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Saúde da criança – Tutoria 4 – Febre reumática

 Tratado de Pediatria. 4th edição, 2017.


 Diagnóstico, tratamento e prevenção da FR. SBC, 2009.

Conceitos gerais

 A febre reumática (FR) é uma doença inflamatória que ocorre como manifestação
tardia (2-3 semanas, provavelmente autoimune) de uma faringotonsilite causada
pelo estreptococo beta-hemolítico do grupo A (Streptococcus pyogenes), em
indivíduos geneticamente predispostos;
 As manifestações da doença são variadas e acometem principalmente as
articulações, o coração e o sistema nervoso central;
 A agressão cardíaca pode causar lesões irreversíveis, sendo a cardiopatia reumática
crônica (CRC) a principal causa de cardiopatia em menores de 25 anos.
 Depende de: Susceptibilidade genética/hospedeiro + fator bacteriano/mimetismo
molecular. Essa associação gera uma REAÇÃO IMUNE CRUZADA envolvendo linfócitos
B, anticorpos e linfócitos T.

Epidemiologia

 A FR é a doença reumática mais comum no Brasil . Em países desenvolvidos, a


incidência anual está em torno de 2 a 4 casos em 100.000 e, em países em
desenvolvimento, esse número sobe para 80 casos/100.000;
 Acomete mais indivíduos de 5 a 15 anos de idade, de ambos os sexos. Dificilmente
acomete crianças com menos de 4 anos, pois o desenvolvimento da doença depende
de uma maturidade do SI;
 Cerca de 15 a 20% de todas infecções de orofaringe são causadas pelo estreptococo,
embora 30 a 40% sejam assintomáticas. Admite-se que 1 a 3% dos casos de
faringotonsilite estreptocócica evoluam com FR em indivíduos geneticamente
predispostos.

Quadro clínico

 É um quadro misto. Apesar do nome, nem sempre há presença de febre ou


acometimento articular. Por isso, utiliza-se os critérios de Jones.
 Critérios maiores (clínicos): artrite, cardite, coreia, nódulos subcutâneos e
eritema marginado. A identificação de pelo menos 1 deles é essencial para o
diagnóstico de FR;

1. Artrite: edema + dor em articulações (sendo a dor mais intensa que edema). Tende
a ser uma poliartrite migratória com preferência por grandes articulações (joelhos,
ombros, cotovelos), geralmente assimetricamente. É autolimitada, dura de 2 a 3
semanas (fica até 5 dias em cada articulação). Responde bem a anti-inflamatórios
(evita-se utilizar nos primeiros dias de casos duvidosos, para não mascarar o caráter
migratório). Não é erosiva.
2. Cardite: tende a ser uma pancardite (ou, por vezes, uma endocardite isolada).
Primeiro cursa com insuficiência valvar (agudo), depois estenose (crônico). As valvas
mitral (a regurgitação mitral é causada por dilatação ventricular, dilatação do anel
mitral e pelo prolapso mitral) e aórtica costumam ser mais acometidas, sendo os
sopros presentes em até 50% dos pacientes. Pode ocorrer pericardite, mas nunca de
forma isolada. A evolução da cardite dura em média 1 a 3 meses. O sopro
desaparece em 70% dos casos, mas em 30% surgirão sequelas, como a cardiopatia
reumática crônica.
Existe cardite subclínica (sempre fazer Ecocardio em pacientes com FR, pois ECG e
ausculta estão normais).
3. SNC: tende a ser mais tardio (3 a 6 meses). Dificilmente apresenta-se isolada,
estando associada com cardite e/ou artrite na maioria dos casos. Coreia de
Sydenham (movimentos abruptos involuntários associados ao stress, ausentes no
sono. Geralmente faciais ou em extremidades), alterações de comportamento
(desatenção, hiperatividade, TOC). Dura entre 3-6 meses, e não costuma deixar
sequelas.
4. Nódulos subcutâneos: raros, associados a cardite grave. São simetricamente
distribuídos nas superfícies articulares, proeminências ósseas e couro cabeludo.
Possuem tamanhos variados (entre 0,5 cm e 2 cm), sendo indolores e móveis.
Evolução é tardia e fugaz (surge semanas após o surto, e desaparece com início de
corticoterapia).
5. Eritema marginado: associa-se com cardite. São manchas avermelhadas com
centro claro, serpiginosas, não pruriginosas, que recobrem tronco e regiões
proximais (não recobrem a face), evanescentes (duram de minutos a horas).

 Critérios menores: febre, artralgia, aumento do espaço PR no ECG, aumento de


reagentes de fase aguda (VHS e PCR);

6. Febre: geralmente está presente quando há artrite e acompanha-se de mal-estar,


prostração e palidez. Pode ser alta (38 a 39°C), mas diminui com o passar dos dias,
podendo durar 2 a 3 semanas e desaparecer mesmo sem tratamento. A resposta aos
anti-inflamatórios é muito rápida. Pacientes com cardite podem cursar com febre
baixa, enquanto aqueles com coreia pura são afebris.
7. Artralgia: poliartralgia migratória, assimétrica, envolvendo grandes articulações é
sugestiva de FR. Não limita movimentos e não cursa com edema.
8. Intervalo PR: não é específico de FR, pode estar presente sem que haja
acometimento cardíaco. ECG deve ser pedido para todos os pacientes com FR, até
que a normalidade seja registrada.
9. Reagentes de fase ativa: os critérios de Jones consideram os valores da VHS e da
PCR.

Evidência estreptocócica

 Cultura de orofaringe (padrão ouro, baixa positividade [latência de 7-21 dias, às


vezes já usou ATB]) ou história de escarlatina;
 Sorológico: ASLO (se normal, repetir em 2 semanas [pico]), Anti-Dnase B (pouco
disponível);
Diagnóstico

 A presença de 2 critérios maiores ou de 1 critério maior e 2 menores,


apoiados pela evidência de infecção estreptocócica prévia, é suficiente para
diagnosticar primeiro surto.

 A coreia pura e a cardite indolente são exceções em que os critérios de Jones não
precisam ser rigorosamente respeitados. A raridade de outras etiologias para coreia
torna a sua presença quase um sinônimo de FR, mesmo na ausência de outros
critérios ou da comprovação de estreptococcia prévia. Na cardite indolente, as
manifestações clínicas iniciais são pouco expressivas e geralmente, quando o
paciente procura o médico, as manifestações cardíacas podem ser a única
manifestação clínica, já com exames de fase aguda e títulos de ASO normais.

Diagnósticos diferenciais

 Artrites virais e pós-disentéricas : buscar com clínica + laboratório;


 Artrite idiopática juvenil: é crônica, podendo durar mais de 6 semanas. Pode ter
nódulo subcutâneos também;
 LES juvenil e vasculites: artrite, febre, envolvimento cardíaco, nódulos subcutâneos e
até coreia. Investigar laboratorialmente;
 Endocardite bacteriana: febre, sopro e artrite;
 Acometimento miocárdico e pericárdico isolados: não apoiam FR;
 Eritema marginado: deve ser diferenciado da reação a drogas, que costuma ser
pruriginosa.

Tratamento

 Consiste em erradicar o streptococcus e tratar os sintomas:


1. Erradicação do streptococcus: Penicilina G benzatina (eritromicina para os
alérgicos). Vale para todas as formas de FR, até para coreia pura;
2. Tratamento da artrite: AAS ou naproxeno (menos efeitos adversos).
A dose do AAS é de 80 a 100 mg/kg/dia (máximo de 3 g/dia) fracionados em 4
tomadas diárias. A resposta da febre e da artrite é rápida, em 24 a 48 horas.
Após 2 semanas de dose plena, ela deve ser reduzida e retirada em 4 semanas.
A dose de naproxeno deve ser entre 10 e 20 mg/kg/dia, fracionados em 2
tomadas diárias, com duração similar ao AAS. Os corticosteroides não estão
indicados na artrite isolada.
3. Cardite: todos os casos de cardite devem ser tratados com corticosteroides. Se
existir associação com artrite, os AINH são desnecessários.
 Cardite leve-moderada: prednisona VO (máximo de 60 mg/dia). A dose inicial de
corticosteroide é 1 a 2 mg/kg/dia por via oral ou o equivalente por via endovenosa. A
dose plena deve ser mantida nas 2 a 3 primeiras semanas, podendo ser fracionada
em 2 ou 3 vezes/dia. Posteriormente, procede-se à redução das doses em 20% a
cada semana, administradas em dose única pela manhã. De modo geral, com esse
esquema, a droga será retirada totalmente em cerca de 12 semanas na cardite grave
e em 4 a 8 semanas na cardite leve, coincidindo com a normalização das provas de
atividade inflamatória. Não há necessidade de introduzir AAS ao final do tratamento,
como era recomendado no passado.
 Cardite grave: pulsoterapia com metilprednisolona 30mg/kg em ciclos semais
intercalados;
4. Coreia: O haloperidol é iniciado na dose de 1 mg/dia em duas tomadas, com
aumentos progressivos de 0,5 mg a cada 3 dias, até que se consiga remissão dos
sintomas (máximo de 5 mg/dia). O ácido valproico tem ação mais lenta nos
primeiros dias, mas é igualmente eficaz. É usado na dose de 10 mg/kg/dia, com
acréscimos de 10 mg/kg/dia a cada semana até o máximo de 30 mg/kg/dia. A
redução das doses deve ser iniciada após 3 semanas de ausência de sintomas. A
dose de carbamazepina varia entre 7 e 20 mg/kg/dia.

Prevenção

 Sabe-se que o tratamento precoce e adequado das faringoamigdalites


estreptocócicas do grupo A com penicilina até o nono dia de sua instalação pode
erradicar a infecção e evitar um primeiro surto de FR em um indivíduo suscetível –
profilaxia primária – ou um novo surto em quem já teve a doença anteriormente –
profilaxia secundária.
 Profilaxia primária: visar evitar FR através do tratamento precoce de
faringoamigdalite. Manter níveis séricos por 10 dias. Uma importante dificuldade
encontrada na execução dessas medidas são as formas assintomáticas ou
oligossintomáticas das infecções estreptocócicas e os casos de tratamento
inadequado, seja pelo uso de antibióticos bacteriostáticos, seja pela administração da
medicação adequada por período inferior a 10 dias.
 Profilaxia secundária: consiste na administração contínua de antibiótico específico
ao paciente portador de FR prévia ou cardiopatia reumática comprovada, com o
objetivo de prevenir colonização ou infecção de via aérea superior pelo EBGA, com
consequente desenvolvimento de novos episódios da doença.

Medidas para diminuir a dor durante aplicação da penicilina benzatina devem ser
observadas, objetivando uma melhor aderência à profilaxia: usar agulha 30x8 mm ou
25x8 mm para aplicar a medicação, injetar o líquido lenta e progressivamente (2-3
min.) e evitar friccionar o local. O uso de 0,5 ml de lidocaína 2% sem vasoconstrictor
reduz a dor durante a aplicação e nas primeiras 24 horas, além de não interferir
significativamente nos níveis séricos da penicilina, podendo ser uma medida a ser
usada naqueles pacientes que relutam em fazer uso da penicilina benzatina por queixa
de dor.

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