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Caso clínico — A esquizofrenia sob o olhar da psicanálise

Caso clínico
— A esquizofrenia sob o olhar da psicanálise
Clinical case
— Schizophrenia under the scrutiny of psychoanalysis
Maria Izabel Fernandes Karlin

Resumo
Caso clínico de um paciente jovem diagnosticado como esquizofrênico, encaminhado ao CAP
do CBP-RJ. O rapaz de 22 anos apresentava um quadro de mutismo, embotamento afetivo e
ausência quase total aos estímulos externos. O histórico familiar é relatado, assim como as
técnicas desenvolvidas no set analítico. A elaboração de um espaço criativo e de estímulos ori-
ginados na relação psicanalista e paciente produziu ao longo do tempo, elementos presentes
no tratamento psicanalítico, incluindo a transferência, a contratransferência, a resistência e a
associação livre.

Palavras-chave: Esquizofrenia, Desejo, Objeto, Libido, Fragmentação e Integração.

Introdução interpretar essa fala, que, mais do que em


Esse artigo relata o caso clínico de um jovem pacientes neuróticos, pode se apresentar por
paciente, diagnosticado como esquizofrêni- mutismos, gestos, palavras aparentemente
co que segui por quatro anos. Dentro do pos- soltas e muitos “não ditos”.
sível, o caso foi tratado sob um olhar psica- Um aspecto, que também me interessa
nalítico com a intenção de investigar o quan- ao relatar esse caso, é a observação de como
to a técnica psicanalítica pode ser utilizada é importante para o psicanalista envolvido
em pacientes psicóticos, sobretudo em um com o paciente estar constantemente atento
caso da gravidade desse paciente, bem como para o quanto e como ele suporta trabalhar
do quanto essa técnica tenha que ser ajustada nas condições apresentadas, considerando
sem, contudo, deixar de lado os pressupostos o processo que vive quando deparado com
básicos da psicanálise. um paciente que sofre, mas que ao mesmo
O grande impasse da técnica psicanalíti- tempo adoeceu a ponto de não expressar ne-
ca com o sujeito psicótico é a dificuldade no nhuma demanda.
estabelecimento da transferência desse com Entrar em contato com o estado frag-
o psicanalista, e sabemos o quanto a transfe- mentado do sujeito psicótico pressupõe en-
rência é uma “conditio sine qua non” para o trar em contato com as nossas fragmenta-
êxito de uma análise. ções e, mais que tudo, olhar de frente a nos-
Nesse caso, a escuta sob o viés psicanalí- sa sensação de impotência diante do sujeito
tico do paciente foi o elemento fundamen- que aparentemente não nos deseja e que nos
tal no desenvolvimento do trabalho. Existe coloca quase sempre diante de um questio-
uma fala em um paciente esquizofrênico, e namento – o que você quer de mim – e do
a questão que se põe ao psicanalista é como que eu quero de você.
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Caso clínico — A esquizofrenia sob o olhar da psicanálise

Caso clínico estranhas. Quais eram essas coisas estranhas


O paciente foi encaminhado ao CAP do expressas pelo filho o pai não conseguia re-
CBP-RJ por indicação de uma escola es- petir (com muita dificuldade ele conseguiu
tadual da Zona Sul do Rio de Janeiro, com dar a entender que o filho tinha utilizado a
ficha de entrada no dia 03/11/2008. Ele era palavra “diabo”).
aluno daquela escola e estava cursando pela Segundo o pai, ao chegar em casa, o rapaz
segunda vez o segundo ano do ensino médio, continuava muito agitado, o que o obrigou a
com 22 anos de idade. chamar o Corpo de Bombeiros, que os con-
Aceitar ou não o paciente foi uma das duziu ao Hospital Rocha Maia, que por sua
primeiras questões levantadas no âmbito do vez os encaminhou ao Pinel, onde ele ficou
CAP. Não só o paciente não chegou até ali internado por alguns dias. Quantos dias o
por vontade própria, bem como seu quadro paciente ficara internado e quais as indica-
gerava dúvidas quanto a seu diagnóstico. ções dadas pela instituição o pai se recusava
Após algumas discussões entre os coorde- a falar. As poucas vezes que conseguiu falar
nadores, foi decidido que aceitaríamos o pa- sobre o argumento era para dizer que o Pinel
ciente. era um lugar muito ruim e que seu filho não
O pai do paciente era porteiro de um pré- pertencia àquilo, pois era um lugar para dro-
dio na zona sul do Rio de Janeiro, e a mãe, gados.
empregada doméstica. O casal teve dois fi- Perguntei se já haviam ocorrido episódios
lhos, e o paciente era cerca de três anos mais como esse anteriormente, e sua resposta foi
novo que a irmã. A família morava havia que esse tinha sido o único. Ele também re-
muitos anos nesse mesmo prédio onde o pa- latou que o filho tinha sempre sido um rapaz
ciente passou toda a sua infância e adoles- normal até esse evento.
cência. O discurso do pai era impregnado por
Na primeira triagem não foi possível ob- muita ansiedade, mas em alguns momentos
ter praticamente nenhuma informação acer- conseguiu revelar que um dos motivos que
ca do paciente, pois ele não conseguia falar e o convenceram a procurar ajuda no CBP-RJ
emitia apenas alguns sons. era seu medo de que o comportamento do
Minha primeira iniciativa foi refazer a en- filho pudesse de alguma maneira prejudicar
trevista para tentar obter mais informações, seu trabalho, já que a família vivia no prédio
solicitando a presença do pai e da mãe. onde ele trabalhava.
Nesse primeiro encontro o paciente veio Também ficou bastante evidente a sua
acompanhado somente pelo pai, que jus- preocupação e o desejo de que seu filho fosse
tificou a ausência da esposa, seja por estar homem e que gostasse de mulheres. Repetia
muito ocupada com seu trabalho, seja des- sempre “esse é o meu único filho homem”.
crevendo-a como uma pessoa que naquele Repetiu várias vezes como o filho jogava bola
momento estava muito fragilizada devido a com ele quando era pequeno, mas que após
uma doença que, segundo ele, quase a levou a crise se recusava a jogar bola ou ir à praia
à morte. Eu pedi que o pai relatasse o que ti- com o pai.
nha acontecido com o filho. Ele então contou Embora o paciente não tivesse partici-
que certo dia o filho teve uma crise na escola pado ativamente dessa conversa, achei pru-
e foi acompanhado até a casa por um colega. dente a sua presença, pois estávamos falando
Pelo que foi reportado a ele, durante a aula o sobre ele. Durante o tempo em que falei com
paciente improvisamente tinha se levantado pai, seu olhar era vago e fixo em direção à
de sua cadeira e iniciado a fazer um discur- porta da sala. Foi nessa condição que o pa-
so muito confuso e desconexo. E ao chegar ciente chegou para ser atendido e, segundo o
em casa ele tinha continuado a falar coisas pai, ele não estava sendo medicado.

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Até então, a família tinha tentado tratá-lo A doença grave da mãe tinha sido uma ci-
na Igreja Universal, e pelo discurso do pai rurgia para retirada do útero, mas não tinha
ficou claro que o tratamento na Igreja era sido nada relacionado a um câncer ou a outra
vontade da sua esposa. Ao final da entrevista doença grave que a levasse necessariamente
ficou acordado que o paciente teria duas ses- a um risco de morte. Diante dessa dissonân-
sões por semana, que seria seguido por um cia de relatos, pude perceber que o pai era
médico psiquiatra e que o pai se comprome- um sujeito com um núcleo bem histérico. A
tia a ajudar seu filho a seguir rigorosamente a mãe me passou uma sensação de indiferença
medicação dada pelo médico. Também con- e falta de vida.
dicionei o início do tratamento ao compa- Finalmente estávamos os três juntos. Meu
recimento da mãe dele para que eu pudesse paciente, sempre silencioso, olhando o vazio;
conversar com ela. o pai muito agitado, ansioso e interrompen-
Através do CBP-RJ consegui um psiquia- do sempre a conversa, e a mãe, calada.
tra ligado à instituição para acompanhar o Decidi fazer algumas perguntas para a
paciente. O pai, nessa ocasião, apresentou mãe e devo dizer que ela descrevia mui-
uma série de exames neurológicos do filho to melhor o quadro do filho do que o pai.
que não apresentavam nenhuma anorma- Fornecia mais detalhes, mas ao mesmo tem-
lidade. Ao que tudo indicava, esse pai esta- po falava do filho sem sinal de sofrimento.
va buscando tratamento para o filho junto Para ela seu filho era assim. Talvez a única
aos médicos, mas a médicos neurologistas. coisa que a perturbasse um pouco era que ela
Como acontece frequentemente com pacien- o achava muito preguiçoso. Ela percebeu que
tes que sofrem no campo psíquico, os pais e o filho não estava bem muito antes do episó-
familiares negam o problema e preferem ou- dio na escola, mas ao mesmo tempo ela deu
vir um diagnóstico confirmando um mal fí- a entender que nunca tinha achado seu filho
sico do que ouvir a palavra “esquizofrenia”. muito normal.
Embora o paciente não falasse nem me Sua descrição do filho era bem diferente
olhasse, expliquei a ele as condições para seu da do pai. Ela relatou que o paciente tinha
acompanhamento, ou seja, a necessidade de sido sempre um menino diferente, que sem-
tomar os remédios prescritos pelo médico e pre teve dificuldades na escola e que ela não
que nossos encontros seriam para falar ou sabia nem como ele tinha chegado até o en-
ficar em silêncio, mas que só ele ficaria co- sino médio. Contou que ele nunca foi de ter
migo enquanto seu pai o aguardaria na sala amigos e que por volta dos 14 anos começou
de espera. a usar só roupas pretas e óculos escuros, fi-
Na segunda entrevista a mãe do pacien- cando sempre trancado no seu quarto, isola-
te compareceu. Fiquei surpresa ao ver que do. Segundo ela, toda a sua família e amigos
aquela pessoa que estava na minha frente não percebiam que ele era diferente e deu a en-
tinha nenhuma semelhança com a descrição tender que isso a envergonhava bastante.
dada por seu marido, de uma mulher prati- Além de usar só roupas pretas, ele toma-
camente à beira da morte. Contrariamente, va vários banhos durante a noite e se olhava
eu encontrei essa mulher muito bem vestida, constantemente no espelho. Não suportava
com uma aparência jovem (apesar dos seus televisão ou rádios ligados em casa e, antes
50 anos) e sem rugas no rosto. Tentei cum- da crise, começou a repetir o final das pala-
primentá-la, mas sua mão escorregou sobre vras que lhe eram faladas e, em particular, a
a minha evitando qualquer contato de pele. palavra SOS. Segundo ela, SOS se referia ao
Os movimentos que ela fazia com as mãos nome de um curso de computação que o ra-
eram os mesmos do filho (esfregar as mãos), paz frequentava. (Imediata é a associação de
e seu olhar era distante como o do filho. SOS com socorro.)

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Perguntei sobre a gravidez do filho, e ela Embora agitado e nervoso, o pai tentava
disse que tinha sido tudo normal e que ele fazer alguma coisa para reverter o quadro
tinha sido um bebê que chorava muito. Ela do filho, enquanto ficava cada vez mais cla-
repetiu várias vezes que ele chorava muito. ro que a mãe tinha desistido dele há muito
As informações da mãe esclareceram que tempo.
nem tudo estava bem com o paciente antes
da suposta crise e que ele já emitia sinais de O trabalho no set analítico
que precisava de ajuda: isolamento social, se As sessões duravam cerca de vinte minutos
olhar no espelho obsessivamente, fazer per- que era o máximo que o paciente conseguia
cursos longos de bicicleta (a mãe se preocu- ficar na sala. O paciente não se deitava até
pava porque ele ficava muitas horas andando porque não é indicado o divã para pacien-
de bicicleta e tinha medo que acontecesse tes psicóticos, pois algumas vezes até na
algo com ele, tanto que por fim ela decidiu poltrona eles têm dificuldade de ficar. Eu o
tirar a bicicleta dele). deixei livre para escolher onde ele queria se
Segundo a mãe, o quadro do filho teria sentar.
piorado após o casamento da irmã (o casa- Não tínhamos muita comunicação e após
mento acontecera poucos meses antes do vinte minutos estávamos os dois bastante
episódio na escola). Em alguns momentos angustiados. Ele controlava seu relógio pra-
ela tentou culpar o pai pela situação do filho, ticamente a cada minuto que passava e fazia
dando a entender que ele interferia muito na uma série de movimentos com o rosto e com
vida dele. a boca, olhando o tempo todo para a porta
Nessa conversa ficou bastante eviden- de saída, literalmente querendo escapar.
te que o casal tinha conflitos, mas que fazia Eu sempre falava para ele que, caso qui-
questão de manter uma certa aparência de sesse ir embora, ele poderia ir, mas em geral
que estava tudo bem. ficava os vinte minutos combinados. Aprendi
A mãe não demonstrou grande entusias- com ele que, quando combinava alguma coi-
mo pelo tratamento que eu estava propondo sa, ele cumpria. Os vinte minutos eram res-
e disse que ela não acreditava que o filho pu- peitados por ele e por mim.
desse melhorar. Segundo ela, só mesmo a fé Em uma das primeiras sessões eu disse a
o podia curar. ele: “Tudo bem que você ainda não consegue
Durante os 4 anos que seu filho foi aten- falar, mas você consegue me escutar, certo?
dido por mim, ela compareceu apenas duas Então vamos estabelecer um código para nos
vezes para falar do filho, e mesmo assim comunicarmos”.
porque eu insisti muito. Ela sempre tinha Escolhi o primeiro objeto que vi na mi-
uma desculpa que quase sempre era o tra- nha frente, ou seja, uma caneta azul e uma
balho. vermelha e estabeleci que a caneta azul iria
Após essas primeiras entrevistas o pa- significar “sim” enquanto a vermelha signi-
ciente foi a um médico psiquiatra que o ficaria “não”.
diagnosticou com esquizofrenia e passou Claro que a minha primeira dificuldade
uma medicação adequada. Quem acompa- foi lidar com um paciente sem uma deman-
nhava o paciente às consultas era o pai, que da explícita. A minha primeira pergunta foi,
o aguardava na recepção. Também era o pai literalmente: como é que eu vou sustentar o
que acompanhava o filho ao psiquiatra e que desejo de um paciente que não deseja nada?
providenciava os remédios para ele. A mãe Não demorou muito para que eu con-
não se ocupava de nada relacionado ao filho, cluísse que o desejo, naquele momento, era
exceto que, pela fala dele, mais tarde soube meu e assumi meu desejo sem culpa. Eu que-
que ela cozinhava bem. ria muito entender o paciente.

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Estamos agora na situação de apreciar que desse com o tempo. Era talvez o prelúdio de
o indivíduo com uma tendência esquizoi- como seria meu trabalho com ele; um traba-
de tem outro motivo para guardar seu amor lho quase que artesanal, cuidadoso em rela-
dentro de si, além do que surge da sensação ção a alguém que não podia continuar a se
de que esse amor é demasiado precioso para perder com tempo.
separar-se dele. Também mantém encerrado O personagem do livro com o mesmo
seu amor porque o sente como demasiado nome dele era a minha tentativa de fazê-lo
perigoso para descarregá-lo em seus objetos reconhecer que existiam outras pessoas com
Assim não só guarda seu amor numa caixa- seu nome, mas que a história de cada um era
-forte, mas até o guarda numa prisão. Po- diferente.
rém... Como sente que o próprio amor é mau, Eu percebi que ele me escutava, chegando
está disposto a interpretar o amor dos outros a olhar o livro ainda que sua expressão fosse
em termos similares (FAIRBAIRN, [1941] de indiferença. Eu frisava sempre que ele po-
1980, p. 21). deria pedir para eu parar de falar caso a mi-
nha fala o incomodasse, mas ele permanecia
Ele tinha suas razões para não desejar dar silencioso.
nada às pessoas, e cabia a mim lidar com a Como ele carregava no peito a mochila
minha contratransferência. da escola, eu pedi para ver seus cadernos e
Uma coisa eu também entendi: Eu teria vi que ele conservava os cadernos dos anos
que inventar e criar muito nesse trabalho, anteriores. Sua letra era perfeita e bonita.
mas também me deixei levar pela minha in- Perguntei se ele queria me mostrar seus de-
tuição. Claro que não podia utilizar o méto- veres e a partir daí, no início da sessão ele
do psicanalítico puro e simples, mas eu sabia costumava mostrar seus cadernos. Os cader-
que eu podia ter uma escuta psicanalítica e nos novos estavam praticamente em branco,
deixei que minha intuição fluísse no set. mas ele continuava a me mostrar também os
Além de criar o nosso código de “sim” e antigos. Assim como eu tinha trazido um li-
não”, decidi que eu falaria com ele. Acho que vro antigo, ele trazia seus cadernos antigos,
pensei que ouvir histórias é sempre bom e, cadernos esses que representavam um mo-
quem sabe, ele pudesse gostar de ouvir algu- mento em que talvez sua libido não estivesse
ma história. tão submersa.
Comecei a trazer livros para o consultó- Na quarta sessão eu aguardei o paciente,
rio. Não eram livros especiais, eram livros e ele não apareceu. Depois de esperar trinta
que eu pegava na minha casa de acordo com minutos, liguei para a casa dele, e o pai res-
o seguimento do nosso relacionamento. A pondeu dizendo que tinha esquecido de le-
primeira vez eu trouxe um livro muito an- var o filho ao consultório. Perguntei se estava
tigo e raro sobre um personagem histórico e tudo bem e pedi que aquilo não se repetisse,
famoso. Primeiro mostrei o livro, expliquei pois eu tinha esperado por ele.
a ele que era antigo, por isso estava um pou- Não passou uma hora, e o pai me ligou
co deformado, mas que naquele livro estava dizendo que o filho estava tendo uma crise
escrita a história de uma pessoa, que tinha forte, que estava muito agitado e que já tinha
sido muito especial e importante, única na jogado uma garrafa pela janela.
história para o mundo e, mais que tudo, ti- Naquele momento eu pensei: eu preciso
nha o mesmo nome dele. Embora a escolha ver esse paciente durante uma crise, eu pre-
do livro tenha sido intuitiva, no meu íntimo, ciso entender o que acontece com ele quan-
eu estava mostrando a ele um livro de fato do ele sai desse estado passivo e robótico que
muito especial, um objeto histórico do qual sempre o vejo. Pedi ao pai para ligar para o
eu cuidava atentamente para que não se per- psiquiatra informando sobre o que estava

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ocorrendo e que me aguardasse, pois eu es- uma encenação, mas de fato o pai tinha me
tava indo até a casa deles. mostrado alguns papéis onde estava escrito
Acredito que tenha sido uma atitude boa “jogar a garrafa pela janela”, “jogar a cadeira
ter ido até lá, embora isso possa contrariar pela janela” e aparentemente a letra era do
a técnica psicanalítica tradicional na qual a meu paciente (o pai praticamente não sabia
saída do set pode de alguma maneira conta- ler ou escrever).
minar a relação com o paciente, só que eu É bem verdade que a garrafa tinha sido jo-
não queria que ele fosse internado de novo. gada, mas em um lugar muito seguro, de ma-
Ao chegar na casa encontrei o rapaz tranqui- neira que não machucasse ninguém e a ca-
lo como o via no consultório. Perguntei se deira não poderia ser jogada pela janela, pois
estava tudo bem, e ele falou que sim. Pedi ao o apartamento era todo gradeado. Que esse
pai para conversar sozinha com o paciente episódio estivesse relacionado à não vinda
no quarto dele, me sentei no chão com ele, dele à sessão também me parecia provável.
perguntei se ele tinha jogado a garrafa pela Vale salientar que em todo esse episódio
janela, e ele negou. Perguntei se tinha acon- a mãe do paciente não apareceu nenhuma
tecido alguma coisa que tenha aborrecido; vez. Ela estava o tempo todo no prédio traba-
ele também disse que não. lhando em um apartamento abaixo do deles.
Ao mesmo tempo ele muito amistosa- Alguém pode pensar que ela estava presa no
mente mostrou seu quarto, seu computador trabalho, mas isso não correspondia à reali-
e a fotografia da irmã (uma moça muito exu- dade, pois ela tinha total liberdade de ir até a
berante) e o mais interessante é que pela pri- sua casa quando ela precisava (essa informa-
meira vez ele conseguiu falar um pouco. ção eu tive depois).
Enquanto eu estava na casa dele o psi- A casa deles era simples, mas a primeira
quiatra ligou e, embora eu não achasse que o sensação que eu tive era que naquela casa não
rapaz estivesse tendo um surto, achei melhor havia uma presença feminina. Faltava basica-
que ele fosse até o consultório. mente a sensação afetiva de cuidado e tinha
Chegando ao consultório o psiquiatra lhe uma forte impressão de abandono emocional.
deu uma injeção (embora ele não estivesse Também durante esse episódio percebi
agitado) e disse que não era caso de interná- que a única frase que saiu sem querer por
-lo. Eu achei desnecessária a medicação, pois parte do pai foi que, antes do suposto surto,
o rapaz estava realmente muito calmo, mas, seu filho estava no terraço conversando com
não sendo médica não cabia a mim interferir um rapaz do prédio, informação confirmada
no trabalho do outro profissional, até mes- pelo paciente. Nunca mais ouvi falar sobre
mo porque ele estava me dando um suporte esse amigo do prédio.
muito grande no tratamento desse paciente. Recomeçamos nosso trabalho e acredito
Não posso negar que cheguei a pensar que meu paciente tenha voltado um pouco
que quem estava precisando de um calmante mais aberto do que antes. Continuava com
era o pai. seu comportamento robótico, mas algumas
Enquanto ele era medicado, eu percebi palavras começaram a aparecer.
que o pai falava com ele como se ele fosse Percebendo que ele estava um pouco mais
uma criança de 5 anos. Explicava para seu receptivo, propus a ele que em vez de sen-
menininho que ele estava tomando uma va- tar na poltrona poderíamos sentar no chão
cina. Passado esse episódio, ele retornou as e propus jogar com ele. Achei que sentar no
suas sessões e nunca mais faltou. chão seria mais relaxante para ele. A sua ten-
Eu fiquei com uma série de interroga- são era visível, e achei que criando um espa-
ções sobre o que tinha acontecido e cheguei ço lúdico pudesse facilitar o nosso relaciona-
a cogitar que tudo não tivesse passado de mento.

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Só que até brincar não é algo simples, Após uns seis meses de tratamento, eu
mesmo porque eu não queria fazer um show pedi ao pai para não acompanhá-lo e deixá-
para o paciente. Eu tinha que tentar ao má- -lo vir sozinho. Eu sabia que meu paciente
ximo criar um espaço para ele se expressar. conseguia ir sozinho até a escola e voltar so-
Com uma visão lúdica certamente, mas sem zinho para casa. Logo ele podia vir sozinho
infantilizá-lo, pois ele já tinha um pai que o até o consultório, que era muito perto da sua
tratava como uma criança. As tentativas de casa. Esse meu pedido também tinha como
“brincar” com ele foram inúmeras. Eu bus- objetivo afastar o pai das sessões, pois ain-
cava algo que pudesse despertar nele algum da que ele ficasse na sala de espera, eu sentia
interesse, o que não era nada fácil. Nossas que ele estava sempre tentando ocupar o lu-
sessões eram divididas em duas partes: na gar do filho. O pai aceitou a minha propos-
primeira eu via os trabalhos dele na escola; ta com muito medo, mas combinamos que
na outra procurávamos brincar. o paciente teria um celular para ligar para
Comprei uma caixa de jogos (dama, do- mim ou para seu pai caso ele precisasse de
minó, etc.) e levei para as sessões. Jogávamos alguma coisa na rua. No início o pai ficava
dama ou dominó, o paciente não jogava muito agitado em deixar o filho vir sozinho e
muito bem, mas eu decidi não fingir que ele costumava ligar para a secretária para saber
jogava bem e quando ele errava muito eu si- se ele tinha chegado bem, mas com o tempo
nalizava onde ele estava errando. Enquanto ele se tranquilizou. O paciente vinha sozinho
jogávamos, eu lhe fazia perguntas da escola e terminada a sessão pegava seu ônibus e ia
e, pouco a pouco, com a voz ainda muito para escola.
embargada, ele começou a responder a essas Quando ele passou a vir sozinho, percebi
perguntas. que ele parava na frente do elevador, mas não
Desde o início eu sempre falei com ele de apertava o botão para o elevador chegar. Ele
forma adulta e percebi que a fala com ele ti- ficava esperando que o elevador de alguma
nha que ser clara e sem enganos. Por isso até maneira chegasse. Expliquei-lhe que o eleva-
no jogo era coerente. Se ele perdia, eu dizia dor só ia chegar se ele o chamasse e que o
que ele tinha perdido, sem fingimentos. mesmo acontecia com a porta do consultó-
Embora ele não conseguisse seguir as au- rio; ela só se abriria se ele tocasse a campa-
las, ele gostava muito de frequentar a escola, inha e a mesma coisa na saída. Uma vez que
gostava dos professores e se sentia tratado isso foi explicado, ele logo aprendeu a che-
bem lá dentro. gar sem problemas e, mais do que isso, ele
Ele se dava conta de que suas dificuldades começou a usar também as escadas. Um dia
de aprendizado eram grandes, mas ele queria ele chegava pela porta dos fundos, pois tinha
continuar a frequentar as aulas. A escola era subido a pé; outros dias ele chegava de eleva-
muito simbólica para ele e era o único lugar dor, mas ia embora pela escada.
que ele queria ir. Após algum tempo ele fazia esse caminho
Pouco a pouco ele passou a jogar cada vez circular, entrava pela porta da frente e saía
melhor e a prestar mais atenção no que fa- pela porta dos fundos, e vice-versa.
zia. Adorava jogar dominó e quase sempre Quando percebi que ele começava a falar
ganhava de mim, e não porque eu deixasse mais, começamos a ler um livro juntos e o
ele ganhar. No jogo de damas ele tinha mais primeiro livro foi A volta ao mundo em 180
dificuldade, mas mesmo assim continuamos dias. Eu lia uma parte do livro, e depois ele
a jogar, e ele sempre escolhia as peças pretas. continuava a ler mais um pouco.
No final de cada sessão ele me ajudava a ar- Na sessão seguinte ele sempre lembrava
rumar a sala e ia embora, e nesse ponto ele onde tínhamos parado de ler, e eu pedia a ele
sempre foi muito colaborativo. para me contar o que tínhamos lido. Ele ti-

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nha ótima memória, seja para os nomes, seja ele era muito bom. Ele chegou a copiar um
para os lugares, e invariavelmente conseguia quadro de Modigliani com bons resultados.
contar sobre o que tínhamos lido. Eu tentava trazê-lo mais para a pintura li-
Em princípio eu tive a ideia de ler com vre e disse-lhe que podia simplesmente jogar
ele para ajudá-lo a recuperar seu vocabulá- as cores na tela e que não importava o resul-
rio e queria ver se ele conseguiria interpretar tado. Na minha opinião, a pintura livre seria
os textos. Como já citei antes, ele não tinha uma forma de o paciente expressar seu in-
dificuldades em interpretar o texto. Mesmo consciente, mas ele resistia a essa ideia. Pela
que algumas palavras fossem mais difíceis, primeira vez o paciente criou uma palavra
ele conseguia entender o contexto e me per- para definir essa nossa atividade. Ele dizia
guntava o significado das palavras mais difí- que iríamos pintar “bagunça”. Ele sempre fa-
ceis. Aproveitando que o livro falava de con- zia questão de dizer que ele preferia copiar
tinentes e países diferentes, comecei a trazer a fazer “bagunça”, ele necessitava das coisas
alguns livros com mapas e costumes dos ordenadas.
países que eram referidos no livro. Enquanto Numa dessas sessões de desenho, pedi ao
líamos os livros, falávamos de comidas dife- paciente para desenhar sua família. Não sou
rentes, de roupas diferentes, enfim falávamos especialista em interpretar desenhos, porém
das diferenças no comportamento das pes- pude observar que no desenho apresentado
soas. o paciente é privo do órgão sexual, a mãe usa
Com esse hábito de levar livros, algumas calças compridas e também não tem um ór-
vezes eu perguntava se ele queria levar algum gão sexual, enquanto a irmã e o pai apresen-
livro para casa, e algumas vezes ele aceitava. tavam um órgão sexual pouco definido mas
Eu sempre achei que livros ligam as pes- igual para os dois. O conceito de masculino
soas e de certa forma eu acreditava que levar e feminino não era definido no desenho. Ele
os livros com ele era um modo de ele interio- e a mãe não apresentavam o órgão sexual,
rizar o trabalho que estávamos fazendo jun- a mãe usava calças compridas enquanto ele
tos. Não ousaria dizer que ocupariam o lugar usava calças curtas como o pai.
de um objeto transacional, mas de certa for- Como o paciente preferia copiar dese-
ma era o início da ligação do paciente com nhos, comecei então a trazer revistas e livros
algo que também era meu, talvez um pouco e, a partir desses, ele escolhia o que ele que-
de seio bom. ria copiar. As cores dos desenhos eram um
Quando percebia que ele se entediava pouco modificadas, mas ele gostava de usar
com a leitura, eu propunha que fizéssemos cores mais vivas e, quando podia, desenha-
alguns desenhos e algumas pinturas e, dessa va um sol (símbolo do pai). Seus desenhos
forma, intercalávamos as sessões de leitura eram alegres.
com sessões de pintura ou desenho. Intercalando com a iniciativa livre, pedi a
Nisso já estávamos com mais de um ano ele um dia para desenhar sua casa. Ele dese-
de análise, e o paciente já falava normalmen- nhou três casas separadas, uma cadeira que
te, embora seu relacionamento comigo con- tinha no seu quarto, o ventilador da sala e os
tinuasse privo de qualquer demonstração de óculos do pai. Observe-se que ele fez questão
afeto. de desenhar três casas, uma para cada mem-
Seja na tarefa de desenhar, seja na de pin- bro, e os conteúdos das casas, como o detalhe
tar, eu participava com ele e observava que dos óculos do pai, mas os objetos não eram
o que ele gostava mesmo era de copiar dese- integrados demonstrando que sua noção de
nhos. Sua capacidade de criar estava empo- dentro e fora ainda era muito rudimentar.
brecida, e não havia espontaneidade. No en- Ele passou a gostar de copiar motocicletas
tanto, quando se tratava de copiar desenhos, e carros e era impressionante como ele che-

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gava a ser detalhista ao desenhar uma moto- pai ficou feliz com esse pedido e deu um jeito
cicleta. de comprar uma pequena máquina fotográ-
A cisão dele ficava muito clara nos dese- fica que também filmava. A partir de então
nhos, pois, ao retratar a família e a casa, o ele tirava fotos da família, filmava sua casa
resultado era muito infantil, enquanto ao co- e me trazia suas filmagens. Nesse período o
piar um carro ou uma motocicleta, o dese- pai dele também me disse que o filho tinha
nho era de um adulto. procurado seus brinquedos antigos e que es-
Ele fez questão de levar para sua casa e tava brincando com um carrinho em casa.
guardar no seu armário a maioria dos dese- Nessa etapa do tratamento, o pai do pa-
nhos que ele fez e dos quadros que pintou, ciente tinha aceitado fazer análise, o que ti-
deixando apenas alguns exemplos comigo. nha sido uma iniciativa muito boa. Como
Sempre aproveitando o seu gosto pelo de- ele disputava muito o lugar do filho comigo
senho, trouxe livros sobre pintores famosos e não se descolava dele, foi aconselhado que
e aos poucos eu tentava introduzir a ideia do ele também fizesse análise com outro psica-
corpo inteiro de uma pessoa. Um dia, ao pe- nalista. Isso melhorou muito minha relação
dir a ele para escolher a figura de um nu para com o paciente, pois o pai passou a cuidar
desenhar, ele escolheu o de uma mulher. de si próprio e deixou de projetar toda a sua
Sua fala melhorava a cada dia, mas era falta e sua ansiedade no filho. O ideal teria
uma fala sem afeto. As palavras retornavam, sido que a mãe também aceitasse fazer análi-
mas desconectadas de sentimento. se, mas esse objetivo nunca foi atingido, pois
Um dia meu celular tocou durante a ses- ela sempre se recusou.
são. Eu tinha um celular vermelho com al- A partir daí, meu paciente já conseguia
guns bonequinhos que lutavam na tela e, se expressar e começou a falar e a mos-
como o telefone estava no chão do consultó- trar os filmes que fazia nas suas viagens
rio, quando fui pegá-lo para desligá-lo per- a Miguel Pereira. Sua irmã morava em
cebi que ele olhou o celular de uma forma di- Miguel Pereira e ele ficava muito feliz quan-
ferente. Era um olhar com sentimento. Então do viajava para lá.
perguntei se ele queria pegar o celular e ele Eu pedi a ele que sua irmã viesse conversar
disse que sim. Disse que era bonito, viu os comigo, afinal ele tinha um grande amor por
jogos que eu tinha e chegou a tirar uma foto ela. Isso nunca aconteceu, embora ela viesse
sua com meu celular. Pela primeira vez seus muito no Rio. Segundo ele, ela alegava não
olhos brilharam e pela primeira vez ele olhou ter tempo para vir me visitar. Assim como a
para mim. mãe, a irmã também não tinha tempo.
Algo tinha acontecido naquele momento. Em um certo momento a escola chamou
Talvez estivéssemos criando um laço mais o pai para comunicar que o filho teria que
afetivo e tínhamos um objeto comum: um repetir de ano de novo. Seria a terceira vez
celular que eu gostava e que ele também gos- que ele faria o segundo ano do ensino médio.
tava. Já tinham passado mais de dois anos Mesmo com essa notícia, o paciente mani-
desde o início da terapia. festou seu desejo de continuar a frequentar
Nesse dia nossa sessão durou sessenta a escola, mas queria ir à noite, pois, segundo
minutos; sessenta minutos nos quais ele não ele, à noite haveria pessoas da sua idade. Esse
controlou o relógio. Ele mexeu no celular, era um pensamento muito lógico, mas o pai
explorou suas funções e fez algumas fotos. não pensava assim porque tinha medo que
Após essa sessão seu pai me disse que ele o filho, saindo à noite, fizesse amizade com
tinha pedido uma máquina de fotografia de pessoas de má índole.
presente. O celular ele já tinha, mas ele tinha Eu também fui informada que o progra-
gostado muito de tirar fotos. Óbvio que seu ma de estudos à noite era muito puxado e

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que provavelmente ele não conseguiria se- comprar camisas, e não necessariamente ti-
guir seus colegas. Conversei com meu pa- nham que ser pretas, embora o preto conti-
ciente sobre essas dificuldades e sobre as nuasse a ser sua cor preferida, mas era curio-
preocupações do seu pai e combinamos que, so observar como o preto nunca era usado
assim que ele se sentisse mais seguro para em suas pinturas.
frequentar a escola, ele poderia retornar para Como a sua linguagem tinha melhorado
um curso supletivo. muito, já era possível conversar mais com ele
Eu reconhecia que era mais uma tentati- e comecei cuidadosamente a perguntar mais
va do paciente de tentar crescer. Sair à noi- sobre seu passado.
te era frequentar adultos e fazer coisas que Ele falava muito da sua primeira esco-
os adultos fazem, mas lidar com pacientes la (uma escola primária que fica no Corte
nesse estado significa lidar com sua família e do Cantagalo na Lagoa). Falava dessa esco-
significa responsabilidade. Não me senti em la com muito afeto e como se tivesse sido
condições de afirmar com convicção que ele o lugar que ele mais gostou de frequentar.
poderia continuar seus estudos à noite. Lembrava o nome de sua professora e dizia
Não foi um momento fácil para ele, pois que ali brincava muito. Ele tinha deixado
a escola era um ambiente que o paciente não essa escola aos seis anos e relatou esse fato
queria deixar apesar do fracasso em superar com uma certa tristeza.
o ano escolástico. Por outro lado, a realidade Contou-me sobre sua viagem junto ao pai
era que ele não conseguia seguir o progra- para a Paraíba, quando foi conhecer sua avó.
ma. Por fim, foi decidido que ele deixaria a Dizia que sua lembrança mais forte era que a
escola. A partir daí, em vez de seus livros da casa da avó era muito pequena. Falou sobre
escola dentro da mochila, ele passou a carre- sua avó materna, que morava em Duque de
gar os livros que eu emprestava para ele e os Caxias, e disse que gostava muito de ficar lá.
desenhos que ele fazia. Contava-me dos fins de semana em casa
Várias vezes eu tentava adentrar no assun- e dos churrascos que o pai organizava para
to do que ele gostava de fazer. Sua resposta a família. Esses churrascos incomodavam
era “nada”. Se eu perguntava se ele tinha von- o paciente, pois segundo ele sempre tinha
tade de trabalhar, ele dizia que “não”. Certa muitas fofocas. As pessoas sempre falavam
vez pedi ao pai se ele não poderia ajudar no mal uma das outras, e ele não gostava disso.
prédio lavando carros, por exemplo, já que A palavra fofoca era trazida por ele de modo
ele gostava de carros. Ele chegou a lavar duas muito frequente.
vezes um carro e segundo o pai ele tinha feito Chegamos a falar de sexo e ele disse que se
um ótimo trabalho, mas parece que depois masturbava. Falou com muita vergonha e me
disso o pai ficou com medo que o síndico do contou que seu pai o levava frequentemente
prédio criasse algum problema. O pai tenta- a uma sexy shop para pegar filmes pornográ-
va esconder esse filho no prédio pelo precon- ficos. Perguntei se ele gostava desses filmes,
ceito das pessoas e pelo seu próprio precon- mas ele apenas riu. Foi interessante que, ao
ceito. falar da sexy shop onde o pai o levava, ele fez
Como ele gostava de verde e da natureza, questão de frisar que era “aquela” que ficava
propus a ver com ele um curso de jardina- do lado de uma igreja em Copacabana. Mais
gem no Jardim Botânico. Ele chegou a ma- tarde soube, de forma indireta, que, antes da
nifestar uma certa vontade de fazer, mas ao crise que ele teve na escola, o pai o teria leva-
mesmo tempo afirmava não conseguir sair do para ter sexo com uma prostituta.
de Copacabana. Ele saía de Copacabana só Certa vez perguntei-lhe se mentia, e ele ra-
para ir ao Shopping Rio Sul e, mesmo assim, pidamente respondeu que não. Eu perguntei
só se fosse acompanhado do pai. Gostava de de novo: “mas nenhuma mentirinha?”. Então

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ele disse que sim... que de vez em quando ele era tranquilo e silencioso. Nesse período eles
falava algumas mentiras, mas sem citar ne- viajavam bastante para Miguel Pereira em
nhuma. busca dessa casa.
Perguntei se ele achava que seus pais men- Uma das casas que poderia ser a escolhida
tiam, e ele prontamente disse que não... mas não foi do agrado do paciente porque tinha
após um silêncio disse: um barranco atrás e, como foi no período
de chuvas fortes no estado do Rio, ele achou
Na verdade não sei... eu tinha um cachorro, e que esse barranco poderia cair sobre a casa.
esse cachorro sumiu. Meus pais me disseram Nesse período de chuvas ele me trazia muitas
que ele fugiu, mas eu acho que não é verdade. notícias que tirava dos jornais, notícias que
Eu também tinha um pássaro... meu pai disse relatavam os desabamentos em diversas ci-
que um pássaro maior o havia comido, mas dades.
eu também acho que isso não é verdade. Eu Essa atividade de troca de notícias foi
também tive um gato, e meus pais disseram mais uma das coisas que fazíamos juntos.
que esse gato tinha fugido, mas eu não acredi- Recortávamos notícias e as relatávamos nas
to, pois acho que seria muito difícil ele fugir. E sessões. Ele só trazia notícia de tragédias na-
tem também a bicicleta... meus pais disseram turais. Ele não trazia notícias de assassinatos
que ela foi roubada, mas eu acho que eles ven- ou coisas do gênero. Ele pesquisava nos jor-
deram minha bicicleta. nais notícias relativas a enchentes, tsunamis,
terremotos, vulcões e outros. Muitas sessões
A partir desse discurso falamos sobre o foram dedicadas a essas tragédias naturais, o
afeto que ele nutria por esses animais e por que não deixava de ser uma forma de relatar
sua bicicleta. Ele gostava dos seus animais e a sua própria tragédia interna, o seu desmo-
sentia muita falta da sua bicicleta, embora ronamento. Talvez esse fosse o sentimento
aceitasse que seus pais não gostavam muito que ele tinha por dentro. Um desastre. Uma
que ele andasse com ela, pois era muito pe- catástrofe.
rigoso. Um dia eu telefonei para o seu celular para
O assunto dos animais de estimação re- pedir se seria possível trocarmos nosso horá-
tornou em várias sessões seguintes. Ele lem- rio, pois eu tinha um compromisso. Ele não
brava do seu cachorro, do seu nome e ma- respondeu ao meu telefonema e eu tive que
nifestou seu desejo de ter um outro animal, ligar para seu pai. Na sessão seguinte eu per-
mas era consciente de que os pais não per- guntei a ele por que não respondia, já que ele
mitiriam. Da família o que pude notar é que tinha recebido esse celular para falar comigo
ele sempre ressaltava o fato de serem muito ou com seu pai ou mesmo qualquer outra
fofoqueiros. pessoa. Ele respondeu que não tinha respon-
Ir para Miguel Pereira visitar sua irmã era dido porque: “Ninguém liga para mim!” E eu
um programa que o divertia muito, e sem- lhe disse: “Mas eu ligo para você!”. A partir
pre quando voltava de lá me trazia filmes da de então ele passou a usar seu celular, e al-
viagem. guns dias depois quis me contatar para dizer
Ele se recusava a falar da mãe e continua- que tinha que trocar o horário, pois tinha um
va a repetir que ela tinha que trabalhar muito compromisso com o pai. Ele começou a me
e que a dona da casa onde ela trabalhava não ligar às 05:00 da manhã! Quando acordei vi
deixava ele entrar lá dentro, mas sempre di- todas as ligações dele e devolvi a chamada.
zia que a mãe cozinhava muito bem. Foi quando eu soube a razão de ele ter tele-
O pai dele resolveu comprar uma casa fonado. Isso aconteceu outras vezes, ele fica-
para a família em Miguel Pereira e o paciente va tão ansioso para comunicar um fato que
chegou a dizer que gostaria de viver lá, pois precisava começar a me ligar de madruga-

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da. Como já mencionei no início, qualquer Transformar aqueles pedaços sem senti-
mudança por pequena que fosse, gerava nele do em algo inteiro trouxe um prazer para o
uma profunda ansiedade. paciente. O prazer de criar. Winnicott (1975,
Sempre na linha da leitura, certo dia le- p. 95) afirma: “É através da percepção criati-
vei alguns livros para que ele escolhesse qual va, mais do que qualquer outra coisa, que o
gostaria de ler. Ele escolheu Caixa preta, indivíduo sente que a vida é digna de ser vi-
um livro sobre desastres aéreos, mas todos vida”. Depois desse primeiro quebra-cabeça
com sobreviventes. Eu tinha certeza de que fizemos outros, e cada vez mais ele juntava os
ele escolheria esse, mesmo assim dei outras pedaços com mais facilidade.
opções. Nós lemos esse livro com muito pra- Algumas vezes eu viajei durante o perío-
zer. Chegamos a superar sessenta minutos do da análise do paciente. Todas essas vezes
de sessão, pois ele não queria parar a leitura. eu falava com ele com antecedência, dizia
Além de narrar os acidentes, o livro explica- para onde eu ia e também o dia em que eu
va por que tinham acontecido e apresentava iria voltar. Ele sempre lembrou a data da mi-
relatos dos sobreviventes. Ele não se interes- nha volta e estava sempre lá no dia planejado
sava muito pelas mortes, mas queria saber da sua sessão.
como o desastre tinha acontecido e como as Numa dessas viagens eu trouxe um que-
pessoas sobreviveram. Os sobreviventes lhe bra-cabeça com muitas peças. Ao olhá-lo,
interessavam muito. o paciente reconheceu imediatamente que
era um quadro de Van Gogh. Eu fiquei sur-
[...] uma catástrofe mundial desse tipo não é preendida quando ele me disse: “O vaso do
infrequente durante o estado agitado em ou- Van Gogh”. Ficamos alguns meses trabalhan-
tros casos de paranoia [...] e essa catástrofe do nisso, e era um trabalho difícil para mim
seria [...] O fim do mundo e a projeção dessa e para ele. As cores eram muito parecidas e
catástrofe interna (FREUD, 1969, p. 77). para completá-lo tínhamos que trabalhar
preenchendo primeiro as bordas e pouco a
Quando terminamos de ler o livro, ele pouco indo para o centro. Nesse período o
quis ler de novo. Era como se de alguma for- paciente começou a chegar um pouco antes
ma o conteúdo do livro trouxesse um alívio da hora de ser atendido e sozinho pegava o
para sua angústia. Eu diria que foi atividade quebra-cabeça na secretaria e começava a
que ele mais gostou. Após esse tipo de leitura montá-lo. Quando eu chegava, ele já tinha
se via nitidamente como ele se sentia mais organizado tudo sobre a mesa para traba-
aliviado. Tenho que dizer que eu também lharmos.
gostava dessa leitura e tenho muita curio- Notava-se que ele se sentia bem dentro da
sidade por acidentes aéreos. Esse livro nos instituição. Ele tinha criado um vínculo não
unia inconscientemente. só comigo mas também com todos que esta-
Por acaso um dia, abrindo um livro di- vam lá dentro. E a recíproca era verdadeira,
dático de geografia que eu tinha levado, ele pois ele era considerado de casa até mesmo
mesmo encontrou um pequeno quebra-ca- pela paciente que eu atendia após o horário
beça para montar. Vi que o paciente ficou dele. Ele controlava se ela vinha ou não, e ela
superinteressado em montar o quebra-ca- o presenteava com balas. Se faltasse alguém
beça. Foi interessante que após terminar de ao trabalho, ele perguntava pela pessoa.
montar esse quebra-cabeça o paciente se Certa vez reclamou que a persiana da sala
apegou a ele e com tanto cuidado que para de atendimento estava quebrada e que esta-
levá-lo para casa ele pediu ao pai que viesse va feia, assim como observou com felicidade
buscá-lo para que o não se desmontasse de quando foi trocada. Ele gostava das coisas
novo. arrumadas.

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No período em que montávamos esse análise, as resistências do paciente ao seu


quebra-cabeça mais complicado, o pacien- próprio tratamento, porque também ele es-
te me avisou que, quando o trabalho tives- tava melhorando, possivelmente eu também
se terminado, ele pararia de vir à análise. Eu tenha contribuído para isso, pois esse traba-
o questionei sobre a sua vontade de parar, e lho exigia muito de mim, e embora eu visse
ele respondeu simplesmente que não gostava melhoras no paciente, elas não eram sufi-
mais de vir. Coincidentemente nesse período cientes, ao meu ver, para melhorar a qualida-
seu pai passou a não me pagar, e o paciente de de vida dele.
contou que o pai tinha comprado uma tele- Eu queria muito ter escutado mais a mãe
visão muito grande e que tinha que pagar as dele ou mesmo a irmã, para ter um quadro
dez prestações. Pude perceber que o discurso mais claro da situação familiar, e isso eu não
do dinheiro da análise estava permeando o consegui. Para o pai, um homem de origem
discurso na casa deles e, dessa forma, chamei simples, bancar junto à família o desejo de
o pai para conversar. Acordamos que ele pa- fazer psicanálise não era fácil, e o pai dele
garia quando pudesse desde que o filho con- conseguiu bancar essa situação por algum
tinuasse a vir. Mesmo assim a resistência do tempo, mas a mãe nunca colaborou em nada.
paciente foi se fazendo presente, e ele mesmo Quando o pai do paciente veio para con-
começou a telefonar para dizer que não vi- firmar que o filho não iria mais voltar, ele en-
nha. trou na sala de atendimento e olhou o divã,
Ele voltou a frequentar a igreja, embora começou a chorar porque estava sentindo
me dissesse que não gostava de ir lá e que que não iria mais se deitar naquele lugar.
tampouco estava certo da existência de Deus. Naquele momento aquele homem se que-
Mesmo assim ele ia, pois sentia que isso era brou na minha frente chorando como uma
muito importante para a mãe. criança.
O pai também foi abandonando a análi- O filho se defendeu melhor. O quebra-ca-
se dele e, mais que tudo, eu percebi que algo beça estava terminado. Me ligou e me disse
tinha decepcionado o pai. Desde o início do de forma muito categórica que não voltaria e
tratamento do filho, seja eu, seja o psiquia- também não levou o quebra-cabeça pronto.
tra tentamos ajudar o pai a conseguir uma Como diz H. Rosenfeld sobre a transfe-
pensão para o filho junto ao INSS. Com um rência em pacientes psicóticos:
diagnóstico de esquizofrenia, considerada
uma doença degenerativa, teoricamente o A maior parte dos analistas tem-se abstido,
paciente teria direito a esse beneficio.Apesar ate há pouco tempo, de tratar pacientes es-
de todas as tentativas, a resposta do INSS foi quizofrênicos, na convicção de que o esquizo-
que o paciente não tinha direito a nenhum frênico é incapaz de estabelecer transferência.
beneficio, pois seu pai tinha um salário Minha experiência me demonstra que aqui
considerado muito alto. O pai ganhava R$ tratamos não com a ausência de transferên-
1.200,00 por mês, logo era considerado sufi- cia, mas com o árduo problema de reconhecer
cientemente rico para manter um filho nesse e interpretar as manifestações transferenciais
estado. A ajuda que conseguimos foi o paga- do esquizofrênico (ROSENFELD, H. 1965, p.
mento dos remédios que eram muito caros. 121).
Eu acredito que esse fato tenha colaborado
um pouco para que o pai desistisse do trata- Não melhorar era de certa forma um ga-
mento do filho dando de novo espaço à voz nho para o meu paciente. Seu mutismo era
da mãe que desde o início era contra. sua doença, mas era também sua hostilidade
Concordo que não tenha sido só isso. em relação ao pai e à mãe. Essa era a forma
Havia as resistências do pai a sua própria na qual ele conseguia exteriorizar sua agres-

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sividade em relação a um ambiente que era gue diferenciar esses sons. Com o tempo fui
hostil a ele. Um ambiente que não permitia entendendo quando seu silêncio era muito
que ele crescesse e que ele se tornasse sujeito. angustiado, menos angustiado e quando o
Para a mãe não interessava que o marido movimento do seu corpo demonstrava uma
começasse a questionar a relação dos dois, e certa tranquilidade ou não.
de certa forma ela sempre foi muito firme em Também ao ler a descrição do caso, o leitor
dizer que só a fé curaria seu filho. pode ter a impressão de que tudo ocorreu de
Não me restou senão dizer seja para o pai, forma muito rápida. Não foi assim. Na ver-
seja para o filho que, se precisassem de al- dade foi um processo muito lento, com mo-
guma coisa, eles tinham meu telefone e o do mentos de desânimo e muitas dúvidas. E foi
CBP-RJ. nesses momentos que o suporte de meus su-
pervisores foi muito importante. Era com eles
Discussão do caso que eu ganhava determinação para continuar.
Descrever um caso clínico não é uma tarefa Se me perguntassem se esse paciente che-
muito simples, principalmente se tudo que gou a fazer associação livre, eu diria que sim.
ocorreu no set não foi anotado. Lógico que eu dirigia perguntas a ele. Mas, se
Eu temo que anotar e escrever sobre um não fosse dessa forma, acredito que ele não
paciente enquanto ele ainda se encontra em teria sequer iniciado a falar. Com pacientes
análise, possa de alguma maneira interferir nesse estado de embotamento, o desejo do
na comunicação inconsciente entre o analis- psicanalista tem que se fazer presente.
ta e o analisando. Talvez seja uma caracte- Se me perguntassem se eu interpretava a
rística minha, que não tem que ser tomada fala do paciente, eu diria que não. Sei que al-
como verdade para todos. Assim como cada guns psicanalistas fariam isso, mas eu achei
analisando é um sujeito singular, o mesmo perigoso. O que poderia provocar uma in-
vale para o analista. terpretação errada em um paciente com um
De vez em quando fazia algumas anota- ego tão fragmentado era algo que eu tinha
ções com o intuito de pesquisar, mas dificil- medo de experimentar. Eu diria que, em vez
mente esqueço o que acontece no set. Talvez de interpretar, eu vivia a experiência com ele.
seja exatamente porque no set, algo sempre A minha escolha foi mais em direção a
acontece, mesmo com muitos “não ditos”. fazer uma maternagem e criar um ambiente
Ao me deparar com esse caso, fiquei no qual ele se sentisse à vontade para se ex-
curiosa, assustada, com medo de não dar pressar.
conta, mas acredito que esse estado durou Se me perguntassem se ele apresentou re-
muito pouco. A cada encontro, algo aconte- sistência, eu responderia que sim. Ele parou
cia reforçando a minha percepção de que era a análise no momento em que ele estava se
possível trabalhar com o paciente. sentindo melhor. O que seria isso senão um
Eu utilizei a palavra intuição para descre- sinal de que a resistência vinha operando
ver algumas atividades que eu escolhia para contra essa melhora?
trazer ao set, mas hoje acredito que eu e o Em proporções menores esse paciente
analisando estávamos nos comunicando in- teve uma rede de atendimento, que se cons-
conscientemente e que tais atividades se en- tituía de um médico psiquiatra, psicana-
caixavam em um lugar de desejo de relacio- listas para ele e para o pai, assistência jurí-
namento. dica e, mais que tudo, uma casa, que era a
Entender o silêncio desse paciente foi Instituição. Uma casa equivale a dizer um
para mim como a experiência de entender o útero, um corpo e uma pertinência.
choro de um bebê. O choro de um bebê pode Acho até que a fala dele “Quando termi-
ser de dor ou de fome, mas só a mãe conse- narmos esse quebra-cabeça eu vou parar”

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poderia ser traduzida como: me sinto mais eu gostava eram muito chatas, e eu dizia a
inteiro e quero parar, ou mesmo, me sinto ele que eu não entendia nada da música tech.
mais inteiro, mas tenho medo de continuar! Houve muitas trocas, e houve transferência
Esse paciente necessitava ser visto como sim.
sujeito e principalmente não como sujeito A inclusão do pai no processo analítico
esquizofrênico. Sua existência ia além dessa ajudou muito no tratamento do seu filho.
psicopatologia. Por essa razão temos que lu- Ainda que ele não tivesse conseguido sus-
tar contra esses rótulos. Ninguém é psicótico tentar essa situação por muito tempo, eu
24 horas por dia, assim como todos nós te- diria que ele foi muito corajoso ao tentar.
mos nossos momentos de regressão ao nosso Infelizmente a ausência da mãe não contri-
estado esquizo-paranoico. Um paciente psi- buiu para o trabalho com seu filho. A mãe
cótico tem uma dificuldade maior para viver desse paciente era detentora de um saber
esse processo de entrar e sair desse estado. que se negava a compartilhar. Ela, como nin-
Um paciente psicótico se sente muito in- guém naquela casa, poderia dizer coisas im-
vadido e, dessa forma, a posição do analista portantes para que pudéssemos entender o
é muito delicada exigindo uma grande dose que tinha acontecido ao seu filho para que
de sensibilidade, pois trabalhando no limiar ele entrasse naquele silêncio mortal.
do suportável psíquico do sujeito é impor- Ela não estava completamente alheia ao
tante saber respeitar esses limites. Por isso, que ocorria com o filho; ela simplesmente
eu sempre falei com ele de forma muito ver- preferia silenciar sobre muitas coisas. Havia
dadeira. Um mundo falso e de segredos ele já muitos silêncios e segredos naquela família.
vivia em casa, e eu não queria que essa expe- Que o ambiente em que o paciente cres-
riência se repetisse no set, assim como sem- ceu não tenha sido suficientemente bom
pre respeitei seu tempo dentro do set. para que ele se desenvolvesse psiquicamente
Quando viajava, eu dizia para onde ia e por de forma mais sadia, não era uma dúvida. A
que eu estava viajando. Retornando contava figura materna ausente, não fisicamente mas
para ele como tinha sido a viagem. Quando psiquicamente, era evidente, muitas vezes
ele me perguntou onde eu morava, eu disse a aparentando que a própria mãe do pacien-
ele onde eu morava. Eu dava a ele algo meu e te sofresse de um distúrbio muito próximo
acho que em contrapartida ele me dava algo ao do filho e que de certa forma ela também
dele, ainda que fosse seu olhar através da sua estava bastante distante e desinteressada da
pequena filmadora. Através daquela filma- realidade. Ela tinha dificuldade de dar amor,
dora eu continuava presente para ele, assim assim como o paciente.
como através daquela filmadora eu conheci
mais seu mundo, por exemplo, sua irmã, seu Estamos agora na situação de apreciar que o
sobrinho, que nasceu durante o período da indivíduo com uma tendência esquizoide tem
análise, seu cunhado, sua mãe e a casa que outro motivo para guardar seu amor dentro de
seus pais compraram em Miguel Pereira. si, além do que surge da sensação de que esse
Eu cuidava dele, e ele me retribuía cui- amor é demasiado precioso para separar-se
dando para que o ventilador da sala estivesse dele. Também mantém encerrado seu amor
sempre ligado quando eu chegava. Ele sabia porque o sente como demasiado perigoso
que eu me confundia com os botões do ven- para descarregá-lo em seus objetos Assim não
tilador e, cuidando do ventilador, ele com- só guarda seu amor numa caixa-forte, mas até
partilhava comigo os cuidados do set. o guarda numa prisão. Porém... Como sen-
Ele me fazia escutar sua música tech, e eu te que o próprio amor é mau, está disposto
o fazia escutar as músicas que eu gostava. a interpretar o amor dos outros em termos
Sem cerimônia, ele dizia que as músicas que similares (FAIRBAIRN, 1941 [1980], p. 21).

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Caso clínico — A esquizofrenia sob o olhar da psicanálise

Apesar desse comportamento da mãe, sexuais com uma prostituta possam ter de-
não gostaria que ela fosse a única a ser res- flagrado a crise. Certamente algo aconteceu
ponsabilizada. A maternidade ainda é muito de muito forte para que todas as suas defesas
idealizada, e poucos ousam falar sobre esse caíssem, mas era algo indizível.
assunto. Mãe nasce filha! Ela se torna mãe O paciente parou em um estágio no qual
através de uma vivência de maternidade que ele ainda não sabia se queria amar um ho-
pode ser muito difícil ou muito fácil depen- mem ou uma mulher. Aliás, quando eu pedi
dendo do ambiente e da sua experiência pes- que fizesse o desenho de sua família, ele se
soal com sua mãe. desenhou sem sexo. Interessante notar que
O paciente sofria de uma esquizofrenia, os símbolos do sexo do pai e da irmã são os
qual tipo não saberia descrever. Seus sinto- mesmos, sem definir claramente se masculi-
mas se encaixavam na esquizofrenia do tipo no ou feminino.
catatônica, mas algumas vezes pensei que ele Edipicamente por esse desenho ele pare-
fosse portador de algum tipo de autismo que cia ainda muito fusionado à mãe, enquanto o
já vinha se apresentando desde o inicio da pai e a irmã apareciam misturados entre eles.
sua infância. Pelos relatos da mãe o pacien-
te já apresentava muito dos sintomas desde Nos primeiros anos da infância, manifestam-
criança. Muito retraído e pouco social. -se ansiedades, características das psicoses
Por incrível que pareça ele conseguiu fre- que obrigam o ego a desenvolver mecanis-
quentar a escola dos 5 anos até os 22 anos, mos específicos de defesa. Nesse período se
e parece que em momento algum essas difi- encontram os pontos de fixação para todos os
culdades foram relatadas a um psicólogo ou distúrbios psicóticos (KLEIN, 1982, p. 314).
assistente social. Se isso aconteceu, a família
omitiu essa informação. O casamento da mãe e do pai era um
É provável que, se seu diagnóstico tivesse casamento de fachada, era uma mentira.
sido feito antes, teria sido mais fácil tratá-lo, Segundo seu pai essa mulher teria sido man-
seja sob o ponto de vista médico, seja sob dada da Paraíba para se casar com ele. Ela
o ponto de vista psicanalítico. Os remédios não o desejava sexualmente levando o casal a
disponíveis hoje conseguem lidar muito bem não ter uma vida amorosa e sexual que fizes-
com os sintomas positivos. Já com o embo- se com que o paciente elaborasse o complexo
tamento e a apatia dos sintomas negativos a de Édipo e passasse pela castração.
questão é mais complexa.
Duvido muito que o comportamento do A neurose é o resultado de um conflito entre
paciente não tenha sido notado pelos profes- o ego e o id, ao passo que na psicose o des-
sores, mas o descaso do nosso sistema optou fecho análogo é de um distúrbio semelhante
por “negar” e deixá-lo no sistema que finge nas relações entre o ego e o mundo externo
que “inclui”. Apesar dessa crítica concordo (FREUD, 1969, p. 167).
que ter deixado que frequentasse a escola
para que ele não se sentisse excluído foi me- Poderia ser uma homossexualidade que
lhor do que excluí-lo totalmente. Sem dúvida o paciente não podia manifestar? Pode ser
alguma se ele tivesse sido segregado em uma uma hipótese, embora eu acredite que ele
instituição psiquiátrica seu estado seria mui- não tenha nem mesmo chegado a esse ponto
to pior. de identificação sexual.
O que fez com que ele tivesse uma crise na Do que pude depreender dos relatos
escola restará sempre um mistério. É muito quanto à perda da escola, dos animais e da
possível que ter perdido a irmã para um ou- bicicleta, tudo isso indicava que a castração
tro homem e ter sido forçado a ter relações de seus desejos era a forma na qual ele tinha

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Caso clínico — A esquizofrenia sob o olhar da psicanálise

crescido e que seus objetos investidos de afe- gregamos os esquizofrênicos em instituições


to lhe eram retirados de maneira misteriosa porque os manicômios foram fechados, mas
aos seus olhos. Por que ele deveria continuar são medicalizados na tentativa de curá-los de
uma vida, investido em objetos que seriam algo a respeito do qual os próprios médicos
perdidos? sabem muito pouco.
Ao que tudo indicava, esse paciente não O esquizofrênico não vai ao médico por-
gozava do direito a ter desejos. Ele era o ob- que se sente mal. Ele vai ao médico porque
jeto do pai e objeto da mãe. Subjetivamente os “outros” o levam e dizem que ele tem algo
não existia para eles. errado. Quem denuncia seu sintoma são os
Quando chegou para ser tratado, seus rins “outros”. Os remédios controlam o esquizo-
estavam parando de funcionar sem uma cau- frênico, mas não devolvem afeto e não os ti-
sa fisiológica. Após a análise, esse problema ram dos sintomas negativos. Aliás, o próprio
renal estava resolvido, ele falava, caminhava termo sintoma negativo já soa estranho pois
sozinho no perímetro do seu bairro, fotogra- “negativo” é o sintoma que não se mostra. O
fava, escutava música e assistia televisão. remédio pode ajudar a criar a base para que
Sustento que a ansiedade nasce da ativi- o psicanalista possa intervir, mas só o remé-
dade do instinto de morte dentro do organis- dio também não basta.
mo, que é sentida como medo de aniquila- Em resumo, eu diria que a psicanálise
mento (morte) e assume a forma de medo de funciona sim! Até o “não quero mais ir aí”
perseguição. O medo do impulso destrutivo dita pelo paciente de maneira zangada foi
parece se ligar imediatamente a um objeto, a expressão de um afeto, agressivo mas um
ou melhor, é sentido como o medo de um in- afeto. Acredito que após 4 anos de relaciona-
controlável e prepotente objeto. Outras fon- mento, o paciente tenha internalizado algo
tes importantes de ansiedade primária são o de bom.
trauma do nascimento (ansiedade e separa- Ele ter interrompido a análise é normal,
ção) e a frustração das necessidades corpo- pois o equilíbrio da família estava sendo
rais (KLEIN, 1982, p. 318). modificado, e nós, psicanalistas, sabemos o
De certa forma ele se acomodou em casa quanto o ser humano é preso à sua compul-
sem trabalhar, mas hoje em dia, isso não se- são à repetição.
ria um sintoma tão grave. Inúmeras pessoas É um trabalho de muita dedicação, mas é
consideradas “normais” por seus familiares também um grande aprendizado.
vivem às expensas de suas famílias sem tra-
balhar.

Conclusão
Acredito firmemente que os psicanalistas
devem sim aceitar pacientes esquizofrênicos,
pois só a investigação e a clínica podem nos
levar a algum aprendizado sobre os mistérios
desse estado psíquico. Um contato mais es-
treito entre psicanalistas e psiquiatras tam-
bém seria muito relevante, embora isso seja
ainda muito difícil.
Assim como as histéricas por muito tem-
po foram confinadas e tratadas como doen-
tes, sofrendo todo tipo de experimento por
parte das instituições médicas, hoje não se-

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Caso clínico — A esquizofrenia sob o olhar da psicanálise

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