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ALGUNS TÓPICOS FUNDAMENTAIS SOBRE CANTO

GREGORIANO:
I. DIVISÃO DO REPERTÓRIO:
PRÓPRIO
Definição: conjunto de todas as rubricas declamadas ou cantadas, quer no contexto do
cerimonial litúrgico da Missa, quer no contexto dos ofícios litúrgicos (“missas” bem mais breves,
mas várias durante todo o dia e noite), ou (como também são designadas) das «Horas» nos
mosteiros e conventos, que são específicas do tema religioso celebrado (Por exemplo, da época
do ano litúrgico em questão - Advento, natal, Quaresma, Páscoa/ressurreição de Cristo,
Pentecostes, entre outros - ou de celebração da vida de um santo, mártir, doutores da Igreja,
etc..

Exemplos de rubricas cantadas do Próprio: Introito, Ofertório, Gradual, Alleluia, Tractus,


Ofertório.

Tipo de Execução das Rubricas Cantadas do Próprio: por se tratar das rubricas especiais com
textos próprios, as antífonas (sinónimo de “melodias” na gíria técnica deste repertório), ou
cantilenas gregorianas têm uma execução responsorial, isto é, apenas o Schola Cantorum,
nome que se dá ao coro especializado, interpreta estas rubricas em alternância interna entre
a totalidade dos seus membros e um solista ou pequeno grupo de solistas. (Por exemplo, os
versículos dos Alleluias ou dos Graduais, sendo prolixos e muito desenvolvidos, bastante
ornamentados, costumam ser cantados por um solista, ou pequeno grupo de solistas).

ORDINÁRIO

Definição: conjunto de todas as rubricas declamadas ou cantadas, quer no contexto do


cerimonial litúrgico da Missa, quer no contexto dos ofícios litúrgicos (mais breves), ou das
«Horas» nos mosteiros e conventos, que são comuns, e por isso, estão praticamente sempre
presentes em todas as celebrações (com algumas exceções pontuais, por uma questão de
brevidade, ou de adequação).
Exemplos de rubricas cantadas do Ordinário: Kyrie, Gloria, Credo, Sanctus, Agnus Dei

Tipo de Execução das Rubricas Cantadas do Ordinário: por se tratar das rubricas comuns, com
textos sabidos de cor por todos os fiéis, a as rubricas cantadas do Ordinário têm uma execução
antifonal, isto é, a assembleia ou a congregação canta em alternância (por vezes ao mesmo
tempo) com o Schola Cantorum, (o coro especializado). O termo justifica-se aqui não pelo
significado de antífona como sinónimo de melodia ou cantilena, mas sim pelo efeito espacial
antifónico que decorre da localização bem demarcada na Igreja do coro com os fiéis, Para além
das diferenças de volume sonoro. Outra questão relevante que importa salientar é que as
rubricas do ordinário para além de servirem um propósito de fidelização cristã, ritualizada em
litanias, acaba por dar a oportunidade às pessoas comuns de terem uma participação menos
passiva (em vez de apenas receber a inquestionável palavra divina e comungar do espírito
gregário em torno da figura de Jesus Cristo, etc.). Consoante as épocas festivas do ano litúrgico,
e da maior ou menor simplicidade ou erudição musical das assembleias, as rubricas do Ordinário
podiam ser escolhidas em função do maior ou menor grau de dificuldade de interpretação. Por
isso, apesar de ser mais habitual existirem melodias mais acessíveis e simples no Ordinário, há
vários exemplos de por exemplo, Kyries, Santus, e Agnus Dei mais elaborados em termos de
composição.
Nota: Para ter conhecimento, a título meramente informativo (mas culturalmente estimulante), a
constituição e a ordem típica de todo o cerimonial de rubricas declamadas e cantadas numa missa ver o
canto inferior direito do documento 1A, e ler a secção “Chant in the mass” do documento 1C, da autoria
de Susan Boyton (pp. 7-12 do respetivo PDF).

II. OS 4 DOCUMENTOS ESSENCIAIS PARA AS CELEBRAÇÕES


LITÚRGICAS:
No caso das Horas ou Ofícios breves nos Mosteiros e nos Conventos (celebrados ao longo do
dia (e da noite!)), temos: i) o Breviário com as rubricas declamadas ii) o Antifonário Monástico
com as rubricas cantadas. Apesar das melodias serem mais breves (só os chamados
“responsórios” costumam ser mais prolixos e elaborados), o Antifonário Monástico é um livro
bem grosso (note-se que cada semana tem 7 dias e em cada dia celebram-se em média 8 ofícios
litúrgicos; mesmo que algumas peças fossem repetidas noutros dias, são de facto imensas…)
Nota: para um conhecimento acerca da organização destas cerimónias breves em contexto conventual,
monástico, ler a secção “Chant in the office” do já documento 1C, da autoria de Susan Boyton (pp. 5-7 do
respetivo PDF).

No caso do grande cerimonial da Missa (tradicional) temos i) o Missal com as rubricas


declamadas; ii) o Gradual Romano com as rubricas cantadas. Há um caso editorial especial deste
último, o Gradual Triplex, o qual acrescenta à notação oficial do Canto Gregoriano em 4 linhas
as notações primitivas de Laon e St. Gall, as quais permitem aos coros profissionais,
academicamente dirigidos por estudiosos de paleografia e semiologia do Canto Gregoriano,
qualificarem com maior propriedade e souplesse interpretativas as suas performances. De facto,
apesar dos símbolos de cada uma dessas notações serem quase indecifráveis para a esmagadora
maioria das pessoas musicalmente instruídas, quem se dedica de modo mais aprofundado ao
estudo das notações primitivas, tem a capacidade excecional de descodificar estas notações
permitindo interpretações musicais mais subtis, e esteticamente mais sustentadas
(presumivelmente mais “autênticas” – aspas bem intencionais!).

III. GÉNEROS DE INTERCALAÇÃO TEXTUAL:


Existem três géneros de intercalação dos textos litúrgicos em Canto Gregoriano: silábico,
neumático e melismático.

Género silábico: neste caso, para cada sílaba, corresponde um neuma simples (nota: neuma é
o termo técnico que designa as figuras musicais em Canto Gregoriano, embora não indiquem
valores rítmicos), ou seja um neuma em média com uma só nota (por exemplo, um punctus ou
uma virga, as duas figuras mais simples em Canto Gregoriano, conforme 2º coluna do lado
direito do quadro D do documento 2A), com algumas sílabas a receberem, no máximo, neumas
de duas ou três notas. Há, portanto, uma intensa articulação silábica nestes casos. Isto acontece
habitualmente em textos mais longos, para que a melodia não fique muito longa, por exemplo
nos Credo e Gloria do Ordinário. Os salmos são por inerência silábicos, exceto no caso dos
graduais, alleluias, e tractus, por serem momentos altos da Liturgia (do cerimonial das missas),
destinados habitualmente aos melhores solistas. Mas este género, tal como os outros dois que
se seguem pode ocorrer em qualquer outra rubrica do Ordinário ou do Próprio.

Género Neumático: aqui em média as sílabas das palavras que constituem o texto das antífonas,
cantilenas, ou melodias gregorianas recebem neumas de pequeno, médio desenvolvimento, por
exemplo constituídos por 3 a 7 notas. É o género de intercalação textual mais transversal a todo
o repertório gregoriano.

Género Melismático: este é o mais prolixo, o mais desenvolvido de todos. As sílabas tónicas das
palavras mais relevantes, ou (quando as palavras têm mais de três sílabas) até as sílabas
secundárias e/ou as sílabas finais integram neumas (figuras em Canto Gregoriano, sem valor
rítmico quantificado, como já se disse em cima) muito desenvolvidos, podendo em alguns casos
serem constituídos por mais de duas dezenas de notas (havendo até exemplos realmente muito
espetaculares, em termos ornamentais, ultrapassando este número!): o chamado “Júbilo” do
Alleluia (a sílaba final «A»), o corpo melódico (1ª parte) dos Graduais e os salmos que lhes
seguem, tudo do Próprio) são os casos mais frequentes em que o género melismático se
manifesta (de modo quase exuberante).
Nota: para procurar saber classificar diferentes melodias/antífonas gregorianas quanto ao género de
intercalação, tem muito material no Documento 6.

IV. BREVE COMENTÁRIO SEMIOLÓGICO ÀS NOTAÇÕES PRIMITIVAS


(Nota: OS PRIMEIROS TRÊS PARÁGRAFOS, POR FORTE NECESSIDADE CONTEXTUAL, REFEREM-SE A QUESTÕES DE
TRNASMISSÃO ESCRITA E ORAL VERBAL, ANTES DE SE PASSAR À MÚSICA PROPRIAMENTE DITA)

A cultura científica, filosófica, teológica na Idade Média, mesmo aquela cuja


divulgação não estava tão condicionada pelo dogmatismo escolástico (pela
autoridade doutrinal eclesiástica) tinha limitações físicas de circulação escrita,
(verbal, literária): embora a atividade de cópia nos scriptoria de cada mosteiro e
convento fosse, dentro das possibilidades de cada um deles, intensa, a disseminação
geral pelos vários mosteiros, etc., por toda a europa cristã estava dependente de
vários fatores, tais como: do ritmo de preparação dos papiros e dos pergaminhos,
das cores das tintas, da reprodução gráfica dos documentos, da forma como os
autores dos textos os ditavam aos copistas, de como eles os esboçavam
caligraficamente ou entregavam aos “editores”, do tempo que estes últimos tinham
de esperar pelos comentadores que escreviam os seus comentários ao lado ou por
baixo dos textos originais, etc. Por isso, o nº de manuscritos nunca podia ser grande,
muito menos “industrial”, a cópia era um processo lento e bastante dispendioso.
(Note-se que a impressa, de Gutenberg, só foi inventada no séc. XV, e a imprensa
musical (polifónica) só no início do século XVI, por Petrucci). Não é, pois, de
estranhar que a oralidade, a transmissão oral em muitíssimos casos tinha mesmo
de substituir a transmissão escrita, consequência dos obstáculos de reprodução de
cópias a curto prazo.

Ora, uma vez que o processo de escrita era de facto muito demorado e moroso, de
modo a potenciar o gosto pela aquisição das novas informações, ideias ou novos
feitos, os grandes doutores da Igreja desenvolviam dotes expressivos de oratória,
ou seja procuravam aprofundar a sua arte de persuasão oral junto dos seus
“públicos” – uns mais, outros menos eruditos, mas todos socialmente privilegiados
-, em reuniões, serões de leitura e de escuta atenta de mestre e seus discípulos, de
encontros ou reuniões magnas, de “virtuosas” assembleias conciliares. Por outras
palavras, qualquer texto literário, filosófico, científico, e/ou teológico para ter maior
sucesso na sua apresentação, tinha de ser veiculado oralmente com expressividade,
e dramatismo para convencer os ouvintes no decurso da comunicação. Para isso,
não só a linguagem tinha de ser gramaticamente correta, os raciocínios logicamente
apresentados, e a escolha de um vocabulário simultaneamente claro e eloquente
(ainda que de quando enigmático para criar maior expectativa ou suspense nos
ouvintes), como também tinha de ser emocionante e cativante na forma de
comunicação, ou seja os oradores tinham de ter realmente um excelente poder de
retórica. (Está mais do que provado que se um orador ou comunicador não for
suficientemente convincente na sua performance, por muito interessante que seja
um tema ou assunto, este poderá não passar aos recetores; e o mesmo se diz de
qualquer peça musical em qualquer época e dos seus intérpretes/performers.)

Para os grandes oradores otimizarem a sua retórica, aos textos escritos que eles
liam junto das suas audiências eram previamente adicionados, por entre as palavras
e/ou entre as linhas do discurso, sinais não só de pontuação, mas também de
respiração, de articulação das palavras, de dicção, de velocidade no debitar das
palavras umas em relação às outras, de maior ou menor leveza, de maior clareza ou
escurecimento do timbre da voz, de entoação enfática nas sílabas principais, de
“fade-outs” finais, etc.; ou seja sinais que estavam próximos de parâmetros que
podemos associar a qualidades sonoras da música. Todos estes aspetos de elocução
e expressão dos textos literários eram o que constituíam as notações de retórica.
Ora, entrando agora diretamente no caso da música, quando começaram a
desenvolver-se cada vez mais os primeiros ritos religiosos locais no séc. VII, as
primeiras formas de notação musical basearam-se essencialmente nas notações
de retórica literária em vigor em cada região. Portanto, as notações “musicais”
serviam apenas como um auxiliar de memória, pois o repertório era cantado
quase sempre de cor pelos coros e os seus solistas. Estas notações não indicavam
quais as notas, nem possuíam quaisquer indicações de ritmo. Porém, os sinais
utilizados (muitos emprestados diretamente dos da retórica literária, e alguns deles
já reconfigurados para se aproximarem da componente mais musical), permitiam
aos cantores lembrarem-se do contorno melódico, bem como doutros aspetos
performativos, em tudo semelhantes aos da respiração, fraseado, timbre, ênfase de
volume sonoro, maior ou menor peso de articulação, aceleração do tempo,
entoação, já previstos no exercício sofisticado da oratória.
Quando o Canto Gregoriano se forma em Aix-la-Chapelle, a disseminação do
repertório é feita através do envio de manuscritos para todas as regiões do Império
de Carlos Magno, de modo a preservar aquilo que a equipa de Alcuino de York (entre
outros) tinha fixado como o rito carolíngio (constituído, como já vimos, pelo rito
romano antigo revisto agora uma “2ª vez”, mas baseado no trabalho de S. Gregório,
acrescido de algumas fórmulas galicanas). Todavia, o choque entre as notações
primitivas existentes nos diferentes pontos do Império de Carlos Magno antes da
unificação, não se apagou de um dia para o outro, e apesar de com o tempo elas se
terem vindo a aproximar umas das outras, continuaram a existir várias notações
locais com traços distintivos. Pelo que nunca terá existido, nesta altura, uma
absoluta uniformidade e unicidade composicional do Canto Gregoriano.
Quanto ao sistema de 4 pautas que se vê nos livros atuais de Canto Gregoriano: a
notação quadrada em sistema de pauta só se iniciou já bem dentro do séc. X, XI, e
foi-se desenvolvendo com a evolução da escolástica medieval e das suas sete artes
liberais - Quadrivium e Trivium (que hão de ser mais explicitamente abordadas
mais à frente na matéria), e à medida que o cristianismo foi ganhando cada vez mais
fiéis até ao séc. XIII.
Antes do séc. IX/X, as notações eram, na melhor das hipóteses, diastemáticas, isto
é: indicavam o contorno melódico e se determinados neumas caiam ou não na
mesma altura (se tivessem escritos na mesma linha imaginária em campo aberto –
ver o quadro dado na aula), sem definir concretamente as notas; ou então eram
não-diastemáticas: isto é, davam o contorno melódico, mas não permitiam
relacionar as alturas dos neumas entre si ao longo das
antífonas/cantilenas/melodias, o que para nós, hoje em dia, é aparentemente uma
desvantagem. Porém, na realidade, trazem outras vantagens, mais subliminares.
Efetivamente, a maior parte das notações mais antigas são deste tipo, isto é, não-
diastemáticas, ou adiastemáticas. As duas mais importantes que servem de
referência ao Gradual Romano são as de Laon (ou Messina, da região de Metz) e
de St. Gall, sobre as quais recaíram muitos dos estudos mais desenvolvidos sobre
a composição do Canto Gregoriano, e assim continua: apesar de através delas não
se poder ter acesso imediato às notas específicas das várias melodias (e a este nível
até menos do que nas notações diastemáticas), as outras informações de execução
e de interpretação (como as que se referiram em cima a propósito da retórica
literária) são muito úteis. Posteriormente, surgiram notações com i) uma ou duas
linhas coloridas para situar, por exemplo, os meios-tons acima ou abaixo das
mesmas, sendo de certo modo as precursoras das claves; ii) outras notações em que
sobre os neumas se colocavam letras do alfabeto para identificar as notas; até iii) se
chegar ao sistema de notação quadrada em pauta de 4 linhas que se generalizou
essencialmente, mas lentamente, a partir do séc. XI e se tornou suficientemente
“prescritivo” no séc. XIII. (Nota: para uma ilustração esclarecedora deste assunto,
ver as tabelas A, B, e C do documento 2A, e – por curiosidade - os dois exemplos no
documento 2B, extraídos de duas fontes primárias.)

Quando a Abadia de Solesmes, em Sablé-sur-Sarthes, no final do séc. XIX, início do


séc. XX decide revivificar o Canto Gregoriano, e volta às fontes primárias, faz as suas
pesquisas em, por assim dizer, pino histórico: começa por basear-se nos
manuscritos do séc. XIII, pois esses tinham as notas já todas escritas, e andam
progressivamente para trás até chegarem às notações mais primitivas que lhes
deram origem (nota: complementar, facultativamente, esta informação através da
leitura da secção “Notation and performance”, no documento 1B, de Susan Boyton,
pp. 15-18). Ao longo de todo o séc. XX e até ao presente momento, os especialistas
de Semiologia Gregoriana (estudo dos manuscritos com vista à correção de notas
anteriormente mal adivinhadas, e a qualificar os aspetos interpretativos, entre
outros) foram aprofundando os seus estudos relativos aos exemplares mais antigos
em diferentes notações (embora com predomínio, embora menor nas de Laon e St.
Gall), comparando-os. Mais recentemente, graças ao gosto pela entreajuda
multidisciplinar, especialistas de latim litúrgico (escrito e falado) têm contribuído
para iluminar certas questões de expressão e acerca da autenticidade das melodias
do Canto Gregoriano. [Note-se que os sinais de retórica das notações literárias têm
um historial de descodificação de significados menos sinuoso para os semiólogos
em Linguística, sendo que como há uma aproximação fisionómica de certas
notações literárias às primitivamente utilizadas para o Canto Gregoriano, tal vem
permitindo novos desenvolvimentos no plano da verificação da genuinidade musical
do repertório do Próprio e do Ordinário constantes das versões anteriores dos dois
grandes livros com o repertório fundamental do Canto Gregoriano, o Gradual e do
Antifonário Monástico desde há mais de 100 anos a esta parte, quer na sua
estrutura de composição, quer ao nível da sua interpretação/execução. Não há
dúvida que estabelecer interfaces entre campos do saber aparentemente
independentes ou autónomos como sejam a literatura ou as línguas antigas (tais
como o latim litúrgico ou o latim clássico) e a música veio felizmente trazer
vantagens.]

V. OS OITO MODOS GREGORIANOS, OU OCTOECCOS


O Documento 4 esquematiza este assunto muito bem. Importa, através dele, saber
a designação latina dos 4 modos autênticos e plagais e a relação de “semelhança”
entre os tetracórdios (representados por mim em parêntesis rectos), as suas
extensões, e as suas finais e dominantes (primitivas e modernas, quando existam,
ou seja nos modos Deuterus autêntico e plagal e Tetrardus plagal).
Nota: para procurar reconhecer na prática a classificação dos modos em diferentes
melodias/antífonas gregorianas, pode recorrer-se também ao Documento 6.

VI. O DESENVOLVIMENTO/CRESCIMENTO DO CANTO GREGORIANO


ENTRE OS SÉCS. X E XIII

1. O Aumento do Repertório Oficial durante a Alta Idade Média:

Introdução: O Canto Gregoriano, desde a sua formação oficial no séc. IX, ao ser
disseminado por toda a Europa Cristã, atingiu uma população cada vez mais
numerosa. Efetivamente, com a necessidade de deslocação de séquitos
religiosos de umas regiões para outras, muitas vezes bastante afastadas umas
das outras e cuja duração das viagens era enorme obrigando a várias estadias
intermédias ao longo do percurso (pequena nota: temos de ter em conta que
estamos na Idade Média e os meios de transporte eram comparativamente
ainda muito rudimentares), o nº de fiéis cresceu, e com eles também
aumentou o nº de figuras de referência, mártires, santos padroeiros, a par do
desenvolvimento da arquitetura monumental gótica (em extensão e altitude
das Igrejas), face ao românico.

Além disso, estes séculos foram atravessados pelas Cruzadas no Oriente e no


Ocidente, que aspiravam à recuperação de Jerusalém frequentemente
ameaçada e apoderada por árabes/mouros, etc. Tornava-se, por isso, cada vez
mais importante aumentar o ritual litúrgico, com mais celebrações e festas de
devoção a Cristo, Maria, os Apóstolos e a todas as figuras da Igreja que,
entretanto, se evidenciavam pelos seus sacrifícios e feitos. Tudo isto obrigou à
criação de novos textos para o Próprio do Calendário Litúrgico Anual.
Porém, a intenção de preservar a pureza “romana antiga” do Canto
Gregoriano instituído por Carlos Magno, fez com que se procurasse evitar ao
máximo a alteração das suas antífonas e cantilenas/melodias neste vasto
processo de desenvolvimento litúrgico, ou que, pelo menos, grande parte das
suas características modais, melódicas e de intercalação textual fosse
mantida. Assim, o repertório aumentou num contexto rico de uma “arte de bem
modular/moldar”, através de processos de adaptação cuidada de novos textos
a melodias gregorianas de referência ou às suas características mais familiares.
O resultado que pode em vários casos sugerir-nos a ideia de (pura)
“contrafação”, na realidade, nada tinha de criminal, desde que o objetivo fosse
o de preservar a pureza musical e expressividade elevada do Canto Gregoriano
em novos textos de aplicação ritual e de devoção litúrgica. Assim,
desenvolveram-se, essencialmente, dois processos de desenvolvimento do
Canto Gregoriano até ao fim da Idade Média, nos finais do séc. XIII (início do
séc. XIV, o mais tardar): processo de Centonização (ver 1.1) e processo de
criação de melodias, dentro da tradição, recorrendo a fórmulas melódicas de
ancoragem composicional, típicas de cada modo gregoriano (ver 1.2).

1.1. Centonização: este processo é, de longe, o que preserva a estrutura das


melodias gregorianas existentes até ao século IX/X. Consiste em ajustar
ligeiramente o nº de sílabas de um texto novo a uma melodia pré-existente
cujo texto original tenha um nº diferente de sílabas. Habitualmente
procede-se ao acréscimo de “punctus” no mesmo grau melódico antes da
sílaba tónica, se o novo texto tiver mais sílabas, ou então retirando punctus
silábicos ou eliminando pequenos neumas de duas notas que precedem as
notas de uma sílaba tónica mais ornamentada de uma palavra relevante na
frase, isto quando o texto novo a receber a mesma melodia é mais breve.
EXEMPLOS DE CENTONIZAÇÃO (para perceber melhor na prática): ver as
primeiras duas páginas do Documento 3: confrontar “Justus ut palma
florebit” (pág. 1), com “Requiem Aeternam” (pág. 2), na íntegra.

1.2. Melodias-Tipo: este processo é estruturalmente mais “moldante”,


plasticamente mais moldador (por assim dizer), na medida em que preserva
apenas algumas fórmulas melódicas típicas dos inícios (por vezes com
alguns “gestos sequenciais” semelhantes entre si), e/ou das terminações
das composições gregorianas pré-existentes, em cada um dos oito modos
gregorianos, isto é, preserva a familiaridade que os ouvintes e cantores
tinham da abertura e/ou dos repousos intermédios ou finais típicos de
muitas antífonas escritas em cada modo (autêntico ou plagal) do octoeccos.
São, no fundo, pequenos gestos melódicos e modais facilmente
reconhecíveis ao ouvido comum, ou seja, autênticas pequenas melodias-
tipo, sendo o novo material adicionado no meio das antífonas logicamente
composto na mesma base modal ou nos mesmos desenvolvimentos modais.
EXEMPLOS DE MELODIAS-TIPO (para perceber melhor na prática):
Comparar
a) os inícios dos exemplos “Benedicam Dominum”, com “Gaudeamus
Domino”, e Rorate Deum”, nas págs- 3 a 5 do documento 3;
b) os finais, as terminações cadenciais da CO »Ultimo Festivitatis Die”, sobre
a 2ª vez em que se canta a palavra “alleluia”, na pág. 7 do Documento 3, e
as sílabas “[Me]us Dómine” imediatamente antes da 1ª barra dupla do IN
“Ecce Deus”, na pág. 8 do mesmo documento 3.

2. O Repertório Pseudo - Gregoriano, Paralitúrgico: os Tropos e


a Sequência

Introdução: as técnicas de preservação têm sempre um lado de compensação,


quando se trata de manter algo que fica sujeito a novos tempos e novas
necessidades. Ora isso também aconteceu no Canto Gregoriano. Os monges dos
coros especializados, dos Schola Cantorum, várias são as crónicas disto,
sentiam, não poucas vezes, uma enorme dificuldade ao decorar as peças mais
melismáticas, fossem elas do Ordinário, ou do Próprio, para depois cantá-las de
cor, sincronicamente e em “monofonia” com os seus pares. Surge então o
primeiro de três tipos de Tropo (vem do grego que significa “desvio de direção”,
“mudar, girar”; temos uma palavra em português próxima deturpar, em francês
o termo “se tromper”, que significa “enganar-se”, tem um fundo etimológico
igualmente próximo, para além da palavra tamper em inglês que significa
“alterar”, e ainda as palavras trop em francês e troppo em italiano, que significa
“tanto”).

2.1. Os Tropos
2.1.1. Tropo Textual: neste caso os monges fragmentavam os longos melismas
sobre uma sílaba em tantos punctus (figuras mais simples) quanto o nº de
notas que os constituíam, inventando um texto com o exatamente o mesmo
nº de sílabas, para assim melhor fixarem, memorizarem cada nota. Depois, na
“hora de verdade” executavam o melisma mantendo-se na sílaba original,
embora mentalmente pudessem estar a lembrar-se do texto de “aide de
mémoire”, de mnemónica inventado. Estes textos eram muitas vezes
descabidos e por isso não passava pela cabeça dos monges executá-los “live” na
liturgia, nas missas. Porém, alguns textos inventados até vinham a propósito,
tendo alguns deles se tornado apetecíveis, pelo que alguns destes tropos
“ajuizados” ganharam popularidade e foram ficando como hipótese de
contemplação litúrgica (pelo menos até à Contra-Reforma Católica na 2ª
metade do séc. XVI.); é o caso do Kyrie “Fons bonitatis”, explicado
esquematicamente no topo da pág. 3 do documento 5, e reproduzido
iintegralmente logo na sua pág. 1).
2.1.2. Tropo Melódico: neste caso os monges, porventura os mais dotados
vocalmente e expressivos, sendo solistas na execução responsorial das rubricas
cantadas do Próprio, ou mesmo no cântico dos salmos, no momento da sua
intervenção individual ornamentavam ad libitum, a seu belo prazer, as linhas
melódicas, fossem elas relativamente simples e silábicas, ou já de si prolixas, em
qualquer dos casos desenvolvendo, especialmente as primeiras, e também as
segundas. Porém nas partes melismáticas, poderia dar-se o caso de terem de
abreviá-las em função do tempo disponível, ou do grau de solenidade ou
cativação junto da assembleia. Grande parte destes tropos melódicos eram
feitos no momento, pelo que os desconhecemos em larga maioria. Os que
ficaram escritos, sabemos que foi porque os próprios autores perceberam que
eles teriam sempre sucesso (fazendo parte do repertório de “star” de cada um
deles, para seu uso em futuras ocasiões, e para que a memória oral nos
atraiçoasse com o passar do tempo, ou para ficar para a posteridade, por
acharem que mereceria a pena outros solistas os usarem).

2.1.3. Tropo Melódico-Textual, também designado Tropo de Intercalação:


neste caso, os “tropadores”, no intuito de reforçarem e/ou explicarem melhor
o significado e a expressividade dos textos das rubricas cantadas, quer do
Ordinário, quer do Próprio, como que abriam espaço entre as diferentes frases
melódico-textuais dessas rubricas, enxertando e intercalando novos textos
acompanhados, cada um deles, de uma linha melódica que se encadeava quer
semanticamente, quer esteticamente com a frase precedente e a seguinte. É o
caso do CREDO na pág. 2 do documento 5: as frases originais estão sublinhadas
no texto; as que se seguem a cada uma delas correspondem ao processo de
“tropagem” melódico-textual. (pequena nota: o exemplo vem apresentado em
transcrição moderna, e não em notação gregoriana, para fins didáticos…)

2.2. A Sequência (“Gregoriano Pop”)


A Sequência tem o seu embrião num processo de tropo textual sobre o “júblilo”
do Alleluia, pelas razões citadas em cima: Notker Balbulus, um monge de St. Gall
queixava-se da extrema dificuldade de decorar o grande melisma da última
sílaba A da palavra Alleluia, antes do versículo, também designado de
“sequentia”, além de “júbilo”. Pelo que a técnica começou por ser a mesma da
dos tropos textuais. Tratando-se, neste caso concreto, de um momento
especialmente alegre da missa, a palavra Alleluia (alegria em português) era
cantada duas vezes, antes de entrar o solista (ou solistas) para o versículo. Pelo
que desta prática começaram a ser compostos/inventados dois textos sobre o
melisma do júbilo/”sequentia”. Como facilmente a alegria dá lugar à ideia de
festa, de celebração festiva, de liberdade de comportamento, alguns aspetos
mais seculares, mais profanos acabariam por se infiltrar na escrita destes tropos
textuais. Não tardou muito houve autores, monges que passaram integrar rima
nas frases, aproximando a estrutura dos textos religiosos, até então sem rima,
a assemelhar-se à da poesia profana, nomeadamente da dos trovadores, com
quem os monges conviviam. A regularidade da rima, e a sua periodicidade de
repetições fez então nascer uma nova forma musical – a sequência - cujo termo
ficou ligado à origem de tudo isto. Assim, as Sequências passaram a ser escritas
de raíz, e eram formadas por uma sucessão de linhas melódicas, que na
esmagadora maioria dos casos, cada uma delas era cantada duas vezes com
dois versos/frases literárias com rima entre si, ou até rima interina.

Apesar de serem “pseudo-gregorianas”, tornaram-se tão populares que a Igreja


deixou que as mesmas entrassem em várias celebrações litúrgicas, logo a seguir
ao Alleluia, na sequência deste. No entanto, este repertório não era considerado
genuinamente gregoriano, mas sim, como se acabou de referir, “pseudo-
gregoriano”, uma espécie de prazeroso e ligeiro “Gregoriano Pop”. E, como era
um apêndice adicionado à liturgia, foi considerado repertório paralitúrgico.
Porém, as sequências tornaram-se realmente tão, tão populares que as Altas
Autoridades da Igreja na Idade Média toleraram-nas. Quando no séc. XVI se dá
a Contra-Reforma e a (vergonhosa) Inquisição, o Concílio de Trento decidiu
banir grade parte delas, porque iam contra a ideia de pureza, de purificação e
de devoção estritamente religiosa. Nesta altura, ficaram apenas aquelas que
sendo tão populares, seria arriscado não conceder a sua manutenção. Foram
elas: Lauda Sion, Veni Sancte Spiritus, Victimae Paschali Laudes, Stabat Mater,
e Dies Irae, algumas das quais se conhece os seus autores, Adam de St Victor,
por exemplo. Já nos anos 1960, com o Concílio de Vaticano II, o Dies Irae foi
abolido da Missa dos Defuntos (Requiem), não por razões de pura ascese (este
concílio foi em muitos aspetos, dos mais libertadores da Igreja Católica), mas
sim pela carga excessivamente negativa do seu texto.
EXEMPLO DE SEQUÊNCIA: DIES IRAE, quadro B, p.3 do Documento 3.
Nota: para uma abordagem mais detalhada, historicamente rica e sugestiva, e
culturalmente estimulante, ler o documento 1C, “Enriching the gregorian heritage”, por
Michael McGrade, nomeadamente as secções nas pp. 7-16 do respetivo PDF.

FIM.

Metropolitana, Dez 2016

Reeditado a Out/Nov 2018.


Nuno Bettencourt Mendes

Post scriptum: outra leitura que certamente fornecerá uma visão geral da unidade e
diversidade europeia e do “mundo civilizacional” a que temos pertencido, recomenda-
se o documento 7, “The geography of medieval music, de Christopher Page. 

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