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Vitor Ahagon
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Revista da Biblioteca Terra Livre - ano II, nº 3
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O papel da educação no movimento operário e anarquista
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sido neutra, que a “educação oficial” ti- catos, associações e ligas operárias de
nha como finalidade ideológica manter todo o Brasil puderam participar das
o regime de opressão e exploração da discussões e deliberações, sendo que
burguesia. Ideias e sentimentos eram nas considerações sobre a educação e
transmitidos, ou melhor, incutidos instrução das classes operárias conse-
nas crianças, por isso era necessário o guiram apurar melhor seu olhar tor-
movimento operário criar escolas que nando mais complexa sua análise. Para
servissem seus próprios interesses, que esses trabalhadores, as primeiras clas-
buscassem produzir um conhecimento ses a possuir o monopólio da instrução
e uma prática emancipadora. Tal res- e educação foram a aristocracia e as
ponsabilidade não cabia senão a eles igrejas de todas as seitas, com isso pro-
mesmos realizar. Para tanto, ficava a curavam manter o povo na ignorância
cargo dos sindicatos formarem tais es- para melhor controlá-la:
paços educativos e se caso não estivesse
ao alcance da associação a Federação Considerando que a instrução foi, até
local tomaria para si a responsabilida- uma época recente, evitada pelas castas
de. E com tal enfática percebemos que aristocráticas e pelas igrejas de todas as
não se abriu mão da realização dessas seitas, que visavam manter o povo na
escolas, pois era crucial que a educação mais absoluta ignorância, próxima à
das crianças fosse empreendida. bestialidade; para melhor explorá-lo e
Os debates em torno da educação governá-lo; (idem, 138)
continuaram até a realização do Se-
gundo Congresso Operário Brasileiro, Todavia, no momento em que vi-
que ocorreu nos dias 8, 9, 10, 11 e 13 viam esses trabalhadores, a classe que
de setembro de 1913. Este congresso detinha o controle da instrução e da
foi realizado logo após o congresso or- educação era a burguesia. Tal classe
ganizado por Pinto Machado em 1912, inspirava-se em ideias positivistas e
a convite do deputado Mario Hermes. teorias materialistas quando aborda-
Este encontro foi interpretado pelo vam o conhecimento científico. No
movimento operário como um “des- entanto, tais ideias eram travestidas
vio” das questões operárias, por isso de certo misticismo, uma religião do
merecia uma resposta de todo o con- Estado caracterizada pelo patriotis-
junto do movimento (SAMIS, 2004, mo e o nacionalismo. A ciência mís-
p.137). No congresso organizado pela tica da burguesia se baseava em falsas
COB, foi reunido um número muito ideias propositalmente maquiadas por
mais significativo que o anterior, sindi- argumentos supostamente verdadei-
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ros, tendo como anseio arremedar-se tas e nas teorias materialistas sabiamen-
real, mas que tinha como finalidade a te invertidas pelos cientistas burgueses,
aceitação voluntária da situação que os quais metamorfoseiam a ciência se-
viviam o conjunto da sociedade. Ao gundo os convencionalismos da socie-
inferir ao conhecimento esta roupa- dade atual; centralizando a instrução,
gem patriótica, a burguesia colocava a tratando de ilustrar o operariado sobre
ciência à serviço de seus interesses, o artificiosas concepções que enlouque-
que inviabilizava a emancipação senti- cem os cérebros dos que frequentam as
mental, intelectual, econômica e social suas escolas, desequilibrando-os com os
dos proletários e de toda a humanidade. deletérios sofismas que formam o civis-
Por isso, na medida e que a burguesia mo ou a religião do Estado;
tomava para si a responsabilidade de [...]
educar a população, nada mais fazia do Considerando que esta instrução e edu-
que enlouquecer os cérebros daqueles cação causam males incalculavelmente
que frequentavam suas escolas. maiores do que a mais ampla ignorância;
e que consolidam, com mais firmeza, to-
Considerando que a burguesia, inspira- das as escravizações, impossibilitando
da no misticismo, nas teorias positivis- a emancipação sentimental, intelectual,
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[...] esta consciência adquiri-la eis fre- ganhasse a dimensão das lutas sociais
quentando a vossa associação, em convi- a partir de um movimento dinâmico
vência diária e cotidiana com os vossos entre educação e luta de classes, num
companheiros de labuta e de miséria, movimento contínuo, onde os traba-
discutindo, trocando impressões, to- lhadores pudessem passar a compre-
mando parte nos trabalhos associativos, ender quais eram as tiranias e os des-
inscrevendo-vos e fazendo vossos filhos potismos que lhes recaiam, impedindo
inscrever-se como alunos em escolas já que a luta se consumasse apenas nas
inauguradas; estudando todas as ques- reivindicações de melhorias pontuais,
tões que se relacionam com a sociologia estendendo o horizonte de expectativa
e com a questão social; procurando co- dos trabalhadores para o futuro, não
nhecer os grandes acontecimentos que interrompendo a luta até que a liberda-
se sucedem em todas as nações ditas ci- de fosse consumada na sociedade:
vilizadas e que são como um prelúdio à
grande e inevitável transformação que se [...] sede como as águas sempre agita-
está incubando e que não demorará em das. Vibrai a todas as ideias generosas;
desatar em opiniões e salutares frutos de protestai contra todas as tiranias e des-
solidariedade e de igualdade universal. potismos; adere a todas as atitudes altru-
(Idem, p.102) ísticas e sãs; interessai-vos por todos os
movimentos de reivindicação e de soli-
Segundo Adelino, é do cotidiano dariedade universal, e, sobretudo, não
da vida do trabalhador que se alimen- adormeçais sobre os troféus das con-
ta a instrução. O estudo das questões quistas já ganhas, das vitorias já alcan-
sociais não poderia ser adquirido nas çadas. Os nossos inimigos não dormem.
escolas e nos liceus da burguesia, mas (Idem, p.103)
sim no sindicato e nas escolas raciona-
listas, pois estes lugares estavam à ser- Tanto o movimento operário
viço não da preservação dos privilégios quanto Adelino estabeleceram uma re-
de alguns, mas sim na socialização de lação quase que intrínseca entre a luta
todas as riquezas, seja ela intelectual sindical e a educação. Percebemos ao
ou material. O objetivo da união destes analisar as atas do primeiro e segundo
dois “baluartes da defesa” do operaria- Congresso Operário Brasileiro que os
do era fazer com que as reivindicações trabalhadores estabeleciam essa rela-
não se estagnassem como as águas dos ção de tal forma que entendiam que a
pântanos, unir educação e associação emancipação intelectual dos operários
operária era fazer com que a educação não seria possível se não houvesse, in-
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radas para enfrentar a luta pela vida e ridades de cada um, também não era
terem mais elementos para prosseguir. ponderado se os estudantes possuíam
Para Adelino de Pinho, mesmo um “talento” maior para a fala do que
aquelas crianças que são enquadradas para a escrita, para a observação do
em parâmetros “normais”, a realização que pela redação. Também não se leva-
de exames para elas não eram benéfica, va em consideração àqueles estudantes
pois mesmo estas poderiam não conse- que possuíam maior facilidade em ab-
guir passar nos exames, o que não sig- sorver o conteúdo e que poderiam se
nificaria que não se esforçaram. O que desenvolver com maior liberdade, pois
se avaliava nos exames não era esforço deveriam limitar-se a partir dos conte-
dos estudantes em aprender tal ou qual údos que foram pré-estabelecidos pelo
conteúdo, o que se avaliava eram os re- exame.
sultados obtidos, acirrando uma maior Depois dessa série críticas feitas
competitividade entre os estudantes. aos exames, Adelino indaga aos seus
O esforço não poderia ser medido por interlocutores: mas não seria o diploma
uma prova, assim como o talento espe- uma vantagem que os filhos da classe
cífico de um e de outro. operária teriam em melhorar de vida?
Tendo a posse de um diploma, não se-
o talento é uma coisa imaterial, como ria possível ter uma vida mais saudá-
querer prezá-lo, medi-lo, compará-lo? vel longe dos ambientes insalubres do
Todos têm sua utilidade em existir. Têm- trabalho fabril, da árdua labuta diária
-se talento e habilidade numas coisas, e dos campos, de poder viver com me-
é tapado ou inábil em muitas outras – nos esforço, com mais conforto, melhor
é o que é. Por isso, nós, que não temos acomodado? Sim, mas é claro! Todavia,
empenho senão em dar a maior soma de essa educação não seria destinada às
saber e conhecimentos a todos, e que sa- classes operárias, mas sim para aqueles
bemos que o conhecimento não precisa que desejavam reproduzir o sistema de
de documentos que o atestem, senão de desigualdades e de opressão do mundo
fatos que o provem, condenamos os cas- burguês. Qual seria a finalidade, então,
tigos. (Idem, p.35) da educação voltada para a classe tra-
balhadora? A educação dos filhos dos
O problema da educação seria, operários não deveria criar novas hie-
quando voltada para os exames e a rarquias, não poderia servir à constru-
obtenção dos diplomas, a homoge- ção de novas desigualdades. Adelino
neização do ensino. Não se levava em averigua que o conhecimento que tem
consideração quais eram as singula- como objetivo a obtenção de diplomas
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assevera mais ainda o fosso que existia obtenção de um título que lhe confere
entre a classe operária e a burguesia, e certa posição social. Por isso, “o reino
ao desejar fazer das crianças economis- dos diplomados”, para Pinho, “é o reino
tas ou advogados seria desejar fazer das dos acomodados”.
crianças burocratas que parasitariam o O fundamento da sociedade capi-
trabalho alheio. talista não se centrava apenas na esfe-
ra econômica e política, mas também,
[...] os trabalhadores devem cogitar em e inclusive, na ética. Para exemplificar
não fazer de seus filhos burocratas. Os isso, Adelino criou a imagem do “chi-
trabalhadores devem esforçar-se sim, queiro moral” associando-a à sociedade
mas de fazer de seus filhos uns bons em que vivia. Nesta sociedade a consci-
trabalhadores manuais, bem hábeis nos ência é vendida como uma mercadoria,
seus misteres, bem aptos nos seus ofí- onde o trabalhador deve se humilhar e
cios, capaz de viver trabalhando e lutan- vender-se sem pudor e escrúpulos. Em
do. (Idem, p.28) tal sociedade a educação destinava-se
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à escravização dos cérebros, corações pios. Se assim não fosse, Adelino re-
e sentimentos ao superior hierárquico, conheceria a utilidade do trabalho do
ao chefe político, ao deputado e ao mi- advogado, por exemplo, na medida em
nistro, pois estes, com medo da toma- que este, reconhecendo as instâncias
da de consciência dos trabalhadores, legais da sociedade capitalista, prove-
receavam em perder suas posições de ria com seu trabalho o melhoramento
privilégios. desta mesma sociedade. No entanto, os
trabalhos burocráticos são tidos como
O operário, com um cérebro para pen- trabalhos inúteis, dado que não forne-
sar, um coração para sentir, um braço cem à sociedade os meios necessários
para empunhar a ferramenta, é a única para a sua reprodução enquanto seres
unidade de valor moral que se impõe, humanos. O que os trabalhos burocrá-
que se faz vegetar nesse pântano em que ticos reproduzem eram, justamente, as
vegetamos. (Idem, 29) desigualdades econômicas, políticas e
sociais. Por conseguinte, o imoral era
Segundo Adelino, o trabalhador aquele que não trabalhava – o parasita
tornava-se, portanto, a “unidade de va- – ou aquele que trabalhava inutilmente
lor moral” que combateria a imoralida- ou utilmente para a reprodução do ca-
de capitalista. O que constituía a moral, pitalismo.
dessa forma, mais do que o trabalho Assim sendo, trabalho manual por
era o trabalhar. Era no ato de trabalhar si só não era suficiente para se cons-
que se adquiriria a consciência de pro- truir outra sociedade. Era necessário
dutor, ou seja, daquele que constrói a que este trabalho estivesse atrelado ao
riqueza pelo seu trabalho, sendo útil trabalho intelectual.
para a sociedade. Existiam, portanto,
aqueles trabalhos que eram úteis e/ou O seu braço (do trabalhador), auxiliado
inúteis socialmente. O trabalho útil era pela inteligência remove todos os obstá-
aquele que proporcione à humanidade culos; rasga canais, perfura túneis, apla-
alguma parcela de bem estar moral ou na montanhas, cava lagos, sulca o ocea-
físico. Entender o trabalho através des- no. E tudo isto sem diploma! (Idem)
sa chave – útil/inútil –, não é localizá-lo
no campo do utilitarismo clássico, pois Podemos pensar que quando Ade-
tal perspectiva não o procura enqua- lino une o trabalho manual ao traba-
drar na atual sociedade, mas entendê- lho intelectual entendia que ambos
-lo como elemento que constrói outra eram dois tipos de trabalhos distintos
sociedade, pautada sob outros princí- e que deveriam ser unidos. Contudo,
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