboração de Jean-Yves Bosseur e Jean Massin
Ana Lúcia Kronemberger O solfejo e a harmonia 45
Ângela Pessoa Michèle Reverdy
Marcelo Eufrasia
As formas e os gêneros musicais 63
Projeto gráfico e editoração eletrônica Philippe Beaussant, com a colaboração de Brigitte e Jean Massin
Silvia Negreiros e de Marc Vignal
A notação e a interpretação 99
CIP - BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES D E LIVROS
Jean-Yves Bosseur

M371h Massin, Jean Primeira Parte


História da m ú s i c a ocidental / Jean 8c Brigitte Massin ; tradução de Maria
DAS ORIGENS CRISTÃS AO SÉCULO XIV 123
Teresa Resende Costa, Carlos Sussekind, Angela Ramalho Viana. - Rio de Janeiro :
Nova Fronteira, 1997 1. Pensar a música na Idade Média 125
Françoise Ferrand
Tradução de: Histoire de la musique ocidentale
2. Os primeiros cânticos da Igreja 135
I S B N 85-209-0907-8
Françoise Ferrand
1. Mús ica - História e crítica. I . Massin, Brigitte. I I . Título. 3. Técnica e notação do canto gregoriano 141
Michel Hugh
97-1719. C D D 780.9 4. A liberdade e a brecha: tropos, seqüências, dramas litúrgicos 151
C D U 78(091) Françoise Ferrand
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GUSTAV MAHLER
(1860-1911)

Nascido no dia 7 de julho de 1860, em Kaliste, pequeno burgo da Boêmia próximo


da fronteira com a Morávia, Gustav Mahler teve uma infância muito difícil. Judeu
e integrante da minoria germânica estabelecida na Boêmia, seu pai encontrava-se
à margem de ambas as comunidades. Os pais de Gustav Mahler não se entendiam
bem, do que resultou uma série de dramas familiares e psicológicos cujos traços o
compositor guardaria de maneira profunda. Mahler contou a Freud que, pequeno,
testemunhara uma cena brutal entre os pais e, em seguida, ouvira um realejo tocar
na rua Adi! du lieber Augustin! "Essa conjunção súbita de alta tragédia e diversão
de baixo nível permaneceu definitivamente marcada em seu espírito. No futuro,
cada qual desses estados de espírito invariavelmente haveria de suscitar o outro."
As marchas e os toques mihtares do exército austríaco na guarnição de Jihlava,
onde a família instalara-se em dezembro de 1860, também reapareceriam em sua
música.

R u m o a o a pogeu ( 1 8 8 0 -1 8 9 6 )

Tendo ingressado no Conservatório de Viena em 1875, para lá estudar durante três


anos, Mahler teve como condiscípulo Hugo Wolf. Como este, entusiasmou-se por
Wagner bem mais do que por Brahms. Nessa época, conheceu Bruckner, de quem
nunca foi aluno. Em junho de 1880, foi contratado para uma temporada de três
meses como maestro no teatro de Hall, estação de águas na Alta Áustria. Começo
dos mais modestos, mas a carreira de maestro, que ele levou adiante junto com a
Gustav Mahler 859
858 Nona parte: a virada do século XX

Viena (1897-1907)
de compositor, acabou por conduzi-lo aos mais altos vértices da fama. De volta a
Viena em setembro do mesmo ano, terminou Das Klagende Lied [O dito do la-
Com a nomeação, em maio de 1897, para as funções de Kappellmeister e depois de
mento ou O canto de acusação], cantata para solista, coro e orquestra, com texto
diretor da Ópera de Viena, Mahler ingressou na etapa mais importante e mais
adaptado a partir de um conto de sua própria autoria. Essa obra, a mais antiga que
prestigiosa, que duraria dez anos, de sua carreira oficial. Para conseguir isso, en-
temos dele, com exceção de um ou dois Lieder, foi apresentada em 1881, no con-
frentou várias situações difíceis e teve mesmo que se converter ao catolicismo,
curso para o Prêmio Beethoven: não obteve qualquer menção de um júri do qual
uma conversão que criou problemas, não tanto quanto à sinceridade, mas quanto
Brahms fazia parte. A verdadeira carreira de regente de Mahler começou em janei-
aos limites. A um amigo que lhe perguntou por que, depois da adesão ao catolicis-
ro de 1883, em Olmütz. As etapas seguintes foram Kassel (setembro de 1883 a abril
mo, ele nunca escrevera uma missa, ele respondeu simplesmente: "E o Credo?"
de 1885), Praga (temporada de 1885-1886) e Leipzig (do outono de 1886 a maio
de 1888). Mahler familiarizou-se com o repertório sinfônico e operístico, bem Mahler dedicou-se ao trabalho em Viena sem poupar nem a si mesmo nem a
como com as intrigas e o trabalho árduo próprios à vida teatral, sem contudo, por seus colaboradores: daí os triunfos e osfracassos.Regente dos concertos filarmô-
força de seu caráter altivo, evitar as discórdias com os superiores. Da época de nicos a partir de 1889, teve que abandoná-los em 1901. Reformador intransigente,
Kassel datam os Lieder eines fahrenden Gesellen [Cantos de um companheiro er- tanto do ponto de vista "social" (proibição de os retardatarios entrarem na sala de
rante], quatro Lieder cujos textos foram adaptados ou diretamente escritos pelo concertos antes do intervalo, supressão da claque), quanto artístico (busca de uma
próprio Mahler, inspirados por uma ligação com a cantora Johanna Richter; da unidade profunda entre teatro e música, renovação do repertório), ganhou parti-
época de Leipzig são a conclusão da Primeira Sinfonia, dita Titã, o início da com- dários devotados e inimigos ferozes. São provas desse estado de espírito alguns de
posição da Segunda Sinfonia, dita Ressurreição, e os primeiros Lieder sobre textos seus aforismas: "Tradição = desordem... No plano humano, faço todas as conces-
extraídos de Des Knaben Wunderhorn [A cornucopia mágica da criança], român- sões; no plano artístico, nenhuma. Não posso suportar os que se desleixam, só os
tica coletânea de que falaremos adiante. que exageram me interessam."
Em 1901, Mahler conheceu Alma, filha do pintor Emil Schindler, cerca de vinte
Em setembro de 1888, depois de ter deixado Leipzig com grande estardalhaço,
anos mais nova do que ele. Depois de curto e intenso noivado, o casamento foi
Mahler assumiu o posto de diretor da Ópera Real de Budapeste. Dependendo so-
celebrado em 9 de março de 1902, iniciando-se uma união que apresentaria aspec-
mente de si mesmo no plano artístico, pôde desenvolver à vontade suas qualidades
tos tempestuosos...
de administrador, reformador, diretor teatral e regente, do que resultaram as apre-
sentações em Budapeste, sob sua direção e em língua húngara, das óperas Das A partir de 1903, Mahler trouxe para a Ópera de Viena um colaborador de
Rheingold [O ouro do Reno] e Die Walküre [A Valquíria], de Wagner (janeiro de primeiro plano, na pessoa do pintor Alfred Roller, com o qual realizou as suas
1889). Ainda em janeiro de 1891, dirigiu uma representação de Don Giovanni, de maiores encenações operísticas: Fidelio (1904), Das Rheingold (1905), Don Gio-
Mozart, a respeito da qual Brahms teria declarado que um nível tão elevado era vanni (1905), Le nozze di Figaro [As bodas de Fígaro, 1906], Die Walküre (1907),
"inconcebível em Viena". Mesmo assim, Mahler pediu demissão dois meses mais Iphigénie en Aulide [Ifigênia em Aulide, 1907]. Paralelamente, compôs dez Lieder
tarde, principalmente por causa das dificuldades que teve com o novo intendente, sobre poemas de Rückert, entre os quais os famosos Kindertotenlieder [Cantos pa-
o conde Zichy. A partir de abril, já estava trabalhando em Hamburgo, como pri- ra as crianças mortas, 1901-1904], e a Quarta (1901), a Quinta (1902), a Sexta
meiro regente da Ópera. Hans von Bülow, então diretor dos concertos filarmô- (1904), a Sétima (1905) e a Oitava (1906) Sinfonias.
nicos da cidade, teve diante de Mahler uma reação típica: elogiou o intérprete, mas Em 1907, três "golpes do destino" abateram-se sobre ele e "transformaram-no
desconheceu o compositor. Durante os seis anos que passou em Hamburgo, de imediato", como escreveu sua mulher Alma: como conseqüência principal-
Mahler, que em 1894 passou a contar com a colaboração de um jovem assistente mente de ataques evidentemente anti-semitas, perdeu seu posto de diretor da
chamado Bruno Walter, impôs-se definitivamente como um dos primeiros regen- Ópera de Viena; sua filha mais velha, então com cinco anos de idade, morreu
tes de seu tempo, formando um grupo cujos melhores elementos — Anna von repentinamente em julho; e Mahler descobriu que era portador de uma doença
Mildenburg, Bertha Fõster-Lauterer, Leopold Demuth — iriam juntar-se a ele cardíaca incurável. Amante dos longos passeios a pé e da natação, ele foi obrigado
mais tarde em Viena. Concluiu então a Segunda Sinfonia(l894), a Terceira Sinfo- a renunciar a tais práticas da noite para o dia. O escritor Arthur Schnitzler conta
nia{ 1896) e a quase totalidade dos Wunderhorn Lieder. tê-lo visto, sozinho e prostrado, nos bancos do parque de Schõnbrunn. Chamado
a Nova York pelo diretor da Metropolitan Opera House, deixou Viena em 9 de
dezembro: uma mensagem de adeus datada do dia 7, pregada por ele no quadro
Nona parte: a virada do século XX Gustav Mahler 861
860

de avisos da Ópera de Viena, foi descoberta no dia seguinte, rasgada por mão sar-se da mesma maneira, mas por razões diferentes. Lembremos que foi apenas
anônima. tardiamente, ou em certos ambientes bem definidos, que se teve lembrança de
censurar em Schõnberg a estética "pós-romântica", então já superada. A situação
Nova York (1907-1911) nunca foi tão simples com Mahler, desde logo acusado, a um só tempo, de ultra-
jantemente moderno e inocentemente ultrapassado. "Banal complacência de uma
Por quatro anos seguidos (1907-1911), Mahler residiu durante o inverno em Nova
sentimentalidade de costureira", chegou a escrever Vincent d'Indy. A razão funda-
York e passou a primavera e o verão na Europa, dividindo seu tempo entre longas
mental disso está na contradição aparente entre a escolha que Mahlerfizerade seu
estadas nos Dolomitas e novas turnês. Na América do Norte, onde fez suas últimas
material musical e a maneira como tratava esse material. Em sua música ressoa-
temporadas à frente da Orquestra Filarmônica de Nova York, mostrou-se mais
vam, de uma forma ou de outra, todas as músicas que faziam parte de seu campo
conciliador do que em Viena. Terminou em 1908 a composição de Das Lied von
cultural (inclusive a dele mesmo). Viu-se aí uma falta de originalidade. Mas isto é
der Erde [O canto da Terra], com textos de poesias chinesas traduzidas para o
uma simples constatação, bem secundária com relação ao que ele soube fazer da
alemão por Hans Bethge, e a Nona Sinfonia em 1909 — duas partituras que ele
arte da citação (sem se limitar à sua própria música, é claro): uma lembrança ou
nunca chegou a ouvir executadas. Em 1910, uma grave crise conjugai dificultou
um pressentimento, e não um banal reconhecimento, uma visão não idealizada,
parcialmente a conclusão da Décima Sinfonia.
mas crítica e corrosiva, da herança que recebera. Será preciso frisar que esse traço
Em agosto de 1910, Freud estava de férias na Holanda e Mahler foi a Leyde de estilo é um dos principais dados da atualidade de sua arte?
encontrá-lo. Muito mais tarde, em 1935, Freud escreveu a Reik (que viria a publi-
Mahler, aquele judeu surgido sem aviso prévio de "alguma parte da Boêmia",
car o texto mais tarde nas preciosas Variações psicanalíticas sobre um tema de Gus-
assim como Freud ou Kafka, começou a perturbar desde a idade dos vinte anos,
tav Mahler):
com Das Klagende Lied. O argumento tinha como seduzir: lenda medieval próxi-
Analisei Mahler durante uma tarde, em Leyde. Se posso dar fé no que me veio à mente, ma de certos contos de Grimm, universo dos primeiros escritores e compositores
fiz um bom trabalho. A consulta pareceu-lhe necessária porque sua mulher revoltava-se românticos alemães. Mas nessa partitura, uma das mais pessoais vindas de um
contra o fato de que a libido dele afastava-se dela. Interessantes incursões pela sua vida autor tão jovem, encontrava-se já todo o Mahler: seus aspectos poéticos e pitores-
nos permitiram descobrir as c o n d i ç õ e s de suas relações amorosas, particularmente seu cos, mas também profundamente inquietantes, suas melodias entoadas por trom-
complexo mariai (fixação na m ã e ) . Tive ocasião de admirar neste homem uma genial
pas, mas também ritmos de marchas que vinham quebrar as melodias. Dos
faculdade de c o m p r e e n s ã o . Nenhuma luz esclareceu a fachada sintomática de sua neu-
Klagende Lied rendia homenagem ao fantástico e ao grotesco e lembrava que
rose obsessiva. Foi como se tivéssemos aberto uma profunda e única fenda em uma
construção enigmática.
Mahler era um leitor assíduo de E.T.A. Hoffmann. Escuta-se, nos momentos mais
dramáticos dessa história de morte, de assassinato do irmão, uma espécie de or-
As duas últimas frases sucedem — de maneira curiosa, de tão abrupta — a feão: primeira intervenção em Mahler do "estilo baixo" e uma série investida con-
frase precedente sobre a "genial faculdade de compreensão": sem dúvida, essa foi, tra a noção de respeitabilidade em música. Amplamente romântico por sua inspi-
em todo caso, a cura mais breve de toda a história da psicanálise. A mais bem- ração, Mahler é profundamente moderno pela linguagem e pela expressão. Várias
sucedida? Talvez menos do que Freud acreditara... revisões precederam a primeira audição do Das Klagende Lied, que só deveria ser
Foi em meio a esses fatos que a apresentação, em Munique, da Oitava Sinfonia, realizada em 1901. Mas o essencial, em particular a surpreendente orquestração,
inadequadamente dita Sinfonia dos Mil, valeu a Mahler o maior de seus triunfos data de 1880.
(setembro de 1910). Vítima, na América do Norte (março de 1911), de uma angina Desde então, Mahler dedicou-se apenas ao Liede à sinfonia. Embora se elogias-
estreptocócica, irremediavelmente doente, Mahler foi transportado de Nova York se o Mahler intérprete em detrimento do Mahler criador, tomaram-se como pre-
a Paris, e depois, no tempo certo, de Paris a Viena. Morreu nessa cidade no dia texto as alentadas dimensões de suas sinfonias para nelas ver somente "pequenos
18 de maio de 1911, com uma última palavra — Mozartl [meu pequeno Mozart] Lieder inchados em sinfonias". Como tudo isso parece agora derrisório! Lieder e
— dirigida a Alma, regendo com os dedos uma orquestra invisível. sinfonias estão reunidos na obra de Mahler por laços múltiplos, que não se limi-
tam aos mais evidentes: movimentos vocais com poemas de Des Knaben Wunder-
A obra de Mahler horn, na Segunda, na Terceira e na Quarta Sinfonias, encontros de atmosfera, cita-
"Ela produziu escândalo; depois, o escândalo nunca mais parou", disse um dia ções esparsas ou não dos Lieder eines fahrenden Gesellen, na Primeira Sinfonia, dos
Schõnberg a respeito de uma de suas primeiras obras. Mahler teria podido expres- Wunderhorn Lieder da Segunda à Sétima Sinfonias, pelo menos, dos Lieder com
862 Nona parte: a virada do século XX
Gustav Mahler 863

poemas de Rückert da Quarta à Sétima Sinfonias. Os Lieder de Mahler não se dei-


uma meditação sobre a natureza, mas uma natureza privada de sua inocência. Pelo
xam resumir pela noção — por mais extensa que ela seja — de estudo prévio. Com
contexto no qual o insere, Mahler faz do material que evoca objetivamente esta
exceção dos publicados em 1892 como "Lieder e cantos de juventude", todos foram
natureza um instrumento dotado das mais espantosas conseqüências; como Kaf-
ímalmente orquestrados e muito dificilmente são concebíveis de outra forma,
ka, serve-se dos aspectos mais banais para dizer as coisas mais terríveis. O evolu-
porque também eles são dotados de dimensão sinfônica. Esta é determinada, entre
cionismo do século XIX, feição naturalista da idéia de ressurreição, encontra na
outras coisas, pelos textos, muitas vezes "arcaicos", que voltavam as costas ao Eu
Terceira de Mahler sua tradução musical em todos os níveis. Estrutura aberta por
individual. Os dois ciclos escritos para poemas de Rückert, ao contrário, estão
excelência, esta sinfonia é o ciclo de metamorfoses em direção a formas de vida
muito próximos desse Eu, mas isso só foi possível para Mahler em um estágio bem
cada vez mais elevadas e evoluídas. Tal é a idéia não apenas do primeiro movimen-
mais avançado de sua evolução. Os Lieder eines fahrenden Gesellen também, mas
to, mas da sucessão dos seis; não apenas do poema de Nietzsche usado no quarto
estes definem-se por um tom de balada que faz o contrapeso.
movimento, mas do Lied retirado de Des Knaben Wunderhorn, do qual o terceiro
O objetivismo colorido de arcaísmo é, antes de mais nada, o apanágio dos movimento é uma versão instrumental bastante ampliada: o que importa se o
Wunderhorn Lieder, que ocupam uma posição central na obra de Mahler e escla- cuco morre em sua queda se, no lugar dele, temos o rouxinol, mais elevado na hie-
recem sua música bem mais que a Quarta Sinfonia. Por si mesmos, os textos lite- rarquia dos animais? O adágio final, hino ao amor divino, vem de encontro ao
rários — recolhidos e arranjados por Arnim e Brentano no início do século XLX e final da Segunda Sinfonia, mas como última etapa de uma gradação, e não mais
publicados por eles com uma dedicatória a Goethe — fazem ressurgir um passado como resultado a que se chegou, com altos custos, após longos combates duvido-
sem ilusões, a um só tempo com um claro distanciamento e reflexos de catástrofes sos. Uma gradação, contudo, que não deixa de apresentar resistências ou vítimas
ambientes. Sua irracionalidade, que Goethe enfatizara, tem qualquer coisa de (o cuco). No primeiro movimento, Mahler adotava os riscos máximos, não hesi-
montagem. A ironia é freqüente nestes poemas, sempre misturada com a compai- tava em se fazer cúmplice do caos. Em nenhuma parte de sua obra exerce o com-
xão. Os textos ocupam-se mais do camponês astuto do que de seu senhor, tratam positor menos censura com relação ao banal e ao cotidiano, dando, desse modo,
de indivíduos que se agitam e falam em vão, mas põem em cena fundamentalmen- as costas para a estética da "áurea mediocritas" (o único caminho que, para Schõn-
te um mundo de danados, reprovados, condenados, famintos, fuzilados. Tudo isso berg, não levava a Roma). Mahler sublimou assim o pot-pourri, tecendo entre seus
está na música de Mahler, cujo herdeiro legítimo é, nesse aspecto, principalmente componentes violentados uma rede de comunicações subterrâneas, valendo-se de
o Alban Berg de Wozzeck. Esses Lieder são de essência épica; para eles, o piano seria maneira provocante da música "vulgar". Antes do desmoronamento que conduz à
muito íntimo e muito socialmente condicionado pelo salão. O passado que evo- reexposição, não se ouve mais uma só marcha, mas várias, como nas feiras. As
cam é evidentemente mítico e, de todo modo, contradito pelo que Mahler fez: fontes sonoras multiplicam-se — essência do contraponto de Mahler, que pode
uma música erudita e avançada, para além de todas as entonações populares que ser aproximado do que Charles Ives tentou fazer poucos anos depois.
nela se queira ouvir.
A Quarta Sinfonia não abandonou essas conquistas, mas, misturando-as a re-
O grupo das quatro primeiras sinfonias de Mahler é marcado pela presença da
ferências de infância e do século XVIII, tornou-se objeto de escândalo. Mais esti-
literatura. Não por conta dos programas que Mahler redigiu para a Primeira, a Se-
lizada, mais condensada, anunciava ao mesmo tempo as sinfonias seguintes e pre-
gunda e a Terceira Sinfonias, antes de rejeitá-los e a eles renunciar definitivamente.
figurava a aparição, nestas, de lembranças originárias menos do mundo exterior
"Música definida como romance", escreveu Adorno, referindo-se à sua forma e
do que do universo próprio de Mahler, como se fossem músicas imaginárias.
não a um herói qualquer. Sob esse aspecto, a página mais significativa de Mahler
A Quinta, a Sexta e a Sétima Sinfonias são puramente instrumentais. Das três,
é certamente o primeiro movimento (o mais longo jamais escrito) da sua Terceira
a obra-chave é a Sexta, que, como a Terceira, mostra o que há de perecível em toda
Sinfonia (a mais longa que já se escreveu). Essa página também mantém relações
a cultura, mas pela única virtude de sua forma perfeita — escolar, dever-se-ia di-
evidentes com Des Knaben Wunderhorn. É uma vasta montagem que a forma so-
zer, se esse termo não tivesse conotação tão pejorativa. A Quinta e a Sétima Sinfo-
nata recobre como um véu transparente. Pode-se penetrar na Terceira Sinfonia de
nias se parecem, com os seus cinco movimentos que evoluem das sombras à luz,
Mahler confrontando-a com a Segunda, que ela prolonga. Os parentescos entre as
de uma marcha fúnebre inicial a um rondó triunfal em tom maior. A Quinta com-
duas obras não se esgotam no paralelismo de seus movimentos centrais. Se a Se-
preende dois pares de movimentos (lento-vivo), um sombrio e outro luminoso,
gunda Sinfonia, dita Ressurreição — em cinco movimentos, dos quais o último
entre os quais um vasto scherzo faz a ligação. A Sétima, de disposição simétrica,
com coros, sobre um texto de Klopstock — constitui uma vasta meditação sobre
concéntrica, é composta por dois movimentos extremos vivos (um sombrio, outro
a vida e a morte e trata da ressurreição do homem, a Terceira impõe desde logo
luminoso), e, no centro, dois movimentos lentos em claro-escuro, que envolvem
864 Nona parte: a virada do século XX Gustav Mahler 865

um scherzo. No meio do scherzo inscreve-se um dos primeiros Lieder imaginários aparece fragmentado em migalhas. Quando o discurso começa a se articular, no
de Mahler. Nessas duas sinfonias, a tonalidade evolutiva (método que consiste em sétimo compasso, reúne não mais que ruínas. "Era uma vez a tonalidade", canta até
terminar uma obra em uma tonalidade diferente da inicial) desempenha um papel a obsessão o início da Nona Sinfonia, na qual o ré maior (como posteriormente o
psicológico essencial. dó maior da Sétima Sinfonia de Sibelius) figura principalmente como coloração.
Exteriormente, a Sexta é a mais tradicional das sinfonias de Mahler: é a única, No fim do primeiro movimento, depois de uma das passagens mais terrificantes
além da Primeira, a ater-se aos quatro tipos de movimento fixados por Haydn, de todo o Mahler (a "Morte em pessoa", segundo Alban Berg), depois de uma
uma das raras a terminar em sua tonalidade inicial (lá menor), e o seufinaleé uma cadência incrível de três timbres (flauta, trompa, cordas graves), sinônimo de de-
apoteose da forma sonata, com a dialética temática e tonai indispensável a essa sintegração (cada um desses timbres e dos instrumentos por eles responsáveis não
forma. A Sexta Sinfonia é também a única a terminar "mal", com uma queda psi- leva em conta os demais), o ré maior transforma-se em refúgio. Não foi Schõnberg
cológica. Mas, musicalmente é um dos grandes triunfos de Mahler. "A única Sexta, que a ela retornou eventualmente em suas últimas obras. Foi Mahler quem soube
apesar da Pastoral", disse dela Alban Berg, antes de inspirar-se concretamente em primeiro dizer objetivamente que a tonalidade não existia mais — paradoxalmen-
seus ritmos de marcha e em certos pontos estratégicos do seu finale para a última te, sem jamais tê-la abandonado.
das suas Peças para orquestra opus 6. Nesse estágio da evolução musical de Mahler, Sobre Mahler, Arnold Schõnberg escreveu em O estilo e a idéia:
aparece o vínculo evidente entre uma estrutura externa e interna tradicional, o
E m vez de perder-me em palavras, talvez fosse melhor dizer logo: acredito firmemente
círculo fechado de uma tonalidade a que é impossível fugir, a queda psicológica e
que Gustav Mahler foi u m dos maiores homens e dos maiores artistas que jamais exis-
a obra-prima. A Sexta Sinfonia, exatamente por sublimar a tonalidade e tudo a que
tiram (...). Desde logo devo avisar que, de início, t a m b é m eu tomei os temas de Mahler
ela havia servido, celebra o seu fim e a impossibilidade de retornar a ela. como maculados por banalidades. Teimo em dizer que fui Saul antes de me tornar Pau-
O primeiro movimento da Sétima Sinfonia, com suas superposições impiedo- lo. Mas, pouco a pouco, tomei consciência da beleza e da magnificência da obra de
sas de quartas (indício, entre outros, da proximidade da atonafidade), e o primeiro Mahler e cheguei ao ponto em que tomo certas argumentações n ã o como u m a prova de
movimento ( Veni Creator) da Oitava Sinfonia, reduzido, como ofinaleda Sétima, sutileza, mas, ao contrário, como u m a prova de total carência de capacidade de julgar.
(...) U m artista fica ainda mais desarmado diante da acusação de sentimentalismo do
a se forçar para afirmar o modo maior, são testemunhos dessa celebração do fim
que diante da acusação de banalidade. N ã o h á qualquer defesa contra a acusação de
da tonalidade. Menos, no entanto, que as obras póstumas. Desde o segundo mo-
sentimentalismo. Pode-se ou n ã o ter razão quando se contesta os sentimentos profun-
vimento (Cena de Fausto) da Oitava Sinfonia, desaparece definitivamente para dos de u m outro, ou, ao contrário, quando se reconhece com alegria os sentimentos
Mahler o formato arquitetônico, a sonata. Daí por diante, a forma romanesca, que profundos do outro? [...] Quando aparece o que h á de mais profundamente pessoal em
"detesta saber de antemão aonde vai", realiza-se completamente. Dos Lied von der um compositor, o ouvinte recebe u m choque. Mas ele interpreta esse choque como uma
Erde e a Nona Sinfonia são praticamente divididas em capítulos, e seus diversos agressão; n ã o vê que apareceu o que justificaria sua admiração.

movimentos dispõem, uns com relação aos outros, de uma autonomia anterior-
mente inconcebível. Das Lied von der Erde, na realidade uma sinfonia para tenor,
alto (ou barítono) e orquestra, é unificada de maneira quase serial por uma suces- Alguém próximo a Mahler: Alexander von Zemlinsky (1871-1942)
são de intervalos (segunda maior e terça menor). Sem esses seis movimentos talvez Alexander von Zemlinsky não faz parte, propriamente falando, da Escola de Viena,
não existissem os movimentos da Suíte lírica de Berg. A obra culmina com Der mas manteve relações estreitas, sobretudo com Mahler, Schõnberg e Berg, tanto
Abschied [O Adeus], a expressão mais dilacerante de todas. Igualmente marcada no plano pessoal como no musical. Amplamente ignorado como compositor —
pelo Adeus, senão (como achava Alban Berg) pela Morte, a Nona compreende pelo menos depois de morto e até meados da década de 1970 —, Alexander von
quatro movimentos agrupados de forma pouco ortodoxa (dois movimentos len- Zemlinsky foi beneficiário, mais tarde, de um renascimento tão súbito quanto es-
tos extremos enquadram dois movimentos centrais vivos), dos quais o primeiro é, pantoso, graças ao interesse que atualmente desperta tudo o que é vienense, inte-
ele mesmo, quase uma sinfonia. Já em 1912, um crítico via na Nona Sinfonia de resse que nunca se completará sem a consideração da alta qualidade de sua músi-
Mahler a única "Inacabada" concluída da história da música. ca. Com sua costumeira perspicácia, Schõnberg, que reconhecia de bom grado ter
Os seis primeiros compassos da Nona Sinfonia de Mahler fazem ouvir uma recebido de Alexander von Zemlinsky o único ensinamento digno deste nome,
suíte de motivos curtíssimos em que são organizados os timbres, os tempos,- as previra que cedo ou tarde esse renascimento ocorreria.
intensidades. É o início de uma das citações imaginárias de Mahler. E, mais ainda Nascido em Viena em 14 de outubro de 1871, Alexander von Zemlinsky entrou
do que em Das Lied von der Erde, o passado assim evocado (só por instrumentos) para o Conservatório dessa cidade em 1884 e lá formou-se como pianista em 1889
866 Nona parte: a virada do século XX
Gustav Mahler 867

e como compositor em 1891. Em 1892, compôs uma Sinfonia em ré menor, e, em Symphonie, no entanto, os diversos movimentos são encadeados, sempre com um
1893, sua primeira ópera, Sarema. Em 1895, deu aulas a Schõnberg, seu faturo prelúdio no início, um poslúdio no fim e alguns interlúdios. Depois de ter tomado
genro. Seguiram-se, em 1896, o Trio opus 3 para piano, clarinete e violoncelo e o o modelo de Das Lied von der Erde, a Lyrische Symphonie, cujo tema é o amor e que
Quarteto de cordas opus 4 n" T, em 1897, uma Sinfonia em si bemol; em 1898, os oscila entre o erotismo e o misticismo, inspirou diretamente, até mesmo no nome,
Lieder opus 7 e opus 8; e em 1899, sua segunda ópera, Es war einmal, apresentada a Lyrische Suite [Suíte lírica] de Alban Berg. Este último não somente dedicou essa
no ano seguinte na Ópera de Viena sob a regência de Mahler. obra a Alexander von Zemlinsky, pelo menos oficialmente (a dedicatória oculta
Em 1904, Zemlinsky tornou-se primeiro regente na Volksoper de Viena e fun- é para Hanna Fuschs), como também citou em várias passagens a Lyrische Sym-
dou, com Schõnberg — que em 1901 desposara Mafhñde, a filha de Zemlinsky— phonie de Alexander von Zemlinsky.
e sob a presidência de honra de Mahler, a efêmera Vereinigung Schaffender Em 1927, Alexander von Zemlinsky foi chamado por Otto Klemperer à Krol-
Tonkünstler [Sociedade dos Artistas-Compositores]. Em 1907, Mahler admitiu-o loper de Berlim, onde dirigiu inúmeras obras contemporâneas, continuando a
na Ópera de Viena, alguns meses antes de deixar aquele estabelecimento. Tendo se ensinar na Akademische Hochschule far Musik. Em 1933, com a ascensão de
desentendido com Felix von Weingartner, o sucessor de Mahler, a respeito da ópe- Hitler ao poder, Alexander von Zemlinsky fugiu para Viena. De 1933 é a ópera Der
ra Der Traumgõrge, Zemlinsky voltou em 1908 à Volksoper, onde dirigiu no mes- Kreidekreisr, de 1934, a Sinfonieta; e de 1936, o Quarteto de cordas n° 4 opus 25. Uma
mo ano a estréia vienense da ópera Ariane et Barbe Bleue [Ariane e Barba Azul], de oitava ópera iniciada em 1935, KõnigKandaules [O rei candaule], baseada no texto
Paul Dukas, e, em 1910, de Salomé, de Richard Strauss. Em 1909 concluiu e em homônimo de Gide, permaneceu inacabada. Em 1938, por ocasião do Anchluss
1910 apresentou sua própria ópera, Kleider machen Leute, composta a partir de [anexação da Áustria pela Alemanha], Alexander von Zemlinsky partiu para os
texto de Gottfried Keller. Estados Unidos, esperando sem dúvida um convite do Metropolitan Opera de
Del911al927, Alexander von Zemlinsky ocupou o posto de primeiro regente Nova York. Começou uma nova ópera, Circe, fadada a permanecer inacabada, e
no Teatro Alemão de Praga e, a partir de 1920, passou a ensinar composição na morreu em 15 de março de 1942, em Larchmont, no Estado de Nova York, sem ter
Deutsche Akademie [Academia Alemã] dessa mesma cidade. Em 1912, regeu a tido a chance de ser apreciado pelo público norte-americano.
estréia, em Praga, da Oitava Sinfonia de Mahler, e em 1924, no Teatro Alemão, as Influenciado por Mahler e Strauss, Alexander von Zemlinsky, como o primei-
estréias mundiais de Erwartung e Die glückliche Hand, de Schõnberg. Os Maeter- ro Schõnberg, levou o cromatismo pós-wagneriano até os limites mais extremos,
linck-Gesànge opus 13 (canções com poemas de Maeterlinck) datam de 1910 (ver- mas sem dar o passo em direção à atonalidade. De algum modo imprensado en-
são com piano) e 1913 (versão orquestral); o Quarteto de cordas n° 2 opus 15, tre os dois gigantes — Mahler e Schõnberg —, não foi um simples epígono
dedicado a Schõnberg e em um único grande movimento, é de 1913-1914; o e mostrou-se, contrariamente a ambos, um grande compositor para o teatro.
Quarteto de cordas n° 3 opus 19, de 1924; e as óperas Eine florentinische Tragõdie Maestro famoso e pedagogo sem par, exprimia-se de maneira muito pessoal na
[Uma tragédia florentina] e Der Zwerg [O anão], ambas inspiradas por textos de "linguagem ardente" (Adorno) que, em Viena essencialmente, constituíra-se a
Oscar Wilde, de 1914 e 1915, respectivamente. Em 1981, por ocasião de uma rea- partir de Wagner e de Brahms.
presentação em Hamburgo, Der Zwerg foi rebatizada como Der Geburtstag der
Infantin [O aniversário da infanta], voltando a receber, portanto, o título original
do conto de Oscar Wilde. Essas duas óperas têm, cada qual, um único ato: o me-
lhor é representá-las juntas, em uma mesma noite, pois, entre as óperas em um ato
escritas no século XX, elas ocupam, por sua eficácia dramática e por suas dimen-
sões humanas, um lugar de destaque.
Em 1922-1923, Alexander von Zemlinsky compôs o que durante muito tempo
seria a sua obra mais célebre, a Lyrische Symphonie [Sinfonia lírica] para soprano
e barítono, opus 18, com poemas do escritor indiano Rabindranath Tagore. Os
poemas, retirados da coletânea Ojardineiro, são em número de sete, e os sete mo-
vimentos da obra foram alternadamente confiados ao barítono (números 1, 3, 5
e 7) e ao soprano (números 2, 4 e 6). Essa estrutura e essa substância "exótica"
lembram Das Lied von der Erde [O canto da Terra] de Mahler; na Lyrische

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