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br/paideia
Resumo: O artigo apresenta nossos esforços em articular dois campos do saber humano, psico-
logia social e história, como parte de uma pesquisa que envolve a compreensão do impacto
psicossocial à presença de chineses no Brasil do século XIX. A partir da teoria das representa-
ções sociais, o objetivo é contribuir para uma psicologia histórica que seja capaz de integrar temas
comuns às ciências humanas, tais como alteridade, imaginário e modernidade. A flexibilidade da
corrente inaugurada por Moscovici permite a análise não apenas do “estranhamento” como da
“naturalização” dos fatos que se tornam históricos. Assim, o diálogo entre as referidas disciplinas
se mostrou promissor em nosso trabalho e mais uma possibilidade de alargamento de campo à
teoria das representações sociais.
Palavras-chave: Psicologia social. Representação social. Interdisciplinaridade.
As reflexões a seguir constituem esforços no cia que também enfrenta problemas de localiza-
sentido de promover um diálogo entre a teoria das ção: ciência social ou médica? A afirmação de que se
representações sociais e a história. Estudos em re- trata de uma pesquisa em psicologia social resolve
presentações sociais podem ser enriquecidos com a em parte a contenda, pois não bastassem os proble-
dimensão histórica, não apenas porque toda repre- mas epistemológicos da disciplina-mãe, a psicologia
sentação se refere a um tempo-espaço, mas porque social tem suas correntes e conflitos internos em que
a própria historicidade está na base da transformação se digladiam as formas sociológicas e individualizantes
social – objeto por excelência dos trabalhos reali- de abordagem (Farr, 2004; Spink & Menegon, 2000;
zados pela corrente inaugurada por Moscovici (1978) Vala, 1993). Mas a escolha da psicologia, no caso a
e que tem recebido significativos acréscimos, psicologia social, teve razão de ser. Afinal, a pers-
abarcando novas temáticas das ciências humanas ao pectiva não era a de lidar tão somente com fatos e
longo dos anos (Jodelet, 2001; Wagner, 1998). O diálo- sim relacioná-los a fenômenos de natureza complexa,
go com a história está presente de forma sistemáti- tais como imaginário, modernidade e alteridade. Ou
ca na obra de Moscovici, embora suas influências seja, tornava-se necessário utilizar uma teoria que
sejam mais explícitas em relação à sociologia. Mas abarcasse os processos de construção de subjetivi-
nossa pesquisa não significa apenas a incorporação dades – campo por excelência da psicologia social.
da dimensão histórica às representações sociais, im- No caso, um ramo da psicologia em sua forma socio-
plica, outrossim, em considerar um fato histórico na lógica que se desvencilhou do individualismo
sua relação com representações sociais, tal como hegemônico da corrente norte-americana.
será visto adiante. Fala-se correntemente em interdisciplinaridade,
Ao eleger as representações sociais para muito se comenta sobre o rompimento de paradigmas,
nortear nossa pesquisa, sentimos a necessidade de do holístico e complexo, mas nossas práticas e con-
buscar aporte em outras áreas, especialmente na his- cepções muitas vezes derivam de rótulos ou, como
tória, surgindo, como era esperado, dificuldades e veremos adiante com maior propriedade, de repre-
incompreensões. História e psicologia são áreas do sentações sociais. Historicamente a ciência se des-
conhecimento humano que não costumam dialogar colou da filosofia e criou ramos que correspondem a
com freqüência. No passado de uma psicologia objetos distintos e muitas vezes irreconciliáveis, pelo
centrada no indivíduo e de uma história que se con- menos na forma em que são apresentados. A especiali-
tentava com fatos, tal diálogo era realmente impossível. zação contribuiu para o avanço das pesquisas em
Para que fique mais claro, é necessário mencionar muitas áreas, é inegável, mas criou distorções que
aqui o objetivo da pesquisa que deu origem às re- são expressas nas críticas feitas ao cientificismo, que
flexões do presente artigo: análise das representações pode ser traduzido historicamente numa perspectiva
sociais provocadas pela imigração chinesa no Brasil monista. O paradigma de uma ciência única sofre
do século XIX (segundo quartel), no contexto de for- pesadas críticas na atualidade e as pesquisas se abrem
mação da identidade nacional. Realizamos, portanto, para novas alternativas e abordagens (Spink &
um estudo do impacto psicossocial causado pela pre- Menegon, 2000).
sença chinesa no Brasil entre 1850 e o final do Se- Em ciências sociais, fronteiras muitas vezes
gundo Império. O problema central foi entender como arbitrárias separam a história, a sociologia, a antro-
o coolie é inserido simbolicamente numa dinâmica pologia e a psicologia, para ficarmos apenas no campo
de imigração que se choca com o processo de for- de nosso interesse (Farr, 2004). O diálogo que seria
mação da nação. Paradoxalmente, de um trabalhador extremamente profícuo torna-se difícil em função do
chinês que não precisou ser visto para ser conhecido, repertório teórico que as corporifica. Não são ape-
pois já existia no imaginário construído ao longo da nas diferenças conceituais, como também humanas
modernidade ocidental. Não foi fácil enquadrar nossa em termos de interesses e perfis profissionais
pesquisa num “território” definido do mundo acadê- construídos ao longo de décadas. Paradoxalmente, a
mico, sobretudo na psicologia, segmento da ciên- alteridade está consolidada entre estudiosos que se pro-
Carvalho, J. G. S., & Arruda, A. (2008). Representações sociais: diálogos 447
num mundo governado por leis inexoráveis. A filosofia O termo representação é polissêmico, possui
grega lutou para se afastar da opinião, criando o mundo longa tradição e uso. Em geral, indica um “algo” que
das idéias ou as essências dialeticamente construídas. se insere entre um sujeito e um objeto; e traduz a
Sob diferentes roupagens a controvérsia estimulou dualidade básica da existência humana. São imagens,
debates ao longo da história. E o mundo das idéias palavras, símbolos, ações e expressões, enfim, de-
platônicas se transformou nas verdades claras e dis- correntes das atividades e interações humanas – o
tintas de Descartes. Mais tarde, já no século XIX, a ser no mundo que se faz no tempo. Assim, utilizada
ciência positivista tornou-se a porta-voz dos ideais da como expressão vaga por diferentes correntes de
objetividade e assim, mesmo em ciências humanas, pensamento, a representação em seus múltiplos usos
só deveria ser estudado o que pudesse ser visto e torna a coexistência possível (e mesmo impossível),
mensurado. Mas a sombra do ceticismo sempre es- de acordo com o contexto histórico. Ainda que, como
teve presente, de Sexto Empírico ao pós-modernismo, nos advertiu Jovchelovitch (2004), não se possa igno-
passando por Hume, o historicismo de Dilthey e mes- rar a predisposição biológica para a atividade cognitiva,
mo a fenomenologia. Evidentemente, há diferenças a representação só tem sentido na relação com o
epistemológicas entre as escolas de pensamento – outro. Chartier expõe-nos a dupla função da repre-
nada desprezíveis – mas é possível visualizar um pên- sentação: “a representação como dando a ver uma
dulo que oscila entre a subjetividade e a objetividade. coisa ausente, o que supõe uma distinção radical en-
Em termos práticos e sintéticos, foram criados tre aquilo que representa e aquilo que é representa-
dois paradigmas apoiados em visões de mundo su- do; por outro, a representação como exibição de
postamente incompatíveis e que norteiam pesquisas uma presença, como apresentação pública de algo
e abordagens excludentes. O debate que opõe as ou alguém” (Chartier, 1990, p. 20). Um quadro ou
chamadas pesquisas qualitativa e quantitativa é a rou- um ator no palco tanto evoca e substitui a realidade
pagem que adquire a questão na década 1980, como que representa, como também pode distorcê-la .
nos informa Alves-Mazotti (1996, p. 16), em suas A definição não é nova, mas a teoria das re-
considerações acerca dos paradigmas educacionais: presentações sociais não é uma roupagem moderna
“os rótulos quantidade versus qualidade tornaram-se para o nominalismo ou uma modalidade de negação
pregnantes, cada um deles, aglutinando em torno de pós-moderna da realidade. Apresenta-se como ten-
si características referentes a outras dicotomias igual- dência na psicologia social a partir dos estudos de
mente simplificadoras como descritivo versus Moscovici (1978) sobre a forma como a psicanálise
interpretativo, objetivo versus subjetivo, entre outras”. foi inserida e apropriada historicamente pela socie-
Na atualidade este debate não provoca tanto alvoro- dade francesa. Mas não foi fácil à teoria romper as
ço, embora as perspectivas ainda continuem a produzir barreiras e penetrar no mundo anglo-saxão (Leme,
pesquisas e livros. 1995). A corrente das representações sociais se opu-
nha ao individualismo da tradição behaviorista e da
Há certas idéias que possuem “linhagem” e no
cognição social, uma reação ao positivismo. Ainda
Ocidente a filosofia grega é a matriz de muitas delas,
que tenha em Durkheim seu precursor imediato no
tais como razão, justiça, verdade, entre outras, que
uso do conceito, Moscovici (2001) não deixa dúvidas
expressam themata. Ou seja, “modos de pensamen-
quanto ao seu débito e afirma:
to que a vida cotidiana sustenta e que são historica-
mente mantidos por mais ou menos longos períodos” O verdadeiro inventor do conceito é
(Moscovici, 2003, p. 218). Tão enraizados que prati- Durkheim, na medida em que fixa os con-
camente imperceptíveis, garantem a permanência de tornos e lhe reconhece o direito de explicar
estruturas até em contextos caracterizados pelo ex- os fenômenos mais variados na sociedade.
tremo dinamismo, como nas sociedades modernas. Ele o define por (...) uma ampla classe de
Mesmo as sofisticadas elaborações da filosofia ou da formas mentais (ciências, religiões, mitos,
ciência indicam um conjunto de relações sociais às espaço, tempo), de opiniões e saberes sem
quais estão ligadas e lhes garante sentido. distinção (p. 47).
Carvalho, J. G. S., & Arruda, A. (2008). Representações sociais: diálogos 449
deixar de ser, na esteira do sucesso surgiram críticas, modernos, as feministas, a escola dos
notadamente internas, no seio da psicologia social. Annales, os neomarxistas, os neoestilistas,
Em geral, como observa Leme (1995), referiam-se à os econometristas, os estruturalistas ou
ausência de definição do próprio conceito de repre- mesmo o próprio Marwick?
sentação social, a autora cita trechos de Moscovici
em que a ausência de precisão conceitual é admitida. Provavelmente em nenhuma área o combate
Ao contrário do que supõe Leme, acreditamos que – esse bordão às pretensões positivistas – é tão acirra-
a dimensão alcançada pela teoria exige a busca de do, principalmente se considerarmos que as próprias
autores que se preocuparam com a sistematização correntes se ramificam em outras tantas. Muito já se
do conceito, notadamente Jodelet (2001). discutiu quanto às possibilidades de uma ciência da
história, o que não a impediu de continuar produzindo
História e representação social novos e bons frutos, como a história cultural e a micro-
história, por exemplo. O boom editorial se traduziu
O trabalho de pesquisa a que nos dedicamos
em filmes, livros, revistas e até a ressurreição das
se situa entre domínios consagrados das ciências hu-
biografias e obras de memorialistas. Existe, portanto,
manas: a história e a psicologia social. A questão cen-
a história dos especialistas, divididos por suas teorias
tral do estudo é compreender as representações
e concepções filosóficas, a história do homem comum,
sociais sobre chineses no segundo quartel do século
que a vive e representa ao lado daquela que é ensina-
XIX, no momento em que segmentos da sociedade
da nas escolas em livros didáticos e publicações. A
brasileira discutiam: (a) a identidade nacional – quem
pergunta do filho de Bloch “para que serve a história”
pode ser considerado brasileiro; (b) as perspectivas
(Bloch, 1976, p. 11) foi transformada por Jenkins
do mercado de trabalho pós-escravidão.
(2001) em para quem serve a história. Para usar
Identidade, memória e representações são um jargão comum entre os historiadores, o ofício
temas comuns a obras de historiadores e psicólogos, do historiador continua em debate, mas a história
poderiam ser incluídos neste rol sociólogos e dos historiadores deve se contrapor ao senso co-
antropólogos. A pergunta é inevitável: a teoria das mum, pelo menos é o que nos recomenda Le Goff
representações tem como aplicação somente questões em obra clássica: “É desejável que a informação
do tempo presente? E caso seja, não haverá, então, histórica, fornecida pelos historiadores de ofício,
incompatibilidade entre a teoria e a história? Não as vulgarizada pela escola (ou pelo menos deveria sê-
representações em geral, mas tal como formuladas lo) e pela mass media, corrija esta história tradicional
por Moscovici (1978, 2001, 2003) e Jodelet (2001, falseada” (Le Goff, 1924/2003, p. 29). Esse modelo
2005). Ou, ao contrário, é possível utilizá-las enquanto não se coaduna certamente com a teoria das repre-
teoria capaz de dar suporte a trabalhos de cunho sentações sociais.
historiográfico, como o nosso, caracterizado por sua
A história enquanto saber humano pode ser
natureza temporal? No tópico anterior, a intenção foi
considerado essencial às sociedades, haja vista sua
caracterizar as representações sociais epistemolo-
ancestralidade e existência em distintas sociedades.
gicamente. Agora, o mesmo se faz necessário, afinal,
Neste sentido, é uma produção tipicamente humana,
de que corrente historiográfica estamos falando?
o que levaria no século XVIII o filósofo Vico a afir-
Ultrapassada a fase de hegemonia positivista mar que, ao contrário da natureza, somente a história
e sua pretensão de contar os fatos como realmente poderia ser objeto pleno do conhecimento, afinal “só
ocorreram, a historiografia “explodiu” em correntes se conhece o que se criou” (Reis, 2005, p. 220). De-
distintas e mesmo antagônicas, como nos relata o his- cididamente a história se afasta (ou tenta) da
toriador britânico Jenkins (2001, pp. 36-37): metafísica (filosofia da história) e da literatura para
Quem você gostaria de seguir? Há Hegel, se fazer ciência. Evidentemente o inconveniente de
Marx, Dilthey, Weber, Popper, Hempbel, uma visão panorâmica é a generalidade. O positivismo
Aron, Collingwood, Dray, Oakeshott, Danto, se tornou majoritário no século XIX e meados do XX,
Galie (...) Ou você prefere os empiricistas mas não sem ferrenhas oposições.
Carvalho, J. G. S., & Arruda, A. (2008). Representações sociais: diálogos 451
Ao definir o objeto por excelência da história, pertencentes ou não à tradição dos Annales, geral-
Braudel (1969/1992) distingue a longa e a curta du- mente aceitavam como estruturas objetivas, devem
ração. O tempo longo seria o campo do historiador, ser vistas como culturalmente constituídas ou
e o curto objeto das demais ciências do homem. Já “construídas”, “a sociedade em si mesma é uma re-
foi o tempo em que tal distinção era de alguma forma presentação coletiva” (Burke, 1997, p. 98). Com efei-
respeitada. Da pretensão de uma história total a to, Chartier (1990) critica a concepção de um social
uma história em migalhas (Reis, 2005, p. 73), as que existe por si mesmo e gera representações en-
concepções foram acompanhando as mudanças da tendidas como meros reflexos ou epifenômenos. Tal
sociedade e as certezas de um tempo iluminista, go- concepção não se expressa apenas na percepção or-
vernado pela razão, foram substituídas pelas incer- todoxa que reivindica a primazia da infraestrutura so-
tezas da pós-modernidade. bre a superestrutura. Senão vejamos a definição de
A pluralidade de correntes aproximou a história imaginário de Pesavento (1995, p. 15):
de abordagens típicas de outras ciências do homem e O imaginário faz parte de um campo de re-
assim o conceito de fonte foi ampliado. Num primeiro presentação e, como expressão do pensa-
instante, o movimento de renovação na França criou mento, se manifesta por imagens e discursos
a chamada escola das mentalidades. E aqui temos que pretendem dar uma definição de reali-
nossa primeira aproximação com as representações dade (...) As representações objetais, ex-
sociais. Para Moscovici (2001, p. 45), os estudos sobre pressas em coisas ou atos, são produto de
mentalidades fizeram com que o conceito de estratégias de interesse e manipulação.
representação coletiva não fosse relegado ao
esquecimento. Entretanto, se as mentalidades Aqui a representação aparece basicamente em
representaram um novo eixo temático, abarcando sua função de estrutura estruturada (Spink, 1995).
elementos do imaginário e da cultura, em termos Entretanto, como estrutura estruturante, as represen-
metodológicos os procedimentos continuaram os tações (sociais) oferecem matrizes sobre as quais o
mesmos que contribuíram para popularizar a história pensamento trabalha. Ao serem propostas como
social. As críticas pesadas às séries estatísticas e aos interface entre sujeitos e objetos, as representações
modelos generalizantes acabaram por reduzir a sociais assumem o estatuto de ambiente de pensamento.
história, repetindo a expressão de Dosse, a migalhas, Mas voltando a Chartier (1990), percebe-se que sua
ou seja, fracionada em correntes cada vez mais aproximação à teoria das representações sociais é evi-
díspares, tanto que a relação de Jenkins (2001), acima, denciada pela aceitação da primazia do coletivo
certamente está defasada. durkheimiano. Ao comentar as mentalidades, afirma:
De um modo geral, desde Dilthey são feitas
A relação entre a consciência e o pen-
por historiadores incursões no campo da psicologia e
samento é colocada de uma forma nova,
vice-versa. Mas nessa busca por novos horizontes a
próxima da dos sociólogos da tradição
utilização do conceito de representação por
durkheimiana, pondo em relevo os esque-
historiadores é central na obra de Chartier (1990) e
mas ou os conteúdos do pensamento que,
sua história cultural. Além de usar o conceito de
embora enunciados sobre o modo do indivi-
representação destacadamente, Chartier (1990) faz
dual, são de facto os condicionamentos não
menções a Durkheim e a Lévy-Bruhl, autores que
conscientes e interiorizados que fazem com
influenciaram Moscovici e a relação daqueles com a
que um grupo ou uma sociedade partilhe,
escola dos Annales.
sem que seja necessário explicitá-los, um
A importância dos ensaios de Chartier está sistema de representações e um sistema de
em exemplificar e discutir as mudanças na aborda- valores (Chartier, 1990, p. 41).
gem, como ele diz, “da história social da cultura para
a história cultural da sociedade”. Isto é, os ensai- Em Chartier, “seu conceito de representação visa
os sugerem que o que os historiadores anteriores, ao mesmo objetivo central de Bourdieu: ultrapassar
452 Paidéia, 2008, 18(41), 445-456
nas ciências sociais – e, portanto, na história –, a opo- E além das supostas inconsistências teóricas de sua
sição entre ‘física social’ e ‘fenomenologia social’” história cultural (Cardoso & Malerba, 2000;
(Cardoso & Malerba, 2000, p. 16). Para o historiador Pesavento, 1995), ele seria um pós-moderno! Com
francês a história é uma narrativa e na atualidade se relação às representações, o historiador Flamarion
preocupa menos com as estruturas que com as redes afirma:
onde se desenvolvem as estratégias indispensáveis Em minha opinião, a noção de representação
à vida social. Uma narrativa, mas não uma forma de social pode ser útil, operacionalmente, em
literatura, pois a história se remete a fontes e liga- muitos de seus usos e conceituações (...)
ções intersubjetivas, pode ser criativa, mas não in- Pessoalmente, pertenço ao grupo daqueles
ventada ao bel prazer do historiador. Chartier (1990, que acham pelo contrário, que, quando se
1994) não faz qualquer menção ao trabalho de repre- tenta absolutizar essa noção – quando ela é
sentações desenvolvidos na psicologia social, suas tomada literalmente –, ela entra “em confli-
influências explícitas são principalmente Elias e to com o fato óbvio de que não criamos mun-
Bourdieu, mas é possível também detectar com faci- dos, mas sim que estamos em um”: um
lidade seu diálogo com Certeau, Veyne, entre outros, mundo físico que indubitavelmente não cria-
nada ortodoxos em termos epistemológicos. Não apenas mos e que nos precede (Cardoso &
Chartier e seu conceito de apropriação (Burke, 1997, Malerba, 2000, p. 10).
p. 99), como demais autores da história cultural –
aqueles que assumem uma dimensão antropológica E conclui: “Os psicólogos sociais, felizmente
em suas análises na busca de uma “poética da histó- para eles, não parecem sentir a tentação de tudo
ria” (Diehl, 2002, p. 123) – oferecem, a nosso juízo, reduzir às representações coletivas: estas consti-
suporte para trabalhos em que a dimensão histórica tuem um de seus domínios de trabalho” (Cardoso &
das representações sociais é requisitada. Malerba, 2000, p. 23). Mas não se trata apenas de
uma questão de domínio ou reserva de mercado.
Pontos de contato Heller (1970/2000), por exemplo, relaciona cotidia-
Optamos pela teoria das representações soci- no e história através de conceitos como imitação e
ais por considerá-la um instrumento consistente de motivação. Assim, é preciso também conhecer os
pesquisa que circula com desembaraço entre os dife- referenciais dos autores que utilizamos, como no caso
rentes segmentos da ciência, o que constitui no se- da historiadora marxista. As correntes possuem
gredo de seu sucesso, como destaca Leme (1995, p. especificidades, é preciso admitir, e as conexões não
56) ao afirmar que a preocupação de Moscovici foi podem ser estabelecidas de forma arbitrária, embo-
abrir um campo de pesquisa flexível e não um ra tal prudência não possa significar um legítimo im-
paradigma magro e solitário. pedimento. Seja como for, o tempo das ortodoxias
tem cedido vez às experimentações, rompimentos
Apesar de utilizar temas caros aos trabalhos de
de barreiras, o que talvez se configure num movi-
historiadores, como memória e identidade, nem sem-
mento tão inexorável quanto estimulante (Lincoln &
pre a dimensão histórica das representações sociais
Guba, 2003, p. 170). As conexões foram perdidas
tem recebido o devido destaque ou aparece apenas
somente no emaranhado de conceitos produzidos ao
em referências ligeiras. O contexto social é realçado e
longo do tempo, mas os contatos são perceptíveis,
não poderia ser de outra forma, pois a representação é
por exemplo:
sempre integrante de um todo mais amplo com o qual
se articula. O trabalho que desenvolvemos segue pro- Caracterizar o Oriente como estranho e
vocando estranheza (ancoragens?) em minhas con- incorporá-lo esquematicamente num palco
versas e solicitações de ajuda a historiadores e teatral cujo público, gerente e atores estão
psicólogos. Os primeiros, ao ouvirem falar em repre- voltados para a Europa, e apenas para a
sentação se apressam em endossar as críticas a Europa. Por isso a vacilação entre o famili-
Chartier, afirmando que seu trabalho é inconsistente. ar e o estranho; Maomé é sempre o impostor
Carvalho, J. G. S., & Arruda, A. (2008). Representações sociais: diálogos 453
(familiar, porque ele pretende ser como o Após tais considerações podemos afirmar que
Jesus que conhecemos) e sempre o oriental o diálogo entre a história e a teoria das representa-
(estranho, porque, embora seja em alguns ções sociais não é só possível como fundamental.
aspectos “semelhantes” a Jesus, afinal ele Principalmente naquelas fronteiras em que a proxi-
não é como Jesus) (Said, 1978/2007, p. 113). midade é mais visível, nas reflexões que tratem de
memória, identidade e alteridade. O contexto para
O autor ao caracterizar o orientalismo prati- articulações é favorável, como se depreende das in-
camente esboça os processos de ancoragem e quietações do historiador Diehl (2002, p. 123):
objetivação das representações sociais. Seu trabalho
é um esforço no sentido de demonstrar como um ima- Pois bem, a pergunta instigante é a seguinte:
ginário “oriental” foi construído e consolidado ao lon- por que a memória coletiva e individual as-
go dos séculos e continua a permear as ações e sume atualmente um papel central na
políticas não só das potências quanto dos intelectuais historiografia? Penso ser possível mapear
que lidam com os povos do leste. Said (1978/2007) argumentos centrais, entre outros. O primeiro
faz referências constantes ao discurso, cita Foucault argumento vincula-se à crise da história
com freqüência, teoriza sobre um processo de como ciência, enquanto o segundo relacio-
alteridade, portanto. na-se com as formas de representação his-
As representações sociais expressam a ten- tórica, ou melhor, a narração histórica (a
são constante do cotidiano e suas demandas históri- poética da história).
cas. Muitas vezes o conteúdo das representações Durante a realização da V Jornada Internaci-
parece desafiar o tempo (themata) e não há como onal e III Conferência Brasileira sobre Representa-
prever ou antecipar o seu fim; a história não tem ções Sociais (Anais, 2007), diariamente, conforme se
uma direção linear como supunham os evolucionistas
observa na programação oficial do evento, foram reali-
do século XIX. Do ponto de vista das representa-
zados grupos temáticos em “memória, história, e cul-
ções sociais, o novo, estranhado, torna-se familiar e
tura/política”. Na oportunidade apresentamos nossa
dotado de um sentido, amálgama entre a novidade e
pesquisa ao grupo com a premissa de que os proces-
o já conhecido. A representação então materializa-
sos de ancoragem e objetivação são “cristalinos” numa
da no senso comum adquire “vida” própria como
perspectiva histórica. Ou seja, a novidade (a imigra-
produto da atividade social (Moscovici, 2003). Há
ção chinesa), a reação ao novo (debates sobre iden-
uma lógica interna, um sistema de categorizações e
tidade, mercado de trabalho) e sua acomodação ao
hierarquias que as tornam um sistema de pensamento,
sistema preexistente (teorias raciais, exclusão do tra-
não do indivíduo, mas inerentes ao todo do qual faz
balhador chinês), constam em documentos, matérias
parte. Portanto, as representações estão na base do
de imprensa, discursos, entre outras práticas de natu-
senso comum, nos processos de comunicação e
interação cotidianos, quando então emulam os qua- reza social que materializaram o fenômeno – são in-
dros de referência para a ação (Jodelet, 2001). Tal dícios, para usar um termo caro à micro-história
é a essência da mudança social e dos processos (Ginzburg, 1986/2007). Assim, procuramos demons-
constituintes da identidade e da alteridade; que no trar a possibilidade de transformar um fato histórico
repertório conceitual desta corrente são chamados num objeto de estudo pela teoria das representações
de ancoragem e objetivação. Sendo sociais, as re- sociais. A estimulação para a busca de novas pers-
presentações são inevitavelmente históricas pectivas em representações sociais é feita pelo pró-
(Rouquette, 1994), produzidas em contextos que re- prio criador da teoria, que declara em bom tom não
sultam de processos sucessivos e em direções pos- ser o guardião de uma pureza original (Moscovici,
síveis, seu caráter simultaneamente estruturante e 2007, p. 12).
estruturado é um embate entre o passado e o pre- A realização da pesquisa em todos os seus
sente. E assim, afirma Moscovici (2003, p. 38), “o objetivos tem demandado uma “caixa de ferramen-
passado é mais real que o presente”. tas”, que além da teoria das representações sociais
454 Paidéia, 2008, 18(41), 445-456
inclui a obra de diferentes segmentos das ciências curiosidade intelectual mas fonte produtora de sen-
humanas. Sob a égide da alteridade, a imigração cau- tidos. Portanto, existem representações sociais do
sou mais bate-boca e mal estar que entrada de traba- “ser brasileiro” que para serem compreendidas de-
lhadores no Brasil. E os que vieram simplesmente mandam análise histórica. Assim, nossas reflexões
“desapareceram”! até aqui buscaram atingir uma dupla finalidade, por
um lado, demonstrar que o estudo da representação
Considerações finais social demanda história, por outro, defender a posi-
Ao longo do presente artigo discutimos a rela- ção de que é possível analisar sob a ótica das repre-
ção entre representações sociais e história como parte sentações sociais fatos históricos, como o ingresso
das inquietações metodológicas de uma pesquisa si- de chineses no contexto de formação da nacionali-
tuada entre as duas áreas. Por destacar as represen- dade brasileira.
tações sociais das coletivas, Moscovici elegeu como
objeto de seus estudos os contextos caracterizados Referências
pela mudança. Evidentemente sociedades primitivas Abric, J.-C. (1998). A abordagem estrutural das re-
ou mesmo sociedades ocidentais pré-modernas não presentações sociais. In A. S. P. Moreira & D. C.
estão incluídas neste rol. A nosso juízo tal perspectiva Oliveira. (Orgs.), Estudos interdisciplinares de
não torna sua abordagem incompatível com a dimensão representação social (pp. 27-38). Goiânia: AB.
temporal. Ao contrário, a historicidade é componente
Alves-Mazzotti, A. J. (1996). O debate atual sobre os
fundamental à compreensão das representações so-
paradigmas de pesquisa em educação. Cadernos
ciais e é presença constante na teorização de seus
de Pesquisa, 96, 15-23.
autores. Mas não nos interessa um tempo que se tra-
duz apenas em documentos arquivados a esperar Anais, 5. Jornada Internacional, 3. Conferência
perguntas adequadas, nem estados de consciência que Brasileira sobre Representações Sociais.
existem espontaneamente, dissociados das atividades (2007). Brasília, DF: UnB. Recuperado em 03 ja-
cotidianas dos seres humanos. Neste sentido, nossa neiro 2008, de http://www.vjirs.com.br
intenção vai ao encontro de uma psicologia histórica Arruda, A. (2005). Pesquisa em representações soci-
que busca correlacionar processos sociais e mentais. ais: A produção em 2003. In M. S. S. Menin & A.
Não é uma jornada tranqüila, se levarmos M. Shimizu (Orgs.), Experiência e representação
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