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O papel da educação no

movimento operário e anarquista

Vitor Ahagon

Seja, pois, o nosso lema: união e instrução, pois só pela


íntima ligação dessas duas atividades poderemos alcançar a
realização de nossos anelos de felicidade e paz universal.
Adelino de Pinho

Educação e movimento operário

A história do movimento operário internacional desde muito cedo


têm assinalado a importância da educação para os trabalhadores1.
Primeiro, porque a educação, durante todo o século XIX e meados do XX, foi des-
tinada quase que exclusivamente para a burguesia. Em segundo lugar, porque os
trabalhadores viam na educação a possibilidade de estudar os problemas funda-
mentais que enfrentavam. Portanto, a educação servia de instrumento de estudos
das chamadas “questões sociais”, lhes dando maior ciência de suas infelicidades e os
instruindo para a revolta2.
Tal postura não foi diferente no caso brasileiro. Esposando a tática do sin-
dicalismo revolucionário, propaladas e desenvolvidas no interior da CGT fran-
1 Podemos verificar tal importância no livro de memórias de James Guillaume, A Internacional, Edi-
tora Imaginário, São Paulo, 2009.
2 Duas ideias desenvolvidas pelo sindicalista e anarquista, secretário das Bolsas de Trabalho da CGT
francesa, Fernand Pelloutier

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cesa (Confédération Générale du Tra- suas considerações, o congresso pon-


vail), organização operária fundada derou que o operariado encontrava-se
em 1895, os trabalhadores aperfeiçoam extremamente dividido no que con-
diversas formas de ação direta no con- cernia às opiniões políticas e religio-
flito contra os patrões e o Estado. Além sas, por isso a única base de acordo
de recorrerem às táticas da sabotagem, sólida que existia entre os operários
boicote e do antipartidarismo – com- era sua situação econômica, portanto,
ponentes presentes na luta anarquista a de serem trabalhadores. Essa base de
– a CGT tinha como principal instru- acordo material lhes possibilitava ter
mento de mobilização e reivindicação de maneira mais clara quais seriam os
a Greve Geral revolucionária, ou seja, melhores meios de ação, tal qual de sua
uma greve que tinha como fundamento
organização.
a expropriação dos meios de produção
Ao examinar as experiências his-
da burguesia e do Estado, que devem
tóricas do movimento operário, o
ser postos a serviço dos trabalhadores
congresso avaliou que enquanto espe-
das fábricas, campos e oficinas. A CGT
rassem as melhorias de suas vidas por
era, portanto, um organismo de resis-
meio de leis dificilmente elas se reali-
tência operária contra as investidas da
zariam. Para alcançar as mudanças que
burguesia e do Estado. Por isso, desde
lhes eram urgentes os trabalhadores
que concordassem com as estratégias e
táticas do sindicalismo revolucionário, reconheciam a necessidade de ação no
todos poderiam fazer parte de sua or- campo econômico:
ganização não importando qual ideo-
Considerando que o operariado se acha
logia seguisse.
extremamente dividido pelas suas opi-
O Primeiro Congresso Operário
niões políticas e religiosas;
Brasileiro teve início no dia 15 de abril Que a única base de acordo sólido e de
de 1906 e se estendeu até o dia 20. Sua ação representa os interesses econômi-
realização ocorreu no Centro Galego cos comuns a toda classe operária, e dos
na Rua da Constituição 30/32, no Rio mais a clara e pronta compreensão;
de Janeiro. Neste histórico congresso Que todos os trabalhadores, ensinados
foram discutidos diversos temas, desde pela experiência e desiludidos da
salvação vinda de fora de sua vontade
a organização até a ação do conjunto
e ação, reconhecem a necessidade
do movimento. Entretanto, o que con- iniludível da ação econômica direta de
duziu as discussões sobre a orientação pressão e resistência, sem a qual, ainda
do movimento operário foi norteada para os mais legalitários, não haja lei que
a partir das experiências da CGT. Em valha; (RODRIGUES, 1979, p.100)

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Assim é definido que toda a luta a propaganda do sindicalismo, a aboli-


política (eleitoral ou religiosa) não po- ção das multas nas oficinas e fábricas, a
deria ser realizada dentro do sindicato, atitude do operariado quanto à proibi-
pois este era um espaço de resistência ção do direito de reunião, os acidentes
da luta econômica. A adoção de uma de trabalho, não faltando espaço para
doutrina política ou religiosa poderia a educação. A pergunta disparadora da
levar o sindicato à lutas internas que discussão sobre a educação foi acerca
ruiriam com o objetivo maior do sin- da conveniência de cada associação
dicato: defender e construir uma polí- operária em sustentar uma escola lai-
tica que tivesse como base a condição ca para seus associados e de seus fi-
de classe dos trabalhadores. Portanto, lhos, assim como quais poderiam ser
o Primeiro Congresso Operário Bra- os meios de que deveriam lançar mão
sileiro negava a luta parlamentar e por para essa finalidade. A resolução tirada
isso qualquer programa eleitoral, visto foi a seguinte:
que a tomada do poder governamental
enfraquecia o movimento e, por conse- Considerando que o ensino oficial tem
guinte, impedindo o avanço das trans- por fim incutir nos educandos ideias e
formações reais: sentimentos tendentes a fortificar as ins-
tituições burguesas e, por conseguinte,
O ‘Congresso Operário’ aconselha o pro- contrárias às aspirações de emancipação
letariado a organizar-se em sociedades operária, e que ninguém mais do que os
de resistência econômica, agrupamento próprios trabalhadores interessam-se
essencial e, sem abandonar a defesa, pela em formar livremente a consciência de
ação direta dos rudimentares direitos seus filhos;
políticos de que necessitam as organiza- O ‘Primeiro Congresso Operário Bra-
ções econômicas, e pôr fora do Sindicato sileiro’, aconselha aos sindicatos operá-
a luta política especial de um partido e rios a fundação de escolas apropriadas
as rivalidades que resultariam na ado- à educação que os mesmos devem rece-
ção, pela associação de resistência, de ber, sempre que tal seja possível; quando
uma doutrina política e religiosa, ou de os sindicatos não puderem sustentar es-
um programa eleitoral.” (Idem, p.101) colas, deve a Federação local assumir o
encargo. (Idem, p.109.)
Partindo deste pressuposto, foram
discutidas diversas questões estratégi- Assim sendo, os trabalhadores
cas, como o aumento salarial, a agita- deste primeiro congresso já percebiam
ção em prol das oito horas de trabalho, que a educação não era e nunca havia

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sido neutra, que a “educação oficial” ti- catos, associações e ligas operárias de
nha como finalidade ideológica manter todo o Brasil puderam participar das
o regime de opressão e exploração da discussões e deliberações, sendo que
burguesia. Ideias e sentimentos eram nas considerações sobre a educação e
transmitidos, ou melhor, incutidos instrução das classes operárias conse-
nas crianças, por isso era necessário o guiram apurar melhor seu olhar tor-
movimento operário criar escolas que nando mais complexa sua análise. Para
servissem seus próprios interesses, que esses trabalhadores, as primeiras clas-
buscassem produzir um conhecimento ses a possuir o monopólio da instrução
e uma prática emancipadora. Tal res- e educação foram a aristocracia e as
ponsabilidade não cabia senão a eles igrejas de todas as seitas, com isso pro-
mesmos realizar. Para tanto, ficava a curavam manter o povo na ignorância
cargo dos sindicatos formarem tais es- para melhor controlá-la:
paços educativos e se caso não estivesse
ao alcance da associação a Federação Considerando que a instrução foi, até
local tomaria para si a responsabilida- uma época recente, evitada pelas castas
de. E com tal enfática percebemos que aristocráticas e pelas igrejas de todas as
não se abriu mão da realização dessas seitas, que visavam manter o povo na
escolas, pois era crucial que a educação mais absoluta ignorância, próxima à
das crianças fosse empreendida. bestialidade; para melhor explorá-lo e
Os debates em torno da educação governá-lo; (idem, 138)
continuaram até a realização do Se-
gundo Congresso Operário Brasileiro, Todavia, no momento em que vi-
que ocorreu nos dias 8, 9, 10, 11 e 13 viam esses trabalhadores, a classe que
de setembro de 1913. Este congresso detinha o controle da instrução e da
foi realizado logo após o congresso or- educação era a burguesia. Tal classe
ganizado por Pinto Machado em 1912, inspirava-se em ideias positivistas e
a convite do deputado Mario Hermes. teorias materialistas quando aborda-
Este encontro foi interpretado pelo vam o conhecimento científico. No
movimento operário como um “des- entanto, tais ideias eram travestidas
vio” das questões operárias, por isso de certo misticismo, uma religião do
merecia uma resposta de todo o con- Estado caracterizada pelo patriotis-
junto do movimento (SAMIS, 2004, mo e o nacionalismo. A ciência mís-
p.137). No congresso organizado pela tica da burguesia se baseava em falsas
COB, foi reunido um número muito ideias propositalmente maquiadas por
mais significativo que o anterior, sindi- argumentos supostamente verdadei-

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O papel da educação no movimento operário e anarquista

ros, tendo como anseio arremedar-se tas e nas teorias materialistas sabiamen-
real, mas que tinha como finalidade a te invertidas pelos cientistas burgueses,
aceitação voluntária da situação que os quais metamorfoseiam a ciência se-
viviam o conjunto da sociedade. Ao gundo os convencionalismos da socie-
inferir ao conhecimento esta roupa- dade atual; centralizando a instrução,
gem patriótica, a burguesia colocava a tratando de ilustrar o operariado sobre
ciência à serviço de seus interesses, o artificiosas concepções que enlouque-
que inviabilizava a emancipação senti- cem os cérebros dos que frequentam as
mental, intelectual, econômica e social suas escolas, desequilibrando-os com os
dos proletários e de toda a humanidade. deletérios sofismas que formam o civis-
Por isso, na medida e que a burguesia mo ou a religião do Estado;
tomava para si a responsabilidade de [...]
educar a população, nada mais fazia do Considerando que esta instrução e edu-
que enlouquecer os cérebros daqueles cação causam males incalculavelmente
que frequentavam suas escolas. maiores do que a mais ampla ignorância;
e que consolidam, com mais firmeza, to-
Considerando que a burguesia, inspira- das as escravizações, impossibilitando
da no misticismo, nas teorias positivis- a emancipação sentimental, intelectual,

Foto do Terceiro Congresso Operário Brasileiro - Acervo do Núcleo de Estudos Libertários


Carlo Aldegheri

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econômica e social do proletariado e da leiro’, aconselha aos sindicatos e às clas-


humanidade; (Idem) ses trabalhadoras em geral, tomando
como princípios o método racional e
Para se contrapor a este tipo de científico, em contraposição ao ensino
educação, o Segundo Congresso Ope- místico e autoritário, promovam a cria-
rário Brasileiro recomendava aos sin- ção e divulgação de escolas racionalistas,
dicatos, associações e ligas operárias ateneus, cursos profissionais de educa-
– reafirmando os encaminhamentos ção técnica e artística, revistas, jornais;
do congresso anterior – a construção criando conferências e prelações, orga-
de novas escolas, onde os próprios tra- nizando certames e excursões de propa-
balhadores fossem os protagonistas da ganda instrutiva, editando livros e folhe-
construção de seus conhecimentos e tos. (Idem, p.139)
que estivessem, por isso, à serviço de
seus interesses. Não obstante, nesse en- É justamente na resolução do Se-
caminhamento foi colocado que tais gundo Congresso que podemos per-
escolas deveriam tomar como princí- ceber que a dimensão educacional do
pios o método racional e científico, que movimento operário assemelhava-
já haviam sido amplamente divulgados -se muito da perspectiva pedagógica
pelo educador catalão Francisco Ferrer do movimento anarquista no Brasil.
y Guardia e que já circulavam pelo Bra- Como nos mostra o historiador da edu-
sil desde meados de 1906. Além dis- cação José Damiro (2013), para os mi-
so, o projeto educativo do movimen- litantes anarquistas a educação se dava
to operário não se restringia apenas à não apenas na escola, mas também nos
construção de escolas, mas também, e sindicatos, grupos de estudos, ateneus,
inclusive, na criação de ateneus, cursos bibliotecas e centros de cultura, sendo
profissionais, revistas, jornais, pales- que os veículos desta nova forma pe-
tras e edições de livros e folhetos. Ve- dagógica eram apresentados tanto nos
mos, desta maneira, que a propaganda periódicos operários e anarquistas,
servia também à causa da educação e quanto nos livros e folhetos editados.
instrução da população, sabendo que Dessa maneira, a alfabetização era fun-
essa propaganda não era isenta de um damental para a divulgação e expansão
posicionamento, mas sim um conheci- das ideias anarquistas, sendo de res-
mento produzido pelos e para os traba- ponsabilidade destes espaços educati-
lhadores. vos construírem o ambiente necessário
para tal intento.
O ‘Segundo Congresso Operário Brasi- Por conta da grande quantidade

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O papel da educação no movimento operário e anarquista

de analfabetos entre os operários, as Adelino Tavares de Pinho: Educação,


leituras de jornais e livros eram realiza- movimento operário e anarquismo
das de maneira coletiva3. Os próprios
trabalhadores se cotizavam e contrata- Adelino de Pinho, fazendo parte
vam pessoas que liam livros como de desse movimento, não deixou de esta-
belecer o consórcio entre o mundo do
Émile Zola e jornais operários como A
trabalho e do conhecimento. Em textos
Voz do Trabalhador, possibilitando a
e conferências podemos notar como
esses trabalhadores se apropriarem de relacionava cada uma destas perspec-
conceitos e reflexões feitas pelos liber- tivas, propalando de tal maneira que o
tários. Tendo em vista potencializar a sustentáculo de toda a emancipação só
apropriação do conhecimento letrado, poderia vir por meio da união e da ins-
a alfabetização se torna uma das prio- trução.
ridades para os anarquistas na medida
em que quanto maior for o número de [...] só unindo-vos e instruindo-vos po-
pessoas alfabetizadas tanto era maior o dereis atingir aquele grau de consciên-
cia e convicção capaz de vencer todos os
número da participação dos trabalha-
empecilhos, todas as ciladas e todas as
dores nas organizações sindicais. Neste
dificuldades com que os nossos inimi-
sentido, a luta pela emancipação eco-
gos costumam procurar impedir o ad-
nômica estava estreitamente ligada à vento de uma sociedade mais justa, mais
emancipação intelectual do operariado benéfica e altruísta: é pela união que ad-
quirireis a dureza do aço, a resistência
Formalizando o consórcio entre o mun- do ferro, a rija do granito, a qual afronta
do do trabalho e o mundo do conheci- todas as tempestades e todas as tormen-
mento, ofereceram aos trabalhadores tas, mantendo-se insensível, sem mossas
uma reflexão acerca de sua própria con- e sem arranhaduras. É pela instrução

dição de existência, para que pudessem, que conseguireis adquirir a consciência


de vossa força, de vossos deveres e de
com maior propriedade, orientar a re-
vossos direitos. (PINHO, 2013, p.101)
volta da classe. (SAMIS, 2014, p.50)
3 “[...] em voz alta, em grupo, nos locais de trab-
Para Adelino, a união do operaria-
alho, à hora do almoço, ou nas sedes das associa-
ções para que a maioria de analfabetos pudesse do e a instrução criariam, portanto, a
ouvir, compreender as ideias, os métodos de luta, força necessária para sua emancipação.
memorizá-los, assimilá-los!”. RODRIGUES, Ed-
gar. Quem tem medo do anarquismo? Rio de Ja- No entanto, para que tal força fosse
neiro: Achiamé, 1992, p.48. “benéfica”, elas deveriam estar à serviço

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pelas sereias burgueso-capitalístas.


Neste sentido, forjaram uma moral
que se realiza no seio da luta contra a
opressão e a exploração, não no senti-
do normatizador da moral que se insti-
tui como a certa, imposta de cima para
baixo, mas uma conduta que diz res-
peito às vivências nos sindicatos, nos
estudos de suas mazelas e nas reflexões
da construção de uma sociedade socia-
lista libertária.
Foi pelo trabalho e reflexão que o
ser humano pôde domesticar a natu-
reza, produzindo muito mais confor-
Adelino de Pinho (1885 - ?) to para sua vida cotidiana. Utilizar-se
das causas justas, nobres e altruísticas, dos ventos para mover um moinho,
e tal sentido só poderia ser traçado se fazer uso dos períodos de inundações
caso o “espírito” dos trabalhadores fos- dos rios para regar e plantar, produzir
se “esclarecido por uma sã e clara ins- luz elétrica iluminando casas, cidades
trução”, podendo distinguir as divisões e oficinas, todos esses benefícios só fo-
produzidas pelo mundo capitalista, tais ram possíveis por conta do trabalho do
como o “justo do injusto, o belo do dis- “homem esclarecido”, mas por um pe-
forme, a verdade da mentira”. Adelino queno descuido, um pequeno aciden-
sublinha que somente assim deixará de te que se produza e todo o trabalho e
ser seduzido “pelo canto da sereia bur- a sociedade que se construiu a partir
gueso-capitalística”. dele poderá ser destruído.
Dessa maneira, seria pela união em Carregado de um iluminismo ra-
sindicatos que o trabalhador tornaria- dical, radical também é o humanismo
-se capaz de lutar contra a exploração classista de Adelino, pois se ao mesmo
e dominação, sendo pela instrução que tempo coloca o uso da racionalidade
não se deixaria seduzir pela ideologia como instrumento de emancipação
das classes dominantes. Congregan- dos trabalhadores, tal razão, ou melhor,
do um ponto a outro os trabalhadores “consciência”, só poderia ser adquirida
produziram uma nova forma de ver o se os trabalhadores frequentassem suas
mundo, diferente daquelas entoadas associações operárias:

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O papel da educação no movimento operário e anarquista

[...] esta consciência adquiri-la eis fre- ganhasse a dimensão das lutas sociais
quentando a vossa associação, em convi- a partir de um movimento dinâmico
vência diária e cotidiana com os vossos entre educação e luta de classes, num
companheiros de labuta e de miséria, movimento contínuo, onde os traba-
discutindo, trocando impressões, to- lhadores pudessem passar a compre-
mando parte nos trabalhos associativos, ender quais eram as tiranias e os des-
inscrevendo-vos e fazendo vossos filhos potismos que lhes recaiam, impedindo
inscrever-se como alunos em escolas já que a luta se consumasse apenas nas
inauguradas; estudando todas as ques- reivindicações de melhorias pontuais,
tões que se relacionam com a sociologia estendendo o horizonte de expectativa
e com a questão social; procurando co- dos trabalhadores para o futuro, não
nhecer os grandes acontecimentos que interrompendo a luta até que a liberda-
se sucedem em todas as nações ditas ci- de fosse consumada na sociedade:
vilizadas e que são como um prelúdio à
grande e inevitável transformação que se [...] sede como as águas sempre agita-
está incubando e que não demorará em das. Vibrai a todas as ideias generosas;
desatar em opiniões e salutares frutos de protestai contra todas as tiranias e des-
solidariedade e de igualdade universal. potismos; adere a todas as atitudes altru-
(Idem, p.102) ísticas e sãs; interessai-vos por todos os
movimentos de reivindicação e de soli-
Segundo Adelino, é do cotidiano dariedade universal, e, sobretudo, não
da vida do trabalhador que se alimen- adormeçais sobre os troféus das con-
ta a instrução. O estudo das questões quistas já ganhas, das vitorias já alcan-
sociais não poderia ser adquirido nas çadas. Os nossos inimigos não dormem.
escolas e nos liceus da burguesia, mas (Idem, p.103)
sim no sindicato e nas escolas raciona-
listas, pois estes lugares estavam à ser- Tanto o movimento operário
viço não da preservação dos privilégios quanto Adelino estabeleceram uma re-
de alguns, mas sim na socialização de lação quase que intrínseca entre a luta
todas as riquezas, seja ela intelectual sindical e a educação. Percebemos ao
ou material. O objetivo da união destes analisar as atas do primeiro e segundo
dois “baluartes da defesa” do operaria- Congresso Operário Brasileiro que os
do era fazer com que as reivindicações trabalhadores estabeleciam essa rela-
não se estagnassem como as águas dos ção de tal forma que entendiam que a
pântanos, unir educação e associação emancipação intelectual dos operários
operária era fazer com que a educação não seria possível se não houvesse, in-

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clusive, a emancipação econômica. No de qualquer indivíduo. O saber, portan-


entanto, a emancipação econômica não to, não implicava uma tabula rasa onde
aconteceria se não houvesse também a eram preenchidos os conhecimentos,
emancipação intelectual. A tomada de mesmo aqueles que nada conhecem
consciência da situação de explorado e podem sair-se bem em tais exames, já
de oprimido se dá concomitantemente que o saber não é passível de ser avalia-
às lutas contra os patrões e o Estado. do. O que conferia o sucesso nos exa-
Essa dinâmica de tomada de cons- mes não era apreender o conhecimen-
ciência torna-se mais fácil quando nos to, o que fazia com que uns ganhassem
referimos à educação de jovens e adul- o diploma e outros não, estava relacio-
tos. Já no caso da educação dos filhos nado muito mais com questões indivi-
dos trabalhadores, tendo em vista a duais e sociais do que pedagógicas, em
relação educação e movimento ope- detrimento de “favoritismos, de com-
rário, se tornava mais complexa, e foi padrio ou de polícia”, assim como o
justamente nesse sentido que Adelino “temperamento” das crianças.
colaborou de maneira decisiva para o Para Adelino, os exames não con-
debate. Em 13 de dezembro de 1908, sideravam os aspectos emocionais da
Adelino de Pinho fez uma conferên- criança. Aquelas que eram mais tí-
cia na Liga Operária de Campinas. Sua midas, que facilmente se deixavam
fala foi editada em folheto pela gráfica impressionar ou eram tomadas pelo
“Peninsular Monteiro Gonçalves A.C.”, medo, quando questionadas por pes-
editora de Portugal. Adelino, nesse pe- soas que nunca tinham visto e que não
ríodo, era professor da Escola Social de possuíam nenhuma relação próxima,
Campinas e seu discurso se destinava não conseguiam responder às per-
aos pais dos alunos, suas primeiras li- guntas feitas, mesmo se soubessem as
nhas fica logo claro que dissertava para respostas. Já outras, que eram mais de-
as famílias operárias. sinibidas, que não se deixavam abalar
Pontuando uma série de motivos, em situações de estresse ou que memo-
Adelino procurou argumentar porque rizavam as informações que lhes eram
a Escola Social não havia aplicado os requeridas, poderiam sair-se melhor.
exames finais, o que comumente era Os exames dividiam os estudantes
feito em época de férias. Adelino co- entre aqueles que eram aprovados e re-
locou que os exames eram prejudiciais provados, entre os que eram capazes e
aos alunos, pois atentavam contra a incapazes, essa divisão obedecia a uma
verdadeira instrução e que tais exames lógica que não necessariamente cor-
de nada provavam sobre a competência respondia aos conhecimentos reais de

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O papel da educação no movimento operário e anarquista

cada um. O resultado desses exames, dessa mesma moral.


ou seja, a obtenção ou não do diploma, E aqui Adelino toca num ponto
fundamental: as crianças que não con-
como toda espécie de prêmios, é contrá- seguem o diploma não o adquirem por
rio, é prejudicial, é daninho, atentatório uma série de motivos, tais como pro-
às regras da pedagogia moderna. São blemas cognitivos, psicológicos ou de
coisas que só serve para tornar as crian- uma má formação congênita. O fracas-
ças vaidosas, pedantes – aquelas que o so em se obter o diploma, por mais que
obtém. As outras, as menos hábeis, as possa parecer incapacidade da criança,
menos aptas para o ensino que lhes dão na verdade, não dizia respeito às neces-
– essas são lançadas para o lado e per- sidades reais e individuais que cada um
seguidas com dichotes e epítetos de to- possuía. As características psicológicas
das as espécies de feitios. (PINHO, 2013, e biológicas de cada um eram determi-
p.26) nações que estavam para além da von-
tade individual da criança, pois
Sendo este o castigo para quem
não consegue. A dualidade – capazes a criança não fez a si mesma. Aquilo que
e incapazes – produzida pelos exa- é, não o é por vontade própria: o é for-
mes criavam, segundo Adelino, uma çada por circunstâncias estranhas à sua
perversidade que jogava na criança vontade; ao seu conhecimento. Logo,
a responsabilidade de seu sucesso ou como conclusão, as crianças devem-nos
fracasso, construindo uma hierarquia merecer todo respeito, toda simpatia,
de valores das mais “aptas” intelectual- todo amor. (Idem, p.27)
mente (e por isso vaidosas e pedantes)
e das menos “aptas” (burras e incompe- Seria função do educador, portan-
tentes) reforçando as exclusões típicas to, incluir tais crianças dentro do pro-
da sociedade capitalista. Concordando cesso educativo entendendo seus as-
com a pedagogia racionalista de Ferrer pectos intelectuais e afetivos, pois essas
y Guardia, Adelino ressalta que esta sim requereriam cuidados mais aten-
hierarquia é formada a partir da lógica tos, diferente daquelas que não pos-
de prêmios e castigos do ensino tradi- suíam, aparentemente, nenhum pro-
cional, formando uma noção merito- blema físico, psicológico ou cognitivo.
crata da educação totalmente adaptada Os estudantes com maiores facilidades
à moral capitalista. Por isso, a proposta no aprendizado deveriam contentar-se
de se acabar com os exames era uma com o “prêmio” que a natureza os do-
maneira de interromper a reprodução tou, pois se encontravam mais prepa-

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radas para enfrentar a luta pela vida e ridades de cada um, também não era
terem mais elementos para prosseguir. ponderado se os estudantes possuíam
Para Adelino de Pinho, mesmo um “talento” maior para a fala do que
aquelas crianças que são enquadradas para a escrita, para a observação do
em parâmetros “normais”, a realização que pela redação. Também não se leva-
de exames para elas não eram benéfica, va em consideração àqueles estudantes
pois mesmo estas poderiam não conse- que possuíam maior facilidade em ab-
guir passar nos exames, o que não sig- sorver o conteúdo e que poderiam se
nificaria que não se esforçaram. O que desenvolver com maior liberdade, pois
se avaliava nos exames não era esforço deveriam limitar-se a partir dos conte-
dos estudantes em aprender tal ou qual údos que foram pré-estabelecidos pelo
conteúdo, o que se avaliava eram os re- exame.
sultados obtidos, acirrando uma maior Depois dessa série críticas feitas
competitividade entre os estudantes. aos exames, Adelino indaga aos seus
O esforço não poderia ser medido por interlocutores: mas não seria o diploma
uma prova, assim como o talento espe- uma vantagem que os filhos da classe
cífico de um e de outro. operária teriam em melhorar de vida?
Tendo a posse de um diploma, não se-
o talento é uma coisa imaterial, como ria possível ter uma vida mais saudá-
querer prezá-lo, medi-lo, compará-lo? vel longe dos ambientes insalubres do
Todos têm sua utilidade em existir. Têm- trabalho fabril, da árdua labuta diária
-se talento e habilidade numas coisas, e dos campos, de poder viver com me-
é tapado ou inábil em muitas outras – nos esforço, com mais conforto, melhor
é o que é. Por isso, nós, que não temos acomodado? Sim, mas é claro! Todavia,
empenho senão em dar a maior soma de essa educação não seria destinada às
saber e conhecimentos a todos, e que sa- classes operárias, mas sim para aqueles
bemos que o conhecimento não precisa que desejavam reproduzir o sistema de
de documentos que o atestem, senão de desigualdades e de opressão do mundo
fatos que o provem, condenamos os cas- burguês. Qual seria a finalidade, então,
tigos. (Idem, p.35) da educação voltada para a classe tra-
balhadora? A educação dos filhos dos
O problema da educação seria, operários não deveria criar novas hie-
quando voltada para os exames e a rarquias, não poderia servir à constru-
obtenção dos diplomas, a homoge- ção de novas desigualdades. Adelino
neização do ensino. Não se levava em averigua que o conhecimento que tem
consideração quais eram as singula- como objetivo a obtenção de diplomas

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O papel da educação no movimento operário e anarquista

assevera mais ainda o fosso que existia obtenção de um título que lhe confere
entre a classe operária e a burguesia, e certa posição social. Por isso, “o reino
ao desejar fazer das crianças economis- dos diplomados”, para Pinho, “é o reino
tas ou advogados seria desejar fazer das dos acomodados”.
crianças burocratas que parasitariam o O fundamento da sociedade capi-
trabalho alheio. talista não se centrava apenas na esfe-
ra econômica e política, mas também,
[...] os trabalhadores devem cogitar em e inclusive, na ética. Para exemplificar
não fazer de seus filhos burocratas. Os isso, Adelino criou a imagem do “chi-
trabalhadores devem esforçar-se sim, queiro moral” associando-a à sociedade
mas de fazer de seus filhos uns bons em que vivia. Nesta sociedade a consci-
trabalhadores manuais, bem hábeis nos ência é vendida como uma mercadoria,
seus misteres, bem aptos nos seus ofí- onde o trabalhador deve se humilhar e
cios, capaz de viver trabalhando e lutan- vender-se sem pudor e escrúpulos. Em
do. (Idem, p.28) tal sociedade a educação destinava-se

A educação dos filhos da


classe trabalhadora deve, portan-
to, segundo Adelino, formar não
os verdugos da antiga sociedade,
mas trabalhadores que estariam
aptos a continuar o trabalho de
seus pais e seguir lutando contra
o regime de opressão e explora-
ção capitalista. Adelino percebe
que ao reproduzir o sistema que
mantêm as posições de bacharéis
de toda estirpe faz-se manter o
status quo, ou seja, se reproduziria
a dinâmica onde uns trabalham e
outros se aproveitariam do traba-
lho do outro, onde uns são explo-
rados e outros usufruem de todas
as riquezas produzidas, tudo isso
através da hierarquia formada
não pelo conhecimento, mas pela “Quem não trabalha não come“, por Adelino de Pinho

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Revista da Biblioteca Terra Livre - ano II, nº 3

à escravização dos cérebros, corações pios. Se assim não fosse, Adelino re-
e sentimentos ao superior hierárquico, conheceria a utilidade do trabalho do
ao chefe político, ao deputado e ao mi- advogado, por exemplo, na medida em
nistro, pois estes, com medo da toma- que este, reconhecendo as instâncias
da de consciência dos trabalhadores, legais da sociedade capitalista, prove-
receavam em perder suas posições de ria com seu trabalho o melhoramento
privilégios. desta mesma sociedade. No entanto, os
trabalhos burocráticos são tidos como
O operário, com um cérebro para pen- trabalhos inúteis, dado que não forne-
sar, um coração para sentir, um braço cem à sociedade os meios necessários
para empunhar a ferramenta, é a única para a sua reprodução enquanto seres
unidade de valor moral que se impõe, humanos. O que os trabalhos burocrá-
que se faz vegetar nesse pântano em que ticos reproduzem eram, justamente, as
vegetamos. (Idem, 29) desigualdades econômicas, políticas e
sociais. Por conseguinte, o imoral era
Segundo Adelino, o trabalhador aquele que não trabalhava – o parasita
tornava-se, portanto, a “unidade de va- – ou aquele que trabalhava inutilmente
lor moral” que combateria a imoralida- ou utilmente para a reprodução do ca-
de capitalista. O que constituía a moral, pitalismo.
dessa forma, mais do que o trabalho Assim sendo, trabalho manual por
era o trabalhar. Era no ato de trabalhar si só não era suficiente para se cons-
que se adquiriria a consciência de pro- truir outra sociedade. Era necessário
dutor, ou seja, daquele que constrói a que este trabalho estivesse atrelado ao
riqueza pelo seu trabalho, sendo útil trabalho intelectual.
para a sociedade. Existiam, portanto,
aqueles trabalhos que eram úteis e/ou O seu braço (do trabalhador), auxiliado
inúteis socialmente. O trabalho útil era pela inteligência remove todos os obstá-
aquele que proporcione à humanidade culos; rasga canais, perfura túneis, apla-
alguma parcela de bem estar moral ou na montanhas, cava lagos, sulca o ocea-
físico. Entender o trabalho através des- no. E tudo isto sem diploma! (Idem)
sa chave – útil/inútil –, não é localizá-lo
no campo do utilitarismo clássico, pois Podemos pensar que quando Ade-
tal perspectiva não o procura enqua- lino une o trabalho manual ao traba-
drar na atual sociedade, mas entendê- lho intelectual entendia que ambos
-lo como elemento que constrói outra eram dois tipos de trabalhos distintos
sociedade, pautada sob outros princí- e que deveriam ser unidos. Contudo,

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O papel da educação no movimento operário e anarquista

acreditamos que Adelino e, de certa exerce sua atividade em proveito próprio


forma, grande parte dos anarquistas e em proveito de todos. (Idem, p.32)
que se preocuparam com a temática da
educação, constataram que o trabalho Se a educação não cumprisse este
manual e o trabalho intelectual esta- duplo papel, o de assimilar e produzir,
vam desconectados, desligados um do compreender e exprimir, conhecer a rea-
outro. O capitalismo, ao aprofundar a lidade e realizar o útil seria uma educa-
divisão social do trabalho, criou uma ção incompleta e estéril. Deste modo,
série de hierarquias que determina- a educação anarquista, sugerida por
ram o tipo de trabalho que um e outro Adelino, deseja construir o ser huma-
poderiam ou deveriam fazer, sendo os no completo, busca formar tanto um
trabalhos braçais menos valorizados trabalhador/a que produz e transforma
do que os trabalhos intelectuais. O que a realidade em sua volta de maneira so-
Adelino de Pinho buscou apresentar cialmente útil, quanto um pensador/a
foi justamente acabar com estas hierar- que usufrui do trabalho coletivo e que
quias, propondo que tanto um trabalho possa desfrutar do conhecimento e das
quanto o outro fossem postos em pé de artes.
igualdade. Mais do que isso, o que pro-
põe é a possibilidade dos sujeitos de se O homem deve ser, antes de tudo, um
empoderar tanto do trabalho manual trabalhador para prover a sua alimen-
quanto do intelectual, pois reconhecia tação, o seu sustento e o de sua família.
na união destes dois trabalhos o dado Mas nem só de pão vive o homem. O
natural da vida. homem têm necessidade de livros, de
música, de estátuas, de pintura, de pai-
A vida é uma troca perpétua. O homem sagens. Logo, a par dum trabalhador,
está em relação de reciprocidade com o devemos fazer um pensador. (Idem, 33)
meio natural e o meio social, com o uni-
verso inteiro e os seus semelhantes. Não Ao construírem a relação entre as
nasceu unicamente para conhecer, mas lutas levadas a cabo pelo movimento
também para agir. Alternativamente ati- operário nos sindicatos e a educação, a
vo e passivo, dá-se e recebe; toma ideia C.O.B. e os militantes anarquistas mos-
nas coisas, e depois põe suas ideias em traram que não era possível entender
suas obras. Entra em comunidade de in- a emancipação das classes populares
teresses, de sentimentos, de pensamen- sem levar em consideração os aspectos
tos com os outros homens, utiliza-se do econômicos, políticos, sociais, éticos e
trabalho de outrem, e, seguidamente, culturais. O tecido social é atravessado

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Revista da Biblioteca Terra Livre - ano II, nº 3

por todos esses elementos formando Referências bibliográficas


um emaranhado complexo, e a função
da luta sindical associada à educação PINHO, Adelino Tavares de. Pela
procurou fazer com que os/as traba- Educação e Pelo Trabalho e outros es-
lhadores/as e seus filhos/as pudessem critos, editora Biblioteca Terra Livre,
entender esta complexidade na me- São Paulo, 2013.
dida em que procuraram transformá- RODRIGUES, Edgar. Alvorada
-la, buscando romper as sendas que os Operária, editora Mundo Livre, Rio de
prendem. Janeiro, 1979.
SAMIS, Alexandre. O Primeiro
Congresso Operário Brasilieiro e ou-
tras formas pedagógicas de luta in Edu-
cação Libertária, Editora Imaginário e
IEL, São Paulo e Rio de Janeiro, março
de 2014.
SAMIS, Alexandre. Pavilhão ne-
gro sobre a pátria oliva: sindicalismo
e anarquismo no Brasil in VÁRIOS,
História do Movimento Operário Re-
volucionário, editora Imaginário, São
Paulo, 2004.

Vitor Ahagon é membro da Biblioteca Terra Livre e educador do Cursinho Livre da


Lapa.

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