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Tutoria 2 SC – Anemias carenciais

 Tratado de pediatria Nelson, 19ª edição; 2012;


 Consenso sobre Anemia Ferropriva (SBP, 2018).

Conceitos

 Anemia é definida como uma redução no volume dos eritrócitos ou na


concentração de hemoglobina (inferior a -2 desvio padrão e insuficiente para
atender às demandas fisiológicas);
 Pode ser resultante da deficiência na produção ou por excesso de
destruição/perda (hemólise, sequestramento e/ou sangramento).
 Os parâmetros variam de acordo com a idade, gênero e raciais (níveis de
hemoglobina em crianças afroamericanas são significativamente menores do
que em crianças brancas);

 Frente a um quadro de anemia, o corpo responde com alguns ajustes


fisiológicos:
1. Aumento do DC;
2. Aumento da extração de oxigênio: diferença arteriovenosa de O2 aumenta;
aumento da concentração de 2,3-DPG nos eritrócitos (reduz afinidade do O2
pela hemoglobina)
3. Fluxo sanguíneo desviado para órgãos e tecidos vitais;
4. Níveis maiores de eritropoetina: maior produção de eritrócitos pela medula
óssea.

Como avaliar clinicamente um paciente com anemia?

 Anamnese: idade, gênero, raça, dieta, medicamentos, doenças crônicas,


infecções, viagens e exposições. Investigar também HF: anemia,
esplenomegalia, icterícia, início precoce de pedras na vesícula.
 Exame físico: sinais só tendem a aparecer quando o nível de hemoglobina
está abaixo de 7-8 g/dL. Incluem palidez (língua, bases da unha, palmas),
sonolência, irritabilidade, baixa tolerância a exercícios, sopro cardíaco.
 Achados de gravidade e complicações: fraqueza, taquipneia, dispneia
aos esforços, taquicardia, cardiomegalia, IC de alto débito.

Estudos laboratoriais

 Testes iniciais devem incluir hemoglobina, hematócrito e índices de


hemácias;
 Pode-se pedir também contagem e diferencial de linfócitos, plaquetas,
contagem de reticulócito e exame de esfregaço de sangue periférico.
Diagnósticos diferenciais

 A anemia não é uma entidade específica, mas sim pode resultar de qualquer
processo patológico subjacente. A fim de estreitar as possibilidades de
diagnóstico, as anemias podem ser classificadas com base em sua
morfologia e/ou fisiologia:

 Morfologia: estuda-se o tamanho das hemácias (VCM – microcítica,


normocítica, macrocítica) e aparência microscópica (esfregaço).
 Fisiologia: produção ineficaz ou perda de hemácias? São os reticulócitos
(percentual e número absoluto) que permitem essa diferenciação. O
percentual normal de reticulócitos entre os eritrócitos totais durante a maior
parte da infância é de 1%, com uma contagem absoluta de reticulócitos de
25.000 a 75.000/mm3.
Na presença de anemia, a produção de EPO e o número absoluto de
reticulócitos devem estar aumentados:
Números baixos ou normais de reticulócitos geralmente representam uma
resposta inadequada à anemia, que está associada à falência na medula
óssea relativa ou eritropoese ineficaz.
O aumento no número de reticulócitos representa uma resposta normal da
medula óssea à destruição de hemácias em progresso (hemólise),
sequestramento ou perda (sangramento).

Anemia megaloblástica

 Eritropoiese ineficaz: morte celular prematura e diminuição da saída de


eritrócitos da medula óssea. As células são macrocíticas,
 Normalmente, há trombocitopenia e leucopenia associadas (afeta toda a
série mieloide);
 Deficiência de ácido fólico ou de Vit B12: substâncias que participam
muito da manufatura de nucleoproteínas (por isso a assincronia de
maturação entre núcleo e citoplasma nos eritrócitos).
1. Deficiência de ácido fólico (B9): a forma biologicamente ativa é o
folato, que participa ativamente da réplica de DNA e proliferação
celular.
Não sintetizamos a molécula; dependemos de forças dietéticas
[vegetais, frutas, órgãos animais - fígado e rim].
Pelo fato de os estoques corporais de folato serem limitados, a
anemia megaloblástica ocorrerá após 2-3 meses em uma dieta sem
folato.
2. Deficiência de Vitamina B12 (Cobalamina): Não sintetizamos a
molécula; dependemos de forças dietéticas [proteína animal].
É um cofator para duas reações metabólicas essenciais, formando
metionina e succinil-CoA, essenciais para síntese do DNA.
Ao contrário da situação com os depósitos de folato, as crianças mais
velhas e os adultos têm depósitos de vitamina B12 suficientes para
durar 3-5 anos. Entretanto, em neonatos nascidos de mãe com
baixos depósitos de vitamina B12, os sinais clínicos da deficiência de
cobalamina podem aparecer entre 6-18 meses de vida.

Anemia ferropriva

 A incidência da deficiência de ferro está relacionada aos aspectos básicos do


metabolismo do ferro e da nutrição;
 Um RN tem 0,5g de ferro, e um adulto 5g.
Para atingir esses 5g, devem ser absorvidos 1mg/dia (0,8mg/dia +
0,2mg/dia para compensar perdas por descamação celular) de ferro pelos
primeiros 15 anos de vida;
 Como menos de 10% do ferro é absorvido, a ingesta deve ser de cerca de
10mg/dia (para efeito de comparação, 1L de leite de vaca tem 1mg);
 Pouco comum antes dos 4-6 meses em crianças sob aleitamento materno
exclusivo. Segundo a SBP, a faixa mais acometida é de 6-18 meses.

 Etiologia:
- RN com baixo peso de nascimento (pouca reserva de ferro) e perda
sanguínea perinatal são mais susceptíveis;
- Consumo excessivo do leite de vaca está relacionado à anemia ferropriva:
baixo conteúdo de ferro e perda sanguínea pela colite proteica do leite
[especialmente em RN];
- Considerar sempre perda sanguínea: lesão em TGI [divertículo de Meckel,
pólipo, hemangioma, DII, etc].
- Considerar tricuríase, malária e H. pylori.

 Manifestações clínicas:
- Geralmente assintomática, e identificada em triagem laboratorial;
- Palidez nas palmas das mãos, leitos ungueais e conjuntivas é o sinal clínico
mais importante. Entretanto, esta só é visível quando a Hb está abaixo de 7-
8 g/dL, e os pais costumam não notar por se tratar de uma instalação
insidiosa;
- Outros sintomas/sinais incluem: adinamia; intolerância ao exercício;
cefaleia; fraqueza muscular; taquicardia; sopro cardíaco diastólico por
hipercinesia.
- Numa deficiência de ferro leve/moderada (Hb entre 6-10 g/dL), os
mecanismos compensatórios (aumenta 2,3-DPG; curva de dissociação de
O2) podem ser capazez de mascarar os sintomas, a não ser uma leve
irritabilidade. Porém, em níveis abaixo de 5 g/dL, há irritabilidade, anorexia,
letargia, sopro, taquicardia e, eventualmente, IC;
- Sintomas extra-hematológicos: comprometimento de algumas funções
intelectuais e motoras (irritabilidade, atenção reduzida, déficit de memória,
prejuízo na aprendizagem, atraso na aquisição da linguagem e
desenvolvimento motor); perversão do apetite (pagofagia, PICA, ingesta de
substâncias não nutritivas); redução da capacidade bactericida dos
neutrófilos e diminuição da eficácia da imunidade celular (infecções
respiratórias e gastrointestinais).
De uma forma geral:
- Deficiência de ferro: astenia, dor em mmii, unhas quebradiças,
estomatite angular, perversão do apetite, redução da atenção;
- Anemia (maior comprometimento hemodinâmico): apatia, irritabilidade,
palidez, repercussão cardíaca (sopro e taquicardia).

 Resultados laboratoriais:
- Deficiência de ferro progressiva segue uma ordem de eventos bioquímicos
e hematológicos;
- Primeiro, os depósitos de ferro do tecido são esgotados. Esse esgotamento
é refletido por um nível de ferritina sérica diminuído (<20 ug/dL; uma
proteína que fornece uma estimativa relativamente precisa dos depósitos de
ferro do corpo na ausência de doença inflamatória);
- Em seguida, o nível sérico de ferro diminui, a capacidade de ligação de
ferro no soro (transferrina sérica) aumenta e a saturação da transferrina cai
abaixo do normal;
- À medida que os depósitos de ferro diminuem, o ferro torna-se
indisponível para complexos com protoporfirina para formar o heme. As
protoporfirinas eritrocitárias livres (PELs) acumulam-se e a síntese da
hemoglobina é comprometida. Nesse ponto, a deficiência de ferro evolui
para a anemia ferropriva;
- Com menos hemoglobina disponível em cada célula, os eritrócitos tornam-
se menores. Essa característica morfológica é mais bem quantificada pela
diminuição do volume corpuscular médio (VCM) e da hemoglobina
corpuscular média (HCM);
- A variação aumentada no tamanho da célula ocorre à medida que os
eritrócitos normocíticos são substituídos por eritrócitos microcíticos. Essa
variação é quantificada pela largura de uma distribuição elevada de
eritrócitos (RDW);
- Contagem de eritrócitos também diminui;
- A porcentagem dos reticulócitos pode ser entre normal e elevada, embora
as contagens absolutas de reticulócitos indiquem uma resposta insuficiente
ao grau da anemia (reduzidas);
- O esfregaço sanguíneo revela os eritrócitos hipocrômicos e microcíticos
com variação substancial no tamanho da célula;
- A contagem de leucócitos é normal e a trombocitose costuma estar
presente. A trombocitopenia ocasionalmente é vista com a deficiência de
ferro muito grave, confundindo potencialmente o diagnóstico com as
doenças de insuficiência medular;
- Para diagnóstico:
1. Depleção dos estoques de ferro: ferritina [< 5 anos: < 12 ug/L; 5-12
anos: < 15ug/L]. É uma proteína de fase aguda pró-inflamatória, podendo
alterar resultados em inflamações;
2. Deficiência de ferro: ferro sérico [< 30mg/dL], saturação de
transferrina [< 16%], capacidade total de ligação de transferrina [>250-390
ug/dL];
3. Anemia: Hb e Ht reduzidos [tabela no começo]. Na maioria dos casos,
uma contagem sanguínea completa demonstra uma anemia microcítica com
um alto RDW, eritrócitos reduzidos e uma contagem de plaquetas normal a
elevada é suficiente para um diagnóstico presumível.
- A pesquisa de sangue oculto nas fezes deve ser realizada a fim de
excluir a perda sanguínea como causa de deficiência de ferro;
- Exames essenciais: hemograma; contagem de reticulócitos; esfregaço
de sangue periférico.

 Diagnóstico diferencial:
- Considerar quando a anemia microcítica não responde à ingestão oral de
ferro: dose está adequada? ; Há má absorção do ferro? ; Há perda de
sangue contínua (TGI, principalmente)? ; Há infecção ou inflamação
concomitante? ; Há deficiência de folato ou B12? ;
- Talassemias: contagem alta de eritrócitos e RDW normal;
- Anemia da doença crônica: geralmente normocítica;
- Intoxicação por chumbo.

 Prevenção:
- Aleitamento materno exclusivo. Caso não seja possível, a fórmula deve ser
fortificada com ferro (12mg/L) no primeiro ano;
- Introdução de cereais fortificados por ferro na dieta;
- Restringir consumo de leite de vaca;
- Triagem Hb/hematócrito aos 12 meses de idade, ou aos 4 meses se a
criança for alto risco.
- Suplementação profilática de ferro:

 Tratamento:
1. Sulfato ferroso:
- O sulfato ferroso consiste em 20% de ferro elementar;
- Barato e eficaz;
- Tem gosto desagradável, podendo gerar intolerância à ingestão oral. Pode
ser propriamente dado entre as refeições com suco;
- Crianças mais velhas e adolescentes podem apresentar queixas
gastrointestinais;
- Dose 3-5 mg/kg/dia, por pelo menos 8 semanas.
- Sais de ferro: mais barato, porém com mais efeitos adversos e sofre
influência da dieta (1h antes das refeições com suco);
- Sais férricos e aminoquelatos: menor interferência e efeitos adversos;
- Via parenteral: má absorção presente. Mais caro e tóxico.
2. Orientações dietéticas: reduzir consumo de leite de vaca;
3. Acompanhamento:
- O bom acompanhamento é essencial para garantir uma resposta ao
tratamento;
- Se a anemia for leve, a avaliação laboratorial deve ser realizada em
aproximadamente quatro semanas após o início do tratamento. Nesse
ponto, a hemoglobina aumentou em pelo menos 1-2 g/dL e está
normalizada;
- Se a anemia for mais grave, a confirmação prévia do diagnóstico pode ser
feita pelo aparecimento de um reticulócito em 48-96 horas de tratamento
instituído. Então, a hemoglobina irá começar a aumentar de 0,1 a 0,4 g/dL
por dia, dependendo da gravidade da anemia. A medicação com ferro deve
ser mantida por oito semanas após os valores sanguíneos normalizarem
para restabelecer os depósitos de ferro.
- Ou seja:
. Dosar reticulócitos e hemograma a cada 30-60 dias;
. Perfil de ferro e ferritina com 30 e 90 dias.

Anemia fisiológica

Ajuste hematológico normal. Baixa pressão de O2 na vida intrauterina causa


aumento de eritropoietina e eritrócitos; após nascimento, aumenta-se a pressão de
O2, inibindo a produção de eritropoetina. Além disso, a hemácia fetal tem uma
menor meia-vida, resultando na redução progressiva de Hb e Ht (anemia
fisiológica). É sempre normocrômica e normocítica, inicia-se por volta da primeira
semana (Hb 9,5-11 g/dL).

Com o crescimento e aumento da demanda de O2, aumenta-se a produção de


eritropoietina e corrige-se a anemia (contanto que haja Fe++). Não precisa de
tratamento (para bebês a termo), mas deve-se incentivar aleitamento materno
exclusivo.

Metabolismo do ferro

Distribuição

 Proteínas funcionais (maior parte): hemoglobina e mioglobina;


 Proteínas de depósito (30%): ferritina [fígado, baço, músculo esquelético e medula];
 Proteínas de transporte: transferrina;

Disponibilidade

- Maior parte vem da reciclagem;

- Outra parte, da dieta. São dois estados oxidativos diferentes:

 Ferro heme (ferroso [Fe2+], presente em carnes e vísceras, absorvido diretamente no


duodeno, maior biodisponibilidade);
 Ferro não heme (férrico [Fe3+], origem vegetal, menor biodisponibilidade, sofre ação de
facilitadores [Vit C] e inibidores [cálcio, cereais, fosfato] na absorção).

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