Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
MUSEU NACIONAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA
SOCIAL
Rio de Janeiro
Fevereiro, 2008
1
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
Carnaval em Terras de Caboclo:
uma Etnografia sobre Maracatus de Baque Solto
2
Carnaval em Terras de Caboclo:
uma Etnografia sobre Maracatus de Baque Solto
Aprovada por:
________________________________________
Prof. Dr. José Sérgio Leite Lopes
________________________________________
Profa. Dra. Renata de Castro Menezes
__________________________________________
Profa. Da. Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti
______________________________________
Prof. Dr. Moacir Gracindo Soares Palmeira
(Suplente)
_______________________________________
John Cunha Comerford
(Suplente)
Rio de Janeiro
Fevereiro, 2008
3
Chaves, Suiá Omim Arruda C.
4
RESUMO
5
ABSTRACT
This thesis aims at investigating the meanings of Carnival, from the perspective of
the dancers (‘players’) of the Maracatu de Baque Solto. More precisely, what it means
to dance the Maracatu, as perceived by people from the milieu, who see themselves as
‘wise’, “people who are experienced in Maracatu”. What is it like, to dance the
Maracatu? How does it feel to be a ‘Maracatuzeiro’? This ethnographic work seeks to
think the Maracatu through its relations and reciprocities entailed on the ideas of
knowledge and culture, as conceived by the people devoted to this game/dance
(brincadeira).
Chapter One describes my arrival at the place where I did my fieldwork, and
introduces the local people who acted as my liaison with the groups, as well as the two
groups of Maracatu de Baque Solto (MBS) where I took part, as a ‘baiana’, during the
2004 and 2006 Carnival. It also depicts the pre-carnival period and the final rehearsal
(sambada).
Chapter Two presents the climax, that moment for which the Maracatu groups
prepared themselves throughout the whole year: the three days of Carnival. It also
outlines a parallel between the text and the film – Baque Solto – made in partnership
with Tatiana Gentile, during the process of writing this thesis.
In Chapter Three, I address the ‘past’ narratives of the MBS, as a privileged
territory to reflect upon recognition and to attribute ‘values’ to the different intensities
of Maracatu dancing. That is, a number of mythical narratives and stories from the
past that guide us towards understanding how the Maracatu ‘culture’ was formed, on
the basis of positions assigned and relations around the “knowledge” of Maracatu.
6
Agradecimentos
A meu orientador José Sérgio Leite Lopes, pela confiança , estímulo e generosidade.
Aos professores, pelo prazer de assistir a seus cursos durante o mestrado: José Sérgio
Leite Lopes, Marcio Goldman, Antonádia Borges, Gilberto Velho, Federico Neiburg,
Lygia Sigaud, Ovídio Abreu e Emerson Giumbelli.
Aos professores que foram fundamentais na graduação: Maria Laura Viveiros de
Castro Cavalcanti, Els Lagrou, Marco Antônio Gonçalves, André Botelho, John
Comerford, Peter Fry, Regina Novaes e Patrícia Monte-Mór.
A Moacir Palmeira, Renata Menezes e Fernando Rabossi agradeço por abraçarem o
projeto do filme.
Aos funcionários da Biblioteca, Secretaria e Xerox do PPGAS, pela eficiência e
dedicação. Agradeço também aos funcionários do NuaP e à CAPES pela bolsa
concedida.
Em Pernambuco:
A toda a família Arruda especialmente: Maria Ligia, Paulo, Léo e Emília, por
tornarem os períodos pernambucanos sempre aconchegantes, animados e afetuosos;
Clarissa, Barbosinha, Lúcia, Flora e Lara, por todo o apoio, amizade e dedicação;
Nara, pelo gravador emprestado em cima da hora. À Família de D. Maria e Seu
Geraldo, pelo espírito carnavalesco e pelos deliciosos almoços à grande mesa.
A Maria Acselrad e Gustavo Villar, pela amizade criada ao longo desta pesquisa, pela
sensibilidade com que me ‘acompanharam’ pelos caminhos da Mata Norte, pela ampla
troca, pelo quintal compartilhado e pelo brilho da quarta-feira de cinzas. À Mariá, pelo
encanto de sua presença na casa da goiabeira e à ‘semente’ de Tomás, que nos
mostrava como a vida cresce dia a dia.
A Carlos Sandroni, pelas ajudas diversas, amizade e incentivo.
A Siba Veloso, pela generosidade e colaboração.
Aos Amigos: Joaninha, Murilo, André, Climério, Sérgio, Niltinho, Ederlan (e família),
Zé Mário, Aguinaldo (e família), Biu Alexandre, Fabinho, Martelo, Maria Paula e
Badango. Ao Maracatu Leão de Ouro de Condado. Ao Maracatu Estrela de Ouro de
Aliança e a todos que de alguma forma me ajudaram a transitar nesse ‘mundo’.
7
No Rio de Janeiro e outros mundos:
Martinha Arruda, dearest James Green e Yama Arruda, por todo apoio e incentivo,
agora e sempre. Adyr e Luiz pelos estímulos paternos, cada um a sua maneira.
À família carioca especialmente: Lina, Elza, Marcos, Moni, Tiana, Pablo e Catherine
pelo carinho e pela compreensão das minhas ausências festivas.
João Duarte pela grande amizade, amor, companheirismo e também pelas leituras.
Luiz Fernando Dias Duarte pelo carinho, generosidade e estímulo.
Clarisse Kubrusly pela constante interlocução, pela forte amizade nascida ‘entre rios’,
risos e lágrimas; pelos momentos compartilhados desde o campo até o fim da
dissertação. Tatiana Gentile por ser, além de grande amiga, ótima companheira de
trabalho e de viagem; por toda a participação, troca e colaboração nessa pesquisa.
Ana Carneiro e Paula Siqueira pelas leituras instigantes, conversas ‘vivas’ e toda a
amizade vivida nos momentos belos e difíceis. Aos amigos que estiveram presentes
nessa travessia: (‘las chicas’) Julieta, Virna, Camila, e, de novo, Aninha e Paulinha
pelos incentivos, pela antropologia pensada no bar, na praia, na rua, na cozinha; pelos
carnavais e corais que passaram e pelos que virão; Lu e Felipe que dão gosto mineiro à
vida carioca; Nicolas pela amizade e pelos quilos de erva mate gentilmente fornecidos;
Marcelo, Salvador, Flávio, Isabel, Marta, Rogério, Zé Renato, Deborah, Cecília,
Bernardo, Chico, Cássia, Guto, Bia, Ciça, Cris e Lia pelos bons momentos.
Adel Novaes e Tomás Magno pela grande amizade de vínculos ‘amadrinhais’ e pela
finalização de som do filme. Constança Scofield e Thales Magno pela generosidade e
delicadeza. Cláudio Serra e Ana Heloísa pelas aulas ‘alegres’ de francês.
Lula Marcondes e Lucia Duncan por toda amizade ao ‘norte’, pela generosa
‘vizinhança de Adelaide’, pelos ‘chimas’ tomados, pela estréia internacional de Baque
Solto e pelos mapas de Pernambuco.
Alexandre Pimentel, Joana Correia, Emílio Domingos, Mariana Oliveira, Paloma Sá,
Beatriz Arosa, Ângela Mascelani, Moana e Lucas Van de Beuque, Stella Penido e
Norma Nogueira pelas colaborações diversas. Martinha pela revisão e tudo mais.
8
SUMÁRIO
Introdução 10
9
Introdução
Este trabalho teve início durante minha graduação em Ciências Sociais (IFCS/
UFRJ), no projeto de iniciação científica. A pesquisa que eu vinha desenvolvendo, sob
a orientação da Prof. Dra. Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti, tinha como
objetivo amplo investigar as imagens do “índio” vistas e atualizadas nos festivais
populares do Brasil contemporâneo. O Maracatu de Baque Solto despontou como
desdobramento desta pesquisa, no último ano da iniciação científica (2004), em que
realizei o trabalho de campo, durante um mês e meio, na Zona da Mata Norte de
Pernambuco3 e, com base nessa primeira inserção etnográfica, escrevi o trabalho de
conclusão da pesquisa de iniciação cientifica. Esse trabalho consistiu em notas e
reflexões, sobre a jornada dos três dias de carnaval de um Maracatu da cidade de
Condado: o Maracatu de Baque Solto Leão de Ouro, no qual eu havia brincado de
baiana.4
1
Como meio, utilizo de forma particular a noção de “mundos artísticos” de Howard Becker (1977). Melhor
dizendo, incluo nessa noção as brincadeiras ditas populares que, na reflexão de Becker, não constituíam uma
comunidade artística por não considerarem sua atividade uma profissão. De fato, ‘arte’ e ‘cultura’ são
categorias externas, para definir o que ‘se faz’ entre o povo de Maracatu. No entanto, com a crescente
profissionalização destes grupos, a formalização do conhecimento e o reconhecimento (por parte das pessoas
que brincam e da ‘sociedade’) de que o que ‘se faz’ é cultura, podemos dizer que se trata de um mundo, ou
seja: “pessoas e organizações que produzem os acontecimentos e objetos definidos por esse mesmo mundo”
como brincadeira.(Becker, 1977: 9).
2
Brincadeira é um termo nativo, que remete a festividade, envolvendo música, dança, poesia, improvisação,
etc.
3
Ver Anexo 1 Mapa Estado
4
Ver Anexo 2: Personagens do Maracatu.
10
No mestrado, decidi continuar a pesquisa, julgando-a merecedora de um trabalho
ampliado e aprofundado. Assim, voltei a campo, no ano de 2006 e, durante três meses
e meio, convivi com integrantes do Maracatu Leão de Ouro de Condado e do
Maracatu Estrela de Ouro de Aliança. Além destes grupos, conversei com pessoas (em
alguns casos entrevistei-as) e com outros grupos de Maracatu de Baque Solto5. As
visitas, conversas e entrevistas informais, gravadas ou não, foram realizadas nos
seguintes locais: Condado, o sítio Chã de Camará, Aliança, Nazaré da Mata, Barra de
Catuama, Itaquitinga, Upatininga, Recife e Olinda.
5
Com sedes em cidades da Zona da Mata Norte: Maracatu Leão da Mata de Itaquitinga e o Maracatu (de
Mulheres) Coração Nazareno de Nazaré da Mata. Sediados em Olinda (Zona Metropolitana): o Maracatu
Chuva de Prata e Maracatu Piaba de Ouro.
6
Mario de Andrade (1982) atribui a raiz lingüística da palavra ao tronco ameríndio, devido à semelhança com
fonemas guaranis. “Maracá é o instrumento ameríndio, de percussão, conhecidíssimo. Catu em tupi quer
dizer bonito. D’abbeville (285,188 face), que grafava bastante mal as vozes ameríndias, cita o nome do
morubixaba Maracapu (Maracapou) que diz significar ‘som de maracá’. Podia-se assim lembrar a formação
Maracá-catu, donde Maracatu, fundidas as duas sílabas cá. E ainda outra interpretação é lembrável. Marã
indica T.Sampaio (260, 309) como sendo ‘a guerra, a confusão, a desordem, a revolução’. Donde Marãcàtú e
posteriormente Maracàtú, por assimilação. Isto é guerra bonita, a briga bonita, a briga de enfeite, invocando o
cortejo real festivo mas guerreiro.” (Andrade, 1982: 137, 138)
7
Sobre Maracatu de Baque ver Pereira da Costa, Guerra Peixe, Katarina Real, Roger Bastide, Virginia
Barbosa, Isabel Guillen, Climério Santos & Tarcísio Soares, entre outros.
8
Guerra Peixe reagiu ao uso da expressão Maracatu Rural, por Katarina Real, no livro Folclore no
Carnaval Pernambucano. O maestro acusa a antropóloga norte-americana de ter lançado a denominação,
ignorando “por completo os designativos que os próprios populares usam para o tipo de Maracatu que
chamam de Maracatu-de-orquestra ou Maracatu-de-trombone.” (1981: Prefácio)
11
A maior parte dos grupos de Maracatus de Baque Solto9 se concentra nas
cidades e municípios da Mata Norte10 e, em menor número, há sedes na Zona
Metropolitana. Os participantes dos Maracatus que habitam a Mata Norte são, em sua
maioria, trabalhadores sazonais no corte da cana-de-açúcar, moram na rua, como são
chamadas as cidades da região. O trabalho na cana, por ficha (carteira assinada), ou
por diária, muitas vezes não é suficiente para o sustento das famílias, sendo
complementado com outras atividades, como o trabalho como feirante ou pedreiro.
Brincar Maracatu e Cavalo-Marinho tornou-se uma forma de ganhar um dinheiro
extra.
9
Estão registrados na Associação de Maracatus de Baque Solto 104 grupos. O Maracatu de Crianças e o
de Mulheres, ambos de Nazaré da Mata, não são filiados. No total são 106 grupos de Maracatu de Baque
Solto no Estado de Pernambuco, com sedes na Zona da Mata Norte e Zona Metropolitana. Informação do ano
de 2007.
10
Gilberto Freyre, em seu livro Nordeste, aponta para a ironia desta sub-região ser chamada de Zona da Mata,
diante de tamanha devastação da ‘mata’ para exploração agrícola. “Sabe-se o que era a mata do Nordeste,
antes da monocultura da cana: um arvoredo ‘tanto e tamanho e tão basto e de tantas prumagens que não podia
o homem dar conta’. (...) A fogo é que foram se abrindo no mato virgem os claros por onde se estendeu o
canavial civilizador, mas ao mesmo tempo devastador.” (2004:79).
12
Aguinaldo, puxador de cordão do Maracatu Leão de Ouro, deixou de fazer
ficha nas usinas, por conta das freqüentes viagens e apresentações do Maracatu e do
Cavalo-Marinho e das conseqüentes faltas que tinha no trabalho.11
Desde que deixou o trabalho na cana, Aguinaldo ajuda a mulher com a banca
de verdura na feira de sábado e recebe o auxílio do Programa Bolsa Família12 pelos 3
filhos que estudam. Nas viagens, coloca à venda as golas de Maracatu que faz.
Ederlan é morador da cidade de Condado, tal como Aguinaldo e Luiz, mas, sendo
um jovem de família ‘classe-média’, nunca trabalhou na cana. Logo que criaram o
Ponto de Cultura de Chã de Camará, Ederlan conseguiu emprego de produtor.
11
Aguinaldo diz que a maior vantagem de trabalhar fichado é o abono do PIS (Programa de Integração
Social). Abono para trabalhadores que ganham até dois salários mínimos.
12
Programa do Governo que, por cada filho na escola, paga uma bolsa, na época, de R$15 por criança.
13
não era apresentação”. Zé Duda, mestre do Estrela de Ouro, conta sobre quando
começou a brincar:
13
O mestre do Maracatu, o cantador, tira o Maracatu, isto é, canta para o Maracatu sair, se movimentar.
14
Morar significava ligar-se a um engenho. “Ninguém é morador de usina e trabalhador de engenho”. (104)
15
A importância da atuação das Ligas Camponesas e a estruturação de um projeto de lei, tendo em vista a
reforma agrária (Estatuto do Trabalhador Rural e Estatuto da Terra). Sobre a modificação da consciência
social dos trabalhadores através da noção de direito. (Sigaud, 1976).
14
Os anos ‘de chumbo’ parecem ter sido marcantes nesse ‘processo civilizador’16
dos Maracatus. Na capital, Recife, o papel da Federação Carnavalesca de Pernambuco
(FCP) 17
é mencionado, pelos Maracatuzeiros, como delimitador de uma ruptura na
maneira como os Maracatus brincavam o carnaval.
16
Elias e Dunning (1992) abordam como o lazer se mostra no processo civilizador e seu importante papel no
alívio das pulsões e na internalização das regras que regem os grupos e a comunidade da qual os indivíduos
são parte. As situações de busca da excitação e lazer como parte do processo são: “submetidas
progressivamente ao controle mais acentuado que havia sucedido no passado.” (p.101)
17
Fundada em 1935, a FCP congrega todas as categorias de agremiações carnavalescas, organizando com
verba da Prefeitura do Recife e do Governo do Estado, o julgamento e o desfile das agremiações. De acordo
com o projeto apresentado no congresso, “uma das tentativas mais ousadas das elites governantes em busca da
legitimidade popular” (Araújo, 1992 apud Assis, 1997). Interessante notar que o ano de fundação da FCP
coincide com o ano em que Mário de Andrade é nomeado diretor do Departamento de Cultura de São Paulo.
Sobre esse ponto, é relevante pensar o projeto-político do Estado Novo.
15
democratizado o negócio, de 1980 pra cá, (sic) começou a liberar pra Maracatu Rural e
ele representa a turma do interior.” (Assis, 1997: 45)
Para entrar a fundo nessa questão, seria necessário trazer outros planos para
a discussão: como o movimento da contracultura em várias partes do mundo, os
movimentos regionais (o Movimento de Cultura Popular na década de 60, Armorial,
década de 70, o Manguebeat nos anos 90, assim como outros movimentos) enfim,
pensar circunstâncias e relações circulares19 significativas, no processo de
‘espetacularização’ dos Maracatus. E não cabe aqui fazer uma revisão crítica da
bibliografia sobre Maracatu, dialogando com os movimentos intelectuais, políticos e
estéticos que, por si só, seria uma outra pesquisa. Embora bastante instigante, ela nos
tiraria do nosso caminho20.
18
Fundada em 1990, em Aliança, na Mata Norte, por 13 dirigentes, tendo como seus principais articuladores
mestre Salustiano, mestre Batista, Biu Hermenegildo.
19
A noção de circularidade de níveis de cultura. Bakthin (2002), Ginzburg (2002), Da Matta.
20
A literatura sobre Maracatu de Baque Solto constitui um conjunto bastante heterogêneo, com orientações e
objetivos distintos. Entre autores que escreveram sobre Maracatu estão: Pereira da Costa (1908), Câmara
Cascudo (1956), Mauro Souto Maior (1969), Katarina Real (1974), Roger Bastide (1945/1959), Guerra-Peixe
(1981), Mario de Andrade (1982), Roberto Benjamin (1976/1982), Olimpio Bonald Neto (1987), Leonardo
Dantas (1988). Quanto a trabalhos acadêmicos na área de antropologia, temos as dissertações de mestrado de
Elisabeth Assis (1997) e Mariana Mesquita Nascimento (2000), as monografias de Melo (1997), Sévia
Sumaia Vieira (1999) e Ana Valéria Vicente (2003). Em 2005, a Coleção Maracatus Maracatuzeiros editou
16
O que desejo ressaltar aqui é que, nos anos 80, o processo de abertura política e
democratização do Estado brasileiro pode ser pensado como um tempo liminar21, isto
é, uma ruptura que, do ponto de vista nativo, delimita o ‘tempo passado’, marcando o
processo de transformação do Maracatu em ‘cultura’.
três volumes sobre Maracatu Rural: “Festa de caboclo” de Severino Vicente, a publicação da dissertação
(op.cit) de Mariana Mesquita Nascimento e da monografia (op.cit) de Ana Valéria Vicente. Ainda em 2005,
foram lançados: “Maracatu Rural: Luta de Classes ou Espetáculo?” de Roseana Borges de Medeiros e o
Batuque Book, um songbook de Maracatu Baque Virado e Baque Solto de Climério de Oliveira dos Santos e
Tarcísio Soares Resende
21
A idéia de liminaridade de Turner (1974) nos serve, na medida em que qualifica um redimensionamento de
uma ordem da estrutura vigente.
22
Conceito de ‘território’: “O território é de fato um ato, que afeta os meios e os ritmos, que os ‘territorializa’.
O território é um produto de uma territorialização dos meios e dos ritmos.” (op. cit. 2002: 120)
17
Aires, e não ‘os movimentos’ como plano de investigação -- esta etnografia trata dos
sujeitos que integram este universo dos Maracatus. 23
23
Aproximação com a idéia de Mauss “O potlach, a distribuição dos bens, é o ato fundamental do
‘reconhecimento’ militar, jurídico, econômico, religioso, em todos os sentidos da palavra.” Mauss (2003:247).
24
Viveiros de Castro (2004) fazer antropologia é comparar antropologias.
25
Encontro a partir das noções de “objetividade relativa” e “relatividade cultural”.(op.cit)
18
texto e do filme, Baque Solto, que realizei em parceria com Tatiana Gentile, durante
um certo período do processo de escrita desta dissertação26.
* * *
26
O filme foi viabilizado por uma verba obtida através do Edital de Memória Camponesa do NuaP (PPGAS).
A idéia era fazer um filme que reunisse meu material de pesquisa, filmado em 2004 - juntamente com Emilio
Domingos - e o material de Tatiana Gentile, filmado em 2006, período em que ambas estávamos no campo.
27
Para sua denominação, os Maracatus elegem o seu ‘símbolo’, seja animais como leão, águia, pavão, seja
elementos da natureza como estrela, chuva, seguidos de características ou adjetivos como, brilhante, da mata,
vencedor, de ouro, etc. Há muitos grupos com o mesmo nome, por exemplo, Leão da Mata, e o que os
diferencia é o nome da cidade a que pertencem.
19
Capítulo 1 - O Encontro: a entrada no campo
Assim que cheguei ao Recife, em janeiro de 2004, para dar início à pesquisa de
campo, dois amigos que moram na capital pernambucana convidaram-me para
acompanhá-los a uma sambada (ensaio) do Maracatu de Baque Solto, onde iriam
brincar naquele carnaval. Faltavam duas semanas para o carnaval, quando chegamos à
cidade de Condado28, para o último ensaio do Maracatu de Baque Solto Leão de Ouro.
O dono do Maracatu, Biu Alexandre,29 nos recebeu dizendo: “vem jantar, que a noite
vai ser longa”. Essa foi a primeira de muitas noites que passaria em claro, com o povo
do Maracatu. Já nessa primeira viagem à Mata Norte, definiu-se o grupo que eu
acompanharia, melhor dizendo, no qual eu brincaria de baiana, durante o carnaval
daquele ano: o Maracatu de Baque Solto Leão de Ouro de Tupaoca30.
20
Estas duas brincadeiras, o Maracatu e o Cavalo-Marinho, quando não estão se
apresentando, brincando, constituem um conjunto de objetos e artefatos (roupas,
chapéus, surrões, golas, guiadas, instrumentos musicais, máscaras, arcos, bandeira,
etc.). Isto é, fora da situação de brincadeira, o conjunto de objetos fica guardado:
‘adormecido’ ou em manutenção33. O espaço destinado a este fim é comumente
chamado de sede, terreiro ou barraca, lugar que agrupa o brinquedo e a brincadeira. O
lado de fora da sede, o terreiro, é onde acontecem as sambadas. No carnaval, esses
artefatos e roupas são ‘animados’ pelas pessoas que brincam.34 Nas sambadas, todos
brincam à paisana.
significativas características do Cavalo-Marinho: sua fatalidade móvel - uma capacidade de conviver com a
alteridade, que constitui um tipo de identidade em movimento. Movimento este que faz com que toda
brincadeira seja uma experiência única.”
33
Trocam as lantejoulas ‘sem brilho’ das golas, restauram vestidos, etc.
34
“Um boi-artefato, que baila, morre e ressuscita, é foco de brincadeiras pelo país a fora” (Cavalcanti,
2006:69), no carnaval pernambucano há vários bois. Em Pernambuco, costuma-se chamar de alma a pessoa
que brinca no boi, isto é, embaixo do boi. Esse termo me parece significativo pois dá a idéia de que o artefato
e a alma dão vida ao boi.
21
clarinete, saxofone, etc.). A sambada é um espaço de organização, treinamento e
negociação para o carnaval. Configura-se uma situação em que as pessoas que têm
interesse em brincar no Maracatu podem demonstrá-lo ali. O dono, ou pessoas ligadas
ao Maracatu fazem convites, estabelecem-se compromissos entre o dono do Maracatu
e os participantes. É um dos momentos em que se assumem responsabilidades e
posições dentro do Maracatu. 35
35
Muitos compromissos são estabelecidos cotidianamente, através de recados, conversas, ou articulações
variadas entre as pessoas. Combina-se por exemplo de tirar as medidas da pessoa para fazer uma roupa, ou
consegue-se emprestado uma arrumação, combina-se de costurar uma gola, etc.
22
improvisado em seis ou dez linhas, se liga a sentimentos e atitudes diante da
brincadeira: gostar, brincar, dançar, lutar, responder verso, beber, farrar, fazer resenha
(fazer gozação), se interessar, observar, curtir, aprender, etc. 36
36
Samba, no Brasil, constitui um tema interessante, para pensar a diversidade musical que este gênero
propicia, nas várias regiões do País. A diversidade do ritmo, a dança e os sentidos sociais singularizam
diferentes sambas, embora, num plano geral, pareçam estar relacionados a situações festivas.
37
Esta dança a que me refiro pode ser vista no DVD Baque Solto, no início da Segunda-Feira de Carnaval.
38
Capoeira: jogo-luta-dança em roda, ao som de atabaques, pandeiro, agogô e berimbau.
23
manobras, realizadas no início e no final da noite de sambada, ‘abrem’ e ‘fecham’ o
samba. Nos três dias de carnaval, como veremos adiante, as manobras são parte dos
rituais de chegada e entrega que marcam o ciclo: o início e o fim do carnaval.
Todos os estilos de verso são cantados pelo mestre, alternando-se com o toque
do terno e a melodia dos músicos. “A apresentação começa com o apito do mestre,
que faz vários silvos rápidos, instigando a entrada do terno; este, toca sempre em
andamento super veloz, parando ao novo sinal do apito para a nova entrada do mestre.
O terno e o mestre vão se alternando até o final.” (Santos, 2005: 32)
As respostas aos versos podem ser feitas por um contramestre, alguém que tem
a intenção de ser mestre e criar versos (ou que já é mestre e está na posição de
contramestre) ou, na falta deste, por uma ou mais pessoas que respondam aos versos40.
Na sambada “até qualquer bebo responde,” como resenha Biu Alexandre. O mestre do
Leão, Negoinho, não tinha um contramestre, ou outra pessoa fixa que respondesse os
versos, quem respondia eram alguns tocadores do terno.41 Enquanto o mestre canta
versos, todos os personagens do Maracatu ficam parados (em pé ou agachados).
Quando o terno começa a bater, o movimento da manobra é feito.
39
Ver anexo 3. Esquema Rápido de Versos de Maracatu.
40
No carnaval, se o Maracatu não tem um contramestre, algumas baianas podem ser chamadas para responder
aos versos.
41
Durante o carnaval (2004), isto foi um problema que se refletiu na rouquidão do Mestre. Ao final dos três
dias, Negoinho estava quase afônico.
24
“Marcha, que chama quadra, é só manobra, quando o
Maracatu tá evoluindo. Marcha puxa o brinquedo avante, é
pra botar Maracatu em cima do palanque, tirar de cima do
palanque. O mestre tira outra marcha, apita e todo mundo
abaixa. O Samba é só pra ficar levantando guiada, galope.
Todo mundo parado só levantando a guiada. Samba é pé-de-
palanque. Galope é o samba de três, galope é o samba curto.
Três pernas, Galope tem um taco de marcha, um taco de
samba. Três pés de samba.” (Luiz)
42
Ver Anexo nº. 2 - personagens e desenho do Maracatu.
43
Marca de aguardente de cana, produzida e muito consumida no estado de Pernambuco, a ponto do nome
Pitu ser um sinônimo de cachaça.
25
Ao longo da sambada, Biu Alexandre veio conversar e me perguntou se eu
queria brincar de baiana. Eu lhe disse que não sabia ‘brincar de baiana’ e ele
respondeu: “brincar de baiana é muito fácil, é só querer.” Dona Maria, mulher de Biu
Alexandre, tirou minhas medidas para fazer a roupa de baiana e ficou combinado que
eu estaria lá no Domingo de Carnaval.
1.2 - Pós-carnaval 2004: o Toque para Orixá em Chã de Camará e outros contatos
Nesse ano de 2004, fiquei um mês e meio entre idas e vindas da Zona da Mata
para o Recife. Dona Maria, mãe de Ederlan, me recebeu diversas vezes na sua casa
em Condado. Sempre que eu me despedia, ela repetia: “você não tem que agradecer de
ficar em minha casa, afinal você não pára aqui, é que nem Ederlan, roda muito.”
Conheci Ederlan no sábado, antes de ir para a sambada do Leão de Ouro, quando fui
com meus amigos até a casa dele, entregar uma máscara de Cavalo-Marinho. Desde
então, Ederlan, na época com 23 anos, tornou-se um dos meus principais
interlocutores, grande amigo e companheiro de estrada. Ederlan me acompanhou em
diversas viagens pelas cidades da Zona da Mata44, presenciou entrevistas, levando-me à
casa de pessoas que achava que eu gostaria de conhecer.
Ele não participa fixamente de nenhum grupo de Maracatu, como bem disse
sua mãe, “ele roda muito”. Ederlan freqüenta diversos Maracatus, circula pelo
universo de brincadeiras populares da Mata Norte, atuando em diferentes posições. É
sempre chamado para substituir algum tocador, em grupos de Maracatu ou Cavalo-
Marinho45. A circulação nesse meio exige certa sutileza e delicadeza, uma vez que os
grupos de Maracatu e Cavalo-Marinho nutrem entre si uma grande rivalidade. Quem
circula também agencia informações, o que na maior parte dos casos é ritualmente
escondida de seus rivais.
44
Além de Condado, estive em outras cidades da Zona da Mata durante o carnaval, numa verdadeira
peregrinação. E, após o período carnavalesco, viajei, realizando entrevistas (Condado, Itaquitinga e
Upatininga); em Aliança, assisti à Reunião da Associação de Maracatus e ao Toque para Orixá no sítio Chã de
Camará.
45
Além de tocar, Ederlan bota figuras no Cavalo-Marinho.
26
Goldman (2003) assemelha algumas técnicas do trabalho do etnógrafo no
campo, com certas formas de aprendizado, presentes em culturas orais. No candomblé
essa busca é denominada “catar folha”:
27
O breve contato que tive com integrantes do Estrela de Ouro, no ano de 2004,
foi num toque para orixá, no centro espírita de Seu Mário, que fica dentro do sítio Chã
de Camará. Centro Espírita é usualmente chamado de xangô, catimbó, casa de
espírito, ou simplesmente centro. Nessa época, Chã de Camará ainda não era Ponto de
Cultura, mas já era um local conhecido por conta do Maracatu Estrela de Ouro, um
dos maiores e mais famosos.
Assim que pisei em Chã de Camará, procurei por Deda, a rainha do Estrela de
Ouro, que eu havia conhecido rapidamente no Rio de Janeiro e que me havia dado as
referências para chegar lá. Deda era mulher de Seu Mário, o Pai-de-santo que estava
oferecendo o toque. Deda me recebeu alegremente dizendo: “eu fiquei te esperando no
carnaval”. Contei que havia brincado de baiana com Biu Alexandre e ela disparou:
“mas eu estava te esperando para brincar com a gente”. Lamentou que eu não tivesse
brincado o carnaval no Estrela e disse: “para o ano você vem para brincar com a
gente”.
Depois de nos servir o café46 na sua casa, Deda apresentou seu marido, o Pai-de-
santo do centro. Mario e Deda formavam um casal na vida real e na realeza do
Maracatu: são respectivamente o rei e a rainha do Estrela de Ouro.47
Logo que o toque começou, avistei Biu Alexandre e sua esposa, Moça,
sentados, assistindo e cantarolando o ponto de Exu que dava início à festa.
46
Lanche da noite. come-se carne ou frango, fubá também chamado de quarenta (cuscuz soltinho), macaxeira
(mandioca), inhame, pão, biscoito, manteiga, café, etc.
47
Nos Maracatus de Baque Virado, o rei e a rainha estão no topo da ‘hierarquia’ dos personagens,
especialmente a rainha, posição de grande prestígio. No Maracatu de Baque Solto, os personagens de maior
destaque são o mestre, o mestre de caboclo, caboclos de frente e arreiamar, etc. O rei, a rainha e a corte são
personagens incorporados pela política da FCP, que não teriam tanto destaque. No caso do Estrela de Ouro, a
‘posição’ de Rei e Rainha adquire importância dentro do brinquedo, já que, Mário e Déda exercem papéis de
liderança na comunidade de Chã de Camará e no Maracatu.
28
A festa propriamente aconteceu com seqüências de toques e cantos para Exu,
Ogum, Oxossi, Xangô, Iansã, Oxum, Iemanjá, Oxalá. Alguns pontos eram os mesmos
que se cantam em centros de umbanda no Rio de Janeiro. Ao final do toque, foram
servidos: farofa, frango, arroz, vatapá, acarajé, camarão, primeiro aos filhos de santo e
depois ao público.
Mal troquei algumas palavras com Biu Alexandre, Deda conduziu-me para a
sede do Maracatu Estrela, um casarão conectado ao centro espírita. O casarão da sede
do Maracatu é ligado, através de um cômodo, à pequena casa do centro espírita. Na
sede, Deda mostrou-me uma foto de Severino Batista vestido de caboclo, com uma
arrumação antiga (gola pequena, surrão amarrado com arame). Batista era o dono do
sítio, um pequeno proprietário rural, que foi fundador do Maracatu Estrela e também
de um Cavalo-Marinho. Com a morte de Batista, o Maracatu ficou sob a
responsabilidade de seu filho Zé Lourenço, ou Zé Batista48. Quando Batista era vivo, o
local onde hoje é o centro espírita funcionava como quarto de fazer cangalha, cesta feita
de palha, amarrada em cima do burro para transportar a cana, que era vendida para
usinas e engenhos. Conforme conta Zé Duda, o Mestre da Estrela:
48
O Cavalo-Marinho que está no sitio, hoje
49
Expressão que atribui intensidade: “da cibola”
29
Deda falou durante muito tempo sobre a personalidade de Batista e como
conduzia o Maracatu. Se ela queria convencer-me, da importância de mestre Batista50 e
de Chã de Camará no universo das brincadeiras da região, conseguiu. O toque para
orixá, no terreiro de Chã de Camará, revelou-se um lugar privilegiado, para pesquisar
o conjunto de relações que reúnem a estrutura e a organização de um grande Maracatu
(Estrela de Ouro), com as práticas religiosas de um centro espírita (Centro Espírita
Nossa Senhora da Conceição, Pai Mário).
O toque foi o evento que encerrou o meu campo de 2004: uma festa de orixá
num centro espírita, que fica dentro do sítio Chã de Camará, ao lado da sede do
Maracatu Estrela de Ouro. O dono do Maracatu Leão, com o qual eu passei o
carnaval, freqüenta, isto é, assiste aos toques, deste e de outros centros espíritas da
região. Foi também no toque de orixá que conheci Joabe, um jovem músico que, tal
como Ederlan, se relaciona com diferentes grupos de Maracatu e mora com a família,
na sede da Associação de Maracatus de Baque Solto, em Aliança.
50
Traçando um paralelo, a função que no Maracatu é denominada dono, na brincadeira do Cavalo-Marinho é
chamada mestre.
30
Esta primeira ida ao campo definiu um dos principais objetivos da pesquisa de
então: articular as relações entre o carnaval, a religiosidade e os modos de aprendizado
dentro de um Maracatu de Baque Solto.
No ano de 2006, voltei à Zona da Mata Norte, para fazer o campo para a
pesquisa da dissertação. Optei por aceitar o convite de Deda e brincar o carnaval no
Maracatu Estrela de Ouro de Aliança. Minha intenção era ter um horizonte
comparativo, no que se refere à dinâmica específica dos três dias de carnaval e, assim,
ampliar também minha rede de relações com integrantes de Maracatus. Melhor
dizendo, isto foi o que consegui fazer. De início, meu interesse era permanecer mais
tempo em Chã de Camará, pensar as relações e prestações de um Maracatu, que tem
dentro do próprio terreiro um Centro Espírita (cujo Pai-de-santo é o rei) e que se
tornou, em 2005, um Ponto de Cultura52. Considero fascinante o trabalho a ser feito
51
Lévi-Strauss (2002) usa o exemplo da bricoláge (bricolagem - arte de trabalhar com restos de matérias já
usadas, reunindo-as em um novo conjunto) para exemplificar, no plano prático, aquilo que, no plano teórico
ou especulativo, seria uma ‘ciência do concreto’.
52
Projeto do MinC iniciado no governo Lula. Os pontos de cultura são: “iniciativas desenvolvidas pela
sociedade civil, que firmaram convênio com o Ministério da Cultura (MinC), por meio de seleção por editais
públicos, tornam-se Ponto de Cultura e fica responsável por articular e impulsionar as ações que já existem
nas comunidades. O Ponto de Cultura não tem um modelo único, nem de instalações físicas, nem de
programação ou atividade. Um aspecto comum a todos é a transversalidade da cultura e a gestão
compartilhada entre poder público e a comunidade. Para se tornar um Ponto de Cultura é preciso participar
31
nesse sítio, já que, Chã de Camará reúne, no mesmo terreiro, o centro espírita, o
Maracatu e outras brincadeiras: Cavalo-Marinho, Coco e Ciranda e, mais
recentemente, o Ponto de Cultura. Tal configuração apresenta, de forma bastante
concreta, uma situação (contemporânea) dos Maracatus, em que convivem a ‘cultura’
e a ‘religião’, que (no passado) eram consideradas noções antagônicas, como
mostraremos adiante.
da seleção por meio de edital público – até hoje a Secretaria de Programas e Projetos Culturais do MinC, que
coordena o Programa Cultura Viva, já emitiu quatro editais. Quando firmado o convênio com o MinC, o
Ponto de Cultura recebe a quantia de R$ 185 mil (cento e oitenta e cinco mil reais), divididos em cinco
parcelas semestrais, para investir conforme o projeto apresentado. Parte do incentivo recebido na primeira
parcela, no valor mínimo de R$ 20 mil (vinte mil reais), é utilizado para aquisição de equipamento
multimídia em software livre (os programas serão oferecidos pela coordenação), composto de
microcomputador, mini-estúdio para gravar CD, câmera digital, ilha de edição e o que for importante para o
Ponto de Cultura.
53
Kombi, Van, ou carro lotação são os meios de transportes mais comuns na região.
32
desconforto aos meus amigos do Leão. Inicialmente, eles não manifestaram nenhum
sinal de incômodo, mas com o tempo, passaram a me ‘alfinetar’, por eu não ter
brincando no Leão. O grande prazer do Carnaval é brincar entre amigos, entre
pessoas com quem temos certa intimidade. “Afinal de contas, o Maracatu vale é pela
amizade”, como repete Aguinaldo. Se eu havia feito amizade no Leão, não tinha
sentido (para eles) a ‘mudança’ de Maracatu.
Outra questão, que gerou certos desconfortos, foi a minha ‘hospedagem'. Fiquei
boa parte do tempo na casa de Aguinaldo e sua família: a mulher, Vanice e os três
filhos, Clécia, Ine e Minho. Para não ficar pesado para a família que me acolheu, ‘me
mudei’ para casa de Dona Maria, mãe de Ederlan. Essa mudança criou certos
ressentimentos, por parte de meus anfitriões, que reforçavam a má conduta de minha
atitude de brincar em outro Maracatu.
33
pessoas, enquanto ‘pertencentes’ a Maracatus distintos. Como a disputa faz parte do
‘jogo’, não houve grandes contratempos, afinal (cito novamente Aguinaldo): “carnaval
são 3 dias, amizade é pro ano todo”.
O Leão de Ouro saiu com uma nova bandeira portando o nome da sua nova
cidade: Condado. Cada Maracatu de Baque Solto traz bordado na sua bandeira o
nome, (Leão), com uma característica ou adjetivo (de Ouro), a cidade de
pertencimento (atualmente, Condado) e a data de fundação (1972).
54
Refiro-me à entrevista aqui como conversa, gravada ou não.
34
O Leão de Ouro foi fundado em 1972 na cidade de Tupaoca, Aliança, por
Severino Memezo. Em 2001, Biu Alexandre passou ser o dono do Maracatu, a pedido
de Memezo, que não tinha mais condição de cuidar do brinquedo, por motivo de
saúde. Memezo entregou o Maracatu para Biu Alexandre, em troca dos remédios de
que precisava.
O título de vice-campeão foi uma prova, para Biu Alexandre, de que ele está
conseguindo ‘levantar’ o Maracatu. O fato de o Leão ter mudado de dono e de cidade
trouxe a discussão sobre o que é correto estar bordado na bandeira do Maracatu: a
cidade em que foi fundado, ou a cidade em que está sediado? Durante a reunião da
Associação de Maracatus de Baque Solto, logo após o carnaval de 2004, esse debate
sobre a cidade do Leão se manifestou numa briga, em que o dono de outro Maracatu
contestava o fato de a Prefeitura de Aliança ter cedido o ônibus, para transportar o
Leão de Ouro, que estava em Condado. Na época, Biu Alexandre se defendeu,
dizendo que o certo era o Maracatu ter o nome da cidade onde foi fundado.
35
De acordo com Biu Alexandre, depois de muita discussão, no ano de 2005, o
Leão de Ouro passou para a cidade de Condado, com apoio do prefeito, Dr. Egberto.
Na mesma linha dos slogans de outras cidades da Mata Norte: Nazaré da Mata, a
Terra dos Maracatus, e Goiana a Terra dos Caboclinhos, a prefeitura de Condado está
investindo na cidade como Terra do Cavalo-Marinho. O vislumbre do potencial de
turismo cultural da região está em pleno desenvolvimento e o pessoal de Maracatu e de
Cavalo-Marinho está muito entusiasmado com a atuação do prefeito. “A gente tem
que agradecer muito ao prefeito, que tá dando o maior apoio, Dr. Egberto, pois ele foi
o prefeito que entrou na nossa cidade pra dar valor à cultura.” diz Aguinaldo55.
55
Entrevista de 11/04/2006, Condado.
56
Os fiteiros vendem bebidas, salgados e doces, muitas vezes produzidos caseiramente, por pequenos
comerciantes e fornecidos aos fiteiros.
57
O Cavalo-Marinho de Biu Alexandre, que é dono do Leão de Ouro.
58
O brinquedo de Antonio Teles.
36
diretora Maria Paula Rego. Maria Paula, que dirige a Cia. Grupo Grial, montou
alguns espetáculos sobre Maracatu e Cavalo-Marinho, dos quais participaram quatro
integrantes do Leão de Ouro. As três gerações da família - Biu Alexandre, Aguinaldo
(filho) e Fabinho (neto) - e Martelo, o mais antigo caboclo de lança e Mateus59 (de
Cavalo-Marinho) da região, que há dois anos brincava no Leão.60
Biu Alexandre e, por extensão, algumas pessoas de sua família que o ajudam a
manter as brincadeiras, enfatizam sempre a peleja61 que é cuidar desses brinquedos.
59
Personagem em diversas brincadeiras do boi, e também presente no Maracatu.. No Cavalo-Marinho: o
“Mateus é o palhaço da festa, é o responsável pela ordem e desordem da roda, junto com Bastião, que chega
logo em seguida. Ambos possuem bexigas de boi nas mãos, que têm por função, além de marcar o ritmo do
pandeiro na própria perna, bater naqueles que se intrometem inadvertidamente na roda, geralmente, quando
embriagados. São as famosas ’lapadas’, expressão que curiosamente também significa dose de
cana.” (Acselrad, 2002: 60)
60
Em abril de 2006, Biu Alexandre, Martelo e Fabinho foram com a Cia. Grial, para a Alemanha,
apresentar espetáculos num dos eventos da Copa do Mundo.
61
Pelejar: Lutar, enfrentar as dificuldades da vida, farrear, brincar.
37
1.5 - O Ponto de Cultura Estrela de Ouro
O Maracatu Estrela de Ouro foi fundado em 1966, por Severino Batista. Chã
de Camará é o nome do sítio que, “no tempo de Batista”, tinha uma plantação de
cana, produzia e fornecia, de cangalha a capa, para engenhos e usinas, além de ter
uma vila de casas, onde moravam os trabalhadores.
Após a morte de Batista, em 1991, o Maracatu Estrela ficou dois anos em Chã
do Esconso, sob a responsabilidade de Ramiro, o atual mestre de caboclo do Leão de
Biu Alexandre, e depois passou para Zé Lourenço (chamado também de Zé Batista)
filho do finado Batista.
38
O Ponto de Cultura foi inaugurado em julho de 2005. Desde então, muitas
mudanças foram realizadas: a sede do Maracatu ganhou sala de informática, sala de
aula, biblioteca.
62
“A existência de Produtos Turísticos estruturados, que possibilitem a elaboração de roteiros, representa um
dos principais pontos para o crescimento da atividade turística em uma região. Desta forma, o PROMATA –
Programa de Apoio ao Desenvolvimento Sustentável da Zona da Mata de Pernambuco -, desenvolveu o
projeto de “Reestruturação e Implantação da Rota Engenhos e Maracatus”, transformando, assim, a Zona
da Mata em um destino turístico que venha a se consolidar no Estado de Pernambuco.” Citado texto do site:
http://www.promata.pe.gov.br/internas/turismo/rotas.asp
39
Marinho, da Ciranda e do Coco estão recebendo R$ 190,00 por
uma apresentação realizada mensalmente no próprio sítio e
também receberão cachê para realizar as oficinas, melhorando
ainda mais os recursos para cada família. Uma bolsa do Ministério
do Trabalho irá contemplar, com R$ 150,00, quarenta moradores
da região, participantes dos grupos culturais, entre os 16 e 24 anos
de idade. É importante salientar que a comunidade de Chã de
Camará está mobilizada, no sentido de transformar a realidade em
que vivem. Foram eles que entraram com grande parte da mão de
obra na reforma da casa-sede e têm participado de todas as
reuniões de trabalho.” 63
Logo que cheguei a Recife, dia 16 de fevereiro de 2006, liguei para Ederlan para saber
como estavam as coisas, e ele com entusiasmo me disse: “aqui tá cheio de novidade. Chã de
Camará, agora, tem um Ponto de Cultura Estrela de Ouro e o Maracatu está com mais de cem
pessoas esse ano”. Contou que estava trabalhando com produção no Ponto de Cultura. “Amanhã
vai ser o último ensaio antes do carnaval, lá na Chã, você não pode perder”. Combinamos que
estaria em Condado no dia seguinte à tarde. Conforme havia combinado com Ederlan, cheguei a
Condado sábado à tarde.
63
http://www.estreladeouro.org/index.php
40
Ederlan não iria mais para o ensaio do Estrela, estava a caminho de Olinda, onde ia
substituir um tocador do terno do Piaba de Ouro, o Maracatu de Mestre Salustiano. (Ainda que
eu tivesse em Deda uma interlocutora em potencial, Ederlan teve quase sempre um papel de
mediador em Chã de Camará.)
Caminhamos para a praça dos caboclos, onde estava parado o ônibus que levaria os
moradores de Condado para Camará. Ederlan me apresentou ao Major, um dos caboclos que
estava sentado no meio fio, dizendo: “Major, essa menina aqui é de casa e ela vai para Camará
com vocês.” E pediu para ele me apresentar para Luiz, o Mestre dos Caboclos. Neste instante,
chegou de bicicleta outro caboclo, filho de Luiz, chamado Leo. 64 Quando Luiz apareceu, Leo me
apresentou a ele dizendo que eu era amiga de Ederlan, e Luiz falou: “Tá com Ederlan, tá com a
gente.”
No ônibus, que partiu para Camará, já se via a animação do pessoal a caminho do
ensaio, cantando bregas de sucesso, dançando, enfim, fazendo zoada65.
Chegamos a Camará sob uma chuva fina. Fui para perto de Luiz que me apresentou ao
Afonso, Professor Biu Vicente (respectivamente produtor e coordenador do Ponto de Cultura) e Zé
Lourenço (dono do Maracatu e filho de Batista). Perguntei por Deda e eles me apontaram uma
senhora magra de azul, bem diferente da alegre anfitriã de dois anos atrás.
Na frente do antigo quarto de cangalha agora está escrito em letras grandes: Centro
Nossa Senhora da Conceição Pai Mário. Perguntei por Seu Mário e ela, me conduzindo pela
mão, foi perguntando a todos onde estava Mário. Alguns diziam que ele estava dentro do quarto
da sede, outros diziam que não. Ficamos um bom tempo procurando.
Mário estava ocupado ‘preparando’ a boneca do Maracatu, a Ritinha. Deda disse:
“vamos ver a boneca, a boneca é segredo”. Acompanhamos Mário ao centro e ele tirou a boneca
preta, vestida luxuosamente, de um saco plástico. Deda ajeitou o vestido da Ritinha e logo a
guardou de volta no plástico, conduzindo-me à sua casa, para mostrar algumas fotos da abertura
do Ponto de Cultura. Deda contou que Gilberto Gil e o Presidente de Angola tinham ido à
inauguração do Ponto de Cultura.
64
O meio mais utilizado para se locomover dentro da cidade é a bicicleta.
65
Barulho, bagunça, brincadeira, confusão
41
O ensaio já estava para começar. Eu fazia parte de um dos cordões das baianas,
organizados por Deda, que se encarregou de segurar minha bolsa, para eu dançar. O Maracatu
fez uma longa manobra, a ponto de o suor escorrer.
Seu Mário vendia bebidas através de uma porta de um cômodo que liga a sede ao centro
espírita. Depois da manobra, o ensaio seguiu mais informalmente. Num certo momento, teve
início uma disputa entre o Zé Duda, Mestre do Maracatu e o Contramestre, Jurandir. Os versos
eram feitos num enfrentamento crescente. O pessoal vibrava em torcida, com os versos de um e
outro. Quando a coisa ficou um tanto agressiva, Jurandir começou a fazer versos que falavam do
respeito que tinha por Zé Duda. Essa atitude de Jurandir pareceu demarcar um certo limite de
enfrentamento que ele, como contramestre, se colocava, em relação ao mestre, Zé Duda. Ficou a
impressão de que as hierarquias 'atuam' na conduta pessoal dos sambadores, isto é, que o
'campo' da disputa poética pode ser influenciado por afirmações de posições internas.
O carnaval era promissor para o Estrela, pois havia muito investimento naquele ano,
nas roupas, na bandeira, nos enfeites de cabeça encomendados para as baianas.
O processo de volta para Condado começou na alta madrugada. As pessoas mais
cansadas iam se acomodando nos bancos do ônibus, onde já havia corpos adormecidos. O pessoal
mais bicado66 continuava pelo terreiro fazendo zoada67. Bem próximo do ônibus estacionado,
explodiu uma briga entre o mestre de caboclo e um outro cabra. Uma senhora resmungou:
“oxente, gente arengando68 essa hora, vamo simbora pra casa, oi aí os menino, vamo simbora” e
afagou a cabeça de uma criança que estava dormindo no seu colo.
Quase 5 horas da manhã, debaixo de chuva forte, escutávamos gritos: “pára aqui,
moço!”. Gente sendo acordada para saltar, outros saltando irritados por terem perdido a sua
parada.
Termino este capítulo com este trecho do meu diário de campo, que descreve
a sambada-ensaio do Estrela, por dois motivos basicamente.
66
Bêbo, embriagado.
67
Barulho, bagunça, brincadeira, confusão
68
Arengar: brigar, discutir, bater boca.
42
independente de comparecer ao Maracatu durante o carnaval. A sambada é um espaço
para quem quer ‘aprender’ a sambar Maracatu, observando, imitando, dançando,
escutando e respondendo aos versos do mestre, batendo pau, bebendo cachaça,
fazendo farra, compartilhando da descontração de brincar na barraca. É talvez o
momento em que o Maracatu mais se aproxime do sentido ‘relaxado’ de brincar.
As pessoas (do Estrela), com quem tive uma relação mais ‘cotidiana’, são
moradores de Condado: Luiz, Badango, o casal Coxinha e Janete, outros caboclos -
que se encontravam na praça para conversar. E com Zé Duda, que mora com a irmã,
a filha e a neta, -- que também brincam de baiana no Maracatu -- no litoral da Mata
Norte, Barra de Catuama, onde passei três dias.
Ainda que nessas condições, considero que esta descrição nos ajuda na
problemática geral da dissertação, trazendo questões que nos conectam com a vivência
do terreiro de Maracatu e seu processo de profissionalização.
43
Ô pai vai lá na casa de Domingo
Diga a Domingo que Domingo venha cá
Domingo pai, Domingo filho, Domingo neto
Domingo que mora perto
Domingo de Carnaval69
69
Música de autor desconhecido cantada por Ronaldo, 10 anos, filho de Badango, que brinca de caboclo de
lança no Estrela, e neto de Martelo, caboclo do Leão.
70
O empreendimento ocorreu, por ocasião da aprovação do projeto do filme no Edital de Memória
Camponesa e Cultura Popular do NuaP (PPGAS) e com o financiamento que obtive junto ao NuaP, Nead e
Asepa.
44
com o material e o conseqüente enriquecimento dos dados, como pela valiosa
possibilidade de dialogar, discutir, testar e trocar informações, com alguém que
conhece muito bem o universo que estamos tratando, como é o caso da Tatiana.
A escrita da dissertação foi, em vários planos, “afetada” pelo exercício de
construir uma narrativa através da imagem e do som. Considero, assim, o texto e o
filme uma pareia71, em especial neste segundo capítulo, que trata especificamente da
dinâmica dos três dias de carnaval dos Maracatus contemporâneos. A idéia aqui é
‘brincar’ em duas pernas (o texto e o filme), trazendo a experiência de pensar,
descrever e dar movimento à vivência intensa, que se inicia no domingo de carnaval
e vai até a quarta-feira de cinzas.
Não cabe aqui explicar o filme, nem se pretende que o filme dê conta das
diversas atividades que envolvem os três dias. Cada um num registro diferente, de
informação e expressão, faz a sua parte. A intenção é enriquecer a atuação de um
Maracatu de Baque Solto, durante o período para o qual se prepara o ano todo.
“Eu brinco Carnaval, não faço Carnaval. Tenho que honrar minha profissão.”
Essa frase de seu Martim, num tom bem humorado, dá uma idéia do trabalho e da
seriedade do ‘brincar’ Maracatu nos dias de carnaval. Fazer carnaval seria o
contrário de ter responsabilidade. Brincar carnaval implica cumprir uma agenda de
contratos de apresentações, mobilizar um grande grupo de pessoas e competir na
passarela.
71
Parelha
45
As preparações para o carnaval são de muitas ordens, como vimos no
capítulo anterior. As preparações espirituais e o saber constituem alguns dos
aspectos que demonstram o interesse, o amor e a paixão do Maracatuzeiro pela
brincadeira. A dedicação e o trabalho no Maracatu, ao longo do ano, também
revelam o interesse do folgazão.
46
chapéus, o casal Bel e Eliane, que bordam golas de Maracatu, fazem buquês para as
baianas de frente, Adailton, que fez o chapéu do arreiamar, etc.
72
Forma de se dizer quantos caboclos tem um Maracatu: 50 varas é igual a 50 caboclos.
47
Enfim, a pré-produção é longa, exige trabalho, paciência e paixão. A
sambada tem um relevante papel nesta preparação, que é agregar e treinar o povo,
afiar o terno.
Os dois Maracatus com os quais vivi a intensidade dos três dias de carnaval,
diante da Federação Carnavalesca, competem em grupos diferentes, que dizem
respeito ao seu ‘tamanho’ e ‘riqueza’: o Estrela integra o Grupo Especial, no qual
competem os Maracatus grandes (por volta de cem pessoas). E o Leão está afiliado
ao grupo B, os Maracatus pequenos (mais ou menos cinqüenta pessoas). 73
73
Ver Anexo 4: Tabela das Agremiações Campeãs do Carnaval 2006.
48
Embora os dois grupos não sejam diretamente rivais na passarela, há entre
seus integrantes o sentimento de rivalidade e hostilidade, como também há
amizade e solidariedade.
49
Maracatu e combina de brincar “com sua própria arrumação”, o que garante um
cachê maior, enquanto desfalca o outro Maracatu, que fica com uma vara a menos.
Nestas situações, quando a ‘armação’ é descoberta a tempo, o dono do Maracatu
desfalcado vai tirar satisfações com o dono do outro Maracatu, que paga pelo
prejuízo causado.
50
3.2 - O Ritual de Chegada dos caboclos
Os caboclos mais antigos dizem que, hoje em dia, “não existe mais chegada
de Maracatu” de tanto que se modificou. A quantidade de apresentações de um
Maracatu durante o carnaval, faz com que a chegada seja reduzida, cortando certas
etapas como a chamada dos caboclos.
51
“A chegada de Maracatu é uma graça para aquele
representante que vai olhar. O Maracatu sem chegada fica feio
demais, porque todo mundo quer ver a graça do caboclo. Hoje
tá se acabando chegada de Maracatu. Antes Maracatu não
tinha muita revolução em Federação, saia de 18hs, 17:30 da
barraca, compromisso era pouco. Hoje, tem representação, pra
chegar de dois e dois não ia dar, para chegar no Recbeat de
18hs. No Maracatu mesmo, o bonito mesmo é a chegada, eu
faço aquilo porque eu sou mandado, não posso mandar em
tudo. Mas eu sei que o povo só acha graça chegando de um em
um, pra ver o caboclo que sabe pegar numa vara, sabe chegar,
sabe manobrar. Para ver quem sabe fazer uma manobra bonita”
(Luiz, mestre de caboclo)
52
Brinca com leão de ouro
Também bastarde Biu Lexandre
Deus que guarde o tesouro
53
que quando tá no brinquedo. E ali, a gente se esforça muito
mais do que no brinquedo, porque ali, ele tá se ajeitando pra
chegar, é onde tá fazendo o que ele quer fazer, mostrando a
posição dele. Ele é responsável por tudo ali, para mostrá que tá
errado”
2.4 - A Jornada
Como todo ciclo tem seu nascimento e morte, toda a sua travessia é vivida
com grande expectativa. A barraca, ou sede do Maracatu, é onde tudo começa e
54
termina, e onde se retorna, algumas vezes durante o carnaval, para almoçar ou
dormir.
55
Os encontros
A Passarela
56
para receber as muitas atrações carnavalescas. O principal deles é o Pólo Recife
Multicultural, que fica no Marco Zero. Alguns dos outros pólos são: Pólos das
Agremiações, Pólo das Fantasias, Pólo de Todos os Frevos, Pólos de Todos os
Ritmos, Polinhos, Pólos Descentralizados, etc. Logo após as apresentações, o
Maracatu recebe o cachê.
Casas e Homenagens
57
As hierarquias internas do Maracatu ficam claras, nas homenagens feitas em
algumas das cidades em que ele se apresenta. Quando o Maracatu tem um
contrato, numa cidade onde mora alguém de posição, pode haver um esforço no
brinquedo, para prestar uma homenagem à família daquela pessoa.
Em 2004, após se apresentar em Itaquitinga, cidade do Mestre Negoinho, o
Maracatu Leão fez uma homenagem, passando na casa da ‘mãe’ (de santo) do
mestre. Negoinho cantou versos agradecendo e elogiando a pequena senhora que
chorava na janela.
Filas
Nos palcos dessas cidades do interior é preciso esperar numa fila. Às vezes
espera-se por horas, até o grupo se apresentar. Os grupos se arrumam: formam os
cordões, as trincheiras, ficam prontos para se apresentarem. Com o tempo de
espera na fila, há uma tendência à dispersão do grupo, uns saem para comer ou
beber algo, ir ao banheiro, ou alguns caboclos saem pra beber escondido. A
dispersão torna-se uma grande preocupação para as pessoas responsáveis pelo
brinquedo: o dono, o mestre e o mestre de caboclo fazem esforço para controlar
quem está ali, para vigiar uma grande quantidade de pessoas.
Os caboclos de posição costumam ter algum outro caboclo para substituí-
los, caso ocorra algum imprevisto. Atrás dos puxadores de cordão, ficam os contra-
cordão, que devem estar sempre a postos na ausência dos puxadores.
Estas filas de espera constituem, entre outras coisas, um espaço de contato
entre os diferentes grupos de Maracatu. Os integrantes dos grupos aproveitam esses
momentos de espera, para verem os outros Maracatus. Os conhecidos e amigos
são cumprimentados. Embora muitos cumprimentos sejam amigáveis, a condição
58
em que ali se encontram é de rivalidade. A comparação, com outros grupos de
Maracatu, mostrava-se quase sempre carregada de comentários negativos,
xingamentos e uma constante afirmação da superioridade do seu Maracatu. Em
muitos momentos, assisti algumas pessoas, tanto do Leão quanto do Estrela, se
agrupando, para comentar como os caboclos do Maracatu ‘de fulano’ estavam
mirrados, os vestidos das baianas estavam tronchos, o Mestre não cantava nada, o
arreiamar não sabia dançar. Por vezes, se escutava algo como: “aqueles vestidos até
estão bonitos, mas o chapéu tá todo desmantelado.” A rivalidade, mais uma vez,
ganha expressão.
Os moradores da cidade, que gostam das brincadeiras, têm o costume de
oferecer água para o pessoal que está esperando sua vez de se apresentar.
O ônibus
O ônibus é também o lugar dos cochilos, embora entre os caboclos possa ser
‘perigoso’ por causa das ‘brincadeiras’ (amarrar a fofa para ele tropeçar, colocar
algum objeto dentro da boca ou do ouvido, jogar água em cima, etc.)
Cada vez que o ônibus estacionava numa nova cidade, para o Maracatu se
apresentar, o movimento se repetia: todos os integrantes saíam do ônibus, cada um
responsável por sua roupa; o caminhão era descarregado com os surrões, chapéus,
lanças, a bandeira, a carcaça da burra, etc. Os caboclos botavam a arrumação, as
baianas a armação da saia, o vestido, o rei e a rainha suas capas, coroas, os
arreiamar o cocar, enfim, todos se vestiam e/ou pegavam os objetos que lhes cabia,
seguindo o dono do Maracatu em direção ao palco.
59
Feita a apresentação, o grupo andava de volta para onde o ônibus estava
estacionado, já tirando algumas peças do vestuário. O caminhão era novamente
carregado. Todos entravam no ônibus e partíamos para o próximo destino.
Chegando à outra cidade, toda a movimentação se repetia, como um outro ciclo do
carnaval.
O Maracatu e a política
77
Associação de Mulheres de Nazaré da Mata. De acordo com o site: “Em comemoração à semana da
Mulher, realizada pela AMUNAM, a coordenação define junto com a equipe, a formação de um Maracatu
100% feminino. Maracatu Coração Nazareno. Idealizado e fundado em 08 de março de 2004. Neste últimos
três anos, tem se destacado na região Mata Norte, principalmente na festividade carnavalesca, com seu brilho
e beleza. O Maracatu Coração Nazareno é umas das formas mais evidentes que a AMUNAM encontrou, para
levar a delicadeza, a leveza, a feminilidade e a fortaleza da mulher a um ambiente formado prioritariamente
por homens.”
60
caboclos, as vozes e os apitos do mestre e do contramestre, o apito do arreiamar, o
terno (conjunto de percussão), as melodias dos instrumentos de sopro (trombone,
trompete, clarinete, piston, saxofone), a batida da bexiga do Mateus, o estalar do
chicote da burrinha, a corneta (de chifre de boi) do caçador, etc.
61
Os versos cantados durante o carnaval são muito reduzidos, pelo pouco
tempo de apresentação. Basicamente, o mestre canta uma marcha de boas vindas,
um samba e uma marcha de despedida. O conteúdo desses versos, na maior parte
das vezes, apresenta o Maracatu, dizendo a cidade de onde veio, citando nomes de
pessoas de posição no brinquedo (dono, mestre de caboclo, etc.), cumprimenta o
povo da cidade, o político que os recebeu e já começa a se despedir.
Num outro dia, o Leão esperava para se apresentar no palco, montado por
um vereador, em Araçoiaba e ocorreu uma situação interessante. Enquanto
esperávamos na fila o momento da apresentação, eu conversava com Negoinho, o
mestre do Leão, quando fomos interrompidos por um homem que dizia ser
vereador por Goiana. Ele perguntou para Negoinho: “Tá vendo aquele outro
mestre ali? Eu já dei R$10 a ele e vou te dar também, pra você falar o nome do
Boiadeiro. Ele é candidato a prefeito daqui de Araçoiaba, oposição ao Cuscuz (o
prefeito).” Negoinho respondeu: “tá bom, tô ligado” sem dar muita importância. O
homem insistiu: “É Boiadeiro, não se esquece. Depois da apresentação passa lá e
pega os 10 reais”.
62
alguém. Num certo momento, ele nos chamou e nos apresentou a uma mulher
dizendo: “Essa aqui é a nossa vereadora, ajuda muito a gente, gosta muito do
Maracatu. E esses aqui (apontando para Emílio e para mim) são gente da cultura,
eles estão filmando a gente, são gente da cultura !”
O Maracatu e os pesquisadores
63
conhecido, de uma cidade de 20 poucos mil habitantes. A busca por uma
‘autenticidade’, nas brincadeiras populares, é um eficaz dispositivo de acusações e
depreciações. A baiana virou ‘palhaça’ aos olhos de um terceiro ‘outro’, que se
encontrava na posição de espectador da brincadeira e que não admitia que aquele
contexto pudesse incluir baianas ‘de fora’, brancas.
64
chegar tem que desencruzar. Chegou pra sua sede tem que
desencruzar pra conduzir tudo de bom pro próximo ano. Se
não, fica um terreiro enguiçado. Dá trabalho pela frente.
Fomo em paz voltamos em paz voltamos em paz.” (Luiz)
65
“Eu sempre digo que assim:
o Maracatu nem é do Diabo nem de Deus
é coisa dos homens, porque os homens que criaram.
Mas a verdade é que ninguém
sabe quem é que administra.” (Joabe)
O Cavalo-Marinho aparece como uma festa criada por Deus, que celebra,
entre outras coisas, o nascimento de Cristo, a alegria, a graça, a beleza. Já o
Maracatu, a brincadeira carnavalesca, é considerado uma festa inventada pelo
diabo numa tentativa de pegar Cristo. Lida com o lado maligno da vida, o perigo, a
rivalidade declarada, a canalização de ‘maus sentimentos’, uma espécie de
obstrução religiosa. A seqüência temporal em que as festas acontecem, o Cavalo-
Marinho no período natalino, até o dia de reis, e o Maracatu durante o Carnaval,
sugere um “modelo estrutural” (Levi-Strauss, 1967) da celebração regional: a
brincadeira de deus e a brincadeira do diabo.
66
Cavalo-Marinho como brincadeira de Deus. José Borba, falecido ‘Mateus', atribuía
a criação do Cavalo-Marinho ao tempo em que os homens surgiram na terra e aqui
viviam infelizes e dispersos. “Por compaixão, Deus teria decidido colocar uma
beleza entre eles, inventando o Cavalo-Marinho e colocando-o no fundo do mar.
Diante de um animal tão bonito, o homem não resiste e, então o traz para a terra.
Na terra, o Cavalo-Marinho imediatamente se transforma em brincadeira e passa a
existir com o sentido de fazer os homens felizes.” (Acselrad, p.40)
78
O Banco do Cavalo-Marinho é formado por quatro instrumentos: rabeca, baje, pandeiro e o mineiro.
79
Categoria nativa para quem brinca Cavalo-Marinho. No Maracatu nunca ouvi referência às pessoas que
brincam como brincadores mas como Maracatuzeiros.
80
O desmantelo é uma categoria usada na região para designar o descontrole, o erro, o azar, a desagregação,
à desafinação.
67
Acselrad fala sobre o cuidado, como categoria primordial no Cavalo-Marinho,
por tratar-se de uma brincadeira que gera um vínculo coletivo ou compartilhamento
de algo que merece respeito. “O cuidado é orientado por dois juízos de valor
considerados referenciais bastante populares nesta região: o desmantelo e a
consonância.” O desmantelo se associa ao descuido, à desagregação e a consonância à
atenção e ao cuidado. (op.cit. 36)
81
A autora cita um artigo de Vernant (2001) em que são identificados três lugares onde se pode encontrar
o que chamamos de ‘crer’: “Seriam eles: os ritos – a ação humana concertada e expressiva; as imagens, os
ídolos e os artefatos – as formas de figuração, e os mitos – as narrativas orais desprovidas de dogma ou
teologia.” (Cavalcanti, 2006: 74)
68
que o diabo aparece como o criador do Maracatu, e na dimensão ritual, em que o
diabo faz parte do calço do carnaval, a preparação espiritual.
69
“Quando eles acabaram com Cristo eles não voltaram pra casa. É
como a cabocaria da Páscoa, os caboclos que tá brincando é a volta
dos judeus, quando acabaram com Cristo. Quem gosta brinca
mais, é mais folia de bebida. É a volta dos caboclos, hoje, que
representa. Não é que eles são os judeus, eles tão representando o
que fizeram com Cristo. Na quarta de cinzas não passou o
carnaval? Aquelas sete semanas, é respeito. Ai chegou a
Páscoa.” (Biu Alexandre)
Essa narrativa de “onde o Maracatu partiu” nos foi contada por pessoas de
uma geração de mais de sessenta anos: Martelo, Biu Alexandre e Seu Mané Silva.
Os três moradores de Condado relataram o mito de origem do Maracatu, revelando
o valor do conhecimento dessa explicação, como algo que poucas pessoas sabem.
“Na época que Cristo sofreu, num foi os judeus quem ajudiou
com Cristo? Então, é a apresentação que o Maracatu faz hoje.
Tem muita gente que não entende que é isso. Depois que se
brinca o Maracatu, tem a 4ª feira de cinzas, que foi quando o
povo judeu começou perseguindo Cristo. Teve sete semanas eles
perseguindo Cristo. É que não é tanto bem assim, porque
Maracatu pertence aos escravos. Do tempo de Cristo, foram as
sete semanas perseguindo Cristo, é o que o Maracatu
representa.”
70
passar pelo ritual de encruzamento de bandeiras, uma maneira dos Maracatus
passarem um por dentro do outro, simbolizando um acordo de paz, de forma que
cada grupo seguia o seu caminho. Se um dos grupos se recusasse a encruzar as
bandeiras, a guerra estava anunciada.
83
A História do Diabo de Robert Muchembled fala da multiplicidade e transmutação de formas e da figura
do século XII ao século XX: “ele é parte integrante do dinamismo do continente, sombra que se adivinha no
não dito e de cada página no livro do processo ocidental de civilização do qual Norbert Elias se tornou o
teórico, sem realmente propor a questão do Mal e de suas relações com o movimento em direção ao Bem e
ao Progresso.” (Muchembled. 2001:8).
71
medieval ao maligno romântico, o diabo compõe uma figura complexa e
misteriosa. É um personagem que protagoniza muitas histórias, contadas no
interior: em cada encruzilhada, à meia noite no canavial, nos vapores da usina.
No universo dos cordéis nordestinos, o diabo também é um personagem bastante
presente. Na literatura ocidental, a disputa entre Deus e Diabo, o bem e o mal,
encontra na história de Fausto um marco desse personagem. Desde o final do
século XVI, popularizou-se na Europa, surgindo diversas representações teatrais
sobre a História de Fausto, meio mago, meio cientista – considerado, na época, um
charlatão.
No mito de Fausto, na versão escrita por Goethe (de 1797 a 1832), o pacto
com o demônio é engendrado na consciência de Fausto, dos limites da
compreensão do mistério da existência através do domínio das ciências, gerando o
anseio de conhecer mais e ter vivência da alegria, do amor, da magia. A oferta de
Mefistófeles de conduzir Fausto ao universo das emoções plenas, do prazer, da
sabedoria infinita, em troca de entregar-lhe sua alma, é o resultado da aposta de
que Deus é vencido pelo diabo.
72
Semelhante ao Fausto, cujos anseios o levaram a vender sua alma, o homem
que brincava de caboclo, nas narrativas de Maracatu, fazia um pacto com o demônio
em busca da superação dos limites humanos. Uma supressão da ordem dominante, o
poder de Deus, que o tornasse poderoso e sábio, para manipular sua força de forma
maligna. A figura do diabo no Maracatu se vincula à inconformidade com os limites
(terrestres, corporais, naturais), tendo como guia a expressão da rivalidade. A disputa
pelo ‘poder’ torna-se aqui o nosso foco, na medida em que, a própria investigação do
que está em jogo nessa disputa, torna-se um elo das narrativas de origem e dos
enfrentamentos contemporâneos dos Maracatus de Baque Solto.
73
O pacto com o demônio, aparece nas narrativas como uma maneira de o
caboclo negociar a sua força, para ficar melhor na briga. A violência física é
identificada como motivadora dos carnavais antigos “a diversão era brigar” e o
pacto com o demônio, “o calço de antigamente”, era uma maneira de preparar o
caboclo para a briga, para ele poder “sair no pau sem levar a pior” . O pau, a lança
do caboclo, que é a arma de proteção da sua bandeira e ataque da bandeira do
outro Maracatu, é um objeto que traz em si um ‘problema espiritual’ para o
Maracatu:
74
baixas e sentimentos cruéis. Martelo aponta para esta dimensão ‘maligna’ do
Maracatu, contrastando o brinquedo do tempo em que era menino, em que “o
cabra tinha que ser macho” pra brincar, com o Maracatu de hoje que “todo mundo
brinca”.
A noção de enguiço nos traz a idéia de um rito negativo, que lida com o lado
sombrio, violento e maléfico. Numa disputa entre deus e o diabo, o Maracatu
aparece como brincadeira do diabo, anticristã que, numa acepção moralizante da
experiência religiosa, estaria a serviço do mal, lidando com a ‘malignidade’ do
mundo, propagando a violência. Estes elementos em muito se assemelham aos
rituais pertencentes ao mundo da jurema no Recife, especialmente os cultos de
“esquerda” tal como descrito por Carvalho (2003) 85.
Embora muitos neguem ter uma relação direta com essas casas ou centros,
quase todos os meus interlocutores afirmam que, no passado, quem brincava
Maracatu necessariamente estava ligado a uma religiosidade, muito próxima aos
chamados cultos de “esquerda” da jurema. “Só brincava homem e homem que
soubesse respeitar.”
75
negociava com o bicho preto, eles faziam um contrato, eles se
contratavam. Antigamente uma mulher num brincava, os meninos
não brincavam, as baianas era baiano, homem vestido de mulher,
hoje é diferente, hoje tudo se modificou. Hoje ninguém brinca pro
Pata, porque ninguém quer se contratar com o bicho preto. Eu
mesmo num quero. Mas antigamente, era contrato. Então fazia
contrato de 7 anos, de 14, de 21, só era ímpar. Então, quando
terminava o contrato, fazia outro. (O contrato) era se entregar ao
demônio. Para brincar de caboclo, eles se entregavam ao demônio.
E naquele dia (em que o sétimo ano se completava), o demônio
vinha buscar ele. Antigamente o pessoal era mais maligno, era para
fazer malignidade no mundo. Aqui, Condado, era terra de caboclo
ruim, a gente passou num lugar que os caboclos se encontrava lá,
os Maracatuzeiro se encontrava lá. Os caboclos que ia, que levava,
se encontrava, tocaiava. A gente passou lá no Bringa, (o cemitério)
de Itaquitinga, lá eles esperava um pelo outro. Ali morreu muito
caboclo. Eles esperavam para brigar com o caboclo de outro
Maracatu. Brigar, matar, morrer.” (Biu Alexandre, 28/02/2004)
Biu Alexandre chama de Pata pois não gosta de falar o nome dele. O contrato
com a Pata mencionado por Biu Alexandre traz a idéia de que, a proteção do caboclo
que fazia o calço, era uma forma de ‘ficar com o diabo’ e poder fazer tudo, brigar,
matar e nada lhe acontecer. O contrato com o demônio é narrado como uma forma de
se preparar para a diversão daqueles dias: brigar, lutar, matar ou morrer, mas com
respeito.
76
A interdição do contato sexual é a principal forma de respeito, tendo um
caráter inquestionável entre os Maracatuzeiros86. O corpo carnavalesco do
Maracatu parece manter a sua força, entre outros segredos, através do controle dos
fluidos vitais.87
86
Wacquant (2002: 87) trata a abstinência sexual como um dos sacrifícios exigidos do pugilista, nas semanas
antes da luta, “sob pena de perder os fluidos vitais e minar sua força física e sua energia mental.”
87
Serve-nos aqui a idéia técnica, no sentido que Mauss (2003: 407) lhe atribui: “um ato tradicionalmente
eficaz (e vejam que nisso não difere do ato mágico, religioso, simbólico)”.
88
Uma das histórias mais famosas na região é a do caboclo João de Mônica, que desapareceu depois do 21º
carnaval do contrato com o diabo. Conta-se que o diabo veio buscá-lo, pois ele não refez o contrato pra
brincar o carnaval no 22º ano. “Ele só fazia tudo encarnado (vermelho): chapéu gola tudo” diz Martelo.
77
“Que nem antigamente, que o povo fazia calço para isso
mesmo, para pular a janela de costas, para encontrar o
camarada dele e mete-lhe o cacete, bater pau um com outro e
até se matá e furar uns aos outros. Às vezes ele pegava uma
briga com o amigo dele, antes do carnaval, aí guardava aquilo
ali tudinho, para pegar durante o carnaval, ia descontar só na
semana de carnaval. Agora não tem mais isso não, até porque
os Maracatus agora são cheios de meninos, ninguém qué botá
as crianças em bico de pau. Mas, antigamente, a diversão era
brigar. Desconta a mágoa de São João no
Carnaval.” (Aguinaldo)
78
conhecer muitas histórias de Maracatu e há quem diga que ele é uma “prova viva”,
isto é, um caboclo que efetivamente fez o contrato.89
89
“Existia, antigamente que, quem brincava um ano, tinha que brincar sete (...) Isso é bem antigo, há
muito tempo, no tempo que Maracatu andava a pé, há uns 60, 80, 90 anos atrás. E hoje existe uma prova
viva disso, que é um tal de Martelo lá de Condado, ele foi um dos caras que fez o pacto com o demônio.”
90
As três vendas ficavam em Chã de Camará, no município de Aliança, Zona da Mata Norte de Pernambuco.
Eram três armazéns muito próximos, localizados neste sítio pertencente a Mestre Batista, famoso dono de
Maracatu e Cavalo-Marinho. Atualmente, há apenas uma das vendas.
91
As Três Vendas: faixa 7 do primeiro disco do Mestre Ambrósio, música e letra de Siba.
79
Engoliu cobra coral
*linha tradicional de catimbó
92
Peter Burke (2000: 219) descreve os carnavais europeus tradicionais com características como: ênfase na
bebida e na violência, composição de sociedades carnavalescas dominadas por adultos do sexo masculino,
interpretadas por ele como rituais de afirmação da masculinidade.
80
Outra recorrente narrativa é sobre uma bebida tomada pelos caboclos, o
azougue, que seria uma mistura de cachaça, pólvora e limão e ervas, que deixaria
os caboclos ligados, agitados, azougados.
93
Bataille (1993) em sua teoria da religião, concebe o sacrifício como um “retorno a intimidade, da imanência
entre o homem e o mundo, entre o sujeito e o objeto.” (op.cit: 38)
94
“Colocar a mão no azeite de dendê fervendo para ver se está mesmo com o santo” Maggie, 1975 apud
Carvalho, 2003. No Cavalo-Marinho há uma figura, o Caboclo de Ororubá, que pisa e deita em cima de
cacos de vidro.
81
hoje mudou muito. É que nem seu Martim e pai falou pra você.
O cara saia daqui e ia pra Nazaré a pé, ia pra Aliança a pé, pra
Timbaúba a pé. Não tinha passarela, não tinha esse negócio de
prefeituras fazendo aquela festa nas cidades. Era pesquisando,
como um caboclo sai, pedindo um trocado. Hoje toda cidade
aqui no Pernambuco tem carnaval. Hoje todo mundo corre
atrás ...mas é do dinheiro.” (Aguinaldo 07/07/06)
82
de caboclo, mas naquele tempo não. Tinha um resguardo
maior, viviam pra aquilo ali mesmo, aquilo ali era outra
coisa.... Ainda tem, ainda existe isso. Do respeito. Respeitavam
mais, você botou aquilo ali tá pro que der e o que vier. Morria
por aquilo ali. Quem brinca de caboclo, eles não dizem, mas
um quer ser melhor que o outro. E quando um caboclo arreia
guiada pro outro, tá procurando confusão. E o outro não quer
ficar por baixo. Ai é a hora de dizer que é melhor é agora.
Ninguém fala, faz.” (Fabinho)
Quem é Maracatuzeiro
Do passado se recorda
Bombo amarrado de corda
Carbureto no terreiro
No farol de um candeeiro
Até manhecer o dia
Mas hoje é com energia
Tudo é eletrificado
Com carro de som ligado
Isso é tecnologia
83
Maracatu de Outrora
Passava por desespero
O brinquedo do terreiro
Brigava com o de fora
Só que está sendo agora
muito mais civilizado
Depois de modernizado
Ninguém briga com ninguém
Que a modernidade vem
Dando apagão no passado.
Maracatu do povão
Quem é musico tem espaço
Valete, dama de passo
Guarda-chuva e lampião
E com penas de pavão
O arreiamar não se engana
Tem bandeirista bacana
Rei, rainha e bailarina
Mateu, burra e Catirina
Caboclo, terno e baiana
84
Exige o toque do terno
Sax, trombone e piston
E povo escutando o som
De um mestre bem popular
Cantando o que precisar
Com idéia bem completa
Que onde existe poeta
Tem poesia no ar
Mestres de antigamente
Alguns não sabiam ler
Hoje é possível se ver
Mestre mais inteligente
Cantando corretamente
Com talento e vocação
É que a nova geração
Vem se conscientizando
É o futuro nos chamando
Para globalização
85
processo de ‘espetacularização’ e ‘profissionalização’ dos Maracatus, como revela o
poeta, traz um deslocamento do eixo de expressão da rivalidade entre os grupos.
86
A idéia aqui é a cultura valorizando a beleza do Maracatu, o espetáculo. A
brincadeira, na linguagem atual, reveste suas armas nos termos da cultura, isto é,
no que se pode comprar com o dinheiro. O reconhecimento da sociedade é visto,
pelos Maracatuzeiros, como ‘um olhar diferente sobre aquilo que eles faziam’,
como fica claro numa conversa entre Aguinaldo e Martim:
Martim: Esse negócio de folclore começou de um tempo pra cá. Eu nem me lembro o
tempo.
Aguinaldo: Esse negócio, quem descobriu isso aí foi esses povos de fora, isso é com
vocês.
“Hoje muita gente brinca por amor... mas por amor ao dinheiro e não por
amor à brincadeira”, resenha Biu Alexandre, ressaltando o valor do dinheiro como
uma maneira de medir o interesse e amor da pessoa pela brincadeira.
Se a pessoa brinca por amor à brincadeira, ela brinca até sem ganhar nada.
Se a pessoa gosta daquilo de verdade, investe seu próprio dinheiro, para fazer ou
melhorar sua arrumação: “não fica só pegando arrumação de sede”.
87
Se “hoje todo mundo brinca” a alusão ao passado, ao respeito, qualifica quem
“conhece” Maracatu. O respeito é uma noção nativa, que demonstra a consciência
de quem brinca, do que se faz no Maracatu, da profundidade daquele mundo.
“Agora como é entender o Maracatu: primeira coisa respeito. No Maracatu se a
pessoa é casada, não pode nem dormir junto com a mulher. Ele tem que respeitar
aquela brincadeira. É porque muita gente não respeita, às vezes dá até um certo
desmantelo”.
Como já vimos anteriormente, quem toma parte num Maracatu está sujeito ao
perigo, ao azar, ao desmantelo. Não somente o carnaval é considerado um período
em que “tem muita coisa-ruim solta”. Para agravar, quem está brincando no
Maracatu está muito visado, “está cheio de brilho e boniteza”. Quem brinca no
Maracatu deve estar com o corpo fechado, para não se tornar alvo de inveja, do
olhado, enfim dos sentimentos negativos, dos quais o carnaval parece ser um forte
catalisador.
88
A mulher, no passado, como “gênero fisicamente ausente, mas
simbolicamente onipresente em negativo” (Wacquant.2003:87) nos conduz a esta
problemática contemporânea do Maracatu.96
A proibição das relações sexuais - que se inicia antes do carnaval (o tempo varia
de Maracatu para Maracatu, de pessoa para pessoa: 1 mês, 15 dias, 7 dias) e se
estende até a quarta-feira de cinzas – é um princípio do Maracatu, confirmado por
absolutamente todas as pessoas com quem conversei. O resguardo sexual é uma
questão de respeito ao Maracatu, associado ao ‘saber’.
Conta-se que a primeira mulher que brincou num Maracatu era uma mãe-de-
santo, que preparava espiritualmente o brinquedo de João Lianda, em 1965. Ela
96
“Porque aquelas baianas que sabem brincar dançam mesmo como as baianas dos Xangôs, é quase
a dança do Xangô. Principalmente o traje, os vestidos, que é traje de xangô. É a mesma coisa. Você num
brincou de baiana? Você já brincou de Xangô, você é xangozeira.”
89
brincou com a boneca que é a madrinha do Maracatu, que precisa de cuidados que
ajudem a manter a harmonia coletiva. Joabe conta que, “quando os outros Maracatus
viram que era mais bonito botar uma mulher de dama do passo, todos começaram a
botar.” Mas, ressalta, que muitas mulheres não tinham preparo para brincar Maracatu
por não saberem lidar com aquilo.97
97
“Hoje as pessoas levam Maracatu como esporte mais ainda existe isso, preparar a boneca, entendeu? Porque
era uma religião, hoje não é uma religião mas tem que ser respeitado.”
90
Os conhecedores do Maracatu costumam dizer, que as mulheres não têm
compromisso com o Maracatu, que elas não respeitam, pois não acontece nada
com elas “acontece com o cabra”. As atribuições dos infortúnios carnavalescos
trazem o elemento feminino como base de “acusações”.
Como diz Seu Luiz: “Um caboclo que pega uma arrumação é um caboclo,
né? É um caboclo, mas falta muito pra ser um caboclo. Tendo umas pessoas que
sabem o que é Maracatu, brincar Maracatu é muito fácil. O negócio é ter uma
experiência de um caboclo, ai é que são elas.”
Essa idéia de que, para ser caboclo, não basta simplesmente botar uma
arrumação, mas saber ser caboclo, inclui sempre uma moral de não dizer que sabe.
No interior se diz que quem é bom, não diz que é: quem é bom, o povo é quem fala. O
saber está ligado ao segredo. Quem sabe guarda.
91
O respeito dinamiza uma noção de responsabilidade individual, que
assegura o equilíbrio espiritual do coletivo. O esquema de coerção e ‘autocontrole’,
se revela na tentativa de estabelecer a sorte, isto é, de afastar o desmantelo.
O ‘segredo’ parece ser uma fórmula mágica, coletiva ou individual, que tanto
pode ser falada como tocada. Se o segredo for revelado, o Maracatu desmantela.
Se alguém toca no segredo (o apito do mestre ou o cravo do caboclo), também
desmantela. Mesmo que o segredo tenha sido bem guardado, se alguém
desrespeitar, desmantela. O segredo do Maracatu também é sua ‘força’. Cito uma
conversa entre Aguinaldo e Amaro:
Aguinaldo: “o dono de Maracatu tem segredos, tem coisa que ele não pode dizer.
Eu mesmo que não sou dono tenho coisa. Tem coisa que ele guarda com ele até
92
morrer. Tem coisa que só sabe quem é de Maracatu. Por que se vira fuxico, é fácil
outro Maracatu saber. Dono de Maracatu nenhum conta seu segredo, pois o outro
pode tentar acabar com ele e a brincadeira.”
Amaro: “É quase que nem candomblé, que também tem segredo. Eu levanto meu
terreiro, faço um filho de santo, mas tem coisa que eu não ensino a ele, o ponto de
matar. Um dia ele pode ter ódio de mim e me matar: ele vai usar o segredo.” 99
Esta e outras conversas me levaram à idéia de que, “quase que nem candomblé”
há uma iniciação no Maracatu. Que os segredos do Maracatu dizem respeito ao
‘saber’, ao ‘fundamento’. Não se pode deixar escapar o saber do Maracatu, pois ele
constitui uma força que, caso fique fora do controle dos seus ‘guardiões’, torna-se
um ponto fraco.
Este ‘saber’, no entanto, não está ao alcance de qualquer pessoa que brinque no
Maracatu. Muito pelo contrário, os que ‘sabem’ devem tornar-se merecedores
através do próprio caminho de busca do saber.
99
Amaro brinca de baiana no Leão de Ouro. Esta conversa aconteceu durante a entrevista com Amaro, em
que Aguinaldo estava presente. (28/02/2004)
93
A preparação espiritual, no plano individual, transmite a idéia de que o
Maracatuzeiro precisa “construir um novo corpo”, para brincar o carnaval. Um
corpo espiritualmente imunizado à doença, ao insucesso numa briga, à ressaca e ao
cansaço depois do carnaval.
94
reconhece que eu to diferente, que eu mudei. Meu sangue se
some. Dá uma evolução no corpo. Chega na terça-feira, tomo
um banho de mato cheiroso, troquei de roupa e tô novo.”
Conforme nos mostra Bataille, “A virtude da festa não está integrada em sua
natureza e, reciprocamente, o desencantamento da festa só foi possível em razão dessa
impotência da consciência de tomá-lo pelo que é. O problema fundamental da religião
está dado nesse desconhecimento fatal da festa. O homem é o ser que perdeu, até
100
“O devir e o ser são uma mesma afirmação.” (Deleuze, 1999. apud Goldman, 2003)
95
mesmo rejeitou, o que é obscuramente intimidade indistinta. (...) A religião cuja
essência é a busca da intimidade perdida se resume no esforço da consciência de si:
mas esse esforço é tão vão, já que a consciência da intimidade só é possível ao nível
que a consciência não é mais uma operação cujo resultado implica duração, quer dizer,
ao nível em que a clareza, que é efeito da operação, não está mais dada.” (op.cit: 46)
96
O Fim do Ciclo: o Carnaval de Páscoa
Chuva forte da manhã. Escuta-se o bater do surrão de caboclos que andam na rua. Um
caboclo passa na porta da casa. Clécia, filha de Aguinaldo, comenta: “parece até véspera de
Carnaval”. É Sábado de Aleluia. Quando saímos na rua avistamos catitas brincando, fazendo
graça com as pessoas.
Aguinaldo: “Semana Santa aqui, tem gente que só come uma vez por dia, não toma
banho e não namora” Eu indagando: “como no Carnaval?” e ele responde: “é, quase que nem
Carnaval”.
Na manhã seguinte, Domingo de Páscoa, dez caboclos de Condado, entre eles
participantes do Leão e do Estrela, lotam duas kombis para Itaquitinga. Todos na expectativa da
surpresa que fariam, para Seu Baixa, dono do Maracatu Leão da Mata de Itaquitinga. Bel, o
caboclo que estava organizando o Carnaval de Páscoa, havia combinado com os tocadores do
terno do Maracatu de seu Baixa.
O Maracatu da Páscoa, composto apenas de terno e caboclos, manobrou algumas vezes
na frente da sede do Leão da Mata, surpreendendo Baixa e sua mulher, que logo trataram de
improvisar um almoço para o pessoal.
Na volta de Itaquitinga para Condado, as duas kombis que vieram cheias, uma voltou
vazia e a outra com espaço sobrando. A maior parte dos caboclos ficou por lá tomando bicada e
brincando o carnaval de Páscoa com surrão nas costas. Na mesma noite, Aguinaldo e eu, que
voltamos na kombi semi-vazia, tivemos notícias do bando de caboclo bicado, que não queria
deixar os bares fecharem, sambando Maracatu. Como Fabinho nos contou depois, a cabocaria
de Páscoa foi caminhando por todo o trecho, de Itaquitinga até Condado, parando nas biroscas,
botando um CD de Maracatu, para sambar e tomar bicada. Afinal, é na Páscoa que a
cabcocaria faz o Carnaval.
97
vivida através valores dominantes dos festejo nas idéias de finitude do corpo /
resguardo, o riso / a reserva, a matéria / o espírito, etc., essas oposições operam
contrariamente nos valores do Maracatu.
98
“pois a atualidade não tem esperança, e a atualidade não tem futuro: o futuro será
justamente uma nova atualidade.” 101
“Vejo a tradição como um gosto compartilhado, que cria uma linhagem ao longo
do tempo. O Maracatu tem sua tradição, o rock tem sua tradição. No disco (Toda vez
que eu dou um passo o mundo sai do lugar) há diferentes tradições se comunicando.
Não gosto do termo ‘contemporâneo’ como oposição a ‘tradição’. Ele é usado
geralmente, para reforçar preconceitos contra coisas consideradas arcaicas ou
primárias. Minha música e minhas letras estão profundamente ligadas ao meu tempo.
Mesmo porque, não tenho a menor preocupação com a preservação ou manutenção de
nada. Faço Maracatu porque ele está vivo, e as pessoas da minha terra gostam dele
porque gostam, e não para preservá-lo. (..) Se ele acabar um dia, é porque não
conseguiu se adaptar. O Maracatu sobreviveu porque foi pra cidade, teve contato com
a TV e o rádio, seus poetas tiveram alfabetização e ampliaram seus temas. Se a
tradição dá o passo à frente, acompanhando o mundo, ela segue viva. Se não, não
adianta gravar, fazer livro, registrar, defender...” (Siba)
101
Essa frase e também trecho da introdução são parte do texto A Paixão segundo GH de Clarice Lispector.
99
Bibliografia
______. Danças Dramáticas do Brasil. Org. Oneyda Alvarenga – Belo Horizonte: Ed.
Itatiaia, 1982.
ASSUMPÇÃO, Adyr. Ator yaô. Revista Roda - Arte e Cultura do Atlântico Negro n° 3
Agosto de 2006 Fundação Municipal de Cultura BH.
10
BASTIDE, Roger. Sociologia do folclore brasileiro. São Paulo: Anhembi S.A. 1959.
______. Xangôs e Maracatus. In: Imagens do Nordeste Místico em Branco e Prêto. Rio
de Janeiro: Emprêsa Gráfica "O Cruzeiro", 1945.
BECKER, Howard S. Mundos Artísticos e Tipos Sociais. In: Arte e Sociedade: ensaios
de sociologia da arte. Rio de Janeiro: Zahar, p. 9- 26, 1997.
BURKE, Peter. A cultura popular na Idade Moderna. São Paulo, Cia. das Letras,
1999..
10
_______.O rito e o tempo: a evolução do carnaval carioca. In: Fazendo
Antropologia no Brasil. DP&A Editora: Rio de Janeiro: 2001.
10
Mauss: Antropologia e Sociologia em diálogo do “Seminário Formas Primitivas de
Classificação, Cem anos depois” (mimeo)
LEITE LOPES, José Sérgio. O Vapor do Diabo: O Trabalho dos Operários do Açúcar.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. 220 p.
______. Esporte, Emoção e Conflito Social. Mana: estudos de antropologia social, Rio
de Janeiro, v. 1, p. 141-166, 1995.
10
MALINOWSKI, Bronislaw. Argonautas do Pacífico Ocidental. São Paulo: Abril
Cultural, 1978.
MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
QUIRÓS, Julieta. Cruzando la Sarmiento: Una etnografia sobre piqueteiros en la trama social
del sur del Gran Buenos Aires. Buenos Aires: Antropofagia, 2006.
10
______. A Idealização do Passado Numa área de Plantation. CONTRAPONTO, v.
II, p. 115-126, 1977.
SANTOS, Climério O.; RESENDE, Tarcísio S. Batuque book: Baque Virado e Baque
Solto. Recife: Ed. do Autor, 2005.
10
Anexo 1
MAPAS
10
10
Anexo 2
Personagens do Maracatu
Na frente do Maracatu:
Mateus: Personagem presente em outras brincadeiras como o Boi e o Cavalo-
Marinho, da lenda de Mateus e Catirina. Usa um chapéu de funil com fitas de
celofane, usa um surrãozinho de madeira, nas mãos carrega uma bexiga que bate na
coxa.
Catirina: A Catita como é chamada nas ruas é um homem vestido de mulher com a
cara pintada de preto e uma cesta nas mãos. Ela faz graça com o público e pede
dinheiro. Conta-se que, no passado, a Catita era quem conseguia algum dinheiro e
comida do público pra o Maracatu. a Catita deve ser ágil e saber “roubar” comida.
Burra Calu: um homem vestido de burra que estala um chicote no chão abrindo
espaço para o Maracatu.
Caçador: de acordo com Biu Alexandre é o caçador dos escravos, da lenda de Mateu
e Catirina. Toca um berrante de chifre de boi, tem um chapéu de pele de animal,
carrega uma espingarda e leva pendurado um bode empalhado ou só a pele.
No miolo:
O Bandeira: um homem que carrega a bandeira. Veste uma roupa de súdito real.
A Bandeira: Na bandeira do Maracatu estão bordados: o tipo de Maracatu (baque
solto), o nome do Maracatu (em geral algum animal leão, águia), a cidade em que ele
foi fundado, a data de fundação e o símbolo. A bandeira é objeto de maior cuidado, e
o desejo de um Maracatu rival é furar a bandeira do outro. É como se, tendo a
bandeira rasgada, o Maracatu estará desmantelado, perde-se um elo entre aquelas
pessoas.
A corte: Rei, Rainha e dois carregadores de guarda sol que cobrem o casal real. Ficam
atrás da bandeira. A corte nos Maracatus de Baque Solto foram uma imposição da
Federação Carnavalesca de Pernambuco (data).
10
Boneca/ Calunga: preta de pano. É o símbolo do Maracatu, todo Maracatu tem uma
boneca, inclusive os de Baque Virado.
A Dama da Boneca: uma baiana que carrega a boneca, fica perto do Bandeira ao
centro.
Arreiamar ou Caboclo de Pena: Usa um grande e pesado cocar enfeitado e um saiote
de penas. Traz uma gola mais curta que a do caboclo e nas mãos carrega uma
machadinha de índio. Além do mestre, o arreiamar é o único que tem um apito e a sua
responsabilidade principal é cuidar das baianas.
Baianas: formam dois cordões simétricos atrás dos arreiamar. Usam um vestido longo
e armado, na cabeça usam um lenço ou um chapéu, as baianas de vestido de cor igual
formam pareias, cada uma no cordão. Atualmente, os homens que brincam de baiana
em meio à maioria de mulheres, moças e meninas, são homossexuais. As baianas se
enfeitam com colares, brincos, maquiagem. Com as inovações das exigências da FCP,
em 2006, as baianas devem levar nas mãos uma varetinha com o símbolo do
Maracatu.
10
hierarquia interna que se define pelas posições. O mestre de caboclos é o que tem
maior autoridade e responsabilidade, é quem cuida da cabocaria. Ele organiza, toma
conta e controla os lanceiros. Os dois puxadores de cordão e os dois bocas de
trincheira são os caboclos que têm uma relação direta com o mestre de caboclos na
condução da manobra do Maracatu. A comunicação entre eles é chamada de namoro,
pois eles ficam atentos à movimentação da manobra através do olhar. O pé-de-
bandeira é o caboclo responsável pelo terno que fica atrás do Maracatu.
Atrás do cortejo:
O Mestre: carrega uma bengala e um apito. Faz de improviso as marchas, sambas e
galopes. que movimentam o Maracatu.
O terno: conjunto musical: cuíca, ganzá, bumbo, tarol e gonguê.
Músicos: tocam os instrumentos de sopro geralmente trombone, piston e saxofone.
11
Anexo 3
Esquema de rápido dos versos de Maracatu
(por Siba Veloso) 102
Marcha
4 linhas de sete sílabas
a
b 2x
c
b
Ex:
Abriu-se o portão do samba
Cada um que seja ativo
Ninguém morre antes do tempo
Nem corre sem ver motivo
Samba em dez
10 linhas de sete sílabas
a
b
b
a
a
c 2x
c
d
d
c
102
2x significa resposta das duas linhas ou da única, no caso do samba curtinho.
11
Ex:
Enquanto eu vivo no chão
Cantando samba pesado
Vive o Pardal pendurado
Em fio de alta tensão
Cantando a única canção
Que Deus lhe deu pra cantar
Canta o pardal pra jantar
E eu só canto quando janto
Pardal canta em todo canto
e eu canto em todo lugar
Galope/Samba em seis
seis linhas de sete sílabas
x
a 2x
a
b
b
a
Ex:
Cantar qualquer coisa
Que o povo ache legal
Senão o seu pessoal
Vai dizer desde o começo
Tem mestre de todo preço
Mas tu não vale um real
11
Samba curto
Igual ao galope mas primeira linha tem 4 sílabas apenas
Ex:
De novo eu vou
Subindo o mesmo batente
Com mais futuro pra frente
Bem mais história pra trás
E carregando bem mais
Samba pesado na mente
Samba curtinho
4 linhas de sete sílabas
Ex:
Destrambelhado e demente 2x
Dorminhoco e desleixado
Doido, desmoralizado
demagogo, decadente
11
Anexo 4
Quadro Leão X Estrela
11
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )