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CONCEITOS EM GENÉTICA

A Reação
em Cadeia
da Polimerase
(PCR)

Ernna Hérida Domingues de Oliveira1 e Tiago Campos Pereira2,3


1
Depto de Genética, FMRP, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, SP
2
Programa de Pós-Graduação em Genética, FMRP, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, SP
3
Depto de Biologia, FFCLRP, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, SP

Autor para correspondência - tiagocampospereira@ffclrp.usp.br

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Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

A Reação em Cadeia da Polimerase


(PCR) é uma técnica que permite ge-
rar, em um tubo de ensaio, bilhões de cópias
de uma determinada sequência de DNA de
interesse, de maneira rápida, prática e barata.
Baseada no processo natural de duplicação
de DNA, essa tecnologia tem ampla aplicabi-
lidade, desde a pesquisa básica no estudo de
genes e genomas até aplicações como iden-
tificação de pessoas, teste de paternidade,
diagnóstico molecular, geração de enzimas
de interesse biotecnológico, paleogenética e
execução de projetos de sequenciamento de
genomas de diferentes organismos. Notavel-
mente, apesar de ter sido concebida há quase
40 anos, a PCR permanece como uma ferra-
menta essencial nos laboratórios de genéti-
ca molecular do mundo inteiro devido ao ao
custo reduzido e também pelos aperfeiçoa-
mentos que ocorreram ao longos dos anos,
culminando na versão mais atual e altamente
promissora, a PCR digital.

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Q uando se estudam estruturas muito


pequenas, como células, vírus e orga-
nelas, o uso do microscópio é essencial, pois
em laboratórios de pesquisa de todo o mun-
do. Muitos dos avanços da Biologia Mole-
cular aconteceram, em grande parte, graças Biologia Molecular: área do
ele amplia a imagem milhares ou milhões de ao sucesso dessa técnica, assim como a exe- conhecimento que se dedica a
vezes. As moléculas de DNA são entidades cução de projetos desafiadores como o se- estudar a célula a partir de suas
biomoléculas, ao contrário da
microscópicas que podem ser visualizadas quenciamento do genoma humano. Ao lon-
‘Biologia Celular’, que vislumbra
por microscopia eletrônica. Contudo, quan- go de sua história, a PCR tem transformado a célula como um todo.
do a intenção é obter a sequência de nucleotí- não só a genômica, mas diversas áreas como
deos ou mesmo manipular uma biomolécula a ciência forense, paleobiologia, o controle
como DNA ou RNA, em vez de visualizá-la, da segurança alimentar e o diagnóstico mo-
precisamos de técnicas que possibilitem am- lecular. Ao longo de mais de três décadas de
plificar o número de cópias da sequência de in- existência, a PCR tem sido constantemente Paleobiologia: estudo de
teresse a tal ponto que possam ser utilizadas renovada e diversificada, dando origem a va- amostras de organismos do
em procedimentos técnicos no laboratório e, riações como a ‘PCR em tempo real’ (qPCR) passado remoto.
até mesmo, visualizadas indiretamente, por e a ‘PCR digital’ (dPCR).
meio de outras técnicas acessórias.
DESCRIÇÃO DA TÉCNICA
Em 1983, a Reação em Cadeia da Polime-
rase (PCR, sigla em inglês de Polymerase Dentro da célula, durante a replicação do
Chain Reaction) foi desenvolvida, atuando material genético, o DNA de dupla-fita
como um processo que possibilita gerar bi- (dsDNA, double stranded DNA, do inglês) é
lhões de cópias de um determinado gene, ou separado em cadeias de DNAs de fita sim-
de qualquer outra região específica de DNA. ples (ssDNAs, single stranded DNA, do in-
Por exemplo, se a sequência do genoma hu- glês) por meio de uma enzima denominada
mano fosse impressa de maneira linear em helicase (Figura 1). Essa proteína é capaz de
papel, ocuparia aproximadamente 262.000 quebrar as ligações de hidrogênio que inter-
páginas. Se quiséssemos estudar um gene conectam as fitas de DNA. Em seguida, uma
particular que está descrito na página núme- enzima chamada primase sintetiza pequenos
ro 173.295, a PCR seria equivalente a uma fragmentos de RNA, chamados iniciadores
máquina de xerox que faria cópias exclusi- (ou primers, lê-se ‘praimers’, do inglês), sobre
vamente dessa página e de nenhuma outra, as cadeias de fita simples. Esses iniciadores
facilitando grandemente a vida do leitor fornecem extremidades 3’OH livres a partir
(pesquisador). Para o cientista, a produção das quais a enzima DNA polimerase sinte-
de bilhões de cópias de apenas uma determi- tiza novas cadeias de DNA, utilizando nu-
nada sequência do genoma viabiliza diversos cleotídeos livres presentes no nucleoplasma.
outros procedimentos laboratoriais e experi- A DNA polimerase utiliza a cadeia de DNA
mentos, desde pesquisas básicas até o diag- de fita simples como molde para a síntese de
nóstico de doenças genéticas e infecciosas. uma cadeia com sequência complementar
de bases. O resultado final é a duplicação de
O princípio dessa amplificação in vitro do todo o material genético da célula. in vitro: em tubo de ensaio.
material genético foi primeiramente descri-
to em 1971, mas os ensaios experimentais Em síntese, a PCR reproduz esse processo
e ajustes necessários para torná-la exequível celular natural em um tubo de ensaio, porém,
foram realizados pelo bioquímico estaduni- com algumas diferenças, dentre as quais des-
dense Kary Banks Mullis e colegas, na déca- tacamos duas. Primeira, a amplificação não
da de 1980 (revisto em PEREIRA, 2018). A será de todo o material genético da célula,
relevância desse trabalho foi reconhecida em mas apenas de um único segmento (um gene
1993, quando Mullis foi contemplado com o ou outra região que se queira estudar). Se-
prêmio mais importante da ciência, o Nobel, gunda, a duplicação será feita repetidamente
na área de química. (por isso, ‘reação em cadeia’), para que o nú-
mero de cópias do segmento seja aumentado
Desde sua criação, o uso da PCR expandiu- inúmeras vezes.
-se rapidamente, tendo sido implementada

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Figura 1.
A replicação do DNA. A enzima
Primase catalisa a síntese de
uma pequena molécula de RNA
(nucleotídeos em vermelho), a
qual apresenta uma hidroxila na
3'. A enzima DNA polimerase se
utiliza desta extremidade 3' OH
livre para estender (sintetizar)
o DNA complementar (setas
pretas) à fita molde.

Desta forma, a PCR é conduzida em um pe- A origem do DNA a ser amplificado pode
Termoestável: que
apresenta estabilidade em altas
queno tubo de plástico contendo sete com- ser genômica, mitocondrial, de cloroplasto
temperaturas. ponentes básicos: (i) a enzima DNA poli- ou outra. Esse material genético pode ser iso-
merase termoestável; (ii) os nucleosídeos lado de células, fluidos corporais ou até subs-
trifosfatados, (ATP, TTP, CTP e GTP); tratos inorgânicos (como solo). Alternativa-
(iii) a amostra de DNA a ser amplificada mente, pode-se também utilizar moléculas
(= DNA-alvo ou DNA-molde); (iv) um par de RNA, que devem ser previamente con-
Tampão: solução química que de iniciadores ou primers específicos para a vertidas em moléculas de DNA, por meio de
permite a manutenção do pH ao
longo de uma certa reação. sequência que se deseja amplificar; (v) íon uma reação de transcrição reversa.
magnésio (Mg+2) que atua como cofator da
Didaticamente, a PCR pode ser separada em
enzima; (vi) tampão e (vii) água, que é o
três etapas: (i) a desnaturação inicial; (ii) a
meio para a reação.
termociclagem e (iii) a extensão final (revisto
Transcrição reversa:
processo de síntese de uma
em PEREIRA, 2018) (Figura 2).
molécula de DNA a partir
de uma molécula molde de
RNA, por meio da enzima
transcriptase reversa.

Figura 2.
Aspecto geral da PCR,
composta por três etapas
principais. A etapa 2 é
constituída de três fases
(‘a-b-c’) e é repetida de 30
a 40 vezes (termociclagem),
resultando no aumento
geométrico da região de
interesse.

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Primeiramente, durante a desnaturação ini- dsDNA em ssDNA. Na fase de anelamento,


cial, a temperatura da reação é aumentada a redução da temperatura possibilita que os
para 95 °C, durante 2-5 minutos. O objetivo dois primers anelem-se, por meio da comple-
dessa etapa é mimetizar a atividade da enzi- mentariedade, às suas respectivas cadeias de
ma helicase, pois o calor é capaz de quebrar DNA de fita simples, delimitando precisa-
as ligações de hidrogênio entre as cadeias mente a região que deve ser amplificada.
complementares. Assim, ao final dessa etapa,
Em seguida, na fase de extensão, o aumen-
converte-se o dsDNA em ssDNA, apto para
to para 72 °C gera a condição ideal para a
o processo de amplificação.
atividade da enzima DNA polimerase, que
A segunda etapa é a termociclagem, que sintetizará a nova fita de DNA utilizando os
consiste em três fases: (a) desnaturação, a 95 primers como o ponto de início, e os nucleo-
°C por 30 segundos, (b) anelamento (ou pa- sídeos trifosfatados presentes na reação para
reamento), a aproximadamente 57 °C por 30 formar as novas cadeias de DNA (Figura 3).
segundos e (c) extensão (ou alongamento), a Note que, ao final de cada ciclo ‘a-b-c’ dessa
72 °C por 1 minuto. Durante a desnatura- etapa, é duplicado o número de dsDNA cor-
ção, a alta temperatura continua separando o respondente à sequência-alvo.

Figura 3.
Etapas da amplificação in
vitro do DNA pela PCR. A
reação é composta por ciclos
repetitivos que envolvem
três passos consecutivos. Na
desnaturação, a temperatura
de 95 °C ocasiona a quebra
das ligações de hidrogênio que
unem as bases complementares
de dsDNA, transformando-
as em ssDNA. No passo de
anelamento, a temperatura é
reduzida a aproximadamente
57 °C e ocorre a ligação dos
primers às extremidades das
ssDNA-alvo. A extensão é
a etapa final e ocorre na
temperatura de 72 °C. Nela,
a DNA polimerase realiza a
síntese das novas fitas de DNA
complementares à fita molde.
Ao final de 30 a 40 ciclos, são
produzidas bilhões de cópias
da sequência-alvo de DNA. À
direita: tubo de ensaio dentro
do qual a reação ocorre, por
meio do uso de um aparelho
termociclador.

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Assim, a repetição desses três passos (= ter- Ao fim da termociclagem, ocorre a terceira
mociclagem) resulta em duplicações sequen- etapa, de extensão final a 72 °C por dez minu-
ciais da região-alvo. Portanto, se iniciamos a tos, para término da polimerização do produ-
reação com uma única cópia do gene, ao final to da reação, também conhecido como ampli-
do primeiro ciclo ‘a-b-c’ teremos duas cópias, con. Toda a PCR é realizada em um aparelho
ao final do segundo ciclo teremos quatro có- denominado termociclador, capaz de gerar
pias, e assim por diante. Tipicamente, a ter- mudanças rápidas e controladas de tempera-
mociclagem compreende de 30 a 40 ciclos tura, conforme descrito. No final de todo o
Eletroforese em gel de ‘a-b-c’, após os quais a reação chega ao seu processo, o amplicon pode ser analisado por
agarose: técnica que permite limite (fase de platô), pois não há mais rea- meio de eletroforese em gel de agarose e
que as diversas moléculas de gentes (nucleotídeos, enzima e/ou primers) visualizado com auxílio de corantes de ácidos
DNA ou RNA de uma amostra para manter a amplificação geométrica (i.e., nucleicos (Figura 4). Tipicamente, uma PCR
sejam separadas por tamanho e,
posteriormente, visualizadas. duplicação a cada ciclo). dura em torno de duas horas, sendo um pro-
cedimento de execução rápida.

Figura 4.
Demonstração de resultados
obtidos pela PCR, gerados a
partir de transcrição reversa
de RNA de nematóides.
Após o término da PCR, os
produtos finais foram corados
com SybrSafe e em seguida
submetidos a eletroforese em
gel de agarose. A primeira
coluna apresenta o marcador
de peso molecular (1kb plus,
Invitrogen). As duas últimas
colunas representam amplicons
gerados com primers específicos de RNA derivadas de determinado gene, em
para os genes codificadores da
APLICAÇÕES
determinada célula.
proteína beta actina (377 pares Pesquisa básica
de bases; pb) e da proteína A PCR facilita também construir sequências
glutationa peroxidase (465 pb). A amplificação de sequências específicas tem de DNA com determinadas alterações espe-
Imagem: Giovana Vieira Guidelli. apresentado, desde sua origem, vasta aplica- cíficas, úteis para estudos sobre as funções de
bilidade, pois ela é o passo primordial para genes. Esse processo, denominado de ‘muta-
diversos outros procedimentos experimen- gênese sítio-dirigida’, é feito com uso de pri-
tais. Por exemplo, o acoplamento da PCR mers que apresentam modificações em suas
como uma etapa prévia ao sequenciamento sequências nucleotídicas. Essas mutações são
genético tem viabilizado a execução de pes- incorporadas ao amplicon durante a PCR,
quisas desafiadoras e complexas, como os fornecendo aos pesquisadores, assim, versões
projetos sobre genomas de diferentes orga- distintas do mesmo gene. Quando inseridas
Vetor: molécula de DNA nismos. Outros exemplos de aplicação dire- em seres vivos, essas diferentes variações pro-
circular, de replicação autônoma ta/indireta compreendem facilitar a inserção
nas células, que pode ser movem efeitos biológicos distintos, propor-
utilizada para armazenar e
(ou clonagem) de genes em vetores, assim cionando informações importantes sobre o
replicar sequências genéticas como realizar a análise da expressão gênica, papel do gene no organismo.
de interesse, tais como genes ou seja, avaliar a quantidade de moléculas
específicos.

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Um exemplo mais dramático desse princí- No passado, um método muito comum para
pio é a ‘PCR propensa ao erro’, conduzida o diagnóstico de microrganismos era basea-
com genes de interesse biotecnológico. Nes- do na coleta de uma amostra de sangue e seu
se procedimento, a amplificação do gene é depósito em placas de cultura, onde eles Placa de cultura: disco de
feita em condições não adequadas de PCR, pudessem se reproduzir para posterior iden- plástico (ou vidro) contendo
resultando em uma grande quantidade de tificação. Contudo, essa abordagem só é pos- um meio rico em nutrientes,
para cultivo de bactérias e suas
produtos mutados (ou seja, gerando diver- sível para patógenos cultiváveis, porém nem posteriores identificações.
sidade genética). Esses últimos passam pos- todos são assim. Adicionalmente, esse proce-
teriormente por seleção para se identificar dimento pode levar dias, caso o microrganis-
variantes funcionalmente mais interessantes mo seja de multiplicação lenta, atrasando o
(e.g., uma nova variação de uma proteína, que diagnóstico e o início do tratamento.
seria agora capaz de executar catálise em pH
Note, porém, que a PCR é uma técnica rá-
muito ácido). Adequadamente, o processo é
pida (2-4 horas) e não requer o cultivo de
também denominado de evolução in vitro.
microrganismos, superando, portanto, a es-
Diagnóstico de doenças genéticas, tratégia anterior. Assim, a PCR tem sido re-
infecciosas e câncer gularmente utilizada para a identificação de
agentes de doenças infecciosas, tais como a
Quando aliada ao sequenciamento de DNA, bactéria Mycobacterium tuberculosis (causa-
a PCR possibilita a identificação de muta- dora da tuberculose), vírus da imunodeficiên-
ções que originam doenças genéticas. Uma cia humana (AIDS), vírus da herpes simples,
das primeiras aplicações nessa área foi o a bactéria Treponema pallidum (sífilis), vírus
diagnóstico pré-natal da anemia falciforme, Papilomavírus humano (HPV), dentre mui-
por meio da observação de uma mutação es- tos outros.
pecífica no gene que codifica a cadeia b da
hemoglobina. A partir de então, essa técnica Evidência forense e perfil genético
tornou-se rotineiramente utilizada na iden- Outras áreas muito importantes para as
tificação de diversas doenças genéticas, como quais a Genética tem contribuído são a ‘iden-
fenilcetonúria e fibrose cística. Além disso, tificação de pessoas’ e a ‘determinação de pa-
ela auxilia no diagnóstico molecular do cân- rentesco’. A primeira é exemplificada pelos
cer, proporcionando a detecção de mutações casos de investigação criminal, em que se
em oncogenes e genes supressores de tumor deseja identificar a vítima ou o transgressor,
como, por exemplo, alterações nos genes com base em resquícios biológicos encontra-
BRCA1 e BRCA2, associados ao câncer de dos na cena do crime (fios de cabelo, saliva,
mama hereditário. sêmen, sangue, entre outros). A segunda é
A PCR também causou um grande impacto tipicamente ilustrada pelos casos de disputas
no diagnóstico de doenças infecciosas. Isso de paternidade, em que se deseja confirmar,
é possível porque quase todos os patógenos, ou rejeitar, a relação biológica entre indiví-
isto é, agentes causadores de doenças, tais duos.
como vírus, bactérias, fungos e outros para- A base de ambos os estudos é caracterização
sitas, apresentam material genético, seja de do perfil genético dos indivíduos envol- Perfil genético: conjunto
DNA ou RNA; a única exceção são os prí­ vidos (Figura 5) e subsequente comparação específico de sequências de
ons (CARLI; PEREIRA, 2018). Assim, por com os supostos parentes ou então com o DNA de cada pessoa, que
meio de primers planejados para genes ex- suspeito de um crime. O perfil genético de
permite distinguir os indivíduos,
clusivos desses patógenos, é possível avaliar tal como uma impressão digital.
cada pessoa é gerado estudando-se determi-
se estão presentes em determinada amostra nadas regiões do genoma que são hipervariá-
biológica (sangue, fezes, urina, fluido cefalor- veis entre os indivíduos. Essa análise permite
raquidiano, entre outros). Considerando que a identificação de uma ‘impressão digital de
a PCR permite detectar quantidades míni- DNA’, que é única e exclusiva de cada cida-
mas de material genético por meio da am- dão, exceto entre gêmeos monozigóticos,
plificação, o diagnóstico pode ser feito com pois carregam genomas idênticos.
precisão e alta sensibilidade.

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A PCR entra em cena como a técnica capaz Em especial, a PCR é útil também na iden-
de amplificar essas sequências hipervariáveis, tificação de vítimas de catástrofes em massa,
tais como minissatélites, microssatélites e a partir de corpos e restos humanos encon-
sequências contendo polimorfismos de nu- trados em acidentes e campos de batalha.
cleotídeo único (SNPs), a partir de amos- O maior esforço desse tipo aconteceu após
tras, residuais ou não, de material biológico. o ataque terrorista ao edifício The World
Ao se reconstruir o perfil genético a partir do Trade Center, em setembro de 2001. Mais
sêmen do criminoso pode-se, por exemplo, de 10.000 amostras de restos mortais das
compará-lo com o banco de dados genéticos vítimas foram comparadas com amostras de
da polícia, assim como verificar se o perfil de DNA obtidas em itens pessoais (como esco-
determinada criança é compatível com o do va de dente) fornecidas pelos familiares. Por
suposto pai. meio dessas análises, cientistas forenses con-
seguiram identificar quase três mil vítimas.

Figura 5.
Determinação e comparação de
perfis genéticos de diferentes
indivíduos. À esquerda, imagem
representativa de um gel de
agarose contendo amplicons
referentes a sequências
hipervariáveis. À direita,
interpretação esquemática
do mesmo gel. Cada uma das
quatro colunas verticais refere-
se a uma amostra de DNA. L:
marcador de peso molecular,
para comparação; SP: suposto
pai; M: mãe e F: filho. Note
que para cada indivíduo, três
Estudo de ‘DNA antigo’ criança e morreu em 1327 a.C, aos 19 anos
sequências hipervariáveis foram
amplificadas, gerando dois de idade. A causa de sua morte, porém, era
Uma das grandes vantagens da PCR é que
alelos (fragmentos de DNA com desconhecida e por muito tempo permane-
uma sequência de DNA-alvo pode ser am-
comprimentos diferentes) para ceu em mistério. Contudo, os testes revela-
cada uma delas. Os alelos foram plificada até mesmo quando o DNA estiver
ram que a amostra biológica proveniente
artificialmente coloridos (em parcialmente degradado. Essa oportunidade
da múmia de Tutancâmon possuía também
azul, os paternos; em vermelho, abriu perspectivas para o estudo de DNA de
os maternos) para facilitar a material genético (genes) específico do pa-
antepassados e de animais extintos, falecidos
compreensão. Observe que rasita Plasmodium falciparum, causador da
há décadas ou até milhares de anos.
o perfil genético do filho é malária. Em conjunto com análises médicas
compatível com o do suposto Um exemplo curioso nessa área foi o estudo e radiológicas, esses resultados sugerem que
pai, pois seus alelos de origem
de múmias do Egito antigo, datadas entre a causa mais provável da morte do faraó se
paterna (azuis) têm tamanhos
equiparáveis aos dos alelos do 1410-1324 a.C. Nessa pesquisa, por meio deu em decorrência de necrose óssea avascu-
SP. da PCR de microssatélites, foi possível tra- lar e malária. Essa hipótese foi reforçada com
çar o perfil genético e identificar membros da a descoberta de bengalas e medicamentos na
família do famoso faraó Tutancâmon. Esse tumba de Tutancâmon.
governante egípcio foi coroado ainda quando

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O advento da PCR tem contribuído também em sementes de feijão. Essa etapa compreen-
para o avanço da paleobiologia, facilitando a de uma das mais importantes no sistema de
reconstrução da história evolutiva de ani- produção agrícola, pois o certificado de qua-
mais, assim como a determinação da relação lidade desses materiais garante o sucesso da
evolutiva entre espécies extintas e espécies produção e a sustentabilidade das atividades
contemporâneas. Como exemplo, pode ser relacionadas. Assim, a PCR possibilita in-
citado o parentesco próximo entre mamutes formar se determinado lote de sementes está
e elefantes, confirmado a partir da amplifica- contaminando ou não, propiciando a rápida
ção e sequenciamento do DNA provenien- comercialização de lotes sadios.
te de um fóssil de mamute encontrado no
Adicionalmente, o uso da PCR permite ava-
nordeste da Sibéria em 1986, datado entre
liar a presença de transgenes em grãos e ali-
33.750 e 31.950 anos.
mentos processados, visando a identificação
Biotecnologia agrícola de organismos geneticamente modificados
(OGMs), ou alimentos que contêm em sua
A indústria de biotecnologia agrícola faz uso
composição algum OGM. Por exemplo, o
da PCR em vários procedimentos, desde o
gene ‘cry1A(b)’, da bactéria Bacillus thurin-
desenvolvimento de produtos alimentícios
giensis, codifica uma proteína (toxina Bt)
até os testes de qualidade.
que é tóxica para herbívoros. Assim, plan-
Por exemplo, a PCR é empregada na detec- tas transgênicas de algodão, milho e batatas
ção de fitopatógenos de difícil identificação, contendo ‘cry1A(b)’ são resistentes a pragas,
tais como as bactérias Clavibacter michiga- e podem ser identificadas via PCR, por meio
nensis ssp. michiganensis em sementes de to- da amplificação desse transgene, in natura ou
mate e Xanthomonas axonopodis pv. Phaseoli em alimentos derivados dessas plantas.

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VARIAÇÕES DA PCR sibilidade muito superior às PCRs conven-


cional e em tempo real, além de outorgar
PCR em tempo real uma ‘quantificação absoluta’ do produto
Embora a PCR convencional represente amplificado. Essa ultrassensibilidade é ba-
um importante salto tecnológico, seu prin- seada no princípio da ‘diluição limitan-
cipal uso se restringe a análises qualitati- te’, que assegura à dPCR a capacidade de
vas (por exemplo, ‘amplificação ou não’ de identificar uma única molécula de DNA
DNA de um vírus), sendo sua aplicação mutante entre milhares de outras cópias
muito limitada em estudos que requerem sem essa alteração. Em termos práticos, um
análises quantitativas, tais como a determi- exemplo seria utilizar a dPCR para detec-
nação do número de cópias de DNA desse tar células tumorais, ou seja, portadoras de
mesmo vírus em uma certa amostra. Essa mutações, em quantidade muito reduzida,
quantificação é interessante, por exemplo, ainda quando o paciente se encontra em
quando se deseja estimar o número de par- estágios iniciais da doença, sem sinais clí-
tículas virais no sangue de um paciente, ou nicos.
a abundância de material transgênico em Adicionalmente, a dPCR é capaz de in-
Diluição limitante: situação determinado produto alimentício. formar o número exato de moléculas de
em que determinada amostra, DNA oriundas de um determinado pató-
A limitação da PCR para análises quanti-
após ser submetida a uma série
tativas ocorre porque a mensuração do am- geno (mensuração absoluta), garantindo
de diluições, apresenta apenas
uma molécula por determinado plicon ocorre apenas ao final da reação. Esse acompanhar, minuciosamente, o avanço ou
volume de interesse. Por tipo de medição é problemática porque se controle de uma infecção. Em conjunto, es-
exemplo: apenas uma molécula a reação já tiver chegado à fase de platô, o sas características conferem à dPCR maior
de DNA por microlitro. precisão e eficácia em análises de expressão
valor aferido é incorreto (pois não há mais
amplificação geométrica, como esperado). gênica de células individuais, exames pré-
-natais, detecção de mutações raras e de
Motivados por essa dificuldade, os pesqui- DNAs de patógenos em baixas concentra-
sadores desenvolveram a ‘PCR em tempo ções em fluidos corporais (revisto em PE-
real’ (qPCR), que propicia a mensuração da REIRA, 2018).
quantidade do amplicon presente ao longo
de toda a reação, inclusive durante o perío- CONCLUSÕES
do de amplificação geométrica, permitindo,
O impacto e o sucesso da PCR na ciência
por conseguinte, uma quantificação corre-
e na sociedade vão além da sua função pri-
ta. Isto é possível por meio do uso de: (i)
mordial de amplificação do DNA, e se de-
primers que emitem fluorescência quando
vem também ao reduzido custo da técnica e
incorporados ao amplicon e (ii) um termo-
sua contínua renovação. Trinta e seis anos
ciclador capaz de fazer a leitura do sinal
após a sua invenção, a PCR sustenta-se
fluorescente durante todo o tempo.
como uma técnica atual e permanece como
Dessa maneira, os resultados obtidos usan- um pináculo da biologia molecular devido
do a qPCR promovem a ‘quantificação rela- às suas elevadas especificidade, sensibilida-
tiva’ de determinado gene em comparação a de, reprodutibilidade e aplicabilidade.
outro gene da amostra. Por exemplo: o gene
MECP2 é expresso oito vezes mais que o REFERÊNCIAS
gene ACTB, em determinado tecido (revis- CARLI, G. J.; PEREIRA, T. C. O gene PRNP codi-
to em PEREIRA, 2018). ficador da proteína príon e o mal da vaca louca.
Genética na Escola, v. 13, p. 94-101, 2018.
PCR digital PEREIRA, T. C. Introdução às técnicas de PCR con-
Uma variação mais recente da técnica é a vencional, em tempo real e digital. 1ª. ed. Ribeirão
Preto: Editora da Sociedade Brasileira de Gené-
‘PCR digital’ (dPCR), que apresenta sen-
tica, 2018. v. 1. 232p.

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