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GÊ N E RO, SE X UA LI DA DE E P SIC

GillaA NÁ
Maria LIBastos
Jacobus SE
Vamos (voltar a) conversar
sobre sexualidade em psicanálise?
Amor e ódio e seus destinos
nas manifestações da sexualidade1
How about (going back to) talking a
bout sexuality in psychoanalysis?
Love and hatred and their fates i
n manifestations of sexuality
Gilla Maria Jacobus Bastos

Resumo
A formação psicanalítica no Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul (CPRS) integra e
aprofunda conteúdos que podem causar questionamentos sobre o desenvolvimento do escopo
teórico da psicanálise, ao mesmo tempo que auxilia no enfrentamento dos desafios clínicos
decorrentes da vida profissional nesse campo da psicologia. Inicio a discussão teórica com as
postulações freudianas sobre a relação mãe-bebê, com seu enfoque pulsional, porém levando,
já em conta, a responsabilidade da mãe sobre a construção do eu, desde a constituição do nar-
cisismo com sua importância no complexo edípico mais tarde na vida do sujeito, preparando a
sexualidade do bebê. Levanto o conceito da bissexualidade orgânica (Fliess) e psíquica (Freud)
em jogo nas identificações edipianas com seus possíveis destinos, inclusive, ou principalmen-
te, na sexualidade. Parto em seguida para os autores pós-freudianos, como Green, Laplanche e
Ceccarelli, a fim de atualizar conceitos e impressões acerca do tema tão necessário, a meu ver,
sobre os destinos das pulsões influenciando as relações humanas de amor.

Palavras-chave: Relações de objeto, Sexualidade, Identificações, Amor, Ódio.

Não se afobe, não


Que nada é pra já
Amores serão sempre amáveis
Futuros amantes, quiçá
Se amarão sem saber
Com o amor que um dia
Deixei pra você
(Chico Buarque de Holanda, 1993)

1. Trabalho apresentado em Jornada de Estudos do CPRS, em 26 maio 2018.

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Vamos (voltar a) conversar sobre sexualidade em psicanálise? Amor e ódio e seus destinos nas manifestações da sexualidade

Como aprendemos (ou não) a amar? estabelecida na infância, se possa mostrar in-
Os desafios das manifestações da sexualida- destrutível na vida ulterior.
de na clínica contemporânea, com suas inú-
meras configurações, remetem-nos a rever Freud ([1915] 1996), em Os instintos e
conceitos psicanalíticos importantes, a fim suas vicissitudes, explica que o Eu a princípio
de entender os fatos que se revelam no coti- se constitui de suas pulsões, que o impulsio-
diano da clínica ou fora dela. nam em busca de prazer e, dessa forma, apla-
A cultura hoje, como no tempo de Freud, cam o seu desprazer, obrigando-se a trazer
volta a colocar em evidência a sexualidade (introjetar) do mundo externo o objeto cap-
humana, ou seja, nas suas múltiplas formas turado pelos seus instintos, ou seja, incorpo-
de trabalhar e de amar, de assumir a tarefa rando para si a relação que inaugura o amor
de se responsabilizar por escolhas próprias. -próprio ou o narcisismo. Para se relacionar
O que no tempo vitoriano era reprimido na com o objeto, primeiramente utiliza-se dele a
sexualidade, na atualidade é estimulado. fim de se consolidar. A qualidade dessa rela-
Mas como se constituiria a vida sexual de ção primordial daria início a três sentimen-
um sujeito? Quais manobras a alma humana tos primordiais, a saber: amor, ódio ou indi-
precisa realizar para isso acontecer satisfato- ferença. Então, o objeto é levado do mundo
riamente ou não? externo para o eu a princípio pelas pulsões
Vamos ao desafio. de autopreservação, assim como o odiar, ori-
É fundamental para a sexualidade futura ginalmente, caracterizou a relação entre o eu
do sujeito o modo como foram estabelecidas e o mundo externo alheio com os estímulos
as relações objetais nos seus primórdios, pois que introduz. Já a indiferença se enquadra
ali nasce o afeto. como caso especial de ódio ou desagrado,
Já em Os três ensaios sobre a teoria da se- após ter sido inicialmente seu precursor. Te-
xualidade, Freud ([1905] 1996) argumenta mos, pois, primeiro a indiferença do Eu em
que a sexualidade infantil começa pela des- relação aos objetos externos, depois a per-
trutividade do bebê em relação a sua mãe, ou cepção destes pela possível incorporação no
seja, para se constituir, o bebê primeiramente encontro e só depois se dará a revelação do
incorpora o objeto (mãe), mastiga, engole e objeto pela pulsão.
se identifica; depois domina, controla e agri- Ou seja, se o objeto causa prazer ao Eu,
de; enfim, quando consegue formar um Eu este fica incorporado como objeto amado,
forte, descobre-se como um ser com ou sem fonte formadora desse Eu do prazer purifica-
pênis. Assim, pela relação com o ambiente, do, deixando os objetos de fora como odia-
define-se como menino ou menina. dos ou estranhos mais uma vez.
Freud ([1905] 1996, p. 198) escreve: Primeiro o Eu é indiferente ao mundo
externo; depois que faz o contato com ele e
O componente cruel do instinto sexual se obtém algum prazer, incorpora-o como ob-
desenvolve na infância ainda mais indepen- jeto amado ameaçador, deixando de ser in-
dentemente das atividades sexuais ligadas às diferente. Mas e o ódio? Este seria resultado
zonas erógenas. A crueldade em geral aparece do desprazer e da frustração com o objeto,
facilmente na natureza infantil, já que o obstá- reverso do amor. Passaria a rejeitá-lo para
culo que detém o instinto de domínio diante evitar o desprazer, reeditando a tentativa ori-
da dor da outra pessoa – ou seja, a capacidade ginal de fuga do mundo externo e seus estí-
para a piedade – se desenvolve relativamente mulos. O sentimento seria de repulsa do ob-
mais tarde [...] a ausência da barreira da pie- jeto e depois de ódio. Intensificando a ponto,
dade traz consigo o perigo de que a conexão por vezes, de agredir esse objeto e até mesmo
entre os instintos cruéis e os eróticos, assim destruí-lo.

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Segundo Freud (1915), o Eu odeia, abo- Para Freud aqui está a origem afetiva, o
mina e persegue com intenção de destruir modelo que se perpetuará nas relações futu-
todos os objetos que constituem fonte de ras do indivíduo. Se baseada numa relação
desprazer para ele, sem levar em conta que de confiança e amor, com mais prazer do que
significam uma frustração quer da satisfação desprazer, surge um Eu incorporado de sen-
sexual, quer das necessidades autopreserva- sações agradáveis e capaz de buscar relações
tivas. Realmente, pode-se asseverar que os ou um Eu sem busca pelo outro, evitando re-
verdadeiros protótipos de ódio se originam lações com receio de voltar às frustrações já
não da vida sexual, mas da luta do ego para sentidas e repelidas.
preservar e manter-se. Esse Eu construído em seus primórdios
Assim, o amor resulta da satisfação au- estará preparado para uma relação objetal
toerótica do Eu, sendo originalmente narci- ou permanecerá identificado com o objeto
sista, passando somente depois para relação perdido, carecendo de capacidade para tal,
com os objetos, que foram incorporados ao mostrando-se um Eu enrijecido no seu pró-
Eu ampliado, expressando seus esforços mo- prio narcisismo.
tores em direção a esses objetos como fonte Assim, conforme Freud, a mãe inaugura
de prazer. Reconhecemos a fase de incorpo- a sexualidade ao interagir com seu bebê que
ração e devoramento como sendo a primeira pode fixá-la de forma saudável ou nem tanto,
dessas finalidades – um tipo de amor que é através desta dupla via: pulsão e objeto.
compatível com a abolição da existência se- Os afetos (a relação de objeto) que surgem
parada do objeto e, que, portanto, pode ser lá na relação da dupla mãe-bebê serão deter-
descrito como ambivalente. Na fase mais minantes para o desenvolvimento psicosse-
elevada da organização sádica anal pré-geni- xual do sujeito. Implica a formação da sua
tal, a luta pelo objeto aparece sob a forma de identidade, seu gênero e seu caráter, pois, ao
uma ânsia de dominar, para a qual o dano ou passar pela fase fálica, onde agora a criança –
aniquilamento do objeto é indiferente. não mais o bebê – começa uma relação mais
Freud ([1915] 1996, p. 143) afirma: intensa com seu corpo e da outra pessoa e
com o mundo. Se for um corpo erotizado,
[...] amor nessa forma e nessa fase preliminar reconhecido e aceito pelos pais, conseguirá
quase não se distingue do ódio em sua atitude também ela se reconhecer, ter prazer e satis-
para com o objeto. Só depois de estabelecida fação própria para substituí-los pelo demais.
a organização genital é que o amor se torna o Nesse jogo entre amor e ódio-indiferença
oposto do ódio [...] O ódio, enquanto relação com o objeto, o sujeito vai se formando como
com o outro, é mais antigo que o amor. pessoa de afetos e relações, do narcisismo ao
Édipo, reconhecendo-se como homem, mu-
Em outro texto, porém, como Luto e me- lher ou ainda bissexual.
lancolia ([1915] 1996), Freud esclarece que
o investimento no objeto, ao se deparar com Sexualidades no jogo do amor/ódio
frustrações, pode retroceder ao narcisismo Saindo um pouco das relações objetais e pul-
identificando-se com ele e, assim, apesar dos são, Freud, em Três ensaios sobre a teoria da
conflitos com a pessoa amada, não precisa sexualidade ([1905] 1996), propõe reconhe-
renunciar a ela, substituindo a relação eró- cer também uma “bissexualidade psíquica”
tica. Ocorre aqui uma identificação com o (Freud) a partir da “bissexualidade orgânica”
objeto a fim de não perdê-lo. (Fliess). A bissexualidade orgânica foi pro-
Portanto, essa regressão, à escolha objetal posta por Fliess (cartas de Fliess e Freud), e
narcísica pela identificação, pode ser a pri- Freud desmistificou esse conceito através da
meira forma de amar. bissexualidade psíquica, descrevendo a ques-

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tão do monismo pulsional: ativo e passivo tais para o retorno ao discurso sobre a sexua-
para ambos, masculino e feminino. Afirmou lidade.
também que a pulsão é essencialmente mas- A razão de Green falar sobre sexualida-
culina em ambos. de obriga os psicanalistas a rever constante-
Depois em Uma criança é espancada mente suas questões nessa área?
Freud ([1919] 1996, p. 215) amplia seu con- Ele nos disse que o problema não é sim-
ceito referindo que no fato da constituição ples. Lembra que Freud justificadamente
bissexual dos seres humanos a força moti- constituiu as fundações de sua concepção
vadora da repressão, em cada indivíduo, é sobre a vida pulsional, que é, a uma só vez,
uma luta entre os dois caracteres sexuais. O o que há de mais primitivo e solipsista na
sexo dominante da pessoa, aquele que é mais psique, e o que em princípio nada conhece a
intensamente desenvolvido, reprimiu no in- não ser o Isso. Mas de fato, mesmo adotando
consciente a representação mental do sexo esse ponto de vista, a pulsão revela a existên-
subordinado. Portanto, o núcleo do incons- cia do objeto apto a satisfazê-la, assim como,
ciente (quer dizer, o reprimido) é em cada inversamente, o objeto é revelador da pulsão
ser humano, aquele lado dele que pertence (Green, 2008, p. 87).
ao sexo oposto. Assim, Green tornou-se um defensor da
Freud desenvolve sobre identificações, dupla pulsão-objeto para dar conta da clí-
entre outras obras, em Psicologia das massas nica, e a solução não está nem de um lado,
e análise do eu, disse que a psicanálise conhe- nem de outro. A sexualidade está presente
ce a identificação como a mais antiga mani- desde o princípio na vida do sujeito. Consi-
festação de uma ligação afetiva a outra pes- dera a sexualidade do bebê excitado com o
soa. Ela desempenha um determinado papel afeto materno durante a amamentação, por
na pré-história do complexo de Édipo. Mas exemplo.
harmoniza-se muito bem com o complexo Na mesma questão acrescenta:
de Édipo, e ajuda a preparar o terreno para
este (Freud, [1921] 2011, p. 60). O ponto de vista epistemológico moderno
Em O eu e o isso ([1923] 1996) Freud vai enfatiza a dimensão da relação, que deve pre-
afirmar ainda que no jogo identificatório da valecer sobre a concepção da definição de um
demolição do complexo de Édipo, pareceria objeto considerado por si só [...] cabe insistir
que em ambos os sexos a força relativa das na dimensão assimétrica da relação (Green,
disposições sexuais masculinas e femininas 2008, p. 88).
é o que determina se o desfecho da situação
edipiana será uma identificação com o pai ou Escreve ainda que na Inglaterra, particu-
com a mãe. A bissexualidade é talvez, a res- larmente sob influência de Melanie Klein, a
ponsável pelas vicissitudes subsequentes do ênfase colocada na destrutividade eclipsa a
complexo de Édipo. atenção dada à sexualidade. Assim, a sexuali-
Parece que entra em jogo na constituição dade sofre ataques conjugados da psicologia
do sujeito e na sua relação com o outro a con- do ego, psicologia do self, da intersubjetivi-
dição da bissexualidade, oferecendo nuances dade e da perspectiva das relações de objeto
variadas aos afetos ali imbricados. (Green, 2008, p. 90).
O autor que se interessou por integrar es- Porém, Lacan conserva a questão do de-
ses dois eixos da psicanálise de forma pro- sejo e Green (2008, p. 88). afirma:
funda foi André Green. Em sua obra Orien-
tações para uma psicanálise contemporânea A psicanálise francesa pode se orgulhar pelo
(2008), insistiu em sair do debate preponde- fato de que, mais além de suas divisões (laca-
rantemente de uma escola de relações obje- nianos e não lacanianos), todas as correntes

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estão de acordo em reconhecer na sexualida- falta, possa encontrar o objeto em seu próprio
de um papel maior, mesmo que sejam inter- corpo.
pretados de formas diferentes. • A inscrição de traços dessa experiência per-
manecerá no inconsciente e não desaparecerá
E com audácia propõe que O esboço da jamais.
psicanálise enuncia uma mudança notável. A
teoria das pulsões trata de duas pulsões fun- Green ainda mostra surpresa de que, no
damentais: eros e pulsão da destrutividade. desenvolvimento da teoria pós-freudiana,
tão importante para todos, tenha desapare-
Quanto à sexualidade, ela não é mais uma cido a dimensão erótica ligada as às trocas
função que já não está diretamente ligada à entre mãe e criança. Disse que isso aconteceu
teoria das pulsões (Green, 2008,). por múltiplas razões, entre as quais, o purita-
nismo tenha sua parte, como “[...] se as mães
Pois, segundo Green (2008, p. 88), anglo-saxãs não fizessem amor” (Green,
2008, p. 89). Finaliza com a questão:
[...] deve-se substituir aqui a visão centrada
sobre um elemento particular, para substituí- [...] a teoria das pulsões de Freud sofreu uma
-la pelo conceito de uma corrente erótica que verdadeira repressão por parte dos psicanalis-
começa com a pulsão e suas moções pulsio- tas, prontos para aproveitar todas as ocasiões
nais e prolonga-se naquilo que se manifesta para livrar-se dela (Green, 2008, p. 90).
no prazer-desprazer, expande-se no estado de
expectativa e busca de desejo, alimentado por Ele trouxe a questão da sexualidade nova-
representações inconscientes e conscientes, mente para o debate psicanalítico, que se faz
organiza-se sob forma de fantasias incons- necessário, devido à retomada desse tema na
cientes ou conscientes, ramifica-se na lingua- clínica contemporânea. Com sua diversida-
gem erótica e amorosa das sublimações. Po- de através das manifestações da sexualidade,
demos ver, com efeito, que tudo isso remete à clínica de hoje nos desafia diretamente.
questão essencial das relações da sexualidade O autor refere no livro Narcisismo de vida,
e do amor, relações que suscitam ainda mui- narcisismo de morte (Green, 1988) que o
tas interrogações. encontro mãe-bebê se daria pela necessária
ramificação de dois aparelhos funcionais li-
Green disse que Freud revelou ao mundo gados um ao outro, pela diferença potencial
que a mãe é a primeira sedutora da criança devido ao seu desenvolvimento desigual (co-
através dos cuidados e da atitude geral que bertura do Isso-Eu da criança pelo Eu-Isso
tem com ela. da mãe. Essa primeira articulação se rami-
Aqui imbricam quatro ideias: ficaria sobre o aparelho paterno. Cada um
desses três aparelhos poderia servir de me-
• As zonas erógenas são despertadas pelos diação para os outros dois. É necessário con-
cuidados maternos, mas, inibidas no seu fim, siderar que a atribuição de um sexo à criança
retira-se a ideia do trauma. por um dos pais age como um tipo de im-
• Essa relação erótica inscreve-se num con- pressão psíquica. Essa impressão constitui-se
texto puramente marcado pelo selo do amor. na sequência percepção do corpo da criança
Mãe e criança estão reciprocamente enamo- como sexuada, a ser confirmada ou infirma-
radas uma da outra. da nessa forma por um dos pais. Deve-se
• No despertar das zonas erógenas pela mãe portanto, atribuir à fantasia parental, um pa-
(perversão polimorfa), constitui-se o autoe- pel de potente indutor no desenvolvimento
rotismo, onde a criança, em um momento de da monossexualidade individual.

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Parece que estamos para além da necessi- Nos transexuais, devido a sua história
dade de entender como se dá a relação obje- identificatória e mesmo recalcando as moções
tal somente, proponho que pensemos sobre bissexuais, se manifestarão as não correspon-
suas consequências nas sexualidades. O iní- dentes ao seu sexo anatômico. Assim, o re-
cio da vida afetiva humana determinando o torno desse recalcado terá para ele a conota-
rumo da corrente erótica e formação do Eu. ção da ordem do estranho, não reconhecido.
Laplanche (2001, p. 226) também já des- Parece que desde bebê o ser humano vai
crevia o seguinte sobre as identificações: “A aprendendo e fazendo o destino das suas
personalidade constitui-se e diferencia-se futuras relações, de como ele se apresentará
por uma série de identificações”. na sua identidade, em um somatório de vi-
O autor contemporâneo e brasileiro vências satisfatórias ou não, determinando o
Paulo Roberto Ceccarelli (2017), estudioso rumo da sua sexualidade. O equilíbrio dessas
do tema, em Transexualidades, refere que o forças internas em contato com os seus cui-
eu é formado a partir de identificações que dadores: mãe, pai, família e cultura determi-
tomam o lugar de investimentos abandona- narão seu formato de amar.
dos relativos aos objetos dos dois sexos. O O bebê é um ser desamparado, mas já
eu é precipitado de identificações (Freud, sexuado, como aponta Green. Ocupará um
[1923] 1996 apud Ceccarelli, 2017, p. 117). lugar no seu meio e receberá uma enxurra-
A identificação com os dois sexos é o que da de projeções e deslocamentos narcísicos
melhor traduz a noção de bissexualidade dos seus pais, tendo que sobreviver a esse
e, graças a essas identificações, a criança fenômeno herdando e construindo um Eu
introjetará, além das figuras parentais, as capaz de seguir em frente com determinação
referências simbólicas do masculino e do para ocupar um lugar na cultura, identifica-
feminino. do com regras organizadoras internas, mas
Ceccarelli reforça a importância do papel que permitam seu contato com o outro ser
da bissexualidade psíquica na construção do humano para juntos evoluírem a espécie. So-
psiquismo, que seria responsável pelas mani- brepor a destrutividade, eis a função da se-
festações sexuais efetivamente no homem e xualidade, seria a manifestação de pulsão de
na mulher. Seria determinante para a escolha vida e morte fusionadas. O equilíbrio entre o
de um objeto ou mais de um. sadismo e masoquismo.
Chegamos, assim, ao Édipo, momento or- Para Green (2010), a satisfação é acompa-
ganizador tanto da formação da identidade nhada do investimento erótico, fundamento
quanto da bissexualidade psíquica. do narcisismo primário e dos investimentos
Diz Ceccarelli (2017, p. 118) que, à medi- objetais que entram em conflito com a pul-
da que a diferença entre os sexos se afirma, a sionalidade e a realidade. O recalcado está
bissexualidade se virtualiza: persistir na rei- ligado à sexualidade.
vindicação bissexual equivale recusar a dife-
rença dos sexos. Passado o período edipia- Considerações finais
no, o sujeito acederá, na maioria dos casos, a Vimos que Freud teve a coragem de des-
uma identidade ‘monossexual’ em harmonia mistificar o campo humano da sexualidade,
com seu sexo anatômico. A orientação re- explicando o quanto é errante e precisa ser
calcada permanecerá ativa no inconsciente, ligada aos afetos para se constituir de for-
manifestando-se nos desejos inibidos em sua ma saudável e não perversa. Apontou que
finalidade, e na atividade sublimatória. O re- o ódio seria uma busca de preservação dra-
calcamento de uma das moções pulsionais mática de sobrevivência narcísica e quanto o
dependerá de fatores que fogem à predispo- amor seria o resultado de contatos amorosos
sição inata. de duplo sentido: o bebê incorpora o que é

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prazeroso. A incapacidade de amar ficaria As pessoas que procuram atendimento


por conta de vivências dolorosas para o ser na clínica hoje vêm em busca de resolução
humano em constituição. A perversão seria de conflitos nos relacionamentos e buscam
então o fracasso do contato de um Eu com amenizar seu sofrimento independentemen-
o objeto procurado, cristalizando um narci- te da sua escolha objetal ser heterossexual
sismo rígido de indiferença ou de ódio cujas ou não. Buscam falar sobre a sua forma de
satisfações sexuais parciais prevaleceriam amar ou a impossibilidade disso. Parece que
sobre as de relação de objeto. aí reside a contemporaneidade. As mudanças
A escolha homo ou heterossexual do ob- tecnológicas nos aproximam dos contatos
jeto estaria ligada ao arranjo das identifica- virtuais, e diferentes manifestações sexuais
ções masculinas ou femininas no decorrer entre o público e o privado, mostram a for-
da vida do sujeito. E o afeto correspondente ma como isso se estabelece: se geram frutos
seria o determinante da qualidade saudável e evoluem ou se enrijecem, castigam e mal-
ou não da sua vida sexual. Se fixada em pe- tratam o outro.
ríodos primitivos quando a frustração pre- Freud, desde 1905, nos Três ensaios sobre
valeceu, a tendência seria uma vida sexual a teoria da sexualidade, inicia a desmisti-
difícil e dolorosa, reeditando o passado tam- ficação da sexualidade quando relativiza a
bém doloroso. Prevalecendo a capacidade de inversão, retirando-a da degeneração e da
vínculo, de piedade e a triangulação edípica, organicidade para uma categoria de condi-
estaremos diante de uma possibilidade de re- ção humana bissexual. Considera o desen-
lacionamento afetuoso e genital. Se homo ou volvimento psicossexual na infância como
hetero haveria alguma diferença na qualida- determinante afetivo para relações futuras e
de da relação sexual? estabelece a teoria da libido para discriminar
Relembrando Freud ([1905] 1996, p. 213), sua qualidade – narcísicas ou objetais – em
ainda em Três ensaios, define que uma vida relação ao estabelecimento de vínculos.
sexual normal só é assegurada pela exata Em Sobre o narcisismo: uma introdução
convergência da corrente afetiva e da corren- ([1914] 1996), Freud amplia tais questões,
te sensual, ambas dirigidas para o objeto se- levando-nos aos destinos dos instintos (pul-
xual e o objetivo sexual a partir da puberda- sões) e à construção do aparelho psíquico.
de. Considera que os instintos (as pulsões), Assim como os autores pós-freudianos como
antes centrados nas zonas erógenas, agora Green e Ceccarelli, citados neste trabalho,
devam ter um fim de reprodução, portanto buscaram atualizar tais conceitos para dar
altruístico. Entendemos que, uma vez consi- conta à clínica contemporânea, onde a se-
derado o objeto como alvo da sexualidade, xualidade volta a nos desafiar.
implica uma relação de objeto e que toda a São aportes importantes para se conside-
patologia da vida sexual pode com justiça rar na clínica atual, pois encontramos sus-
ser considerada uma inibição do desenvol- tentabilidade para encarar os desafios e, as-
vimento, cuja fixação estaria na forma da sim como o mestre, haveremos de dar segui-
construção do narcisismo? mento às pesquisas nessa condição humana.
Parece que, havendo consideração pelo
objeto, com sentimentos afetivos estabele-
cidos, princípios éticos e de reciprocidade, a
genitalidade estaria justificada independen-
temente do gênero. Porém, onde prevalecer
um eu destrutivo em uma relação de domi-
nação, parcial e dolorosa, a sexualidade esta-
ria comprometida.

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Vamos (voltar a) conversar sobre sexualidade em psicanálise? Amor e ódio e seus destinos nas manifestações da sexualidade

Abstract trabalhos (1914-1916). Direção geral da tradução de


The psychoanalytic formation at Círculo Jayme Salomão Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 81-113.
(Edição standard brasileira das obras psicológicas
Psicanalítico do Rio Grande do Sul (CPRS) completas de Sigmund Freud, 14).
completes and deepends topics that may raise
questions regarding the development of the FREUD, S. Os instintos e suas vicissitudes (1915).
theoretical scope of psychoanalysis, whilst also In: ______. A história do movimento psicanalítico:
aiding in meeting clinical challenges arising artigos sobre metapsicologia e outros trabalhos (1914-
1916). Direção geral da tradução de Jayme Salomão.
from working in this field of Psychology. I Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 123-144. (Edição
start the theoretical debate with freudian standard brasileira das obras psicológicas completas
postulations regarding the relationship between de Sigmund Freud, 14).
mother and baby concerning its driving focus,
but also taking into consideration the mother’s FREUD, S. Luto e melancolia (1917). In: ______. A
história do movimento psicanalítico: artigos sobre
responsibility towards the construction of the metapsicologia e outros trabalhos (1914-1916). Direção
self, from the constitution of narcissism with its geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro:
importance in the oedipal complex later on in Imago, 1996, p. 249-263. (Edição standard brasileira
the individual’s life, preparing their sexuality. das obras psicológicas completas, 14).
I bring forth the concept of organic bisexuality
FREUD, S. Uma criança é espancada: uma contribuição
(Fliess) and psychic bisexuality (Freud) ao estudo da origem das perversões sexuais (1919).
concerning the oedipal identification towards In: ______. Uma neurose infantil e outros trabalhos
the individual’s possible fates, including in, (1917-1918). Direção geral da tradução de Jayme
or mainly in, their sexuality. Afterwards, I Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 195-218.
use concepts of post-freudian authors such (Edição standard brasileira das obras psicológicas
completas de Sigmund Freud, 17).
as Green, Laplanche and Ceccarelli so as to
update concepts and impressions concerning a FREUD, S. Psicologia das massas e análise do eu
much needed topic, as is my belief, regarding (1921). In: ______. Psicologia das massas e análise
the fates of drives that influence human love do eu e outros textos (1920-1923). Tradução de Paulo
relationships. César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras,
2011. p. __-__. (Obras completas, 15).

Keywords: Object relations, Sexuality, FREUD, S. O ego e o id (1923). In: ______. O ego e
Identifications, Love, Hate. o id e outros trabalhos (1923-1925). Direção geral da
tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago,
1996. p. 25-71. (Edição standard brasileira das obras
psicológicas completas de Sigmund Freud, 19).
Referências GREEN, A. Narcisismo de vida, narcisismo de morte.
São Paulo: Escuta, 1988.
CECCARELLI, P. R. Transexualidades. São Paulo:
Pearson, 2017. GREEN, A. Orientações para uma psicanálise
contemporânea. Rio de Janeiro: Imago; São Paulo:
FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade SBPSP, 2008.
(1905). In: ______. Um caso de histeria, três ensaios
sobre a teoria da sexualidade e outros trabalhos (1901- LAPLANCHE, J. Vocabulário da psicanálise. São
1905). Direção geral da tradução de Jayme Salomão. Paulo: Martins Fontes, 2001.
Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 119-229. (Edição
standard brasileira das obras psicológicas completas Recebido em: 28/05/2019
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Gilla Maria Jacobus Bastos

Sobre a autora

Gilla Maria Jacobus Bastos


Psicóloga formada pela Universidade
do Vale do Rio dos Sinos,
São Leopoldo/RS (UNISINOS. 1987).
Psicoterapeuta especialista em psicologia clínica
realizada no Instituto de Psicologia (IPSI)
Novo Hamburgo/RS, reconhecido
pelo Conselho Federal de Psicologia (2004).
Docente da disciplina Psicologia
do Desenvolvimento I (Freud I)
no Curso de Formação em Psicoterapia
de Orientação Psicanalítica no IPSI desde 2010.
Supervisora do Instituto de Psicologia (IPSI)
desde 2012.
Candidata em Formação
no Circulo Psicanalítico do Rio Grande do Sul.
Currículo Lattes:
<http:/lattes.cnpq.br/1412024916645924>.

Endereço para correspondência


E-mail: <gillabastos@gtmail.com>

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