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As Confissões da Carne é o quarto e último volume da

História da Sexualidade, obra em que Michel Foucault se


propôs a estudar a sexualidade humana desde a Antiguidade
clássica até aos primeiros séculos do cristianismo.
A elaboração definitiva de As Confissões da Carne, de
acordo com Frédéric Gros, responsável pela edição, pode
situar-se em 1981 e 1982. O livro foi editado em 2018,
quando os herdeiros de Foucault consideraram reunidas as
condições para a publicação do inédito, que concluía a
análise de A Vontade de Saber, O Uso dos Prazeres e O Cui­
dado de Si.
O livro tem três partes. A primeira aborda os temas
“Criação, procriação”, “O baptismo laborioso”, “A segunda
penitência” e “A arte das artes”; a segunda, a “Virgindade e
continência”, “Das artes da virgindade” e “Virgindade e
conhecimento de si”; e a terceira, “O dever dos esposos”,
“O bem e os bens do casamento” e “A libidinização do sexo”.
Historia da Sexualidade IV

As Confissões da Carne
Relógio D’Água Editores
Rua Sylvio Rebelo, n.° 15
1000-282 Lisboa
tel.: 218 474 450
relogiodagua@relogiodagua.pt
www.relogiodagua.pt

© Éditions Gallimard, Paris, 2018

Título: História da Sexualidade IV — As Confissões da Carne


Título original: Les aveux de la chair (Histoire de la sexualité. Vol. IV) (2018)
Autor: Michel Foucault
Edição estabelecida por Frédéric Gros
Tradução: Miguel Serras Pereira
Revisão de texto: Isabel Castro Silva
Capa: Carlos César Vasconcelos (www.cvasconcelos.com)
sobre fotografia do autor

© Relógio D’Água Editores, Fevereiro de 2019

Encomende os seus livros em:


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ISBN 978-989-641-902-8

Composição e paginação: Relógio DÁgua Editores


Impressão: Europress, Lda.
Depósito Legal n.°: 451624/19
Michel Foucault

História da Sexualidade IV

As Confissões da Carne
Edição estabelecida por
Frédéric Gros

Tradução de
Miguel Serras Pereira

Antropos
Advertência1

Em 1976, Michel Foucault publica — sob o título La volonté de


savoir2 — o primeiro tomo de uma Histoire de la sexualité cuja
contracapa anuncia uma próxima continuação em cinco volumes,
respectivamente intitulados:'2. La chair et le corps~, 3. La croisade
des enfants', 4. Lafemme, la mère et 1’hystérique', 5. Les pervers; 6.
Populations et races3. Nenhuma destas obras chegará a aparecer. Os
arquivos Foucault4 depositados na Bibliothèque nationale de France
(Département des manuscrits) dão a conhecer, contudo, que pelo
menos dois títulos (La chair et le corps5 e La croisade des enfants6'}
tinham sido objecto de uma primeira redacção importante.

1 A presente tradução segue o texto editado por Frédéric Gros e mantém,


transpondo-os, os critérios por ele referidos na sua Advertência — tendo presente
a sua opção de fundo: “O nosso trabalho limitou-se ao estabelecimento do tex­
to.” Assim, evitou-se tanto quanto possível a “sobretradução” ou a “correcção” na
versão portuguesa das asperezas, desvios das formas consagradas, concordâncias
aproximativas, etc., que a edição francesa contém, conservando as características
da redacção provisória de Michel Foucault. (N. T.j
2 Paris, Gallimard, “Bibliothèque des Histoires”, 1976. [Tradução portuguesa de
Pedro Tamen: Michel Foucault, A Vontade de Saber, Lisboa, Relógio D’Água,
1998. (N. T.)]
3 Ou seja: A Carne e o Corpo; A Cruzada das Crianças; A Mulher, a Mãe e a His­
térica; Os Perversos; População e Raças. (N. T.)
4 Estamos a falar de quarenta mil folhas incluindo os manuscritos preparatórios
(cursos, conferências, artigos, etc.), bem corno as notas de leitura de Michel Fou­
cault. Estes papéis repartem-se por uma centena de caixas na cota NAF 28730.
5 Caixas LXXXVII a LXXXIX.
6 Caixas XLIV e LI.
8 Advertência

Em 1984, pouco antes da morte de Michel Foucault, são publi­


cados os tomos II e III7 desta História da Sexualidade iniciada
oito anos antes8, mas cujo conteúdo se afasta muito do projecto
inicial, como anunciam ao mesmo tempo o capítulo “Modifica­
ções” de O Uso dos Prazeres (“Esta série de investigações aparece
mais tarde do que eu previra e sob uma forma completamente di­
ferente. . ,”9) e o “prospecto” que acompanhou os volumes no mo­
mento da sua publicação. O propósito de estudar o dispositivo
biopolítico moderno da sexualidade (séculos xvi-xix) — parcial­
mente abordado nos cursos do Collège de France — foi abandona­
do em proveito da problematização — através da releitura dos filó­
sofos, médicos, oradores, etc., da Antiguidade Greco-Romana —
do prazer sexual na perspectiva histórica de uma genealogia do
sujeito de desejo e sob o horizonte conceptual das artes de existên­
cia. O tomo IV, consagrado à problematização da carne pelos Pa­
dres da Igreja dos primeiros séculos (de Justino a Santo Agostinho),
inscreve-se no prolongamento desta nova História da Sexualidade,
desfasada numa boa dezena de séculos em relação ao projecto ini­
cial e descobrindo o seu ponto de gravitação na constituição de
uma ética do sujeito. O “prospecto” de 1984 conclui como se segue:

De onde, por fim, um recentramento geral deste vasto estudo


sobre a genealogia do homem do desejo, desde a Antiguidade

7 L'usage des plaisirs e Le souci de soi, cuja impressão se conclui respectivamente a


12 de Abril e a 30 de Maio de 1984. Daniel Defert indica na sua “Chronologie” que
Pierre Nora leva a 20 de Junho a Michel Foucault, hospitalizado na Salpêtrière (onde
morrerá a 25), um exemplar de Le souci de soi (Michel Foucault, (Euvres, edição
estabelecida sob a direcção de Frédéric Gros, Paris, Gallimard, “Bibliothèque de la
Pléiade”, 2015, t.I,p. XXXVIII). [Traduções portuguesas de Manuel Alberto: O Uso
dos Prazeres, Lisboa, Relógio D’Água, 1998, e O Cuidado de Si, idem, 1998. (A. T.J]
8 Não se pode falar, no entanto, de “vazio editorial”: além do grande número de
artigos publicados entre 1976 e 1984 (reproduzidos em Dits et écrits, edição esta­
belecida por Daniel Defert e François Ewald, Paris, Gallimard, “Bibliothèque des
sciences humaines”, 1994,4 vols.; reedição, colecção “Quarto”, 2001,2 vols.), po­
de mencionar-se a edição das memórias de um “pseudo-hermafrodita” (Herculine
Barbin, dite Alexina B., Paris, Gallimard, “Les vies parallèles”, 1978) e Le désor-
dre desfamilles (Paris, Gallimard,“Archives”, 1982) composto com Arlette Farge.
9 L’usage desplaisirs, (Euvres, t. II, pp. 739-748.
As Confissões da Carne 9

Clássica até aos primeiros séculos do cristianismo. E a sua dis­


tribuição por três volumes, que formam um todo:
— O Uso dos Prazeres estuda de que maneira o comportamen­
to sexual foi reflectido pelo pensamento grego clássico [...]. De
que maneira também o pensamento médico e filosófico elaborou
esse “uso dos prazeres” — khrésis aphrodisión — e formulou
alguns temas de austeridade que se tornariam recorrentes em qua­
tro grandes eixos da experiência: a relação com o corpo, a relação
com a esposa, a relação com os rapazes e a relação com a verdade.
— O Cuidado de Si analisa esta problematização nos textos
gregos e latinos nos dois primeiros séculos da nossa era, e a
inflexão que sofre numa arte de viver dominada pela preocupa­
ção de si mesmo.
— Aí Confissões da Carne abordarão por fim a experiência da
carne nos primeiros séculos do cristianismo, e o papel que aí de­
sempenham a hermenêutica.e a decifração punficadorado desejo.

A gênese deste último opus é complexa. Devemos lembrar que


na História da Sexualidade, no seu programa inicial, as práticas e
as doutrinas cristãs de confissão da carne deveriam ser objecto de
um exame histórico num volume intitulado A Carne e o Corpo'0.
Tratava-se então de estudar “a evolução da pastoral católica e do
sacramento da penitência depois do Concilio de Trento”10 11. Um
primeiro balanço destas investigações fora apresentado por ocasião
da lição de 19 de Fevereiro de 1975 no Collège de France12. Em
breve, todavia, Foucault decide remontar mais longe no tempo para
retomar, na história cristã, o ponto de origem, o momento de emer­

10 M. Senellart, na notícia de La Volonté de savoir, faz-nos saber que Foucault en­


carara, de resto, dar por título a esse volume consagrado à penitência cristã moder­
na: Les Aveux de la chair [Âs Confissões da Carne (N. T.)] (CEuvres, t. II, p. 1504).
11 Ibid., p. 627. Foucault adoptava já nessas primeiras investigações um recuo
histórico importante a fim de medir a amplitude das transformações em causa,
remontando aos séculos xn-xni (e citando, por exemplo, ó Concilio de Latrão de
1215 que regulamenta o sacramento da penitência).
12 Les anormaux, edição de V. Marchetti e A. Solomoni, Paris, Gallimard, Le
Seuil, “Hautes Études”, 1999, pp. 155-186.
10 Advertência

gência de uma obrigação ritualizada de verdade, deuma injunção


de verbalização pelo sujeito de um dizer a verdade. sobre si mesmo.
É assim que, a partir dos anos 1976-1977, acumula um certo núme­
ro de notas de leitura sobre Tertuliano, Cassiano, etc.13 Daniel De-
fert escreve a propósito do mês de Agosto de 1977: “Foucault está
em Vendeuvre. Escreve sobre os Padres da Igreja e decide deslocar
nalguns séculos a sua história da sexualidade.”14 No quadro de um
estudo sobre as “governamentalidades” no Collège de France (li­
ções de 15 e 22 de Fevereiro de 197815), utiliza estas primeiras
leituras dos Padres para caracterizar o momento cristão da “gover-
namentalidade pastoral”16: “actos de verdade” (dizer a verdade so­
bre si mesmo) articulados em práticas de obediência. Estes resulta­
dos serão retomados e sintetizados no mês de Outubro de 1979
para alimentar a primeira das duas conferências propostas no
quadro das Tanner Lectures na Universidade de Stanford17.
O ano de 1980 constitui um momento decisivo da continuação das
investigações que conduzem à escrita do manuscrito das Confissões.
Michel Foucault apresenta no Collège de France, nos meses de Feve­
reiro e Março de 1980 — sem indicar nunca que ela tem o seu lugar
numa história da sexualidade —, uma série de recolhas de dados
históricos precisas e documentadas relativas às obrigações cristãs de
verdade na preparação do baptismo, os ritos de penitência e a direc­
ção monástica entre os séculos n e iv da nossa era18. No Outono do

13 Notas que se encontram na caixa XXII.


14 “Chronologie”, in M. Foucault, CEuvres, t. II, p. XXVI.
15 Sécurité, territoire, population, edição de M. Senellart, Paris, Gallimard, Le
Seuil, “Hautes Études”, 2004.
16 Pela qual Foucault entende uma técnica de direcção dos indivíduos em vista da
sua salvação.
17 As duas conferências serão editadas sob o título “Onines et singulatim. Vers une
critique da la raison politique” (cf., sobre este texto, a edição e a apresentação de
M. Senellart, in M. Foucault, CEuvres, t. II, pp. 1329-1358 e 1634-1636).
18 Du gouvernement des vivants, edição de M. Senellart, Paris, Gallimard, Le
Seuil, “Hautes Études”, 2012.0 conteúdo destas lições (exceptuadas as primeiras,
consagradas a uma leitura do Rei Édipo de Sófocles) será reescrito, mas integral­
mente retomado no manuscrito definitivo.
As Confissões da Carne 11

mesmo ano, nos Estados Unidos, dá, na Universidade da California


' (Berkeley) e no Darmouth College, duas conferências expondo na
sua grande generalidade conceptual estes mesmos temas19, e sobre-
:tudo"fiÕ quadro de um seminário em Nova Iorque com Richard
fWhtfett, apresenta, de maneira sem dúvida ainda esquemática, mui-
Ttñrdas articulações do que virão a ser As Confissões da Carne20.
Encontramos, com efeito, nesse seminário desenvolvimentos sobre a
doutrina do casamento de Clemente de Alexandria, sobre a arte cris-
. tã da virgindade (a sua evolução de São Cipriano a Basilio de Ancira,
passando por Método de Olimpos), bem como o exame do sentido
fundamental que toma para a nossa cultura, com Santo Agostinho, o
çonceito de libido — após a queda e no casamento21. Pode pois dizer-
-se que, desde finais do ano de 1980, Foucault tem não só a intuição
forte; da arquitectura e das teses principais de As Confissões da Car­
ne, como cumpriu já um trabalho importante de investigação das
fontes, pelo menos no que se refere ao estudo dos rituais de penitên­
cia e dos princípios da direcção monástica.
Podemos situar nos anos de 1981 e 1982 o momento da redac­
ção definitiva do texto das Confissões. Para um número da revis­
ta Communications22, Foucault dá a ler em Maio de 1982 aquilo
que apresenta como “um extracto do terceiro volume da História
da Sexualidade”23. No entanto, paralelamente, nos seus cursos no

19 Cf. a sua edição em L’origine de l’herméneutique de soi, edição de H.-P. Fru-


chaud e D. Lorenzini, Paris, Vrin, 2013.
20 O manuscrito destas conferências encontra-se na caixa XL. Agradeço a H.-P.
Fruchaud ter-me confiado a sua transcrição pessoal deste seminário que marca urna
etapa decisiva na elaboração de Confissões da Carne.
21 Encontra-se um momento deste seminário no texto intitulado “Sexuality and
solitude” (publicado na London Review ofBooks, Maio-Junho de 1980, retomado
em Dits et écrits, texto n.° 295).
t,' 22 “Sexualités occidentales. Contribution à l’histoire et à la sociologie de la sexua-
lité”, Maio de 1982, XXXV, coordenação de Ph. Ariés e A. Béjin.
i 23 “Le combat de la chasteté”, edição de M. Senellart, in M. Foucault, CEuvres, t.
II, pp. 1365-1379 e 1644-1648. Foucault “extrai” com este artigo um capítulo com-
■ pleto da segunda parte (tivemos em conta as ligeiras correcções introduzidas por
: Foucault no seu texto). Em Abril de 1983, Foucault ainda não encara fazer prece­
der As Confissões da Carne senão de um só opus consagrado à experiência antiga
12 Advertência

Collège de France, Foucault opera de modo cada vez mais maciço


a sua “viragem” antiga. O momento greco-latino, é certo, não
fora até então completamente negligenciado, mas, entre 1978 e
1980, encontrava-se reduzido ao papel de um contraponto, precio­
so sobretudo para fixar os pontos de irredutibilidade das práticas
de veridicção e de governamentalidade cristãs (ou seja, as dife­
renças entre: o governo da cidade e a governamentalidade pasto­
ral, a direcção da existência nas seitas filosóficas greco-romanas
e a praticada nos primeiros mosteiros, o exame de consciência
estoico e cristão, etc.). Ora, o que não era um simples contraponto
vai tornar-se cada vez mais um objecto de investigação em si
mesmo, consistente e insistente. A tendência manifesta-se a partir
de 1981: o curso no Collège de France leccionado nesse ano é
inteiramente dominado pelas referências antigas (problemas do
casamento e do amor dos rapazes na Antiguidade24), enquanto o
ciclo de conferências dado na Universidade de Lovaina no mês de
Maio tenta ainda preservar um equilíbrio entre as referências
antigas e cristãs25. Em 1982, o estilo propriamente cristão das
obrigações de verdade e outras asceses já não aparece no primei­
ro plano nos seus grandes ciclos de conferências ou seminários
além-Atlântico (“Dizer a Verdade sobre Si Mesmo” na Universi­
dade de Toronto em Junho26, “As Técnicas de Si” na Universidade
de Vermont em Outubro27), enquanto, nos seus cursos no Collège

dos aphrodisia (sob o título O Uso dos Prazeres). Cf., sobre a história deste texto,
a nossa notícia comum relativa a L'usage des plaisirs e Le souci de soi na edição
da “Bibliothèque de la Pléiade”, in M. Foucault, CEuvres, t. II, pp. 1529-1542.
24 Subjectivité et vêrité, edição de F. Gros, Paris, Gallimard, Le Seuil, “Hautes
Études”,2014.
25 Malfaire, dire vrai. Fonction de l’aveu en justice, edição de F. Brion e B. Har-
court, Lovaina, Presses universitaires de Louvain, 2012.
26 Dire vrai sur soi-même, edição de H.-P. Fruchaud e D. Lorenzini, Paris, Vrin, 2017.
27 Texto [“Les techniques de soi” (N. T.)] retomado em Dits et écrits, edição de D.
Defert e F. Ewald, Paris, Gallimard, 1994, n.° 263. O mesmo se passa ainda cerca
de seis meses mais tarde com a conferência sobre “A Cultura de Si” na Univer­
sidade da Califórnia de Berkeley, em Abril de 1983 (La Culture de soi, ed. H.-P.
Fruchaud e D. Lorenzini, Paris, Vrin, 2015).
As Confissões da Carne 13

, de France, já só em termos marginais é evocado, como um sim-


\ pies ponto de fuga28.
& t Pode pois dizer-se, retomando o conjunto do pércurso a partir de
¡4j>A Vontade de Saber (1976), que, desde 1977-1978, o projecto de
uma história da sexualidade moderna (séculos xvi-xix) é abandona-
' do em proveito, num primeiro tempo (1979-1982), de um recentra-
mento orientado para uma problematização histórica da carne cristã
— através dos principais “actos de verdade” (exomologese e exago-
rese), das artes da virgindade e da doutrina do casamento entre os
Padres da Igreja dos primeiros séculos —, depois, num segundo
tempo (1982-1984), de um descentramento na direcção das artes de
viver greco-romanas e do lugar que nelas ocupam os aphrodisia.
É no Outono de 1982 que terão tido lugar a entrega à Gallimard
do manuscrito sobre a carne cristã e a transcrição dactilografada do
texto29. Piérrê Nora recorda que nessa ocasião Michel Foucault o
previne de que, no entanto, a publicação de Aí Confissões da Carne
não estará para breve, porque ele decidiu, encorajado por Paul Vey-
• .'fgMfazer preceder esse livro que acaba de mandar transcrever por
■ >um volume consagrado à experiência greco-latina dos aphrodisia.
rA vastidão das investigações que acabamos de mencionar será de tal
' -ordem que Foucault desdobrará o seu livro nos dois volumes que
' .^conhecemos: O Uso dos Prazeres e O Cuidado de Si. O trabalho e
B';-, a redacção destes dois tomos — enquanto, ao mesmo tempo, lança
ainda, no Collège de France, um novo campo de investigação: o
estudo da parrêsia30 — fá-lo-ão atrasar-se na releitura de As Confis-
sões da Carne e talvez o tenham até desencorajado de encarar a sua

H?; 28 L’herméneutique du sujet, ed. F. Gros, Paris, Gallimard, Le Seuil, “Hautes Etu-
t "des”, 2001.
E:' 29 No dossier conservado por Pierre Nora, que contém a versão dactilografada ori-
11 ’A gmal das edições Gallimard, há uma etiqueta colada dizendo: “Outubro de 1982.”
, - 30 Le Gouvemement de soi et des autres, ed. F. Gros, Paris, Gallimard, Le Seuil,
“Hautes Études”, 2008; Le Courage de la vérité, ed. F. Gros, Paris, Gallimard, Le
Seuil, “Hautes Études”, 2009. Cf. também a série das lições dadas em Berkeley
& (Universidade da Califórnia) no Outono de 1983 sobre a parrêsia: Discours et
vérité (ed. H.-P. Fruchaud e D. Lorenzini, Paris, Vrin,2016).
14 Advertência

refundição.De Março a Maio de 1984, enquanto se conclui o traba­


lho editorial relativo aos tomos II e III, Foucault retoma, esgotado e
gravemente doente, a correcção da transcrição dactilografada de Aí
Confissões da Carne. Hospitalizado desde 3 de Junho na sequência
de uma indisposição, morre na Salpêtrière a 25 de Junho de 1984.
Dispusemos assim, para estabelecer esta edição, do manuscrito
do punho de Michel Foucault e da sua transcrição dactilografa­
da3'. Esta transcrição dactilografada, estabelecida pelas Éditions
Gallimard a partir do manuscrito, e enviada a seguir a Michel
Foucault para correcção31 32, tem numerosos erros: não pôde ser
confiado, por razões de indisponibilidade, à secretária que habi­
tualmente dactilografava os seus textos e conhecia bem a sua ca­
ligrafia. Para estabelecer o texto, recorremos assim prioritaria­
mente ao manuscrito de origem, tendo ao mesmo tempo em conta
as correcções que Foucault tivera tempo de introduzir na transcri­
ção dactilografada, pelo menos nas duas primeiras partes do tex­
to33. Modificámos a pontuação para tornar mais fluente a leitura
do texto, homogeneizámos as modalidades de referenciação e re­
tomámos os códigos de edição estabelecidos para os volumes II e
III da Histoire de la sexualité (L’usage des plaisirs, Le souci de
soi). Verificámos (e corrigimos em disso sendo caso) as citações.
Os parênteses rectos que aparecem no texto impresso remetem
para intervenções da nossa parte34. Estas intervenções são de vá­

31 Esta encontra-se na caixa LXXXIV. Na mesma caixa, além disso, encontra-se


também uma pasta contendo onze folhas que retomam desenvolvimentos presentes
no manuscrito principal. A leitura permite compreender que constituem como que um
fragmento separado de um conjunto mais vasto (cf. a primeira frase: “Mas esta exclu­
são deixa lugar..e a última: “De qualquer modo, que o pecador seja por si só...”).
32 A transcrição dactilografada conservada no Institut Mémoires de 1’édition con-
temporaine (Imec, Caen) não contém as correcções de Foucault.
33 Encontram-se ainda algumas raras correcções na terceira parte do texto, mas
nem todas são do punho de Foucault. Quando Foucault, que não tinha necessa­
riamente diante dos olhos o seu próprio manuscrito, introduz correcções no texto
dactilografado, mas na base de um erro de transcrição, retomámos as mais das
vezes a versão inicial.
34 À excepção dos parênteses rectos que aparecem no interior das citações: reme­
tem nesse caso para uma intervenção do próprio Foucault a fim de precisar o sen-
As Confissões da Carne 15

rios tipos: redigir as notas quando o manuscrito se limita a refe­


renciar uma nota sem conteúdo35; acrescentar notas; completar
brancos; rectificar frases gramaticalmente coxas, incorrectas ou
comportando erros manifestos; corrigir erros em nomes próprios;
acrescentar uma tradução às passagens citadas directamente em
«grego, em latim ou em alemão36; acrescentar títulos de capítulo
«quando ausentes37. Recorremos, para este trabalho de edição, às
caixas de arquivos contendo as notas de leitura do próprio Fou-
cault relativas aos primeiros Padres da Igreja dos primeiros sécu-
' los38. A qualidade dos trabalhos de Míehei -Senellart39 prestou-nos
serviços imensos, bem como a da tese de Philippe- Ghevalier40.
Agradeço a Daniel Defert e a Henri-Paul Fruchaud a sua releitura
.paciente e proveitosa do texto. A “bibliografia” final foi preparada
segundo os princípios da edição de L’usage des plaisirs e de Le
souci de soi: não retoma, sob a forma de um “índice das Obras
Citadas”, senão as obras mencionadas no corpo do texto. Deve, no

tido da citação, ou, mais classicamente, com três pontos [...], indicando passagens
voluntariamente excluídas.
35 No entanto, quando as menções de nota correspondem a proposições demasia­
do gerais para ser possível determinar o seu conteúdo, indicámos simplesmente:
[Nota vazia].
,36 Não acrescentámos, todavia, as traduções quando o texto de Foucault fornecia
indicações suficientes para a compreensão da frase.
37 Quanto aos títulos, optámos pela sobriedade descritiva, excepto talvez no que
i se refere ao capítulo “A libidinização do sexo” — mas é o próprio Foucault quem
fala, no corpo do texto, de “libidinização do acto sexual”. Quanto às subdivisões,
conservámos as presentes no manuscrito. Os títulos “O baptismo laborioso” e “A
’.arte das artes” são de Foucault. Encontram-se num projecto de plano (caixa XC,
segunda folha da pasta 1).
38 Encontramo-las principalmente agrupadas nas caixas XXI, XXII e XXIV.
Venfica-se de cada vez, e para o conjunto dos Padres da Igreja, a consideração de
s uma literatura crítica importante, mas também o regresso sistemático aos textos
jí de origem (as mais das vezes ou presentes na colecção “Sources chrétiennes” das
■ Éditions du Cerf, ou directamente na Patrologie, grega ou latina, de J.-P. Migne).
39 Cf. as suas notáveis edições de: Le Gouvernement des Vivants, La Volonté de
: savoir, “Omnes et singulatim. Vers une critique de la pensée politique”,4®ê^@iB-
^bat'dé'lá'chasteté’’.
a 40 P. Chevalier, Michel Foucault et le christianisme,Lyon, ENS Éditions, 2011.
16 Advertência

entanto, sublinhar-se que, como demonstram as caixas de arquivo


das notas de leitura de Michel Foucault sobre os Padres da Igreja41,
as “obras citadas” representam tão-só uma pequena parte (sobre­
tudo no que se refere aos autores modernos) das referências lidas
e trabalhadas4243
. Cumprindo o desejo dos detentores dos direitos de
autor, o texto não comporta notas do editor de comentário, de
reenvio interno para a obra de Foucault ou de erudição. O nosso
trabalho limitou-se ao estabelecimento do texto.
Acrescentámos no fim do texto quatro anexos cujo estatuto é
diferente. Os três primeiros correspondem a folhas que apare­
cem em pastas separadas e colocadas fisicamente, no manuscrito
de Foucault, no fim da primeira parte das Confissões^. O Anexo
1 é uma simples e breve reiteração de objectivos gerais (“O que
se trata de demonstrar...”) e pode corresponder a um projecto de
introdução ou antes a um balanço para uso pessoal44. O Anexo 2

41 Cf. a nota 38 supra.


42 Sobre cada Padre da Igreja ou sobre cada prática precisa (baptismo, penitência,
etc.), encontram-se nas caixas referidas listas bibliográficas muito importantes.
43 Encontram-se na caixa LXXXV. Com efeito, as caixas LXXXV e LXXXVI
contêm realmente o manuscrito que serviu de base à constituição da transcrição
dactilografada das Éditions Gallimard, mas não seguem a sua ordem: encontramos
na caixa LXXXV os capítulos II, III e IV da primeira parte, bem como a integra-
lidade da terceira parte. Na caixa LXXXVI, encontramos o capítulo I da primeira
parte, bem como a integralidade da segunda parte. Aí encontramos também, na
primeira pasta, uma introdução e um plano de introdução, mas que correspondem
manifestamente ao projecto de Lachair et le corps. Não é impossível que Foucault
tenha a certa altura ponderado retomar os materiais trabalhados em vista de La
chair et le corps para dar uma continuação às Confissões da Carne. Lemos, com
efeito, no texto das Confissões a seguinte frase: “Reservo para um último capítulo a
concepção de Santo Agostinho. Ao mesmo tempo porque constitui o quadro teóri­
co mais rigoroso que permite dar lugar simultaneamente a uma ascese da castidade
e a uma moral do casamento. E porque, tendo servido de referência constante à
ética sexual do cristianismo ocidental, será o ponto de partida do estudo seguinte”
(cf. infra, p. 272).
44 O incipit de As Confissões da Carne pode parecer algo brutal (“O regime dos
aphrodisia, definido em função do casamento, da procriação, da desqualificação
do prazer e de um laço de simpatia respeitosa e intensa entre os esposos, foram
pois filósofos e directores não cristãos que o formularam...”), mas não é seguro
As Confissões da Carne 17

consiste num exame crítico das relações entre “exomologese” e


“exagorese”. E um estudo que se inscreve na estrita continuidade
£ dos últimos desenvolvimentos da última parte do texto, mas não
¿ é possível saber se Foucault escreveu essas páginas e acabou por
v- renunciar a incluí-las ou se as redigiu depois de ter dado para
transcrição o seu manuscrito. O Anexo 3 é o aprofundamento de
? uma anotação que aparece sob urna forma mais condensada no
capítulo III (“A Segunda Penitência”) da Parte I, a propósito da
maldição de Caim, que estaria ligada sobretudo à sua recusa de
,5:’confessar o crime. O Anexo 4 corresponde ao último desenvol-
| ,vimento do manuscrito e da transcrição dactilografada. Preferi-
r'í.’ mos colocá-lo em anexo, porque anuncia temáticas que foram, na
realidade, desenvolvidas acima. Damo-nos conta de que os pará­
grafos que passam a encerrar o livro depois de operada essa
^ transposição assumem efectivamente uma feição conclusiva.
® '' Os detentores dos direitos de autor de Michel Foucault conside­
raram estar perante as condições e o momento adequados para a
publicação deste inédito maior. Ele surge, como os três volumes
I precedentes, na “Bibliothéque des Histoires” dirigida por Pierre
.¿■ Nora. O “Prospecto” de 1984 indicava:

Ä TOMO 1: A Vontade de Saber, 224 páginas.


i ” TOMO 2: O Uso dos Prazeres, 296 páginas.
■ í TOMO 3: O Cuidado de Si, 288 páginas.
Bw
TOMO 4: As Confissões da Carne (a publicar).

O que está agora feito.

FRÉDÉRIC GROS

í que Foucault tenha pensado em fazê-lo preceder de uma introdução. De facto O


Cuidado de Si começava de modo igualmente brusco: “Começarei pela análise de
<'um texto bastante singular...” (M. Foucault, (Euvres, t. II, p. 971). A longa “Intro­
dução” de O Uso dos Prazeres parece, com efeito, valer para o conjunto dos “três
volumes, que formam um todo” (“Prière d’insérer” de 1984).
[CAPÍTULO I]

[A formação de uma experiência nova]

I. CRIAÇÃO, PROCRIAÇÃO
[II. O BAPTISMO LABORIOSO]
[III. A SEGUNDA PENITÊNCIA]
[IV. A ARTE DAS ARTES]
I

CRIAÇÃO, PROCRIAÇÃO

O regime dos aphrodisia, definido em função do casamento, da


procriação, da desqualificação do prazer e de um laço de simpatia
-• respeitosa e intensa entre os esposos, foram pois filósofos e direc-
< tores não cristãos que o formularam; foi uma sociedade “pagã”
que se deu a possibilidade de aí reconhecer uma regra de conduta
\ aceitável para todos — o que não quer dizer efectivamente seguida
por todos, longe disso.
, - Esse mesmo regime, sem modificações essenciais, encontramo-
-lo na doutrina dos Padres da Igreja do século n. Os Padres, aos
olhos da maior parte dos historiadores, não teriam encontrado os
seus princípios nos meios cristãos primitivos nem nos textos apos­
tólicos — exceptuadas as cartas fortemente helenizantes de São
Paulo. Esses princípios teriam de certo modo emigrado para o
pensamento e a prática cristãos, a partir de meios pagãos cuja hos­
tilidade era necessário desarmar mostrando formas de conduta já
por eles reconhecidas pelo seu elevado valor. É um facto que apo-
logetas como Justino ou Atenágoras fazem valer, aos imperadores
í aos quais se endereçam, que os cristãos põem em prática, a propó­
sito do casamento, da procriação e dos aphrodisia, princípios que
t
são os mesmos que os dos filósofos. E, para acentuarem bem esta
identidade, empregam, quase sem os mudar, esses preceitos aforís­
ticos cuja origem as palavras e as formulações denotam facilmente.
22 Michel Foucault

“Quanto a nós”, diz Justino, “se nos casamos, é para criarmos os


nossos filhos; se renunciamos ao casamento, observamos continên­
cia perfeita.”1 Falando a Marco Aurélio, Atenágoras usa referências
sobretudo estóicas: domínio do desejo2 — “a procriação é para nós
a medida do desejo”34 ; rejeição de qualquer segundo casamento —
“aquele que repudia a sua mulher para desposar uma outra é adúl­
tero”, “todo o novo casamento é um adultério respeitável’*1; descon­
fiança perante o prazer — “desprezamos as coisas desta vida e até
os prazeres da alma”5. Atenágoras não se serve destes temas para
indicar traços distintivos do cristianismo por oposição ao paganis­
mo. Trata-se antes de mostrar como os cristãos escapam às acusa­
ções de imoralidades que lhes são endereçadas, e como a sua vida
é a própria realização de um mesmo ideal de moralidade, que, pelo
seu lado, a sabedoria dos pagãos reconheceu.6 Quando muito, Ate­
nágoras sublinha o facto de a crença dos cristãos na vida eterna e
o desejo de se unirem a Deus constituírem para eles um motivo
profundo e sólido de seguirem realmente tais preceitos — melhor
ainda: de manterem intenções puras e de expulsarem de si até os
próprios pensamentos das acções que condenam.7

1 JUSTINO, Primeira Apologia, 29,1.


2 [Transcrição dactilografada: o nascimento como razão de ser do desejo.]
3 “Hêmin metron epithumias hêpaidopoiia."
4 “Ho gar deuteros [gamos] euprepês esti moikheia.”
5 “[...] mekhri kai tôn tês psukhês hêdeônP Todos estes textos se encontram na
Supplicatiopro Christianis, cap. 33. No seu artigo “Ehezweck und zweite Ehe bei
Athenagoras” (Theologische Quartalschrift, 1929, pp. 85-110), K. VON PREY-
SING insiste na semelhança entre as fórmulas de Atenágoras e as posições teóricas
ou as atitudes de Marco Aurélio.
6 K. VON PREYSING conclui assim o seu artigo: “Wir hoffen dargetan zu haben,
daß die zwei Anschauungen des Athenagoras in Bezug auf die Ehe nicht aus der
christlichen Umwelt, jedenfalls nicht aus ihr in erster Linie stammen. Stoische
Beeinflussung auf beide Ansichten dürfte wohl anzunehmen sein” [“Esperamos ter
mostrado que as duas concepções do casamento desenvolvidas por Atenágoras não
provêm do mundo cristão, pelo menos em primeira linha. Tanto para uma como
para outra, devemos supor sem dúvida uma influência estóica”], ibid., p. 110.
7 Cf. igualmente JUSTINO, Primeira Apologia, XV, sobre a condenação dos que
cobiçam uma mulher ou têm a intenção de cometer adultério.
As Confissões da Carne 23
i
No fim do século n, a obra de Clemente de Alexandria transmite,
sobre o regime dos aphrodisia tal como o podia então acolher um
' pensamento cristão, um testemunho de uma dimensão completa-
; mente diferente. Clemente evoca o problema do casamento, das
relações sexuais, da procriação e da continência em vários textos:
t os principais são, em O Pedagogo, o capítulo X do livro II, e tam-
bém, mas em termos mais cursivos, os capítulos VI e VII do mesmo
t. livro e [o capítulo VIII] do livro III; no segundo Stromata, o capí-
* tulo XXXII e o conjunto do terceiro Stromata. Será antes do mais
K o primeiro destes textos que analisarei aqui, esclarecendo-o, quan-
„ do for necessário, através dos outros. Assim, por uma razão: o
grande texto do terceiro Stromata é essencialmente consagrado a
' > uma polémica contra diferentes temas gnósticos. Esta desenvolve­
is -se em duas frentes: por um lado, Clemente queria refutar aqueles
K para os quais a desqualificação da matéria, a sua identificação com
o mal, e a certeza da salvação para os eleitos tornavam indiferente
M a obediência às leis deste mundo, quando não devessem tornar obri-
¿ gatória e ritual a sua transgressão; por um lado, procurava
demarcar-se também das numerosas tendências encratitas que,
’ reclamando-se de modo mais ou menos bem fundado de Valentim
fiou de Basílides, queriam proibir o casamento e as relações sexuais
ou a todos os fiéis, ou pelo menos aos que entendessem conduzir
uma vida verdadeiramente santa. Estes textos são evidentemente
r, capitais para compreendermos, através da questão do casamento e
K da temperança, a teologia de Clemente, a sua concepção da matéria,
t do mal e do pecado. O Pedagogo, por sua vez, destina-se a um fim
o muito diferente: dirige-se a cristãos depois da sua conversão e do
|| seu baptismo — e não, como por vezes se disse, a pagãos a caminho
j da Igreja. E propõe-lhes uma regra de vida precisa, concreta e quo-
tidiana8. Trata-se aqui de um texto que tem objectivos comparáveis
; aos conselhos de conduta que os filósofos helenísticos podiam dar
rfiA e a comparação entre eles pode, em tais condições, ser válida.
k.
3
8 0 Pedagogo corresponde a essa tekhnéperi bion [técnica de existência] da qual é
dito que é a sabedoria enquanto vela sobre o rebanho humano (II, ii, 25,3).
24 Michel Foucault

Sem dúvida, estes preceitos de vida não esgotam as obrigações


do cristão e não o conduzem até ao fim da estrada. Tal como,
antes de O Pedagogo, O Protréptico tinha por função exortar a
alma a escolher o bom caminho, assim também, depois de O Pe­
dagogo, o mestre deverá ainda iniciar o discípulo ñas verdades
mais elevadas. Temos pois com O Pedagogo um livro de exercício
e de encaminhamento — o guia de uma ascensão em direcção a
Deus que um outro ensino deverá depois prolongar até ao seu ter­
mo. Mas o carácter intermédio desta arte de viver cristã não auto­
riza que a relativizemos: se está longe de dizer tudo, aquilo que diz
não se torna nunca caduco. A vida mais perfeita, que um outro
mestre ensinará, descobrirá outras verdades; não obedecerá a ou­
tras leis morais. Muito precisamente, os preceitos dispensados por
O Pedagogo a propósito do casamento, das relações sexuais, do
prazer, não constituem uma etapa intermédia própria de uma vida
média, e que seria seguida por uma etapa mais rude ou mais pura,
própria da existência do verdadeiro gnóstico. Este, que vê com
efeito o que o simples “aluno” não pode ver, não tem outras regras
para aplicar nestas matérias da vida quotidiana.
Tal é bem o que podemos, com efeito, ver nos Stromata, onde
nunca, a propósito do casamento, Clemente sugere para o “verdadei­
ro gnóstico” outros preceitos que não os de O Pedagogo. Se se re­
cusa absolutamente a condenar o casamento, a ver nele como certos
outros uma porneia, uma fornicação, e até mesmo a reconhecer
nele um difícil obstáculo na via de uma vida autenticamente religio­
sa, também não o torna uma obrigação: deixa abertas as duas vias,
reconhece que cada uma delas, casamento e castidade, tem os seus
encargos e as suas obrigações9, e ao longo da reflexão ou da discus­
são acontece-lhe ora sublinhar o maior mérito daqueles que assu­
mem a responsabilidade de ter mulher e filhos, ora expor o valor de
uma vida sem relação sexual10. Aquilo que podemos ler em O Pe­

9 “Idias leitourgias kai diakonias”, CLEMENTE DE ALEXANDRIA, Stromata,


III, xii.
10 [Nota vazia.]
As Confissões da Carne 25

dagogo sobre a vida de um homem com a sua mulher não define


pois somente uma condição provisória: são preceitos comuns que
valem em geral para todos os que são casados, seja qual for a medi­
da do seu avanço rumo à gnose de Deus. E de resto o que O Peda­
gogo explica quanto à natureza do seu próprio ensino vai na mesma
direcção. O “Pedagogo” não é um mestre passageiro e imperfeito:
“Assemelha-se a Deus seu Pai [...], é sem pecado, sem faltas, sem
■paixões na sua alma, Deus sem mácula sob a aparência de um ho­
mem, servidor da vontade do Pai, Logos Deus, aquele que está no
Pai, aquele que está sentado à direita do Pai, Deus também pela sua
aparência.”11 O Pedagogo é pois o próprio Cristo; e aquilo que ensi­
na, ou mais exactamente o que ensina nele e o que é ensinado por
ele, é o Logos. Como Verbo, ensina a lei de Deus; e os mandamentos
que formula são a razão universal e viva. As segunda e terceira
partes de O Pedagogo são consagradas a esta arte de nos conduzir­
mos cristãmente, mas nas últimas linhas do capítulo XIII da primei­
ra parte, Clemente declara o sentido que atribui a essas lições que
se seguirão: “O dever, por conseguinte, é, nesta vida, termos uma
vontade unida a Deus e a Cristo, o que é um acto recto em vista da
vida eterna. A vida dos cristãos, que estamos a aprender com o
nosso Pedagogo, é um conjunto de acções em conformidade com o
Logos, a aplicação sem quebra dos ensinamentos do Logos, aquilo a
que justamente chamámos a fé. Esse conjunto é constituído pelos
preceitos do Senhor, que, sendo máximas divinas, nos foram, pres­
critos como mandamentos espirituais, úteis ao mesmo tempo para
nós mesmos e para os nossos próximos.” E entre tais coisas neces­
sárias Clemente distingue as que se reportam à vida aqui na Terra
— e se encontrarão nos livros seguintes de O Pedagogo — e as que
se reportam à vida lá no alto, que podem descobrir nas Escrituras.
Um ensino esotérico, depois das lições dadas a todos? Talvez12. Mas

11 CLEMENTE DE ALEXANDRIA, O Pedagogo,l,ü, 4‘, 1.


12 É a hipótese apresentada por H.-I. MARROU, numa nota sobre esta passagem
(I, xiii, 1-103, 2). Cf. Le Pédagogue, Paris, Le Cerf, “Sources chrétiennes”, 1960,
pp.294-295.
26 Michel Foucault

nem por isso devemos deixar de ver, nestas leis da existência quoti­
diana, um ensinamento do próprio Logos', devemos, na conduta que
se lhes submete, reconhecer a acção recta que conduz à vida eter­
na, e devemos, nessas acções rectas em conformidade com o Logos,
reconhecer uma vontade unida a Deus e a Cristo.
Estas palavras que Clemente utiliza no momento em que vai
apresentar as suas regras de vida são muito significativas. Indi­
cam claramente o duplo registo a que devemos reportá-las: segun­
do o vocabulário estoico, estas regras de vida definem com efeito
condutas convenientes (kathêkonta), mas também acções racio­
nalmente fundamentadas nas quais o homem que as cumpre se
reúne à razão universal (katorthômatag, e, segundo a temática
cristã, definem não só os preceitos negativos que permitem ser-se
acolhido na comunidade, mas a forma de existência que conduz à
vida eterna e constitui a fé13. Em suma, o que Clemente propõe
nos ensinamentos de O Pedagogo é um corpus prescritivo em que
o nível das “conveniências” não é mais do que a face visível da
vida virtuosa, a qual é por seu turno caminho para a salvação. A
omnipresença do Logos, que comanda as acções convenientes,
manifesta a recta razão e salva as almas unindo-as a Deus, asse­
gura a solidariedade dos três níveis14. Os livros “práticos” de O
Pedagogo que se abrem imediatamente a seguir a esta passagem
pululam de precauções minuciosas cujo carácter de pura e sim­
ples conveniência pode surpreender. Mas é necessário recolocá-
-los na intenção global a que pertencem, e o detalhe dos ka-
thêkonta, em que parecem extraviar-se com frequência as reco­

13 “A aplicação sem quebra dos ensinamentos do Logos, aquilo a que justamente


chamámos a fé”, O Pedagogo, I, xiii, 102,4.
14 Esta coesão entre kathêkonta, katorthômata e valor salvífico dos actos aparece
claramente em formulações como: “to mentoi tês theosebeias katorthôma dfergôn
to kathêkon ektelei" (ibid., I, xiii, 102,3 [“O acto virtuoso, inspirado pela religião,
realiza pois o dever através dos actos”, trad. M. Harl]); ou ainda: “kathêkon de
akolouthon en biô theô kai Khristô boulêma hen, katorthoumenon aidiô zôê” ([“O
dever, por conseguinte, é ter-se uma vontade unida a Deus e a Cristo, o que é um
acto recto em vista da vida eterna”, trad. M. Harl], ibid, I, xiii, 4).
As Confissões da Carne 27

mendações de Clemente, deve ser descodificado a partir desse


Logos que é ao mesmo tempo princípio de acção recta e movi­
mento de salvação, razão do mundo real e palavra de Deus que
chama à eternidade.
1 A leitura de O Pedagogo, II, x, reclama pois um certo número
de observações preliminares.

1. Habitualmente assinalam-se nele sobretudo citações explíci­


tas ou implícitas de moralistas pagãos, e sobretudo estoicos. Mu-
sónio Rufo é sem dúvida um dos mais frequentemente utilizados,
embora não seja nunca nomeado. E é um facto que por quatro ou
cinco vezes pelo menos, e sobre pontos essenciais, Clemente
transcreve quase palavra a palavra sentenças do estoico romano. É
assim sobre o principio de que a união legítima deve desejar a
procriação15; sobre o principio de que a busca do prazer por si só,
ainda que no interior do casamento, é contrária à razão16; sobre o
principio de que se deve poupar à mulher toda a forma indecente
de relações17; sobre o principio de que, quando se tem vergonha de
uma acção, esta é urna falta18. Mas nem por isso deveremos con­
cluir que Clemente se limita a interpolar neste capítulo um ensino
que pedia de empréstimo a escola filosófica sem procurar dema­
siado dar-lhe uma significação cristã. Antes do mais devemos
notar que as referências aos filósofos pagãos são aqui, como em
tantos outros textos de Clemente, extremamente numerosas: pode­
mos detectar empréstimos contraídos junto de Antípatro, de Hié-
rocles e, sem dúvida também, das sentenças de Sexto; Aristóteles,
que não é igualmente citado, é utilizado com frequência, como de
resto o são naturalistas e médicos. Finalmente — o que do mesmo
modo não é em Clemente excepcional —, Platão é um dos raros

15 Ibid., II, x, 90, 3, e MUSÓNIO RUFO, Reliquiae, XIV, [10-11], p. 71 (ed.


Hense).
16 Ibid., II, x, 92,2, e MUSÓNIO RUFO, ibid., XX, [3-4], p. 64.
17 Ibid., II, x, 97,2, e MUSÓNIO RUFO, ibid., XII, [15-16], p. 63.
18 Ibid., II, x, 100,1, e MUSÓNIO RUFO, ibid., XII, [1-2], p. 65.
28 Michel Foucault

expressamente citado e o único que o é largamente19. Mas deve­


mos notar também que nenhum dos grandes temas prescritivos
evocados por Clemente se apresenta sem o acompanhamento de
citações escriturárias: Moisés, o Levítico, Ezequiel, Isaías, Ben
Sira. Mais do que um empréstimo maciço, e pouco elaborado,
contraído junto do estoicismo tardio, devemos antes ver neste ca­
pítulo a tentativa de integrar os preceitos efectivamente prescritos
entre os moralistas da época numa tripla referência: a dos natura­
listas e dos médicos, que mostra como a natureza os fundamenta
e manifesta a sua racionalidade, testemunhando assim a presença
do Logos como princípio de organização do mundo; a dos filóso­
fos, e sobretudo de Platão, o filósofo por excelência, que mostra
como a razão humana pode reconhecê-los e justificá-los, testemu­
nhando que o Logos habita a alma de todo o homem; enfim, a das
Escrituras, que mostra que Deus deu explícitamente aos homens
tais mandamentos — tais entolai testemunhando assim que
aqueles que lhes obedecerem se unirão com ele na vontade: ou sob
a forma da lei mosaica, ou sob a forma das palavras crísticas20.
Cada um dos grandes preceitos, que este capítulo X do segundo
livro formula, está pois submetido a um principio de “tripla deter­
minação”: pela natureza, pela razão filosófica, pela palavra de Deus.
Sem dúvida, o conteúdo do ensino, a codificação, no que permite,
proíbe ou recomenda, está em conformidade absoluta, ressalvados
uns quantos pormenores, com o que era ensinado nos séculos ante­
riores ñas escolas filosóficas e particularmente estoicas. Mas todo o
esforço de Clemente é inserir esses aforismos conhecidos e corren­
tes num tecido complexo de citações, de referências, ou de exemplos
que os fazem aparecer como prescrições do Logos, que se enuncia
na natureza, na razão humana ou na palavra de Deus.

19 Demócrito e Heraclito são citados urna vez; Crísipo sob o nome dos “estoicos” em
geral. Platão é-o mais vezes, não contando aqui com as numerosas citações implícitas.
20 Sobre a distinção dos dois ensinos: CLEMENTE DE ALEXANDRIA, O Peda­
gogo, I, vii, 60,2. Sobre a sua continuidade, ibid., I, x, 95,1, e sobretudo I, xi, 96,
3 (“Era por intermédio de Moisés que o Logos era Pedagogo”) e 97, 1.
As Confissões da Carne 29

2. O segundo e o terceiro livros de O Pedagogo são pois uma


regra de vida. Sob a desordem aparente dos capítulos — a seguir
à bebida, versa-se o luxo do mobiliário; entre os preceitos para a
vida comum e o bom uso do sono, fala-se dos perfumes e das
coroas, depois das peças de calçado (que devem ser para as mu­
lheres simples sandálias brancas), depois dos diamantes pelos
■quais não devemos deixar-nos fascinar, etc. —, podemos reconhe­
cer um quadro de “regime”. Na literatura médico-moral da época,
>esses quadros organizavam-se segundo diferentes modelos. Quer
•' sob a forma de agenda, seguindo mais ou menos hora a hora o
curso do dia: assim o regime de Diocles, que toma o homem desde
os primeiros gestos a fazer no instante do despertar e o conduz até
ao momento de dormir, indica em seguida as modificações a in­
troduzir segundo as estações do ano, e por fim dá conselhos sobre
as relações sexuais21. Quer referindo-se à enumeração de Hipócra­
tes, que constitui para alguns um quadro canónico: exercícios,
■depois alimentos, depois bebidas, depois o sono e finalmente as
relações sexuais22.
■" Quatember23 sugeriu que Clemente, na sua regra de vida quoti­
diana, segue o ciclo das actividades do dia, mas começando pela
, refeição da noite, e portanto pelos conselhos relativos à alimenta­
ção, à bebida, à conversação, às maneiras de mesa; passa depois à
' noite, ao sono, e aos preceitos que se reportam às relações sexuais.
As observações a propósito das roupas e da galantería reportar-se-
’■iam à toilette da manhã, e a maior parte dos capítulos do livro III
! seria consagrada à vida diurna, aos servidores, aos banhos, à gi-
. nástica, etc.
. , No que respeita ao capítulo X, sobre as relações conjugais, Qua­
tember propõe igualmente, apesar da desordem aparente do texto à

21 DIOCLES, Du régime, in ORIBASE [ORIBÁSIO], Collection medícale. Livres


incertains, ed. Daremberg, t. III, p. 144. .
22 Esta lista encontra-se em HIPÓCRATES, Épidémies, VI, vi,2. Existem também
quadros de outros tipos.
23 F. QUATEMBER, Die christliche Lebenshaltung des Klemens von Alexandrien
nach dem Pãdagogus, Viena, 1946.
30 Michel Foucault

qual mais do que um comentador se mostrou sensível, um plano


simples e lógico. Depois de ter fixado o fím do casamento — a
saber, a procriação —, Clemente condenaria as relações contrana­
tura; em seguida, passando às relações no interior do casamento,
encararia sucessivamente a gravidez, as relações infecundas e o
aborto, antes de estabelecer os principios da medida e da conve­
niência a conservar nas relações matrimoniais. Através de numero­
sos rodeios e sobreposições, tal é em termos aproximativos a suces­
são de temas que encontramos no capítulo em causa. Mas é possível
ao mesmo tempo reconhecer nele um outro encadeamento que de
maneira nenhuma exclui este primeiro esquema.
O tipo de citações explícitas ou implícitas às quais Clemente dá
sucessivamente preeminência pode servir aqui de fio condutor.
Não que ele não tome o cuidado, ao longo de todo o texto, de en­
trecruzar, segundo o principio da tripla determinação, a autorida­
de das Escrituras, o testemunho dos filósofos e os dizeres dos
médicos ou naturalistas. Mas, de modo sensível, a acentuação
vai-se deslocando ao longo do texto, a coloração das referências
vai mudando. São primeiro as lições da agricultura e da historia
natural que são invocadas (a regra das sementeiras, as “metamor­
foses” da hiena, os maus costumes da lebre) para explicar a lei
mosaica24. Depois os empréstimos são feitos sobretudo à literatura
médica e filosófica, a propósito do corpo humano, dos movimen­
tos naturais, da necessidade de manter o controle sobre os desejos
e de evitar os excessos que esgotam o corpo e turvam a alma25. Por
fim, nas últimas páginas do capítulo, as citações das Escrituras,
que nunca tinham estado ausentes do texto e serviam de contra­
ponto às outras referências, tornam-se predominantes (não sem
um ou dois regressos explícitos a Platão e implícitos a Musónio).
Digamos que, neste texto complexo, há, sobrepostas uma à ou­
tra, uma composição “temática” (que vai da condenação das rela­
ções contranatura às recomendações de reserva no uso do casa­

24 CLEMENTE DE ALEXANDRIA, O Pedagogo, II, x, 83, 3, a 88,3.


25/Wd., II, x, 89,1, a 97,3.
As Confissões da Carne 31

mento) e uma composição “referencial” que dá a estas prescrições


de “regime” uma outra dimensão. Este deslocamento das referên­
cias permite-nos escutar sucessivamente as diferentes vozes atra­
vés das quais o Logos fala: a das figuras da natureza, a da razão
que deve presidir ao composto humano, a de Deus falando direc­
tamente aos homens para os salvar (entendendo-se que as duas
primeiras são também o Logos de Deus mas sob uma outra for­
ma). Esta sucessão permite assim fundamentar as mesmas prescri­
ções e os mesmos interditos (que são repetidos várias vezes no
texto) a três níveis diferentes: o da ordem do mundo, tal como foi
fixada pelo Criador, e da qual certos animais “contranatura” dão
um testemunho invertido; o da medida humana, tal como a ensina
a sabedoria do próprio corpo, e os princípios de uma razão que
quer permanecer senhora de si mesma26; o de uma pureza que
permite aceder, para além desta vida, à existência incorruptível.
Talvez seja necessário reconhecer aqui, ainda que sob as vestes
que a envolvem, a tripartição, importante na antropologia de Cle­
mente, entre o animal, o psíquico e o pneumático. Ainda que não
seja este o esquema subjacente, o capítulo obedece manifestamen­
te a um movimento ascendente que vai dos exemplos depositados
na natureza a título de lição aos apelos que apontam aos cristãos
. o fim de uma existência “semelhante” a Deus. E é ao longo de
todo este caminho que se determina a economia das relações se­
xuais.

3. A questão primeira que punham os tratados de conduta ou as


diatribes dos filósofos pagãos respeitava à oportunidade do casa­
mento: Ei gamêteon. O capítulo X trata a questão por preterição:
indica desde as primeiras linhas que falará para as pessoas casadas;
depois, após um desenvolvimento que versa as relações sexuais
durante a gravidez e as doenças que o seu excesso pode acarretar,
elide de novo a questão, dizendo que tal tema é discutido no tratado

26 Sobre o tema do Logos enquanto preside à ordem do mundo e à dos corpos e da


alma, cf. ibid., I, ii, 6,5-6.
32 Michel Foucault

Sobre a Continencia. Tratar-se-á de urna obra autónoma? Ou de


textos que figuram nos StromataS Há dois conjuntos nos Stromata
que é possível supor que constituam esse tratado, ou que reprodu-
zam pelo menos o seu conteúdo: a totalidade do livro III, que vi­
mos ser urna longa discussão em torno do encratismo, comum a
várias tendências gnósticas, ou de certas formas “licenciosas” da
moral dualista; e mais verosímilmente o capítulo XXIII e último
do segundo Stromata, que é uma introdução ao livro III e que a si
mesmo se apresenta como devendo responder à questão tradicional
nos debates da filosofia prática: deve-se casar?27 E é para a análise
desta questão que remete precisamente O Pedagogo.
A resposta dada por esta passagem final do segundo Stromata
não apresenta originalidade em relação à moral filosófica da épo­
ca. Se procura demarcar-se, não é dos princípios gerais dos filóso­
fos, mas antes da sua atitude real, cujo relaxamento a teoria não
corrige. No casamento, Clemente, neste texto dos Stromata como
no de O Pedagogo, fixa a procriação de filhos como fim28. A par-

27 “Zêtoumen de ei gamêteon”, CLEMENTE DE ALEXANDRIA, Stromata, II,


xxiii, 137,3.
28 “[...] sunodos andros kai gunaikos hê prôtê kata nomon epi gnêsiôn teknôn
spora”, ibid., II, xxiii, 137,1.
[Passagem rasurada por Foucault na transcrição dactilografada: “E, segundo um
procedimento de tipo inteiramente estoico, a partir desta definição pela finalidade,
Clemente encara sucessivamente: a questão de saber se se deve casar, em geral, e
as condições que podem modular essa obrigação, impedindo que [não] se lhe dê
resposta única e válida para todos a todo o momento; as opiniões dos diferentes
filósofos a esse respeito; o que faz de um casamento um bem: a saber que, dando
ao homem uma descendência, perfaz e consuma a sua existência; que proporciona
cidadãos à sua pátria; que assegura, em caso de doença, a solicitude da mulher e
os seus cuidados; que proporciona socorros quando a velhice chega. Ao que se
acrescenta, a título de prova negativa, o facto de que não ter filhos é ou sancionado
pelas leis, ou condenado pela moral. O raciocínio de Clemente consiste em deduzir
o valor positivo do casamento do que pode haver de perfeição ou de utilidade no
facto de se ter uma progenitura. O que mostra que este é o fim do casamento no
sentido forte da expressão — que é a sua razão de ser e a sua justificação; mas
também (e isso permanece implícito no texto) que a procriação não pode constituir
um bem digno de ser perseguido como fim a não ser na condição de se produzir no
interior do casamento.”]
As Confissões da Carne 33

tir desta adequação entre o valor do casamento e a finalidade


, procriadora, Clemente pode definir as grandes regras éticas que
devem presidir às relações dos esposos: o laço entre estes não deve
, ser da ordem do prazer e da volúpia, mas do “¿ogov”29; não se
deve tratar a mulher como urna amante30, nem dispersar a semen-
> te a todos os ventos31, mas observar antes os princípios de sobrie­
dade — regras que os próprios animais respeitam32. Trata-se de
um laço que não deve romper-se; e, se o for, dever-se-á renunciar
, a outro casamento enquanto o cônjuge ainda viver33. O adultério,
enfim, é interdito e deve ser castigado34.
A maior parte destes pontos — e sobretudo os que se referem
às relações entre esposos — encontra-se em O Pedagogo, que os
trata todavia muito mais extensamente. A continuidade e a homo­
geneidade entre os dois textos é manifesta: a diferença é que os
Stromata falam do próprio casamento e do seu valor em função da
procriação, enquanto O Pedagogo fala da procriação como princí-
'' pio de discriminação para as relações sexuais. Num caso, trata-se
da procriação como finalidade do casamento; no outro, tratar-se-á
sobretudo dessa mesma procriação na economia das relações e
dos actos sexuais. O interesse principal do capítulo e a sua novi­
dade — pelo menos na literatura cristã, senão em toda a literatura
moral da Antiguidade — está em ter entrecruzado dois tipos de
questões, dois debates tradicionais: o que diz respeito à justa eco-
? nomia dos prazeres — tema dos aphrodisia-, e o do casamento, do
L seu valor e do modo de conduta no seu quadro, dado que o casa-
mento se justifica pela procriação e se torna a partir daí possível
; definir sob que aspecto pode ser um bem (tese desenvolvida no
segundo Stromata e recordada em O Pedagogo). Sem dúvida, não
é a primeira vez que se procura definir que género de conduta

29 Ibid., II, xxiii, 143,1.


30 Ibid.
31 Ibid., II, xxiii, 143,2.
32 Ibid., II, 144,1.
33 Ibid., II, xxiii, 145,1-3.
34 Ibid., II, xxiii, 146,1-4.
34 Michel Foucault

sexual os esposos devem ter; mas é, segundo parece, a primeira


vez que encontramos desenvolvido todo um regime dos actos se­
xuais que não se estabelece tanto em função da sensatez e da
saúde individuais, como sobretudo do ponto de vista das regras
intrínsecas do casamento. Havia um regime do sexo e uma moral
do casamento: que se sobrepunham, é bem evidente. Mas, neste
texto de Clemente, temos uma nova conjugação dos dois pontos de
vista. O que se passa entre esposos, e que os moralistas da Anti­
guidade tratavam senão por preterição, pelo menos brevemente e
de bastante longe — contentavam-se com indicar regras de decên­
cia e de prudência —, está em vias de tornar-se objecto de preocu­
pação, de intervenção e de análise.
Sob o título um pouco enigmático de: “O que se deve distinguir
a propósito da procriação”, o capítulo X do segundo livro de O
Pedagogo versa de facto uma questão relativamente precisa. É
esta que é formulada desde a primeira linha do texto e que reapa­
rece na última: questão do momento, da ocasião, da oportunidade
— kairos — da relação sexual entre pessoas casadas35. Na medida
em que se trata de uma regra dos dias e das noites, este termo de
kairos tem decerto o sentido estrito de “momento oportuno”. Mas
está longe de ser o único. No vocabulário filosófico e sobretudo
estoico, kairos refere-se ao conjunto das condições que podem fa­
zer de uma acção sob outros aspectos permitida uma acção que
tenha efectivamente um valor positivo. O kairos não caracteriza
uma oportunidade de prudência, evitando os riscos e os perigos
que poderiam tornar má uma acção indiferente; define os critérios
que uma acção concreta deverá preencher para ser boa. Enquanto
a lei separa o permitido do proibido entre todas as acções positivas,
o kairos faz o valor positivo de uma acção real.
A questão que vai pois ser tratada neste capítulo de O Pedagogo
é a de se fixarem as condições que dão valor positivo às relações
sexuais entre pessoas casadas. O facto de ser esta questão que é

35 "Sunousias de ton kairon", CLEMENTE DE ALEXANDRIA, O Pedagogo, II,


x, 83,1: “[...] Hopênika ho kairos dekhetai ton spororí', ibid., II, X, 102,1.
As Confissões da Carne 35

tratada num tal livro de conduta tem a sua importância. Primeiro


porque aqui vemos, segundo um processo que foi possível observar
> entre os autores pagãos das épocas precedentes, que a questão das
relações sexuais, dos aphrodisia, é agora fortemente subordinada à
questão do casamento: perdeu até mesmo a tal ponto a sua indepen­
dência que o termo de aphrodisia não aparece neste texto de Cle­
mente. É a procriação, ou antes a conjunção procriadora que cons-
f titui o termo geral sob o qual se vai colocar todo o capítulo. Em
seguida, temos aqui sem dúvida o primeiro texto em que as rela­
ções sexuais conjugais são tratadas por si mesmas, em detalhe, e
como um elemento específico e importante da conduta. Uma vez
mais, os filósofos tinham já formulado a maior parte dos preceitos
que Clemente vai enunciar, mas situando-os numa ética global das
relações entre esposos, numa regulação da maneira de viver quan­
do se é casado. Os Conjugalia praecepta de Plutarco dão conselhos
em vista do bom funcionamento geral dessa comunidade que o
casal constitui; as observações a respeito das relações sexuais não
¡ são mais do que um elemento para essa vida que o casamento não
, deve impedir de ser filosoficamente válida. O Pedagogo fala pouco
do casal, mas as relações sexuais entre os cônjuges são nele um
objecto importante e relativamente autónomo. Pode dizer-se que
temos aqui o primeiro exemplo de um género, ou antes de uma
prática que terá uma importância considerável na história das so­
ciedades ocidentais — o exame e a análise das relações sexuais
entre esposos.
Finalmente, a questão do kairos das relações conjugais permite
ver como Clemente de Alexandria integra um código que recebeu
com efeito das filosofias helenísticas (e sem dúvida também de
todo um movimento social) numa concepção religiosa da nature­
za, do Logos e da salvação. Solução muito diferente, como vere­
mos, da proposta por Santo Agostinho — e é esta última que será
retida pelas instituições e a doutrina da Igreja Ocidental. Nesta
reflexão de Clemente sobre o kairos, seria um erro vermos o sim­
ples enxerto, mais ou menos hábil, de elementos tomados de em­
préstimo à moral corrente, e simplesmente tornados um pouco
36 Michel Foucault

mais exigentes ou austeros. O kairos da relação sexual define-se


pela sua ligação com o Logos. Não esqueçamos que, para Clemen­
te, ao Logos se chama Salvador, porque inventou para os homens
“os remédios que lhes dão um sentido moral justo e os conduzem
à salvação”, e isso colhendo a boa “ocasião”36.

Clemente parte da proposição de que as relações sexuais têm a


procriação por fim. Tese perfeitamente corrente. Encontramo-la
nos médicos37. Encontramo-la nos filósofos, quer sob a forma de
uma ligação entre três termos — rejeição das relações sexuais fora
do casamento e rejeição do casamento que não tenha na procriação
o seu fim38 —, quer sob a forma de uma condenação directa de
toda a relação sexual que não tenha por objecto a procriação39.
Nada, a este respeito, de particular, portanto, em Clemente de
Alexandria. Tal como não é traço particular seu a distinção, nas
relações de finalidade em geral, do “alvo” ou do “objectivo”
(skopos) e do “fim” (telos). Em contrapartida, se está de facto no
“espírito” dos estóicos e na lógica das suas análises, parece, e é o
mínimo que se pode dizer, não ter sido frequente a aplicação des­
ta diferença ao domínio das relações sexuais. E, com efeito, o uso
dessa distinção, no próprio texto de Clemente, conduz a um resul­
tado que, à primeira vista, pode parecer sem significação muito
fecunda. O “objectivo” seria a “paidopolia”, a fabricação de filhos,
a progenitura no sentido estrito. O “fim”, em compensação, seria a
“euíe/cnta”, por vezes traduzida por “belos filhos” ou por “família
numerosa”. Na realidade, é necessário dar à palavra um sentido
mais amplo: aquela refere-se ao facto de se encontrar na descen­

36 “[...] Epitêrôn men tên eukairian”, ibid., I, XII, 100,1.


37 [Nota vazia.]
38 MUSÓNIO RUFO, Reliquiae, XII (p. 64): os aphrodisia não se justificam a
não ser no casamento e quando têm por fim o nascimento de filhos.
39 OCELO LUCANO: não temos relações pelo prazer, mas para termos filhos (De
Universi riatura, IV, 2).
As Confissoés da Carne 37

dência que se tem, na sua vida e na sua venturosa fortuna, urna


plenitude, uma satisfação40. Ò objectivo (skopos) da relação sexual
estaria pois na existência da progenitura; o fim (telos), na relação
positiva com essa progenitura, na consumação que ela constitui.
Duas considerações que Clemente acrescenta logo a seguir e que
constituem a introdução do capítulo permitem talvez esclarecer o
valor da distinção em causa.
Clemente compara de início o acto sexual às semeaduras. Metá-
/ fora tradicional. Encontramo-la em Atenágoras e nos Apologetas;
'era, ao que parece, corrente nas diatribes filosóficas nas quais ser­
via para ilustrar a regra de que a semente deve ser depositada no
sulco onde pode tornar-se fecunda. Mas Clemente utiliza-a além
disso para melhor marcar a diferença entre o que deve ser o “alvo”
das relações sexuais e o que deve ser o seu “fim”. Alvo do agricul­
tor, quando semeia: obter o que comer; a sua finalidade: “ter uma
colheita”, diz simplesmente o texto de Clemente, quer dizer, sem
' dúvida, conduzir os grãos a esse ponto do seu acabamento natural
que produz uma abundância de frutos. Esta comparação com as
semeaduras mantém-se bastante elíptica; mas podemos supor que
autoriza a pôr por conta do “alvo” essa procriação de filhos da qual
os filósofos tantas vezes mostraram que era útil aos pais, ou para
assegurar o seu estatuto, ou para lhes garantir sustento quando fo-
' rem velhos, e a pôr em contrapartida por conta dos “fins” alguma
coisa de muito mais geral e de menos utilitário — a saber, o acaba-
' mento que constitui para um ser humano o facto de ter uma des-
; cendência41. E, uma vez que é este fim que Clemente quer fazer
íí

40 Na Ética a Nicómaco, I, 8, 16, ARISTÓTELES diz que a felicidade da existên­


cia tem por marca três coisas: o “bom nascimento”, a “beleza” e a “euteknia" que
é simétrica, do lado da descendência e do futuro, do que é a boa família, o bom
nascimento, do lado da origem. Eurípides, no íon, utiliza a palavra nesse sentido:
“Intercedei [...] a fim de que a antiga casa de Erecteu receba enfim, por um límpido
oráculo, uma rica posteridade” (versos 468-470).
41 Neste sentido, CLEMENTE mais não faz do que tomar no sentido estrito a
afirmação estoica de que o facto de ter filhos [constitui] “a consumação”, “o aca­
bamento” (teleiôtês) para um indivíduo.
38 Michel Foucault

aparecer neste capítulo, analisando o kairos das relações sexuais,


compreendemos que deixe de parte as utilidades pessoais e os be­
nefícios sociais que o facto de se ter filhos pode proporcionar42.
Que um tal fim não utilitário é bem aqui o tema de Clemente
mostra-o a consideração que encadeia imediatamente com a metá­
fora do semeador. Este não planta senão “por causa de si mesmo”;
o homem, quanto a ele, deve plantar “por causa de Deus”. Com isto,
Clemente não entende designar o fim que orienta a acção, mas
antes o princípio que a atravessa e sustenta o tempo todo43. O acto
de [pro]criação deve ser feito “por causa” de Deus na medida antes
do mais em que é Deus quem a prescreve ao dizer “Multiplicai-
-vos”, mas também porque ao procriar o homem é “imagem de
Deus”, e “colabora”, por sua parte, “no nascimento do homem’'44.
Esta proposição é importante para toda a análise de Clemente,
uma vez que estabelece na procriação humana uma relação com
Deus ao mesmo tempo próxima e complexa. Que o homem ao
procriar seja “a imagem de Deus” não deve ser interpretado a par­
tir de uma semelhança imediata entre a criação de Adão e a pro­
criação dos seus descendentes. Sem dúvida, como Clemente expli­
ca noutro lugar45, Deus, que se contentara com dar uma ordem
para fazer aparecer os animais na Terra, amassara com a sua mão
o primeiro homem, marcando assim uma diferença essencial e
uma maior proximidade entre Ele e esse ser criado à sua imagem.
Mas isso não quer dizer para Clemente que a Criação tenha trans­
mitido ao homem alguma coisa da essência da natureza ou da po­
tência de Deus: não há nada em nós que “convenha” com Deus46.

42 CLEMENTE não ignora estas vantagens e menciona-as nos Stromata.


43 A expressão não é heneka tou theou, mas dia ton theon.
44 [CLEMENTE DE ALEXANDRIA, O Pedagogo, I, x, 83,1.]
45 Ibid., I, iii, 7,1. Deus fez o homem com as suas mãos: ekheirourgêsen. Esta di­
ferença entre a criação por meio de uma ordem dos animais e a fabricação manual
do homem é um tema corrente na época, cf. Tertuliano.
46 “Deus é rico em misericórdia para connosco, que não temos relação alguma
com Ele, têi ousia, êphusei, ê dunamei”, CLEMENTE DE ALEXANDRIA, Stro­
mata, II, xvi, 75, 2. Todo o capítulo é dirigido contra os gnósticos.
; As Confissões da Carne 39

■, E contudo podemos falar de uma “semelhança” com Deus —


aquela de que se trata na narrativa do Génesis: a semelhança que
era a do homem antes da queda, e que pode e deve tornar-se de
■ novo sua. Esta semelhança faz-se não pelo corpo, mas pelo espiri­
to e pelo raciocínio47; é assegurada pela obediência à lei: “A lei diz
[...]: ‘Marchai seguindo o Senhor A lei chama, com efeito, à
assimilação uma marcha que segue atrás; e esta assemelha-se, tan­
to quanto tal é possível.”48 Não é pois a procriação que em si mes-
. ma e como processo natural é “à semelhança” da Criação, mas é-o
a procriação, na medida em que tiver sido bem levada a cabo e em
que tiver “seguido” a lei. E se a lei prescreve a conformidade com
. a natureza, é porque a natureza obedece a Deus49.
Neste caminhar em direcção à semelhança, encontra então a
, sua possibilidade uma “sinergia” do homem e de Deus. Deus, com
.efeito, criou o homem porque este era “digno da sua escolha”,
digno por conseguinte de ser por ele amado. Se teve de haver um
< motivo para a criação do homem, esse motivo consiste em que,
\ sem o homem, “o Demiurgo não poderia ter-se revelado bom”50. A
*"•’ criação do homem é pois manifestação da bondade de Deus, tanto
como da sua presença. O homem, em contrapartida e por esse
mesmo facto, oferece, por ser digno de ser amado, a possibilidade
de mostrar a sua bondade51. Ao procriar, o homem faz pois bem
’ mais e coisa bem diferente de “imitar”, segundo uma analogia
, natural, as capacidades do acto demiúrgico. Participa, completa­
mente homem que é, na potência e na “filantropia” de Deus: pro-
cria, com ele, homens que são dignos de ser amados de um amor
1 cuja manifestação foi a “causa” da Criação, e depois da Encarna­

47 “Kata noun kai logismon”, ibid., II, XIX, 102,6.


48 Ibid., II, xix, 100,4.
49 Erro dos estoicos, que, ao falarem da vida em conformidade com a natureza,
não viram que teria sido necessário falar de conformidade com Deus (ibid., II, xix,
101,1).
50 CLEMENTE DE ALEXANDRIA, O Pedagogo, I, iii, 7,3.
51 Embora a edição francesa não o indique, devemos ler que é “a Deus” que “[o]
homem (...) oferece (...) a possibilidade de mostrar a sua bondade”. (N. T.)
40 Michel Foucault

ção. A “sinergia” do homem com Deus no acto procriador52 não


consiste somente num apoio de Deus à geração humana: trata-se
da consumação do que dizia uma fórmula anterior de Clemente:
“Deus recebe do homem aquilo que criara, o homem.”53
O capítulo X do segundo Livro de O Pedagogo coloca pois a
análise “das distinções a fazer a propósito da procriação” sob o
signo das relações complexas e fundamentais entre Criador e
criaturas. O conteúdo dos preceitos, muito “quotidianos”, que
Clemente irá dar a partir daí pode bem ser idêntico, ou muito
próximo de idêntico, aos ensinamentos dos filósofos pagãos, sem
que por isso estejamos perante uma espécie de abandono da regu­
lamentação das relações sexuais a uma sabedoria estoica ou pla­
tónica, aceite e autenticada por um consenso suficientemente
amplo. Clemente sem dúvida recolheu a codificação e as regras
de conduta que formulava noutros lugares a filosofia que lhe era
contemporânea, mas repensou-as e integrou-as no interior de uma
concepção que toma o cuidado de lembrar, numas quantas frases,
no início deste capítulo e que põe em jogo, na procriação, as re­
lações do homem com o seu criador, de Deus com as suas criatu­
ras. Mas é necessário prestar atenção: Clemente de modo nenhum
dá, por esse meio, um valor espiritual ao acto sexual (ainda que
no quadro da instituição matrimonial, ainda quando se proponha
exclusivamente a fins procriadores). O que tem, para ele, um sen­
tido para a relação entre o homem e Deus não é o acto sexual em
si mesmo, mas o facto de, levando-o a cabo, se seguir o ensina­
mento, a “pedagogia” do próprio Logos. E a observância dos
“mandamentos” que Deus prescreveu através da natureza, dos
seus exemplos, das suas formas e das suas disposições, através da
organização do corpo e das regras da razão humana, através dos
ensinamentos dos filósofos e das palavras das Escrituras. A obe-

52 CLEMENTE emprega o verbo sunergein para designar a colaboração de Deus


na procriação e ekheirourgein para o seu papel na Criação.
53 Esta fórmula, que se encontra no livro I, cap. III, 7,3, não se aplica à geração em
particular, mas contribui para definir as relações de Deus, enquanto Criador, com o
homem, enquanto criatura através da qual Deus manifesta o seu amor.
As Confissões da Carne 41

< diência a estas diferentes lições pode dar à relação conjugal pro-
", criadora o valor de urna “sinergia” com Deus.
Podemos compreender melhor a distinção aparentemente um
pouco arbitrária que Clemente introduz entre o facto da progeni­
tura que deve ser o “alvo” das relações sexuais e o valor da des-
cendéncia que deve ser o seu “fim”. Este constitui bem um acaba­
mento — teleiotês — para o procriador, como os estoicos diziam:
procriador leva aqui a cabo aquilo para que a natureza o fez e
®|que o liga, através do tempo, aos outros homens e à ordem do
‘. mundo. Mas esta “bela descendência”, que com a ajuda de Deus o
.. homem fez nascer, Clemente mostra que ela constitui para Deus
.. .um objecto digno de amor e uma ocasião de manifestar a sua bon-
|||dade. Subordinadas ao “alvo” da “fabricação de filhos”, e depois,
além disso, a uma finalidade que se une à da Criação inteira, as
relações sexuais devem submeter-se a uma “razão”, a um Logos,
que, presente na natureza inteira e até mesmo na sua organização
material, é também a palavra de Deus. Colocadas à cabeça da sua
^ãhálise, a distinção e a articulação entre alvo e finalidade permi­
tem a Clemente inscrever solidamente a regra das relações sexuais
iynuma grande “lição da natureza”: “Devemos atender à escola da
¿'¡natureza e observar os sábios preceitos da sua pedagogia para o
‘jí^tempo oportuno da união.”54 Lição da natureza que está no próprio
i,,; ensinamento do Logos. “Lógica”, poderiamos dizer, de uma natu-
reza que deve ser entendida num sentido muito amplo, e sob os
p 1 seus diferentes aspectos: “lógica” da natureza animal, “lógica” da
. natureza humana, e da relação da alma racional com o corpo, “ló-
¿!gica” da Criação e da relação com o Criador. São estas três lógicas
que Clemente, sucessivamente, desenvolve.

54 Ibid., II, x, 95, 3. Este tema da natureza “ensinante”'é um tema estóico. Cf.
por exemplo HIÉROCLES: “dikaia de didaskalos hê phusis” (ESTOBEU, Flo-
j i rilegium, ed. Meineke, p, 8). Mas é visível o deslocamento do sentido efectuado
por Clemente.
42 Michel Foucault

1. Os exemplos que Clemente toma de empréstimo ao livro ani­


mal são lições negativas55. A hiena e a lebre ensinam o que não se
deve fazer. A má reputação da hiena ligava-se a uma velha crença
— que se encontrava em Herodoro de Heracleia56 — segundo a
qual cada animal dessa espécie tinha os dois sexos e desempenha­
va alternadamente, de ano para ano, o papel do macho e da fêmea.
Quanto à lebre, passava por adquirir anualmente um ânus suple­
mentar e para fazer dele, com os seus orifícios assim multiplica­
dos, o pior uso57. Aristóteles rejeitara estas especulações e, daí em
diante, poucos eram os naturalistas que ainda lhes concediam
crédito. O que não quer dizer que se tivesse por isso deixado de
pedir à história natural daqueles animais lições de moral. Na épo­
ca helenística e romana, a história natural encontrava-se submeti­
da, com efeito, a dois processos, aparentemente contraditórios:
uma filtragem do saber em função de regras de observação mais
estritas; e a preocupação cada vez mais marcada de decifrar um
ensinamento nessa natureza na qual, segundo os filósofos, é dever
do indivíduo humano integrar-se. Uma maior preocupação de
exactidão e a busca da exemplaridade moral podiam andar a par.
Assim, o hermafroditismo alternante da hiena e as perfurações
anuais da lebre tornaram-se lendas, mas, através dos costumes
desses animais, os naturalistas podem apesar de tudo ler lições de
conduta. Como dizia Eliano, a hiena “mostra”, não pelos discursos,
[mas] pelos factos, “como era desprezível Tirésias”58.
A maneira como Clemente refuta por sua vez a lenda, mas re­
colhendo a sua lição moral, é interessante para a sua concepção
das relações entre a natureza e a contranatura. A hiena, diz Cle­
mente, não muda de sexo de um ano para o outro, porque, uma

55 Por várias vezes, Clemente indica que lhe acontece falar por meio de exemplos
negativos: O Pedagogo, I, i, 2,2, e I, iii, 9,1.
56 [Cf. infra, n. 64, p. 44. Foucault anota: IV, 192, sem que saibamos a que cor­
responderá isso.]
57 Esta crença, referida por ARQUELAU, teria sido extraída do PSEUDO-
-DEMÓCRITO (Geoponica, XIX, 4; cf. OVÍDIO, Metamorfoses, XV, 408-410).
58 ELIANO, Natura animalium, 1,25.
As Confissões da Carne 43

vez que a natureza tenha fixado o que um animal é, não pode


modificá-lo. Há, é certo, muitos animais nos quais alguns traços
se alteram com o tempo. As estações frias e quentes modificam
a voz das aves ou o colorido das plumagens59, mas isso é um efei­
to de acções físicas e exteriores, sem que desse modo se transfor­
me a natureza do animal. Ora, que se passa com o sexo? Um in­
divíduo não pode nem mudar de sexo, nem ter dois, nem também
ser de um terceiro que seria intermédio entre o masculino e o
feminino: tais coisas são quimeras que os homens imaginam, mas
às quais a natureza se recusa. Clemente refere-se aqui, de manei­
ra implícita mas suficientemente clara, a uma discussão “clássica”
na época. A possibilidade das metamorfoses — do nascimento de
vermes a partir de cadáveres, da formação de abelhas numa car­
caça de boi, ou de larvas no lodo — constituía aos olhos dos
epicuristas a prova de que tais corpos não eram de origem divina;
as transformações em causa eram, aos seus olhos, efeito de meca­
nismos “autónomos”60. Distinguindo cuidadosamente a “estabili­
dade” das espécies e as alterações mecânicas de certos caracte­
res, Clemente adere à posição de todos aqueles — aristotélicos,
. estoicos, platónicos — que queriam manter a marca de uma razão
criadora, ou a presença permanente de um Logos, nas especifica­
ções do mundo animal61. Mas é bastante verosímil também que
’ -Clemente pense no problema que evoca no capítulo IV do primei-
.. ro livro de O Pedagogo: a saber, o estatuto da diferença dos sexos
- em relação ao mesmo tempo à vida eterna e ao estatuto na Terra
dos homens e das mulheres. A solução proposta por Clemente é
simples, ainda que não isenta de dificuldade: no outro mundo, não
haverá diferenças de sexo, “é somente aqui em baixo que o sexo
feminino é distinto do sexo masculino”. Diferença fundada por
- conseguinte no Logos que rege a ordem deste mundo, mas que

59 Clemente segue de perto ARISTÓTELES, História dos Animais, IX, 632b.


1 60 Cf. por exemplo LUCRÉCIO, De rerum natura, 1,871,874,898,928; III, 719.
'’ 61 ORÍGENES evoca o mesmo problema no Contra Celsum; IV, 57. Faz valer que,
f se há transformações (do boi em abelha, do burro em escaravelho e do cavalo em
fí vespa), essas mudanças seguem “vias estabelecidas” (hodoi tetagmenai).
44 Michel Foucault

não impede que possamos aplicar o nome de seres humanos tan­


to aos homens como às mulheres; as mesmas prescrições valem
pois para uns e para outras, bem como a mesma forma de vida:
“uma assembléia, uma moral e um pudor; alimentação comum,
laço conjugal comum; tudo é semelhante: a respiração, a vista, o
ouvido, o conhecimento, a esperança, a obediência, o amor”62. É
a esta “vida comum”, a este género comum que está para lá da
diferença dos sexos, mas que não a anula, que a graça se endere­
ça; é este género humano que será salvo e que reencontraremos
na eternidade, apagadas todas as diferenças de sexo. Ao recusar a
ideia de uma alternância de sexo na hiena, Clemente reitera o
princípio da “naturalidade” da diferença macho-fêmea no quadro
das entidades específicas. O homem e a mulher são, e devem
portanto permanecer, segundo o Logos da natureza, distintos um
do outro, o que não os impede nem de pertencerem ao mesmo
género humano, nem de esperarem que o outro mundo os liberte
da “dualidade do seu desejo”63.
Existe contudo na hiena uma singularidade, que não se encontra
em qualquer outro animal. Clemente descreve-a seguindo Aristó­
teles, quase palavra a palavra64. Trata-se de uma excrescência de
carne que desenha por baixo da cauda uma forma muito próxima
de um sexo de fêmea, mas o exame rapidamente mostra que a dita
cavidade não abre sobre conduta alguma — nem na direcção da
matriz, nem na do intestino. Esta particularidade anatómica, no
entanto, Clemente não a trata como Aristóteles. Este serve-se dela
para explicar como observadores precipitados puderam deixar-se
iludir pelo equívoco da aparência: julgaram ver dois sexos no mes­
mo animal; ele, pelo seu lado, não vê nela mais do que a ocasião
de um erro humano de interpretação. Clemente, esse, vê, na singu­
laridade anatómica em causa, um elemento que mantém uma rela­

62 CLEMENTE DE ALEXANDRIA, O Pedagogo, I, iv, 10,2.


63 “Epithumias dikhazousês", ibid., I, iv, 10,3.
64 ARISTÓTELES, História dos Animais, VI, 579b. Cf. também Da Geração dos
Animais, III, 757a.
Às Confissões da Carne 45

ção ao mesmo tempo de efeito e de instrumento com uma falha


moral. Se as hienas têm um corpo tão estranhamente disposto, é
por causa de um vício. Um vício “de natureza”, entendendo-se por
“natureza” os caracteres próprios de uma espécie, mas que nem
por isso é menos absolutamente semelhante à falha moral que
podemos encontrar entre os homens: a lascívia. E é em função
desta falha que “a natureza” dispôs uma cavidade suplementar
naqueles animais, fazendo com que eles possam servir-se dela
pára cobrições, também elas, suplementares. Em suma, à propen-
'são “excessiva” para o prazer, que caracteriza naturalmente a
hiena, a natureza respondeu por meio de uma anatomia excessiva
que permite relações “excessivas”. Mas, ao fazê-lo, a natureza
mostra que não é somente em termos de quantidade que devemos
falar de excessos: uma vez que a bolsa excedentária da hiena não
se encontra ligada por canal algum aos órgãos da geração, o exces­
so depara-se “inútil”, ou mais exactamente cortado do fim que a
natureza fixou aos órgãos da geração, às relações sexuais, à se­
mente e à sua emissão — a saber, a procriação. E, uma vez que a
finalidade é assim esquivada, é então uma actividade contranatura
que uma tal disposição, ao mesmo tempo natural e excessiva, para
o exagero, sucede que permite e encoraja. Temos portanto todo um
ciclo que vai da natureza à contranatura, ou antes o entrecruzar-se
incessante de natureza e de contranatura que dá às hienas um ca­
racter reprovável, inclinações excessivas, órgãos excedentários e
meios de destes se servirem “para nada”65.
O exemplo da lebre é analisado por Clemente da mesma manei­
ra. Desta feita, todavia, não se trata de um excesso na ordem da
esterilidade, mas de um exagero na própria fecundação. Conti­
nuando a seguir Aristóteles, Clemente põe de parte a fábula da
lebre como animal de ânus anual, e substitui-lhe a ideia da super-
fetação. Os animais em apreço são tão lúbricos que tendem a

65 Reportando-se a esta contranatura que se manifesta naturalmente no “demasiá­


is do” (peritton), Clemente caracteriza a vida virtuosa pelo aperittotês (O Pedagogo,
46 Michel Foucault

acasalar incessantemente, não respeitando tão-pouco o tempo da


gestação e do aleitamento. A natureza deu à fêmea uma matriz
com duas ramificações, que lhe permite conceber com mais de um
macho e também até antes de parir. O ciclo natural da matriz, que,
segundo a lição dos médicos, reclama a fecundação quando está
vazia e recusa a aproximação sexual quando está cheia, vê-se as­
sim perturbado por uma disposição da natureza que permite so­
brepor de modo inteiramente “contranatura” a prenhez e o cio.
Este longo rodeio de Clemente através das lições dos naturalis­
tas pode parecer enigmático, se o compararmos, por exemplo, com
a Epístola de Barnabé. Esta última, com efeito, evoca também o
caso da lebre e da hiena — às quais acrescenta outros animais,
como o milhafre, o corvo, a moreia, o pólipo, a vaca e a doninha,
mas reportando-se apenas aos interditos alimentares do Levítico.
E faz destes interditos uma exegese imediata, e que era corrente na
época66. A coberto do consumo destes animais, é o comportamen­
to que manifestam ou que simbolizam que se vê, de facto, conde­
nada: as aves de rapina significam a avidez no despojar dos outros,
a lebre significa a corrupção de crianças, a hiena o adultério, a
doninha as relações orais. Clemente recorda, também ele, os inter­
ditos do Levítico; entende ver, também ele, nessas prescrições
alimentares o símbolo de leis respeitantes à conduta. Mas não se
atém a esta exegese, recorda-a somente no início e no termo do
longo caminho que percorre através da história natural67. Toma
contudo o cuidado, antes do mais, de recusar a explicação a que
ele mesmo chama “simbólica”68 para a substituir por uma análise
anatómica séria. E sublinha, no termo do seu desenvolvimento do
tema, que só tais considerações de história natural podem dar

66 Cf. a nota 53 da edição da Épitre du Pseudo-Barnabé, por S. SUZANNE-


-DOMINIQUE e FR. LOUVEL (Paris, 1979).
67 O Pedagogo, II, x, 83,4-5; e II, x, 94,1-4.
68 Encontramos essas explicações na Epístola do Pseudo-Barnabé: ‘“Não come­
rás lebre.’ Porquê? Tal quer dizer: não corromperás crianças e não incitarás gente
dessa espécie, porque a lebre adquire a cada ano um ânus mais” (X, 6).
As Confissões da Carne 47

conta dos interditos “enigmáticos” do profeta®. Trata-se em suma


para Clemente de mostrar que o próprio Logos que Moisés trans­
mitiu, de modo breve como lei, a natureza manifesta-o, em deta­
lhe, em figuras que podemos analisar. Ao colocar diante dos seus
olhos o exemplo de todos aqueles animais reprováveis, a natureza
mostra ao homem que enquanto indivíduo racional não deve tomar
por modelo seres que não têm senão uma alma animal. Mostra-lhe
também a que ponto de contranatura todo o excesso pode condu­
zir, segundo uma lei que é a da própria natureza. Por fim, permite
fundamentar as interdições globais, que encontramos tanto nos
filósofos pagãos como nos cristãos — proibição do adultério, da
fornicação, da corrupção de crianças —, em considerações sobre
a ¡natureza. Porque tal é sem dúvida um dos traços mais notáveis
de todo este capítulo de Clemente, e desta passagem sobre a lebre
e a hiena em particular. Os filósofos não tinham parado de lem-
■ brar que a lei, que devia presidir ao uso dos aphrodisia, era lei de
natureza. Mas a maior parte das considerações que avançavam
referia-se à natureza do homem como ser dotado de razão e como
ser social (necessidade de ter filhos para os dias da velhice, utili­
dade de se ter uma família em termos de estatuto pessoal, obriga­
ção de fornecer cidadãos ao Estado, homens à humanidade). Cle­
mente, neste texto, elimina tudo o que se reporta ao ser social do
' homem; desenvolve considerações de naturalista a partir das quais
pode fazer aparecer aquilo que é sem dúvida o essencial do seu
propósito:
d) A natureza indica que deve haver coextensão exacta entre a
intenção procriadora e o acto sexual.
b) Através dos jogos da contranatura que ela própria organiza,
• a natureza mostra que este princípio de coextensão é um facto que
podemos ler na anatomia dos animais e uma exigência que conde­
na aqueles que lhe escapam.
' c) Este princípio interdiz pois, por um lado, todo o acto que se
fizesse fora dos órgãos da fecundação — “princípio da hiena” —

69 CLEMENTE DE ALEXANDRIA, O Pedagogo, II, x, 88, 3.


48 Michel Foucault

e, por outro lado, todo o acto que viesse acrescentar-se à fecunda­


ção levada a cabo — “princípio da lebre”.
Nunca os filósofos, que tinham no entanto querido colocar os
aphrodisia sob a lei da natureza e tentado pôr de parte entre eles
o que era contranatura, tinham colocado a tal ponto a sua análise
sob o signo da natureza — entendida como a que os naturalistas
léem no mundo animal.

2. É também sob o signo da natureza, mas desta feita da natu­


reza do homem enquanto ser dotado de razão, que Clemente colo­
ca o desenvolvimento seguinte. E entrelaçará agora, na voz de
Moisés70 e no exemplo de Sodomá71, o ensinamento dos mestres
da sabedoria pagã, todos os que se esforçaram por regular as rela­
ções da alma e do corpo — os filósofos estoicos, os médicos, e
Platão sobretudo: este é tido até por ter lido Jeremias e as suas
imprecações contra os homens “semelhantes aos cavalos no cio”,
uma vez que fala, também ele, dos corcéis indóceis da alma72.
O princípio que Clemente aqui faz valer é o princípio, familiar
aos filósofos, da “temperança”, com os seus dois aspectos correla­
tivos: o domínio da alma sobre o corpo, que é uma prescrição na­
tural, uma vez que é da natureza da alma ser superior e da natureza
do corpo ser inferior, como o indica a localização do ventre que é
como que o corpo do corpo (“é necessário dominar os prazeres e
também comandar como senhor o ventre e o que está abaixo de­
le”73); e a reserva, a moderação com a qual cada um deve satisfazer
os seus apetites depois de se ter tornado senhor deles. Muito logi-

70 De facto, Clemente atribui a Moisés a tripla interdição da fornicação, do adul­


tério e da corrupção de crianças que é de facto a trilogia tradicional dos filósofos.
71 Temos aqui um dos primeiros exemplos da interpretação “sexual” da história
de Sodoma.
72 “Estão em tropel na casa da prostituta, semelhantes a cavalos bem nutridos que
correm para um lado e para o outro; relincham cada um deles ante a mulher do
próximo”, Jeremias, 5,7-8.
73 CLEMENTE DE ALEXANDRIA, O Pedagogo, II, x, 90, 1. Deste princípio,
Clemente diz que é o princípio soberano, aquele que comanda todos os outros
(arkhikôtaton).
As Confissões da Carne 49

camente, refere o adjectivo aidoios, vergonhoso, aplicado aos ór­


gãos sexuais, ao substantivo aidôs, ao qual atribui sentido de reser­
va e de justa medida: “parece-me que, se a este órgão se chamou
partes vergonhosas (aidoídlon), foi sobretudo porque nos devemos
servir desta parte do corpo com reserva (aiJôs)”74. Esta reserva é
■portanto a regra que deve presidir ao exercício do domínio da alma
' sobre o corpo. Ora, em que consiste esse domínio? “Em fazer na
ordem das uniões legítimas somente aquilo que convém, que é útil
’e que tem decência.”75 O primeiro dos adjectivos usados remete
-para o que pertence por natureza a este género de relação, o segun­
do para o seu resultado, o terceiro por fim para uma qualidade ao
- mesmo tempo moral e estética. E o que se vê assim designado é o
> que é recomendado pela própria natureza. Esta dá aqui exactamen­
te a mesma lição que dava há pouco nas figuras de animais: posi­
tivamente “desejar” a procriação, negativamente evitar as semea-
duras vãs76. Clemente retoma pois exactamente as proposições
fundamentais que escolhera e depois justificara em termos de his­
tória natural. Mas agora, tendo a espiral do desenvolvimento des-
' crito uma volta sobre si própria, retoma-as ao nível da ordem hu­
mana.. Repete-as aproximadamente termo a termo, mas num con­
texto em que se utilizam os termos de Nomos (lei), Nominos (legí­
timo), Paranomos (ilegítimo), Themis (justiça), Dikaios (justo) e
Adikos (injusto)77. Não é que se trate assim de opor a ordem huma­
na à da natureza, mas antes de mostrar como a natureza nela se
manifesta. “Toda a nossa vida pode decorrer observando as leis da
natureza, se dominarmos os nossos desejos.”78 O domínio que a

74 Ibid., II, x, 90,2.


75 [Ibid., II, x, 90, 3]. Sobre aidôs (reserva respeitosa) distinta de aiskhunê (ver­
gonha) e sobre o facto de as partes sexuais requererem a primeira e não a segunda,
cf. O Pedagogo, II, vi, 52,2.
'• 76 Ibid., II, x, 90,3-4. Sobre este ponto Clemente mistura o ensinamento de Platão
e a lei de Moisés.
77 Cf. ibid.,11, x, 90,4; 91,1; 92,2; 92, 3; 95,3. Sobre o tema antignóstico de as
, ordens de Deus serem boas e justas, cf. ibid., I, capítulos viii e ix.
78 II, x, 96,1.
50 Michel Foucault

razão prescreve e que define as formas legítimas do comportamen­


to é ainda uma maneira de se escutar o Logos que rege a natureza.
A essa reserva, que manifesta o domínio da razão sobre os ape­
tites do corpo, Clemente dá quatro formas principais.
a. A primeira circunscreve as relações sexuais à mulher a que
cada qual esteja ligado pelo casamento. Disse-o Platão (“não la­
vrar pouco importa que campo feminino”), extraindo-o, segundo
Clemente, do Levítico (“Não terás comércio com a mulher do teu
vizinho, contaminando-te com ela”, 18, 20). Mas desta regra, O
Pedagogo apresenta uma justificação que difere por completo da
de Platão: na regra monogâmica, As Leis descobriam um meio de
limitar o ardor das paixões e a humilhante servidão em que aque­
las podiam manter os homens79; Clemente, pelo seu lado, vê nela
a garantia de que a semente — da qual disse antes que continha as
“idéias da natureza”80 e cuja fecundação, recorda-o de novo, se
inscreve nas relações entre Deus e as suas criaturas — [não] vá
perder-se81 nalgum lugar sem honra. E um certo valor da semente
em si mesma, com o que contém e o que promete, com o que im­
plica de sinergia entre Deus e o homem para alcançar o seu fim
natural, que torna ilegítimo e “injusto” que alguém a confie seja a
quem for, excepto à esposa a que está unido.
b. Outro princípio de restrição: a abstinência de relações sexuais
durante as regras. “Não é conforme à razão contaminar com as
impurezas do corpo a parte mais fecunda do esperma, que breve­
mente pode tornar-se um ser humano, afogá-lo no vazamento turvo
e impuro da matéria: é o germe possível de um nascimento feliz
que é assim furtado aos sulcos da matriz.”82 Trata-se aqui de uma
prescrição de origem hebraica. Mas Clemente substitui o interdito
de impureza ao mesmo tempo num jogo de referências médicas
implícitas e na sua concepção geral da semente. Para ele, os mêns-

79 Os textos que Clemente cita encontram-se no livro VIII de Aí Leis (819a-841e).


80 [CLEMENTE DE ALEXANDRIA, O Pedagogo, II, x, 83,3.]
81 [Manuscrito: “vá perder-se”.]
82 O Pedagogo, II, x, 92, 1. Cf. também FÍLON, De specialibus legibus, III,
32-33.
As Confissões da Carne 51

truos são bem, com efeito, uma substância impura83. Mas, além
disso, como dizia o médico Sorano, “a semente é diluída no sangue
e, rejeitada por ele”84. Arrasta pois consigo a semente que nele se
mistura, arrancando-a assim ao seu alvo que é a matriz, e ao seu
fim que é a procriação. Uma vez que a semente constitui para “as
razões da natureza” um receptáculo material e uma vez que detém
ás forças que, desenvolvidas segundo a sua ordem racional, darão
origem a um ser humano, não merece nem ser exposta ao contacto
das impurezas, nem ser destinada a uma expulsão brutal.
c. A interdição das relações durante a gravidez constitui a recí­
proca do princípio anterior. Porque, se devemos preservar a semen­
te de toda a evacuação impura, do mesmo modo devemos proteger
a matriz depois de esta ter acolhido a semente e iniciado o seu
trabalho. Devemos respeitar o ritmo espontâneo que Clemente evo­
ca como se segue: vazia, a matriz deseja procriar, procura acolher
a semente e a cópula não pode então ser considerada como uma
falta, uma vez que corresponde a esse desejo legítimo85. Aqui, uma
vez mais, Clemente ecoa um ensinamento médico perfeitamente
corrente: “nem todo o momento é favorável à semente projectada no
útero pelas aproximações sexuais”, é no momento em que cessa o
escoamento menstruai e em que a matriz se encontra vazia que “as
mulheres são impelidas ao acto venéreo e o desejam”86. Esta alter­
nância nas disposições do corpo mostra bem, segundo Clemente, a
razão que preside à sua natureza, e define os justos limites de uma
conduta temperante. Mas O Pedagogo desloca a significação deste
ritmo e da regra de temperança que dele se deriva. Os médicos
desaconselhavam durante a gravidez as relações sexuais “porque

83 Clemente usa a palavra apokatharma [ibid., II, x, 92,1].


84 SORANO, Tratado das Doenças das Mulheres, I, x.
85 Clemente usa a palavra horexis que no vocabulário estóico designa o desejo
como movimento natural (por oposição a epithumia).
86 SORANO, loc. cit., capítulo X. É também uma ideia médica que a mulher não
pode efectivamente conceber se não desejar a relação sexual. De onde se concluía
que, se uma mulher concebesse após uma violação, era porque de certa maneira a
desejara.
52 Michel Foucault

imprimem movimento em todo o corpo”, e, pelos abalos que impri­


mem no útero, “são perigosas durante todo o tempo da gravidez”
— sobretudo, nos últimos meses87. Clemente, por seu turno, invoca
o facto de que, se a matriz se fecha durante a gravidez, é porque
“trabalha na fabricação da criança”, labor que leva a cabo “em si­
nergia como Demiurgo”88. Enquanto dure esta elaboração e colabo­
ração, toda a nova contribuição de semente mostrar-se-á excessiva:
uma “violência” pois, que não seria “justo” querer impor. Durante
a gravidez, tudo o mais que se lhe acrescente é “demasiado”.
d. Mas se a “natureza” da mulher dita uma economia tão rigo­
rosa, que se passa do lado do homem? É sem dúvida seguindo o
fio desta interrogação que Clemente evoca um tema médico intei­
ramente tradicional: a longa série dos males, doenças e fraquezas
que pode acarretar o uso demasiado frequente dos prazeres do
amor. A este propósito, Clemente evoca as provas directas habi­
tualmente dadas e as provas indirectas, não menos costumadas:
vigor de todos os que, homens ou animais, se abstêrh o mais pos­
sível de relações sexuais. Esta ideia banal, Clemente liga-a à pro­
posição, também famosa, de Demócrito: a união sexual é uma
“pequena epilepsia”89. Sem ter sido retomada por todos os médi­
cos, trata-se de uma ideia que encontramos com bastante frequên­
cia na literatura médica: quer sob a sua forma estrita como em
Galeno90, ou sob uma forma mais ampla como em Rufo de Efeso,
que coloca “na família do espasmo” os “movimentos violentos”
que acompanham o coito91. Ora, a esta aproximação entre epilep­
sia e acto sexual, Clemente dá uma significação precisa, que apoia
de resto [sobre] uma dupla referência que lhe permite entrecruzar

87 Ibid.
88 CLEMENTE DE ALEXANDRIA, O Pedagogo, II, x, 93, 1. A frase remete
explicitamente para os primeiros capítulos sobre a cooperação entre a criatura e o
Criador no nascimento dos homens.
89 DEMÓCRITO, Fragmento B 32, ed. H. Diels.
90 GALENO, Comentário das Epidemias de Hipócrates,III,3,em que cita Demó­
crito; cf. também De utilitate partiam, XIV, 10.
91 RUFO DE ÉFESO, CEuvres, ed. Daremberg, p. 370.
As Confissões da Carne 53

utn texto de Demócrito — “um homem nasce de um homem e é


arrancado dele” [fragmento 32 Diels] — com um versículo do
Génesis — “é osso dos meus ossos e carne da minha carne” (2,
23). Se o corpo é tão violentamente abalado na emissão da semen-
te, é porque se encontra desligada dele e projectada urna substan­
cia que contém em si mesma as razões materiais que permitirão
fazer um outro homem semelhante àquele de onde ela vem.
Apercebemo-nos aqui da tendência, que era frequente na Antigui­
dade, de tornar a ejaculação simétrica do parto. Mas, citando
Adão, ao qual Deus acaba de arrancar uma costela durante o sono
para dela fazer a sua companheira, Clemente evoca claramente a
“colaboração” de Deus nessa obra de carne puramente masculina.
A prescrição de não abusar não diz pois respeito apenas à prudên­
cia dos corpos. O abalo necessariamente custoso da emissão de
semente remete para a indispensável gravidade dessa sinergia.
Destes grandes princípios de restrição nas relações sexuais,
pode deduzir-se toda uma série de prescrições diversas que Cle­
mente acumula sem muita ordem aparente. Umas proíbem o abor­
to, outras recomendam que se não tenham relações sexuais duran­
te o dia, quando se sai da igreja ou de uma reunião, à hora da
oração, mas somente à noite; outras prescrevem que não se trate a
esposa como “prostituta”; outras excluem o casamento dos jovens
e dos velhos. Tudo isto define de facto um código de temperança
cujas conclusões, ainda que aconteça serem por vezes mais seve­
ras, são do mesmo tipo das que podemos encontrar entre os filó-
, sofos pagãos. E tal é com efeito a regra de temperança cujos
princípios Clemente recorda várias vezes: o homem deve perma­
necer senhor dos seus desejos, não se deixar arrebatar pela sua
. violência, não se entregar, sem controle da razão, aos impulsos do
'■ corpo92. Trata-se do ideal daquilo a que Clemente chama noutro
lugar o “casamento temperante”93. Mas este princípio parece não

92 CLEMENTE DE ALEXANDRIA, O Pedagogo, n,x, 89,2; 90,2-4; 93,2; 96,1.


93 O “sôphrôn gamos”. Não esquecer que o propósito de O Pedagogo é introduzir
uma vida temperante (“'sôphrôn bios”, I, i, 1,4).
54 Michel Foucault

ser para ele o princípio último. Se cada qual deve permanecer


“senhor de si”, não é tanto para manter o justo equilíbrio e a ne­
cessária hierarquia entre as faculdades, como para garantir o res­
peito, o pudor, a reserva que reclama uma semente que forma o
receptáculo de “razões” imanentes à natureza e que é ocasião de
uma cooperação entre Deus e o homem. União na qual o ser racio­
nal respeita a alma que deve prevalecer sobre o corpo e a cons­
ciência que deve controlar os movimentos involuntários? Sim, sem
dúvida. Mas o “casamento temperante” de Clemente respeita so­
bretudo aquilo que, passando através dele, vai do Criador eterno à
multiplicidade das criaturas futuras, e encontra na semente e na
fecundação um momento material importante. É “a economia”
deste movimento, mais do que a estrutura do composto humano,
que define o kairos das relações sexuais.

3. O último movimento do texto é de longe o mais breve;


desenha-se com as últimas recomendações acerca do casamento
temperante, as mais tênues, mais exigentes que rodeiam as grandes
proibições. Não usar palavras obscenas, evitar gestos licenciosos,
não ter relações com prostitutas e recordar do mesmo modo —
aqui Clemente repete quase palavra a palavra um aforismo que se
podia encontrar já entre os filósofos — que se comete adultério
quando se age com a própria esposa como se esta fosse uma corte-
sã. Com estas prescrições, entramos no domínio das faltas que es­
capam ao olhar dos outros e que se cometem sobretudo aos olhos
da própria consciência de cada um. Pecados da sombra. Deve ter-se
presente que não estamos perante faltas de intenção, maus pensa­
mentos, concupiscências e tentações que serão, num cristianismo
um pouco posterior, o elemento chave dos pecados da carne. Cle­
mente não fala senão dos pecados que são sem carácter público. A
noite e o silêncio envolvem-nos: não têm aparentemente por teste­
munha e por juiz senão a consciência daquele que os comete — a
consciência do parceiro não parece aqui ter importância. O proble­
ma do pecado sem outra testemunha que não a consciência própria
é ainda um tema muito frequente na literatura filosófica, e Ciernen-
As Confissões da Carne 55

te trata-o segundo uma argumentação também ela muito clássica.


Procurando enterrar um pecado na sombra e na solidão, não se
atenua a sua gravidade, mostrando-se antes a que ponto se está
consciente da sua importância. O segredo manifesta a vergonha, e
esta constitui um juízo que a própria consciência assume. E se um
tal pecado não prejudica ninguém, a consciência continua presente,
como acusador e como juiz: é aquele mesmo que o comete que o
pecado prejudica e é em benefício de si mesmo que aquele que o
comete deve condenar-se. Encontramos estes raciocínios tanto em
Musónio94 como em Séneca95. Clemente retoma-os brevemente.
E todavia, é numa outra direcção que se encaminha a sua aná­
lise — ou antes os temas que Clemente varia, de modo muito livre,
em torno da questão da falta secreta. Evoca de início o tema da
noite e da luz. Por mais profundas que sejam as trevas que envol­
vem a falta, há sempre uma luz que as habita e ilumina aquilo que
elas escondem. Olhar de Deus ao qual nada escapa, e que consti-
p tui, sempre presente no mundo, uma luz espiritual? Sim, sem dú-
f” vida, e os filósofos pagãos reconheceram a sua evidência.
i » Mas é também a luz que habita em nós e constitui a nossa cons-
ciência. Fragmento do Logos que rege o mundo, que depõe em nós
um elemento de pureza. Por referência a ele, a falta que se comete
i não constitui somente uma desobediência, um atentado contra os
: princípios da razão, mas também uma contaminação. E a tempe­
rança não é simplesmente conformidade com uma ordem univer­
sal, mas parcela pura dessa luz: não procuremos “dissimular-nos
; nas trevas, porque o pensamento habita em nós; [...] a noite ilumi-
'■ na os pensamentos castos; e foi aos pensamentos dos homens de
bem que as Escrituras deram o nome de lâmpadas que nunca se
.. apagam”96.
Não podendo o puro ter contacto senão com o puro, Deus, se
, contaminamos em nós a pureza do seu Logos, não pode deixar

■ 94 MUSÓNIO RUFO, Reliquiae, XII, 1-2 e 7, p. 65.


95 SÉNECA, Cartas a Lucílio, 82,8 e 16.
96 CLEMENTE DE ALEXANDRIA, O Pedagogo,11, x., 99,6.
56 Michel Foucault

de se afastar de nós. Abandona-nos portanto à nossa vida de


“corrupção”. Pelo que Clemente entende ao mesmo tempo, em
sentido metafórico, a vida do pecado e, em sentido estrito, uma
vida que está votada à morte. A intemperança corrompe: não
porque atingiría a luz, que é em si mesma inacessível e não pode
ser obscurecida, mas porque obriga a luz a abandonar o corpo ao
seu destino mortal. O corpo intemperante apodrecerá porque
Deus, abandonando-o, o deixa no estado de cadáver97, enquanto
aquele que se mantém temperante se revestirá de uma “incorrup­
tibilidade”, a do Logos que habita nele, e que o fará aceder à vida
eterna.
Há nesta concepção da “temperança” em Clemente mais do que
a simples exigência de um equilíbrio bem governado entre o corpo
e a razão. Mas também não se trata aqui, à maneira dualista, de
uma recusa radical do corpo como princípio substancial do mal.
Trata-se não de um aprisionamento, mas de uma habitação do
Logos no corpo, e a “temperança” consiste em fazer com que o
corpo se torne ou continue a ser o “templo de Deus” e com que os
seus membros sejam e se tornem os “membros de Cristo”. A tem­
perança não é arrancamento ao corpo, mas movimento do Logos
incorruptível no próprio corpo, movimento que o conduz até essa
outra vida onde, lá e somente lá, poderá viver-se a vida angélica,
em que a carne inteiramente purificada já não conhecerá a dife­
rença dos sexos nem as relações que os unem. É nestes termos que
Clemente interpreta a passagem do Evangelho de Lucas sobre o
novo casamento das viúvas98, que viría a ser objecto de numerosas
controvérsias: não vê nela, ao contrário de alguns outros, a ideia de
uma distinção entre os “filhos do século” que tomariam marido ou
mulher, e aqueles que, não tomando nem marido nem mulher,
participariam na ressurreição; mas a ideia de que, a partir do ca­
samento que é a lei deste mundo, o abandono das obras de carne
e a incorruptibilidade da qual nos revestimos assim nos permitem

97 II, x, 100,1.
98 Lucas, 20,27-37.
> • As Confissões da Carne 57

“perseguir uma vida à medida da dos anjos”99. Podem assim


“cumprir-se as obras do Pedagogo” e cumprir-se a Palavra: “à
imagem e semelhança”100.
$ É certo que, através destes temas da luz interior, do puro e do
impuro, do corpo como templo do Cristo, e desta ascensão orien­
tada para a incorruptibilidade e a vida eterna, Clemente toca em
temas que no século ni e sobretudo no século iv assumirão uma
grande importância — em particular sob a influência do ascetis­
mo monástico: tema da pureza rigorosa do pensamento e o tema
;1 da virgindade de coração como condições da vida angélica. Mas
devemos notar logo a seguir que a exigência de uma pureza do
; pensamento, com uma renúncia que incide sobre os próprios dese­
jos, apenas é evocada no extremo fim do capítulo, numa única
frase. Devemos notar que Clemente não evoca então, como se fará
; mais tarde, o arrancamento vigilante, constante e preliminar de
■i todos os mais pequenos desejos que podem formar-se no coração,
mas sim a vontade de não nos deixarmos vencer por eles101. Deve­
mos notar que, imediatamente após esta última recomendação, ele
opõe à reprovação desta derrota o princípio da boa conduta, o
j mesmo que evocara no início do capítulo e ao qual regressa no
; fim: necessidade de semear tão-só no bom momento, quando o
kairos o indica. Não opõe à obra da carne uma renúncia absoluta,

99 CLEMENTE DE ALEXANDRIA, O Pedagogo, II, x, 100,3. “O abandono das


obras de carne” (katargêsantes ta tês sarkos erga) não significa aqui o abandono
da procriação; parece tratar-se de uma referência à Epístola aos Gálatas, em que
■<: as obras da carne são enumeradas como a impudicícia, a impureza, a dissolução,
a idolatria, a magia, as inimizades, as querelas — em suma, os principais pecados
em geral (SÃO PAULO, Epístola aos Gálatas, 5,19-21).
í 100 CLEMENTE DE ALEXANDRIA, O Pedagogo, I, iii, 9,1.
101 “Não temos o direito de nos abandonarmos à volúpia nem de nos deixarmos
ficar estupidamente à espera dos desejos sensuais, nem também de permitirmos
que nos impressionem demasiado os apetites contrários à razão, nem por fim de
desejarmos a polução” (ibid., II, x, 102, 1). No entanto, no Stromata III, vii, Cle­
mente exprimirá uma concepção muito mais exigente da relação com os desejos.
A egkrateia dos pagãos consiste em não se submeterem aos desejos; a dos cristãos
reside no mê epithumein: vencer não só os desejos, mas também o facto de desejar.
58 Michel Foucault

mas, à derrota que se sofre perante os aphrodisia, o princípio de


semeaduras boas e eficazes. A própria estrutura deste último pa­
rágrafo põe frente a frente o facto de se estar “submetido aos
aphrodisia" e o facto de se não consentir em mais do que plantar
as sementes102. Por fim e sobretudo, devemos notar que a palavra
usada por Clemente, não só no início do texto quando define a
razão natural que preside às boas relações sexuais, mas nesse fim
de capítulo em que se trata do corpo como templo de Deus, e da
veste de incorruptibilidade, continua a ser a mesma palavra por
meio da qual os filósofos designavam a temperança: sôphrosunê.
Dá sem dúvida a este termo uma significação diferente do simples
domínio de si mesmo, das paixões e do corpo. Mas não lhe dá o
sentido de uma renúncia às relações sexuais — para a qual usa
regularmente (e assim no terceiro Stromata) o termo de eunou-
khia. Trata-se, de facto, nesta temperança, de uma economia da
procriação. Esta deve ser determinada pela razão natural das “se­
meaduras humanas”, mas é também e ao mesmo tempo a forma de
uma colaboração entre Deus e o homem. A “coroa de vida”, a tú­
nica de imortalidade não podem ser o prêmio de uma ruptura com
a referida economia — pode até dizer-se que o celibato é um acto
ímpio na medida em que suprime a “geração”103. Serão antes o
prêmio de uma fidelidade exacta ao que o Logos exige para que
aquela economia alcance os fins que lhe estão fixados: a saber,
fazer filhos segundo uma “vontade santa e sensata”104.
Numa passagem do terceiro Stromata, Clemente comenta o tex­
to do Gênesis sobre a queda do primeiro casal humano: a falta
cometida terá consistido no acto sexual? Questão durante muito

102 “Oukoun aphrodisiôn hêttasthai [...]. Speirein de monon.CLEMENTE


DE ALEXANDRIA, O Pedagogo, II, x, 102,1.
103 CLEMENTE DE ALEXANDRIA, Stromata, II, xxiii, 141, 5. Esta posição
não é para Clemente absoluta. Cf. a passagem sobre a possibilidade de cada qual
casar ou não casar.
104 “Semnôi kai sõphroni paidopoioumenos thelêmatí", ibid., Ill, VII (P. G., t. 8,
col. 1161).
As Confissões da Carne 59

tempo debatida105 à qual Clemente dá uma resposta subtil: não foi


o facto de ter havido uma relação sexual que constituiu o pecado.
Mas o de ela não ter tido lugar no bom momento, “quando tal con­
vinha”. Contra as ordens que lhes tinham sido dadas, Adão e Eva
uniram-se demasiado jovens106. Infringiram, em suma, a economia
do kairos, e ignoraram a lei do tempo. Crianças precoces e indó­
ceis, escaparam a essa razão que O Pedagogo justamente deve en-
\ sinar agora a uma humanidade que não pode ser regenerada excep-
5 to na condição de se saber “criança”. Tal foi a queda, conforme a
explica O Protréptico'. o Adão infantil, “sucumbindo à volúpia” e
’ deixando-se “seduzir pelos seus desejos”, perdeu o seu estado de
£ infância; a sua desobediência tornou-o “homem”, desprovido de
todo o apoio do Logos pedagógico107. Esta queda por precocidade
> mostra bem que a geração não é má em si mesma, mas que só po-
s dem sê-lo as condições em que se faz. Está inocente da falta de
Adão, e é por isso que é não só absolvida, mas também celebrada
r, nesta mesma passagem do terceiro Stromata-, Clemente joga com a
* palavra genesis que se refere tanto à Criação como à procriação.
Até mesmo depois do primeiro pecado, “a origem permanece san-
“ ta” — ela através da qual “foram constituídos o mundo, as essên­
cias e os seres naturais, os anjos e as potestades e as almas, os
mandamentos, as leis e o Evangelho, e a gnose de Deus”108.
O acto da procriação humana remete pois para o poder da Cria­
ção no interior da qual se inscreve e do qual detém o seu próprio

105 Em De carne Christi, por exemplo, TERTULIANO vê a origem da queda no


facto de a serpente se ter insinuado no corpo da mulher ainda virgem. Do que seria
Caim a descendência (XVII, 5).
106 “Thatton ê prosêkon ên, eti neoi pephukotes", CLEMENTE DE ALEXAN­
DRIA, Stromata, III, xvii (P. G., t. 8, col. 1205). Sobre o perigo, em geral, que
correm os jovens que o desejo inflama demasiado cedo, CLEMENTE DE ALE­
XANDRIA, O Pedagogo, I, ii, 20, 3-4.
„ 107 “Pais andrizomenos apeitheia", CLEMENTE DE ALEXANDRIA, O Pro­
tréptico, XI, 111,1.
108 CLEMENTE DE ALEXANDRIA, Stromata, III, xvii (P. G„ t. 8, col. 1205).
Clemente lembra que seria uma blasfêmia condenar a genesis na qual Deus toma
parte.
60 Michel Foucault

poder. Mas Clemente pensa-o também em função daquilo que na


história do mundo constitui a réplica da Criação pelo Pai: a rege­
neração por Cristo, pela sua Encarnação, o seu sacrifício e o seu
ensinamento. No longo capítulo VI do primeiro livro, consagrado
ao uso da palavra “crianças”, O Pedagogo desenvolve o tema do
ensinamento de Cristo como leite nutriente109. Esboça toda uma
“fisiologia” do sangue nas suas metamorfoses: substância que
contém em si mesma todos os poderes do corpo, o sangue-Lpgos
aparece também sob duas outras formas: aquecido, agitado, escu­
ma e torna-se esperma, transmitindo assim à humidade da matriz
os princípios dos quais poderá nascer, por desenvolvimento, um
outro corpo; mas refrescado e penetrado de ar, o sangue torna-se
leite na mãe e, sob essa forma, continua a transmitir à criança os
poderes que habitam o corpo dos pais: o aleitamento é a continua­
ção do acto através do qual a vida foi dada à criança pela fecunda­
ção; o mesmo sangue e os mesmos poderes, sob um outro aspecto,
são-lhe transmitidos. Assim, depois de ter oferecido o seu sangue,
Cristo dá aos homens-crianças o leite do seu Logos. Ensina-os, é
o seu pedagogo. Entre o sangue outrora derramado, na Paixão, e o
leite que corre indefinidamente da sua Palavra, a procriação sus­
cita esse povo dos “pequeninos” que o Logos engendra e regenera.
Esta passagem de O Pedagogo, em que Clemente faz a teoria
do ensino que dará nos livros seguintes, não menciona o esperma,
entre sangue e leite, salvo de modo muito passageiro. O essencial
do texto incide sobre a regeneração e não sobre a origem. Mas,
por um lado, indica claramente o lugar da procriação na grande
“fisiologia” do Logos. Sublinha o parentesco e portanto a seme­
lhança que nos liga assim a Deus: o “parentesco” pelo sangue, a
“simpatia” pela educação110 dos quais fala esta passagem
completar-se-ão pela sinergia na procriação da qual fala o capítu­

109 Sobretudo a partir de 34,3 (O Pedagogo, I, vi), onde comenta a Primeira Epís­
tola aos Corintios, 3,2: “Dei-vos leite, e não alimento sólido.”
110 “Sungeneia dia to haiina [...]. Sumpatheia dia tên anatrophên”, CLEMENTE
DE ALEXANDRIA, O Pedagogo, I, vi, 49,4.
i As Confissões da Carne 61

lo X do livro seguinte. O ciclo do sangue, do esperma e do leite


com o Logos que os habita e que eles transmitem liga-nos forte­
mente ao parentesco de Deus.
E quando O Pedagogo, enquanto ensino de Cristo, enquanto
leite do qual Cristo nutre a nossa infância, nos diz qual é o kairos,
o momento da procriação conveniente, é de facto no grande movi­
& mento da Criação ao Parto, da Origem à Regeneração que fixa a
economia da geração.

K O Pedagogo, como muitas vezes se disse, é testemunho pois de



tf uma grande continuidade com os textos da filosofia e da moral
f pagã da mesma época, ou de um período imediatamente anterior.
Trata-se da mesma forma de prescrição: um “regime” de vida que
jg/define; o valor dos actos em função dos seus fins racionais e das
!■ ““ocasiões
ocasii ” que permitem efectuá-los legitimamente. Trata-se tam­

I bém de uma codificação “clássica”, uma vez que nela encontramos


os mesmos interditos (o adultério, o deboche, a contaminação das
í crianças, as relações entre homens), as mesmas obrigações (ter em
vista a procriação de filhos no momento do casamento e das rela­
ções sexuais), com a mesma referência à natureza e às suas lições.
Mas esta continuidade visível não deve deixar crer que Clemen­
te tenha simplesmente inserido um fragmento de moral tradicio­
nal, completado por elementos adicionais de origem hebraica, no
interior das suas concepções religiosas. Por um lado, reuniu num
mesmo conjunto prescritivo uma ética do casamento e uma econo-
mia detalhada das relações sexuais, definiu um regime sexual do
próprio casamento — enquanto os moralistas “pagãos”, ainda
quando não aceitavam as relações sexuais senão no casamento e
em vista da procriação, analisavam separadamente a economia
i dos prazeres necessários ao sábio e as regras de prudência e de
conveniência próprias das relações matrimoniais. E, por outro la­
do, deu uma significação religiosa a este conjunto de prescrições,
i repensando-o em termos globais na sua concepção do Logos. Não
62 Michel Foucault

importou para o seu cristianismo uma moral que lhe fosse estra­
nha. Sobre um código já formado, constituiu um pensamento e
uma moral cristãos das relações sexuais, mostrando assim que não
havia mais do que uma possível, e portanto que seria inteiramente
abusivo imaginar que foi “o” cristianismo que, por si mesmo e
pela força das suas exigências internas, impôs necessariamente
esse estranho e singular conjunto de práticas, de notações e de
regras a que se dá o nome de “a” moral sexual cristã.
E que, seja como for, esta análise de Clemente mantém-se mui­
to distante dos temas que se encontrarão mais tarde em Santo
Agostinho e que, esses, terão um papel muito mais determinante
na cristalização “daquela” moral. Entre Clemente e Agostinho, há
evidentemente toda a diferença entre um cristianismo helenizante,
estoicizante, inclinado a “naturalizar ” a ética das relações sexuais,
e um cristianismo mais austero, mais pessimista, que não pensa a
natureza humana senão através da queda, e afecta por conseguinte
as relações sexuais de um índice negativo. Mas não nos podemos
limitar à constatação desta diferença. E, sobretudo, não é em ter­
mos de “severidade”, de austeridade, de maior rigor no interdito,
que podemos avaliar a mudança que se produziu. Porque, se con­
siderarmos somente o código propriamente dito e o sistema dos
interditos, a moral de Clemente não é mais “tolerante” daquilo que
se lhe seguirá: o kairos que legitima o acto sexual exclusivamente
no casamento, em vista exclusivamente da fecundação, nunca du­
rante as regras ou a gravidez, e nunca noutro momento do dia ex­
ceptuada a noite, não lhe abre vastas possibilidades111. E, de todas
as maneiras, as grandes linhas divisórias entre o permitido e o
proibido continuaram, no essencial e nas suas linhas gerais, a ser
as mesmas entre o século neo século v112. Em contrapartida, no

111 “Devemos de facto reconhecer que [a moral sexual de Clemente] é extrema­


mente rigorosa: os seus preceitos ultrapassam com frequência em severidade as
posições que se tornarão tradicionais na Grande Igreja”, J.-P. BROUDÉHOUX,
Mariage etfamille chez Clément d’Alexandrie, Paris, 1970, p. 136.
112 Um dos principais interditos “novos”, o regime complexo e extensivo do in­
cesto, pouco será desenvolvido antes da Alta Idade Média.
As Confissões da Carne 63

mesmo lapso de tempo, produzir-se-ão transformações capitais:


no sistema geral dos valores, com a preeminéncia ética e religiosa
da virgindade e da castidade absoluta; no jogo das noções utiliza­
das com a importância crescente da “tentação”, da “concupiscen­
cia”, da carne e dos “movimentos primeiros” que mostram não só
úma certa modificação do aparelho conceptual, mas também um
deslocamento do domínio da análise. Não é tanto o código que é
reforçado, nem as relações sexuais que passam a ser mais estrita­
mente reprimidas; é um outro tipo de experiência que pouco a
pouco se forma.
Esta mudança deve ser evidentemente ligada a toda a evolução
muito complexa das Igrejas cristãs que conduziu à constituição do
Império Cristão. Mas, mais precisamente, deve ser referida à ins­
tauração no cristianismo de dois elementos novos: a disciplina
penitencial, a partir da segunda metade do século n, e a ascese
monástica, a partir do fim do terceiro. Estes dois tipos de práticas
não produziram um simples reforço dos interditos, ou levaram a
introduzir nos costumes um maior rigor. Definiram e desenvolve­
ram um certo modo de relação de si consigo mesmo e uma certa
relação entre o mal e a verdade — digamos mais precisamente
entre a remissão dos pecados, a purificação do coração e a mani­
festação das faltas escondidas, dos segredos, e dos arcanos do in­
divíduo no exame de si, na confissão, na direcção de consciência
ou nas diferentes formas de “confissão” penitencial.
A prática da penitência e os exercícios da vida ascética organi­
zam relações entre o “fazer o mal” e o “dizer a verdade”, reúnem
num mesmo feixe as relações de si consigo mesmo, com o mal e
com a verdade, num registo que é sem dúvida muito mais novo e
muito mais determinante do que este ou aquele grau de severidade
adicionado ou subtraído ao código. Trata-se, com efeito, da forma
da subjectividade: exercício de si sobre si mesmo, conhecimento
de si por si mesmo, constituição do si mesmo como objecto de
investigação e discurso, libertação, purificação de si mesmo e sal­
vação através das operações que levam a luz ao fundo de si mes­
mo, e conduzem os segredos mais profundos até à luz da manifes-
64 Michel Foucault

tação redentora. É uma forma de experiência — entendida ao


mesmo tempo como modo de presença a si e esquema de transfor­
mação de si — que então se elaborou. E foi ela que pouco a pouco
colocou no centro do seu dispositivo o problema da “carne”. E, em
vez de um regime das relações sexuais, ou dos aphrodisia, que se
integra na regra geral de uma vida recta, passará a ter-se uma re­
lação fundamental com a carne que atravessa a vida inteira e
subjaz às regras que se lhe impõem.
A “carne” deve ser compreendida como um modo de experiên­
cia, quer dizer, como um modo de conhecimento e de transforma­
ção de si por si, em função de uma certa relação entre anulação do
mal e manifestação da verdade. Com o cristianismo, não se passou
de um código tolerante perante os actos sexuais a um código se­
vero, restritivo e repressivo. É noutros termos que devemos conce­
ber os processos e as suas articulações: a constituição de um có­
digo sexual, organizado em torno do casamento e da procriação,
fora largamente iniciada antes do cristianismo, fora dele, a par
dele. O cristianismo retomou-a por sua conta, no essencial. E foi
no decurso dos seus desenvolvimentos posteriores e através da
formação de certas tecnologias do indivíduo — disciplina peniten­
cial, ascese monástica — que se constituiu uma forma de expe­
riência que fez com que o código funcionasse de um modo novo e
o fez tomar corpo, de maneira completamente diferente, na condu­
ta dos indivíduos113.
E, para fazermos a história desta formação, é-nos necessário
analisar as práticas que a asseguraram. Não que pretendamos re-
traçar a gênese de tais instituições bastante complexas, trata-se
somente de tentar fazer aparecer as relações que aqui se estabele­
cem entre a remissão do mal, a manifestação da verdade e a “des­
coberta” de si.

113 [Passagem rasurada por Foucault na versão dactilografada: “Em breve o es­
quema do código, da repressão e da interiorização dos interditos deixa de ser capaz
de dar conta desses processos que permitem precisamente aos códigos tomarem-se
condutas ou às condutas delinear códigos — a saber, os processos de ‘subjectiva-
ção’. A carne é um modo de subjectivação.”]
[II]

[O BAPTISMO LABORIOSO]

“Que cada um de vós seja baptizado para obter o perdão.”114 O


■ baptismo é até ao século n “o único acto eclesiástico que pode
assegurar a remissão das faltas”115.
■ Esta remissão, os autores do século n associam-na em geral a
quatro efeitos produzidos pelo próprio acto do baptismo. Este la­
va, apaga, purifica: a imersão retira as manchas. “Entramos na
1 água, cheios de contaminações, e saímos dela carregados de fru­
tos.”116 Impõe também uma marca-, “a água do baptismo” é “o
selo do filho de Deus”117; aqueles que o recebem encontram-se
desse modo consagrados a Deus; trazem com eles o sinal da sua
pertença e do compromisso que assumiram: como um selo no fi­
nal de um documento, o ferro que marca os animais do rebanho
ou a tatuagem no braço dos soldados118. O baptismo, além disso,
í constitui um novo nascimento: dá de novo a vida. Esta palingene-

114 Actos dos Apóstolos, II, 38.


115 A. BENOÍT, Le Baptême chrétien au secondsiècle, Paris, 1953, p. 188.
. 116 Epístola do Pseudo-Barnabé, XI, 11.
117 HERMAS, O Pastor, Similitude IX, 16,2-4.
118 Sobre as diferentes significações do selo, cf. F. J. DÔLGER, Sphragis, Pader-
born, 1911. Segundo HERMAS, aparece como a sigla de que alguém se serve para
poder entrar num lugar reservado: “bina eiselthôsin eis tên basileian tou theou ”
(.Similitude XIX, 16,4).
66 Michel Foucault

sia é por vezes representada como um segundo nascimento. De­


pois do primeiro — aquele que, segundo Justino, se fez por “ne­
cessidade” e na “ignorância”, a partir de uma “semente húmida”,
na “conjunção dos nossos pais” —, o baptismo “rejuvenesce-nos”
fazendo-nos nascer de novo, mas desta vez na “livre escolha” e no
“conhecimento”: tornamo-nos assim os filhos de um Pai que é
“Pai e Senhor de todas as coisas”119. Era no mesmo sentido que
Santo Ireneu falava da “nova geração” que Deus nos concede e
que, pela fé, nos faz nascer da Virgem120. Este renascimento é
igualmente descrito como acesso à vida para lá da morte. Na nos­
sa primeira existência, diz Hermas, recebêramos somente uma
natureza mortal; nela o homem não vivia senão na morte e como
que ele mesmo morto: da água ritual em que mergulha, regressará
vivo121. Por fim, o baptismo ilumina: derrama na alma uma clari­
dade que vem de Deus e a enche inteiramente; as sombras
dissipam-se, e a alma, ao mesmo tempo, abre-se à luz e penetra
nela: “Esta ablução chama-se iluminação porque aqueles que rece­
bem esta doutrina têm o espírito cheio de luz.”122123
Sob estes diferentes aspectos, a remissão baptismal está ligada
ao acesso à verdade. Antes do mais, porque o baptismo é dado no
termo de um ensino: aprendem-se neste a doutrina e o conjunto
das regras que definem a “via da vida” por oposição à da morte125.
O baptismo não será dado senão aos que “crêem verdadeiras as
coisas que lhes ensinaram”124. Mas há mais: cada um dos efeitos
assim atribuídos ao baptismo é ao mesmo tempo um mecanismo
de remissão e um procedimento de acesso à verdade. Purificação,

119 JUSTINO, Primeira Apologia, 61. É de notar que este segundo nascimento é
descrito através do vocabulário que caracteriza o acto virtuoso e a sabedoria.
120 IRENEU, Adversas haereses, IV, 33,4.
121 HERMAS, O Pastor, Similitude IX, 16,3-5.
122 JUSTINO, Primeira Apologia, 61.
123 Didakhê, I-IV. Sobre o conteúdo e a forma desta catequese, ao longo do sécu­
lo ii, cf. A. TURCK, Évangélisation et catéchèse aux deux premiers siècles, Paris,
1962.
124 [JUSTINO, Primeira Apologia, 61,2.]
.' As Confissões da Carne 67

apaga as contaminações e faz desaparecer as manchas que obscu-


recem a alma, impedindo a chegada da luz. Selo, marca o compro­
misso e a pertença, mas grava também o nome de Cristo — o seu
ç nome, quer dizer, a sua imagem doravante presente na alma125.
Regeneração, faz aceder a urna vida de onde o mal está ausente e
que é ao mesmo tempo a “verdadeira” vida e a vida da verdade.
Iluminação, enfim, dissipa as trevas que são tanto as do mal como
f as da ignorância: enquanto o ensino recebido na catequese prepa­
rava o espírito transmitindo-lhe essas verdades que ele deve acei­
tar, o baptismo coincide, ele mesmo, com a chegada da luz.
- < A ligação, no baptismo, entre resgate das faltas e acesso à ver­
dade é pois, na época dos Padres Apostólicos e dos Apologetas,
/ muito marcada. Ligação directa, uma vez que são os mesmos
efeitos do baptismo que apagam as faltas e trazem a luz. Ligação
imediata, uma vez que não é depois de as faltas terem sido perdoa-
í das que a luz é concedida como um suplemento, nem é depois de
a fé se ter formado por completo e adquirida a verdade que as
, faltas são remidas como que em recompensa. Será além disso uma
■i. ligação “não reflectida” — quero dizer, será um bem tal que o
perdão das faltas e o conhecimento da verdade se produzam na
alma sem que esta tenha de conhecer a verdade das faltas que
cometeu e das quais pede perdão? O resgate das faltas e o acesso
à verdade estarão, de uma maneira ou de outra, ligados ao conhe­
cimento das próprias faltas pelo próprio sujeito?
A resposta deve ser matizada. Depende do sentido que devamos
dar a esse termo de metanoia, que os autores latinos traduzem por
paenitentia, e que é regularmente utilizado a propósito do baptismo.
“Aqueles”, diz Justino, “que crêem na verdade dos nossos ensina­
mentos e da nossa doutrina prometem viver assim. Ensinamo-los a
rezar e a pedir a Deus, no jejum, a remissão dos seus pecados e nós

. 125 Assim nos Excerpta ex Theodoto (86) [de CLEMENTE DE ALEXAN-


. DRIA]: “A alma fiel que recebeu o ‘selo’ da Verdade, ‘traz em si as marcas de
Cristo’.” Sobre esta relação selo-imagem-verdade, cf. F.-J. POSCHMANN, Pae­
nitentia secunda, Bona, 1940.
68 Michel Foucault

mesmos rezamos e jejuamos com eles”; depois, quando chega o


momento do baptismo, “sobre aquele que aspira à regeneração e se
arrepende das suas faltas passadas, pronunciamos na água o nome
do Pai” — e isso, a fim de que não continuem filhos da ignorância
e da necessidade, mas antes o sejam de eleição e de ciência126. O
texto é claro: aquele que recebe o baptismo, que se torna filho de
eleição e de ciência, e cujas faltas são redimidas, é aquele que não
só recebeu os ensinamentos e deseja a regeneração, como também
se arrepende. Metanoia ou paenitentia são centrais no baptismo.
Mas esta metanoia não se organiza como uma prática peniten­
cial desenvolvida e regulada — quer dizer, como um conjunto de
actos obrigando o sujeito a tomar um conhecimento tão exacto
quanto possível das faltas que pôde cometer, a explorar no fundo
da sua alma as raízes do mal, as suas formas escondidas, as fra­
quezas esquecidas, a entregar-se, para delas se corrigir, a um longo
trabalho em que se combinariam vigilância contínua e renúncia
progressiva, e a infligir-se rigores punitivos proporcionados à gra­
vidade das ofensas para tentar apaziguar a cólera de Deus. A pe­
nitência que é requerida no baptismo — naquele pelo menos que
é descrito na época dos Padres Apostólicos e dos Apologetas —
não apresenta o carácter de uma longa disciplina, de um exercício
de si sobre si mesmo nem de uma tomada de conhecimento de si
por si mesmo. Uma passagem de Hermas sobre este ponto é signi­
ficativa. O anjo da penitência fala: “A todos os que se arrependem,
dou a inteligência. Não parece que o facto de quem se arrepende
é, em si mesmo, inteligência? [...] Porque o pecador compreende
que fez o mal diante do Senhor e o acto que cometeu remonta-lhe
ao coração, arrepende-se e deixa de cometer o vício; pelo contrá­
rio, põe todo o seu zelo em fazer o bem, humilha a sua alma e
pÕe-na ‘à prova’ uma vez que pecou. Vês pois que o arrependi­
mento é um acto de grande inteligência.”127 A penitência está de

126 JUSTINO, Primeira Apologia, 61,10.


127 HERMAS, O Pastor, Mandatum IV, 2, 2. A palavra sunesis é traduzida por
inteligência.
s As Confissões da Carne 69
k

v facto ligada a um acto de conhecimento, a sunesis; mas esta não é


' conhecimento no sentido de saber aprendido, de verdade desco-
. berta, trata-se de uma compreensão, de uma apreensão que permi­
te que “se dê conta”128. Esta apreensão comporta três aspectos:
Jf devemos, deixando as acções cometidas outrora, remontar à su-

x pcrfície do coração, convencer-nos de que eram más — más “dian-
. te” de Deus129, quer dizer, ao mesmo tempo, para com ele, contra
. ele e sob o seu olhar; devemos compreender que temos agora de
- nos afastar do mal e de pelo contrário nos apegarmos ao bem;
; devemos por fim autenticar a mudança, “humilhar” a alma que
pecou, “prová-la” agora que foi renovada, quer dizer darmo-nos a
nós mesmos e a Deus os sinais que atestam essa mudança130. Em
torno da ruptura de vida e da renúncia-promessa que o postulante
' deve fazer no momento do baptismo, em torno desta metanoia. O
, Pastor de Hermas dá facto lugar a actos de verdade. São da ordem
do reconhecimento mais do que do conhecimento: deixando-o
remontar ao coração, reconhecer o mal que se fez e dar os sinais
que permitam reconhecer que já não se é aquele que se era, que se
mudou de facto de vida — que se foi lavado, marcado com o selo,
, regenerado, impregnado pela luz.
’ Parece pois que, nesta concepção do baptismo, a relação entre
remissão dos pecados e acesso à verdade, por forte, directo e ime­
diato que seja, não consiste simplesmente numa conversão da al­
ma, girando sobre si mesma, afastando-se da sombra, do mal, da
morte para se orientar para a luz que a inunda, e se abrir a ela. Não
se trata simplesmente de uma ruptura, de uma passagem ou de um
movimento da alma em que esta seria ao mesmo tempo actor da
sua própria conversão e agida pela bondade de Deus que apaga as
faltas das quais nos afastamos e concede à alma a luz da qual [ela]
se afasta. A remissão dos pecados e o acesso à verdade exigem um

128 PLATÃO, no Crátilo, explica que, na sunesis, a alma acompanha as coisas na


.. sua marcha (sumporeuesthai, 412a-b).
129 HERMAS, O Pastor, Mandatum IV, 2,2: “Emprosthen tou kuriou.”
130 [Ibid.] A palavra que Hermas emprega é basanizein, que se usa para designar a
r acção da pedra ou os meios utilizados para verificar que a testemunha fala verdade.
70 Michel Foucault

elemento terceiro: a metanoia, a penitência. Mas esta não deve ser


compreendida como o exercício calculado de uma disciplina. Não
está ligada a uma objectivação de si, mas antes a uma manifesta­
ção de si. Manifestação que é ao mesmo tempo consciência e
atestação do que alguém está em vias de deixar de ser, e da exis­
tência regenerada segundo a qual vive já. É a consciência-atestação
de uma passagem que não é simplesmente uma transformação,
mas uma renúncia e um compromisso. A metanoia não desdobra
a alma num elemento que conhece e num outro que deve ser co­
nhecido. Faz com que se conjuguem, na ordem do tempo, o que já
não se é e o que se é já; na ordem do ser, a morte e a vida, a mor­
te que morreu e a vida que é a vida nova; na ordem da vontade, o
desprendimento do mal e o compromisso com o bem; na ordem da
verdade, a consciência de que pecámos deveras e a atestação de
que deveras nos convertemos. O papel da metanoia no baptismo
não é ir procurar, no fundo da alma, o que ela é, para trazer os seus
segredos ao olhar da consciência ou os pôr diante dos olhos dos
outros. É manifestar a “passagem” — o arrancamento, o movi­
mento, a transformação, o acesso — e manifestá-la ao mesmo
tempo como processo real na alma e como compromisso efectivo
da alma. A metanoia constitui assim um acto complexo que é
movimento da alma acedendo à verdade, e verdade que se mani­
festa desse movimento.

Os textos que Tertuliano, na viragem dos séculos n e m, consa­


grou ao baptismo são testemunhos de um certo número de mudan­
ças notáveis. Tanto no que se refere à preparação para o baptismo
como à significação a dar ao rito e à sua eficácia.
As Confissões da Carne 71

A. A preparação para o baptismo™

O capítulo VI do De paenitentia parece dar àquele tempo de


preparação uma importância e um valor operatorio muito maiores
do que aqueles que lhe eram atribuídos no passado. “Estaremos
purificados pela razão de termos sido absolvidos? Por certo que
não. Estamo-lo quando, ao aproximar-se o perdão, a divida da
pena é saldada [...], quando por fim Deus ameaça, e não quando
perdoa.” E um pouco mais longe, acrescenta: “Não estamos lava­
dos para deixar de pecar, mas porque [...] estamos já lavados no
132 Em relação ao tema de um acto baptismal
fundo do coração.”131
que seria ao mesmo tempo purificação e remissão, Tertuliano pa­
rece efectuar um triplo deslocamento: no tempo, uma vez que o
procedimento de purificação parece agora dever preceder ao mes­
mo tempo o perdão e o próprio rito da imersão; na operação puri-
ficadora, cujo agente parece ser doravante o próprio homem agin­
do sobre si mesmo; na própria natureza desta operação, em que^o
papel do exercício moral parece prevalecer sobre a força da ilumi­
nação. Em suma, a purificação, em vez de ser integrada no próprio
movimento que faz a passagem da alma para a luz e lhe garante a
remissão, toma a forma de uma condição preliminar. E, de resto,
no início desta mesma passagem, não diz Tertuliano que o homem
deve “pagar” a sua salvação pelo preço da penitência, e que é esta
que em troca do perdão Deus recebe?
Trata-se de um texto que merece explicação. Tertuliano — e
nisso insiste muitas vezes133 — não entende contestar a eficácia do
rito, nem fazer passar para o lado do homem que se purifica a si
mesmo o essencial da operação. O De baptismo dirige-se explíci­
tamente contra uma seita de cainitas que se recusava a aceitar que
“um pouco de água possa lavar a morte”134. Tertuliano responde-

131 [Este “A” não será seguido por um “B” no manuscrito.]


132 “Non ideo abluimur, ut delinquere desinamus, sed qúia desiimus, quoniam jam
corde loti sumus”, TERTULIANO, De paenitentia, VI.
133 [Nota vazia.]
134 [TERTULIANO, De baptismo, II, 2.]
72 Michel Foucault

-lhes por meio de um “elogio da água”, cujos valores espirituais,


manifestados nas Escrituras, recorda: água que foi a sede do Espí­
rito antes da Criação; água na qual Deus teve de combinar argila
para moldar o homem à sua imagem; água que purificou a Terra
no Dilúvio, libertou os hebreus dos seus perseguidores egípcios,
foi dada a beber ao povo eleito, curou os doentes na fonte de Bet-
saida135, Esta água, dotada de tais poderes na antiga lei, como seria
deles desprovida, agora que o Espírito Santo, inaugurando uma
outra lei, sobre ela desceu para baptizar Cristo?136 A água do bap­
tismo retoma todas as funções que a Escritura prefigurara: cuida,
alimenta, liberta, purifica, permite moldar de novo o homem e faz
da alma do baptizado o trono de Deus. Mas estas funções são
agora integradas na economia da salvação. Tertuliano pode pois
recordar desde as primeiras linhas do De baptismo o princípio de
que a água baptismal lava os pecados, numa fórmula muito próxi­
ma da que encontrávamos no século n: “Feliz sacramento, o da
nossa água que, lavando as contaminações da nossa cegueira de
outrora, nos liberta para a vida eterna.”137
O problema é pois o de sabermos qual o lugar e qual o sentido
desta purificação preliminar, da qual fala o De paenitentia, se é
verdade, como o diz o De baptismo, que é a água do baptismo que
tem o poder de lavar as nossas contaminações.
Uma reprovação que Tertuliano endereça a alguns dos que pe­
dem o baptismo pode guiar-nos. Ele critica com efeito os postulan­
tes ao baptismo que se contentam com arrepender-se de algumas
das faltas que cometeram — considerando que tanto é bem sufi­
ciente para que Deus perdoe todas as outras — e se apressam
depois a pedir o baptismo. Outros, pelo contrário, procuram
retardá-lo o mais possível: sabendo que deixarão de ter o direito
de pecar depois de terem recebido o sacramento, mas sabendo que

135 Os poderes espirituais da água são recordados por TERTULIANO no De bap­


tismo [III, 2; III, 5; VIII, 74; IX, 1; V, 5].
136 Sobre o baptismo de Cristo como fim da antiga lei e início da nova, cf. TER­
TULIANO, Adversas Marcionem.
137 TERTULIANO, De baptismo, 1,1 -
As Confissões da Carne 73

o mesmo sacramento apagará todas as suas faltas, sejam elas quais


forem, repelem o momento do baptismo a fim de poderem pe­
car138. Ora, há nestas duas atitudes ao mesmo tempo presunção e
orgulho. E, subjacentes, dois erros graves.
A presunção consiste em imaginarmos que, através do sacra­
mento, podemos coagir Deus; que o homem tem assim poder so­
bre ele e que lhe basta recorrer ao baptismo para obter de maneira
segura o perdão total e definitivo. É fazer da liberalidade de Deus
“uma servidão”. Tertuliano não supõe que aqueles que chegam ao
baptismo com tais disposições insuficientes ou más não sejam
efectivamente resgatados, não põe em questão a eficácia do rito.
Mas supõe que aqueles que vemos, posteriormente, recair, quebrar
o compromisso que assumiram e regressar às faltas que foram
redimidas são precisamente os que assim “se introduziam no bap­
tismo”. Puderam “enganar os homens”, não escapam àquele que
tudo vê: tornarão a cair. O resgate que o homem obtém no baptis­
mo, devemos considerá-lo como efeito da liberalitas de Deus —
ao mesmo tempo generosidade que perdoa e liberdade de perdoar.
Logo no início do De paenitentia, Tertuliano dá da queda e do
perdão uma interpretação muito significativa: Deus, depois de ter
visto todos os crimes da temeridade humana dos quais Adão dera
o exemplo, formulara uma condenação do homem, expulsara-o do
Paraíso e submetera-o à morte. Mas retornara à misericórdia e
arrependera-se em si mesmo139. O perdão que Deus concede aos
homens deve ser compreendido como um espécie de metanoia em
que Deus, livremente, decide suspender os efeitos da sua cólera.
Tomar este efeito pelo efeito necessário de um rito ao qual o ho­
mem decidiría submeter-se — tal é a presunção.
Quanto ao orgulho, consiste para o pecador que solicita o bap­
tismo em confiar em si mesmo. Não se dá conta de que, sem ces­
sar, pode cair ou recair — antes do baptismo ou depois dele. Quem
avança em direcção à luz não segue um caminho direito e fácil. E

138 TERTULIANO, De paenitentia, VI.


139 “... Cum rursus ad suam misericordiam [...] irarum pristinarum”,ibid.,Yl.
74 Michel Foucault

como esses animais que acabam de nascer, quase cegos, tropeçan­


do a todo o momento e que se arrastam no chão140. Deve ter pre­
sente também que Satanás, que se apoderou da alma dos homens
após a queda e que faz de cada uma delas como que a sua Igreja141,
não vê sem cólera que, pelo baptismo, dela será desapossado. Re­
dobra pois de esforços, quer para evitar essa derrota, quer mais
tarde para reconquistar esse lugar perdido142. O período que pre­
cede o baptismo não deve ser pois um período de confiança arro­
gante em si mesmo. É pelo contrário o tempo “do perigo e do te­
mor”143. A esta necessidade do “temor” no caminho que conduz ao
baptismo e na própria vida do cristão, Tertuliano concede uma
importância muito grande. Retoma aqui, é certo, um tema que lhe
é anterior, mas atribui-lhe uma modulação particular. Já não se
trata simplesmente do temor de Deus, no sentido em que, no An­
tigo Testamento, se devia temer a cólera de Deus se os seus man­
damentos não fossem respeitados. Pela necessidade do metus co­
mo dimensão constante da existência cristã, ele entende tanto o
temor de Deus como o temor de si mesmo — quer dizer, o medo
que se tem da sua própria fraqueza, das falhas das quais se é ca­
paz, das insinuações do Inimigo na alma, da cegueira ou da com­
placência que nos deixará surpreender por ele. Aquele que deverá
ser baptizado deverá ter confiança, não em si mesmo, mas em
Deus. A incerteza, não quanto ao poder de Deus, mas quanto à sua
própria natureza, à sua fraqueza, à sua impotência, não deve
abandoná-lo.
Podemos compreender portanto a importância de um tempo de
preparação para o baptismo, que não é simplesmente a iniciação
nas verdades ou o ensino das regras de vida. Trata-se de um tempo
que permite ao postulante não esperar, no orgulho e na presunção,
um perdão total que Deus seria de facto coagido a conceder. A

140 Ibid., VI.


141 [Ibid., VII.]
142 Ibid.
143 Ibid., VI.
i

As Confissões da Carne 75

3 preparação para o baptismo é o tempo em que aprendemos o res-


peito pela liberalitas de Deus graças à consciência que tomamos
* quer da gravidade das faltas cometidas, quer do facto de que Deus
j teria podido não perdoar, e de que, se redime as faltas, é somente
sr’ porque assim bem quer. Mas é também o tempo em que adquiri-
mos o sentimento de temor, o metus, quer dizer a consciência de
i que nunca somos inteiramente senhores de nós próprios, de que
j nunca nos conhecemos inteiramente e de que, na impossibilidade
em que nos encontramos de saber de que queda somos capazes, o
|£ compromisso que assumimos é ainda mais difícil, ainda mais pe-
iw rigoso. Insistindo sobre a necessidade da preparação para o baptis-
ll, mo, e evocando a purificação que nela se deverá produzir, Tertu-
fe’ liano deixa intacto o principio fundamental da remissão pelo
, próprio sacramento, mas reestrutura uma relação com Deus e de
£, cada um consigo mesmo no interior desse procedimento de resga-
w te. Deus é ao mesmo tempo omnipotente e inteiramente livre
&. quando perdoa; o homem que se submete ao procedimento do
E resgate não deve estar nunca inteiramente seguro de si mesmo. A
E. preparação para o baptismo purifica: não no sentido de poder, por
K ' si só, assegurar o resgate, mas no sentido de conduzir pelo contrá-
rio a tudo esperar da livre generosidade de Deus para apagar pe-
E cados dos quais nos desprendemos não só pelo arrependimento
daqueles que cometemos, mas também por uma relação de temor
Ipí que cada um de nós, de si para consigo mesmo, estabelece perma-
IL nentemente. Uma tal preparação não se limita a fazer-nos romper
S' com o que cada um de nós era, mas deve ensinar cada um a
O;
desprender-se, de certo modo, continuamente de si mesmo.
Compreende-se assim a concepção, em parte nova, que Tertu­
liano faz da preparação para o baptismo. Acompanha a catequese,
e o ensino das verdades e das regras, de um trabalho de purifica­
ção moral. E, inversamente, tende a organizar o movimento da
metanoia sob uma forma regulada desde o início da preparação.
Este período deve ser pensado como um tempo em que se apren­
dem não só as verdades em que devemos acreditar, mas também a
penitência que devemos praticar. “O pecador deve chorar as suas
76 Michel Foucault

faltas antes do momento do perdão, porque o tempo da penitência


é o do perigo e do temor. Não contesto àqueles que vão mergulhar
na água a eficacia do bem-fazer de Deus. Mas, para o alcançar, é
necessário labor.” Elaborandum estw. Labor que tem a sua forma,
as suas regras, os seus utensilios, a sua raízo145. É assim que Ter­
tuliano chama à disciplina da penitencia, à qual deve submeter-se,
antes de mergulhar na água, o postulante ao baptismo: “Senhor,
concede aos teus servidores que conheçam ou aprendam da minha
boca a disciplina da penitência, nesse sentido em que é proibido
pecar aos próprios Auditores.”146
Desta disciplina, no que tem de necessário, de regulamentado,
mas de simplesmente preliminar, Tertuliano encontra o modelo no
baptismo joânico. São sabidos os problemas extremamente difí­
ceis — e as inumeráveis discussões — que levantava a existência
desse baptismo anterior ao Salvador (e que por conseguinte não
podia assegurar a salvação), mas ao qual o próprio Salvador se
submeteu. Baptismo puramente humano, uma vez que não faz com
que o Espírito Santo desça sobre a alma daqueles que o recebem,
baptismo dado por um Precursor cujo papel é anunciar Aquele que
vem segundo a promessa, é necessário compreendê-lo como “o
baptismo da penitência”147. E, se Cristo o recebe, não porque tenha
ele mesmo de praticar a penitência: é para mostrar que doravante,
no tempo novo, o baptismo marcará a vinda do Espírito Santo e
por isso da luz e da salvação; mas é também para mostrar que o
baptismo do Espírito deve ser precedido pelo baptismo da penitên­
cia, como o sacramento dos cristãos o foi pela missão de João. O
Precursor “recomendava a penitência, que tem por alvo purificar
os espíritos, a fim de que a penitência, transformando, apagando e
banindo no coração do homem todas as contaminações do velho

144/Wd.,VI,9.
145 “Ceterum ratio ejus, quam cognito Domino discimus, certam formam tenet”
[“De resto, a regra da penitência que conhecemos ao mesmo tempo que o Senhor,
está submetida a fórmulas certas”, trad. E.-A. de Genoude], ibid., II.
146ZWd.,VII.
147 Ibid., II.
As Confissões da Carne 77

erro [...], preparasse para o Espirito Santo que ia descer sobre o


santuario de um coração puro”148. Portanto, o que numa palavra
nos ensina o baptismo de João é, diz o De baptismo, que a “peni­
tência precede; vem depois a remissão”149.
Sobre esta disciplina penitencial prévia ao baptismo, Tertuliano
dá muito poucos detalhes. Algumas regras negativas: não dar o
baptismo demasiado cedo, porque é sempre maior o perigo de o
precipitar do que o de o retardar; não o conceder a não importa
quem, o que equivale a oferecer as coisas santas aos cães, aos
porcos pérolas; não o dar às crianças, nem às pessoas não casadas
cuja continência não seja certa. Algumas prescrições globais: “o
pecador deve chorar as suas faltas antes do tempo do perdão”150; e
quando o momento do baptismo se aproxima, os que a ele vão
aceder “devem invocar Deus por meio de orações fervorosas, de
jejuns, de genuflexões, de vigilas”151. Mas o que é significativo são
as duas espécies de efeitos que Tertuliano espera desta disciplina,
além da purificação propriamente dita da alma. Se é rigorosa e
exigente, é porque deve constituir, para aquele que aspira à vida
cristã, um “exercício”. Contra o cristão, o Inimigo não desarma,
pelo contrário: encarniçar-se-á para o vencer, e o baptizado deverá
ter-se habituado aos seus assaltos, às suas armadilhas, às suas se­
duções para poder resistir-lhe. Uma vez que é tão grave recair
depois de se ter sido absolvido uma primeira vez, o baptizado deve
estar pronto para a luta e armado para triunfar sobre o Inimigo.
A penitência é essa preparação — treino das forças e aquisição da
vigilância — que permitirá não recair mais. Se a penitência, se a
metanoia deve fazer corpo desde o início com a preparação para
o baptismo, é porque é não só uma purificação, mas um exercício
e um exercício que, se é indispensável para se ser resgatado, deve
ser útil também depois do resgate, e ao longo de toda a vida cristã.

148 Ibid.
149 [TERTULIANO, De baptismo, X, 6.]
150 TERTULIANO, De paenitentia, VI.
151 TERTULIANO, De baptismo, XX, 1.
78 Michel Foucault

Desde as suas formas pré-baptismais, a penitência aparece como


essa forma de exercício de si sobre si mesmo que deve ser coex­
tensiva à vida inteira do cristão.
Mas tem igualmente um outro sentido que já encontrámos: é o
preço a pagar pelo resgate. “Que cálculo, tão insensato como in­
justo, não se cumprir a penitência e esperar a remissão das faltas,
quer dizer não pagar o preço e estender a mão para receber a
mercadoria! O Senhor pôs este preço ao perdão: oferece-nos a
impunidade em troca da penitência.”152 Pode parecer que Tertulia­
no regressa nesta passagem à ideia de uma troca igual e portanto
de um mecanismo coercivo: tendo o homem pago o preço devido,
Deus não teria senão de dar-lhe o perdão. Não é esse, no entanto,
o sentido do texto. As moedas que se dão na penitência nunca te­
rão o valor do que Deus dá em contrapartida — a vida eterna. E
portanto a generosidade de Deus nunca será uma imposição. A
moeda da penitência não mede o valor da remissão obtida, atesta
a autenticidade do que é dado como pagamento. Não é encarada
como uma unidade contabilística, mas como um elemento de pro­
va, ou antes que põe à prova. A continuação do texto mostra-o
claramente: o vendedor, quando compramos, “começa por exami­
nar o dinheiro que lhe é dado, para ver se não terá sido corroído,
abrasado, alterado; por isso nós cremos que o Senhor começa por
pôr à prova a penitência”. Ao falar da penitêiicia-retribuição, Ter­
tuliano não visa uma compra que faríamos a Deus, mas uma prova
à qual, perante ele, nos submetemos. Probatiopaenitentiae. Trata-
-se de apresentarmos provas sólidas, tangíveis, autênticas da mu­
dança que se produz na alma, do trabalho que cada um de nós
opera sobre si mesmo, do compromisso que assumimos, da fé que
se forma. Como nos é dito um pouco mais longe, numa fórmula
condensada, “a fé começa e reitera-se pela fé da penitência”. O
termo de penitência designa assim duas coisas: quer a mudança da
alma, quer a manifestação dessa mudança em actos que permitem
autenticá-la. Deve ser prova de si mesmo.

152 TERTULIANO, Depaenltentia, VI.


X;

As Confissões da Carne 79
s'

•' Estas análises de Tertuliano não são nem isoladas nem premo­
nitórias, ainda que tenham uma tonalidade diferente das do seu
contemporâneo Clemente de Alexandria, e ainda que sejam mais
elaboradas do que as de Justino.
Precisamente na época em que Tertuliano escrevia desenvolvia-
•il -se uma instituição nova que tinha por papel organizar, regular e
..í?
controlar essa purificação anterior ao baptismo da qual falava o
De paenitentia. Trata-se menos sem dúvida de uma inovação radi­
cal do que de uma institucionalização, segundo um modelo que
tende a dar uma forma geral às práticas de catequese e de prepa­
ração para o baptismo. Para esta instauração de um catecumenato,
que ao longo do século m assumiu cada vez mais as feições de
uma “ordem”, ao lado da dos baptizados, os historiadores reconhe­
cem várias razões: a afluência dos postulantes, com o que isso
podia comportar de enfraquecimento na intensidade da vida reli-
giosa; a existência das perseguições, acarretando o abandono da fé
pelos que não estivessem suficientemente preparados; a luta contra
as heresias, implicando uma formação mais rigorosa tanto do pon­
to de vista das regras de vida como dos conteúdos doutrinais. Ao
que talvez devamos acrescentar o modelo das religiões de misté­
s f fr:
MM rio, com o cuidado que nelas se punha na formação dos inicia­
dos153. O catecumenato constitui um tempo de preparação, bastan­
te longo (pode durar três anos), em que a catequese e o ensino das
verdades e das regras se associam a um conjunto de prescrições
morais, de obrigações rituais e práticas, e de deveres. Além disse
— e é esse aqui o ponto a reter —, essa preparação é escandida
por procedimentos destinados a “pôr à prova” o postulante: quei
dizer, a manifestar aquilo que ele é, a atestar o “labor” que efectua
a dar testemunho da sua transformação e da autenticidade da su<
purificação. Estes procedimentos correspondem a essa “probatio
da qual Tertuliano fazia uma das significações da disciplina de

153 Tais são, em todo o caso, as quatro razões evocadas por [A. TURCK, “Au!
origines du catéchuménat”, Revue des sciences philosophiques et théologiques, t
48,1964, pp. 20-31],
80 Michel Foucault

penitência indispensável, segundo ele, à preparação baptismal. E


mostram que a metanoia não deve ser compreendida somente co­
mo o movimento através do qual a alma se volta para a verdade
desprendendo-se do mundo, dos erros e dos pecados, mas também
[como] um exercício em que a alma se deve revelar com as suas
qualidades e a sua vontade. É, em suma, a face institucional do
princípio de que o acesso da alma à verdade não pode cumprir-se
sem que a alma manifeste a sua própria verdade: este é de certo
modo “o preço”, para retomarmos a metáfora de Tertuliano, com
o seu sentido muito particular, que a alma deve pagar para aceder
à luz que por fim a encherá.
A Tradição Apostólica de Hipólito transmite o testemunho mais
detalhado sobre o que podiam ser estes procedimentos do pôr à
prova, conforme eram praticados pelo menos no catecumenato
ocidental154. Descreve vários de entre eles precedendo o momento
terminal da “profissão de fé”, quando o baptizado afirmava sole­
nemente, em resposta a uma tripla interrogação, que acreditava no
Pai, no Filho e no Espírito Santo: aí, o próprio catecúmeno mani­
festava a autenticidade da sua crença numa proclamação que teria
por resposta, através da epiclese e da imposição das mãos, a vinda
do Espírito Santo e a iluminação. O acesso à verdade e a manifes­
tação da alma na sua verdade reuniam-se assim no próprio acto do
baptismo. Mas A Tradição Apostólica indica e descreve com sufi­
ciente pormenor outros actos do pôr à prova, que se escalonavam
ao longo da preparação para o baptismo. Tais actos podem
agrupar-se sob três grandes formas.

1. A inquirição interrogativa. Trata-se de um procedimento re­


lativamente simples, que se desenrola segundo um jogo de pergun­
tas e respostas. Tinha lugar, senão em segredo, pelo menos com
uma participação restrita: os “doutores”, encarregados do catecu­
menato, o próprio postulante, e aqueles que “o tinham trazido”,

154 [Nota vazia.]


As Confissões da Carne

desempenhando o papel de testemunhas e garantes155. A inquiri­


ção parece ter incidido sobre dados exteriores: estatuto do postu­
lante, profissão exercida — o que tinha por causa um certo núme­
ro de incompatibilidades —, maneiras de viver. Mas incidia tam­
bém sobre elementos interiores — e essencialmente sobre a rela­
ção do postulante com a sua antiga religião e sobre as razões que
podiam dirigi-lo para a fé cristã. “Que comecem por ser conduzi­
dos aos doutores antes de o povo chegar. Que se lhes pergunte a
> razão por que buscam a fé. Que aqueles que os trazem prestem
' testemunho a seu respeito a fim de que se saiba se são capazes de
escutar. Que se examine também a sua maneira de viver: — Tem
. mulher? — E escravo? [...] Que se inquira sobre os oficios e pro-
c fissões dos que são trazidos para que os instruam.”156
Depois de terem sido recebidos como auditores, os catecúmenos
í tinham de levar, durante um período que podia estender-se até três
í anos, urna vida em que o ensino das verdades fundamentais estava
£ associado a obrigações religiosas, mas também a regras de conduta,
1 - a tarefas e a obras. No termo desse período, uma segunda inquiri-
. ção tinha lugar, sob formas ao que parece bastante semelhantes às
da primeira. As testemunhas-garante são, também elas, interroga-
. ‘das. Mas o exame incide agora sobre o próprio período do catecu-
menato: “Quando se escolhem aqueles que vão receber o baptismo,
examina-se a sua vida: Viveram honestamente enquanto eram ca-
! tecúmenos? Honraram as viúvas? Visitaram os doentes? Fizeram
1 boas obras de toda a espécie? Se aqueles que os trouxeram presta­
rem testemunho por cada um deles: agiu assim, ouvirão o evange­

155 Sobre este ponto, cf. M. DUJARIER, Le Parrainage des adultes aux trois
premiers siècles de PÉglise, Paris, 1962.
156 HIPÓLITO, A Tradição Apostólica, 15-16. Os Cânones atribuídos a HIPÓ­
LITO insistem sobre o exame dos motivos que levam a abraçar o cristianismo, de
maneira a afastar aqueles que quisessem ludibriar: “examinentur omni cum perse­
verando, et quam ob causam suum cultu respuant ne forte intrent illudendi causa”
|“que aqueles que vêm à igreja para se tornarem cristãos sejam examinados com
muito rigor [...] pelo temor de que queiram entrar por escárnio”, trad. R.-G. Co-
quin] (cânone 10).
82 Michel Foucault

lho.”157 Só depois os catecúmenos eram admitidos ao baptismo.


Eram então submetidos durante algumas semanas — em geral as
que precediam a Páscoa — a uma preparação mais intensa: ora­
ções, jejuns, vigílias cujo rigor devia ser testemunho da sua fé. Seria
a este período que Crisóstomo chamaria “o tempo da palestra”158.

2. As provas de exorcismos. A imposição das mãos e o sopro


sobre o rosto são ritos antigos destinados a expulsar os espíritos
que se apoderaram do corpo e da alma de um homem. Estiveram
associados ao baptismo desde uma época muito antiga159. Mas
talvez não tenham tido sempre a extensão e a multiplicidade que
lhes conhecemos no século iv, quando são usados desde o início
da entrada do postulante na ordem dos catecúmenos, e quando a
eles se recorre em várias ocasiões durante o tempo em que o cate­
cúmeno se mantém auditor. Em contrapartida, A Tradição Apos­
tólica indica, já em finais do século n, a exigência de um exorcis­
mo solene pouco tempo antes de ser concedido o baptismo:
“Quando se aproxima o dia em que devem ser baptizados, o bispo
exorciza cada um deles a fim de reconhecer se são puros (ut possit
cognoscere si mundi sunt). Se algum se encontrar que não seja
puro, que seja afastado: porque não se aplicou o bastante à palavra
da doutrina da fé.”160 Na época de Santo Agostinho, um rito do
mesmo tipo tem lugar imediatamente antes do baptismo161. O pos­
tulante despoja o cilicio e põe os pés em cima dele — num gesto
que manifesta que se despoja o homem velho e que faz parte das
práticas tradicionais de exorcismo. O bispo pronuncia as impreca-
ções e, ao escutá-las sem se alterar, o catecúmeno mostra que está
livre de espíritos impuros. O bispo pronuncia então as palavras:
“Vos mine immunes esse probavimusT

157 HIPÓLITO, A Tradição Apostólica, 20.


158 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, Oito Catequeses Baptismais, catequese III, 8.
159 F. J. DÔLGER, Der Exorzismus im altchristlichen Taufritual: eine religions-
geschichtliche Studie, Paderbom, 1909.
160 HIPÓLITO, A Tradição Apostólica, [20].
161 SANTO AGOSTINHO, Sermão 216, Ad competentes, XI.
As Confissões da Carne 83

Estes exercícios não se referem sem dúvida a uma forma de


possessão semelhante à dos energúmenos162. A imposição das
mãos significaria uma transferência de poder: a substituição ao
poder do Espírito Mau, que reina sobre a alma do homem desde a
queda, do poder do Espírito Santo. O primeiro é destronado, desa-
possado, expulso dessa alma e desse corpo nos quais estabeleceu
a sua sede, e isto pelo poder daquele que é mais forte do que ele,
mas não pode coexistir com ele, nem descer por conseguinte para
penetrar numa alma da qual o outro não tenha sido já expulso163.
Mas o exorcismo é também uma prova de verdade: ao expulsar o
Espírito do Mal, opera na alma a separação do puro e do impuro,
submete-a a um procedimento de autenticação como aquele a que
se expõe um metal passando-o pelo fogo164: expulsam-se os ele­
mentos que a alteram, mede-se o seu grau de pureza. As expres­
sões usadas pela tradição e pela fórmula citada por Santo Agosti­
nho indicam bem que o exorcismo “põe à prova”, “mostra” e per­
mite “reconhecer”. Constitui a seu modo um exame da alma.
Daí as expressões que são regularmente usadas no século iv, e
posteriormente, para designar estas práticas de exorcismo. Na Ex-
planatio symboli, nas quais Santo Ambrosio explica aos que vêm
receber o baptismo o sentido dos ritos a que foram submetidos, o
autor coloca o exorcismo entre os “mysteria scrutaminum"'.
“Procurou-se saber se há alguma impureza no corpo do homem;
através do exorcismo, inquiriu-se da santificação não só do corpo,
mas da alma.”165 E o bispo Quodvultdeus, dirigindo-se aos que
vão receber o sacramento, atribui o mesmo sentido ao exorcismo:
“Celebra-se sobre vós o exame e o diabo é extirpado do vosso-
corpo, enquanto é invocado Cristo, ao mesmo tempo humilde e

162 É a opinião de A. DONDEYNE, “La discipline des scrutins dans l’Église lati­
ne avec Charlemagne”, Revue d’histoire ecclésiastique, t. 28, 1932.
163 Sobre esta impossibilidade de coexistência numa mesma alma do Espírito
Mau e do Espírito Santo, cf. ORÍGENES, Homílias sobre os Números, VI, 3.
164 Esta aproximação é muito frequente. Assim CIRILO DE JERUSALÉM, Pró-
-Catequese, § 9.
165 [SANTO AMBROSIO, Explanado symboli, 1.]
84 Michel Foucault

altíssimo. Vós pedireis então: põe-me à prova, Senhor, e conhece


o meu coração.”166

3. Finalmente, a confissão dos pecados que nem a Didakhê nem


a Apologia de Justino evocavam como exigência prévia ao baptis­
mo é pelo contrário regularmente mencionada desde o De baptis­
mo de Tertuliano. “Aqueles que vão aceder ao baptismo devem
invocar Deus por meio de orações fervorosas, de jejuns, de genu-
flexões, de vigílias. Preparar-se-ão para ele também pela confis­
são de todos os seus pecados de outrora. E isto em memória do
baptismo de João, do qual está dito que era recebido confessando
os pecados”'1™ Esta “confissão” é pois completamente diferente
do interrogatório que abria e fechava o tempo durante o qual o
catecúmeno era auditor. Não é uma informação que os responsá­
veis peçam sobre a vida e a conduta passadas de um postulante, é
um acto que este faz por si mesmo, entre os outros exercícios de
piedade e de ascetismo. Tratar-se-ia de uma declaração detalhada
e feita a um sacerdote de “todas as faltas” cometidas no passado?
Tertuliano menciona somente que os cristãos de hoje devem
regozijar-se por não terem de fazer, como no tempo de João, “uma
declaração pública das nossas iniquidades e das nossas vergo­
nhas”168. Deveremos então compreender que o catecúmeno tinha
de fazer o exame da sua vida passada, evocar na memória as suas
faltas, e reportar a sua confidência ou ao bispo, ou àquele que ti­
vesse a seu cargo guiá-lo? E possível. E os textos mais tardios dão
de facto a entender que, ao tempo, antes do baptismo, aquele que
o solicitava tinha de fazer junto do bispo ou do sacerdote169 um
acto particular no qual “confessava” os pecados em causa.
Em todo o caso, é necessário lembrar que o termo confessio tem
então uma significação muito ampla — equivalente à da palavra

166 [QUODVULTDEUS, Sermones, 1-3,“De symbolo ad cathechumenos".]


167 TERTULIANO, De baptismo, XX, 1.
168 [Ibid.]
169 Cânones de HIPÓLITO (cânone 3).
As Confissões da Carne 85

. grega de exomologese170: acto global pelo qual alguém se reconhe-


j ce pecador. E a “confessio peccatorum” para a qual é convocado
aquele que quer fazer-se cristão não deve ser sem dúvida compa-
râda com a rememoração e a confidência detalhada e exaustiva de
todas as faltas, segundo as suas categorias, as suas circunstâncias
, e1 a sua gravidade respectivas; mas [devemos] antes [pensar n]um
— ou em vários actos — através do qual ele se reconhece
acto171172
' pecador, diante de Deus, e eventualmente diante de um sacerdote.
Trata-se no essencial de se manifestar a consciência de se ter pe-
. cado, de se ser pecador e a vontade de deixar esse estado. Teste­
munho de si mesmo sobre si mesmo, atestação da passagem, mais
do que recolecção, através da memória e da narrativa, de “todas as
faltas” efectivamente cometidas.
>■. ! E o sentido que parece desprender-se de uma passagem do Dê
sacramentis de Santo Ambrósio: “Quando te fizeste inscrever
[para ser baptizado], o sacerdote tomou lama e estendeu-ta sobre
os olhos. O que é que isto significa? Que tinhas de confessar o teu
pecado (Jatereris), reconhecer a tua consciência (conscientiam
regognosceré), fazer penitência das tuas faltas (paenitentiam gere-
re), quer dizer, reconhecer (agnosceré) a sorte da raça humana.
Porque aquele que vem ao baptismo bem pode não declarar peca­
do, pois leva a cabo, ao fazê-lo, a confissão de todos os seus peca­
dos, uma vez que pede o baptismo para ser justificado, quer dizer,
para passar da falta à graça [...]. Nenhum homem é sem pecado;
aquele que busca refúgio no baptismo de Cristo reconhece-se ho­
mem (agnoscit se hominem)”'12
Texto importante. Primeiro porque nos permite dar conta da
amplitude do sentido que a palavra confessio assume: desde o
acto através do qual se declara efectivamente uma falta determi-
nada até ao reconhecimento do facto que não se pode na qualida­
de de homem não se ser pecador. Mas também pela insistência em

170 Cf. infra.


171 [Manuscrito: “mas antes um acto”.]
172 SANTO AMBRÓSIO, De sacramentis, III, 12-14.
86 Michel Foucault

mostrar que a passagem da falta à graça — que é carácter próprio


do baptismo — não pode cumprir-se sem um certo “acto de ver­
dade”. Acto “reflectido” no sentido em que o catecúmeno é cha­
mado a manifestar explicitamente, sob a forma de uma atestação,
a consciência que tem de ser pecador. Não há remissão, não há
acesso salvador à luz, sem um acto no qual se afirma a verdade da
alma pecadora, que vale ao mesmo tempo como marca verídica da
vontade de deixar de sê-lo. O “dizer a verdade sobre si próprio” é
essencial neste jogo da purificação e da salvação.
De um modo geral, desde o final do século n vemos o lugar
crescente que ocupa, na economia da salvação de cada alma, a
manifestação da sua própria verdade: sob a forma de uma “inqui­
rição” em que o indivíduo é o interlocutor de um questionário ou
o objecto de um testemunho; sob a forma de uma prova purifica-
tória em que ele é alvo de um rito de exorcismo; sob a forma enfim
de uma “confissão”, em que ele é ao mesmo tempo o sujeito que
fala e o objecto do qual fala, mas em que se trata para ele mais de
atestar que se sente pecador do que de fazer o levantamento exac­
to dos pecados que deverão ser remidos. Mas é claro que a prática
da confissão baptismal não pode compreender-se na sua forma e
na sua evolução a não ser em relação com o desenvolvimento tão
importante da “segunda penitência” — a partir deste mesmo final
do século ii.
A instituição do catecumenato, a vontade de submeter os postu­
lantes a regras de vida rigorosas, a introdução no jogo de procedi­
mentos de verificação e de autenticação não podem ser separadas
dos novos desenvolvimentos da teologia do baptismo, conforme
podemos observá-los a partir do século m: há aqui todo um con­
junto em que a liturgia, as instituições, a prática pastoral e os
elementos teóricos se conjugam e se reforçam uns aos outros. Não
se trata todavia de uma nova teologia baptismal, mas antes de uma
acentuação nova. Esta é sensível particularmente em dois pontos:
o tema da morte e o do combate espiritual.
A partir do momento em que o baptismo foi concebido como
regeneração e segundo nascimento, comportava uma relação com
As Confissões da Carne 87

a morte — pelo menos no sentido em que, após uma primeira


geração que estava votada à morte, fazia “renascer” para uma vida
que era a verdadeira vida. O baptismo era referido à morte, na
medida em que libertava dela. Assim Hermas, a propósito das
almas-pedras com as quais se constrói a Torre da Igreja: “Era-lhes
necessário sair da água para receber a vida: não podiam entrar no■
reino de Deus de outra maneira que não fosse rejeitando a morte ,,
que era a sua vida anterior.”173 Mas, a partir do final do século n;'
vemos desenvolver-se o tema de que o baptismo, se abre o acesso T
,à vida, deve ser ele mesmo uma morte; e se Cristo através da sua
ressurreição anunciou esse “novo nascimento”, mostrou na sua %
própria morte o que era o baptismo. Este é uma maneira de morrer
com e em Cristo. Produz-se assim na teologia baptismal a partir a
do fim desta época um regresso à Epístola aos Romanos e à con- s
cepção paulina do baptismo como morte: “Fomos sepultados com |
Cristo pelo baptismo, para que, tal como ele ressuscitou dos mor­
tos [...], nós caminhemos numa vida nova.”174
Tertuliano no De resurrectione carnis referia-se ao texto de São
Paulo: estabelecia o princípio de que morremos no baptismo per
simulacrum, mas per veritatem ressuscitamos na carne, “como
Cristo”175. Mas é sobretudo depois de Tertuliano, que não se lhe
refere nem no tratado sobre a penitência nem no que escreveu so­
bre o baptismo, que será desenvolvida esta relação do baptismo
com a morte através da paixão de Cristo. Faz-se valer de uma série
de analogias: entre a imersão e a sepultura176, entre a piscina e a

173 HERMAS, O Pastor, Similitude IX, 16, 2. Como o faz notar A. BENOÍT, a
morte, para Hermas, não tem lugar no baptismo, “o homem está já morto antes
do baptismo em consequência do seu pecado, e, pelo baptismo, acede à vida”, Le
Baptème chrétien au second siècle, p. 133.
174 SÃO PAULO, Epístola aos Romanos, 6,4.
175 TERTULIANO, De ressurectione carnis, XLVII (P. L., t. 2, col. 862).
176 Sobre a relação entre a água e a morte, no baptismo, cf. P. LUNDBERG,
La Typologie baptismale dans l’ancienne Église, Leipzig, 1942. Cf. SANTO AM-
BRÓSIO, De sacramentis, III, 2: “quando te banhas e te levantas, há uma imagem
da ressurreição”.
88 Michel Foucault

“forma da tumba”'77, entre o triplo mergulho que se segue à pro­


fissão de fé e os três dias que decorrem entre a crucifixão e a
178. Através destas analogias, despontam vários te­
Ressurreição177
mas. Na primeira linha, encontramos a ideia de que o baptismo
deve ser acompanhado pelo dar a morte ao homem velho: é neces­
sário, segundo a Epístola aos Romanos, “crucificá-lo para que o
corpo do pecado seja destruído”179.
Baptismo “salobro e amargo”, cuja prefiguração Orígenes vê na
travessia do deserto que teve de preceder o regresso à Terra Prome­
tida180. Mas uma vez que a antiga vida, da qual nos despojamos
crucificando-a, não era senão a própria morte, devemos conceber
pois o baptismo como a morte da morte. É o que explica Santo
Ambrosio numa passagem importante do De sacramentis: após a
falta de Adão, Deus condenara o homem a morrer. Castigo temível
e sem remédio? Não, e por duas razões: porque Deus permitiu ao
homem ressuscitar; mas também porque a morte, como termo da
vida mortal, é também o termo do pecado: “Quando morremos,
deixamos de pecar.” Assim, a morte, instrumento do castigo, torna-
-se, quando associada à ressurreição, um instrumento de salvação:
“a condenação serve de benefício”; “as duas coisas estão a nosso
favor: a morte é o fim dos pecados e a ressurreição é a reparação
da natureza”181. O baptismo constitui pois como que uma inversão
do sentido da morte: uma morte que faz morrer o pecado e a mor­
te, e que por isso deve a esse título ser ardentemente desejada.
Mas há mais: esta morte no baptismo não deve somente enterrar
de uma vez por todas os despojos da vida que o cristão abandonou,
deve marcar para sempre e ao longo de todo o seu curso a vida do
cristão. Este recebeu, com efeito, com o selo do baptismo, o sinal
da crucifixão. É portanto à “semelhança” dela que deverá subordi­

177 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, XXV Homilia sobre o Evangelho de São João
(3,5),2(P.G.,t. 59, col. 151).
178 GREGORIO DE NISSA, Oratio catechetica magna, XXXV, 4-6 e 10.
179 SÃO PAULO, Epístola aos Romanos, 6,6.
180 ORÍGENES, Comentário sobre São João, VI, 44.
181 SANTO AMBROSIO, De sacramentis, II, 17.
As Confissoes da Carne 89

nar a sua vida. À homoiôsis tô theô que prometia àquele que dela
fosse capaz uma vida de luz e de eternidade, tende a substituir-se
o princípio de uma semelhança a Cristo na sua paixão, e portanto
o de uma vida cristã posta sob o signo da mortificação.

1. Este recentramento da concepção do baptismo em torno da


morte, ou pelo menos da relação morte-ressurreição, tem três con­
sequências no que se refere à ideia que devemos fazer da metanoia
indispensável ao baptismo. A primeira é que essa conversão da al­
ma, esse desprendimento por meio do qual renunciamos ao mundo
do pecado e nos afastamos da via da morte, toma cada vez mais a
forma de um exercício de si sobre si mesmo que consiste numa
mortificação — num dar a morte voluntário, aplicado, contínuo a
tudo o que na alma ou no corpo possa prender-nos ao pecado. A
segunda é que uma tal mortificação não deve ter por lugar somente
o momento do baptismo, mas exige uma longa e lenta preparação.
Não deve sequer terminar com a imersão redentora, mas terá de
prosseguir através de uma vida de mortificação que só terá por ter­
mo a própria morte. O baptismo, como morte e ressurreição, já não
marca simplesmente a entrada na vida cristã, mas é uma matriz
permanente dessa vida. Por fim, outra consequência ainda, a exigên­
cia de uma “probatio”, destinada a verificar tanto o desejo como a
capacidade de acesso à verdade do postulante, tenderá, conservando
esse papel, a dar um lugar cada vez maior a um conjunto de “pro­
vas” que são ao mesmo tempo exercícios de mortificação e de au­
tenticação da morte dada ao pecado — da morte dada “à morte dc
pecado”. A relação de si consigo, entendida como labor de si sobre
si mesmo e como tomada de conhecimento de si por si mesmo
passa a ocupar assim um lugar cada vez mais marcado no processe
global da conversão-penitência designado pelo termo de metanoia.

2. Mas intervém um outro factor, com efeitos convergentes. E c


desenvolvimento, na teologia da falta e do baptismo, do tema de
Inimigo presente na alma e reinando sobre ela. Não devemos, d<
facto, enganar-nos a esse respeito: a especificação das práticas d<
90 Michel Foucault

exorcismo e a sua multiplicação no período do catecumenato, bem


como nos ritos que precedem imediatamente o baptismo, não tra­
duzem o triunfo de uma concepção demonológica do mal. Assis­
timos antes a toda uma série de esforços no sentido da articulação,
sobre a nova ideia de pecado original, da omnipotência de um
Deus que aceita salvar e do princípio de que cada um é responsá­
vel pela sua salvação. A concepção de Tertuliano respondia a esta
exigência: via o efeito da queda não só no facto de o homem estar
votado à morte, de a sua alma ter sido corrompida e a sua vida
abandonada ao mal, mas mais precisamente no facto de Satanás
ter podido estabelecer o seu império sobre os homens, alcançando
o fundo do coração daqueles. Como jurista, dir-se-ia que Tertulia­
no pensava mais numa posse entendida como jurisdição e exercí­
cio de um poder do que como uma insinuação de entidades estra­
nhas. O baptismo tinha então por efeito produzir uma “desposses-
são” que tinha dois aspectos: o Espírito Santo podia encontrar a
sua sede na alma liberta pela purificação; e o homem adquiria
uma força maior do que a dos demônios — podia resistir-lhes,
podia opor-lhes o seu comando. Da queda à salvação, era toda uma
relação de forças que intervinha e se invertia: nem o homem era
absolutamente coagido ao mal antes da vinda do Salvador, nem
ninguém ficava incondicionalmente resgatado, depois do seu sa­
crifício. Tudo era combate. Mas esse combate não enfrentava Deus
com o princípio do mal: desenrolava-se entre o homem e aquele
que se revoltava contra Deus, que queria apoderar-se da sua alma
e não podia suportar “sem gemer” que lha arrancassem.
É este tema do combate espiritual que, a partir do século ui, vai
dar um sentido particular tanto à preparação do baptismo como aos
efeitos que dele se esperam. A preparação deve ser luta contra o
Inimigo, esforço sem cessar renovado visando vencê-lo, apelo a
Cristo para que este socorra e supra a fraqueza do homem. Mas o
baptismo não dará nem segurança nem repouso: o Inimigo encarni-
çar-se-á tanto mais quanto mais se sinta desapossado; e, deixando
de reinar na alma, tentará reintroduzir-se nela. O cristão, se não
estiver devidamente preparado para ser cristão, tornará a cair.
I
-s.
:ír As Confissões da Carne
7’
91

Tal é o que vemos: tal como o tema da morte, implicado pelo da


.regeneração, do segundo nascimento, da ressurreição, se inflectiu
no sentido do da mortificação, assim também o da purificação que
livra a alma das suas contaminações se inflecte no sentido da ideia
.*
de um combate espiritual. E cada uma destas duas inflexões atri­
r- bui ao sujeito um papel cada vez mais importante: o baptismo
deve ser preparado, acompanhado e prolongado por operações que
íí
iiü o sujeito exerce sobre si mesmo sob a forma da mortificação, ou
no interior de si mesmo à maneira de combate espiritual. Estabe­
lece uma relação de si consigo complexa, árdua, cambiante. E
í
certo que a doutrina de maneira nenhuma admite que a omnipo-

í tência de Deus seja assim afectada ou limitada (ainda que tenha


sido bastante difícil construir teoricamente o sistema dessa omni-
rsjgg potência frente à liberdade humana). Mas, atendo-nos ao propósito
ft
que agora nos ocupa, vemos a que ponto tais relações de si consigo
t" se tornaram indispensáveis para que o sujeito se encaminhe na
*■»
direcção da luz e da salvação.

3. Ora, tudo isto impele a uma outra mudança de tônica na dou­


trina do baptismo: mudança que se refere ao efeito do sacramento.
Sobre este ponto, serei muito breve, limitando-me a recordar, no
ir-:" que respeita ao início do século ni, as indicações de Orígenes, e,
o
no fim do século iv, as teses de Santo Agostinho182.

182 [Foucault garatuja aqui: “—0 baptismo resgata / mas é necessária nele a
remissio cordis / Cf. História dos dogmas / — Tudo isto converge em direcção ao
problema do conhecimento de si.”]
[III]

[A SEGUNDA PENITÊNCIA]

O quarto Preceito do Pastor de Hermas é conhecido: “Ouvi cer­


tos doutores dizerem que não há outra penitência senão a do dia em
que entramos na água.” Ao que o anjo da penitência responde: “O
que ouviste é exacto. E assim. Aquele que recebeu o perdão dos seus
pecados não deveria com efeito pecar mais, mas manter-se em san­
tidade. Mas pois que queres todas as precisões, indicar-te-ei também
o seguinte, sem dar pretexto de pecado aos que acreditarem ou aos
que se ponham agora a acreditar no Senhor, pois que nem uns nem
outros têm de fazer penitência dos seus pecados: têm a absolvição
dos seus pecados anteriores. Foi pois unicamente para aqueles que
foram chamados antes destes últimos dias que o Senhor instituiu
uma penitência. Porque o Senhor conhece os corações, e, tudo sa­
bendo de antemão, conheceu a fraqueza dos homens e as múltiplas
intrigas do diabo que fará mal aos servidores de Deus e exercerá
contra eles a sua malícia. Na sua grande misericórdia, o Senhor
comoveu-se perante a sua criatura, e instituiu esta penitência e
concedeu-me dirigi-la. Mas digo-to, continuou: se, depois deste cha­
mamento importante e solene, alguém, seduzido pelo diabo, comete
um pecado, dispõe de uma penitência só; mas se peca uma e outra
vez, ainda que se arrependa, a penitência é inútil a um tal homem.”183

183 HERMAS, O Pastor, Mandatum IV, 31,1-6.


AS' Confissões da Carne 93

Este texto passou durante muito tempo por ser a prova de que,
no cristianismo primitivo, não existira outra penitência senão a do
baptismo, e por testemunho de que em meados do século n fora
instaurado um segundo recurso para os pecadores já baptizados:
recurso único, solene, não repetível, do qual teria resultado por
transformações sucessivas a instituição penitencial. O meu propó­
sito não é evocar, nem de longe, as discussões que esta passagem
de Hermas levantou: manifestará a primeira atenuação importante
•de um rigorismo primitivo? Formará uma crítica contra a lição
demasiado estrita de “certos doutores”, que seria necessário saber
quem são? Assentará na distinção entre dois ensinos: o que é dado
antes do baptismo e o que é reservado aos baptizados aos quais é
possível anunciar a possibilidade de uma segunda penitência? Esta
última seria, na perspectiva de Hermas, um Jubileu que não devia
ter lugar senão uma vez, ou um recurso que a parusia de Cristo
tornava urgente, indispensável e necessariamente única184?
Retenhamos somente que a obrigação de uma metanoia, de um
arrependimento-penitência, é incessantemente lembrada aos cris­
tãos nos textos do período apostólico. É sem dúvida dito na Epís­
tola aos Hebreus que “é impossível que aqueles que foram uma vez
iluminados, que provaram o dom celeste, que se tornaram partici­
pantes do Espírito Santo, que saborearam a bela palavra de Deus
e as forças do mundo por vir e que contudo caíram, sejam renova­
dos uma segunda vez sendo levados à penitência”185. Mas o texto
refere-se à unicidade do baptismo como acto de “renovação” total
do indivíduo. Não exclui nem a abominação das faltas nem o pe­
dido de perdão daqueles que receberam o baptismo: “Todas as
nossas quedas e todas as faltas que cometemos sob a instigação de
um desses adeptos do Inimigo, imploremos o seu perdão.”186 Sú-

184 A tese do Jubileu, aceite no início do século xx, foi criticada por A. D’ALÈS
(L’Éditde Calliste. Étude sur les origines de la pénitence chrétienne, Paris, 1914),
c depois por B. POSCHMANN (Paenitentia Secunda, Bona, 1940); foi retomada e
reelaborada por R. JOLY, em particular na sua edição de O Pastor (1958).
185 SÃO PAULO, Epístola aos Hebreus, 6,4-6.
186 CLEMENTE DE ROMA, Primeira Epístola, LI, 1.
94 Michel Foucault

plica que assume formas rituais e colectivas: “Na assembléia,


confessarás as tuas fraquezas, e não irás à tua prece com uma
consciência impura”187; do mesmo modo aquando da reunião do
dia dominical, parte-se o pão, dão-se graças “depois de se terem
primeiro confessado os pecados, a fim de que o sacrifício seja
puro”188. Neste arrependimento que cada um deve experimentar e
manifestar, a comunidade inteira é chamada a tomar parte. Ou sob
a forma de uma correcção recíproca: “A repreensão que nos diri­
gimos mutuamente é boa e muito útil: liga-nos à vontade de
Deus.”189 Quer sob a forma de uma intercessão de uns pelos ou­
tros, junto daquele que perdoa190; Quer sob a forma de jejuns e de
súplicas que é necessário fazer com aqueles que pecaram191. E o
papel dos presbíteros é mostrarem-se “complacentes”, misericor­
diosos para com todos, e “reconduzir os extraviados”192193
.
O arrependimento e o pedido de perdão faziam pois parte intrín­
seca da existência dos fiéis e da vida da comunidade, antes de
Hermas ter feito anunciar pelo anjo ao qual ele fora confiado a
instauração de uma outra penitência. Não devemos esquecer que a
metanoia não é uma simples mudança de atitude necessária ao
baptismo, não é somente conversão da alma que o Espírito produz
no momento em que entra nela. Através do baptismo, é-se chamado
“à metanoia”'93, que é ao mesmo tempo ponto de partida e forma
geral da vida cristã. O arrependimento a que os textos da Didakhê,
os de Clemente ou de Barnabé chamam os cristão é o mesmo que
acompanhara o baptismo: o seu prolongamento, o seu movimento
continuado. O problema que O Pastor põe não é por isso o da pas­

187 Didakhê, IV, 14. A Epístola do Pseudo-Barnabé, XIX, 12, retoma a expressão
e acrescenta: “tal é a via da luz”.
Didakhê, XIV, 1.
189 CLEMENTE DE ROMA, Primeira Epístola, LVI, 2. Cf. também Didakhê,
XV, 3: “Recriminai-vos uns aos outros.”
190 CLEMENTE DE ROMA, Primeira Epístola, LVI, 1.
191 ZW4.,II.4-6.
192 POLICARPO, Epístola aos Filipenses, VI, 1.
193 Cf. as expressões como: “Deus deu a todos metanoias topon", “metanoias
metaskhein” (CLEMENTE DE ROMA, Primeira Epístola, VII, 5; VIII, 5).
As Confissões da Carne 95

sagem de uma Igreja de perfeitos a uma comunidade que reconhe­


ce em si a existência de pecadores e tem de se acomodar com ela.
Não é sequer sem dúvida a passagem de um rigorismo que admite
somente a penitencia baptismal a uma prática mais indulgente.
Trata-se antes do modo de institucionalização desse arrependimen­
to que se segue ao baptismo e da possibilidade de reiterar — total
, ou parcialmente — o procedimento de purificação (e até mesmo de
resgate) a que o baptismo dera uma primeira vez lugar. De facto,
’.trata-se nem mais nem menos do que do problema da repetição,
; 'numa economia da salvação, da iluminação, do acesso à verdadeira
¿vida, que por definição não conheça senão um eixo do tempo irre­
versível escandido por um acontecimento decisivo e único.
’ Deixarei de lado a própria história desta institucionalização, e
os debates de ordem teológica ou pastoral aos quais ela deu lugar.
í’Limitar-me-ei a encarar as formas tomadas, a partir do século ni,
igéla penitência “canónica”, quer dizer, pelos recursos rituais orga-
jnizados sob a autoridade das Igrejas para aqueles que cometerem
pecados graves e cujo perdão não poderia ser obtido somente pelo
seu arrependimento e somente pelas suas orações. Como poderá
. um baptizado obter de novo o seu perdão se infringiu os compro­
missos que tomou e se se afastou da graça que recebera?
Trata-se de uma reconciliação que era definida por referência
ao baptismo. Não que fosse a sua repetição, porque o baptismo não
pode ser reiterado. A graça que então nos foi dada foi concedida
de uma vez por todas, e as faltas redimidas foram-no definitiva­
mente, só podemos renascer uma vez194. Mas a “penitência” que
acompanha o baptismo e à qual ele introduz, o movimento através
do qual o espírito se desliga dos seus pecados e morre nessa mor­
te e o perdão que Deus concede na sua benevolência podem ser
renovados. Não há segundo baptismo, por conseguinte195; mas,

194 Esta ideia, que fora discutida a propósito dos relapsos e a propósito do baptis-
, mo dado para os heréticos, fora claramente rejeitada: “iterandi baptismatis opinio
vana", SANTO AMBROSIO, De paenitentia, II, n, 7.
v 195 Note-se que encontramos por vezes a expressão, mas num sentido metafóri­
co e não ritual: CLEMENTE DE ALEXANDRIA, Quis dives salvetur, XLII, 14
: (P.G.,t. 9, col. 649).
96 Michel Foucault

como dizia já Tertuliano, uma “segunda esperança”, uma “outra


porta” à qual o pecador pode bater depois de Deus ter fechado a
do baptismo, “benefício repetido” ou melhor “aumentado” porque
“devolver é mais do que dar” — paenitentia secunda196. Contra os
novacianos, far-se-á valer que esta última é necessária para não
desesperar aqueles que já caíram e para não levar os que ainda não
são cristãos a retardar o momento do baptismo197.
A relação da penitência com o segundo baptismo é marcada de
diferentes maneiras. Pelo princípio antes do mais de que tanto
aqui como ali é o Espírito Santo quem opera e perdoa as faltas:
“Os homens pedem e a Divindade perdoa, [...] é o Poder soberano
quem concede os seus favores.”198 O mesmo mistério e o mesmo
ministério, a autoridade exercida pelos sacerdotes é a mesma
quando baptizam ou quando reconciliam: “Que diferença faz que
seja através da penitência ou através do baptismo que os sacerdo­
tes reivindiquem esse direito que lhes é dado?”199 Do mesmo mo­
do que a água do baptismo tinha por missão lavar as faltas ante­
riores, pede-se às lágrimas da penitência que lavem as fraquezas
que tiveram lugar após o baptismo200. E, apesar da preocupação de
reservar àquele o poder de fazer re-nascer, de re-generar, encon­
tramos o tema201 da penitência que faz passar [da morte à vida]202.
O De paenitentia de Santo Ambrosio é significativo a este respei­
to. A penitência é de início referida ao episódio do Samaritano no
Evangelho de Lucas: como o homem ferido na estrada de Jerico, o
pecador pode ser salvo porque está ainda “meio vivo”; se estivesse
completamente morto, que poderiamos fazer por ele? Deveremos
fazer com que façam penitência aqueles que já não podem ser

196 TERTULIANO, De paenitentia, VII.


197 Assim SANTO AMBROSIO, De paenitentia, II, ii.
198 SANTO AMBROSIO, De Spiritu Sancto, III, 13.
199 SANTO AMBROSIO, De paenitentia, I, viii, 36.
200 Analogia muito frequentemente evocada. Assim por SANTO AMBROSIO na
carta XLI, 12; ou em Enarratio in Psalmum 37,10-11.
201 SÃO CIPRIANO, carta XV, 2.
202 [Manuscrito: “da vida à morte”.]
As Confissões da Carne 97

curados?203 Mas no livro II do mesmo texto, a penitência é repor-


Ka à ressurreição de Lázaro: “Se, perante o apelo de Cristo, fize-
a tua confissão, as barras serão quebradas, e todos os nós que
te prendem serão desfeitos, ainda que seja forte o fedor do corpo
em vias de decomposição [...]. Vedes que os mortos voltam à Igre-
jà e que ressuscitam quando lhes é concedido o perdão dos seus
pecados.”204
Em suma, a salvação, que só pode ser obtida pelo baptismo

» ando não se é ainda cristão, só a penitência a poderá permitir


aos cristãos que voltem a cair depois do baptismo205. Portanto, dois
caminhos para nos salvarmos, eis o que o papa Leão repetirá na
esteira de Ambrósio206.
Esta analogia, tão fortemente marcada com o baptismo, explica
o paradoxo de que, embora sendo, de certo modo, a “repetição” do
baptismo (ou pelo menos de certos de entre os seus efeitos), a pe­
nitência não seja repetível. Como aquele, ela é única: “Não há se­
não um baptismo; do mesmo modo, não há senão uma penitên­
cia.”207 Nada tem pois de surpreendente que tenha sido organiza­
da, pelo menos em certa medida, segundo o modelo do baptismo
e da sua preparação.
' A penitência canônica tomou pouco a pouco a forma de um
“segundo noviciado”208. A expressão “paenitentiam agere”, usada
para designar, de maneira muito geral, toda a forma de arrependi­
mento (ainda que interior) à qual um pecador se aplica para obter
o perdão das faltas (ainda que leves), é utilizada também para de­
signar a forma regular em cujos termos tudo se deve desenrolar no
procedimento penitencial: sob a autoridade dos sacerdotes, com
um certo número de práticas definidas, num momento em que é

203 SANTO AMBRÓSIO, De paenitentia, 1, xi, 52; cf. anotação do mesmo tipo na
carta LV de SÃO CIPRIANO, capítulos 16 e 20.
204 SANTO AMBRÓSIO, Depaenitentia, II, vii, 58-59.
205 SANTO AMBRÓSIO, carta XXV.
206 SÃO LEÃO, carta [108].
207 SANTO AMBRÓSIO, De paenitentia, II, x, [95],
‘ 208 [Nota vazia.]
98 Michel Foucault

necessário e durante um tempo determinado209. A penitência as­


sim praticada não é simplesmente um acto, ou uma série de ac­
ções, é um estatuto210. O penitente “torna-se” penitente segundo
regras às quais devem submeter-se não só os pecadores, mas tam­
bém os sacerdotes que regulam a mesma penitência211.
A penitência eclesiástica “pede-se”, “concede-se”, “recebe-se”.
O cristão que cometeu um pecado grave — e decerto o relapso que
sacrificou ou assinou um certificado de sacrifício — solicita do
bispo a possibilidade de se tornar penitente; ou ainda é a isso im­
pelido pela exortação do sacerdote que está ao corrente da sua
falta212. E é em resposta a este pedido que o bispo “concede” a
penitência, que devemos pois conceber, no seu sentido fundamen­
tal, menos como uma punição imposta do que como um recurso
ao qual o acesso e cujo desenrolar-se estão cuidadosamente regu­
lamentados. A penitência começa por um ritual que comporta a
imposição das mãos num gesto que se refere ao exorcismo e que
implora a bênção de Deus sobre os exercícios penitenciais. Estes
duram muito tempo: meses, anos. E, quando terminam, o peniten­
te é admitido à reconciliação no decorrer de uma cerimônia que
constitui como que a réplica da primeira: o bispo impõe de novo
as mãos e o penitente é readmitido à “communicatio”. Enquanto
dura, um tal estatuto implica práticas de ascese (jejuns, vigílias,
orações numerosas) e obras (esmola, socorro dos enfermos); com­
porta também interdições (assim, as relações sexuais entre espo­
sos) e uma exclusão parcial das cerimônias da comunidade (em

209 “Sacerdotibus Dei obtemperans”, “operibus justis”, SAO CIPRIANO, carta


XIX, 1; “justo tempore", carta IV, 4. Sobre o sentido geral e o sentido preciso de
“paenitentiam agere”, cf. J. GROTZ, Die Entwicklung des Busstufenwesens in der
vornicãnischen Kirche, Friburgo, 1955, pp. 75-77.
210 Paciano distingue os catecúmenos, os penitentes e os cristãos de pleno exer­
cício.
211 Cf., por exemplo, SÃO CIPRIANO,cartas XV e XVI.
212 Sobre o papel do bispo nestes incitamentos à penitência, cf. PACIANO [carta III,
16]: o bispo “ad paenitentiam cogit, objurgat, crimen ostendit, vulnera aperit, su-
pplicia aeterna commemorat” [“... coage à penitência, reprova, mostra o crime, põe
a nu as feridas, lembra os suplícios eternos”, tradução C. Épitalon e M. Lestienne],
s; As, Confissões da Carne 99

í; particular da eucaristia)213. No entanto, até mesmo depois da re-


J, conciliação, o ex-penitente não recupera o estatuto que anterior­
mente tinha. Continua, de certo modo, marcado: é-lhe impossível
tornar-se sacerdote, são-lhe vedados os cargos públicos, bem como
certas profissões: ser-lhe-á recomendado que evite os litigios214.
Penitência “segunda” por comparação com a do baptismo, esta
prática cuidadosamente regulamentada não é menos exigente. Pelo
contrario. Porque se trata de solicitar o que fora concedido urna
vez e obter por excepção o efeito que uma graça oferecera já a
todos os baptizados. A penitência é mais estreita do que o baptis­
mo. Deus oferece este último a todo o homem que o reconhece e
‘ = -'

oferece portanto a remissão das faltas como urna “gratuita dona-


tio'"-, em contrapartida, o perdão, concede-o ao penitente como
fruto do longo labor que aquele terá exercido sobre si mesmo215.
i..,.

Os autores dos séculos ni e iv não reconsideram o princípio de que


a preparação do baptismo não pode dispensar urna disciplina, mas
acentuam bem, em contrapartida, que, na penitência, o pecador,
. -X

que já recebeu a graça, deve assumir o encargo dos seus próprios


í pecados. E o principio de Orígenes: apolambanein tas hamar-
f-1 tias216. E acontecerá, a despeito do principio segundo o qual não
X
213 Sobre todos estes pontos, cf. R. GRYSON, “Introduction” ao De paenitentia
de SANTO AMBROSIO (París, 1971, pp. 37 e sgs.) e Le Prétre selon saint Am-
hroise (Lovaina, 1968).
214 Cf. SÃO LEÃO, carta 167.
215 PACIANO, carta III, 18: “Baptismus enim sacramentum est dominicae pas-
’’ sumís: paenitentium venia merítum confitentis. Illud omn.es adipisci possunt, quia
gratiae Dei donum est; id est, gratuita donatio; labor vero iste paucorum est qui
post casum resurgunt, qui post vulnera convalescunt, qui lacrymosis vocibus adju-
vantur, qui carnis interitu reviviscunt.” [“O baptismo, com efeito, é o sacramento
da paixão do Senhor: o perdão dos penitentes, o salário da confissão. O primeiro,
todos podem obtê-lo, porque é um dom gratuito de Deus, quer dizer um perdão
7 gratuito; mas o segundo é fruto do esforço do pequeno número dos que se voltam
a levantar depois da queda, que retomam força depois das feridas, que se fazem
socorrer por meio de gritos cheios de lágrimas, que revivem através da destruição
: da carne”, tradução C. Épitalon e M. Lestienne.]
?' 216 Sobre este ponto cf. K. RAHNER, [“La doctrine d’Origéne sur la pénitence”],
y- in Recherches de science religieuse (t. 38,1950), p. 86.
100 Michel Foucault

há segundo baptismo, que se fale da penitência como do “baptismo


laborioso.”217
Podemos dizer, sem entrarmos nos problemas da teologia sacra­
mentaria e da sua história, que a partir do século ni se torna sen­
sível uma diferente acentuação na maneira como se descreve a
metanoia ligada ao baptismo e a que é indispensável à penitência
eclesiástica. Continua a tratar-se sem dúvida, nos dois casos, de
um arrependimento através do qual a alma se desliga dos pecados
por que está manchada. Mas, a propósito do baptismo, é sobretudo
a libertação, a aphesis, que é sublinhada; quanto à metanoia ne­
cessária à reconciliação, é sobretudo o trabalho que a alma exerce
sobre si mesma e sobre as faltas que cometeu.

No desenrolar-se da penitência canônica os procedimentos des­


tinados a manifestar a vontade da alma penitente são numerosos.
E apresentam diferenças notáveis em relação àqueles que são apli­
cados para o baptismo e para a sua preparação.

- A -

Podemos pôr num lugar à parte o recurso aos testemunhos ou


às inquirições que permitem certificar o arrependimento e as boas
disposições dos que pedem a sua reconciliação. As cartas de São
Cipriano atestam, para o período que se segue às grandes perse­
guições, a importância do problema, a dificuldade de descobrir o
equilíbrio entre rigor e indulgência, o ardor de alguns lapsi bus­
cando ter de novo a paz da Igreja, e a obstinação por vezes posta
em recusar-lha — seja como for, a aspereza das discussões. São
Cipriano reitera-o várias vezes: entre o perigo de reconciliar de­
masiado depressa ou o de privar os pecadores de uma esperança,
a decisão será sempre, de certa maneira, cega: “Tanto quanto nos

217 [GREGÓRIO DE NAZIANZO, Discurso XXXIX, 17 (P. G„ t. 36, col. 356a).]


r
?
' Xs Confissões da Carne 101

; é dado ver e julgar, vemos o exterior de cada um; quanto a sondar


■ < o coração, e a penetrar a alma, isso não podemos.”218 Argumento
$ que o inclina, mais do que à severidade, a uma indulgência que o
•_ leva por vezes a reprovar-se a si mesmo219. Mas se teme, como
< todos fazem, que “espíritos incorrigíveis”, “homens contaminados
_• ou de adultérios ou de sacrifícios” venham corromper as almas
. honestas, pensa todavia que a tarefa não é tanto excluir aqueles
? cuja sinceridade não é certa, como trabalhar na sua cura220. De
* resto, a reconciliação concedida neste mundo não vincula Deus.
1'1 Aquele que tudo vê, até mesmo os segredos do coração que nos
® escapam, não fica comprometido a perdoar quando se quis
I enganá-lo abusando da indulgência dos seus: “O próprio Deus
julgará aquilo que não penetrámos bem, e o Senhor reformará a
sentença dos seus servidores.”221
| Resta que continua a não ser possível acolher toda a gente sem
j precaução; é necessário reflectir e examinar. As atestações daque-
les que tinham aceitado enfrentar o martírio em benefício dos que
f tinham “caído” — ou por terem sacrificado, ou por terem assinado
? um certificado de sacrifício — não bastam, sobretudo quando to-
L mam a forma de uma espécie de recomendação coíectiva que vale
í para toda uma família ou uma casa. Mais ou menos espontanea-
’ mente, Cipriano adere, ao mesmo tempo que mantém a sua posi­
ção de indulgência de princípio, à prática que se impôs e que pa­
rece ter sido codificada, sob a forma de regulamento, num opús­
culo fixando aos responsáveis a conduta a assegurar222: examinar
caso a caso a situação dos que pedem para ser acolhidos como
penitentes em vista de serem finalmente reconciliados; encarar as
intenções e as circunstâncias do acto (causae, voluntates, necessi-
tatesy, distinguir “aquele que por sua própria vontade se dispôs

’ 218 “Cor scrutari et mentem perspicere non possumus”, SÃO CIPRIANO, carta
LVII, 3.
219/Wd-, carta LIX, 15 e 16.
220 Ibid.
221 Ibid., carta LV, 18; cf. também LVII, 3.
222 “[Libellus] ubi singula placitorum capita conscripta sunt", ibid., carta LV, 6.
102 Michel Foucault

imediatamente ao sacrifício abominável, e aquele que depois de


ter resistido e lutado por muito tempo só por necessidade chegou
ao acto deplorável; aquele que se entregou a si mesmo e aos seus,
e aquele que, avançando para o perigo só e por todos, preservou a
sua mulher, os seus filhos e toda a sua casa”223.
Parece ter sido previsto um outro exame, incidindo já não sobre
as circunstâncias da falta, mas sobre a conduta do pecador a partir
desse momento224, quer dizer no período em que, ou espontanea­
mente, ou segundo as formas canónicas, ele faz a sua penitência,
manifesta o seu remorso e mostra a sua vontade de viver como
crente: “A porta do campo de Deus, que montem a guarda, mas
armados de modéstia, mostrando que têm consciência de terem
sido desertores”225; a quem não professe a sua desolação Ç‘nec
dolorem [...] manifesta lamentationis suaeprofessione testantes”)
deve ser recusada a esperança da comunicação e da paz226.
Tendo em conta a dificuldade de um tal exame, as resistências
que as comunidades opunham ao retorno dos lapsi e a hostilidade
que podiam suscitar as decisões pessoais, estas tinham de ser mui­
tas vezes tomadas colectivamente, sob a direcção do bispo e na
presença dos fiéis. É o que testemunha uma carta dos sacerdotes
romanos a Cipriano: é “um encargo facilmente impopular e um
pesado fardo ter-se de, sem que o número ajude, examinar a falta
de um grande número, e estar-se só quando se pronuncia a senten­
ça [...]; não pode'ter grande força uma decisão que não pareça ter
reunido os sufrágios de um grande número de deliberantes”227.
A importância destas práticas de exame estava ligada a uma
conjuntura particular: o que explica a dimensão que num dado
momento assumiram. Sem dúvida não desapareceram com o fim

223 Ibid., carta LV, 13.


224 Na carta XXVII, CIPRIANO refere-se a uma missiva de Luciano sobre “aque­
les cuja conduta após a sua falta tiver sido examinada”. E ao mesmo exame tam­
bém que se refere a carta LVI, 5: “communicatio nostra examinatione concessa".
225 Ibid., carta XXX, 6, endereçada pelos sacerdotes de Roma a Cipriano.
226 Ibid., carta LV, 23.
227 Ibid., carta XXX,5,endereçada a Cipriano.
As Confissões da Carne 103

das perseguições. Mas o controle externo dos penitentes — que


não deixa de lembrar o que, por meio do interrogatorio, da inqui­
rição e do testemunho, era exercido sobre os catecúmenos — de­
sempenhou um papel relativamente acessório por comparação
com um outro procedimento de verdade, muito mais central na
penitência: esse através do qual o pecador reconhece ele mesmo
os seus próprios pecados.

- B -

É a estes procedimentos “reflectidos” que se reportam os ter­


mos de confessio e também de exomologesis — correntemente
usados em latim, entre o século n e o século iv228, com uma signi­
ficação equivalente. Seja como for, aquilo que um e outro desig­
nam precisamente é sujeito a discussão. Segundo as referências
, escolhidas, certos historiadores insistem na existência de um acto
definido através do qual o penitente reconheceria as faltas come­
tidas229; outros sublinham que muitas vezes esses termos, e em
particular o de exomologese, são uma maneira de designar o con­
junto dos actos penitenciais aos quais o pecador está vinculado230.
Parece de facto possível distinguir três elementos.
-,v

, 228 “A actus, qui magis graeco vocábulo exprimitur etfrequentatur, exomologesis


esf [“Este acto, que designamos mais habitualmente por meio de uma palavra gre­
ga, é a exomologese", tradução E.-A. de Genoude], TERTULIANO, Depaeniten-
tia, IX, 2. O termo, que encontravamos já em Santo Ireneu (seis vezes sob forma
■ verbal no Adversus haereses), é muito frequente em São Cipriano; encontramo-lo
ainda em Paciano nos finais do século iv.
229 Assim A. D’ALÈS, L’Édit de Calliste, pp. 440 e sgs.
230 E. AMMAN, artigo “Pénitence” do Dictionnaire de théologie catholique, t.
. XII (1933); sob o termo “exomologese”, colocava-se “o conjunto dos exercícios
s penitenciais preparatórios da reconciliação eclesiástica”; B. POSCHMANN, Pae-
nitentia secunda, Bona, 1940): "... den ganzen Komplex der vom Slinder and von
der Kirche zu erjilllenden Bussakte” [“... todo o complexo dos actos de penitência
que devem cumprir o pecador e a Igreja”] (p. 419). Era a interpretação de J. MO-
RINUS: “exomologesis est actio exteriorpaenitentiae” (Commentarius historicus
de disciplina in administratione sacramenti paenitentiae, 1682).
104 Michel Foucault

1. Primeiro devia ter lugar a exposição do pedido. O pecador


que solicitava a penitência confiava ao bispo ou ao presbítero que
deviam conceder-lha tanto a sua vontade de se tornar penitente
como as razões que tinha para tal. Exposição detalhada? Vimos, a
propósito das apostasias e da prática da examinado, que tal devia
ser por vezes o caso. Podia fazer-se até apelo a testemunhos e a
certas espécies de inquirições: é a esta maneira de proceder que se
aplica a expressão de tipo jurídico que encontramos em São Ci­
priano: expósita causa apud episcopum™. Mas, exceptuadas estas
conjunturas particulares, o pedido de penitência devia ser muito
mais discreto. Tratar-se-ia somente de uma confissão oral que se
exprimia em termos gerais, e talvez por meio da simples recitação
de um salmo de penitência?231 232 Podemos pensar que uma exposição
sucinta fosse necessária para indicar a natureza da falta, permitir
avaliar a sua gravidade, e talvez fixar o tempo, o “justum tempus”,
que devia decorrer antes de se poder encarar a reconciliação233.
Era então sem dúvida que se decidia se a falta merecia o recurso
à penitência, ou se se podia obter o perdão por vias menos rigoro­
sas. E a prática a que verosímilmente se refere Cipriano no De
lapsis quando distingue daqueles que devem “fazer penitência”,
porque sacrificaram ou assinaram os bilhetes, os que mais não
fizeram do que ter tido essa ideia: estes últimos deverão “reconhecê-
-lo com dor e franqueza junto dos sacerdotes de Deus”234. [É]
também nela que pensa o biógrafo de Santo Ambrosio, quando o
louva pela indulgência com que acedia a ouvir os pecadores: mui­
tas vezes, em vez de desempenhar o papel de acusador público,

231 SÃO CIPRIANO, carta XXII, 2. Cf. J. GROTZ, Die Entwicklung des Busstu­
fenwesens in der vornicänischen Kirche, p. 82.
232 Tal é a traço grosso a tese de E. GÖLLER, “Analekten zur Bussgeschichte
des 4. Jahrhunderts”, Römische Quartalschrift, t. XXXVI, 1928. Cf. o que a este
propósito diz R. GRYSON sobre a prática penitencial em Milão no século iv, em
Le Prêtre selon saint Ambroise,pp. 277 e sgs.
233 [SÃO CIPRIANO, carta IV, 4.]
234 SÃO CIPRIANO, De lapsis, XXVII-XXVIII; sobre o sentido a dar a esta
passagem cf. J. GROTZ, [p. 59].
j^s Confissões da Carne 105

preferia “sem nada dizer a ninguém” chorar com o culpado sobre


as suas faltas e interceder junto de Deus a fim de que este conce­
. Entre o pecador e aquele que lhe concedia a
desse o perdão235236
penitência, havia pois lugar para uma entrevista privada — o que
hão quer dizer que esta tivesse lugar todas as vezes e necessaria­
mente. Procedimento verbal, incluindo certos caracteres do reco­
nhecimento jurídico, na medida em que se tratava de apreciar a
gravidade de uma falta. E certo que nos aproximamos aqui, até
certo ponto, da forma da confessio oris tal como a encontraremos
mais tarde no coração do rito penitencial e como um dos seus
elementos principais. Mas com essa diferença fundamental que
consistia no facto de a declaração verbal das faltas ser aqui um
simples preliminar da penitência, e de não ser sequer absoluta­
mente necessária. Não constitui uma sua parte integrante nem
essencial.

’ 2. No outro extremo do procedimento penitencial, quando che­


gou o momento da reconciliação, parece de facto que se tenha
dado lugar a um episódio, bem definido, de exomologese. É pelo
menos o que parecem indicar várias passagens da correspondência
de São Cipriano nas quais, evocando o que é necessário para a
reconciliação dos lapsi, aquele indica regularmente a série: paeni-
tentiam agere, exomologesim facere e impositio manus2-16. Depois

235 PAULINUS [PAULINO DE MILÃO (N. T.)], Vita Ambrosii, [P. L., 1.14, col.
27-50].
236 SÃO CIPRIANO, carta XV, 1: “Ante actampaenitentiam, ante exomologesim
gravissimi atque extremi delicti jactam ante manum ab episcopo et clero in pae­
nitentiam impositam” [“Antes de qualquer penitência, antes da confissão maior e
da mais grave das faltas, antes da imposição das mãos pelo bispo e pelo clero”,
tradução do cônego Bayard], XVI, 2: “Cum in minoribus peccatis agant pecca-
tores paenitentiam justo tempore, et secundum disciplinae ordinem ad exomolo­
gesim veniant, et per manus impositionem episcopi et cleri jus communicationis
accipiant" [“Quando se trata de faltas menores, os pecadores fazem penitência, o
tempo prescrito, e, segundo a ordem da disciplina, são admitidos à confissão, re­
gressando depois à comunhão através da imposição das mãos do bispo e do clero”,
tradução do cônego Bayard]. Cf. também cartas IV, 4; XVII, 2.
106 Michel Foucault

de ter levado, durante o devido tempo, a vida de penitente, e antes


de o rito de imposição das mãos ter marcado a sua reconciliação,
o pecador teria pois de fazer a exomologese. Tratar-se-á de uma
confissão verbal das faltas? Não parece ser o caso. É verdade que
São Cipriano não dá informação sobre este episódio do rito peni­
tencial: quando muito evoca a seu respeito, e de maneira sem dú­
vida em parte simbólica, o penitente no limiar, batendo à porta e
solicitando a entrada. Mas outros textos, anteriores ou mais tar­
dios, permitem que façamos, da exomologese, uma ideia mais
precisa.
No De pudicítia, tendo-se tornado montañista, Tertuliano des­
creve em termos positivos o pecador que leva até ao fim a sua vida
de penitente sem ser nunca reconciliado: está “de pé diante das
portas; o seu estigma serve de exemplo aos demais; chama em seu
socorro as lágrimas dos seus irmãos”237. Em contrapartida, evoca,
em termos críticos, o penitente que é conduzido ao interior da
igreja para receber a reconciliação: é portador do cilicio e da cin­
za; veste roupas miseráveis; é tomado pela mão, introduzem-no na
igreja; prosterna-se publicamente diante das viúvas e dos sacerdo­
tes, agarra-se aos panos das suas vestes, beija o rasto dos seus
passos; abraça-lhes os joelhos238. Temos sem dúvida aqui um re­
lance dessa fase de exomologese que remata a vida de penitente e
precede o retorno à comunhão. Descrição cuja ênfase podería ser
explicada pela hostilidade de Tertuliano. Mas a sua hostilidade
incide sobre o facto da reconciliação, não sobre a abjecção a que
é adstrito o penitente. E outros textos muito mais recentes não dão
uma imagem muito diferente desse momento em que o pecador é
chamado, antes de ser reconciliado, a reconhecer publicamente a
sua falta. “Debaixo dos olhos da cidade de Roma”, conta São Je­
rónimo a propósito de Fabíola, que, divorciada, tornara a casar
antes da morte do seu primeiro esposo, “durante os dias que pre­
cediam a Páscoa, ela mantinha-se nas fileiras dos penitentes, com

237 TERTULIANO, De pudicitia, III, 5.


238 Ibid., XIII, 7.
I
h? As Confissões da Carne

L> o bispo, os sacerdotes e o povo chorando com ela, que tinha os


107

‘já cabelos desgrenhados, o rosto lívido, as mãos sujas, a cabeça co-


■ Ierta de cinzas e humildemente curvada [...]. O seu peito desfeito
e o rosto com que seduzira o seu segundo marido, macerava-os,
descobria a todos a sua ferida e sobre o seu corpo empalidecido,
Roma em lágrimas contemplava as suas cicatrizes.”239 De maneira
muito menos explícita, e sem empregar o termo de exomologesis,
# Santo Ambrosio refere-se provavelmente ao mesmo tipo de ritual
% . quando evoca a necessidade por parte do penitente de dirigir a sua
súplica a Deus, na igreja e na presença dos fiéis, sob formas que
lembram a suplicação antiga: “Recusas que testemunhas e pessoas
7t ao corrente se associem à tua prece quando se trata de apaziguar
um homem e tens de procurar muitas outras pessoas e de lhes
suplicar que se disponham a intervir, quando tens de te abraçar
aos joelhos desse homem, quando lhe beijas os pés, quando lhe
apresentas os teus filhos ainda na ignorância da falta, para que
também eles implorem o perdão do seu pai? E isso, recusas-te pois
a fazê-lo na igreja?”240 Ou ainda quando evoca, segundo o Evan­
gelho de Lucas, a mulher pecadora que beijava os pés de Cristo e
os enxugava com os seus cabelos: “O que significam os cabelos,
senão que saibas que é inclinando toda a dignidade manifestada
pelos indignos deste mundo que o perdão deve ser implorado:
deves prosternar-te tu mesmo no chão chorando; deves, jazendo
por terra, provocar a misericórdia.”241

3. Mas os termos de exomologese ou de confessio não designam


apenas este episódio terminal da penitência. Muitas vezes tam­
bém, referem-se a todo o desenrolar do procedimento penitencial.
E nesse sentido que Santo Ireneu falava de uma mulher que, de­
pois de ter desposado as idéias gnósticas, regressara à Igreja e
passara o resto dos seus dias a “fazer exomologese”, ou de um

239 SÃO JERÓNIMO, carta 77,4-5.


240 SANTO AMBROSIO, De paenitentia, II, x (91).
241 Ibid., II, viii (69).
108 Michel Foucault

herético que ora professava os seus erros, ora fazia exomologese242.


É bem do mesmo modo pensando na acção penitencial no seu
todo que Tertuliano evoca a instituição por Deus “da exomologese
a fim de restabelecer o pecador na graça”, e esse rei de Babilônia
que, durante sete anos, fizera exomologese243.
Se a penitência no seu todo pode ser dita exomologese, é que
as expressões públicas e ostentativas de arrependimento que são
requeridas de maneira particularmente solene e com uma intensi­
dade muito marcada nos momentos que precedem a reconciliação
fazem igualmente parte da acção penitencial durante todo o tem­
po em que ela se desenrola. A penitência, e é um dos seus aspec­
tos essenciais, deve constituir uma espécie de manifestação, de
“confissão” renovada, atestando que foi cometido um pecado, que
se reconhece ser-se pecador e que se está arrependido. Tal é o
sentido que nos capítulos IX e X do De paenitentia Tertuliano dá
à exomologese enquanto dimensão permanente da penitência.
Esta, com efeito, não deve ser aplicada “somente na consciência”,
mas “deve efectuá-la também em acto”. Este acto, que não é tanto
um episódio da penitência como a sua vertente externa, a sua face
visível e manifesta, é a ele que deve aplicar-se o termo de exomo­
logese. E por este designa-se uma “disciplina”, uma maneira de
ser e de viver, um regime que envolve “habitus atque victus”:
“Deve deitar-se debaixo do saco e da cinza, envolver-se o corpo
em andrajos escuros, abandonar-se a alma à tristeza, corrigir com
tratamentos rudes os membros culpados. [...] O penitente alimen­
ta habitualmente as orações por meio dos jejuns. Geme, chora,
clama noite e dia dirigindo-se ao Senhor seu Deus. Roja-se aos
pés dos sacerdotes. Ajoelha-se diante daqueles que são caros a
Deus, encarrega todos os irmãos de intercederem pelo seu per­
dão. Tudo isto, a exomologese fá-lo a fim de dar crédito à peni­
tência.”244

242 SANTO IRENEU, Adversas haereses, [1,6, 3; III, 4,3].


243 TERTULIANO, Depaenitentia, XII.
244 TERTULIANO, Depaenitentia, IX, 3-6.
109

A obrigação de fazer penitência e o estatuto no qual ela toma


s'j,: forma implicam, ao longo de todo o seu desenrolar, esses actos de
exomologese que a manifestam e a atestam: mostram-no textos
A .mais recentes do que o De paenitentia ou o De pudicitia de Ter-
■^.’tuliano. E insistem no valor demonstrativo das referidas práticas.
\iravés delas, trata-se não só de efectuar a penitência, mas de a
hl- provar. Escrevia a São Cipriano um membro do clero da Igreja de
K; Roma a propósito dos apóstatas: “É tempo para eles de fazerem
3C penitência (paenitentiam age re), de mostrarem a dor que experi-
í - mentam por terem caído, de exprimirem a sua vergonha, de mani-
X'festarem a sua humildade, de exibirem a sua modéstia.”245 O pró-
S\prio São Cipriano, chamando os relapsos à penitência, os convida
® ~a essas manifestações em que os gemidos daqueles que pecaram
devem misturar-se às lágrimas dos fiéis246247
. E, no fim do século iv,
-continua a ser através de tais actos destinados a pôr à prova e pro-
£ xar que se caracteriza a prática da vida penitente: gemidos e lágri-

rI , mas, diz Santo Ambrósio no início do De paenitentia1^-, gemidos,


lamentações, lágrimas, acrescenta um pouco mais adiante, subli-
. nhando que se trata aqui de uma expressão livremente consentida,

I de uma espécie de confissão voluntária — mas no sentido de


profissão de fé —, meios através dos quais os apóstatas tentam
fazer-se perdoar da renegação involuntária a que a tortura pôde
constrangê-los248. E Paciano, na sua Parénese, acentua que a ver­
dadeira vida de penitência, a que não se cumpre somente de modo
nominal, encontra os seus instrumentos no saco, na cinza, no je-

245 “[...] ut probent lapsus sui dolorem, ut ostendan! verecundiam, ut monstrent


humilitatem, ut exhibeant modestiam”, carta a Cipriano, XXXVI, 3.
246 “Quaeso vos.fratres, aequiescite salubribus remediis, consiliis obedite melio-
ribus; cum lacrymis nostris vestras lacrymas jungite, cum nostro gemitu vestros
gemitus copulate” [“Rogo-vos, meus irmãos, segui os nossos conselhos, aproveitai
do remédio salutar. Uni as vossas lágrimas às nossas lágrimas, os vossos gemi­
dos aos nossos gemidos”, tradução do Pe. Thibaut], SÃO CIPRIANO, De lapsis,
XXXII, 2.
247 SANTO AMBRÓSIO, De paenitentia, I, v, 22.
D;
248 “Confitentur gemitibus, confitentur ejulationibus, confitentur fletibus, confi­
tentur liberis, non coactis vocibus”, ibid., I, v, 24.
HO Michel Foucault

jum, na aflição, e na participação de um grande número nas ora­


ções que pedem o perdão do pecador249.
Os historiadores que contestaram a existência de um ritual de­
finido de exomologese, entre os actos de penitência e a reconcilia­
ção, erraram, sem dúvida, dados testemunhos como os de São
Cipriano. Mas não se enganavam quando sublinhavam que toda a
vida do penitente devia desempenhar também, através das diferen­
tes obrigações a que estava submetida, um papel de confissão. O
penitente deve fazer “profissão” da sua penitência. Não há peni­
tência sem actos que têm por dupla função constituírem penas que
o pecador inflige a si mesmo e manifestarem a verdade dessa pe­
nitência. Tertuliano empregava uma expressão significativa para
designar esta exomologese que era inerente ao desenvolvimento
penitencial: publicatio suí150.

Vemos pois que o perdão das faltas graves cometidas após o


baptismo e o regresso à comunhão dos que caíram não podem ser
obtidos sem a aplicação de todo um conjunto de procedimentos de
verdade. Procedimentos mais numerosos e mais complexos do que
os prescritos a propósito do baptismo. A sua gama é larga, uma
vez que vão das declarações que o pecador pode fazer no momen­
to de solicitar a penitência às grandes expressões de humildade e
de suplicação que têm lugar no limiar da igreja, antes da reconci­
liação final. Todos estes procedimentos podem ser distribuídos ao
longo de eixos diferentes.
— O eixo do privado e do público: do lado do privado, devemos
colocar a confidência que aquele que pecou quer fazer ao bispo ou
ao sacerdote quando lhe pede que lhe conceda o estatuto de peni­
tente; do lado do público, todos os actos através dos quais o peniten-24
25

249 "Sacco corpus involvere, cinere perfundere, macerare jejunio, moerore confi-
cere, multorumprecibus adjuvari” [“envolver o corpo num saco, cobri-lo de cinza,
consumi-lo pelo jejum, macerá-lo de sofrimento, obter auxílio por meio das ora­
ções de muitos”, tradução de C. Épitalon e M. Lestienne], PACIANO, Parínese,
XXIV.
250 [TERTULIANO, Depaenitentia, X, 1.]
.As Confissões da Carne 111

té se deve mostrar aos outros debaixo do saco e da cinza, prosterna­


do, em lágrimas, suplicando que intercedam por ele, e chamando os
fiéis, os clérigos e os sacerdotes a que chorem e gemam com ele. A
penitência assim entendida é um rito público e colectivo.
i" — O eixo do verbal e do não-verbal: de um lado, há a exposição
nefcessariamente oral que o futuro penitente deve fazer àquele que
o receberá na penitência; e, do outro, a série dos gestos, das atitu­
des, das lágrimas, das vestes, dos gritos, por meio dos quais o que
pecou manifesta a sua penitência. Talvez proclame o que foi o seu
pecado: mas essa enunciação faz ela mesma parte de todo um
conjunto de expressões em que é o corpo por inteiro o elemento
principal.
O eixo do jurídico e do dramático: de um lado, a penitência
deve começar pela exposição, ainda que sucinta, da falta, do que a
caracteriza e das circunstâncias que podem modificar-lhe a gravi­
dade: torna-se assim possível determinar se dará lugar à penitên­
cia, e quanto tempo a penitência durará antes da reconciliação.
Mas, no outro pólo, há manifestações dramáticas e intensas que
não obedecem a qualquer cálculo económico nem procuram
ajustar-se, da maneira mais estrita possível, à importância da falta
cometida; obedecem pelo contrário a um princípio de ênfase, de­
vem ser o mais vigorosas possível.
— O eixo do objectivo e do subjectivo: de um lado, encontra­
mos a designação da falta, pelo menos nos seus elementos essen­
ciais; do outro, o que as grandes práticas de exomologese têm a
manifestar não é tanto a falta em si mesma no que tem de particu­
lar como o estado do próprio pecador, ou antes os estados que
nele se sobrepõem, se entrecruzam e entram em concorrência.
Cabe-lhe, com efeito, mostrar-se como pecador, simbolicamente
coberto pela sujidade e a contaminação da falta, enterrado nessa
vida do pecado que é a via da morte. Mas a intensidade visível dos
actos penitenciais tem também por fim autenticar que está já a
desprender-se dessa vida e que a ela renuncia; as lágrimas que
derrama sobre o seu pecado lavam-no dele; purifica-se pela suji­
dade de que se cobre; humilhando-se mostra que de novo se levan­
112 Michel Foucault

ta e que é digno de ser de novo levantado251. As manifestações da


exomologese não procuram fazer aparecer [a falta] tal como foi
verdadeiramente cometida: visam fazer surgir em plena luz o pró­
prio penitente, tal como é: verdadeiramente pecador, e já não o
sendo verdadeiramente.
Podemos pois dizer que os procedimentos de verdade, na peni­
tência eclesiástica dos primeiros séculos, se agrupam em torno de
dois pólos: um que é o da formulação verbal e privada — tem por
missão definir a falta juntamente com os caracteres que permitem
apreciá-la e de definir de que modo pode o seu perdão ser conce­
dido; o outro, que é o da expressão global e pública, tem por mis-
sao manifestar, com a dramaticidade mais intensa possível, o ser
pecador do penitente e ao mesmo tempo o movimento que o livra
da sua falta. Sem dúvida, encontramos aqui dois pólos entre os
quais se repartem as diferentes maneiras que manifestam, na pe­
nitência, a verdade do pecador e do seu pecado. Não são duas
instituições independentes, nem duas práticas absolutamente es­
tranhas uma à outra; são vizinhas, interferem umas com as outras
e por vezes misturam-se: havia de facto macerações secretas e
exomologeses que se faziam em privado252; temos também os tes­
temunhos de enunciações públicas e verbais das faltas cometidas
por este ou aquele membro da comunidade253. Mas nem por isso

251 Sobre o duplo sentido da manifestação penitencial, cf. TERTULIANO: “É


prosternando o homem no chão que a penitência o levanta de novo; acusando-o,
desculpa-o; condenando-o, absolve-o”, De paenitentia, IX, 6; SÃO CIPRIANO:
“que esses mesmos olhos, que erraram ao olhar as estátuas profanas, derramem lá­
grimas que dêem satisfação a Deus, e apaguem o seu crime”, carta XXXI, 7; SÃO
JERONIMO: “Que pecados tais lágrimas não apagariam? Que manchas, ainda que
inveteradas, tais lamentações não lavariam?”, carta 77,4.
252 Quando SÃO CIPRIANO fala daqueles que simplesmente “pensaram” em
sacrificar-se, evoca para eles a necessidade de o confessar ao sacerdote, fazen­
do depois uma “exomologesis conscientiae” (De lapsis, XXVIII). Parece tratar-se
aqui de uma confissão, e de uma manifestação de arrependimento que se dirige, em
privado e em segredo, directamente a Deus.
253 SÃO LEÃO condena em meados do século v o costume de se ler em público
a lista dos pecados cometidos pelos fiéis (carta 168).
jçs Confissões da Carne 113

deixamos de poder reconhecer a aplicação de [dois] tipos de prá­


cticas, duas maneiras de fazer aparecer a verdade: dizer a verdade
da falta e manifestar o ser verdadeiro do pecador.
E, entre estas duas modalidades, a repartição não é igual: a
enunciação verbal da falta não é requerida senão quando se trata
de determinar a penitência, de examinar se o pecador pode ser
' admitido a fazê-la e se merece ser reconciliado. “Dizer a falta”,
fazer entrar, no elemento verbal, a confissão e o exame, exigir do
pecador uma “veridicção” dos seus pecados não é necessário se­
não antes do procedimento penitencial, e portanto, de certo modo,
fora dele. Em contrapartida, a demonstração, ostentativa, gestual,
corporal, expressiva, do que o pecador é faz intrínsecamente parte
da penitência. Forma uma sua dimensão essencial e constante. O
penitente tem menos de “dizer a verdade” sobre o que fez do que
de “fazer a verdade” manifestando aquilo que é.
A necessidade para a prática penitencial de não se efectuar se­
não através das manifestações destinadas a expor à plena luz do
dia a verdade do penitente põe um problema: porque é que, depois
de ter pecado, o pecador deve não só arrepender-se, não só impor-
-se rigores e macerações, mas mostrá-lo e mostrar-se tal como é?
Porque é que a manifestação da verdade faz intrínsecamente parte
do procedimento que permite resgatar a falta? Porque é que, quan­
do se “fez mal”, é necessário fazer brilhar a verdade, não só do que
se fez, mas também do que se é? A resposta é evidente: a partir do
momento em que a religião cristã se organizou em Igreja dotada
de uma forte estrutura comunitária e de uma organização hierár­
quica, nenhuma infracção grave podia ser perdoada sem um certo
número de provas e de garantias. Do mesmo modo que não se
podia admitir um postulante ao baptismo sem que previamente
tivesse sido posto à prova pelo catecumenato — probatio animae
não se podem reconciliar aqueles que não manifestaram sem
equívoco o seu arrependimento por meio de uma disciplina e exer­
cícios que valem como castigo no que se refere ao passo e como
compromisso no que se refere ao futuro. E necessário que prati­
quem a publicatio sui.
114 Michel Foucault

Mas o que, do ponto de vista da história da experiência de si, foi


mais enigmático foi a maneira como se reflectiu sobre e justificou
a obrigação para o pecador de dizer a verdade — ou antes de se
manifestar a si mesmo na sua verdade — a fim de poder obter o
perdão dos seus pecados. Trata-se com efeito de uma obrigação in­
cessantemente afirmada. Não há perdão se não há exomologese,
reconhecimento pelo pecador da sua falta, manifestação externa,
explícita, visível desse reconhecimento: “Aquele que se confessa ao
Senhor escapa à servidão. [...] É não somente livre, mas justo; ora,
a justiça reside na liberdade e a liberdade na confissão; aquele que
confessa é imediatamente absolvido.”254 E São João Crisóstomo
numa palavra: “Enuncia a tua falta: destruirás a tua falta.”255 É este
princípio geral que subjaz às exegeses que Santo Ambrósio e São
João Crisóstomo, cada um pelo seu lado, fazem da maldição de
Caim. A sua falta, por grave que tenha sido, não era irredimível.
Quando Deus [lhe pergunta] o que [tinha] feito do seu irmão, não é,
bem entendido, que o ignore, era para lhe dar a possibilidade de
confessar. E o que o toma imperdoável é ter respondido: não sei. Tal
é o princípio da condenação eterna. Mais grave do que o parricídio
foi essa mentira, da qual Santo Ambrósio diz que era um “sacrilé­
gio”256. O “Não sei” do criminoso, a recusa da verdade é, da parte
do pecador, a mais grave ofensa possível: não pode ser reparada. Ao
contrário de Caim, David, que confessa espontaneamente os seus
pecados, ele que era justo, é a imagem do penitente: a verdade que
professa salva-o257. E se Adão e Eva não são condenados na Eterni­
dade, é que também eles confessaram; segundo Crisóstomo, confes­
saram até duas vezes os seus crimes: verbalmente, respondendo a
Deus; nos seus gestos e nos seus corpos, escondendo a sua nudez258.

254 [SANTO AMBRÓSIO, carta XXXVII, 44.]


255 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, [II Homilia sobre a penitência, 1],
256 SANTO AMBRÓSIO, De paradiso, XIV, 71: “non tam majori crimineparri-
cidi [...] quam sacrilegii”. Cf. também SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, XIX Homilia
sobre o Gênesis.
257 SANTO AMBRÓSIO, Apologia de propheta David, [VIII, 36-39].
258 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, XVII Homilia sobre o Gênesis.
As Confissões da Came 115

Muito antes da instituição da penitência sacramental e da orga­


nização da confissão auricular, a Igreja Cristã estabeleceu o carac­
ter fundamental da obrigação de verdade para quem pecou e como
condição de um resgate possível. Dizer a verdade sobre o seu
próprio pecado, ou antes: manifestar na sua verdade o seu próprio
estado de pecador é indispensável para que o pecado cometido
seja perdoado. A manifestação daquilo que é verdade é uma con­
dição do apagamento daquilo que é verdade. Para pensar esta re­
lação; e explicar esta necessidade, o cristianismo antigo recorreu a
vários modelos.

>. 1. O modelo médico é utilizado com grande frequência: os pe­


cados são nele representados como feridas ou chagas, a penitência
? como um remédio. Tema ainda mais corrente por se poder apoiar
tanto sobre a tradição hebraica da falta-ferimento como sobre a
: concepção grega das enfermidades da alma. A ideia de uma me­
dicação penitencial é um lugar comum na pastoral cristã desde os
' primeiros séculos259, e continuará posteriormente a sê-lo. Deve­
mos todavia notar uma diferença. Quando a instituição penitencial
tiver tomado a forma do sacramento que lhe será definitivamente
reconhecida no século xii, é o sacerdote, na medida em que detém
o poder de absolver, que ocupará o lugar do médico. A necessida­
de da confissão (confession) enquanto confissão (aveu) individual,
. secreta e detalhada das faltas será então justificada pelo princípio
segundo o qual todo o doente deve com efeito revelar, àquele que
o cuida, as enfermidades que esconde, as dores que experimenta,
as doenças de que sofreu. A manifestação daquilo que o pecador
é na sua verdade e dos segredos da sua alma constitui pois desse

259 Cf. a título de exemplo: HERMAS, O Pastor, Visão I,1,9 e 3, 1; Preceito IV,
1,11; Preceito XII,6,2; Similitude V, 7,4; Similitude VIII, 11,3; Similitude IX, 23,
5 e 28; TERTULIANO,Depaenitentia, VII, x, 12; SÃO CIPRIANO, cartas XXX,
7; XXXI; LV, 7 e 15-17; De lapsis, [XXVIII]; SANTO AMBROSIO, Expositio
Evangelii secundum Lucam, V, 2; X, 66; Enarratio in Psalmum 36,14; De para-
diso, XIV, 70. Para o De paenitentia, cf. o índice da edição de Gryson (Sources
chrétiennes).
116 Michel Foucault

ponto de vista uma necessidade técnica260. Mas no cristianismo


primitivo, não é o sacerdote que cuida das feridas. O único médico
a ser reconhecido na penitência é Cristo, quer dizer, o próprio
Deus: “quanto ao pecado anterior, há alguém que pode trazer-lhe
remédio: é aquele que tem o poder de fazer tudo”261. Ora, a este
médico será necessário que o pecador mostre as suas chagas e
revele os seus males ocultos? Que poderá ser necessário dar a
conhecer àquele que tudo sabe? Não é sequer possível dissimular-
-lhe as faltas que tenhamos podido cometer no segredo do nosso
coração262. Tal é pois o paradoxo desta cura pela penitência: quer
que se manifestem, através de uma exomologese explícita e rigo­
rosa, pecados que são todavia do conhecimento daquele que deve
curá-los. É necessário expor diante dele aquilo que, de todas as
maneiras, não pode ser-lhe nunca escondido. A verdade é-lhe de­
vida, não como uma necessidade, para que possa exercer o seu
poder e escolher os remédios apropriados, mas como uma obriga­
ção do lado daquele que quer curar-se. Trata-se, para o doente, não
de tornar possível a terapêutica informando o médico, mas de
merecer a cura, pelo preço da verdade.

2. O recurso ao modelo judicial, também ele muito frequente263,


revela no fundo o mesmo paradoxo. Depois de a penitência sacra­
mental ter sido clara e nitidamente definida como um tribunal
onde o sacerdote deve desempenhar o papel do juiz (de um juiz
que representa Deus mas cujas sentenças têm os seus efeitos no
céu), a confissão exacta, pelo pecador, das faltas que cometeu
torna-se um elemento essencial do procedimento: é a partir dela
— e sob a ameaça de uma mentira ou de uma omissão voluntária
invalidarem o sacramento — que o confessor poderá pronunciar o

260 Não é, evidentemente, a única justificação da confissão penitencial, mas é


constantemente evocada.
261 HERMAS, O Pastor, Mandatum IV, 1,11.
262 Tema incessantemente repetido. Assim em TERTULIANO, De paenitentia, X.
263 Presente em Tertuliano, assume grande dimensão em Santo Ambrosio e em
Santo Agostinho.
As Confissões da Carne 117

seu juízo e determinar a satisfação a cumprir. No cristianismo


antigo, o sacerdote não desempenha o papel de juiz: é directamen­
te com Deus que o pecador tem de tratar — com um juiz portanto
ao qual nada é possível dar a conhecer porque ele tudo vê264. E
contudo é necessário mostrarem-se-lhe as faltas cometidas sem
nada esconder265. Desta obrigação, pelos autores dos séculos m-iv,
são dadas várias justificações. Uma delas é inteiramente tradicio­
nal: a confissão espontânea e sincera favorece o acusado no espí­
rito do juiz266. A outra refere-se à ideia de que o diabo será um dia
perante Deus o acusador do homem: este último encontrar-se-á
numa posição mais vantajosa se se antecipar à denúncia pelo seu
inimigo, se falar antes dele e expuser ele mesmo os crimes que
podem ser-lhe reprovados267. Além disso, sendo Cristo o advogado
do homem junto de Deus e devendo servir assim de intercessor,
estabelece-se como regra que o pecador deve confiar-lhe a sua
causa confessando-lhe os seus pecados268. Por fim, outro argu­
mento, talvez para nós mais estranho: aquele que confessa as suas
faltas não só se justifica perante Deus, mas justifica o próprio
Deus e a sua cólera contra a fraqueza dos homens: quem negasse
os seus próprios pecados estaria a querer fazer Deus mentir269.

264 “Frustra autem velis occulere quem nihilfallas: et sine periculo prodas, quod
setas esse jam cognitum” [“Seria vão querer dissimular Àquele que sobre nada
enganareis; e nada arriscais em denunciar o que sabeis ser já conhecido”, tradução
Dom G. TISSOT], SANTO AMBROSIO, Expositio Evangelii secundum Lucam,
VII, 225.
265 “Mora ergo absolutionis in confitendo est, confessionem sequitur peccatorum
remissio”, SANTO AMBROSIO, carta XXXVII, 45.
266 “In judiciis saecularibus [...] quaedam tangit judicem miseratio confitentis”,
SANTO AMBROSIO, De Colín et Abel, II, 9.
267 Assim SANTO AMBROSIO, De paenitentia, II, vii, 53: “Si te ipse accusave-
ris, accusatorem nullum timebis." Cf. também De paradiso, XIV, 71.
268 SANTO AMBROSIO, Expositio Evangelii secundum Lucam, VII, 225: “Con­
fitero magis, ut intervenía! pro te Christus, quem advocatum habernos aput Po­
trera”', cf. SANTO AGOSTINHO, Discurso sobre o Salmo 66,7.
269 SANTO AMBROSIO, Apologia de propheta David, X, 53: “si autem dixeri-
mus quia non peccavimus, mendacem facimus Deum”.
118 Michel Foucault

3. Mas, para dizer a verdade, estes dois modelos — o da medici­


na e o do tribunal —, que se tornarão mais tarde tão importantes
para organizar a confissão penitencial e lhe dar a sua forma, não
desempenham, ao que parece, no que se refere à obrigação de exo-
mologese, mais do que um papel adjacente. A obrigação para o
penitente de se manifestar, na verdade do seu estado de pecador e
na autenticidade da sua penitência, funda-se muito mais profunda­
mente na relação com o martírio. Há duas razões para o facto de a
penitência se relacionar com o martírio. Em primeiro lugar,
promete-se ao mártir o perdão dos seus pecados: o sangue que
derrama lava as suas faltas. E se essa crença, que confessou uma
primeira vez no baptismo, aceitar confessá-la uma segunda vez nos
suplícios, estes constituirão um segundo baptismo, com os [mes­
mos] efeitos de remissão das faltas que o primeiro270. Por outro
lado, o socorro da penitência — esse outro “segundo baptismo”
— foi, não sem graves discussões, concedido àqueles que tinham
caído, escolhendo renunciar a afirmar a sua fé de preferência a
sofrer o suplício: a penitência, para eles, é uma maneira de se infli­
girem a si mesmos, reafirmando assim a sua fé, o martírio ao qual,
por fraqueza, quiseram escapar. Este tema que aparece a seguir às
grandes perseguições prolonga-se mais tarde. A penitência aparece
então como substituto do martírio para a geração que já não encon­
tra nesse perigo a ocasião de assim provar a sua fé. “Os mártires
foram mortos”, e, pergunta Santo Agostinho, “quem são os filhos
dos que foram mortos, senão nós mesmos? E como nos libertámos,
senão dizendo ao Senhor: Vós rompestes os laços que me pren­
diam, eu oferecer-vos-ei em sacrifício uma vítima de louvor?”271

270 ORÍGENES fala do “baptismo do martírio” que é dado na perseguição (Exhor­


tado ad martyrium, 30); diz no mesmo texto (39) que o sangue do martírio lava
o pecado. TERTULIANO fala do martírio como de um secundum lavacrum (De
baptismo, 16) ou de um aliud baptisma (De pudicitia, 22). Cf. sobre este tema E.
E. MALONE, Martyrdom and Monastic Profession as a Second Baptism, Dussel­
dorf, 1951.
271 SANTO AGOSTINHO, Discurso sobre a Segunda Parte do Salmo 101, 3.
Mais tarde SÃO GREGORIO dirá: “Se bem que já não estejamos expostos às
As Confissões da Carne 119

Ora, o martírio é, sabemo-lo, uma conduta de verdade: testemu­


nho da crença pela qual se morre, manifestação de que a vida
neste mundo não é mais do que uma morte, mas que a morte, pelo
seu lado, dá acesso à verdadeira vida, atestação de que esta verda­
de permite enfrentar o sofrimento sem fraquejar. O mártir, sem ter
sequer de falar, e pela sua própria conduta, faz brilhar em plena
luz uma verdade que, destruindo a vida, faz viver para lá da morte.
Na complexa economia da conduta do martírio, a verdade afirma-
-se numa crença, mostra-se aos olhos de todos como uma força e
inverte os valores da vida e da morte. Constitui uma “prova” no
triplo sentido em que exprime a sinceridade da crença de um ho­
mem, autentica a força omnipotente daquilo em que ele crê, e
dissipa as aparências enganadoras deste mundo para fazer apare­
cer a realidade do além. Se a exomologese é tão importante na
penitência, se faz corpo com ela nos ritos públicos e ostentativos,
é porque o penitente deve dar testemunho como o mártir: exprimir
o seu arrependimento, mostrar a força que lhe dá a sua fé e tornar
manifesto que esse corpo que humilha não é mais do que pó e
morte, e que a verdadeira vida está noutro lado. Reproduzindo o
martírio que não teve a coragem (ou a ocasião) de suportar, o pe­
nitente coloca-se no limiar de uma morte que se oculta sob as
•aparências enganadoras da vida, e de uma vida verdadeira que é
prometida pela morte. Este limiar é o da metanoia, ou da conver­
são, quando a alma se vira por inteiro sobre si mesma, inverte
todos os seus valores e muda completamente. A exomologese co­
mo manifestação pelo próprio penitente dessa morte que foi a sua
vida e da vida a que acederá através da morte constitui a expressão
autenticadora e exemplar, a prova da sua metanoia.
Pode dizer-se que, na prática da penitência antiga, a parte da
“confissão” (“aveu”) é ao mesmo tempo difusa e essencial. Difusa,
porque não se trata de um rito preciso, localizado no conjunto do

perseguições, podemos encontrar na paz o mérito do martírio; porque, se não cur­


vamos a cabeça sob o gládio dos carrascos, trazemos o gládio espiritual na nossa
alma”, Homília sobre o Evangelho, III, 4 (P. L. 76, col. 1089).
120 Michel Foucault

procedimento, ainda que em certos momentos a enunciação verbal


da falta seja sem dúvida requerida (assim quando alguém solicita
do bispo o estatuto de penitente). Essencial, porque se trata de uma
dimensão constante do exercício penitencial. Este deve, ao longo
do seu desenrolar, manifestar a verdade. Mais tarde, na penitência
medieval, a confissão (aveu)272 tomará a forma de um “dizer-a-
-verdade”, que será a enumeração dos pecados cometidos: aqui, é
a penitência completa que deve constituir um “dizer-a-verdade”
— ou antes, uma vez que o papel da enunciação nela é singular­
mente limitado em proveito dos gestos, dos comportamentos, das
maneiras de viver, um “fazer-a-verdade”: fazer verdade a meta-
noia — o arrependimento, a mortificação, a ressurreição para a
vida verdadeira. Mas este “fazer-a-verdade” essencial à penitência
não tem por missão reconstituir através da memória as faltas co­
metidas. Não procura estabelecer a identidade do sujeito nem fixar
a sua responsabilidade, não constitui um modo de conhecimento
de si mesmo nem do passado de si mesmo, mas antes a manifesta­
ção de uma ruptura: corte do tempo, renúncia ao mundo, inversão
da vida e da morte. O penitente, diz Santo Ambrosio, deve ser
como esse jovem que regressa a casa após uma longa ausência;
aquela que o jovem amara apresenta-se diante dele e diz-lhe: aqui
estou, ego sum. E ele responde-lhe: Sed ego non sum ego. Virá um
dia, na história da prática penitencial, em que o pecador terá de se
apresentar diante do sacerdote para lhe detalhar verbalmente as
suas faltas: ego sum. Mas, na sua forma primitiva, a penitência, ao
mesmo tempo exercício e manifestação, mortificação e veridicção,
é uma maneira de afirmar ego non sum ego. Os ritos de exomolo-
gese garantem a ruptura de identidade.

272 Em francês, aveu e avouer significam “confissão” ou “confessar” no sentido


de reconhecer ou de declarar — por exemplo, em termos judiciais. Por outro lado,
confession (e, mutatis mutandis, o verbo confesser) refere-se, nomeadamente, à
“confissão” como sacramento, como gênero literário ou registo de interlocução
confessional, como crença ou fé que se professa (“confessa”), etc. (N. T.)
[A ARTE DAS ARTES]

A direcção espiritual, o exame de si mesmo, o controle atento


apelo' sujeito dos seus actos e dos seus pensamentos, a exposição
í^que deles faz a um outro, o pedido de conselhos a um guia e a
tàceitação das regras de conduta que aquele propõe: tudo isto é
fuma tradição bastante antiga. Os autores cristãos não mascararam
^‘essa anterioridade nem renegaram o parentesco entre essas práti­
cas e os exercícios que eles mesmos prescreviam. São João Crisós­
tomo recomenda o exame de consciência, reportando-se ao exem­
plo dos filósofos pagãos e citando Pitágoras273. O Manual de
Epicteto pôde ser reproduzido por São Nilo como se se tratasse de
um texto cristão, dando uma regra de existência susceptível de
formar, devidamente, a alma dos fiéis e de os conduzir à salvação.
Dos mestres de conduta da Antiguidade aos guias da via ascética
— chamada noutros lugares vida filosófica — há uma certa con­
tinuidade. Todavia, as diferenças não devem ser negligenciadas.
A prática da direcção de vida cobriu entre os gregos e os roma­
nos uma gama bastante ampla de procedimentos diferentes.
Encontramo-la sob a forma de relações descontínuas e circunstan­

273 Não sem certo desprezo: “Vai ver a formiga, preguiçoso! Observa os seus
costumes e faz-te sensato” (Prov., 6), SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, XVII Homilia
sobre São Mateus, 7 (P. G., t. 57, col. 263).
122 Michel Foucault

ciais: Antifonte, o Sofista, mantinha um consultório aberto no qual


vendia aos que deles necessitavam conselhos de conduta sobre o
modo de enfrentar situações difíceis274; e os médicos respondiam
à procura daqueles que os solicitavam não só devido a males físi­
cos, mas também a estados de mal-estar moral: os regimes que
prescreviam eram métodos preventivos ou preceitos de higiene,
regras de vida que deviam assegurar o domínio das paixões, o
controle de si, a economia dos prazeres, a equidade das relações
com outrem275. Mas as consultas podiam ser também actos de
amizade e de benevolência, sem retribuição: conversas, trocas de
correspondência, redacção de um pequeno tratado em intenção de
um amigo em dificuldade. Estas formas episódicas de direcção
respondiam em geral a uma situação determinada: um revés de
fortuna, o exílio, um luto podiam ser a sua ocasião, mas também
uma crise, uma passagem difícil, um momento de incerteza. Tal
era o caso de Sereno quando expõe o seu estado a Séneca pedindo-
-lhe o auxílio do seu diagnóstico e dos seus conselhos276. Tinha a
impressão de ter deixado de progredir no caminho da sabedoria
estóica; movimentos opostos agitavam a sua alma, não a ponto de
provocar “uma tempestade”, mas com força suficiente para lhe dar
“como que um enjoo de mar”277.
Mas existiam também formas muito mais contínuas e muito
mais institucionalizadas de direcção: tinham sobretudo lugar nas
escolas de filosofia. Aí, a disciplina de vida colectiva imposta a

274 Cf. J. HANI, “Introduction”, in PLUTARCO, Consolation à Apollonios, Paris,


1972.
275 “Devemos remeter para os outros, e não para nós mesmos, o discernimento
das doenças da alma; não devemos encarregar como vigilantes os primeiros que
apareçam [...]. Devemos fazer apelo aos outros: para que observem, para que nos
assinalem os nossos descaminhos”, GALENO, Tratado das Paixões da Alma, VI,
23.
276 “Dicam quae accidant mihi; tu morbo nomen invenies [...]. Rogo itaque, si
quod habes remedium" [“Vou indicar-te o que experimento: tu encontrarás o nome
da doença [...]. Assim a tal te conjuro, se conheces um remédio...”, tradução de R.
Waltz], SÉNECA,De tranquillitate animae,i, 4 e 18.
277 “Non tempestate vexor sed nausea”, ibid.
¿Confissões da Carne 123

da um era completada por razões muito mais individualizadas.


) mestre era nelas um guia permanente para o discípulo: ao mes­
mo lempo, ensinava-lhe pouco a pouco a verdade, ajudava-o a
progredir no caminho da virtude, do domínio de si e da tranquili­
dade de alma, punha à prova o seu avanço e dava-lhe no dia-a-dia
conselhos de vida. Assim, entre os epicuristas, preparavam-se
conversas individuais, impunha-se aos membros da Escola uma
Tegra de franqueza, incitando cada um a expor a sua alma e a nada
ídela esconder, a fim de ser possível guiá-los eficazmente; só os
mestres mais sábios podiam encarregar-se desta direcção indivi­
dual dos discípulos, enquanto os outros tinham a responsabilidade
'^colectiva de um grupo278.
j A direcção, para se exercer, fazia apelo a todo um conjunto de
práticas diversas279. Uma das mais importantes era o exame de
.^consciência. Este figura, desde os pitagóricos, como peça capital
num grande número de regras de vida. Mas nem sempre teve a
mesma forma, nem sempre incidiu sobre os mesmos objectos e
nem sempre se esperavam dele os mesmos efeitos280. Sabemos
pouca coisa sobre o exame pitagórico tirante os versos célebres
do Carmen aureum, dos quais só os dois primeiros representa­
riam a tradição mais antiga: “Não permitas que o doce sono se
introduza sob os teus olhos antes de teres examinado cada uma
das acções do teu dia.”281 Além do seu papel de prova no que se
refere ao progresso moral, este exame talvez fosse um desses
exercícios de mnemotécnica que os pitagóricos cultivavam; valia
também decerto como ritual purificador, para induzir sonhos fa-

278 Cf. I. HADOT, Seneca und die griechisch-römische Tradition der Seelenlei­
tung, Berlim, 1969, pp. 64 e sgs.
279 Sobre estes exercícios múltiplos, cf. P. RABBOW, Seelenfiihrung. Methodik
der Exerzitien in der Antike, Munique, 1954.
280 Exemplo: a discussão entre estoicos e epicuristas sobre o problema de saber
se é necessário pensarmos nas desgraças que poderiam acontecer (praemeditatio
malorum) para examinarmos de que maneira a elas reagiriamos.
281 Os versos seguintes seriam mais tardios: “Começa pela primeira e percorre-
-as todas. E a seguir, se achares que cometeste faltas graves, repreende-te; mas, se
agiste bem, regozija-te.”
124 Michel Foucault

voráveis e preparar um sono em que a Escola via uma prefigura-


ção da morte282.
No grande desenvolvimento da filosofia helenística como direc­
ção de consciência, o exame da alma desempenha um papel con­
siderável. Constitui uma espécie de revezamento: uma muda onde
o dirigido rende o director, uma charneira entre o período em que
alguém é dirigido e o momento em que deixa de o ser. E através
do exame que o discípulo ou o consulente pode aceder ao estado
de quem descobre o estado da sua alma ao seu director, a fim de
que este possa formar um juízo e determinar o remédio apropria­
do. Começa assim o exame de Sereno quando este vai pedir auxí­
lio a Séneca: “É-me menos fácil fazer-te conhecer em resumo do
que no detalhe esta enfermidade da minha alma [...]. Dir-te-ei os
acidentes que experimento: a ti cabe dar nome à doença.”282 283 É
também através do exame que o dirigido pode ele mesmo avaliar
de que modo os conselhos do seu director agem sobre a sua alma
e lhe permitem aperfeiçoar-se; é através dele que pode controlar
permanentemente se os segue como devido e se é capaz assim de
adquirir a sua autonomia. É ainda o exame que, uma vez termina­
do o tempo da direcção, lhe permite prolongar os seus efeitos e
exercer sobre a sua própria alma uma actividade permanente de
direcção. Este quádruplo papel do exame como abertura da alma
a outrem, interiorização das regras de direcção, pôr à prova do seu
sucesso, e exercício de controle de si uma vez adquirida a autono­
mia aparece claramente no tratado que Galeno consagrou às Pai­
xões da Alma: “Devemos remeter para os outros, e não para nós
mesmos, o discernimento das doenças da alma; não devemos en­
carregar como vigilantes os primeiros que apareçam, mas velhos
unánimemente tidos por sábios, comprovados por nós mesmos, em
muitas ocasiões, como isentos de tais doenças [...]. Devemos tor-

282 Sobre o valor mnemotécnico desta prática e o seu sentido como preparação pa­
ra o sono e para os sonhos, cf. H. JAEGER, “L’examen de conscience dans les reli­
gions non chrétiennes et avant le christianisme”, Numen, t. VI, 1959, pp. 191-194.
283 SÉNECA, De tranquillitate animae, 1,4.
As Confissões da Carne 125

nar acensar nestas coisas todos os dias, várias vezes na medida do


possível, pelo menos desde a aurora, antes do inicio das nossas
acçÕês, e à noite antes de adormecermos. Quanto a mim, tomei o
hábita de meditar primeiro, de pronunciar a seguir em voz alta,
duasWèzes por dia, os conselhos que nos foram transmitidos como
sendõ.’ de Pitágoras, porque não basta obter um estado de alma
iguaí^mas tratar de curar também a gula e o deboche [...]. Entre
aquefès que são os seus próprios guias, devemos fazer apelo aos
outrdÉ: para que observem, para que nos assinalem os nossos des­
caminhos; mais tarde, para que nos observemos a nós mesmos
sem pedagogo.”284
' Neste papel de revezamento e de charneira, o exame de cons­
ciência é orientado por um propósito e põe, em termos privilegia­
dos, tima questão: a do domínio de si. Se o dirigido se examina, se
assinala cada uma das suas fraquezas, é bem para poder um dia
tornar-se plenamente senhor de si mesmo e já não ter de recorrer,
numlance aziago, ao auxílio de outrem. Esta finalidade do exame
de si surge claramente através da comparação de dois textos que,
um e outro, relevam da prática estoica: mostram, o primeiro, o que
pode ser o exame no interior de uma relação de direcção, e o se­
gundo o que é naquele que alcançou a autonomia filosófica.
Trata-se, para começar, da carta de Sereno a Séneca. Enquanto
avança passo a passo na filosofia estoica, Sereno pede auxílio ao
filósofo num momento em que experimenta como que um mal-
-estar: sensação de estar a deixar de avançar, temor de que o ape­
go ao que é mal e ao que é bem se tenha incrustado de maneira
definitiva, impressão de estar imobilizado num estado que não é
por completo liberdade nem por completo escravidão. Em suma,
não está doente nem de boa saúde285. O exame a que então se en­
trega Sereno para que Séneca possa intervir, diagnosticar e propor
remédios consiste em estabelecer uma espécie de balanço de for­
ças: quais são as que asseguram a estabilidade da alma, a sua

284 GALENO, Tratado das Paixões da Alma, VI, 22-24.


285 “Nec aegmto nec valeo”, SÉNECA, De tranquillitate animae, I, 2.
126 Michel Foucault

calma, a sua independência? Quais são as que pelo contrário a


expõem à perturbação exterior e a colocam na dependência daqui­
lo que lhe não pertence? O exame incide sucessivamente sobre o
problema da riqueza, dos deveres públicos e da preocupação com
a glória póstuma. Sobre estes três pontos, procede a uma separa­
ção: de um lado, o que marca a capacidade por parte da alma de
se satisfazer com o que está à sua disposição (uma casa suficiente,
alimentação simples, móveis que herdou), cumprir exactamente o
que é dever do homem público (servir os amigos, os concidadãos,
a humanidade), tomar em consideração as ocasiões em que se fala
de coisas reais e presentes; mas, do outro lado, há o prazer que
experimenta com o espectáculo do luxo ostentado, o entusiasmo
que por vezes o arrebata, as palavras que se empolam como se
quisesse acima de tudo que a posteridade falasse dele.
O exame de Sereno não incide pois nem sobre actos definidos,
nem sobre um passado mais ou menos longínquo; não se trata nem
de fixar o quadro do que foi feito de bem ou de mal, nem de dar
conta das faltas cometidas em vista do arrependimento. O olhar da
consciência dirige-se para o presente, um presente que é encarado
como um “estado”286, a acção daquilo que o leva quer a ficar em
casa satisfeito com a sua sorte, quer a acudir ao fórum e a falar aí
com uma voz que já não se pertence a si mesma. Mas o exame não
tenta procurar as causas de um tal estado: não mergulha em busca
das raízes ocultas do mal, tenta restituí-lo tal como se apresenta à
consciência, sob a forma das satisfações que experimenta ou dos
movimentos que sente em si mesma. A repetição sistemática da
palavra placet é significativa: é o sentimento que a alma experi­
menta a propósito do que faz ou do que vê que constitui o objecto
específico do exame. Aquele constitui com efeito a maneira como
se manifestam à alma os movimentos que a agitam — e que, no
caso particular de Sereno, a puxam simultaneamente em direcções
opostas, imobilizando-a no caminho do progresso e fazendo-a

286 “ Illum tamen habitum in me maxirne deprehendo” [“Contudo, a disposição na


qual as mais das vezes me surpreendo”, tradução de R. Waltz], ibid.
% As Confissões da Carne 127

, • oscilar a ponto de lhe causar como que um enjoo de mar. Temos


/ , assim o quadro da “infirmitas” da alma através da consciência que
7!*;ela permanentemente toma de si mesma.
No livro III do De ira, Séneca propõe o exemplo de um outro
tipo de exame: esse que exerce todas as noites, antes de adormecer,
depois de apagadas todas as luzes. Trata-se então de fazer a inqui-
>;lição do dia, “perscrutando” como por completo se desenrolou.
| Retoma os seus actos e as suas palavras e avalia-as: lembra que
.. perdeu o seu tempo a querer instruir ignorantes, ou que, querendo
admoestar um dos seus próximos, lhe falou com tanta vivacidade
XZ X^ZXXV* LÃÃM.AU VZ ^ZKSXXX^XVX' < kJ VV4 X XXXZ U» J-Z V X MX X W VXXXX -WZ XX4.XX XW

claramente retrospectivo: orienta-se para acções definidas e tem


por propósito, “medindo-as de novo”287, separar as que foram más
das que eram boas. Umas e outras devem assim receber “a sua
/ parte de elogio e de reprovação”. É, aqui, o modelo judicial (e já
não o médico) que está presente, como as palavras dizem sem
‘' ambiguidade: cognoscit de moribus suis; apud me causam dico.
Mas devemos notar que esta inquirição não conduz a uma conde-
t ■ nação e a uma pena. Não há castigo, nem sequer remorso. Nem
f- temor, por conseguinte, nem desejo de se dissimular a si mesmo
P seja o que for. Porque aquele que se examina diz-se apenas: “Ago-
> ia perdoo-te”; “cuida de não recomeçares”. Porque o modelo tal­
vez seja mais administrativo do que realmente judicial: a imagem
1 latente no texto faz pensar menos num tribunal do que numa ins-
pecção. Perscruta-se, examina-se, detecta-se, mede-se de novo288.
Ora, os dois exemplos dados por Séneca indicam bem quais as
9 acções que cada um deve reprovar-se: ter querido instruir pessoas
i que não eram capazes de escutar, ter ferido aquele que se queria
i corrigir. Não se ter portanto alcançado o alvo visado. Segundo
;. um princípio característico deste estoicismo, é em função dos fins
1 ou dos alvos que podemos qualificar uma acção e declará-la boa
I;'
287 “Fada ac dida mea remetior”, SÉNECA, De ira, III, 36.
288 Notar [no De ira, III] expressões como: excutere diem, speculator, remetiri
ada, scrutari totum diem.
128 Michel Foucault

ou má289. E foi por ter conhecido mal os princípios racionais da


acção — inútil instruir os que nunca puderam aprender nada; ou
ainda: devemos ter em conta, quando falamos, a capacidade por
parte do interlocutor de receber a verdade — que Séneca cometeu
“faltas” relativamente aos objectivos que visava. Outros tantos
erros, por conseguinte290. E o papel do exame é permitir corrigí-
-los de futuro, fazendo aparecer as regras de conduta que foram
ignoradas. Não se trata de se reprovar o que se fez, mas de cons­
tituir esquemas de comportamento racional para as circunstân­
cias futuras, dando assim à autonomia uma base de molde a fazê-
-la coincidir com a ordem do mundo, fazendo fazer entrar em
acção os princípios da razão universal. Podemos dizer que o
exame do De ira, por retrospectivo e centrado nas faltas passadas
que seja, tem uma função de “programação”: reconhecer, através
dos “erros” e dos objectivos falhados, as regras que permitirão
assegurar o domínio das acções que se empreendem, e portanto
o domínio de si mesmo.

Estas práticas não foram imediatamente acolhidas no cristianis­


mo. Não é antes do século iv que vemos definir-se a obrigação e
as regras do exame de consciência291, ou desenvolverem-se as
técnicas de uma direcção das almas. Os temas da filosofia antiga
impregnaram o pensamento cristão muito antes de neste penetra­
rem os procedimentos próprios da vida filosófica.
E certo que, a partir dos séculos n e ni, há numerosos textos que
sublinham a importância do conhecimento de si mesmo e de re-
flectirmos sobre os actos a fazer ou os já cometidos. Clemente de
Alexandria, no início do terceiro livro de O Pedagogo, lembra que
“o maior dos conhecimentos é o conhecimento de si mesmo {to
gnônai hautorí)". Mas não se trata de uma investigação de si mes-

289 Cf. EPICTETO.


290 SÉNECA, De ira, III, 36.
291 Cf. J.-C. GUY, artigo “Examen de conscience (chez les Pères de 1'Église)”, do
Dictionnaire de Spiritualité, t. IV.
Çonfjssões da Carne 129

' rno, de uma retrospecção do passado ou da reactualização na


, memória das faltas das quais alguém se possa ter tornado culpado.
* Ti ata-se de reconhecer em si mesmo o elemento através do qual se
• pode conhecer Deus, esse cujo guia é Deus, esse que por conse-
,* guinte pode conduzir até ele e que, desprendendo o homem do
' mundo exterior, com os seus ornamentos materiais, o reveste de
íijima beleza pura que o faz assemelhar-se ao próprio Deus292. O
11 tjonhecimento de si não é aqui, seja de que maneira for, um exame
íie consciência, nem um mergulho nas profundidades de si mesmo,
4‘ trata-se de uma ascensão para Deus a partir da instância da alma
póde subir na sua direcção. Num espírito muito diferente,
.-Santo Hilário recomenda ao cristão que reflicta cuidadosamente

I ¿¡obre os seus actos293, mas está a pensar sobretudo numa vigilân-


gí cia que permita não nos comprometermos com ligeireza numa
3? acção, prevermos os seus perigos e não a levarmos a cabo senão
?• depois de aquela ter atingido o ponto de maturidade necessário;
„ reflexão prospectiva, por conseguinte, perfeitamente em confor-
£ m idade com o que exigiam a filosofia corrente e muito em parti-
i: cular os estóicos294, mas que não assume a forma de um exame
t sistemático de si mesmo.
í < O mesmo se pode dizer a propósito da direcção. O tema do
& pastor que deve guiar o rebanho a caminho dos prados da salvação
■ e ao mesmo tempo cada uma das ovelhas está presente nas formas
jí; mais antigas do cristianismo. Mas não coincide com a ideia de
;• uma “direcção” que tomaria a seu cargo a vida de um indivíduo, a
guiaria passo a passo, lhe prescrevería um regime específico, lhe
fc daria conselhos de conduta quotidiana, tomaria conhecimento, a
F título permanente, dos seus progressos e exigiría uma obediência
i contínua e sem falha. Um texto de Clemente de Alexandria é a
F'
, “292 CLEMENTE DE ALEXANDRIA, O Pedagogo, III, i, 1- Esta passagem
s ’ reporta-se ao tema platônico das três partes da alma, das quais a primeira, o logis-
tikon, é o homem interior guiado por Deus.
\ 293 SANTO HILÁRIO, P. L., t. 9, col. 556a-b. Cf. no mesmo sentido: SANTO
AMBRÓSIO, In Psalmum David CXVIII Expositio, P. L., 1.15, col. 1308c.
294 Cf. EPICTETO.
130 Michel Foucault

este respeito significativo295: sublinha a necessidade para aquele


que é rico e poderoso (para o qual, portanto, a entrada no paraíso
é singularmente difícil) de ter alguém que lhe preste auxilio, e usa
as metáforas tradicionais da direcção (um “piloto”, um “mestre de
ginástica”); esse guia falará com franqueza e rudeza, o que signi­
fica que deverá ser escutado ainda com mais temor e respeito. Mas
esta actividade de aconselhamento é somente um aspecto de um
papel mais complexo, fazendo com que aquele que “dirige” deva
rezar, jejuar, entregar-se a vigílias, submeter-se a macerações, em
benefício do dirigido. É assim, junto de Deus, seu intercessor, seu
representante, seu garante, tal como é, junto do pecador, um anjo
enviado por Deus. Trata-se aqui de uma substituição ou pelo me­
nos de uma participação sacrificial que excede largamente a téc­
nica de direcção. Confirma-o o exemplo apresentado por Clemen­
te: este mostra-nos o apóstolo João a baptizar um jovem, a
confiá-lo a seguir, durante a sua ausência, ao bispo local; e quan­
do, ao regressar, depara com o neófito de novo caído no pecado,
reprova ao bispo a má vigilância exercida e dirige-se ao pecador:
“Defender-te-ei junto de Cristo; se necessário, morrerei em teu
lugar, e de boa vontade, a exemplo do Senhor. Imolarei pela tua a
minha vida.”296 É assim que o reconduz à Igreja, derramando lá­
grimas com ele e partilhando os seus jejuns. O modelo, como ve­
mos, não é o do mestre que ensina ao seu discípulo como deve
este viver e conduzir-se: é o de Cristo que se sacrifica pelos ho­
mens depois de eles terem caído e que intercede por eles junto de
Deus. A troca do sacrifício pelo resgate é aqui mais importante do
que os procedimentos que permitem conduzir uma alma e fazê-la
progredir pouco a pouco297.
De facto, as práticas de direcção e de exame de consciência que
a filosofia antiga elaborara não foram acolhidas no cristianismo, e

295 CLEMENTE DE ALEXANDRIA, Quis dives salvetur, XLI.


296 [Ibid., XLI, 13..]
297 Deve notar-se que, até mesmo depois de se terem desenvolvido as técnicas da
direcção cristã, o modelo do sacrifício crístico nem por isso se apagará. Continua­
remos a encontrá-lo constantemente, mas com um lugar mais limitado.
j As Confissões da Carne 131
í
!J não se desenvolveram no seu interior, através de formas e efeitos
í novos, senão com o monaquisino: no interior das suas instituições
e a partir delas. Que tais procedimentos da vida filosófica tenham
3 sido aplicados no monaquismo nada tem de surpreendente. Desti-
” nado a levar à vida perfeita — quer dizer, a “uma existência em
1. ‘que a pureza da conduta está associada ao conhecimento verdadei-
£ ro daquilo que é”298 —, o monaquismo pôde apresentar-se como a
¿/.via filosófica por excelência: filosofia segundo Cristo299, filosofia
b'pelas obras300. E os mosteiros puderam ser definidos como escolas
■7;dc filosofia301. É pois que então — quer na semianacorese como
’■ era praticada no Baixo Egipto, por exemplo, onde alguns discípu­
los vinham iniciar-se na vida do deserto junto de ascetas de reno-
Cme; quer nos cenobios onde a vida comunitária se ordenava segun-
;/do regras gerais e estritas — a conduta dos indivíduos vai ser
^organizada segundo procedimentos complexos. Estes deram lugar
’ a reflexão e elaboração, e à constituição de uma arte, da qual Gre-
’.gório de Nazianzo dirá, recuperando o termo habitualmente utili-
■z.ado para designar a filosofia, que é tekhnê [tekhnôn]302, arte das
.artes: “Não sei em que ciência ou em que força poderia ele tomar
’■‘■a audácia de assumir uma tal prelatura. Na realidade, parece-me
i. -ser a arte das artes, e a ciência das ciências que guiam o homem,
:o mais diverso e o mais variável dos animais.”303 De modo cons­
tante, e até à época contemporânea, a direcção dos indivíduos, a
condução da sua alma, a orientação, passo a passo, do seu progres-

!
>■ 12,,8 Cf. SANTO NILO: "[Philosophia gar esiin] êthòn katorthôsis meta doxês
í tésperi tou ontos gnôseôs alêthous”, [Logos askêtikos, III, P. G., t. 79, col. 721].
;' 299 [SÃO BASILIO, Constituições Monásticas, P. G., t. 31, col. 1321a.]
■,3(10 [“£>í ’ergônphilosophia”, GREGORIO DE NAZIANZO, Discurso VI (P. G., t.
'; 35, col. 721), citado por I. HAUSHERR, Direction spirituelle en Orient autrefois,
i - Roma, 1955, p. 57.]
7301 [Nota vazia.]
■ ■ 302 [Manuscrito: tekhnê tekhnês, mas o texto de Gregorio de Nazianzo diz: “tó
-' onti gar autê moi phainetai tekhnê tis einai tekhnôn kai epistêmê epistêmôn, to
polutropôtaton tôn zôôn kai poikilâtaton”.]
303 [GREGORIO DE NAZIANZO, Discurso II, 16, citado por I. HAUSHERR,
’ Direction spirituelle en Orient autrefois, p. 57.]
ftOfeo
132 Michel Foucault

so, a exploração, em comum com eles, dos movimentos secretos


do seu coração serão colocadas sob o signo desta ars artiumiM.
Sobre estas práticas de direcção e de exame, seguirei, de modo
não exclusivo mas privilegiado, as informações dadas por Cassia-
no. Este não representa decerto as formas mais elevadas do pensa­
mento ascético, mas, por um lado, foi, com São Jerónimo, um dos
principais veículos das experiências orientais no Ocidente; e, por
outro lado, não se contenta, tanto nas Instituições como nas con­
ferências, com citar os feitos dos monges mais célebres ou trans­
mitir as suas regras de existência. Expõe segundo a sua própria
experiência “a vida simples dos santos”; ao esquema das institui­
ções e das regras, acrescenta a exposição “das causas dos vícios
principais”, bem como “a maneira de os curar”. Menos do que “as
maravilhas de Deus”, trata-se para ele de fazer conhecer “a correc-
ção dos costumes e a maneira de conduzir a vida perfeita”304305.
Testemunho pois que, entre as regras institucionais e os exem­
plos mais edificantes, procura fazer conhecer uma maneira de
fazer, uma prática com os seus métodos e as suas razões. Em su­
ma, para retomarmos uma expressão desenvolvida no início das
Conferências, a vida dos monges é aqui tratada como “arte” e
estudada como relação entre meios, alvos particulares e um fim
que lhe é próprio306307
.

I. O PRINCÍPIO DE DIRECÇÃO

“Aqueles que não são dirigidos caem cõmo folhas mortas.” Este
texto dos Provérbios™ foi regularmente citado na literatura mo­
nástica em apoio do princípio segundo o qual a vida do monge não

304 Assim a título de exemplo: [nota incompleta].


305 J. CASSIANO, Instituições, “Prefácio”, 7-8.
306 J. CASSIANO, Conferências, I, 2. Cf. também in Conferências, II, 11, e II,
26, a caracterização da vida monástica como ars e disciplina. Igualmente: Confe­
rências, XIV, 1; XVIII, 2; X, 8.
307 [Provérbios, 11,14 (Bíblia dos Setenta).]
?As Confissões da Carne 133

pode dispensar uma “direcção”. Não pode dispensá-la se o monge


se dispuser a levar, na solidão, a existência do anacoreta. E não
deve sequer dispensá-la quando se desenrola num mosteiro sob a
férula de uma regra comum. Num caso como noutro exige-se essa
relação singular que liga um discípulo a um mestre, o coloca sob
um controle contínuo, o obriga a seguir a sua mínima ordem e a
confiar-lhe a sua alma, sem sombra de reticência. A direcção é
indispensável a quem quer caminhar rumo à vida perfeita: nem o
ardor individual da ascese nem a generalidade da regra podem
substituí-la.
'"i! Na sua décima oitava conferência, Cassiano refere-se, segundo
o abade Piamun, à distinção dos monges segundo três ou antes
quatro categorias308. Às duas que condena — os sarabaítas e falsos
anacoretas surgidos há pouco tempo —, reprova essencialmente
que recusem a prática da direcção. Os sarabaítas “não cuidam da
disciplina cenobítica” e recusam “submeter-se à autoridade dos
anciãos”; “sem formação regular alguma, nem regra ditada por
uma sábia discrição”, “nada desejam menos do que ser governa­
dos. ..”, entendem “permanecer livres do jugo dos anciãos a fim de
conservarem licença plena na efectuação dos seus caprichos”309.
Do mesmo modo, os falsos anacoretas, porque são desprovidos de
humildade e de paciência, não suportam ser “exercitados” (laces-
siti) por seja quem for310. O mau monge é aquele que não é dirigi­
do: é porque chega ao monaquismo com más intenções — quer
dar-se a aparência, mas não a realidade da vida monástica — que
recusa deixar-se dirigir; e porque recusa essa direcção, os vícios
nele não fazem senão progredir311.
É pois através da direcção que se entra na realidade da existên­
cia monástica. Aos que escolhem os “lugares cimeiros da anaco-

308 A conferência anuncia três espécies de monges: cenobitas, anacoretas e sara­


baítas; mas no § 8 é-lhes acrescentada uma quarta.
309 [JOÃO CASSIANO, Conferências}, XVIII, 7.
310ZtóZ.,8.
311 “Não é suficiente dizer que os seus vícios não se corrigem; pioram pelo sim­
ples facto de ninguém os excitar (a nemine provocata)”, ibid.
134 Michel Foucault

rese”, Cassiano aconselha que comecem por se pôr a si mesmos à


prova na comunidade regular de um cenobio312, que procurem
depois um mestre junto do qual possam aprender a solidão. Recor­
da um conselho de Santo Antão: para uma aprendizagem tão difí­
cil, um único mestre não basta, é necessário, junto de vários, to­
mar como exemplo as virtudes que cada um deles possui — “o
monge que deseja fazer provisão de mel espiritual deve, como uma
abelha muito prudente, colher cada virtude junto daquele que a
tornou mais familiar, e guardá-la cuidadosamente no vaso do seu
coração”313.
Quanto àquele que quer entrar no cenobio, começa por ser sub­
metido à grande prova do limiar: fazem-no esperar à porta do
convento onde suplica que o deixem entrar; mas, fingindo suspei­
tar nele somente motivos interessados, os monges, durante dez
dias, repelem-no, “acabrunham-no com injúrias e reprovações”, a
fim de porem à prova a sua intenção e a sua constância. Se for
admitido, a sua formação desenrola-se a seguir em duas fases.
Confiam-no num primeiro tempo a um ancião, que, “residindo à
parte, não longe da entrada do mosteiro, tem a seu cargo os estran­
geiros e os hóspedes”: aí, exercitam-no no serviço — famulatus
—, na humildade e na paciência. Após um ano inteiro, e se não
houver queixas a seu respeito, é integrado na comunidade, e con­
fiado a um outro ancião, encarregado de instruir e de governar
— instituere et gubernare — um grupo de dez jovens. Sobre a
duração deste noviciado, Cassiano não dá indicações, a sua medi­
da dependia sem dúvida das aptidões e dos progressos de cada um.
Cassiano nada diz também da existência de uma relação de direc­
ção entre os anciãos314. Por um lado, nada indica de maneira pre­
cisa que os anciãos estivessem obrigados a recorrer, regular ou

312 Tal foi o caso de Pafnúcio, cujas vida e lição são evocadas na III Conferência.
313 J. CASSIANO, Instituições, V, 4, 2. Pouco antes, em contrapartida, Cassiano
considera, segundo o abade Pinúfio, que os cenobitas devem no interior da comu­
nidade ligar-se a um único mestre, em vez de procurarem apoio em vários (IV, 40).
314 Sobre este ponto cf. O. CHADWICK, John Cassien. A Study in Primitive
Monasticism, Cambridge, 1950.
^Confissões da Carne 135
BS

episódicamente, a um director. Por outro lado, todavia, Cassiano,


como todos os autores da sua época, insiste no princípio de que
tpda a alma, seja qual for, tem necessidade de direcção315; de que,
qté mesmo após prolongados exercícios e quando se tem já uma
grande reputação de santidade, é possível que se recaia316; e de que
s- monges, até mesmo os mais rigorosos, experimentam, até ao
fjm da sua vida, a necessidade de ser dirigidos. Em duas ocasiões
jC nas Instituições e nas Conferências Cassiano recorda a
jfegrande santidade de Pinúfio: o respeito de que o rodeavam no seu
convento tirava-lhe “a possibilidade de progredir na virtude da
submissão à qual aspirava”; em duas ocasiões, foge secretamente
'para retomar noutro lugar a sua vida de noviço, sentindo-se deso-
! lado quando o descobrem e chorando por não poder terminar a sua
vida nessa submissão que adquirira317. O certo é que, para Cassia­
no, só pode ser chamado a comandar aquele que aprendeu a obe-
¿7-decer, e adquiriu, “por meio da formação recebida dos anciãos, o
|h‘que deverá transmitir aos mais novos”; assim como a mais alta
sabedoria,, ou melhor, “o dom mais elevado” do Espírito Santo,
. consiste n<
r na possibilidade daquele que sabe ao mesmo tempo “di-
r rigir bem os outros” e “fazer-se dirigir”318. O que caracteriza a
santidade de um ancião não é que nele a aptidão para dirigir se
í tenha substituído à necessidade de o ser, mas o facto de o poder de
I

>15 Pacómio, na hora da morte, professa ter aceitado as admoestações até dos mais
pequenos (Fragnients captes de la vie de Pacôme, traduzidos por R. DRAGUET,
>n Les Pères du Désert, Paris, 1949, pp. 116-117).
316 “Conheci monges que após grandes trabalhos caíram e acabaram na loucura,
• por terem contado com as suas obras e terem esquivado por razões falsas o manda­
mento de Aquele que diz: Interroga o teu pai e ele te informará”, SANTO ANTÃO,
■ P. G., t. 65, col. 88b [tradução in I. HAUSHERR, Direction spirituelle..., p. 16]. A
1 II Conferência, consagrada à discretio, cita uma série de exemplos de monges cuja
i obstinação em se dirigirem só eles a si mesmos conduziu à queda. Significativo
éntre todos é o exemplo do monge que, crendo-se fora de toda a tentação, dirige
com excessiva acrimónia um discípulo e, a título de punição, cai numa tentação da
! qual só o socorro do abade Apoio pôde salvá-lo (§ 13).
317 Instituições, IV, 30-31; Conferências, XX, 1.
318 Conferências, II, 3.
dêtr
136 Michel Foucault

dirigir os outros nele se manter ligado, fundamentalmente, à dis­


posição pronta para aceitar uma direcção. O santo não é aquele
que “se dirige” a si mesmo: é aquele que se deixa dirigir por Deus.
Universalidade, pois, da relação de direcção. Ainda que haja
uma fase de iniciação à vida monástica em que a direcção deve
assumir uma forma densa, institucional, organizada por regras
comuns a todos os noviços, a vontade de aceitar uma direcção, a
disposição a deixar-se dirigir, é uma constante que deve caracteri­
zar a vida monástica por inteiro3’9. Desta direcção, e da maneira
como deve exercer-se, Cassiano indica os dois aspectos principais.
— A direcção consiste num treino para a obediência, entendido
como renúncia às vontades próprias pela submissão à de outrem:
“A preocupação e o objecto principal do seu ensino [trata-se do
mestre dos noviços], que tornará o jovem monge capaz de se elevar
depois aos mais altos cimos da perfeição, será ensinar-lhe antes do
mais a vencer as suas vontades. Nisso o exercitando com aplicação
e diligência, cuidará sempre de lhe ordenar expressamente o que
tiver observado ser contrário ao seu temperamento.”319320
— E, para se alcançar esta obediência perfeita e exaustiva, para
que possa operar-se este jogo de anulação-substituição (anulação
da vontade própria, substituição da vontade de um outro), é indis­
pensável um exercício: o exame permanente de si e a confissão
perpétua: “Para tal alcançar facilmente [a obediência perfeita e a
humildade de coração], ensinam-se os iniciandos a não esconde­
rem por falsa vergonha qualquer dos pensamentos que lhes cor­
roem o coração, mas, assim que aqueles nascem, a manifestarem-
-nos ao ancião, e, ao ajuizarem deles, a não se fiarem na sua
opinião pessoal, mas a crerem mau ou bom o que o ancião, depois
de o examinar, declarar tal.”321

319 Na Regra de SÃO BENTO, é dito dos monges: “ambulant alieno judicio et
império” (capítulo 5).
320 J. CASSIANO, Instituições, IV, 8.
321 Ibid.,lV,9.
Confissões da Carne 137

E II. A REGRA DE OBEDIÊNCIA

Que a direcção suponha a obediência exacta do discípulo ao


iL mestre não é evidentemente um princípio próprio no monaquisino
'■ ¿ristão. Na vida filosófica da Antiguidade, o mestre devia ser escu-
1'tado fielmente. Mas tratava-se de uma obediência ao mesmo tempo
.finalizada, instrumental e limitada. Tinha com efeito um objectivo
definido: devia permitir o libertar-se de uma paixão, o superar um
luto ou um desgosto, o sair de uma fase de incerteza (era o caso de
?’Sereno ao consultar Séneca), ou o alcançar um certo estado (de
^..tranquilidade, de domínio de si, de independência frente aos acon­
tecimentos exteriores). Para alcançar tal fim, o director utilizava
i.-'meios adequados, e a obediência requerida do discípulo incidia
apenas sobre as formas necessárias de obediência. Finalmente, era
i’ uma submissão provisória que devia cessar assim que fosse alcan­
çado o alvo visado pela direcção. A primeira não era mais do que
um dos instrumentos aplicados pela segunda, mas segundo uma
economia estrita que a limitava unicamente ao momento e unica-
i- mente aos objectivos em vista dos quais pudesse ser útil.
>* ■“ A obediência monástica é de um tipo completamente diferente.
. a) E em primeiro lugar global: não se trata de obedecer unica­
mente, na medida em que essa submissão pudesse permitir alcan­
çar um resultado, é necessário obedecer em tudo. Nenhum aspec­
to da vida, nenhum momento da existência deveria escapar à
forma da obediência. Aquele que é dirigido deve conduzir-se de
tal modo que a mais pequena das suas acções, até essa que parece
dever escapar mais à sua própria vontade, se submeta à vontade de
quem o dirige. A relação de obediência deve atravessar a existên­
cia até mesmo nas suas mínimas parcelas. Tal é a subditio, que
tem por efeito que em todas as suas condutas o monge deve agir
de modo a ser conduzido. Conduzido pela regra, conduzido pelas
ordens do abade, pelos ditames do seu director, eventualmente até
mesmo pelas vontades dos seus irmãos322, porque, se é verdade
322 [J. CASSIANO, Instituições, IV, 30.]
138 Michel Foucault

que estas não emanam de um superior ou de um ancião, têm esse


privilégio de serem vontades de um outro. Não há pois que fazer
distinção entre o que se faz por si só e o que se faz por conselho
de outrem. Tudo o que é feito deve obedecer a uma ordem.
O officium do monge, diz São Jerónimo, é obedecer323. Deverá
fazer portanto todas as coisas obedecendo a uma ordem expressa,
ou pelo menos segundo uma permissão concedida — “Todo o
acto que seja feito sem ter sido ordenado ou permitido por um
superior é um roubo e um sacrilégio que conduz à morte, e não a
nenhum proveito ainda que te pareça bom.”324 “Os jovens não só
não se atrevem a sair da cela sem que o seu condutor o saiba e
consinta, como não presumem sequer a autorização daquele quan­
to à satisfação das suas necessidades naturais.”325 E mais tarde
Doroteu de Gaza narrará o feito de um discípulo de Barsanúfio
que, esgotado pela doença, se reteve contudo de morrer enquanto
o seu mestre não lhe deu autorização para o fazer326.
b) Acresce que o valor desta obediência não está no conteúdo
do acto prescrito ou permitido. Reside antes do mais na sua forma
— no facto de se estar submetido à vontade de um outro e de a
acatar, sem atribuir importância ao que é querido pelo outro, mas
retendo o facto de ser um outro quem quer. A esta vontade outra,
o essencial é nada opor: nem a vontade própria, nem a razão, nem
algum interesse, ainda que pareça legítimo, nem a mínima inércia.
Importa aceitar “sofrer-se” inteiramente essa vontade, ser-se, no
que a ela se reporta, como que dúctil e transparente. É o princípio
da patientia, que faz aceitar tudo o que o director quer ê tudo su­
portar da sua parte. Cassiano, como as outras testemunhas da vida
monástica, relata as provas mais célebres desta paciência. Prova de

323 [‘We<? de majorum sententia judices, cujus officium est obedire”, SÃO JE­
RÓNIMO,carta 125 ao mongeRusticus (P.L.,t.22,col. 1081).]
324 [SÃO BASÍLIO, De renuntiatione saeculi, 4 (P. G., t. 31, col. 363b), citado
porl. HAUSHERR,Direction spirituelle...,pp. 190-191.]
325 J. CASSIANO, Instituições, IV, 10.
326 DOROTEU DE GAZA, [“Vie de Dosithée”, in (Euvres spirituelles, Paris,
S. C„ 1964, pp. 122-145],
[s .Confissões da Carne 139
f

b.wdidade. Ainda que desprovida de sentido, uma ordem deve


er exaustivamente executada: assim fez o abade João, herói da
bediência, quando o seu mestre o mandou regar durante um ano
nteiro um pau seco plantado em pleno deserto.327 Prova de ime-
liatidade. Uma ordem deve ser cumprida imediatamente sem o
ñínimo atraso: assim que é enunciada, prevalece sobre todas as
futras obrigações, quaisquer que sejam, nada há que não deva
:edcr frente à actualidade do que é mandado. Assim esse monge
icupado a recopiar as mais sagradas Escrituras, que se interrompe
ío momento em que é chamado à oração; o seu estilete levanta-se
le imediato e a letra que estava a traçar fica incompleta328. Prova
tia não-revolta: a injustiça de uma ordem, o que ela possa ter de
contrário seja à verdade, seja à natureza, não deve impedir nunca
a sua execução. E então pelo contrário que a obediência assume o
seu mais alto valor. Acusado injustamente de uma falta que um
outro cometeu contra ele, Pafnúcio aceita a sua condenação e an­
tecipa a penitência que lhe impõem329. Patermuto, tendo entrado
no convento com o seu jovem filho, suporta com paciência ver os
maus-tratos que diante dele fazem a criança sofrer, e, assim que
lho ordenam, precipita-se ele mesmo a atirar o filho ao rio330.
Compreendida como não-resistência a tudo o que o outro quer e
impõe, a patientia faz do monge uma espécie de matéria inerte
entre as mãos daquele que o dirige. “Em nada diferir de um corpo
inanimado ou da matéria usada por um artista [...], como o artista
dá prova do seu saber-fazer sem que a matéria o impeça seja no
que for de perseguir o seu propósito.”331
c) Por fim, a obediência monástica não tem outro objetivo além
de si mesma. Não constitui a dependência de um momento, uma
etapa que seria finalmente coroada pelo direito a emancipar-se. Se

327 J. CASSIANO, Instituições, IV, 24.


328 Ibid., IV, 12.
329 Conferências, XVIII, 15.
330 Instituições, IV, 27.
331 SANTO NILO, Logos askêtikos, capítulo XLI (P. G., t. 79, col. 769d-772a)
[tradução in I. HAUSHERR, Direction spirituelle..., p. 190].
140 Michel Foucault

o monge deve obedecer, é para aceder ao estado de obediência.


Porque é que, na direcção, se põe tanta insistência em adestrar o
noviço no obedecer a alguém? É para o levar a “ser obediente”, em
absoluto. A obediência não é simplesmente relativa a este ou àquele,
é uma estrutura geral e permanente da existência. E portanto uma
forma de relação de si consigo. Mas esta relação não consiste em
interiorizar de algum modo o mecanismo da direcção, tornando
cada um de nós o seu próprio director e fazendo que nada de nós
mesmos escape à nossa vontade soberana. O estado de obediência,
pelo contrário, descobre a sua expressão na humilitas. Esta, em vez
de ser uma estrutura fechada, como naquele que, obedecendo,
aprendeu a ser o seu próprio amo, é uma “figura aberta”; faz com
que o sujeito dê aos outros preensão sobre si mesmo. Na humildade,
tenho consciência de ser tão pequeno que não só me reconheço in­
ferior a qualquer outro — e me sinto por conseguinte obrigado a
preferir a sua vontade à minha e pronto a obedecer-lhe em tudo, por
mais pequeno que esse outro seja —, mas não concedo também ao
querer da minha própria vontade nem legitimidade nem justificação
alguma. A obediência que é imposta aos monges não lhes promete
realeza alguma sobre si mesmos, mas uma humildade que não é
senão a obediência tornada estado definitivo, disponibilidade per­
manente perante qualquer outro, e relação incessante de si mesmo
consigo. É ao mesmo tempo o efeito do longo exercício da obediên­
cia e a raiz, até mesmo no mais solitário, de toda a obediência pos­
sível. Não é surpreendente que Cassiano, ao fazer a lista dos sinais
da humildade, não considere senão as formas do “ser obediente”:
mortificar a sua própria vontade, nada esconder ao seu ancião, não
se firmar no seu próprio discernimento, obedecer sem azedume e
praticar a paciência, não se afligir com as injúrias sofridas, nada
fazer salvo o que mandam a regra e os exemplos, contentar-se com
as coisas mais vis e olhar-se como sem mérito algum, proclamar-se
o último entre todos do fundo do coração, e nunca levantar a voz332

332 J. CASSIANO, Instituições, IV, 39. Cf. também Conferências, II, 10: “A pri­
meira prova da humildade será deixar aos anciãos o juízo de todas as suas acções
àfs Confissões da Carne 141

BilBA
^?>Sob os três aspectos seguintes, a obediência constitui pois um
^■¿exercício da vontade sobre si mesma e contra si mesma. Querer o
^ue os outi < >s querem, em virtude do privilégio intrínseco e formal
't'que a xontade de outrem detém, porque vem de outrem; é a subdi­
to. Querer não querer, querer não se opor nem resistir, querer que
m nada a vontade própria ponha obstáculo à vontade do outro: é
>paiientia. Não querer querer, renunciar à mínima das vontades
^óprias: é a humilitas. E um tal exercício da obediência, em vez
% ser um simples instrumento para a direcção, constitui com ela
iim círculo indissociável. A obediência é a condição inicial para
que a direcção possa operar o seu trabalho — daí as provas de
submissão às quais se expõe o postulante antes ainda de ter trans­
aposto a porta do mosteiro; é o instrumento essencial da acção do
BJirector; é a forma geral da relação entre este e o dirigido; é final-
í- imente o resultado a que a direcção conduz, resultado que põe o

4
^dirigido em posição de aceitar indefinidamente, em lugar e vez da
(¿^sua, uma vontade diferente. Ocupa assim o lugar de primeira entre

I
as virtudes. Primeira, uma vez que é por ela que deve começar a
instituição monástica e a formação dos noviços. Primeira também,
porque está no princípio de todas as que a direcção pode fazer
5
florir naquele que quer encaminhar-se para a perfeição. Os mon­
ges preferem-na, diz Cassiano, “não só ao trabalho manual, à lei­
tura ou ao silêncio e ao repouso da cela, mas também a todas as
virtudes, a tal ponto que consideram dever fazer tudo passar a
4
seguir a ela, e sentem-se felizes por sofrer pouco importa que da­
no de preferência a que pareça que de alguma maneira a transgre­
diram”333.
Compreende-se o lugar que Cassiano, no caminhar para a per­
feição, dá à humildade, entendida como estado permanente de
obediência, aceitação de toda a submissão, vontade de não querer,

e dos seus próprios pensamentos, de tal modo que em nada se fie no seu próprio
sentimento; mas em todas as coisas acate as decisões daqueles, e que só da sua boca
queira conhecer o que deve tomar por bom, o que deve olhar como mau.”
333 J. CASSIANO, Instituições, IV, 12.
142 Michel Foucault

e renúncia a toda a vontade. Este caminho tem por ponto de par­


tida um sentimento negativo: o “medo de Deus”, o temor dos seus
castigos, o medo de, ofendendo-o, provocar a sua cólera. O ponto
de chegada é a “caridade”, quer dizer, a possibilidade de agir “pe­
lo amor do próprio bem e pela alegría que a virtude dá”334. Ora, do
temor à caridade, a passagem efectua-se através da humildade na
medida em que esta, renunciando a toda a vontade própria (e por
conseguinte à vontade de escapar ao castigo), conduz a aceitar a
vontade do outro como principio de toda a acção (e na caridade, é
a vontade de Deus que é o princípio da acção)335. A substituição do
temor pela caridade supõe, como preparação e como intermediá­
rio, o exercício da obediência e a prática da virtude da humildade.
E certo que a ascese pedida ao monge não se deixa resumir na
simples obediência: os jejuns, as vigílias, as orações, o trabalho, as
obras de caridade são igualmente requeridos. Mas, para poder
conduzir a uma humildade em que a vontade própria tenha desa­
parecido, toda a ascese deve fazer-se na forma geral da obediência.
Podemos assim medir a distância que separa a direcção cristã
da que tinha curso, por exemplo, entre os estoicos. O propósito da
segunda era no essencial o de estabelecer as condições de um
exercício soberano da vontade sobre si mesmo. Tratava-se de con­
duzir o dirigido ao ponto de viragem em que ele se torna senhor
de si mesmo e do que dele pode depender. O que implicava que
aprendesse a distinguir o que releva da sua vontade e o que não é
do seu dominio; e que arme essa vontade de uma razão que tem
por triplo papel traçar a linha divisoria, definir a conformidade
com a ordem do mundo, e dissipar os erros de opinião acarretados
pela desordem das paixões ou o excesso dos desejos336.

334 [Ibid.fíV, 39.]


335 Cf. o itinerário de Pafnúcio narrado na Conferência III. No cenobio, tão “assí­
duo na humildade e na obediência”, aprendera a mortificar todas as suas vontades
próprias; fugira depois para a solidão absoluta, na qual passava por “saborear quo-
tidianamente a delícia da companhia dos anjos”.
336 Sobre o sentido dos exercícios estoicos, sobretudo em Marco Aurélio, cf. P.
HADOT, “Théologies et mystiques de la Gréce hellénistique et de la fin de l’An-
,;As Confissões da Carne 143

A direcção cristã, em contrapartida, tem por ponto de mira a


renúncia à vontade. Assenta no paradoxo de uma obstinação em
deixar de querer. A submissão ao mestre, que é o seu instrumento
indispensável, não conduz nunca ao ponto em que se pode estabe­
lecer a soberania sobre si mesmo, mas ao ponto em que, despojado
por completo da condição de mestre, o asceta já não pode querer
senão o que Deus quer. E a tranquilidade da alma, que constitui,
no vocabulário de Cassiano, o equivalente da apatheia grega, não
consiste em ter-se podido estabelecer sobre os movimentos invo­
luntários uma dominação tão perfeita que já nada pode abalá-la a
partir do momento em que não se consinta em tal. Consiste em
que, tendo renunciado a querer por si mesmo, já não se deve a
própria força senão à de Deus, é na presença desta que se está. A
vida contemplativa pode então começar.

III. O RECURSO A DEUS

Para justificar a necessidade de uma direcção e a obrigação de se


lhe obedecer, Cassiano dá uma razão que nada tem de novo nem de
inesperado. Ao longo de toda a sua existência monástica, aquele que
aspira à perfeição deve evitar dois perigos: por um lado, o relaxa­
mento no que se refere às tarefas da vida ascética, as pequenas
complacencias quase imperceptíveis que podem conduzir a alma às
maiores fraquezas; e, por outro lado, um excesso de zelo que, por
caminhos diferentes, conduz muitas vezes aos mesmos efeitos que o
relaxamento. “Os extremos tocam-se. O excesso do jejum e a vora­
cidade têm o mesmo desfecho; as vigílias imoderadas não são me­
nos desastrosas para o monge do que o sobrepeso de um sono pro­
longado. As privações excessivas, com efeito, debilitam, e reconduzem
ao estado em que estagnam a negligência e a apatia.”337 Tema banal,

tiquité”, Annuaire de 1’École pratique des hautes études, 5° section, t. LXXXV,


pp.297-309.
337 J. CASSIANO, Conferências, II, 16.
144 Michel Foucault

o do perigo dos dois excessos e do princípio de que o homem, na sua


conduta, deve evitar o demasiado e o demasiado pouco. A sabedoria
antiga desenvolvera-o com muita frequência. Para designar a capa­
cidade de se encontrar a via entre os dois extremos, Cassiano empre­
ga o termo de discretio, como equivalente do grego diakrisis (ao
mesmo tempo capacidade de distinguir as diferenças, aptidão para
decidir entre dois partidos e acto de juízo comedido). “Afastando-se
igualmente dos dois excessos contrários, a discrição ensina o monge
a andar sempre por uma estrada real, e não lhe permite desviar-se
para a direita, numa virtude tolamente presunçosa e num fervor
exagerado, que passam das marcas da justa temperança, nem para a
esquerda, para o lado do relaxamento e do vício.”338
A esta noção clássica, Cassiano, como os teóricos da vida mo­
nástica da mesma época, dá uma importância fundamental.
Consagra-lhe a segunda das suas Conferências, imediatamente
depois de ter explicado, na primeira, o propósito e o fim da vida
monástica, e antes de encarar, nas seguintes, os diferentes aspectos
dessa existência, os seus combates e os seus deveres. A discrição
aparece pois como o instrumento primeiro do caminho para a
perfeição. “Lâmpada do corpo”, sol que não deve nunca deitar-se
sobre a nossa cólera, conselho ao qual devemos submeter-nos até
mesmo quando bebemos o vinho do espírito — nela “reside a sa­
bedoria, a inteligência também e o juízo, sem os quais não nos
será possível nem construir o nosso edifício interior, nem acumu­
lar as riquezas espirituais”339. Ora, este elogio da discrição, a que
fazem eco muitas outras passagens das Conferências, tem uma
coloração particular. É mais contra o excesso de zelo do que con­
tra a moleza que se dirige. O exagero figura aqui como o perigo
maior340. Todos os exemplos invocados são de monges que presu­
mem das suas forças e, demasiado confiantes no seu próprio juízo,

338Ibid., II, 2.
339/tóZ.,II,4. .
340 Esta acentuação é mais nítida nas Conferências, consagradas ao caminho que
leva à contemplação, do que nas Instituições, nas quais se trata sobretudo da entra­
da do iniciando no cenóbio.
fcíAs.jConfissões da Carne 145

í^fcaíram no momento em que o ardor do seu zelo os impeliu dema-


’’■-^siado longe341. Cassiano coloca sob a autoridade de Santo Antão
J^jcsta advertência visando o ascetismo imoderado: “Quantos deles
vimos entregarem-se aos jejuns e às vigílias mais rigorosas, pro-
CÍi vocarem a admiração pelo seu amor da solidão, lançarem-se num
pojamento tão absoluto, que não teriam suportado reservar-se
‘sequer um dia de víveres Depois, subitamente, caíram na
ilusão; não souberam dar a sua coroação à obra empreendida; ter­
minaram o mais belo fervor e uma vida digna de elogio por um
lnn abominável.”342 E o combate contra o excesso de ascetismo,
r Cassiano apresenta-o como mais rude e perigoso do que o outro.
^Batalha difícil: “Vi muitas vezes os que se tinham mantido surdos
! perante as seduções da gula caírem após jejuns imoderados; a
. paixão que tinham vencido tirou a sua desforra aproveitando-se do
j/seu enfraquecimento.”343 E derrota particularmente temível: “Am-
Í-. bas as guerras vêm do demônio; mas é mais grave a queda por um
jejum imoderado do que por um apetite satisfeito. Deste, podemos,
em intervindo uma compunção salutar, regressar à medida da aus-
«. teridade; do outro, é impossível.”344
Para esta ponta antiascética que anima todo o elogio da discri-
H ção, há uma razão histórica bem conhecida: no século iv, a disci­
plina da vida monástica, as regras do cenobio que se formulam,
■J mas também as prescrições e conselhos que enquadram a solidão
I
do deserto ou a semianacorese, foram — sobretudo no Baixo
'4
Egipto, de onde Cassiano extraiu o essencial das suas lições e dos
seus exemplos — elaborados em reacção contra as formas selva­
w

341 Assim Herão [que], ao cabo de cinquenta anos de deserto e de abstinência, ima-
® gina que pode atirar-se a um poço e que os seus méritos o protegerão de todo o peri-
í go; os dois monges que querem atravessar o deserto sem provisões; aquele que quis
■ imitar o sacrifício de Abraão; ou esse outro célebre monge da Mesopotâmia, que
“rolou numa queda lamentável até ao judaísmo e à circuncisão”, ou ainda o mestre
demasiado rigoroso apanhado pela tentação do seu discípulo \(ibid., II, 5-8)].
| 342/èid.,II,2.
lí 343IWd.,II, 16.
344 Ibid., II, 17.
146 Michel Foucault

gens, anárquicas, individuais e concorrenciais do ascetismo. Pe­


rante os eremitas isolados ou monges vagabundos, rivalizando em
justas ascéticas e em maravilhas taumatúrgicas, confrontando as
proezas das suas macerações, a regulamentação da vida monástica
tinha por propósito fixar uma via média, acessível à maioria dos
monges e integrável em instituições comunitárias. O que se pedia
à discrição era que determinasse essa via média e separasse as
águas entre o demasiado e o demasiado pouco; mas também, de
modo particular, que desse conta do que podia haver de excesso
perigoso no impulso ascético, no ardor da busca da perfeição; que
distinguisse o que podia imiscuir-se de fraqueza, de complacência,
de apego a si mesmo na sede de levar os exercícios aos extremos;
que reconhecesse os elementos do seu contrário sob as aparências
enganadoras da maior santidade. Na preocupação de uma justa
medida, de um modus convenientemente regrado da vida monás­
tica, havia o cuidado de evitar a fraqueza e o excesso de rigor, mas
também, e talvez sobretudo, de detectar o que há de fraqueza es­
condida em todo o excesso de maceração.
Esta mesma situação histórica explica uma outra inflexão do
tema da discrição. Na concepção antiga, a capacidade de discernir
o demasiado e o demasiado pouco e a aptidão para observar a
medida na maneira de se conduzir de cada um estavam ligadas ao
uso por cada um da sua própria razão. Para um teórico da vida
monástica como Cassiano345, o princípio da medida não poderia
vir do próprio homem. Se o monge deve observar-se sem cessar e
fazer incidir sobre si mesmo o olhar mais atento, não é na esperan­
ça de assim descobrir um princípio de justo equilíbrio: é antes
para descobrir desse modo todas as razões para procurar o ponto
de apoio fora da sua própria consciência. O monge cristão não
pode ser nunca medida de si mesmo, por avançado que esteja na
estrada da santidade. Testemunha-o uma narrativa de Cassiano a
propósito da recitação dos salmos346. Nos tempos mais recuados

345 Cf. igualmente São Jerónimo.


346 J. CASSIANO, Instituições, II, 5.
ir
Sr-Ab Confissões da Carne 147
kS
n’J! ’ ,
4 ,do pi imeiro cristianismo, o zelo impelia cada um a cantar tantos
salmos quantos a sua força permitisse. Mas em breve se com-
* Apreendeu que “a dissonância” e até mesmo a simples variedade
em fazer germinar no futuro “o erro, a rivalidade e o cisma”.
ÍQs Pais Veneráveis; reuniram-se então para fixar a boa medida:
I as foi um irmão desconhecido, introduzido entre eles, que, can­
udo sozinho doze salmos e desaparecendo depois subitamente,
nostrou ao mesmo tempo qual o limite conveniente e que fora o
próprio Deus a fixá-lo.
Narrativa banal esta, da instauração divina e miraculosa das
'regras. Mas que assume aqui uma significação precisa. A hetero­
nomia do homem é fundamental e não é nunca a si mesmo que
íéle deve recorrer para definir as medidas da sua conduta. Para
'[•tanto há uma razão: é que, desde a queda, o espírito do mal esta-
^beleceu o seu império sobre o homem. Não que tenha penetrado
' i exactamente a sua alma e que as suas duas substâncias se tenham
rf
misturado e confundido, o que teria retirado ao homem a sua li­
berdade. Mas, com a alma humana, o espírito do mal tem ao
mesmo tempo parentesco de origem e semelhança; pode pois vir
tomar lugar no corpo, ocupá-lo em concorrência com a alma e,
aproveitando-se desta similitude, agitar o corpo, imprimir-lhe

;» movimentos, alterar a sua economia; assim enfraquece a alma,


envia-lhe sugestões, imagens, pensamentos, cuja origem é difícil
’I de discernir; a alma ludibriada pode acolhê-los sem reconhecer
que lhe são inspirados pelo Outro que com ela coabita no corpo.
Aquele fica pois em posição de disfarçar os pensamentos que
dele vêm, de os fazer tomar por inspirações divinas e de ocultar,
'<■!
sob as aparências do bem, o mal de que são portadores. Satanás
*W
é portanto o princípio de ilusão no próprio interior do pensamen­
to347. E, enquanto o sábio antigo podia apoiar-se na sua própria
razão contra o movimento involuntário das suas paixões, o monge
cristão não pode encontrar recurso que seja, seguro nas idéias que

347 Sobre o modo [de acção] do espírito do mal sobre a alma do homem, cf. a VII
Conferência, capítulos 7-20.
148 Michel Foucault

lhe parecem mais verdadeiras e mais santas. Na própria trama do


seu pensamento, corre sempre o risco de ser enganado. E a discri­
ção, que deve permitir-lhe encontrar a via justa entre os dois pe­
rigos, não deve consistir no exercício de uma razão dominando as
paixões que agitam o corpo, mas num trabalho do pensamento
sobre si mesmo esforçando-se por escapar às ilusões e logros que
o atravessam.
O mesmo é dizer que a discretio, que é indispensável para se
manter a via justa na conduta, não pode ser pedida ao próprio in­
divíduo. Contra as ciladas que assombram o seu pensamento,
mascaram a origem e o fim das idéias que lhe vêm, é-lhe necessá­
rio um recurso exterior. Esse recurso é antes do mais a graça divi­
na. Sem a intervenção de Deus, o homem não é capaz de discrição:
esta “não é uma virtude medíocre a que a humana indústria possa
aceder ao acaso; só a podemos ter da liberalidade divina. [...] Po­
deis vê-lo, o dom da discrição nada é de terrestre ou de pequeno,
mas é um altíssimo dom da graça divina. Se o monge não puser
todos os seus cuidados em obtê-lo [...], será a vítima designada das
ciladas e dos precipícios, e, até mesmo nos trilhos direitos e pla­
nos, tropeçará por mais de uma vez”348. Mas, se a discrição é
graça, deve ser também virtude349: uma virtude que se aprende. E
Cassiano define esta aprendizagem necessária por dois exercícios
ou antes pela conjunção permanente de dois exercícios. Por um
lado, é necessário operar-se sobre si mesmo um exame constante,
é necessário observarem-se com cuidado todos os movimentos
que se desenrolam no pensamento: é necessário que não se feche
nunca “o olho interior” através do qual exploramos o que se passa
dentro de nós350. Mas, por outro lado e ao mesmo tempo, é neces­
sário abrir-se a alma a um outro — ao director, ao ancião ao qual
se foi confiado —, é necessário que nada lhe seja escondido. “Ras­
gando o véu com que a falsa vergonha querería cobri-los, manifes-

348 J. CASSIANO, Conferências, II, 1.


349 “Discretionis gratiam atque virtutem", ibid., II, 26.
350 Ibid., 11,2.
. As Confissões da Carne 149
ik
temos aos nossos anciãos todos os segredos da nossa alma, e
>■ procuremos junto deles com toda a confiança o remédio dos nos­
?r sos males e exemplos de vida santa.”351
£ Esta discrição que, como arte do discernimento e da medida, é
indispensável para avançarmos a caminho da santidade, e que
contudo nos falta, não só devido às nossas paixões, mas também
devido à força da ilusão que constantemente ameaça o nosso pen­
samento, será unicamente a graça divina a conceder-no-la. Mas o
que no-la ensinará é a combinação da observação e da abertura da
alma, é o exercício indissociável do exame e da confissão. Em
suma, aquilo que justifica a permanência de uma relação de direc­

í ção é a necessidade de nos mantermos na via média entre os ex­


tremos por que continuamos em risco de ser atraídos e seduzidos.

í O caminho justo só pode ser assegurado pelo uso de uma discri­


ção cujo princípio não se encontra naturalmente no homem. Este
terá de a receber de Deus, mas também de a adquirir através do
jy. exercício constante do olhar e do dizer-a-verdade sobre si mesmo.
- No interior da forma geral da obediência e da renúncia à vontade
própria, a direcção tem por instrumento maior a prática perma-
nente do “exame-confissão”, aquilo a que, no cristianismo orien­
£ tal, se chama a exagoreusis: “Cada um dos subordinados deve, por
um lado, evitar manter escondido no seu foro íntimo seja que
movimento for da sua alma; por outro lado, abster-se de deixar
soltar-se sem controle seja que palavra for e descobrir os segredos
do seu coração àqueles de entre os irmãos que receberam a missão
de cuidar dos doentes com simpatia e compreensão.”352
i

' 351 Ibid.,II, 13.


352 SÃO BASÍLIO, P. G., t. 31, col. 985 [tradução I. Hausherr]. Sobre a exago-
reusis na espiritualidade oriental, cf. I. HAUSHERR, Direction spirituelle.... pp.
155 e sgs.
150 Michel Foucault

IV. O EXAME-CONFISSÃO

Apesar de um certo número de traços comuns, esta técnica di­


fere bastante profundamente da rememoração dos actos passados
tal como a encontramos no De ira de Séneca. Não que uma tal
recolecção do dia no momento do sono tenha sido desconhecida
da espiritualidade cristã. Encontramo-la aconselhada por São João
Crisóstomo e em termos mais ou menos semelhantes aos dos filó­
sofos antigos: “É de manhã que nos fazemos prestar contas das
nossas despesas pecuniárias; é à noite, depois da nossa refeição,
quando estamos deitados, e ninguém nos perturba nem nos inquie­
ta, é então que devemos pedir contas a nós mesmos da nossa con­
duta.”353 Mas devemos notar que Cassiano nunca menciona uma
tal contabilidade da noite entre as obrigações da vida monástica.
E é verosímil que essa prática se tenha mantido menor por com­
paração como a exagoreusis propriamente dita.
Esta última tem por carácter mais manifesto incidir não sobre
os actos passados, mas sobre o movimento dos pensamentos —
que podem ser de resto a recordação de um acto cometido ou a
ideia de um acto a executar354. Mas é o pensamento em si mesmo,
a cogitatio, que é o alvo do exame. Que a prática do exame na
vida monástica esteja assim centrada mais no movimento do pen­
samento do que no passado dos actos nada tem de surpreendente.
Por um lado, o sistema estrito de obediência implica que nada se
faça, que nada seja empreendido sem que tenha sido ordenado ou
pelo menos permitido pelo director; trata-se pois de tomar em
conta e de examinar, para o submeter, o pensamento do acto antes
de este último ter lugar. E, mais fundamentalmente, uma vez que
o propósito da existência monástica é uma vida contemplativa na

353 [SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, Que éperigoso para o orador e para o ouvinte
falar para agradar, 4.]
354 O carácter “gestionário” deste exame é, como em Séneca, muito marcado: “Exa­
minemos o que é em nossa vantagem e em nosso prejuízo [...]. Deixemos de gastar
mal a propósito e tratemos de substituir os fundos úteis às despesas nocivas” (ibid.).
í As Confissões da Carne 151

, qual Deus deverá ser acessível graças à pureza do coração355, e


¿uma vez que nos encaminhamos para esse fim pela oração, a
meditação, o recolhimento, a fixação do espírito em direcção a
Deus, a “cogitatio” constitui o problema principal. Forma de cer-
*■’, to modo a matéria-prima do labor do monge sobre si mesmo. E,
■v se c verdade que as macerações do corpo, com um regime muito
< estrito da alimentação, do sono, do trabalho manual, desempe-
Inham um papel capital, é na medida em que se trata por essa via
de se obter as condições para que o fluxo das cogitationes seja
tão ordenado e puro quanto possível. Como dizia Evágrio, “com
I» os seculares, os demônios lutam e utilizam de preferência os ob-
jectos. Mas com os monges, é o mais das vezes utilizando os
; pensamentos”356. O termo logismoi, utilizado pelos espirituais
i gregos, aparece traduzido em Cassiano por cogitationes, conser-
\ vando os mesmos valores negativos que lhe descobríamos em
Evágrio. A cogitatio de Cassiano não é simplesmente um “pensa-
| -mento” entre outros, mas o risco que a alma virada para a con-
tcmplação corre de ser perturbada a cada instante. Assim enten-
j d ida, é menos o acto de uma alma que pensa do que a perturbação
1- numa alma que procura apreender Deus. E o perigo interior.
; Contra ela deve exercer-se uma desconfiança incessante que dela
suspeite e a examine.

É-j
í 1.0 combate interior

* -A perturbação que ela pode introduzir assume dois aspectos


;= principais. Primeiro, o da multiplicidade, da mobilidade, da desor­
dem, aí onde a alma tem necessidade de ordem, de estabilidade,
de unidade sem movimento. Encaminharmo-nos para a contem­
plação única do ser único supõe que o pensamento se atenha so­

355 J. CASSIANO, Conferências, 1,2-4.


356 EVÁGRIO PÔNTICO, Tratado Prático, 48. Sobre os logismoi em Evágrio, cf.
• A. GUILLAUMONT, “Introduction” in Traitépratique (Paris, 1971, pp. 56-63).
152 Michel Foucault

mente a esse fim e nunca se desvie dele. Tarefa extremamente di­


fícil. “De quem poderemos crer, ainda quando fosse de todos os
justos e santos o mais eminente, que tenha conseguido, nos laços
deste corpo mortal, possuir imutavelmente o bem soberano, não se
afastando nunca da contemplação divina, não se deixando distrair
um instante pelos pensamentos terrenos.”357 Porque o espírito, na
sua agitação sem tréguas, nunca é completamente por sua vontade
que se imobiliza sobre um objecto único, “é presa de uma mobili­
dade perpétua e extrema”358. Ao núncio Germano, que perguntava
porque é que, no esforço de nos elevarmos à contemplação, “os
pensamentos supérfluos se introduzem em nós contra a nossa von­
tade, e, mais ainda, sem que demos por isso”, o velho Moisés dá
por resposta a repetição da própria pergunta: “É impossível, con­
venho, que o espírito não seja atravessado por pensamentos múlti­
plos.”359 E em todo o início da conferência que Sereno consagra à
mobilidade do pensamento, o tema do movimento perpétuo do
espírito retorna sem cessar: o nous [espírito] é sempre e sob for­
mas variadas “cinético”360.
Mas há um outro perigo que vem misturar-se ao da instabilida­
de, e que é sua consequência: a favor desta desordem e da rapidez
do fluxo, apresentam-se pensamentos aos quais não se tem tempo
para prestar atenção e que se acolhem sem desconfiança. Ora, sob
o seu aspecto inocente, esses pensamentos podem, de facto, sem
que tal seja perceptível, ser perigosos, transmitir à alma sugestões
nocivas ou introduzir até impurezas. Os pensamentos esvoaçam
no espírito como uma penugem que o vento agita, mas alguns

357 J. CASSIANO, Conferências, XXIII, 5. Igualmente, Conferência VII, 3: “Por


vezes, sentimos que o olhar do nosso coração se dirige para o seu objecto; mas o
nosso espírito desliza insensivelmente dessas alturas, para se precipitar com um
ardor mais arrebatado nas suas divagações primeiras.”
358 [Ibid., VII, 4.]
359/tó/.,I,16-17.
360 Aeikinêtos kai polukinêtos. Utilizando estas palavras gregas (ibid., VII, 4),
CASSIANO mostra bem que toma a ideia de empréstimo à espiritualidade orien­
tal. Encontramos em EVAGRIO a caracterização do espírito como planômenos e
eukinêtos (capítulo 15 e capítulo 48 do Tratado Prático).
As Confissões da Carne 153

jfdeles estão contaminados e, como urna pena molhada, são mais


tepesados do que os outros e tendem a descer361.
f , . Podemos, a partir daqui, compreender a missão que Cassiano
Matribui ao exercício do exame. Explica-o, ou antes, fá-lo explicar,
pelos Padres a cujas conferências se reporta, por meio de três me-
/ táforas. A do moinho361362: tal como a água faz rodar a mó, sem que
f o moleiro possa fazer seja o que for, a alma é agitada por “urna
l$pnda contínua de pensamentos tumultuosos”; esse movimento que
à assedia, a alma não pode interrompê-lo; mas, tal como o molei-
Brro pode fazer moer bom ou mau grão, trigo, cevada ou joio, assim
K-'também a alma deve, por meio do exame, proceder à triagem entre
|;os pensamentos úteis e os que são “culpados”. O centurião do
I' Evangelho é também uma boa comparação363: o oficial vigia o
í movimento dos soldados, diz a uns que vão e a outros que ve-
s nham; do mesmo modo, deve o exame controlar o movimento dos
® pensamentos, afastar aqueles que não queremos, guardar pelo
I contrário e dispor devidamente aqueles que possam combater o
7 inimigo. Por fim, a comparação com o cambista que inspecciona
» as moedas antes de as aceitar é ainda outra maneira de mostrar a
f função do exame364. Vemos assim que este consiste numa vigilán-
| cia permanente sobre o fluxo permanente e incoercível de todos
) os pensamentos que se atropelam ao apresentarem-se à alma, e
I? num mecanismo de selecção que permite distinguir os que pode-
g' mos acolher e os que devemos rejeitar.
»: Para apreendermos a tarefa específica do exame, os desenvolvi-
í mentos que Cassiano opera da metáfora do cambista são significa-
• tivos. Quando lhe apresentam as moedas, o banqueiro tem por
tarefa “verificar”: verifica a efígie e o metal. Na ordem das idéias,
podem apresentar-se vários casos. Brilham como se fossem ouro
(éio caso por exemplo das máximas filosóficas), mas são uma ilu­

361 [J. CASSIANO, Conferências, IX, 4.]


362 Ibid., 1,18.
. 363 Ibid., VII, 5.
364 Ibid., 1,20.
154 Michel Foucault

são, o metal não é o que se pensava. Pode acontecer que, pelo


contrário, o metal seja puro — assim uma máxima tirada das Es­
crituras —, mas o sedutor em nós sobrepôs-lhe uma interpretação
falsa, como se um usurpador tivesse cunhado moeda imprimindo
no metal uma efígie sem legitimidade nem valor. Pode também
suceder que a moeda seja de bom metal e a efígie conforme, mas
vindo de facto de uma má oficina. É o caso quando Satanás nos
sugere um princípio de acção que em si mesmo é bom, mas o uti­
liza para um fim que nos é nocivo: pode sugerir-nos o jejum, não
para aperfeiçoar a nossa alma, mas para enfraquecer o nosso cor­
po365. Finalmente, uma moeda pode ser inteiramente legítima pelo
seu metal, a sua efígie, a sua origem; mas o tempo desgastou-a ou
a ferrugem alterou-a: um mau sentimento pode ter-se incorporado
numa ideia válida e alterar assim o seu valor (a vaidade pode
misturar-se ao desejo de fazer uma boa obra).
É bem uma questão de verdade pois a que se põe, através do
exame, às cogitationes que batem a alma no seu fluxo ininterrup­
to. Mas não se trata de saber se temos uma ideia verdadeira ou
falsa, se formamos um juízo que é exacto ou não — tarefa que era
a do exame estóico366. Em suma, não se trata de saber se nos en­
ganamos ou não, trata-se de fazer a triagem entre as idéias verda­
deiras e falsas, entre as que são de facto o que parecem ser e as
que iludem. O problema é o de saber se estamos a ser enganados.
O exame não consiste em reflectir para determinar se o jejum é
bom ou mau. Mas não sabemos se a chegada de uma semelhante
ideia no momento em que se apresenta não será um efeito do En­
ganador que, escondendo-se sob esse princípio salutar, prepara em
segredo a nossa queda.
O exame tem realmente pois por efeito operar uma discretio,
uma diferenciação que permite seguir o caminho recto. Mas esta
não separa as opiniões verdadeiras das opiniões falsas. Procura a

365 lbid.
366 Assim SÉNECA perguntava-se se tivera razão ao crer que se podia educar
toda a gente; ou que toda a verdade era boa fosse para quem fosse (De ira, III, 36).
s < ’onfissões da Carne 155

ieem da ideia, a sua marca, aquilo que poderia alterar o seu


C^alor. Trata-se de testarmos “a qualidade dos pensamentos” —
cogitationum361 —, de nos interrogarmos sobre as profun-
:-^fdidades secretas de onde saíram, as astúcias das quais podem ser
""'’’instrumentos e as ilusões que fazem com que nos enganemos nem
anto nem somente sobre as coisas das quais eles são ideia — so-
re a sua realidade objectiva, como se dirá mais tarde —, mas
^sobre eles mesmos: a sua natureza, a sua substância, o seu autor.
Ao examinar os pensamentos com cuidado, ao operar a todo o
momento a triagem entre os que devem ser acolhidos e os que
devem ser rejeitados, o monge obediente e bem dirigido não con­
sidera o que é pensado nessas idéias, mas antes o movimento do
nsamento naquele que o pensa. Aquilo a que Cassiano chama os
arcaria conscientiae. Problema do sujeito do pensamento e da re-
^jlação do sujeito com o seu próprio pensamento (Quem pensa no
¿meu pensamento? Não me terei de algum modo enganado?), e já
h’ não questão do objecto pensado ou da relação do pensamento com
' n seu objecto. Quando pensamos no exame de tipo estóico, no qual
se tratava de verificar a justeza das opiniões para melhor se asse-
Sgkgurar a preensão da razão sobre o movimento das paixões, medi-
S& mos a que distância está dela este pôr em questão o movimento do
pensamento, a sua origem no sujeito e as ilusões de si sobre si
mesmo que pode fazer nascer.

Fü- 2. A necessidade da confissão

Se esta verificação dos pensamentos e esta triagem não assu­


missem mais do que a forma de um exame interior, haveria um
paradoxo: de que modo, com efeito, aquele que se examina poderia
reconhecer com toda a certeza a origem dos seus pensamentos,
como poderia estar seguro de não se enganar no valor que lhes
atribui, quando o perigo de estar enganado — e de estar engando367

367 A expressão encontra-se, entre outros, em J. CASSIANO, Instituições, VI, 11.


156 Michel Foucault

sobre si mesmo — não foi esconjurado? Como seria mais seguro


o pensamento que se forma no exame do que aquele que é exami­
nado? E aqui que se funda a necessidade da confissão — essa
confissão que não devemos conceber como o resultado de um
exame que começaria por se fazer sob a forma da interioridade
estrita, e que ofereceria a seguir o seu balanço sob a forma da
confidência. Trata-se de uma confissão que deve estar o mais per­
to possível do exame, deveria poder ser a sua vertente exterior, a
sua face verbal voltada para outrem. O olhar sobre si mesmo e o
pôr em discurso aquilo que ele apreende não deveriam ser mais do
que uma e a mesma coisa. Ver e dizer num acto único — eis o
ideal para que deve tender o noviço: “Ensina-se aos iniciantes a
não esconderem por falsa vergonha nenhum dos pensamentos que
lhes roem o coração, mas, assim que nascem, a manifestá-los ao
ancião.”368
Mas como poderá a confissão dissipar as ilusões, astúcias e enga­
nos que assombram o pensamento? Como poderá a verbalização
desempenhar um papel de verificação? E sem dúvida porque o an­
cião ao qual o sujeito se confia pode, usando da sua experiência, da
discrição que adquiriu e da graça que recebeu, ver o que naquele
escapa a si mesmo e dar-lhe conselho e remédios. O Inimigo, que
pode ludibriar o inexperiente e o ignorante, fracassará frente ao
discernimento do ancião369. Cassiano atribui um grande papel a es­
tes conselhos do director, e mostra até a que efeitos negativos pode
conduzir uma direcção desastrada370. Todavia, atribui também ao
simples facto da exteriorização verbal um efeito de triagem e uma
virtude de purificação. Formar palavras, pronunciá-las, endereçá-las
a um outro — e até certo ponto a seja quem for o outro, contanto
que seja um outro — detém o poder de dissipar as ilusões e de es-

368 Ibid., IV, 9.


369 Ibid.
370 Cf. a anedota do ancião que, com as suas recriminações excessivas, impele um
noviço ao desespero. Encontra a sua punição no facto de se tornar por seu tumo
vítima da tentação que assediava o jovem (J. CASSIANO, Conferências, II, 13).
i
“w

As Confissões da Carne 157



sr

j conjurar os embustes do sedutor interior371. Deste poder da confis-


; são, como operador da discriminação, Cassiano dá várias razões.
»f, Em primeiro lugar, a vergonha. Se se experimenta dificuldade
5 ‘em confessar um pensamento, se este se recusa a ser dito, se pro­
cura permanecer secreto, isso é sinal de que é mau. “O diabo tão
f subtil não poderá agir ou fazer cair o jovem a não ser atraindo-o,
í. por orgulho ou por respeito humano, a esconder os seus pensa-
’..mentos. Os anciãos afirmam com efeito que é um sinal universal
e evidente de um pensamento diabólico que coremos de o mani-
• festarmos ao ancião.”372 Quanto mais um pensamento se esquiva,
. quanto mais tenta escapar às palavras que procuram captá-lo,
mais, por conseguinte, deveremos encarniçar-nos em persegui-lo e
confessá-lo exactamente. A vergonha, que deveria reter-nos quan­
do se trata de cometer um acto, deve ser vencida quando se trata
de manifestar em palavras o que se esconde no fundo do coração:
é uma marca indubitável do mal.
Se a ideia que vem do espírito do mal procura sempre manter-se
enterrada na consciência, é por uma razão cosmo-teológica. Anjo
da luz, Satanás foi condenado às trevas; a claridade do dia foi-lhe
interdita e ele já não pode sair dos recônditos do coração onde se
escondeu. A confissão, que o puxa para a luz, arranca-o ao seu
reino e torna-o impotente. Só na noite ele pode reinar. “Um mau
pensamento produzido à luz do dia perde de imediato o seu vene­
no. Antes ainda de a discrição ter proferido a sua sentença, a me­
donha serpente, que tal confissão arrancou, por assim dizer, do seu
antro subterrâneo e tenebroso, para a arrojar à luz e oferecer em
espectáculo a sua vergonha, apressa-se a bater em retirada.”373 A
ideia má perde a sua força de sedução e o seu poder de embuste
pelo simples facto de ser dita, de ser pronunciada em voz alta e de
■'sair assim da interioridade secreta da consciência.

371 Significativo o conselho que Santo Antão teria dado aos solitários: registar
numa tabuinha, como se tivessem de os mostrar a alguém, as suas acções e os mo-
vimentos da sua alma (SANTO ATANÁSIO, Vita Antonii, 55,9).
372 J. CASSIANO, Instituições, IV, 9.
373 J. CASSIANO, Conferências, II, 10.
158 Michel Foucault

Cassiano vai mais longe até. A formulação seria por vezes ex­
pulsão material. Com a frase que confessa, é o próprio diabo que
é expulso do corpo. Tal é a lição que deve extrair-se de uma me­
mória do abade Serapião. Em criança, fora habitado pelo espírito
da gula e todas as noites roubava um pão; mas “corava ao revelar”
ao santo velho que o dirigia os seus “roubos clandestinos”. Por
fim, um dia, impressionado por uma exortação do abade Teão, não
pôde impedir-se de rebentar em soluços. “Tira do seu seio, cúm­
plice e receptador do seu furto, o pão que roubara [...], e produ-lo
diante dos olhos de todos. Prosternado por terra, confessa, pedin­
do perdão, o segredo dos seus repastos quotidianos; implora, por
entre as lágrimas, as orações de todos, a fim de que o Senhor o
liberte de um cativeiro tão duro.” E prontamente “uma lâmpada
acesa saiu do seu seio e encheu a cela de um cheiro de enxofre; a
infecção foi de tal ordem que mal foi possível aí continuar”. Ora,
as palavras que, segundo o relato de Cassiano, o abade Teão pro­
nuncia no decorrer desta cena são importantes. Sublinham em
primeiro lugar o facto de a libertação não ser directamente devida
a palavras que o director tivesse pronunciado374, mas às do culpado
que confessa: “A tua libertação está consumada; sem que eu tenha
dito uma palavra, a confissão que acabas de fazer foi suficiente.”
Esta confissão trouxe à plena luz do dia o que estava dissimulado
na sombra do segredo: é um jogo de luz. E é, ao mesmo tempo, por
isso mesmo, uma inversão de poder: “O teu adversário conquista­
va a vitória; tu triunfas hoje sobre ele; e a tua confissão esmaga-o
mais completamente do que ele mesmo te tinha abatido a favor do
seu silêncio. [...] Enunciando-o, retiraste ao espírito de malícia o
poder de te continuar a inquietar.” E esta inversão de poder traduz-
-se numa expulsão material. Em sentido estrito, a confissão que
expõe à luz o espírito do mal fá-lo abandonar o seu lugar: “O Se­
nhor [...] quis que visses com os teus olhos o instigador dessa

374 Há contudo um efeito indirecto, que o próprio Teão sublinha: o discípulo fora
convencido pelo sermão do velho sobre a gula e os pensamentos secretos [(ibid.,
11,21)].
As Confissões da Carne 159

paixão expulso do teu coração pela tua confissão salutar e que


reconhecesses, por essa fuga manifesta, que o inimigo, uma vez
descoberto, deixaria doravante de ter lugar em ti.”375
Há pois na própria forma da confissão, no facto de o segredo ser
formulado em palavras e de essas palavras se dirigirem a um ou­
tro, um poder específico: aquilo a que Cassiano chama, usando um
termo que constantemente voltaremos a encontrar no vocabulário
da penitência e da direcção das almas, a virtus confessionis. A
confissão tem uma força operatoria que lhe é própria: diz, mostra,
expulsa, liberta.
Explica-se assim que a discrição — essa prática que permite
desenredar as confusões, separar as misturas, dissipar as ilusões,
diferenciar no sujeito aquilo que vem dele mesmo e o que lhe é
inspirado pelo Outro — não possa ser operada somente pelo exa­
me de si sobre si, mas que lhe seja necessária também, e simulta­
neamente, uma perpétua confissão. E necessário que o exame to­
me forma imediatamente (“assim que nascem os pensamentos”)
num discurso efectivo e dirigido a um outro. Este último, em po­
sição de exterioridade, poderá ser melhor juiz? Sem dúvida. Mas,
sobretudo, o acto de discurso que lhe é dirigido efectúa, pela
barreira da vergonha, o jogo da sombra e da luz, e a expulsão ma­
terial, a operação real da divisão. A indispensável discretio que
permite traçar, entre os dois perigos do demasiado e do demasiado
pouco, o caminho recto que conduz à perfeição, essa discretio da
qual o homem, assombrado pelo poder de sedução do Inimigo, não
Jé dotado naturalmente, não poderá exercer-se com a graça de Deus
senão através da operação do exame-confissão: essa operação em
que o olhar de si mesmo sobre si mesmo deve associar-se inces­
santemente ao “dizer a verdade” a propósito de si mesmo. E então,
após esta discriminação, que incide permanentemente sobre a
origem, a qualidade e o grão das cogitationes, que a alma já não
acolherá senão pensamentos puros, conduzindo somente a Deus
' porque somente dele vêm. Tal é a puritas cordis, condição dessa

/ 375 [J. CASSIANO, Conferências, II, 11.]


160 Michel Foucault

contemplação que é o fim da vida monástica. No início do livro V


das Instituições, Cassiano refere-se a um texto de Isaías, no qual o
Eterno promete a Ciro, seu servidor, “pôr de rojo as nações diante
de ti”, “despedaçar as portas de bronze”, “quebrar os ferrolhos de
ferro” e dar-lhe “tesouros escondidos, riquezas enterradas” (45,
1-3). Por meio de uma estranha inflexão do comentário, Cassiano
interpreta estas portas derrubadas e estes ferrolhos quebrados co­
mo o trabalho que devemos fazer sobre as “trevas negras dos ví­
cios” para podermos “manifestá-los à luz do dia”. Sob o efeito de
uma tal investigação (indagini) e de uma tal exposição (expositio-
ni), os “segredos das trevas” serão revelados, tudo o que nos sepa­
ra da verdadeira ciência será abatido, e “mereceremos pela pureza
do coração ser conduzidos ao lugar do refrigério perfeito”376.

A exagoreusis que se desenvolveu no monaquismo como práti­


ca de um exame ininterrupto de si ligado a uma confissão inces­
sante ao outro está portanto muito longe, apesar de certos traços
comuns, da consulta que encontrávamos na prática antiga, e da
confiança que o discípulo do filósofo devia ter no mestre de ver­
dade e de sabedoria. Antes de mais, o exame-confissão está ligado
na sua permanência ao dever, também ele permanente, de obe­
diência. Se tudo o que se passa na alma e até mesmo nos seus mais
pequenos movimentos [deve ser revelado ao outro], é para permitir
uma obediência perfeita. Do mesmo modo que o acto na aparência
mais indiferente, o pensamento mais fugidio não deve escapar ao
poder do outro. E consequentemente a obediência exacta em todas
as coisas tem por propósito impedir que alguma vez a interiorida-
de se feche sobre si mesma e possa, comprazendo-se na sua auto­
nomia, deixar-se seduzir pelas potências enganadoras que a habi­
tam. A forma geral da obediência e a obrigação permanente do
exame-confissão andam necessariamente a par.
Além disso, este exame-confissão não incide sobre uma catego­
ria definida de elementos (como actos, ou infracções), tem à sua

376 J. CASSIANO, Instituições, V, 2.


As Confissões da Carne 161

frente uma tarefa indefinida: penetrar cada vez mais os segredos


da alma; captar sempre, o mais cedo possível, até mesmo os pen­
samentos mais tênues; apoderar-se dos segredos, e dos segredos
que se escondem atrás dos segredos, ir o mais fundo possível na
direcção da raiz. Neste labor nada é indiferente, e não há limite
preestabelecido a respeitar. A prática do exame-confissão deve
seguir uma linha de encosta que a inclina indefinidamente para a
parte quase imperceptível do si mesmo.
• Trata-se pois de outra coisa que não só o simples reconhecimen­
to verbal das faltas cometidas. A exagoreusis não é como uma
confissão no tribunal. Não toma lugar num mecanismo de jurisdi­
ção, não é uma maneira para aquele que infringiu uma lei de re­
conhecer a sua responsabilidade a fim de atenuar o castigo. É um
trabalho visando descobrir não só ao outro, mas também a si
inesmo, o que se passa nos mistérios do coração e nas suas som­
bras indistintas. Trata-se de fazer cintilar como verdade aquilo que
por ninguém era ainda conhecido. E isto de duas maneiras: trazen­
do à luz o que era tão obscuro que ninguém podia captá-lo; e
dissipando as ilusões que faziam tomar a moeda falsa por autênti­
ca, uma sugestão do diabo por uma verdadeira inspiração de Deus.
E é desta passagem da obscuridade à luz, da mistura sedutora à
separação rigorosa, que a própria libertação é esperada. Estamos
na ordem não da jurisdição dos actos dos quais alguém se reco­
nhece responsável, mas da “veridicção” dos segredos que alguém
ignora em si mesmo.
Por fim, se a exagoreusis inclina ao exame de si mesmo e sem
tréguas, não é para que o si mesmo possa estabelecer-se na sua
própria soberania, ou sequer para que possa reconhecer-se na sua
identidade. Desenrola-se permanentemente na relação com ou­
trem: sob a forma geral de uma direcção que submete a vontade
do sujeito à do outro; tendo por objectivo que o sujeito detecte no
fundo de si mesmo a presença do Outro, do Inimigo; e tendo por
fim último o acesso à contemplação de Deus, numa completa pu­
reza de coração. Quanto a esta pureza, ela mesma, não devemos
compreendê-la como restauração de si mesmo, ou como alforria
162 Michel Foucault

do sujeito. É, pelo contrário, o abandono definitivo de toda a von­


tade própria: uma maneira de não se ser si mesmo, de não se estar
ligado por laço algum a si mesmo. Paradoxo essencial a estas
práticas da espiritualidade cristã: a veridicção de si mesmo está
fundamentalmente ligada à renúncia a si. O trabalho indefinido a
fim de se ver e se dizer a verdade de si mesmo é um exercício de
mortificação. Temos, pois, na exagoreusis um dispositivo comple­
xo em que o dever de se mergulhar indefinidamente na interiori-
dade da alma está acoplado à obrigação de uma exteriorização
permanente no discurso endereçado ao outro; e em que a busca da
verdade de si deve constituir um certo modo de se morrer para si
mesmo.
CAPÍTULO II

[Ser virgem]

[I. VIRGINDADE E CONTINÊNCIA]


[II. DAS ARTES DA VIRGINDADE]
[III. VIRGINDADE E CONHECIMENTO DE SI]
É conhecida a importância, no século iv, dos textos consagrados
à virgindade. Entre os cristãos do Oriente, temos o tratado Sobre a
Verdadeira Integridade na Virgindade de Basílio de Ancira, o de
Gregório de Nissa Sobre a Virgindade, vários textos de João Cri­
sóstomo — Da Virgindade, Das Coabitações Suspeitas, Como
Observar a Virgindade a sétima Homilia de Eusébio de Emesa,
e a Exortação que Evágrio Pôntico endereça a uma virgem; a estes
podem somar-se, entre muitos outros textos, um tratado atribuído a
Atanásio, poemas de Gregório de Nazianzo, ou ainda uma Homilia
dirigida ao pai de família, cujo autor se manteve desconhecido1.
Entre os latinos, devemos incluir sobretudo Santo Ambrósio (De
virginibus, De virginitate, De institutione virginis, De exhortatione
virginitatis, De lapsu virginis consecratae), São Jerónimo (Adver-
sus Helvidium, Adversus Jovinianum, a carta a Eustóquio), e Santo
Agostinho (De continentia, De sancta virginitate).
Esta multiplicidade de textos não significa o aparecimento nes­
ta época de um imperativo ou de uma prática de abstenção total e
definitiva de relações sexuais. De facto, a valorização da virginda­
de encontra-se atestada muito antes, segundo uma tradição que se
refere a esse famoso texto da Primeira Epístola aos Coríntios (7,1)
que estará, durante perto de dois mil anos, no.centro de todas as

1 [DOM DAVID AMAND e M.-CH. MOONS, “Une curieuse homélie grecque


inédite surla Virginité”, Revue bénédictine, 63,1953, pp. 18-69.]
166 Michel Foucault

discussões: “É bom que o homem não toque na mulher.” Desta


renúncia voluntária temos muitos testemunhos. Uns vêm dos pró­
prios cristãos. E Atenágoras: “Cada um de nós conserva a única
mulher que desposou [...]. Mas encontrar-se-iam muitos dos nos­
sos, homens e mulheres, que até à extrema velhice vivem fora do
casamento na esperança de poderem unir-se mais a Deus. Se a
virgindade aproxima de Deus, mas se ceder até mesmo aos pensa­
mentos e aos desejos afasta dele, muito mais evitamos as acções
das quais até mesmo em pensamento fugimos.”2 Tertuliano evo­
ca tantos “eunucos voluntários”, tantas “virgens casadas com
Cristo”3, que Santo [Ambrosio] poderá opor às sete infelizes
vestais da Roma pagã “o povo da integridade”, “a plebe do pudor”,
e toda “a assembléia da virgindade”4: multidão que, [diz São
Cipriano], manifesta largamente a fecundidade da Igreja-mãe5.
Mas há também os testemunhos exteriores. O de Galeno é interes­
sante na medida em que, atestando o facto, não vê nele grande
coisa de novo: quando muito surpreende-se por um tão grande
número de pessoas poder praticar uma abstinência que até então
fora sobretudo praticada por filósofos autênticos: “Os cristãos
observam uma conduta digna dos verdadeiros filósofos: vemos
com efeito que desprezam a morte e que, movidos por certos pu­
dores, têm horror aos actos da carne. Há entre eles homens e mu­
lheres que, durante toda a vida, se abstêm do acto conjugal. Há-os
também que, no governo e no domínio da alma, foram tão longe
como os verdadeiros filósofos.”6
A virgindade ou a continência definitiva aparecem pois no sé­
culo n como uma prática difundida entre os cristãos, mas sem que
nada nisso haja aparentemente de específico: quando muito a ex­

2 ATENÁGORAS, Legado, capítulo XXXIII.


3 TERTULIANO, De resurrectione carnis, LXI.
4 SANTO [AMBROSIO], carta 18 (ad Valentianum).
5 SÃO CIPRIANO, De habitu virginum,!.
6 [GALENO, Líber de sententiis politiae platonicaé], citado por ADOLF VON
HARNACK, Die Mission und Ausbreitung des Christentums in den ersten drei
Jahrhunderten, Leipzig, 1906, [livro II, capítulo V].
As Confissões da Carne 167

tensão de um tipo de comportamento já conhecido, pelo menos na


sua forma exterior, e já valorizado. Recordemos que os grandes
interditos citados pelos textos dos Padres Apostólicos ou dos Apo-
logetas são os mesmos que eram proibidos pela moral pagã: adul­
tério, fornicação, corrupção de crianças7. Vemos pois que o
cristianismo, ao longo do seu primeiro século de existência, pare­
ce veicular o mesmo sistema de moral sexual que a cultura antiga
que o precede ou o rodeia: as mesmas faltas sexuais, condenáveis
por todos, a mesma recomendação “elitista”, e para alguns, da
abstinência total.
A história da prática da virgindade, nos dois primeiros séculos
do cristianismo, não consiste simplesmente na extensão de uma
recomendação “filosófica” de abstinência. A prática cristã
distinguiu-se de facto de dois tipos de conduta. No que se refere à
sabedoria pagã, deu ao princípio de continência uma outra signifi­
cação. Fixou-lhe outros efeitos ou outras promessas, deu-lhe tam­
bém uma outra extensão, e sobretudo outros instrumentos. Mas
teve de desligar-se também de uma tendência que estava presente
no próprio cristianismo, e que a tentação dualista sem dúvida reac-
tivava: aquilo a que se chamou o encratismo. Esta tendência para
proibir toda a relação sexual a todo o cristão como condição indis­
pensável da sua salvação esteve, com intensidades variáveis e sob
formas diferentes, constantemente presente nos primeiros séculos
cristãos. Chegou a tomar, com Taciano e Júlio Cassiano, as feições
de uma seita, a constituir um dos traços fundamentais de certas
heresias (assim na gnose de Marcião ou entre os maniqueus), a
marcar a prática de certas comunidades, como atestam a Segunda
Epístola, apócrifa, de Clemente aos Corintios ou ainda as acusa­
ções feitas, segundo Eusébio, a Pinito, bispo de Cnossos, que, sem
ter em conta “a fraqueza do grande número”, queria impor “aos

7 Assim na Didakhê: “Não matarás, não cometerás adultério, não corromperás


crianças, não cometerás fornicação, não roubarás” (II, 2). Epístola do Pseudo-
-Barnabé: “Não cometas nem fornicação nem adultério; não corrompas as crian-
168 Michel Foucault

irmãos o pesado fardo da castidade”8; ou ainda a constituir unía


linha de inclinação de pensamentos reconhecidos sob outros aspec­
tos como ortodoxos: testemunho o escândalo e os debates suscita­
dos pelo Adversas Jovinianum de São Jerónimo. Ora, na crítica do
encratismo, não se tratava de saber se a virgindade devia ser, ou
não, uma lei imposta a fosse quem fosse que quisesse salvar-se,
mas, uma vez que a recusa de toda a relação sexual não era uma lei
incondicional, tratava-se de determinar que experiência privilegia­
da, relativamente “rara” e positiva, devia ser a virgindade.
Há pois duas coisas importantes a considerar. O que o pensa­
mento cristão vai elaborar, até aos séculos v e vi, o que vai ser o
ponto maior da reflexão e o lugar das transformações, não é a tá­
bua dos grandes interditos, mas a questão da virgindade (e, como
veremos adiante, a economia interna do casamento). As proibições
essenciais continuam a ser o que são: é muito mais tarde que ve­
remos a redistribuição do seu sistema, com o aparecimento de
vastos domínios como o do incesto, da bestialidade, do “contrana­
tura”. Mas, durante os primeiros séculos, tanto a parada teórica em
jogo como a questão prática dirão respeito ao valor e ao sentido a
dar a uma abstenção rigorosa e definitiva de toda e qualquer rela­
ção sexual (e até mesmo do que possa ser seu pensamento e seu
desejo). Mas, por outro lado, esta questão da virgindade não deve
ser considerada como um simples princípio de abstenção, que de
algum modo viesse completar os interditos particulares através de
uma recomendação geral de continência. Não devemos compreen­
der o ardor posto em exaltar e recomendar a virgindade como uma
extensão dos velhos interditos no domínio geral das relações se­
xuais: uma espécie de ir até aos limites que proibisse não só isto,
aquilo e também aquilo, mas, afinal de contas, tudo. A valorização
da virgindade, entre a abstinência parcialmente recomendada por
certos sábios antigos e a continência rigorosa dos encratitas, levou
a pouco e pouco à definição de toda uma relação do indivíduo
consigo mesmo, com o seu pensamento, com a sua alma e com o

8 [EUSÉBIO DE CESAREIA, História Eclesiástica, IV, 23,7.]


As Confissões da Carne 169

seu corpo. Em suma, a interdição do adultério ou da corrupção de


•; crianças, por um lado, e, por outro, a recomendação da virgindade
não estão no prolongamento uma da outra. São dissimétricas e de
. natureza diferente. Ora, foi na elaboração da segunda e não no
; reforço da primeira que se formou a concepção cristã da carne.
„ Digamos numa palavra que, ao lado de um código moral dos
1 interditos sexuais, que se manteve mais ou menos estável, se de-
senvolveu, em termos completamente diferentes, uma prática
* singular: a da virgindade.
[VIRGINDADE E CONTINÊNCIA]

Sobre a forma e o conteúdo desta prática antes do século iv,


conhecemos relativamente pouca coisa. Sabemos a sua extensão.
Sabemos também que não assumia forma institucional através dos
votos nem de uma existência de tipo monástico. Em contrapartida,
existiam, sobretudo entre as mulheres, círculos que se dedicavam
a uma vida religiosa particularmente intensa e recusavam total­
mente o casamento, ou, no caso das viúvas, qualquer segundo ca­
samento. Mas acontecia também haver raparigas, mais ou menos
impelidas pelas suas famílias9, que levavam uma vida de virgin­
dade em casa dos seus pais. É sem dúvida por isso que os docu­
mentos dos quais dispomos para o século ni dizem sobretudo
respeito à virgindade das mulheres e apresentam duas situações: a
jovem em sua casa e o círculo das virgens.
E em dois textos deste género que me vou deter. Um é latino,
refere-se à vida de uma virgem no meio da sua família, é breve e
comunica essencialmente recomendações práticas. O outro é gre­
go, põe em cena um grupo imaginário de mulheres que cantam
entre elas louvores à sua virgindade. É o primeiro testemunho
desenvolvido de uma mística cristã da virgindade. Enquanto o

9 Voltaremos adiante a esta ideia de que a virgindade dos filhos tem um valor
sacrificial para o resgate dos pecados dos pais.
r

B
:'V
As Confissões da Carne 171

- primeiro texto, escrito por São Cipriano, data da primeira metade


' do século in, calcula-se que O Banquete de Metódio de Olimpos
' • tenha sido escrito por volta de 271. Veremos que, pelo seu conteú­
do, faz charneira com os grandes textos do século iv.
O De habitu virginum de São Cipriano constitui, para o cristia-
;' nismo latino da primeira metade do século m, o tratado mais am-
pio consagrado à prática da virgindade. É certo que Tertuliano
■/ abordara muitas vezes este tema da virgindade, mas os seus dife-
h rentes textos tratam sempre de um aspecto particular: trajes costu-
’ mados das jovens e das mulheres casadas no De virginibus velan-
í/w; problema de um novo casamento das viúvas no tratado Ad
? u corem e dos viúvos na Exhortado ad castitatem\ penitência e
reintegração dos adúlteros no De pudicitia, escrito no período
i* moritanista. Podemos verificar que muitas das idéias desenvolvi-
? das por Tertuliano voltarão a aparecer mais tarde: assim, o tema
/ das bodas com Cristo, ou da virgindade como condição de apro­
ximação das realidades espirituais.10 Mas devemos reter a sua
•^■reticência em conceder à virgindade, stricto sensu, um estatuto
particular. O pequeno tratado sobre o Véu das Virgens é, deste
6 ponto de vista, significativo. A tese é que as virgens, como as mu­
lheres casadas, devem usar o véu. Para isso são aduzidos três
conjuntos de argumentos. Uns apoiam-se nas Escrituras: foi como
mulher que Eva foi criada; era do seio de uma mulher que o Sal-
_■ vador devia nascer; foi como mulheres que as “filhas dos homens”
seduziram os anjos. Outros argumentos, mais singulares e que não
tornaremos a encontrar nos tratados posteriores sobre a virginda­
de; são tirados da natureza: após ter mostrado através das Escritu­
ras que a mulher é mulher antes de ser virgem, Tertuliano, com
7 efeito, explica que toda a virgem se torna mulher espontaneamen­
te e antes até do casamento. Torna-se mulher através da consciên­
cia que toma de si mesma como mulher, pelo facto de se tornar um
objecto para “a concupiscência dos homens”, e' de poder “sofrer o

10 Sobre o primeiro tema cf. TERTULIANO, De virginibus velandis, XVI. Sobre


o segundo, Exhortatio ad castitatem.
172 Michel Foucault

casamento”: deixa de ser virgem “a partir do momento em que


pode deixar de sê-lo”; por obra da corrupção que entra nos olhos
e no coração; “a pretensa virgem é já casada: o seu espirito é-o
pela expectativa, a sua carne pela transformação!; enfim, pelo
próprio movimento da natureza: desenvolvimento do corpo, mu­
dança de voz, e tributo mensal: “Negai pois que seja mulher aque­
la que sofre os acidentes da mulher.”11 Por fim a última série de
argumentos é tirada por Tertuliano das exigências da disciplina: as
mulheres casadas devem ser protegidas contra os perigos que as
rodeiam. O véu assegura e simboliza esta protecção. Mas a virgin­
dade não deverá ser igualmente protegida contra os ataques da
tentação, contra os dardos dos escândalos, contra as suspeitas, os
murmúrios, a inveja?
A Exortação à Castidade, texto endereçado por Tertuliano a
um irmão que enviuvara, parece, pelo contrário, reabsorver na
virgindade um conjunto de condutas ou de estatutos diferentes.
Mas, de facto, também aqui, a virgindade no sentido estrito não é
isolada como um modo de vida ou uma experiência particular. A
virgindade em geral é definida como “santificação”, esta santifica­
ção como vontade de Deus, e o que esta vontade quer é que, cria­
dos à sua imagem, nos assemelhemos a Deus. Há portanto três
graus de virgindade: aquele do qual somos dotados à nascença e
que, se o. conservarmos, nos permitirá ignorar aquilo de que nos
desejaremos libertar mais tarde; aquele que recebemos do segun­
do nascimento do baptismo e que se pratica quer no casamento,
quer na viuvez; por fim, aquele a que Tertuliano chama “monoga­
mia” e que, após a interrupção do casamento, doravante renuncia
ao sexo. A cada um destes três graus Tertuliano concede uma
qualidade específica. Felicitas ao primeiro; virtus ao segundo; e a
esta mesma virtus devemos no caso do terceiro acrescentar a mo­
destia12. Ora, o sentido a dar a estas qualificações e à sua hierar-

11 TERTULIANO, De virginibus velandis, XI.


12 TERTULIANO, Exhortado ad castitatem, X.
As Confissões da Carne 173

quia fica bem esclarecido numa passagem de O Véu das Virgens'3.


■ Tertuliano pergunta-se nela se “a continência não prima sobre a
virgindade” — a continência praticada na viuvez ou exercida de
comum acordo dentro do casamento. Do lado da virgindade, a
’ graça que se recebe; do lado da continência, a virtude. Aqui, difi-
* culdade do combate contra a concupiscência; ali, facilidade de não
i ■■ se desejar o que se ignora.
Vemos as duas tendências que se desprendem destes textos: por
um lado, dar à abstenção das relações sexuais um valor geral, co-
£ mo meio de nos aproximarmos de uma existência santificada,
prelúdio desse momento em que a carne ressuscitada deixará de
I conhecer a diferença dos sexos14; e, no quadro geral dessa absten­
ção, não conceder estatuto privilegiado ou posição de destaque à
virgindade no sentido estrito, ainda que se indique o seu lugar e a
sua especificidade. É de facto uma moral rigorosa da continência,
L muito mais do que uma valorização espiritual da virgindade, que
¡j atravessa estes textos de Tertuliano. Podemos até reconhecer neles
• a resistência a toda a prática que desse sentido e estatuto particular
¿ à virgindade das mulheres15.
Escrito em meados do século ui, o De habitu virginum endereça-
| -se em contrapartida a mulheres que têm e devem ter o estatuto e
¿ a conduta de virgens, sem que intervenha aqui seja o que for [que
se assemelhe a] uma instituição monástica. Trata-se de uma cate-
i. goria de fiéis suficientemente especificadas para ser possível
.. interpelá-las enquanto tais16 e suficientemente avançadas na san-
t idade para que Cipriano lhes peça que se lembrem dos outros
í';

■ 13 TERTULIANO, De virginibus velandis, X. A mesma ideia em Ad uxorem, 1,8:


"Não cobiçar o que ignoramos, [...] nada mais fácil. A continência é mais gloriosa,
porque [...] desdenha daquilo que conhece por experiência.”
14 TERTULIANO, De cultu jeminarum [A Moda Feminina],!, 2.
15 O que é particularmente sensível na passagem do De virginibus velandis, X,
J em que TERTULIANO critica tudo o que possa marcar exteriormente o estatuto
» das mulheres virgens, quando há “tantos homens virgens”, tantos “eunucos volun-
. tários”, e Deus nada lhes concedeu para os honrar,
j 16 SÃO CIPRIANO, De habitu virginum, 3.
174 Michel Foucault

(entre os quais ele se conta) no momento de receberem a honra


devida17. Nem elogio da virgindade em geral, nem censura do que
se passa, o texto apresenta-se, sob a forma de uma exortação, co- 1
mo um tratado prático: que “apresentação” deverá ser a das vir­
gens? Significativamente, começa por um elogio da disciplina era
geral, mais precisamente por uma fórmula que retoma outra, mui­
tas vezes repetida, de Tito Lívio18. Mas com uma variante. “Dis­
ciplina, guardiã da fraqueza”, dizia o historiador romano; “disci­
plina, guardiã da esperança”, responde Cipriano, que assinala
claramente a função positiva da disciplina na ascensão que conduz
às recompensas divinas: “Guardiã da esperança, amarra da fé,
guia do caminho salutar, alimento das boas disposições, mestra de
coragem, é ela que faz com que habitemos em Cristo e vivamos
apegados a Deus.”19
Cipriano define a virgindade relacionando-a com a purificação
do baptismo. Este último fez de nós, do nosso corpo e dos seus
membros, o templo de Deus. Estamos por isso obrigados a cuidar
que nada de impuro ou sequer de profano possa penetrar nesse lu­
gar santificado. Cabe-nos sermos, de certo modo, os seus sacerdo­
tes: tarefa que se impõe a todos, “homens e mulheres, rapazes e
raparigas, sem diferença de idade nem de sexo”20. Ora, em relação
a esta obrigação geral, a virgindade ocupa um lugar privilegiado.
Muito mais nitidamente do que Tertuliano, Cipriano isola o estado
de virgindade, rodeia-o de louvores singulares e fá-lo desempenhar
um papel que lhe é próprio. “Flor do germe da Igreja, honra e or­
namento da graça espiritual, feliz disposição, obra intacta e incor­
rupta. . .”21 Se a virgindade ocupa para Cipriano um lugar tão emi­
nente, é por duas razões. Conserva intacta a purificação efectuada
pela água do baptismo. Prolonga e completa o que se passou nesse
momento, quando o neófito se despojou do homem velho. A renún-

17 Ibid., 24.
18 “Disciplina custos infirmitatis”,TITO LÍVIO, História Romana, XXXIV, 9.
19 SÃO CIPRIANO, De habitu virginum, 1.
20 Ibid., 3.
21 Ibid.
& Confissões da Came 175

.^cià da virgem foi mais total do que as outras, pois que faz morrer
^jncla “todos os desejos da carne”22. Conservando ao longo de toda
«¿a vida a sua pureza intacta, a virgem começa ainda neste mundo a
^.¿xistência que será reservada, após a morte, aos que se salvarem: a
j^vida incorruptível. “Vós começastes já a ser o que nós seremos um
£j’dia. Possuís ainda neste mundo a glória da ressurreição e passais
»/pelo século sem vos contaminardes da corrupção do século. Quan-
\do permaneceis castas e virgens, sois iguais aos anjos de Deus.”23
/.Assim, do baptismo à ressurreição, a virgindade passa através da
¿.vida sem ser tocada pelas suas contaminações. Está ao mesmo
; .tempo o mais perto que pode estar do estado de nascença — desse
Restado em que se encontra a alma quando nasce para a existência
?, cristã — e o mais perto que se pode estar do que será a outra vida
|jia glória da ressurreição. O seu privilégio de pureza é também um
f privilégio no que se refere ao mundo e no que se refere ao tempo:
í' ci-la já, de certa maneira, no além. Na existência das virgens,
t reúnem-se a pureza inicial e a incorruptibilidade final24.
£•' Esta vida preciosa, Cipriano representa-a ao mesmo tempo co-
- mo frágil — está exposta aos ataques do demônio25 —, e como
. difícil — rude ascensão, suor e pena: “A quem persevera, é dada a
: imortalidade, é oferecida a vida perpétua, e promete o Senhor o
. seu reino.”26 Requer pois auxílio, encorajamentos, advertências,
. exortações27. Cipriano nada evoca que se pareça com uma direc­
ção sistemática. Não é manifestamente uma regra de vida o que
propõe. Indica somente que fala como um pai28. Mas sublinha
também que a virgindade não pode consistir apenas numa integri­
dade do corpo29. Ora, o conteúdo do texto pode surpreender. As

22 Ibid., 23.
23 ¡bid., 22.
24 Ibid.
25 Ibid., 3.
26 Ibid., 21.
27 Ibid.
28 Ibid.
29 Ibid., 5.
1
176 Michel Foucault

recomendações dadas apresentam-se em vários conjuntos sucessi­


vos: o primeiro reporta-se à riqueza (à única verdadeira riqueza
que está em Deus: não preferir a riqueza dos atavios, dos enfeites,
dos vestuários sumptuosos); o segundo reporta-se aos cuidados do
corpo e à galanteria; o terceiro reporta-se aos banhos, e aos locais
a não frequentar. É, pois, em suma, e o texto di-lo expressamente,
de “apresentação”, de “cuidados”, de “enfeites” que é questão nes­
tes preceitos30.
Mas a insistência mais ou menos exclusiva nestes temas explica-
-se facilmente pela concepção geral que Cipriano faz do estado de
virgindade. Se consiste com efeito na manutenção da pureza bap-
tismal até à incorruptibilidade do outro mundo, o princípio a se­
guir é conservar esse estado, fora de todo o contacto, tal como era
na origem, tal como deverá ser no fim dos tempos. Uma série de
expressões disseminadas no texto deve reter a atenção: “Não te­
mas”, diz Cipriano à virgem, “ser tal como és, por medo de que,
no dia da ressurreição, o teu criador (artifex tuus) não te reconhe­
ça”31; ou ainda: “sede tal como Deus vosso criador vos fez; sede
tal como vos instituiu a mão do Pai; que permaneça em vós o
rosto incorruptível”32; ou enfim: “Mantende-vos o que começas­
tes a ser, mantende-vos o que sereis.”33 Para a virgem trata-se pois
essencialmente de conservar essa semelhança que é o selo da
Criação, que o pecado apagara e que o baptismo restabeleceu. O
estado de virgindade deve ser despojado de todos esses “ornamen­
tos”, “atavios”, cuidados e embelezamentos através dos quais a
criatura, contrafazendo a obra de Deus, tenta mascará-lo. Tal co­
mo saiu da mão que a moldou, tal como será “reconhecida” no
último dia, assim deve viver a virgem. Ela deve ser, neste mundo,

30 “Continentia vero et pudicitia non in sola carnis integritate consistit, sed


etiam in cultus et ornatus honore pariter ac pudore” [“Mas o pudor não consiste
somente na integridade da carne; exige ainda a modéstia dos atavios e dos trajes”,
tradução do Pe. Thibaut], ibid.
31 Ibid., 17.
32 Ibid., 21.
33 Ibid., 22.
s'Confissões da Carne 177

á’ manifestação e a afirmação do seu estado. Daí a seguinte reco­


mendação de São Cipriano, que em nada diverge do conjunto do
texto, do qual é antes o ponto central: “Uma virgem não deve sê-lo
somente, é necessário que se compreenda e se creia que o é. Nin­
guém, ao ver uma virgem, deve duvidar daquilo que ela é.”34 Re­
dundando a todos os brilhos factícios que podem ser dados pela
riqueza, os ornamentos e os cuidados, a vida de virgindade deve
fazer brilhar aos olhos de todos aquilo que é: a figura incorrupta
que não sai da mão do Criador senão para a ela tornar, tal como é,
quer dizer, tal como Ele a fez.
' Não devemos pois enganar-nos aqui: neste breve conjunto de
conselhos endereçados a virgens — conselhos à primeira vista
bastante superficiais —, nestes simples preceitos de “apresenta­
ção”, devemos ver o testemunho da importância particular que é
reconhecida à virgindade feminina; o sentido espiritual que é
c< ncedido à virgindade entendida como integridade total da exis­
tência, e não simplesmente como continência rigorosa; finalmente,
o valor que se lhe atribui como forma absolutamente privilegiada
da relação com Deus. Significações sem dúvida muito implícitas
mas que dão conta justamente do que pode haver de sucinto e de
aparentemente inessencial nas recomendações práticas de São
Cipriano.

O Banquete de Metódio de Olimpos não introduziu o tema da


virgindade no pensamento cristão; também não foi ele que marcou
as primeiras diferenças entre esta virgindade e a continência pagã.
Mas aquele diálogo constitui, nos finais do século m, a primeira
grande elaboração de uma concepção sistemática e desenvolvida
da virgindade. Atesta, muito antes do desenvolvimento das insti­
tuições monásticas, a existência de uma prática colectiva, pelo
menos em círculos de mulheres, e dá testemunho do altíssimo
valor espiritual que se lhe concedia. É certo que não encontramos
neste texto a descrição desses métodos e procedimentos nos quais

Ibid., 5.
178 Michel Foucault

os autores do século iv — de Basilio de Ancira a João Crisóstomo,


e de Ambrosio a Cassiano — insistirão para mostrar como se po­
de manter uma pureza rigorosa do corpo e da alma, do pensamen­
to e do coração, e que constituirão aquilo a que podemos chamar
uma tecnologia da virgindade. Mas na charneira da espiritualida­
de alexandrina e neoplatónica do século ni e das formas do asce­
tismo institucional do século iv, formula alguns dos temas funda­
mentais da prática positiva da virgindade. Uma vez que a forma
literária do Banquete permite a sobreposição de discursos diver­
sos, mas também a sua sucessão num movimento contínuo e as­
cendente, e a indicação do momento decisivo pela designação de
um “vencedor”, podemos determinar através da unidade flexível
deste diálogo a diversidade dos pontos de vista e a existência de
uma linha de força. Porque, apesar de muitas repetições, trata-se
de outra coisa que não a simples sucessão de homilías exortando
uma após outra à castidade.
No primeiro discurso, pronunciado por Marcela, a virgindade
está ligada a um triplo movimento de ascensão. Uma ascensão
pessoal primeiro, que é descrita num estilo rigorosamente platóni­
co: a virgindade faz subir “em direcção às alturas” o carro das
almas, “até que, escapando ao seu peso, elas saltem para lá do
mundo” e se icem subindo “na abóbada celeste”35; no termo dessa
ascensão, é dada à alma a contemplação do Incorruptível. Uma
ascensão histórica, que, desde a origem dos tempos, faz a humani­
dade aceder mais perto dos céus: é a série dos usos e das leis;
quando o mundo estava vazio , e era necessário preenchê-lo, os
homens “desposavam a sua própria irmã” até Abraão ter “recebido
a circuncisão”, que mostra bem que temos de nos separar da nossa
própria carne; os homens tiveram depois várias mulheres, até lhes
ter sido dito que eram “garanhões com cio” e que “a fonte da sua
água” não devia pertencer senão a cada um deles; depois, foi-lhes
ensinada a continência, e por fim agora a virgindade, “ensinamen­
to supremo e culminante” que os faz desprezar a carne e repousar

35 METÓDIO DE OLIMPOS, O Banquete, Primeiro Discurso, I.


As Confissões da Carne 179

■if
’ nt> “porto seguro da incorruptibilidade”36. Por fim, o discurso de
Marcela evoca, na economia histórico-teológica da salvação, a
■; ruptura que separa os dois últimos momentos da série anterior­
mente descrita. Antes de Cristo, Deus, um pouco como um pai
.{•confiando os seus filhos a pedagogos cada vez mais severos,
conduzira-os à continência. Mas para a passagem desta à virgin-
\v-' dade, que nos permite, a nós que fomos criados à imagem de Deus,
I. assemelharmo-nos a Ele e levarmos esta semelhança ao seu termo,
foi necessária a Encarnação, foi necessário que o Verbo revestisse
,a carne humana e que nos fosse assim proposto “um modelo de
vida que seja divino”37. O primeiro discurso do Banquete entrete-
.ce, pois, numa figura de ascensão única, os três movimentos (gra­
ça da salvação, transformação progressiva da lei, esforço de ascen­
são individual) que colocam a virgindade — e a virgindade cristã,
’ bem distinta da continência — nesse cume da perfeição em que o
homem se aproxima ao máximo da semelhança a Deus.

** Os segundo e terceiro discursos, os de Teófila e de Taleia, res-


pondem-se um ao outro e constituem uma discussão a propósito
do valor do casamento. Mas estamos muito longe, na forma e no
conteúdo, do debate antigo ei gamêteon [sobre o dever do casa-
I mento]. Teófila fala do valor do casamento, aceitando embora a
i ideia de que o homem ascende através de degraus sucessivos em
direcção à virgindade. Mas é que, para ela, ainda não chegou a

‘ hora “em que a luz se terá definitivamente separado das trevas”; o


número dos homens não foi ainda alcançado. Ainda que menos
| precioso do que a virgindade, o casamento é útil e deve ser ainda
* praticado. Mas, vendo-o de mais perto, este direito do casamento
? hão é somente uma concessão à falta de melhor e como solução de
■ transição. Os argumentos que Metódio põe na boca de Taleia dão
i6/tó/.,IIeIII.
uma significação inteiramente positiva ao casamento: estamos
f 37, “The ion ektupôma biou”, [ibid., IV].
ainda, diz ela, sob o signo do “Crescei e multiplicai-vos”. Ora,
1:
nesta multiplicação, que faz nascer a carne da carne, devemos ver
180 Michel Foucault

de facto um acto de criação, de demiurgia38. O texto de Metódio


sublinha por sua vez três aspectos dessa demiurgia. Procriação do
corpo pelo corpo: é de cada um dos membros do homem que se
forma a semente “escumante e grumosa” que vai fecundar o cam­
. Mas também colaboração do homem com Deus no
po feminino3940
próprio corpo, como o explica Teófila na longa comparação do
corpo humano com a oficina em cujo centro trabalha o moldador
divino, dando forma aos embriões, como se moldasse cera, “a
partir de algumas ínfimas gotas de semente”, e elaborando assim
“a imagem, plenamente racional e dotada de alma, que Dele so­
mos”. Na formação do embrião, na sua gestação, no desenvolvi­
mento também do embrião após o nascimento, Deus desempenha
o papel do operário supremo. “Ho aristotekhnas."™
Reconhecemos aqui facilmente temas vizinhos dos desenvol­
vidos em O Pedagogo de Clemente de Alexandria41. Na procria­
ção era descrita a conjunção da potência do Criador com o acto
da criatura. Poder-se-á assinalar uma influência directa de Cle­
mente sobre o autor do Banquete! De momento não é essa a
questão. Como quer que seja, estes temas que fazem intervir uma
teologia da Criação, através de considerações médicas inspiradas
mais ou menos directamente pelos estoicos, eram sem dúvida
correntes no século m. E interessante vê-los aparecer neste início
do Banquete', no discurso de Teófila, que decerto não será mais
desqualificado do que qualquer outro dos sustentados por este
grupo de santas mulheres42, mas se destina a ser “superado” por
um movimento ascendente que o discurso seguinte de Taleia

38 “To ek tôn osteôn ostoun kai hê ek tês sarkos sarx [...] hupo tou autou tekhni-
tou dêmiourgêthôsi", ibid., Segundo Discurso, I.
39 [Ibid., II], E interessante notar que o prazer próprio da relação sexual é repor­
tado, como ao seu tipo, ao sono em que Deus mergulhou Adão, quando.de uma das
suas costelas, tirou Eva. Justificação escriturária do gozo.
40 Ibid., VI.
41 Cf. supra, pp. 38-40.
42 E de resto acolhido por “um rumor elogioso”, “todas as virgens aprovavam o
seu discurso” (Terceiro Discurso, VII); e Taleia reconhece que “nada pode opor-se
à sua exposição” (ibid., Terceiro Discurso, I).
Às Confissões da Carne 181

enceta ao propor que se não se fique pelo sentido imediato da


narrativa do Gênesis.
O discurso de Taleia contrapõe-se ao de Teófila como a inter­
pretação espiritual à que se limita a ser literal. Não é que esta úl­
tima seja considerada falsa43, mas não é suficiente, porque o texto
da Bíblia apresenta mais do que o simples “arquétipo do comércio
entre os dois sexos”44; e sobretudo porque, se vemos com razão na
narrativa do Gênesis os “imutáveis decretos de Deus [que] assegu­
ram harmoniosamente o perfeito governo do mundo”— e conti­
nuam ainda a assegurá-lo hoje —, não devemos esquecer que en­
trámos agora numa outra idade do mundo em que as antigas leis
da natureza foram substituídas por uma outra disposição.45
- E o texto desta nova disposição que devemos seguir. Metódio
encontra-o na Primeira Epístola aos Coríntios. É a partir dele
que devemos interpretar o Gênesis. Mas Metódio recusa-se a ver
na relação entre Adão e Eva o simples anúncio ou sequer o mo­
delo do que é doravante a união de Cristo com a Igreja.46 Quer ;
ver na Encarnação uma verdadeira re-Criação, um remoldar de
Adão. Este não estava ainda “seco” nem “duro” quando, ao sair
das mãos daquele que o moldara, deparou com o pecado que se
derramou sobre ele e o fez perder a sua forma. Deus formou-o
portanto de novo, depô-lo no seio de uma virgem e uniu-o ao
Verbo. Cristo retomou assim e assumiu Adão. Mas, por isso mes­
mo, a ordem da corrupção foi abolida, a forma das uniões e dos
partos renovada: “O Senhor, que é a Incorruptibilidade vitoriosa
da morte, fez ressoar para a carne o cântico de alegria da ressur­
reição, sem permitir que ela de novo tornasse ao poder da cor­
rupção.”47

43 “Admito o plano em que assentaste a tua exposição, Teófila seria impru­


dente desprezarmos por completo o texto tal como se apresenta”, ibid., II.
44 Ibid.,1.
45 “Heterô diatagmati tous prôtous tês phuseôs analusê thesmous", ibid., Ter­
ceiro Discurso, II.
46 Tal era a interpretação de origem.
47 Ibid., VII.
182 Michel Foucault

Metódio retoma então o texto do Génesis, do qual, no discurso


anterior, propusera uma interpretação literal, e como que natura­
lista. E mobiliza-o no campo das significações espirituais, primei­
ro no plano colectivo da Igreja com Cristo, depois no plano indi­
vidual de um justo entre os justos — São Paulo, que encontramos
assim retomado na interpretação de que era o fundador. Faz assim
“ricochetear” sobre Cristo o que fora dito a propósito de Adão. Os
termos da análise são importantes: marcam não o apagamento do
que mostrara a ordem da natureza, mas a sua transposição. O sono
no qual foi mergulhado o primeiro homem — esse êxtase que fi­
gurava, como vimos, o gozo do prazer físico — tornou-se agora a
morte voluntária de Cristo, a sua Paixão (Pathos). A Igreja foi
feita da sua carne e dos seus ossos e, esposa purificada pelo bem,
recebe no seu seio “a semente bem-aventurada e espiritual”48. O
êxtase de Cristo renova-se sem cessar: de cada vez que desee dos
céus para abraçar a sua esposa, esvazia-se e oferece o seu flanco
para que nasçam todos os que vêm ao baptismo49. Mas o que se
passa para a totalidade da Igreja passa-se também para a alma dos
mais perfeitos que é fecundada por Cristo, do qual é a esposa vir­
gem. São Paulo recebeu assim “no seu seio as sementes da vida”,
esteve “em trabalho de parto” e “engendrou” novos cristãos50.
Relativamente a estas uniões e a esta fecundidade, que são a
forma espiritual da virgindade, o casamento já não é pois essa
necessidade da natureza da qual o discurso anterior falara
referindo-se à necessidade de povoar o mundo. O “Crescei e
multiplicai-vos” tem doravante uma outra significação51. E, se o
casamento tem um lugar, é como uma concessão feita aos que são
demasiado fracos: pensemos por exemplo em doentes aos quais
seria necessário dar alimento, ainda quando tenha chegado o dia

48 “To noêton kai makarion sperma",Terceiro Discurso, VIII.


49 Notar as expressões como: “Ho Khristos kenôsas heauton”, ou: “proskollê-
theis tê heautou gunaiki”.
50 Esta última expressão encontra-se em SÃO PAULO, Epístola aos Corintios,
4,15.
51 METÓDIO DE OLIMPOS, O Banquete, Terceiro Discurso, VIII.
A.s Confissões da Carne 183

do jejum. Deixemo-lo pois aos fracos. O que quer dizer, conclui


Metódio, sempre segundo a Epístola aos Corintios, que a virginda­
de não pode ser obrigatória: “aquele que é capaz de ‘conservar a
sua’ carne ‘virgem’ e nisso põe a sua honra ‘faz melhor’; enquan­
to aquele que o não pode, e que a ‘vota ao casamento’ legítimo
sem fraudes ignominiosas, ‘faz’ somente ‘bem’”52.
Assim, os três primeiros discursos do Banquete fundam numa
perspectiva histórico-teológica o tempo da virgindade: trata-se
nem mais nem menos do que de uma idade do mundo aberta pelo
retomar do acto criador inicial na Encarnação. A virgindade assim
compreendida é por isso coisa bem diferente de um interdito refe­
rido a um dado aspecto do comportamento humano. Figura fun­
damental na relação entre Deus e a sua criatura, é constituída pela
restauração salvadora de uma relação primeira agora transposta
para a ordem dos actos, das procriações, dos parentescos e dos
laços espirituais. Os quatro discursos seguintes podem ser consi­
derados como formando por seu turno um conjunto: cantam esta
idade nova — o que ela é pelo lado da existência humana (são os
discursos de Teópatra e de Talusa), depois o que é pelo lado das
recompensas divinas (sexto e sétimo discursos de Ágata e de Pró-
cila); seguem o caminho da virgindade, da alma que a pratica à
salvação que a coroa. Aquilo a que Metódio chama o retorno em
direcção ao paraíso53.
A intervenção de Teópatra, a quarta oradora, introduz a noção
importante de pureza, hagneia. Importante na medida em que se
distingue da de virgindade. Com efeito, por comparação com o
sentido histórico-teológico da virgindade anteriormente fixado, a
pureza é a sua forma humana: o modo de existência das criaturas
que escolheram o caminho da salvação quando chegou com o
Salvador o tempo da virgindade. Mas, por comparação com o
sentido tradicional da integridade física, a pureza tem uma signi­
ficação evidentemente mais ampla. Devemos concebê-la antes de

52ZWd.,XIV.
53 “Hê eis ton paradeison apokatastasis”, Quarto Discurso, II.
184 Michel Foucault

mais não como o simples resultado de uma abstinência voluntária:


vem de cima. É um dom de Deus, que oferece assim ao homem a
possibilidade de se proteger contra a corrupção: “Deus teve pieda­
de da nossa situação: vendo-nos incapazes de a suportarmos e de
dela nos levantarmos, enviou-nos do alto do céu o melhor e o mais
glorioso dos socorros, a pureza.”54 Tesouro de pureza que o ho­
mem em contrapartida deve cultivar e “exercer muito particular­
mente”55. Devemos praticar esta pureza não numa idade particular
da vida, mas ao longo de toda a existência — da primeira à tercei­
ra vigília: “É bom aceitar desde a infância o jugo das direcções
divinas.”56 Devemos praticá-la também em todo o seu ser, no cor­
po como na alma, na ordem das relações sexuais como na de todas
as outras aberrações57. Deve ser por fim praticada não como uma
simples abstenção do mal, mas como uma ligação positiva a Deus:
uma maneira de nos consagrarmos a ele58. Assim, Talusa descreve
a virgindade como um selo poisado sobre o corpo e a alma: sobre
a boca, que se proíbe toda a palavra vã para já não cantar senão
hinos a Deus; sobre os olhares, que se desviam “das seduções
corporais” e “dos espectáculos indecentes” para se voltarem para
as coisas de cima; sobre as mãos, que deixam cair os tráficos bai­
xos; sobre os pés, que já não deambulam mas avançam em frente
obedecendo ao comando. Sobre o pensamento, enfim: “Não alber­
go ideia vil alguma, cálculo algum que seja deste mundo [...].
Medito dia e noite na lei do Senhor.”59
Vem então o momento da recompensa. Esta é, desde esta vida, a
transformação das almas que se revestem da “Beleza ingerada e
incorpórea [...], que é sem vicissitude, sem envelhecimento, sem

54 Ibid.
55 “Diapherontôs askein”, ibid., VI.
56 Ibid., Quinto Discurso, III.
57 Ibid., IV.
58 Metódio emprega o termo eukhê (ibid.), mas não é certo que se refira a um
voto institucional e ritúalizado.
59 Ibid., IV.
Ás Confissões da Carne 185

defeito”60. Podem já neste mundo de baixo tornar-se o templo do


Senhor; mas estão preparadas também para o momento em que
Cristo virá: “as nossas almas, com os nossos corpos que terão re­
cobrado, irão sobre as nuvens ao encontro de Cristo, segurando as
suas lâmpadas [...], como estrelas inteiramente cintilantes do bri­
lho de um esplendor celestial”61. E no céu, explica Prócila comen­
tando o Cântico dos Cânticos, Cristo receberá as suas noivas: “Não
deve. a noiva ser inseparável daquele que a buscou, e portadora do
seu nome? Mas não deve achar-se intacta e imaculada, selada como
um jardim de Deus onde crescem todas as plantas perfumadas com
as delícias fragrantés do céu, para que só Cristo nele penetre para
colher essas flores nascidas de sementes incorpóreas?”62
Os três últimos discursos constituem o cume da ascensão. O
mais importante é o oitavo, o de Tecla — que será aliás o premia­
do, apesar da excelência de todos os outros. Não devemos esquecer
com efeito que Tecla era celebrada como a companheira de São
Paulo, nem que os Acta Pauli et Theclae eram um texto ao qual se
referiam regularmente os encratitas e todos aqueles que, entre os
discípulos de Taciano, pregavam a abstenção rigorosa de toda a
relação sexual. O recurso à personagem de Tecla marca, em Me-
tódio, a vontade de sublinhar o caracter pauliniano da sua tese, e
de retomar esta figura da primeira virgem-mártir num elogio da
virgindade que não fosse um preceito de continência absoluta e
incondicionada. Trata-se em suma de deixar à própria Tecla, mo­
delo das virgens cristãs invocado pelo encratismo, o cuidado de
descobrir um outro sentido na virgindade. Quanto ao facto de este
discurso “capital” no sentido estrito ser o oitavo, a razão por que é
assim deixa-se compreender facilmente. A escatologia de Metó-
dio, com efeito, dava uma significação muito particular ao número
oito. Apoiando-se nos sete dias do Génesis, e no calendário do
Levítico, com os sete dias de festa do sétimo mês, cuja observância

60 [Ibid., Sexto Discurso, I.]


61 Ibid., IV.
62 Ibid., Sétimo Discurso, I.
186 Michel Foucault

é uma lei perpétua para todos os descendentes de Israel63, Metódio


calculava que o mundo devia durar sete milênios: os cinco primei­
ros eram os da sombra e da Lei; o sexto, que corresponde à criação
do homem, era o da vinda de Cristo; o sétimo, o do Repouso, da
Ressurreição e da festa dos Tabernáculos. Quanto ao oitavo milê­
nio, será o da eternidade64. Na oitava posição o discurso de Tecla
coroa todos os outros. Está como que no fim dos tempos: descobre
a Eternidade. É o culminar e o fundamento de tudo o que foi dito.
Retoma, em termos mais platónicos do que nunca, a descrição
já feita do movimento das almas que, se souberem guardar-se das
contaminações do mundo, subirão até às esferas do Incorruptível.
Tecla evoca as asas das almas que, alimentadas da seiva da pureza,
“se tornam mais fortes” e cuja ascensão é ainda mais ligeira “por­
que se habituaram dia após dia a voar para longe das humanas
preocupações”65. Evoca também “aqueles que perderam as suas
asas e tropeçaram nos prazeres” onde se “rolam”66, incapazes de
um parto honrado. As almas que sobem, Tecla, como as que antes
dela falaram, promete o acesso à incorruptibilidade: alcançam “os
aléns do mundo para lá desta vida, vêem de longe o que ninguém
mais contemplou, os próprios prados da imortalidade — deslum­
brantes, as belezas das quais são ricos, as flores das quais estão
cheios!”67. E neste movimento efectuam essa semelhança a Deus
que a filosofia de inspiração platónica não se cansava de prometer
às almas que se libertassem do mundo das aparências. Metódio,
dando à virgindade esta significação muito ampla de uma existên­
cia purificada e “inteiramente no cume”68, vê nela uma conjunção
com Deus. Parthenia = partheia.

63 Esta passagem do Levítico, 23,39-43, é citada no Nono Discurso do Banquete.


64 Encontram-se no Banquete muitos outros elementos que recordam o valor do
número oito. Por exemplo, no Hino Final, os sete exemplos de pureza que se en­
contram nas Escrituras, aos quais se acrescenta o martírio da própria Tecla.
65 [Ibid., Oitavo Discurso, I.]
66 [Ibid., II.]
67 [Ibid.]
68 “Koruphaiotaton [...] epitêdeuma", I.
As Confissoes da Carne 187

s Até aqui, pois, nada de novo neste discurso de Tecla relativa­


mente às oradoras anteriores, ainda que a insistência reiterada nos
temas platónicos assuma, nesta intervenção mais decisiva do que
as outras, um valor muito particular69. Uma expressão contudo
deve ser retida desde as primeiras linhas. Trata-se da comparação
que era corrente mas que no seu uso filosófico era mais estoica do
que platónica, da vida com um teatro. Mas, enquanto esta metáfo­
ra banal servia para designar sobretudo as ilusões fugidias da
existência ou o carácter de comédia de uma vida na qual não so­
mos mais do que um actor cujo papel está de antemão decidido70,
enquanto Plotino evoca como um puro espectáculo de teatro, com
mudanças de palco e de guarda-roupa, gritos e lamentações, os
morticínios e as guerras, enquanto fala do mundo como de um
palco múltiplo em que “o homem exterior geme, se queixa e repre­
senta o seu papel”71, Metódio, pelo seu lado, fala do drama da
verdade72: este joga-se na ascensão rumo à realidade incorruptível.
Dele são excluídos os que se mantêm apegados ao prazer; partici­
pam nele até ao fim os que pelo contrário buscam “os bens lá de
cima”. A virgindade é uma condição, ou antes, é, como forma
geral de existência, a condição para que este drama da verdade
seja levado até à própria Verdade. Mais do que uma comédia, é
' uma liturgia em que as almas que tenham “vivido para Cristo
como virgens verdadeiramente fiéis” desenrolam o seu cortejo em
direcção ao céu, deparam com o coro dos anjos que “vieram ao
seu encontro”, cantando-lhes “palavras de boas-vindas”, e as “con­
duzem” aos prados da imortalidade e lhes dão “o prêmio da sua

69 De um modo geral, Metódio, nas suas outras obras, reivindica um platonismo


autêntico contra as tendências que se inspiram em Platão (cf. J. PARGÈS, Les
Idees morales et religieuses de Méthode d’Olympe, Paris, 1929).
70 Cf. EPICTETO, Manual, 17: “Lembra-te de que és actor de um drama que o
autor quer tal”; MARCO AURÉLIO, Pensamentos, XII, 36. Cf. também CÍCERO,
Definibus, III, 20.
71 PLOTINO, Enéadas, III, 2,15.
72 “7o drama tês alêtheias", METÓDIO DE OLIMPOS, O Banquete, Oitavo
Discurso, I. A expressão retorna nos capítulos seguintes do mesmo discurso.
188 Michel Foucault

vitória”73. Então, tudo o que viam, como que num sonho, sob a
forma de sombras, vêem-no agora, “belezas maravilhosas, radio­
sas, bem-aventuradas”74: a própria Justiça, a própria Continência,
o próprio Amor, e a Verdade e a Sabedoria. Em suma, o oitavo
discurso — discurso corifeu — reitera o movimento evocado pe­
los discursos precedentes. Mas, enquanto estes prometiam a incor­
ruptibilidade, a imortalidade, a felicidade eterna, é a verdade que
é anunciada aqui: as virgens penetram até aos tesouros, e Deus,
em contrapartida, ilumina-as.
E neste sentido portanto que o discurso de Tecla anula todos os
outros. Mas também os funda no sentido em que o tesouro de
verdade que vai agora descobrir se refere à própria virgindade.
E assim que devemos compreender sem dúvida os dois desenvol­
vimentos que constituem o corpo do discurso de Tecla e cuja
presença, neste ponto, pode surpreender: uma exegese do Apoca­
lipse e considerações sobre o determinismo astral. Num caso,
trata-se de conceber de novo a virgindade do ponto de vista do fim
dos tempos e como forma da sua consumação; no outro, de a con­
ceber de novo do alto do mundo e vista de certo modo como que
das esferas celestes mais elevadas.
A passagem do Apocalipse, comentada por Tecla, é a que des­
creve “o grande sinal aparecido no Céu”: a mulher em trabalho
de parto, envolta em sóis, e o dragão que precipita sobre a Terra
a terça parte das estrelas. Uma interpretação sem dúvida tradi­
cional devia ver aqui a representação da virgem, o nascimento de
Cristo, o combate da serpente com a mulher e a promessa da sua
derrota frente a Cristo75. A este exegese, Metódio opõe-se aspe­
ramente76. Faz valer, contra ela, uma impossibilidade textual: o

73 Notem-se os termos: parapempein, ta nikêtêria, tois anthesi stephtheisai


(ibid., II).
74/Mí/.,ni.
75 Sobre a importância de não interpretar segundo o passado figuras anunciadoras
(como os judeus fazem), ver o primeiro e o segundo capítulos do Nono Discurso.
76 O termo “litigante”, “quezilento”, de que se serve para designar os defensores
da interpretação que rejeita, indica a existência de uma discussão sobre o sentido
deste texto do Apocalipse.
As Confissões da Carne 189

Apocalipse fala da ascensão ao céu, e portanto para fora do al­


cance da serpente, da criança que nasce da mulher. Ora, Cristo
dèsceu do céu para combater o Inimigo. Faz valer também uma
regra de método: o Apocalipse é um texto profético, não deve­
mos reportá-lo à Encarnação, que se produziu antes de ele ser
escrito. Não pode por isso referir-se senão “ao presente e ao fu­
turo”. Em suma, à interpretação segundo a descida passada do
Espírito, Metódio substitui uma interpretação segundo a ascen­
são actual e futura em direcção a Deus. De facto, o que propõe
pela boca de Tecla não é uma exegese original. Propõe com
efeito que se veja na mulher, ataviada como a noiva que vai ser
conduzida ao leito do rei, uma imagem da Igreja: o que era um
tema corrente no século m77. A criança que dela nasce é portan­
to a alma do cristão, que chega à vida espiritual através do bap­
tismo. Mas porque é que essa criança é representada como um
varão? Porque os cristãos formam “um povo de homens”, porque
renunciaram às “paixões efeminadas”, porque se “virilizam atra­
vés do fervor”. Transportam em si “a forma e a semelhança do
Verbo”, o cristão verdadeiro nasce enquanto Cristo. Devemos
pois decifrar essa figura da mulher no parto como uma imagem
da fecundidade virginal da Igreja que faz nascer almas cuja vir­
gindade é selada pelo sinal de Cristo78.
Quanto ao dragão, é, muito evidentemente, Satanás que deve­
mos ver nele, Satanás não inimigo de Cristo, mas inimigo das al­
mas, procurando surpreendê-las. As sete cabeças que o Apocalip­
se descreve opõem-se às sete virtudes e os dez cornos atacam os
dez mandamentos: cornos acerados do adultério, da mentira, da

77 A exegese transpusera o tema hebraico da Aliança de Deus com o seu povo nos
termos de uma relação entre Cristo e a Igreja. Santo Hipólito e Orígenes tinham
assim feito da Igreja a esposa de Cristo.
78 Orígenes via a esposa de Cristo ora na Igreja, ora na alma do cristão. Metódio
parece querer sublinhar pelo contrário que a Igreja, noiva e templo de Deus, é um
“poder em si, distinguindo-se dos seus filhos” e que a alma não pode nascer cristã
senão pelo poder da sua mediação e da sua maternidade. Sobre estes debates ecle-
siológicos, cf. F.-X. ARNOLD.
190 Michel Foucault

avareza, do roubo, indica Metódio, que de resto não leva mais


longe a enumeração. Não devemos pois buscar, nesta passagem do
Apocalipse, a rememoração da vitória de Cristo, mas, segundo
uma descodificação parenética, uma exortação à luta: “Não vos
atemorizeis pois perante as emboscadas e as calúnias da Besta;
equipai-vos corajosamente para o combate, armados com o ‘elmo
da salvação’, a couraça e as polainas: causar-lhe-eis um pânico
incalculável se carregardes sobre ela com muita resolução e bravu­
ra, e ela recuará, quando vir os seus inimigos alinhados para a
batalha pelo mais Poderoso do que ela.”79
Vista do milênio, a idade da virgindade é pois a da ascensão
das almas rumo ao céu incorruptível. A própria virgindade assu­
me aqui dois aspectos: o de um parentesco espiritual em que um
papel central cabe à Igreja — esta, virgem fecundada pelo Se­
nhor, eleva almas virgens, que a sua virgindade eleva ao céu; o de
um combate espiritual em que a alma deve lutar contra os inces­
santes ataques do Inimigo. Esta mesma idade do mundo, o último
desenvolvimento do discurso de Tecla permite vê-la numa pers­
pectiva de certo modo espacial: do alto do mundo e da sua ordem.
De facto, Método introduz aqui uma discussão cujas estruturas e
cujos elementos são nitidamente filosóficos. Trata-se de refutar a
opinião segundo a qual os astros fixariam o destino dos homens.
Deixemos de lado o problema de saber o que estava em jogo nes­
te longo debate. Se ocupa o lugar que ocupa neste Banquete con­
sagrado à virgindade, é porque permite a Metódio sustentar que
Deus não é responsável pelo mal, que ele e todos os seres celestes
que permanecem sob a lei do seu governo estão “fora do alcance,
e de muito longe, da perversidade dos comportamentos terrenos”,
que a existência de leis que obrigam e proíbem não é contraditó­
ria (o que seria o caso se o destino estivesse „selado de uma vez
por todas), que existe uma diferença entre os justos e os injustos,
“um fosso entre os desregrados e os temperantes”, que “o bem é
inimigo do mal, e o mal diferente do bem”; que “a maldade é

79 METÓDIO DE OLIMPOS, O Banquete, Oitavo Discurso, XII.


As Confissões da Carne 191

repreensível” e que “Deus estima e glorifica a virtude”. Todos


estes princípios são lembrados para dar lugar, no mundo em que
- estamos, à liberdade cuja ausência tiraria todo o valor à castidade:
“Depende de nós fazer o bem ou o mal, e não dos astros; porque
há em nós dois movimentos: o desejo natural da nossa carne, e o
da nossa alma. São diferentes: daí os nomes que os designam:
virtude de um lado, perversidade do outro.”80 O parentesco espi­
ritual e o combate dos quais Tecla falava num desenvolvimento
anterior podem de facto marcar esse tempo da virgindade, anun­
ciado pelas Escrituras e definido pela sucessão dos milênios, mas
nem por isso deixa menos lugar à liberdade dos homens e à dis­
tinção, em termos de mérito, entre os que Deus salvará e os que
se perderão.
As duas últimas oradoras do Banquete constituem o acompa-
' nhamento de Tecla e do seu grande discurso. A nona mantém a
■ linguagem da parénese: exortação da alma a que se prepare para a
festa que o sétimo milênio lhe promete. Como devemos “adornar-
-nos com os frutos da virtude”? Como devemos “cobrir a fronte
com os ramos da pureza”? Como “ornar o nosso tabernáculo”?
Para responder a estas perguntas, Metódio refere-se a um texto do
Levítico81. Começar por tomar “belos frutos maduros”: trata-se
dos frutos que cresciam já no paraíso na árvore da vida e dos quais
o homem se apartara, trata-se hoje do fruto “que é cultivado no
pomar do Evangelho”. Depois “os penachos da palmeira”: trata-se
com efeito de purificar o espírito, de limpar a alma das poeiras da
paixão. Depois ramos de salgueiro, que significam a justiça. E por
fim ramadas de anho-casto, que significam bem entendido a cas­
tidade82: coroamento de todas as virtudes. Mas, indicação impor­
tante, esta castidade não deve ser identificada com o celibato,
porque pode ser praticada “pelos que vivem castamente com as
suas mulheres”, ainda que não atinjam contudo o cimo e nem se­

80 lbid„ XVII.
81 Levítico, 23,39-43.
82 Em grego o jogo de palavras é agninos — hagneia.
192 Michel Foucault

quer os ramos mestres da árvore como aqueles que se adstringi-


ram a uma virgindade integral. Não deve também ser identificada
com a recusa da fornicação, nem com a abstenção pura e simples
de relações sexuais: a virgindade requer que até mesmo os desejos
e as cobiças sejam arrancados. A virgindade, como virtude e cume
de todas as virtudes, como preparação para a consumação dos
tempos, deve ser não uma rejeição do corpo, mas um trabalho
sobre a própria alma.
Enfim Domnina, a última interveniente, é encarregada de dis­
tinguir este labor da virgindade das obrigações anteriores, que
Deus impusera sucessivamente aos homens. Lei do paraíso, sim­
bolizada pela figueira, da qual Adão se afastou. Lei de Noé, sim­
bolizada pela vinha, que prometia ao homem o fim das suas des­
venturas e o regresso da alegria. Lei de Moisés, simbolizada pela
oliveira, cujo azeite reacende as lâmpadas. Ora, destas leis suces­
sivas, se o homem se afastou, foi porque Satanás soube ludibriá-lo
contrafazendo estas árvores e os seus frutos. Só a virgindade não
pode ser imitada, e Satanás por conseguinte não pode servir-se
dela para triunfar sobre o homem. Mas há neste discurso último
um elemento importante: é que a virgindade não se distingue das
leis de Adão, de Noé e de Moisés, como uma lei entre outras. Não
é uma lei. E é à Lei em geral, da qual a figueira, a vinha e a oli­
veira representam três formas, que ela se opõe. De um lado a Lei,
do outro a virgindade que lhe sucede83. Ora, esta ideia de que a
virgindade vem render a Lei é duplamente importante. Antes de
mais porque manifesta que, na mística de Metódio, a virgindade
não é objecto de uma prescrição. É um modo de relação entre
Deus e o homem, marca esse momento na história do mundo e no
movimento da salvação em que Deus e a sua criatura já não comu­
nicam pela Lei e a obediência à Lei. Por outro lado, porque a vir­
gindade não é simplesmente uma forma de submissão ao que foi

83 “Wê parthenia diadexamenê ton nomon”, METÓDIO DE OLIMPOS, O Ban­


quete, Décimo Discurso, I.
:s Confissões da Carne 193

ordenado: é um exercício da alma sobre si mesma84, que a trans­


porta até à imortalização do corpo85. Relação da alma consigo
mesma em que se joga a vida sem fim do corpo.

84 “Hê ergazomenê tên psukhên askêsis”, ibid., VI.


85 “Hê athanatopoios tôn sômatôn hêmôn hagneia”, ibid.
[II]

[DAS ARTES DA VIRGINDADE]

Não deveria estabelecer-se um corte demasiado marcado entre


os primeiros textos e a grande época florescente dos tratados de
virgindade no século iv. Aqueles prepararam-na, destacando o
princípio da virgindade das prescrições de continência, dando-lhe
um estatuto particular, bem como uma significação espiritual po­
sitiva e intensa, e desenvolvendo um certo número de temas que os
autores, de Gregorio de Nissa a Agostinho, não vão ter senão de
retomar, enriquecer ou remodelar.
No entanto, a questão da virgindade, no século iv, inscreve-se
num contexto que, numa medida importante, a vai modificar: de­
senvolvimento da ascese, organização do monaquismo, aplicação
de técnicas para o governo de si mesmo e dos outros, Ordenamen­
to de um regime complexo da verdade das almas. Podemos carac­
terizar esquemáticamente esta modificação recordando uma pas­
sagem de Gregorio de Nissa: “Do mesmo modo que certas artes,
nas outras profissões, foram inventadas para conduzir a bom ter­
mo cada uma das tarefas que têm em vista, assim, ao que me pa­
rece, a profissão de virgindade é uma arte e uma ciência da vida
divina.”86 A virgindade, considerada já como estado privilegiado,

86 “7o tês parthenias epitêdeuma tekhnê tis einai kai dunamis tês theioteras
zôês”, GREGORIO DE NISSA, Da Virgindade, IV, 9.
As Confissões da Carne 195

carregado de valores espirituais particulares e capaz de instaurar


com Deus, com a imortalidade, com as realidades superiores urna
relação inalterável, tende a tornar-se não só um modo de vida cui­
dadosamente regulado, mas um tipo de relação de si consigo que
tem os seus procedimentos, as suas técnicas, os seus instrumentos.
De Tertuliano a Metódio, víramos a virgindade-continência
tornar-se um estado positivo de virgindade. E este estado que vai
elaborar-se no século iv como “arte da virgindade”.

P - A -

Um primeiro ponto refere-se à relação entre esta tekhnê da vir­


gindade e a prática pagã da continência. Questão que poderiamos
julgar “superada” nesta época, mas que retira o seu sentido e a sua
actualidade do facto de a existência ascética se definir a si mesma
como a “vida filosófica”. No preâmbulo ao seu Tratado da virgin­
dade, em que explica o plano que vai seguir, Gregorio de Nissa
indica que, para seguir “o bom método”, depois de ter sublinhado
os inconvenientes da vida comum, descreveu “a vida filosófica”87.
Não deve ser pois motivo de surpresa descobrirmos uma vontade
explícita de separar o mais nitidamente possível a virgindade dos
cristãos da continência pagã, e ao mesmo tempo a reutilização de
um certo número dos temas através dos quais aquela se justificava.
De um modo geral, e sob reserva de algumas modulações particu­
lares: uma recusa da virgindade que estava ligada no mundo pagão
a um estatuto ou a funções religiosas; uma referência, sob a forma
de exemplo, às honras concedidas à virtude das mulheres; e um
retomar dos debates sobre o casamento e a tranquilidade da alma.
Certos autores cristãos negam muito simplesmente que os pa­
gãos tenham alguma vez atribuído honras à virgindade. É o que
sustenta Atanásio: “é só entre nós, os cristãos, que é honrada”88.
Mais prudentemente, e em função de uma hierarquia histórico-

87 Ibid., Preâmbulo, 1.
88 ATANÁSIO, Apologia ad Constantium, 33 (P.. G., t. 25, col. 640).
196 Michel Foucault

-religiosa, Crisóstomo reconhece que os gregos “admiraram e


veneraram” a virgindade. Põe-nos por isso acima dos judeus, que
dela se teriam afastado com desprezo — como o prova o seu ódio
ao Cristo nascido de uma virgem —, mas abaixo da Igreja de
Deus, que teria sido a única a pôr nela o seu zelo89. Foram contu­
do os Padres latinos que, em razão do seu meio90, tiveram sobre­
tudo tendência para tomar em linha de conta as práticas da conti­
nência pagã. São Jerónimo, em todo o caso, consagra todo o final
do Adversus Jovinianum a referências pagãs: exemplo das virgens
que são honradas na Grécia e em Roma; evocações das viúvas
heróicas que se mantêm fiéis à memória do seu esposo e chegam
a imolar-se sobre a sua sepultura; celebridade de algumas nobres
romanas cuja glória era a castidade; reflexões de moralistas como
Teofrasto que recomendam que nos abstenhamos do casamento.
E, com mais ênfase do que rigor, São Jerónimo invoca sobre este
tema a opinião de Aristóteles, de Plutarco e do “nosso Séneca”91.
E verdade que não deixa de marcar a diferença entre a virginda­
de cristã, que está associada a outras justificações, e a continência
dos pagãos, que não pode ter valor santificador: “O celibato sem
as boas obras não tem utilidade alguma, [...] pois que de outro
modo as virgens consagradas a Vesta e as sacerdotisas de Juno que
não deviam casar poderiam ser incluídas no número das santas.”92
De resto, os autores cristãos em geral são muito mais discretos do
que São Jerónimo nesta evocação daquilo que os antigos conside­
ravam como virtudes ou valores. Preferem sublinhar como os últi­
mos permanecem distantes da santificação cristã. O princípio
desta diferença, a maioria dos autores coloca-a na forma de sim­
ples interdito (do casamento ou das relações sexuais) que os pagãos
dão ao privilégio da virgindade. Proibição definitiva ou provisória,
prescrição absoluta ou conselho de prudência, é essencialmente

89 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, Da virgindade, 1,1.


90 Tal é a opinião de F. DE VIZMANOS, Las vírgenes cristianas de la Iglesia
primitiva, Salamanca, 1949.
91 SÃO JERÓNIMO, Adversus Jovinianum, 1,41-49.
92 Ibid., 1,11.
As Confissões da Carne 197

• s'ób a forma de uma rejeição ou de uma abstenção que a virginda­


de pagã se apresenta aos olhos dos autores cristãos que não a reco­
nhecem como sua. No início do De virginibus, Santo Ambrosio
indica-o muito claramente. Se a virgindade pagã não é a dos cris­
tãos, é porque tem a forma de uma regra exterior para aqueles ou
aquelas aos quais e às quais é imposta. A vestal tem de se manter
imperativamente virgem mas por um momento: trata-se de uma
questão de tempo que promete ao pudor dos jovens anos o impudor
da velhice93. Além disso, se respeita o seu compromisso, é por
' gosto das honras, esperança de benefícios, medo de ser desconsi­
derada e castigada. Assim, não oferece a sua virgindade, mas
vende-a. Será coisa melhor do que uma prostituição ou diferente
dela?94 A mesma ideia sob uma formulação aparentemente inversa
em São João Crisóstomo. A virgindade dos pagãos não pode espe­
rar recompensa alguma: “Para os gregos uma tal virtude é esté­
ril.”95 Mas, se as virgens do paganismo nada podem esperar no
além, é porque a sua renúncia neste mundo não foi inspirada “pelo
amor de Deus”. Tratando-se de uma ordem ou de uma lei, aqueles
que a observam não “podem esperar privilégio”96.

93 “Aetate non perpetuitate praescribitur”, SANTO AMBROSIO, De virginibus,


.. I, iv, 15.
> 94 A mesma ideia em SANTO AMBROSIO, carta 18 (ad Valentianum). Eis como
ó ele descreve as vestais: “Vix septem vestales capiunturpuellae. En totus numeras,
quem infulae vittati capitis, purpuratarum vestium múrices, pompa lecticae minis-
trorum circumfusa comitatu, privilegia maxima, lucra ingentia, praescripta deni-
que pudicitiae têmpora coegerunt” [“Sete vestais, somente sete jovens acorrenta­
das pela força ao seu estado! Tal é o número daquelas que a sedução das estreitas
tiras sagradas, o brilho das vestes de púrpura, o fausto de uma liteira rodeada por
todo um cortejo de escravos, imensos privilégios, receitas consideráveis, e um ter­
mo legalmente fixado à sua continência, recrutaram para a sua condição”, tradução
de Monseigneur Baunard].
95 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, Da Virgindade, IV, 2.
96 Ibid., II, 2. É todavia de notar que Crisóstomo insiste muito na crítica da vir-
í gindade entre os heréticos inspirados pelo dualismo. A sua crítica toma-se então
dupla: se todo o casamento é mau, a abstenção toma-se obrigatória e deixa de ter
mérito; mas, abstendo-se em nome de um erro que injuria Deus, os heréticos come­
tem na sua virgindade um pecado que será severamente punido.
198 Michel Foucault

No entanto, e a despeito do cuidado posto em distinguir a con­


tinência pagã e a virgindade cristã, os autores do século iv contraí­
ram empréstimos relativamente importantes de regras de vida
inspiradas pela moral dos filósofos. E chegaram até mesmo a
transpor directamente certos elementos seus. Dois sobretudo: a
crítica da vida matrimonial e o elogio da vida independente.

A crítica do casamento é um lugar-comum da moral antiga, que


os autores ascéticos do século iv reutilizaram sem lhe introduzi­
rem muitas modificações. As moléstias do casamento — moles-
tiae nuptiarum — eram incansavelmente descritas, e sob uma
forma muito iterativa, por todos os que discutiam a questão fami­
liar em todas as escolas filosóficas: devemos ou não casar? Teo-
frasto, que cita longamente São Jerónimo, não é senão um exemplo
de tais banalidades, das quais vemos emergir três ou quatro temas
principais. Incompatibilidade entre a vida filosófica e a existência
matrimonial: “não se pode amar uma mulher e ao mesmo tempo
os livros”; defeitos intrínsecos — o seu ciúme, a sua avidez, a sua
inconstância; a perturbação que trazem à alma e à existência do
seu esposo; as preocupações com o dinheiro (“sustentá-las pobres
é bem difícil; suportá-las ricas é um tormento”) ou a necessidade
de vigilância; o pouco valor por fim que devemos conceder aos
cuidados que podem fornecer-nos ou até mesmo aos descendentes
que delas possamos esperar, por comparação com os amigos de
que saibamos rodear-nos ou com os herdeiros que possamos esco­
lher com pleno conhecimento de causa97.
O desenvolvimento sobre as moléstias do casamento é uma
passagem quase obrigatória nos textos cristãos que tratam da vir­
gindade. Encontramo-lo, com maior ou menor prolixidade, no
tratado Peri parthenias de Gregorio de Nissa (III, 2-7), no de João
Crisóstomo (em particular no capítulo XLIV e na longa série dos
capítulos LI-LXII), no Peri tés en parthenia alêthous aphtorias

97 [TEOFRASTO, Do Casamento, citado por SÃO JERÓNIMO, Adversus


Jovinianum, 1,47.]
P^.-. A > Confissões da Carne 199

L;' [Da Integridade da Virgindade] de Basilio de Ancira (capítulo


t; • XXIII), na Homilía VII (15-16) de Eusébio de Emesa, no De vir-
t ¡pnibus de Santo Ambrosio (I, 6), em São Jerónimo no Adversus
: •_ Helvidium (capítulo XX), na carta 22, a Eustóquio, e no Adversus
¿ 'vlnianum. Entre todos estes textos, o de Gregorio de Nissa pode
servir de exemplo, na medida em que é construido segundo a exac-
5 ta retórica das diatribes pagas sobre as vantagens e inconvenientes
£. do casamento. Não o dizendo explícitamente, Gregorio de Nissa
p retoma os três principais argumentos sobre os quais se apoiavam
os partidários da vida matrimonial: felicidade da vida no casal,
satisfação de se ter filhos, vantagem de se estar rodeado pela fa-
mí lia na hora da doença ou da velhice. Felicidade da vida parti-
íe ihada? Ei-la incessantemente sob a ameaça da inveja, responde
r, Gregorio de Nissa, se é que chega a existir, e correndo a todo o
■* momento o risco de ser destruida pela morte. Seja como for, a
idade, a velhice e o tempo arruínam-na pouco a pouco: passando
f “como urna onda que desemboca no nada”, a beleza não deixará
m atrás de si “traço algum, recordação alguma, resto algum da sua
flor presente”. Minada por dentro pelo temor da mudança, que
impede que se aproveitem realmente os bens presentes, a felicida­
de da vida comum não é por isso mais do que uma aparência. Os
filhos? Mas há as dores de parto e os acidentes que muitas vezes
o acompanham. Há os filhos que morrem precocemente, e muitas
.vezes aqueles que sobrevivem são para os pais uma fonte de preo-
”■ cupações constantes. Sofrem de tristeza os que não têm filhos e os
que os têm, os que choram os seus filhos mortos e os que se la­
mentam dos descendentes que sobrevivem. Quanto à velhice em
que os esposos devem ser socorro um para o outro, pensemos so­
bretudo na viuvez que muitas vezes as fere ainda na juventude e
deixa as mulheres sem apoio e sem recursos98.
O elogio da vida fora do casamento é tão tradicional como a
evocação das “molestiae nuptiarum”, que são por assim dizer a
sua outra face. A existência emancipada dos laços matrimoniais é

98 [GREGORIO DE NISSA, Da Virgindade, III, 2-7.]


200 Michel Foucault

por vezes representada pelos autores cristãos com inflexões próxi­


mas das que empregavam os filósofos da Antiguidade, quando
prometiam aos celibatários uma vida de tranquilidade e de calma.
Crisóstomo, por exemplo, opõe à vida do casamento uma existên­
cia “sem perigos” e “sem negócios”99, uma vida em que o homem
não dependería senão de si mesmo100. E descreve-a, pelo menos
nalguns dos seus aspectos, segundo os termos da sabedoria huma­
na e da felicidade filosófica: “Não há perturbação na modesta
morada [da que não se casou], todos os gritos são banidos da sua
presença; como num refúgio de paz o silêncio reina no seu cora­
ção, e mais perfeita ainda do que o silêncio, a serenidade na sua
alma [...]. Que linguagem poderia exprimir a felicidade de que
goza uma alma assim disposta [...]? Acho-me aqui num embaraço
extremo, porque não posso compreender como quase todo o gêne­
ro humano, quando se lhe oferece uma felicidade na quietude e no
repouso de espírito, nisso não vê sequer um prazer, enquanto faz
consistir no cuidado, nos sobressaltos e na inquietação o seu pra­
zer maior!”101
Assim o encorajamento à virgindade passa, pelo menos num
certo número de textos, pelo elogio de uma vida “independente”
com as vantagens que os filósofos lhe reconhecem. Nada de coac-
ções exteriores, “os pés” são “ligeiros, e livres de entraves”, não se
têm os tornozelos atados102. Ausência de preocupação a propósito
de todas as aparências que constituem o essencial do que se con­
sideram ser os bens do casamento — o nascimento, o renome fa­
miliar, a glória, a situação em vista103. Fim dessas paixões que
perturbam a alma quando a agitam circunstâncias exteriores —
“cólera, violência, juramentos, insultos, hipocrisia”104. Finalmente

99 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, Da Virgindade, XLIV; 2.


100 “Kath' heauton ôn ho anér", ibid.
101 Ibid., LXVIII, 1-2. Atente-se nos termos: apêllaktai tarakhês, ataraxia, hê
euphrosunê tês outô diakeimenês psukhês, eukolia.
102 Ibid., [XLIV, 2],
103 GREGÓRIO DE NISSA, Da Virgindade, IV, 4.
104 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, Da Virgindade, XLIV, 2.
' íAs Confissões da Carne 201
T’

'.„e sobretudo, possibilidade para a alma de permanecer na sua pró-


■- -pria companhia, permitindo assim ao pensamento recolher-se ao
. desligar-se de todos os objectos exteriores: “O celibatário, que
;vive em si mesmo, ou escapa a estas experiências [as do casamen-
to]; ou prevalece mais facilmente sobre a infelicidade, porque
; mantém o seu pensamento recolhido sobre si mesmo e não tem
-. preocupação que o distraia para outra coisa.”105 Tal é o género de
'¡ vida que Gregorio de Nissa pensa encontrar no profeta Elias ou em
( João Baptista — quando um e outro se mantêm “afastados da en-
’ grenagem da vida humana” e se estabelecem “numa calma e numa
- serenidade perfeitas”106.
Esta descrição da virgindade como um estado de alma de tran­
quilidade e o recurso ao vocabulário filosófico da existência sere­
na têm qualquer coisa de paradoxal. Parecem, à primeira vista, em
' contradição com o que os mesmos autores podem dizer sobre os
combates incessantes da virgindade e o seu parentesco com o
. martírio107. Parecem por outro lado indicar que há mais perigos,
logo, mais provas, logo, mais mérito, na existência das pessoas
casadas. Objecção que o próprio Crisóstomo evoca: “Não teria
direito a uma recompensa mais elevada aquele que, apesar de tal
. constrangimento [o do casamento], segue o bom caminho? [...]
■ Com o casamento assume uma prova mais dura.”108 Esta ideia le­
vava Clemente de Alexandria a dar ao casamento um valor moral
seguro, fazendo-o rivalizar em mérito com a virgindade109. Crisós­
tomo, pelo seu lado, afasta a objecção sublinhando que os perigos
do casamento não podem contar para a salvação, uma vez que
quem se lhes expôs o fez de maneira inteiramente voluntária110.
Esta referência ao tema da vida tranquila, que os filósofos ti­
nham podido desenvolver anteriormente, tem a sua importância. É

. 105 GREGORIO DE NISSA, Da Virgindade, III, 9.


106»W.,VI,l.
■, 107 Cf. infra, p. [243],
108 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, Da Virgindade, XLV, 1.
109 CLEMENTE DE ALEXANDRIA, Stromata, III.
110 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, [Da Virgindade, XLVIJ.
202 Michel Foucault

necessário, sem dúvida, neste período de desenvolvimento do


monaquismo e das instituições ascéticas, entrar em linha de conta
com o poder de apelo que a evocação destes valores tradicional­
mente reconhecidos podia ter. Além disso, o tema da vida tranqui­
la ocupa uma posição duplamente privilegiada: está no ponto de
encontro entre uma concepção tradicional das condições necessá­
rias ao conhecimento verdadeiro e à verdadeira felicidade, e a
concepção cristã do desprendimento radical deste mundo; mas
está também no coração de um problema interno ao cristianismo
e que diz respeito ao estatuto da vida contemplativa, aos métodos
destinados a alcançá-la, e aos méritos que lhe são próprios. De
facto, com ênfases diferentes, quase todos os autores cristãos con­
servam o princípio de que a vida da virgindade, fora das preocu­
pações do mundo, é uma vida “tranquila”. Santo Agostinho, no
Comentário do Salmo 132, evoca três gêneros de vida através das
três personagens de Noé, de Daniel e de Job; o primeiro simboliza
a actividade daqueles que têm a Igreja a seu cargo e devem garan­
tir a colheita; o terceiro simboliza os fiéis que servem Deus com
zelo. Quanto ao segundo, devemos referi-lo à existência dos que
renunciaram a viver com uma mulher, a fim de levarem a existên­
cia monástica. A Noé é associada a figura de dois homens nos
campos; a Job a de duas mulheres a trabalhar no moinho. A Da­
niel, a de dois homens deitados numa cama: assim são designados
aqueles que “amaram o repouso”, aqueles que “não se misturam às
turbas” nem ao “tumulto do gênero humano”, mas “servem Deus
na tranquilidade”111.
Mas Santo Agostinho indica imediatamente que sentido deve
ser dado a esta tranquilidade da vida fora do casamento. Daniel,
figura da castidade, estava “tranquilo”, estava “em segurança”,
mas entre os leões. Estes são as figuras dos desejos que assaltam
o coração e das tentações que o assediam. Daniel era chamado
“vir desideriorum”. A tranquilidade do seu estado devemos dar
um conteúdo muito diferente daquilo que podia constituir a calma

111 SANTO AGOSTINHO, Discurso sobre o Salmo 132,4 (P. L., t. 37, col. 1730).
\s Confissões da Carne 203

da vida filosófica no sentido antigo da expressão: trata-se de uma


! tranquilidade indissociável do confronto permanente com o Inimi­
go. E devemos compreendê-la em dois sentidos: desprendimento
em relação a tudo o que pudesse, vindo do mundo, ser causa de
perturbação, e confiança nesse combate em que é a graça de Deus
a dar a vitória. A continuidade do tema da “tranquillitas”, do
'‘otium”, marca de facto a passagem de uma economia negativa da
abstenção e da continência a uma concepção da virgindade como
experiência complexa, positiva e agonística.

— B —

O estado de virgindade concebido como arte é regularmente


apresentado pelos autores do século iv como o efeito de uma esco­
lha livre e individual. Mas de uma escolha que se inscreve, no
entanto, pelo seu sentido e os seus efeitos, na história geral da
salvação do género humano.
A virgindade é uma escolha livre em três sentidos. Em primeiro
lugar, não pode ser feita por toda a gente. Só os que são suficiente­
mente fortes podem fazê-la: “a virgindade é para alguns”, diz San­
to Ambrosio, “e o casamento para todos”112. Não pode decorrer de
uma ordem ou de coerção alguma. Numa homilia consagrada à
virgindade e dirigida aos pais de família, um autor desconhecido
recomenda aos pais que nada façam para contrariar os seus filhos
que queiram votar-se à virgindade. Encoraja-os a “persuadi-los a
fazerem-no”, mas não quer que [a isso] sejam constrangidos113. Es­
te princípio da escolha sem coerção é tão importante que Santo
Agostinho o descobrirá caucionado pelo exemplo de Maria: uma
vez que no seu caso se tratava da Encarnação querida por Deus,
“poderia ter recebido a ordem de se manter virgem, a fim de que o
Filho de Deus pudesse tomar nela a forma do escravo”, e contudo

112 SANTO AMBROSIO, De virginibus, 1,7, 35.


113 Este texto foi publicado por DOM DAVID AMAND (“Une curieuse homélie
grecque inédite sur la Virginité”, loe. cit.').
204 Michel Foucault

a sua virgindade foi resultado de um “voto” e não de um “preceito”,


uma “escolha de amor” e não uma “necessidade de obedecer”114.
Livre escolha, enfim, por não ser prescrita por lei alguma como
pode sê-lo a obrigação de amar a Deus ou de não cometer adulté­
rio: “O Senhor não impôs a virgindade nem na lei da natureza nem
no Evangelho”115; “o Salvador não dá à continência o carácter obri­
gatório de um preceito; deixa essa escolha às nossas almas”116.
A insistência neste carácter não obrigatório da virgindade en­
contra nos textos várias justificações — além do argumento de
que é bem necessário que alguns se casem para que possam nascer
virgens117. Tratava-se sobretudo de combater todas as formas de
dualismo ou todas as correntes de inspiração gnóstica que faziam
da abstenção da relação sexual uma obrigação rigorosa, não dei­
xando por conseguinte lugar nem ao casamento nem à procria-
ção118. Tratava-se também de pôr em realce o valor positivo da
virgindade. E uma tese que reaparece com muita frequência: se a
virgindade fosse obrigatória, que mérito particular havería em
observá-la? Aquele que não rouba nem mata não merece ser hon­
rado por isso: “Abster-se do que é proibido não é ainda a marca de
uma alma generosa e ardente; a virtude perfeita não consiste em
evitar os actos que nos valerão reprovação universal, consiste em
distinguirmo-nos através de uma conduta da qual nos poderiamos
abster sem com isso nos expormos a opróbrio.”119 A virgindade
vale muito mais do que a simples observação de um interdito. Fi­
nalmente, em termos mais gerais, tratava-se de facto de sublinhar
que a virgindade não pertence a uma economia da Lei — a que

114 SANTO AGOSTINHO, Da Virgindade, IV, 4.


115 BASÍLIO DE ANCIRA, Da Integridade da Virgindade, 55 (P. G„ t. 30, col.
780).
116 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, Da Virgindade, II, 17.
117 Assim SANTO AMBRÓSIO, De virginibus, 1,7; EUSÉBIO DE EMESA, Ho­
mília VI, 6.
118 Assim todos os primeiros capítulos do De virginitate de SÃO JOÃO CRISÓS­
TOMO.
119 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, Da Virgindade, VIII, 4.
I As Confissões da Carne 205

í^'

II
caracterizara a Antiga Aliança —, mas a urna nova forma de rela­
u ção entre Deus e os homens.
. E chegamos aqui ao outro aspecto da virgindade: o que se re­
porta à salvação da humanidade e ao tempo do mundo. Eis, com

i efeito, o paradoxo: a virgindade não pode ser senão um acto livre


e individual, mas é um acto que comporta alguma coisa do drama
que se desenrolou entre os homens e Deus e que não terminou
£• ainda. A virgindade recebe o seu sentido desse passado, e assume
I os seus efeitos nesse movimento ainda por vir. Escolha, e não lei;
* mas, tanto como libertação individual, figura do mundo ou antes
aspecto da sua transfiguração. Vimos já estes temas desenharem-
Bh-se nos textos do século m. Cipriano e sobretudo Metódio de
I Olimpos tinham formulado claramente alguns dos seus elementos
fundamentais. Mas podemos pensar que o desenvolvimento do
monaquismo os reforçou, que favoreceu a eleição de vários de
«'entre eles, modificando[-lhe] certas tónicas. Em todo o caso a ins-
k tituição monástica foi um lugar, ou pelo menos uma ocasião de
| reflexão sobre este triplo aspecto da virgindade: estado profunda-
t mente diferente do do casamento, assimilado à vida no mundo, e
ç requerendo uma prática, uma arte, uma técnica particular para
( produzir efeitos positivos; objecto de uma livre escolha individual
que nenhum preceito pode impor, nem a todos sob a forma de uma
J lei, nem a alguns sob a forma de uma ordem; forma de vida em
£ que a empresa da salvação individual está profundamente mistu-
f rada com a economia do resgate da humanidade.
f O papel da virgindade na história da salvação é definido, pelos
autores do século iv, em função antes de mais do que eram o esta-
í do paradisíaco e as relações entre o homem e a mulher antes e
depois da queda. Está evidentemente fora de questão percorrermos
t aqui, em pormenor, as longas discussões exegéticas que, de Oríge-
‘ nes a Agostinho, incidiram sobre os dois primeiros capítulos do
Génesis — versículo 27 no primeiro caso e versículos 18-24 no
segundo. Gostaria de indicar somente como se punha a questão
das relações entre a virgindade paradisíaca e a diferenciação dos
■ sexos na Criação.
206 Michel Foucault

Que a diferenciação dos sexos seja obra de Deus, eis o que ne­
gavam muitos movimentos de inspiração dualista. Mas reconhe­
cem-no, em contrapartida, os autores reconhecidos pela Igreja:
loucura, diz Santo Agostinho, que se pretenda cristão quem for tão
cego que defenda que “a diferença dos sexos é obra do diabo, e não
de Deus”120. Antes ainda de ser narrada a formação de Eva no
segundo capítulo do Gênesis, o texto sagrado indicava desde a
primeira menção da criação do homem (1, 26-27) que Deus os
criara “homem e mulher”. Esta passagem dava, portanto, sem
equívoco, autoridade à opinião segundo a qual a diferença dos
sexos está presente desde a Criação. Mas levanta logo a seguir
uma dificuldade, na medida em que surge imediatamente após a
afirmação de que o homem foi criado à imagem e semelhança de
Deus. Como pôde Deus, sendo único, criar o homem à sua seme­
lhança ao mesmo tempo que na dualidade dos sexos? A esta ques­
tão Fílon respondera distinguindo na criatura humana o que era à
semelhança do Criador e o que era marca da criatura: um, o ho­
mem, era “semelhante pela sua unicidade ao mundo e a Deus”;
mas era também portador dos “caracteres das duas naturezas, não
todos, mas aqueles que é possível que uma constituição mortal
admita”121. Tal foi a direcção para que se orientou a exegese cristã.
Assim, Orígenes vê na dualidade uma marca de tudo o que foi
criado: “As obras de Deus vão por grupos e estão unidas, como o
céu e a terra, o sol e a lua; a Escritura quis mostrar que, do mesmo
modo, o homem é uma obra de Deus e que não foi realizado sem
o complemento e a união que lhe convinham.”122 Jerónimo marca­
rá, entre a semelhança a Deus e a dualidade dos sexos, mais dis­
tância ainda: faz notar que o número dois, na medida em que
“rompe a unidade”, não é bom; de resto, o único dia em cujo fim
Deus não disse que a sua obra era boa foi precisamente o segundo;
a narrativa do Gênesis marca assim a significação desfavorável do

120 SANTO AGOSTINHO, De continentia, IX (23).


121 FÍLON DE ALEXANDRIA, De opificio mundi, 151.
122 ORÍGENES, Homílias sobre o Gênesis, 1,14.
s Confissões da Carne 207

|húmero dois123. Em todo o caso, para Gregório de Nissa ou João


¿Crisóstomo, como mais tarde para Agostinho, a imagem de Deus
‘-¿o homem deve ser procurada na alma e não na dualidade dos
\sexos124. Tese importante para toda a mística da virgindade: na
? medida em que a última é uma ascensão que torna semelhante a
’’Deus, não é simplesmente, na sua significação espiritual, uma re-
íhúncia ao outro sexo. É um remontar, para lá da diferenciação dos
i' sexos, para lá do próprio acto criador que a estabeleceu, na direc-
fção da unidade divina.
Mas, se o estado paradisíaco comporta já a dualidade dos sexos,
quais são o seu sentido e a sua função? Deveremos admitir que
' houve relação sexual no paraíso antes da queda e, portanto, num
■ estado perfeito de inocência? Aqui a resposta é universalmente
. negativa, quer se suponha, como Orígenes na esteira de Fílon, que
foi a relação sexual que, não podendo ser inocente em si mesma,
’ provocou a queda125, quer se suponha que a primeira relação se­
xual teve lugar após a queda e como sua consequência126. Mas
esta inexistência de relações sexuais no paraíso não tem para todos
hem as mesmas razões nem a mesma significação. O jogo da exe­
gese é circunscrito por dois textos: o do primeiro capítulo do Gê­
nesis (I, 28), em que Deus, abençoando o homem e a mulher, lhes
diz que cresçam, se multipliquem e encham a terra; e o do segun­
do capítulo, em que Deus decide dar ao homem uma mulher para
que esta lhe seja um auxílio semelhante a ele.
Este tema do auxílio permite evídentemente reforçar a afirma­
ção segundo a qual o papel de Eva era o de ser companheira, não
esposa. Segundo Gregório de Nissa, este “auxílio” deve ser com­

123 SÃO JERÓNIMO, Adversus Jovinianum, 1,16.


124 SANTO AGOSTINHO, De Genesi ad litteram, III, 22.
,125 [FÍLON DE ALEXANDRIA, De opificio mundi, 151 e 167.]
126 É a opinião de Gregório de Nissa, que, como observa M. Aubineau (GREGO­
RIO DE NISSA, Paris, 1966, De la virginité, p. 420, nota 1), vê na atracção do
prazer (hêdonê) a razão da queda, sem que tal prazer seja especificamente o prazer
sexual. Nem Crisóstomo, nem Jerónimo, nem Agostinho vêem no primeiro pecado
um acto sexual.
208 Michel Foucault

preendido como participação na contemplação da face de Deus,


que era, antes da queda, o único desejo de Adão127. Tal é também,
dir-se-ia, o que sugere uma passagem do tratado Da Virgindade de
Crisóstomo, explicando que a mulher é agora um obstáculo à vida
espiritual do homem pela inversão do papel que era o seu antes da
queda128. Mas, se tal é a função paradisíaca da mulher, põem-se
duas questões. Que pode querer dizer o preceito “Crescei e
multiplicai-vos”? Deveremos, como certos adversários que Gregó-
rio de Nissa critica sem os nomear129, supor que o gênero humano
não podia crescer senão depois da queda e que esta teve pois algu­
ma coisa de bom, uma vez que, “sem ela, a raça humana ter-se-ia
ficado pelo casal primitivo”? Gregório de Nissa faz valer que não
há casamento entre os anjos, e que todavia “os seus exércitos cons­
tituem miríades infinitas”: é que há, para essa natureza angélica,
um modo de multiplicação que, para nós, os humanos, não pode
ser pensado nem formulado. E, contudo, é certo que há tal modo,
e que como ele devia ser o poder de multiplicação dado ao homem
na existência angélica que era a sua quando saiu das mãos do
Criador.
Surge imediatamente a seguir a segunda questão: porque é que
Deus, dando embora um modo angélico de reprodução ao casal
primitivo, o dotou de uma diferenciação sexual que esse modo de
reprodução não supõe? A resposta está na presciência de Deus:
Deus sabia bem que o homem se desviaria da via da rectidão e
perderia o seu valor angélico. O mundo então não poderia vir a ser
nunca nem povoado nem completado. Por isso, dispôs de antemão
o meio de “nos transmitirmos a vida uns aos outros”, mas de um
modo que convém àquilo em que nos tornámos, agora que perde­
mos a semelhança com Deus: uma reprodução semelhante à “dos
brutos e dos seres sem inteligência”130. Em suma, o homem era

127 GREGÓRIO DE NISSA, Da Virgindade, XII, 4.


128 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, Da Virgindade, XLVI, 5. Na XV Homilia sobre
o Gênesis, 4, evoca também o auxílio, mas não lhe atribui função precisa.
129 GREGÓRIO DE NISSA, Da Criação do Homem, XVII, 188a-b.
130 Ibid., XVII, 189d.
■í/is Confissões da Carne 209

idesde o paraíso infinitamente reprodutível, mas de outro modo


que não o da união dos sexos; e no entanto tinha a marca de uma
.diferenciação sexual, que antecipava sem a determinar uma queda
,por vir e a partir da qual aquela assumiría a sua função de repro-
'.dução131. Estas estranhas especulações sobre o sexo paradisíaco
-mostram pois como, na espiritualidade da época, se dissociam a
idistinção dos sexos (criada por Deus) e a sua união (que só pode
'^intervir depois da queda e da separação de Deus), e como a repro­
dução se desdobra numa multiplicação angélica e num nascimento
animal.
. Devemos ter agora em conta a outra vertente da especulação: a
;.que considera já não a origem e a queda, mas o mundo de hoje e
a consumação dos tempos. À primeira vista, a prática da virgin­
dade apresenta-se como um regresso, para lá da queda, ao estado
paradisíaco, quando o homem saía das mãos de Deus e era ainda
portador da sua imagem; assim, Gregorio de Nissa fala da “res­
tauração no seu estado primitivo da imagem divina actualmente
escondida pela contaminação da carne; tornamo-nos o que era o
primeiro homem na sua primeira vida”132. Aquele que pratica a
virgindade, remonta de certo modo ao curso do tempo e restabe­
lece nele o estado de perfeição primitivo133. Restabelece-a na sua
alma, onde reencontra, como um dracma perdido, a marca da
divindade. Restabelece-a também arrancando-se à corrupção
deste mundo e, por conseguinte, escapando a essa morte que san­
cionara a queda e que os nossos primeiros [antepassados] [não]
conheciam — ou por terem sido criados imortais, ou por Deus
não ter permitido, antes da queda, que a morte transformasse em
acto a mortalidade da qual, na sua presciência, os dotara. “Depois

131 Também aqui, SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, na XVII Homilía sobre o Géne­
sis, é menos preciso do que Gregorio de Nissa; mas admite igualmente uma exis­
tência angélica, bem como a intervenção da reprodução Sexual após a queda a fim
de evitar o despovoamento causado pelo reinado novo da morte.
132 GREGORIO DE NISSA, Da Virgindade, XII, 4. O termo aqui utilizado para
designar o primeiro homem tal como sai das mãos de Deus é prôtoplastos.
133 GREGORIO DE NISSA emprega o verbo palindromein.
210 Michel Foucault

de nos termos afastado da vida segundo a carne que é seguida


necessariamente pela morte, devemos buscar um género de vida
que não acarrete a morte na sua esteira: ora, tal é a vida na vir­
gindade.”134
Assim, escolher o estado de virgindade e ater-se-lhe rigorosa­
mente deve ser considerado coisa bem diferente de urna simples
abstenção que libertaria das perturbações, das paixões, das preo­
cupações, e de um modo geral dos males da existência quando se
vota, ou simplesmente cede, aos prazeres. É muito mais do que a
prática de uma virtude que merecerá posteriormente a sua recom­
pensa — ainda que lhas prometam mais belas do que às outras135.
A virgindade é pensada como uma mutação actual de existência.
Opera no ser individual — corpo e alma — uma “revolução” que,
restabelecendo-o num estado de origem, o desprende dos seus
limites terrenos, da lei da morte e do tempo e o faz [aceder136]
desde já à vida que não terá fim. A virgindade abre a existência
angélica. Eleva à incorrupção e à imortalidade os que contudo
moram ainda entre nós; “Faz subir ao céu”, diz Eusébio de Eme-
sa, “e viver já neste mundo na companhia dos anjos.”137 Ou, ainda,
fazia descer sobre a Terra o princípio da existência celeste: “As
virgens não podem ainda subir ao céu como anjos, porque a carne
as retém, mas têm pelo menos já neste mundo a grande consola­
ção de receberem o Senhor dos céus em pessoa, quando são san­
tas de corpo e de espírito. Vês o alto valor da virgindade? Como
dá aos que vivem na Terra as mesmas condições de existência que
aos habitantes dos céus? Não quer que os seres revestidos de um
corpo sejam inferiores às potências incorpóreas e, por homens
que sejam, torna-os émulos dos anjos.”138 E, opondo aos anjos
degradados que, devido à sua “intemperança”, caíram no século
as virgens que, graças à sua castidade, passam do século ao céu,

134 [Ibid., 3.]


135 [Nota vazia.]
136 Manuscrito: “suceder”.
137 EUSÉBIO DE EMESA, Homilía VII, 5.
138 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, Da Virgindade, XI, 1-2.
As Confissões da Carne 211

Lf
’¿Santo Ambrosio afirma que “aquele que conservou a sua castida-
||de é um anjo”139.
!•: E não é aqui somente num sentido metafórico, ou para designar
‘urna certa atitude da alma que se invoca o angelismo da virginda-
f de. Este é substancial, atravessa a matéria, opera através do mundo
p transfigura as coisas. Não se limita neste mundo de baixo à ex­
pectativa de outro mundo: efectua-o realmente. Assim, Crisósto-
* mo descreve a vida de Elias, de Eliseu e do Baptista, “esses autên-
r ticos amantes da virgindade”: “Se tivessem tido mulher e filhos,
; não lhes teria sido tão fácil habitar o deserto [...]. Porque se ti­
nham desembaraçado de todos esses laços, viviam na Terra como
í, se estivessem nos céus, não tinham necessidade alguma de pare-
des, de tecto, de leito, de mesa e de outras coisas dessa espécie; o
\-seu telhado era o céu, o seu leito a Terra, a sua mesa o deserto. E
l o que parece condenar os outros homens à fome, à esterilidade do
•’-deserto, era para esses santos homens fonte de abundância [...],
•' fontes, ribeiras, lençóis de água forneciam-lhes uma bebida suave
p e abundante; um anjo preparava para um deles uma mesa admirá­
vel [...]. E João [...], não eram nem o trigo, nem o vinho, nem o
azeite, mas gafanhotos e mel selvagem a alimentar a sua vida
corpórea. Eis os anjos na terra! Eis a força da virgindade!”140
Mas na virgindade há mais do que esta interferência, de algum
modo espacial, do céu e da Terra. A virgindade dos indivíduos tem
também o seu lugar na economia dos tempos. Podem resumir-se
os desenvolvimentos muito longos e muito numerosos desta ideia
nuns quantos temas principais.
A história do mundo divide-se em duas partes. A do mundo
L ainda vazio, e a do mundo preenchido. No dia que se seguiu à
Criação o mundo estava vazio, e era a proliferação sexual para os
animais, não sexual para os homens, que devia completá-lo e
conduzi-lo ao seu ponto de acabamento. A queda teve duas conse­
quências negativas: impediu a multiplicação não carnal dos ho-

139 “Castitas enim angelos fecif, SANTO AMBROSIO, De virginibus, 1,8.


140 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, Da Virgindade, LXXIX, 1-2.
212 Michel Foucault

mens, e votou-os à morte. Sucede que a reprodução sexual tem


com a morte uma relação ambígua. E, como aquela, consequência
da queda, mas repara incessantemente as devastações da morte:
“Depois de, pela desobediência, ter tido lugar a introdução do
pecado e de Deus ter tornado os homens mortais, o Deus Todo-
-Poderoso, velando na sua sabedoria pela propagação do gênero
humano, concedeu que o gênero humano crescesse por meio da
conjunção sexual.”141 É por isso que o Antigo Testamento nos
mostra os patriarcas casados e à cabeça de famílias numerosas; é
por isso que a virgindade — à excepção de certas figuras singula­
res142 — não é nele objecto de honras especiais. Sob a lei da mor­
te, o casamento era um preceito. Mas doravante já não é essa a lei
que reina no mundo. Estamos agora na idade do mundo “pleno”,
“acabado”, a idade em que, como diz Crisóstomo, deixando a “pri­
meira infância”, o gênero humano entra na idade adulta143. Pois tal
foi a sabedoria de Deus. Enquanto os homens, ainda demasiado
próximos do seu nascimento e da sua falta, eram indóceis, ter-
-lhes-ia sido impossível seguirem uma prescrição como a da vir­
gindade. O Senhor levou-os pois a fazer “a sua aprendizagem” sob
a lei do casamento. Mas eis que chegou o tempo da perfeição, o
tempo em que a prática da virgindade deve conjugar-se com um
mundo que se completa. Conjugação que se tornou possível, que é
agora necessária e que é paradoxalmente fecunda.
Tornou-se possível porque Cristo, tendo encarnado no seio de
uma virgem, tendo conduzido ele mesmo uma existência de vir­
gindade perfeita e tendo feito renascer os homens pela geração
espiritual do baptismo, não lhes propôs simplesmente um modelo
de virtude, mas deu-lhes também o poder de vencerem as revoltas
da carne, e abriu à própria carne a possibilidade de ressuscitar na
glória. Depois da Encarnação e através dela» tornou-se possível a

141 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, XVII Homília sobre o Gênesis, cf. no mesmo
sentido GREGÓRIO DE NISSA, De hominis opificio, XVII.
142 Como Miriam citada por Gregório de Nissa, Atanásio, Ambrósio; Elias, citado
por Metódio de Olimpos e Gregório de Nissa.
143 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, Da Virgindade, XVI-XVII, e [nota incompleta].
Confissões da Carne 213

v ii qiiidade como restituição da vida angélica no próprio interior


do mundo e no próprio laço da carne144.
Ibrnou-se também necessária porque “o tempo é curto”145. Não
áêstá longe o momento em que Cristo tornará. Desta proximidade,
¡cuja promessa foi um dos aspectos importantes da espiritualidade
do século iv, tiravam-se consequências negativas. Porquê preocu­
pação com o mundo, uma vez que ele está a acabar? Porquê cuidar
das gerações futuras, a partir do momento em se fecha o porvir?
Porque não virarmos de imediato o nosso pensamento para essas
jealidades que são do além, mas estão tão próximas de nós?
Preocupámo-nos até aqui com “coisas da infância”; chegou agora
tf momento de “abandonarmos todos os bens da Terra que são
realmente brinquedos de criança e de voltarmos os nossos pensa­
mentos para o céu, o esplendor e toda a glória da existência celes­
tial”146. A prática da virgindade alguns objectam que o gênero
humano podería então desaparecer por completo, cuidado que
hoje não tem sentido: no momento em que vai produzir-se a apo-
* catástase, recordemos que, na Criação do mundo, quando o ho-
f mem levava uma existência bem-aventurada, “não havia nem cida-
Ides, nem ofícios, nem casas”147. E reencontramos aqui a ideia de
/um papel positivo que a virgindade pode e deve desempenhar no
acabamento do mundo. Uma passagem de Gregório de Nissa é
/ niuito explícita sobre este ponto148. A virgindade é estéril. Mas
esta esterilidade não incide [senão] no nascimento carnal, que está
ligado à morte de duas maneiras: primeiro porque é sua conse-
b quência, e em seguida porque é princípio de seres sucessivamente
votados à morte. Enquanto recusa da geração, a virgindade é pois
ír’
uma recusa da morte, uma maneira de interromper esse encadea-
‘‘' mento indefinido, que começou no mundo quando a morte nele

144 [SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, Da Virgindade, XI.]


145 SÃO JERÓNIMO, Adversus Helvidium, capítulo 20 [citação de São Paulo,
“Tempus breviatum est”, 1 Coríntios, 7, 29].
146 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, Da Virgindade, LXXIII, 1.
147JWrf.,XIV,5.
148 GREGÓRIO DE NISSA, Da Virgindade, XIV, 1.
214 Michel Foucault

apareceu e que prossegue agora de geração em geração, quer dizer,


de morte em morte. “Pela virgindade, é fixado um limite à morte,
impedindo-a de continuar a avançar”, aqueles que escolheram a
virgindade “colocaram-se a si mesmos como uma fronteira entre
a vida e a morte, e contiveram-na na incursão do seu avanço”. É
assim interrompida a série que se abriu depois da queda. O poder
da morte deixa de ter objecto sobre o qual exercer a sua actividade,
e por isso não devemos ver na esterilidade física da virgindade um
lento caminhar para a morte, mas um triunfo sobre ela e a chegada
de um mundo onde a morte deixará de ter lugar.
A virgindade é pois ao mesmo tempo elemento de um mundo
sem morte e germe desse mundo: fragmento neste mundo de baixo
desse outro mundo e acesso à realidade celestial que ele constitui.
Mas é concebida também, no que se refere a tais realidades, como
maneira de travar e de estabelecer relações espirituais: é forma de
união, modo de parentesco, princípio de fecundidade e de engen-
dramento. Eis um dos traços mais característicos desta mística
cristã da virgindade, e que a faz muito distante da concepção an­
tiga da continência.
A virgem é noiva e esposa. Este tema é muito antigo no cristia­
nismo. Tertuliano formula-o várias vezes. Em A Ressurreição da
Carne, evoca rapidamente os eunucos voluntários e as virgens
“casadas com Cristo”149. No tratado endereçado A Sua Mulher,
louva as viúvas que estão “alistadas nas milícias de Cristo” e que
preferem, a voltar a casar, “viver com Deus, dele só se ocuparem,
não o deixarem nem de noite nem de dia, transmitirem-lhe já o
dote das suas orações [...]. Esposas de Deus neste mundo, estão
inscritas na família dos anjos”150. A ideia aparece também no pe­
núltimo capítulo de O Véu das Virgens. Neste porte do véu, que
era tradicionalmente marca do casamento, Tertuliano não se limi­
ta a consentir, mas quer torná-lo regra até mesmo entre as mulhe­
res não casadas: será o sinal das núpcias com Cristo. Sinal que tem

149 TERTULIANO, De resurrectione carnis, LXI.


150 TERTULIANO, Ad uxorem, 1,4.
As Confissões da Carne 215

uma função dupla: esconder, como devem ser escondidas as que


não pertencem senão ao seu marido; e manifestar, como deve sé-
do, o facto dessa pertença: “Esconde alguma coisa do teu interior,
para não mostrares a verdade senão a Deus, embora não mintas
manifestando-te esposa; porque desposaste Cristo; ofereceste-lhe
a tua carne; casaste com ele na tua maturidade. Anda como o teu
noivo o quer. É Cristo quem quer o véu para as noivas e as esposas
dos outros: por maioria de razão o há-de querer para as suas.”151
Mas em todo este texto o propósito de Tertuliano, como já vimos,
não é dar à virgindade um estatuto particular; trata-se pelo contrá­
rio de a fazer entrar numa disciplina geral entre as diferentes for­
mas da continência e da castidade152.
Mais tarde, em compensação, o estatuto de esposa de Cristo
será reservado à virgindade e só a ela, não apenas como um privi­
légio, mas como uma experiência que tem um conteúdo particular.
Mas com duas significações possíveis: a virgem que está prometi­
da a Cristo ora é a Igreja inteira, ora é a alma individual de quem
renunciou para sempre ao mundo. O Hino que remata O Banque­
te de Metódio é a este respeito significativo. As virgens reunidas
cantam, cada uma em nome próprio, ao mesmo tempo que no de
todas elas, o refrão: “Para ti, guardo-me pura! / Com as nossas
lâmpadas radiosas / Seguras com a mão firme, / Esposo, ao teu
encontro venho!” Mas são também membros do séquito da Igreja-
-Virgem, o seu canto anuncia a vinda de Cristo que a vai desposar:
“A ti, ó bem-aventurada jovem Esposa / Prestamos honra, nós, tuas
camareiras, / Cantamos-te, Igreja pura e virginal.”153
O tema da alma individual que, na experiência da virgindade,
se torna esposa de Cristo parece desligar-se do tema eclesial sem
que este desapareça — longe disso — e também sem que se apa­
gue o jogo dos reenvíos simbólicos entre um e outro. Em todo o

151 TERTULIANO, De virginibus velandis, XVI.


152 Cf. as linhas que precedem a passagem citada, nas quais Tertuliano exorta
todas as mulheres ao porte do véu.
153 METÓDIO DE OLIMPOS, O Banquete, “Refrão e estrofe”, XX.
216 Michel Foucault

caso, a virgem como noiva do Senhor está constantemente presen­


te nos autores do século iv, quer pensemos em Gregorio de Nissa
— “ela vive com o Esposo incorruptível”154 —, em Basilio de
Ancira155, em Eusébio de Emesa — “as virgens não são as servas
dos homens; são as esposas de Cristo”156 —, em Ambrosio — “en­
tre os candidatos ao reino celestial, avançaste como para desposar
o rei,. ,”157 —, em Crisóstomo — “não há esposo que se assemelhe
ao da virgem, que seja igual ao seu, que dele se aproxime, por
muito pouco que seja”158. Sabemos as dimensões que este tema
assumirá ao longo de toda a historia da mística cristã, e como
dominará todo um seu aspecto.
Gostaria somente de assinalar aqui, em termos extremamente
esquemáticos, algumas das direcções que tomará e que são já
indicadas no vigésimo capítulo do tratado de Gregorio de Nissa
sobre os dois casamentos. Há duas uniões possíveis mas absolu­
tamente incompatíveis: uma é o casamento segundo a carne, a
outra o casamento espiritual. Pelo primeiro, devemos entender a
união física com um ser humano, mas também, de um modo ge-
ral, o apego ao mundo do qual o casamento propriamente dito é
ao mesmo tempo um elemento, urna causa e um símbolo. O casa­
mento que abre o acesso às realidades espirituais e estabelece a
ligação com elas não pode consumar-se senão através da renúncia
ao primeiro. E, chamando “virgindade” a esta renúncia sob as
suas duas formas, particular e geral, Gregorio de Nissa pode dizer
que ela é “colaboradora e provedora”159 desse casamento espiri­
tual. Basilio de Ancira confere à mesma ideia uma feição mais
figurada: a virgem que está prometida ao Senhor é submetida
com frequência às solicitações dos que não são mais do que ser­
vidores; mas não pode ser aceite a não ser que repudie todos os

154 GREGORIO DE NISSA, Da Virgindade, III, 8.


155 BASILIO DE ANCIRA, Da Integridade da Virgindade, 27.
156 EUSÉBIO DE EMESA, Homilías, VI, 16.
157 SANTO AMBROSIO, De lapsu virginis consecratae, V, 19.
158 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, Da Virgindade, LX.
159 [GREGORIO DE NISSA, Da Virgindade, XX, 1.]
®As Confissões da Carne 217

avanços que são outros tantos insultos ao seu noivo160. Em suma,


4’o casamento com Cristo é exclusivo de qualquer outro, quer se
¡-trate de um casamento no sentido estrito, quer simbolicamente
■ das ligações com o mundo.
* Estas núpcias espirituais não são assim designadas pelo simples
^•facto de se tratar de uma união. Inscrevem-se, como todo o casa-
i mento, num sistema de trocas que constituem para cada um dos
■■'dois esposos tanto a recompensa esperada como o sacrifício ne-
/ cessário. Que pode trazer a alma quando se propõe como a Des-
posada? A juventude? Será então o rejuvenescimento, a “renova-
í ção do espírito”, operado pela conversão. A riqueza? Não serão
bens terrenos mas “tesouros celestiais”. O bom nascimento? Não
será o que a sorte reserva, mas o que se adquire pela virtude. Fi-
; nalmente a força e a saúde? Tratar-se-á das que se adquirem pela
força do espírito e pelo enfraquecimento do corpo161.
Devemos compreender que esta união é sustentada por um im­
pulso que, se nada deve ter de físico, nem por isso é menos desejo
e amor; e que conduz a uma possessão e à presença real de um ser
noutro: “Quando ‘Cristo é tudo e está em todos’ (Colossenses, 3,
11), é com razão que o amante da sabedoria possui o alvo divino
do seu desejo, que é a verdadeira sabedoria, e que a alma apegada
ao esposo incorruptível possui o amor da verdadeira sabedoria que
é Deus.”162 Deste mesmo tema do desejo espiritual, que Gregorio
de Nissa evoca como princípio da ascensão da alma, Crisóstomo
desenvolve o outro aspecto, o movimento que atrai o Esposo para
a beleza da alma virgem: “Sim, o olhar da Virgem oferece tanta
beleza e atracção que desperta o amor não dos homens, mas das
Potências incorpóreas e do seu Soberano.” E é tão grande esta
beleza interior que transfigura o próprio corpo e o ilumina, provo­
cando a forma oposta da cobiça física, o respeito: “Tal é a modés­
tia que envolve a virgem que até mesmo os debochados, ruboriza-

160 BASÍLIO DE ANCIRA, Da Integridade da Virgindade, 37.


’ 161 GREGORIO DE NISSA, Da Virgindade, XX, 4.
162 \Ibid.}
218 Michel Foucault

dos e confusos temperam o seu próprio frenesim quando deitam


sobre ela um olhar atento [...]. O doce perfume da alma virginal,
penetrando as actividades dos sentidos, revela a virtude escondida
no interior.”163 Finalmente essa união, que é o conteúdo do estado
de virgindade, é fecunda — de uma fecundidade sem dor, cuja
riqueza uma outra passagem de Gregorio de Nissa evoca: “Com
efeito, a concepção já não se faz na iniquidade, nem a gestação no
pecado; o nascimento já não depende do sangue, nem do querer do
homem, nem do querer da carne, mas só de Deus. Assim acontece
todas as vezes que concebemos, na fonte viva do coração, a incor­
ruptibilidade do espírito.”164
Sei que este esquiço pode parecer demasiado esquemático ou
demasiado difuso. Tratava-se, sublinhando alguns traços impor­
tantes da mística da virgindade no século iv, de mostrar que a
muito intensa valorização de uma abstenção total, originária e
definitiva das relações sexuais não tinha uma estrutura de interdi­
to, não representa o simples prolongamento de uma economia re­
troactiva dos prazeres do corpo. A virgindade cristã é coisa muito
diferente da forma radical ou exasperada de um preceito de conti­
nência que a moral filosófica conhecia bem na Antiguidade e que
os primeiros séculos cristãos tinham herdado.
É verdade que vemos o tema da virgindade, no sentido estrito,
desligar-se pouco a pouco de uma prescrição de abstinência se­
xual, que é recomendada a todos com maior ou menor intensidade,
sem ser obrigatória para ninguém. Mas, se se desliga dela, dela se
distingue também. Porque o princípio de continência tem de facto
a forma negativa de uma regra ou, pelo menos, de um conselho
geral, enquanto a virgindade — testemunha-o já o diálogo de Me-
tódio de Olimpos — designa uma experiência positiva e complexa,
que é reservada a alguns e sob a forma de. uma escolha. Escolha
que não se reporta simplesmente a certo aspecto da conduta, mas

163 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, Da Virgindade, LXIII, 2-3.


164 GREGORIO DE NISSA, Da Virgindade, XIV, 3. Cf. também AMBROSIO,
De virginibus, 1,6.
As Confissões da Carne 219

à vida inteira, e que é capaz de a transfigurar. Da continência à


\ irgindade, há a viragem que faz de um conselho negativo e geral
uma experiência positiva e particular.
A mística da virgindade está ligada a uma concepção da histó­
ria do mundo e da meta-história da salvação. Mudança importante
por comparação com uma perspectiva antiga: a que com efeito li­
gava as relações sexuais, o desejo, a procriação a um mundo natu­
ral, dos quais eram um elemento. Clemente de Alexandria
mantinha-se-lhe ainda fiel ao estabelecer entre procriação e Cria­
ção todo um conjunto de relações estreitas. Mas, através do tema
tia virgindade paradisíaca, vemos marcar-se um corte entre Cria­
ção e procriação — corte a partir do qual a actividade sexual de­
sempenha um papel na história do mundo: cabe-lhe impedir a lei
da morte de triunfar por completo; cabe-lhe povoar a Terra, antes
de por seu turno desaparecer quando, com a Encarnação, o tempo
do resgate tiver chegado. A idade da virgindade, que é também o
do acabamento do mundo, encerra um tempo em que a Lei, a mor­
te e a conjunção dos sexos estavam ligadas umas às outras. E a
prática da virgindade assume assim um sentido totalmente dife­
rente do das relações entre uma abstenção individual e os meca­
nismos da natureza. Por fim, a mística da virgindade [introduz no
domínio dos actos165] uma cesura que projecta na forma de figuras
espirituais um conjunto de movimentos, de conjunções, de liga­
ções, de gerações, que são o desdobramento termo a termo dos
desejos, actos e relações sexuais.
A valorização da virgindade é, portanto, muito diferente e mui­
to mais do que a desqualificação ou a proibição pura e simples das
relações sexuais. Implica uma valorização considerável da relação
do indivíduo com a sua própria conduta sexual, uma vez que faz
dessa relação uma experiência positiva que tem um sentido histó-
' 'rico, meta-histórico e espiritual. Que as coisas fiquem bem claras:
,;í não se trata de dizer que houve uma valorização positiva do acto
sexual no cristianismo. Mas o valor negativo que lhe foi muito

s;-165 [Manuscrito: estas palavras estão rasuradas.]


220 Michel Foucault

claramente concedido faz parte de um conjunto que dá à relação


do sujeito com a sua actividade sexual uma importancia com que
a moral grega ou romana nunca teria sonhado. O lugar central do
sexo na subjectividade ocidental marca-se já claramente na forma­
ção desta mística da virgindade.

Vemo-lo: os temas da virgindade como experiência espiritual


estão no século iv, em autores como Gregorio de Nissa, Crisósto­
mo ou Ambrosio, muito próximos no fundo dos que eram desen­
volvidos por Metódio de Olimpos, ainda que difiram destes, ou
divirjam uns dos outros, em numerosos pontos de exegese. Mas a
diferença mais sensível, e a mais importante do ponto de vista que
aqui nos preocupa, refere-se àquilo a que Gregorio de Nissa cha­
mava “a arte e ciência” [Da Virgindade, IV, 9], quer dizer, à vir­
gindade como forma, técnica, instauração reflectida e aplicada da
relação de si consigo.
Que a prática da virgindade requeira esforço, que não seja sim­
plesmente uma abstenção decidida de uma vez por todas mas um
labor constante, os autores do século iv não foram os primeiros a
dizê-lo. Mas atribuíram a esse princípio um destino privilegiado,
de três maneiras. Começaram por desenvolvê-lo amplamente. Ba­
silio de Ancira lembra a seu propósito que “o reino dos céus per­
tence aos violentos”166. Crisóstomo sublinha que muitos “recuam
à ideia destes esforços esgotantes que ela exige”167; reconhece “a
dificuldade da empresa”, “o rigor destes combates, o pesado fardo
desta guerra”168. A partir daqui, é elaborada a oposição tradicional
entre os inconvenientes do casamento e a tranquilidade do estado
da virgindade. Ao longo de todo o tratado de Crisóstomo, pode­
mos descobrir uma oposição sob a forma de quiasma: o casamen­
to é apresentado como causa de perturbações e de cuidados, en­
quanto a virgindade assegura a limpidez serena da alma; mas a

166 BASILIO DE ANCIRA, Da Integridade da Virgindade, 4.


167 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, Da Virgindade, XXII, 2.
168 Ihid., XXVII, 1.
As Confissões da Carne 221

virgindade é uma luta penosa e incessante, enquanto o casamento


é urna vida de facilidade — porto de abrigo e repouso, que a vir­
gem, sempre no alto-mar, sofrendo as tempestades, não pode co­
nhecer169. A rudeza do estado de virgindade é então comparada,
segundo duas metáforas que não param de recorrer através de toda
a literatura ascética da época, aos combates do soldado e aos exer­
cícios do ginasta. A virgem é uma cidade sitiada: tem de ter “um
olho sempre aberto, uma paciência a toda a prova, muralhas robus­
tas, paredes exteriores e trancas, guardas vigilantes e corajosos”;
os seus pensamentos “devem manter-se em pé de guerra” dia e
noite; devemos vê-la “fortificada” de todos os lados170. Ou, ainda,
é um atleta que tem de enfrentar um rival: “então, das duas uma”,
deixará o estádio “ou bem cingida a coroa, ou depois de ter mor­
dido com a fronte o pó e a vergonha”171.
Claramente assim situada entre as práticas ascéticas, a virgin­
dade releva de um mesmo princípio que todas as outras: não pode
ser levada a bom termo sem a intervenção de um director. Metódio
de Olimpos limitava-se a evocar um círculo de mulheres entre as
quais uma prevalecia sobre as outras — todas elas excelentes, to­
davia — pela sua doutrina e pelo seu exemplo. Cipriano, por seu
turno, exortava, dava conselhos, auxiliava com os seus pareceres
as que tinham escolhido essa via, sublinhava a importância de
uma disciplina que era entendida por ele como uma “observância”
das Escrituras nas quais a religião no seu todo completo tinha o
seu alicerce. Diversas homilías insistem igualmente no papel do
pai e da mãe relativamente àqueles de entre os seus filhos que ti­
vessem desposado o estado de virgindade172. Gregorio de Nissa,
pelo seu lado, consagra todo o último capítulo do seu tratado Da
Virgindade à necessidade de aprender junto de um mestre as re­
gras desse, estado.

169 Ibid., XXXIV, 1-2.


170 Ibid., XXVII, 1-2; cf. igualmente XXXVII, 4.
171 Ibid., XXXVIII, 1.
172 Assim a homilía publicada por DOM DAVID AMAND DE MENDIETA, loc.
cit.
222 Michel Foucault

Para isso, dá várias razões, que se ordenam todas elas segundo


o princípio geral de que em tal arte o erro é mais grave do que em
qualquer outra: uma vez que o objecto que ela se propõe somos
nós mesmos, e que, enganando-nos nessa matéria, causamos dano
à alma e expomo-nos a morrer173. Que não nos possamos remeter
a nós mesmos explica-se antes de mais pelo facto de o estado de
virgindade e de as regras a observar não estarem inscritos na na­
tureza. Trata-se, de certo modo, diz Gregório, de aprender um
“idioma estrangeiro”. A virgindade, como gênero de vida (diagô-
gê), tem, relativamente ao homem que segue a natureza, o carácter
da “novidade”174. Mas Gregório vai mais longe: a virgindade não
está simplesmente em posição de ruptura com a natureza, é como
uma arte, à maneira por exemplo da medicina. Esta, seria impos­
sível, inútil e perigoso aprendê-la cada um por si mesmo. Revelou-
-se progressivamente através da experiência, e as observações dos
que nos precederam servem de preceitos para o futuro. Mas, exa­
minando o caso mais de perto, vemos que Gregório não se serve
da medicina como de um simples termo de comparação. Lembra
que a filosofia é uma arte de curar as almas — é uma cura de
“toda a paixão que atinge a alma”. E, como designou um pouco
antes o estado de virgindade como uma maneira filosófica divina,
devemos pois compreender que esta arte é, em sentido estrito e
pelo menos sob alguns dos seus aspectos, uma maneira de se pres­
tar cuidado à própria alma175. Esta arte, uma alma jovem não po­
dería praticá-la só sem se expor aos erros: efeito da ignorância,
mas também ausência de um princípio de moderação176; entregue
a si mesma, a alma corre perigo devido ao seu próprio ímpeto:
“Alguns abandonaram-se ao ímpeto venturoso que os arrebata
pelo desejo dessa vida nobre, mas, imaginando alcançar a perfei­
ção a partir do instante em que a escolheram, tropeçaram, devido

173 GREGÓRIO DE NISS A, Da Virgindade, XXIII, 2.


174 Ibid. Os que praticam a virgindade são por comparação com os que a não
praticam ainda alloglôssoi.
175 ZWd., XXIII, 2.
176 “Enkrateias metra”, ibid., XXIII, 1.
I
Ef'As Confissões da Carne 223

||; ao seu louco orgulho, num outro erro, iludindo-se na sua demência
Ê*. sobre essa beleza para a qual o seu pensamento os inclinava.”177
Tornamos pois a encontrar, nesta passagem que abre o último ca-
pítulo do tratado de Gregório sobre a virgindade, vários de entre
í* os argumentos dos quais vimos que serviam para justificar a prá-
tica da direcção em geral.
H Quanto ao papel do director, Gregório de Nissa opõe-no, com
k insistência, à lição escrita, fazendo valer que, na arte da virginda-
de, devemos ser guiados pelos “actos”178. Com efeito, acerca do
$ ensino que permite aprender este difícil estado, o texto é bastante
K; elíptico. Fala essencialmente do papel do dador de exemplo179.
K, Mas fala dele em dois sentidos alternados: por um lado, trata-se de
um modelo, de um “Cânone” para a nossa vida — Gregorio
r
r apresenta-o como um corifeu cujos gestos imitam os que o se­
Cí guem; mas, por outro lado, fala dele também como de um ponto
I cie orientação, de uma meta em cuja direcção os olhos se fixam,
porque é nela que se pode ver o que é o estado de virgindade
& quando enfim “abordou o porto da vontade divina”: os que o al­
& cançaram “mantêm a alma tranquila em paz e serenidade”.
Mantêm-se impávidos longe da agitação das vagas, o esplendor da
sua vida forma então como que sinais de fogo180. Redescobrimos,
f
pois, aqui, magnificado e levado ao seu ponto de consumação, o
L
lema da tranquilidade virginal. Mas, no mesmo lance, o papel do
director, no labor, os exercícios e os combates que atravessam este
IE estado e o sustentam, não aparece claramente, nem também as
técnicas que emprega, as regras ou os conselhos que dá.

177 Ibid., XXIII, 3.


178 “Hê dia tôn ergdn huphêgêsis", ibid., XXIII, 1.
179 Dá exemplos como uma luz acende outras (ibid., XXIII, 5).
180 Ibid., XXIII, 6.
[VIRGINDADE E CONHECIMENTO DE SI]

Esta direcção da vida virginal é, pelo contrário, muito explícita


noutros textos. Tomarei exemplos de dois textos. Um é oriental,
independente das instituições monásticas e endereçado a mulhe­
res: é o tratado Da Integridade da Virgindade, que figurou muito
tempo entre as obras de Basilio de Cesareia, e que desde o princí­
pio do presente século é atribuído a Basilio de Ancira. Quanto ao
segundo exemplo, pedi-lo-ei de empréstimo aos capítulos que
Cassiano, nas Instituições e nas Conferências, consagra aos pro­
blemas da pureza na existência monástica. Muito diferentes pois,
no seu contexto e na sua inspiração, são todavia os dois portadores
de um testemunho do desenvolvimento durante o século iv das
“técnicas de si” e do lugar que tomam na prática do estado de
virgindade.

- I -

Situa-se o texto de Basilio de Ancira em meados do século iv


— antes de 358, em todo o caso. Ele mesmo evoca o seu contexto
desde as primeiras linhas, referindo-se ao desenvolvimento das
práticas ascéticas (abandono dos bens, jejuns, macerações, como a
de deitar directamente o corpo no chão). Mas demarca-se, com
uma insistência de resto frequente na época, da literatura panegí-
s-Confissões da Carne 225

rica: apresenta-se como um texto prático. O que não quer dizer que

Í seja estranho aos temas que encontramos na espiritualidade do


sceulo iv. Ao longo de todo o texto retorna a figura, indicada des-
á de as primeiras palavras, do Cristo-Esposo181: a ideia do casamen-
I to, com a beleza da Desposada, o amor que tem pelo seu Senhor,
V"íi fidelidade a que está obrigada, o desejo que deve ter de lhe
I-adar, é longamente desenvolvida'82. Encontramos também a
rmação de que, pela virgindade, a alma se torna incorruptível e
3 assim pode levar desde este mundo a vida dos anjos183; faz-se
lalmente referência aos dois anjos, o do casamento inaugurado
r Adão, o do século futuro cuja semente foi lançada por Cristo
3 a forma da pureza virginal’84. O tratado de Basilio de Ancira
á, deste ponto de vista, em continuidade directa com os grandes
ios espirituais sobre a virgindade.

Mas o seu objectivo nem por isso passa a ser menos fixar meios
J reportados a um fim185: trata-se não de ensinar os que já adquiri-
fram o conhecimento do bem, mas de mostrar àqueles que experi-
j. mentam amor por ele como atingir esse bem que desejam. Livro
? de vida, por conseguinte, sem que defina um corpus sistemático
de regras: nenhuma referência é feita a instituições monásticas. E
^somente indicado, nas primeiras linhas, que a obra se destina
jp àqueles que conceberam, graças ao bispo Letoio (ao qual Basilio
se dirige), o amor do bem, mas nada sugere que se trate na circuns­
tância de uma comunidade instituída186. Só o desenrolar do texto
& mostra, sem que nenhuma justificação ou explicação suplementar
seja dada, que constitui prescrições de vida para as mulheres. Des­
te ponto de vista, está portanto próximo das obras práticas escri­
tas, na segunda metade do século, por Evágrio, pelo Pseudo-
181 BASÍLIO DE ANCIRA, Da Integridade da Virgindade, 1.
182 Ibid., 24-29; 36-39.
183 Ibid., 2; 51.
\MIbid., 54e55.
185 Ibid., 1.
186 Em todo o caso, indica também que os seus conselhos podem valer para lei­
tores ocasionais.
226 Michel Foucault

-Atanásio ou por Ambrósio. Distingue-se delas, no entanto, por se


apoiar em todo um conjunto de conhecimentos médicos que evoca
com um certo detalhe, e por elaborar a partir daí menos regras de
atitude (embora se lhes refira) que técnicas, procedimentos, ma­
neiras de fazer ou maneiras de ser respeitantes à alma e ao corpo
nas suas relações. Mais do que ao traje e às frequentações, são as
sensações, os desejos, as imagens, as recordações que formam o
objecto do livro. Trata-se muito mais da questão da relação de si
consigo mesmo do que da atitude perante os outros ou da conduta
no meio deles. E, quando Basílio sublinha a necessária renúncia a
todos os enfeites e a todas as formas de galantaria, recorre, a par
do argumento conhecido (a mulher não pode agradar a Deus senão
tal como Deus a moldou187), [a um outro argumento]: todos esses
cuidados do corpo induzem na alma, não só dos espectadores, mas
daquela que se lhes presta, sensações, imagens, desejos.
A arte da virgindade, segundo Basílio de Ancira, apresenta dois
aspectos. Comporta em primeiro lugar aquilo a que poderiamos
chamar uma tecnologia da separação ou do corte.
Interrupção, para começar, do desejo natural. Basílio explica a
atracção dos sexos por um princípio geral que vale da mesma ma­
neira para os seres humanos e para os animais. Para povoar a
Terra, Deus serviu-se de “germes prototípicos”, aos quais deu a
possibilidade de se reproduzirem separando do corpo dos machos
um “segmento”; este constitui a fêmea à qual o indivíduo mascu­
lino visa reunir-se. A esta tendência para a reunificação, Basílio dá
sucessivamente duas formas: a atracção mútua, que parece colocar
macho e fêmea em posição simétrica (ontologicamente, são as
duas partes de um mesmo indivíduo); e a pulsão do macho no
sentido da fêmea, que, por uma dissimetria “fisiológica”, põe de
um lado o princípio de atracção, do outro a força do movimento.
A fêmea é como o íman; o macho como o metal. A mulher é pas­
siva, uma vez que é para ela que o macho se dirige; mas é também

187 “Areskei de toiautê hoian autos autên plasai êthelêsen”, ibid., 17. O mesmo
argumento aparecia em CIPRIANO, cf. supra pp. 175-177.
As Confissões da Carne 227

princípio do movimento, porque é a sede do prazer que atrai — o


que faz de resto com que a maior força, que está do lado masculi-
' no, se veja suavizada e mitigada pelo desejo de proteger. Em todo
0 caso, nesta dinâmica natural (para a descrever, Basilio só bastan­
te remotamente alude às Escrituras, o plano de referência é pedido
de empréstimo à historia natural), vemos que a parte feminina
está numa posição “estratégica” privilegiada. Sede da atracção,
mas imóvel ela mesma, a mulher pode interromper este movimen­
to inscrito desde a origem na natureza. Tal é o papel da virgem:
ser o ponto de ruptura neste processo geral de atracção.
, Mas porque se imporia uma ruptura assim, quando, a termos de
acreditar em Basilio, esta atracção não é senão efeito da vontade
de Deus? Porque as almas que, em si mesmas, são iguais e de
idêntica natureza, logo sem diferenciação sexual188, são afectadas
pelos movimentos dos corpos a que estão ligadas. Recebem de
certo modo a impregnação do seu sexo corpóreo, tornam-se mas­
culinas ou femininas e não podem aceder ao amor do Deus incor­
póreo a não ser rompendo essas afecções. A esta ruptura Basilio
dá duas formas, que, uma e outra, embora de maneira diferente,
tepousam sobre a ideia de uma certa equivalência entre o prazer
como princípio de atracção entre os sexos, e o prazer como forma
geral de obscurecimento ou de aumento de peso da alma através
do corpo. Basilio começa por explicar que o prazer (hêdortê) é
genericamente único, que devemos por isso não só dominar aque­
le que nos impele à união dos sexos, mas também todos os outros.
E, uma vez que através dos cinco sentidos na direcção dos objec-
tos sensíveis, depois destes últimos, de regresso, na direcção da
alma, o fluxo de prazer não cessa de ir e vir, de se agitar e trazer
a sua perturbação, devemos pois — e será essa uma parte capital
na arte da virgindade — vigiar essas saídas e esses canais, manter
sob a nossa vigilância a porta dos sentidos. Devemos assegurar
toda uma economia dos fluxos do prazer por meio de uma atenção

188 A questão da diferenciação sexual nas almas era uma velha questão. Assim
TERTULIANO [(Do Véu das Virgens, 7-8; Da Alma, 27, etc.)].
228 Michel Foucault

incidindo, nos limites do corpo e do mundo exterior, sobre os ór­


gãos da percepção e sobre aquilo que eles podem perceber. Eco­
nomia do olhar, que não deve orientar-se ao acaso para tudo o que
os olhos podem captar; economia do ouvido, que não deve atender
a qualquer palavra que seja, mas antes ao que é útil aprender.
Trata-se, em suma, de um encerramento selectivo do corpo em
relação ao mundo exterior, em função de um perigo intrínseco nos
movimentos do prazer que perturbam e de certo modo “sexuali-
zam” a alma.
Ora, entre todos os sentidos que se trata de fecharmos pelo me­
nos parcialmente, há um ao qual Basilio dá um lugar central. É o
tacto. Ele explica este lugar com várias razões: o tacto é mais
poderoso do que todos os outros sentidos para suscitar os prazeres
do sexo. É igualmente importante para o paladar (do qual Basilio
parece fazer uma espécie de tacto), ora, o comer e beber contam-se
entre os factores mais importantes que estimulam os prazeres se­
xuais. Finalmente e sobretudo, o tacto funciona, para Basilio, co­
mo a forma geral de todos os sentidos: é ele que, em cada um de­
les, transporta até à alma a imagem das coisas exteriores cujas
espécies vêm tocar o corpo; é ele que as faz atravessar o corpo e
mover a alma. O tacto constitui de certo modo o suporte geral de
toda a sensibilidade corporal. Em cada forma de sensação está
mais ou menos presente, é mais ou menos activo, mais ou menos
determinante. Se, portanto, quisermos controlar o movimento dos
prazeres que corre ao longo dos canais dos sentidos, é no tacto que
devemos fazer incidir maior atenção. “Evitar os contactos”: precei­
to que deve ser entendido no sentido preciso das palavras — Ba­
silio cita algumas das suas aplicações particulares: evitar os abra­
ços, os contactos entre homens e mulheres, ainda que de irmãos e
irmãs se trate, ao passo que são sem perigo aqueles que têm lugar
entre duas pessoas do mesmo sexo189 —, mas que devemos enten­
der também de modo mais geral: diminuir a força do corpo, enfra­
quecer a sua capacidade de repercussão, evitar que, demasiado

189 BASILIO DE ANCIRA, Da Integridade da Virgindade, 44-45.


i u
y\s Confissões da Carne 229

vigorosos, os seus movimentos movam a alma com demasiada


força. Por fim, mais geralmente ainda: evitar o contacto de todo o
corpo (como lugar de todos os contactos) com a alma. Este tema
da separação entre alma e corpo, do seu isolamento recíproco,
reaparece ao longo de todo o texto sob diferentes formas: imagem
da alma que deve fechar com cuidado as suas janelas, em vez de
ser como essas prostitutas que as mantêm escancaradas e não pa­
ram de nelas se mostrar190; do dono da casa que com cautela man­
tém fechada a sua porta quando os soldados tentam penetrar
dentro déla em busca de alojamento191; da água e do azeite que têm
de se conservar separados se não quiserem turvar-se192. Que a al­
ma e o corpo permaneçam pois cuidadosamente separados uma
do outro: mantendo-os a ambos “no seu lugar, na sua condição e
em conformidade com o seu uso”, far-se-á, entre eles, reinar a
paz193.
Mas estes diversos procedimentos de separação — relativos aos
sentidos e às coisas sensíveis, ao corpo e ao mundo e à alma e ao
corpo — não são para Basilio mais do que um dos lados da arte
da virgindade. Todo um outro aspecto diz respeito à própria alma
e ao trabalho que ela deve efectuar sobre si mesma. Que a pureza
do corpo nada é sem a da alma, é um tema muito tradicional a que
Basilio confere várias formas. A da dupla pureza: devemos prestar
tanta atenção aos movimentos da alma como aos do corpo. Não se
pode ser considerado virgem senão sendo-o de alma e corpo: “Se
repelirmos por meio do jejum as paixões do corpo, mas deixarmos
a alma agitada pelo que lhe é próprio, a inveja, a hipocrisia e os
movimentos das outras paixões, não tornaremos a abstinência do
corpo útil à virtude. E, se purificarmos a alma das suas paixões,
mas deixarmos o corpo abandonado aos prazeres do ventre e às
outras delícias, ainda que sem a desordem do impudor, não pode-

YXflbid., 15.
191 Ibid.
192 Ibid., 46.
193 Ibid. AI.
230 Michel Foucault

remos tornar a nossa vida perfeita na virtude.”194 A da pureza de


principio da alma, que constitui o elemento primeiro e determi­
nante por comparação com a integridade do corpo: “Porque, se a
alma for sem corrupção, o corpo conservar-se-á também sem
corrupção; mas se a alma tiver sido corrompida pelos maus pen­
samentos, ainda que o corpo pareça permanecer sem corrupção,
não acharemos pureza na sua ausência de corrupção, pois estará
corrompido, por pensamentos contaminados.”195 Por fim, a propó­
sito da castração física, Basilio faz valer o princípio da intenção
que constitui o pecado. Não só não há mérito em quem se torna
fisicamente eunuco voluntário, mas é porque recusa assegurar ele
mesmo a virgindade da sua alma, e por isso consente no desejo
sem se permitir o acto, que devemos considerá-lo pecador: “a
ablação das partes denuncia o adúltero que se mutila”, “desarmou-
-se pois excluindo o instrumento do adultério, para que se não
pense que fornica com o seu corpo, e contudo fornica em inten­
ção”196.
Um trabalho específico de purificação da alma é portanto ne­
cessário, além de todas as abstenções, separações e encerramentos
das quais a do corpo necessita. Basilio evoca em primeiro lugar a
questão da remanescência das imagens: os objectos que impressio­
nam os sentidos podem bem desaparecer, mas a sua imagem con­
tinua na alma. Fizeram como esses dardos inflamados que incen­
deiam o alvo em que se cravam, ou imprimem como sobre cera
uma marca que fica. E necessário, por isso, uma vez que não se
podem ter sempre fechados os olhos do corpo, cuidar de não con­
servar semelhantes imagens. De nada serviría jejuar e enfraquecer
o corpo, continuando a cultivar tais pensamentos. Que alma pode­
ría dizer-se virgem se continuasse a abraçar aquele que ama “com
as mãos incorpóreas do pensamento”? O. corpo, que se mantém

194 Ibid.
195 Ibid., 43; cf. ibid., 13.
196 Ibid., 61. Contra o eunuquismo, Basilio faz também valer, a partir de consi­
derações fisiológicas, os restos de desejo que assombram o corpo e são ainda mais
violentos por não poderem encontrar saída.
l*A' Confissões da Carne 231

b sempre misturado à alma e que segue os seus movimentos,


^"encontrar-se-ia assim corrompido por ela e acompanhá-la-ia nos
p'séus sonhos197. Devemos pois trabalhar sem descanso para apagar
t*’’ tais imagens e lhes substituir, na cera da alma, por meio de medi-
tações, as figuras, os “caracteres” das coisas santas198.
v • Mas devemos considerar também que na alma podem efectuar-
E-se actos. Não é necessário, para que haja acto, que este seja leva-
• do a cabo pelo corpo. Basilio, no entanto, não se refere aqui a urna
concepção jurídica que faria equivaler a intenção completa à exe­
cução do próprio projecto. Utiliza uma fisiología da alma segundo
I- a qual todos os pensamentos viriam inscrever-se na “tábua” da
alma como num quadro, do qual não se apagariam, ainda que os
■ recobrisse o esquecimento ou a desatenção. Todo o pensamento é
i
! tim acto, e continua a ser um acto na alma, na medida em que o
seu desenho nela subsiste. Basilio recorre neste ponto à compara­
ção com os signos da escrita: aquele que os aprende inscreve-os na
! sua alma e não precisa de escrever realmente para que as letras
fiquem gravadas na sua alma. Sem essa inscrição, como poderia
1 escrever quando o deseja? Do mesmo modo, os pensamentos
fc. depositam-se como outras tantas marcas na alma. E, quando vier
T' a morte, e a alma se libertar, então toda essa letra miúda dos pen-
t1 sarnentos, que até então se mantinham velados, surgirá em plena
luz. E nenhum dos actos de pensamento, ainda que de entre os
I mais secretos, escapará ao olhar daquele que tudo vê. A alma que
i1 quer permanecer virgem deve pois vigiar continuamente até mes­
mo os movimentos mais secretos do seu pensamento.
O?
ito
Finalmente, a pureza da alma não pode ser assegurada sem uma -
vigilância constante sobre o que, no interior de si mesma, pode ser
causa de ilusão e enganá-la. A alma é sempre susceptível de se
deixar surpreender. Pode sê-lo pelo jogo das semelhanças e das
naturezas contrárias que se escondem sob espécies análogas. Lem-

197 Veremos, mais adiante, a importância desta questão da imagem no sono, da


contaminação que acarreta no corpo, e da complacência que a provoca.
198 Ibid., 13.
%
232 Michel Foucault

brando o adágio grego segundo o qual os vícios são vizinhos


próximos das virtudes, Basilio reinterpreta-o a partir das astúcias
do demônio: à porta de cada virtude, o demônio colocou a porta,
muito semelhante, do vício: julgamos bater à primeira, e é a outra
que se abre. Assim, aqueles que queriam ser corajosos revelam-se
temerários, e aqueles que queriam evitar a temeridade revelam-se
timoratos199. Mas pode haver também engano devido à proximida­
de: a alma crê amar o Senhor e deixa-se prender pelos seus servi­
dores; ou ainda começa por amar a beleza de uma alma, mas, co­
mo esta se manifesta através dos corpos que olhamos, das vozes
que escutamos, acaba por “amar, em vez da alma que fala, aquilo
por meio de que ela fala”200 — um pouco como se, em vez de gos­
tarmos de um músico, fosse do seu instrumento que nos agradás­
semos.
Para uma tal vigilância sobre estes três pontos que já vimos
como eram importantes na direcção de consciência — remanes-
cência das imagens, movimentos espontâneos do pensamento,
ilusões e semelhanças —, Basilio dá uma justificação, um modelo
e uma sanção, no princípio da completa visibilidade da alma. Vi­
sibilidade que é de certo modo materializada pelo quadro onde se
inscrevem em marcas duradouras todos os movimentos que nela
se produzem, mas visibilidade que se actualiza de três maneiras:
no futuro, a morte libertará a verdade da alma e fá-la-á aparecer
iluminada pela luz eterna; mas Deus pode permanentemente ver a
nossa alma até ao fundo desta, não há seja que segredo for capaz
de lhe escapar201; e é também permanentemente que o anjo-da-
-guarda vela sobre a alma: é para a [virgem202] o guia que deverá
conduzi-la até ao Esposo203. E depois para lá dele, devemos pensar
nos exércitos de todos os anjos e nos espíritos de todos os pais.
Todos contemplam tudo e em toda a parte. Até aos seus mínimos

199 lbid„ 36.


200 Ibid.
201 Ibid.,21.
202 [Manuscrito: “virgindade”.]
203 íbid., 28.
j As Confissões da Carne 233

■ recônditos a alma é pois não só visível, como actualmente vista.


Esse olhar, ou antes, esses olhares indefinidamente numerosos não
são os seus. A alma assegurará a sua virgindade se, tanto quanto
lhe for possível, se esforçar por se ver a si mesma e velar sobre
tudo o que nela se passa, à maneira de todos os outros olhares que
percorrem sem obstáculo os seus segredos.
" Na época em que Basilio de Ancira escreve, as instituições mo­
násticas estão em pleno desenvolvimento; mas, em termos mais
gerais, difundiu-se também toda uma prática regulada, reflectida
e controlada de ascetismo. É difícil precisar a quem se destina ao
certo o tratado endereçado a Letoio. Mas os conselhos que dá e as
prescrições, não sistemáticas, que propõe incidem sobre os mes­
mos pontos essenciais que a direcção espiritual e o exame de
consciência, conforme os encontraremos cuidadosamente descri­
tos em textos um pouco posteriores. Através deste tratado, vemos
a prática da virgindade, que fora desligada do princípio de conti­
nência e definida como uma experiência espiritual positiva,
organizar-se como um tipo de relação de si consigo, que se repor­
ta não só ao corpo, como às relações do corpo e da alma, à aber­
tura dos sentidos, ao movimento dos prazeres através do corpo, à
agitação dos pensamentos. Vemo-la abrir-se assim sobre um domí­
nio de conhecimento interno em que se trata da sensação, das
imagens e dos seus efeitos de remanescência, das actividades do
pensamento, e de tudo o que na alma pode escapar quer aos ou­
tros, quer a si mesma, pelo efeito de uma ilusão ou da tenuidade
do processo. Vemo-la enfim inscrever-se numa relação com o
poder do outro e com o olhar que marca ao mesmo tempo uma
sujeição do indivíduo e uma objectivação da sua interioridade.
Ao indicar estes processos a propósito do texto de Basilio de
Ancira, não pretendo que é aqui que os encontramos pela primei­
ra vez, nem decerto que foi aqui que se operou a transformação
que lhe deu lugar. Detive-me um pouco nele apenas na medida em
que dá testemunho da existência, em meados do século iv e numa
prática pastoral não definida, de uma técnica de si bastante elabo­
rada. Detive-me nele também porque nele vemos, em torno das
234 Michel Foucault

relações sexuais que o princípio de virgindade recusa, constituir-


-se todo um domínio (feito do corpo e da alma, de sensações, de
imagens e de pensamentos) sobre o qual se considera ser necessá­
rio intervir para que a exclusão das relações sexuais tome o senti­
do espiritual positivo que dela se espera: o correlativo prático in­
dispensável de uma tal abstenção. Podemos constatar que não se
identifica nem com a totalidade do corpo nem com a da alma,
atravessa-as a uma e a outra, da captação de um objecto pelos
sentidos aos movimentos mais secretos do coração.

- II -

A análise de Cassiano é muito diferente da de Basílio de Anci-


ra. O seu quadro de referência é constituído pela prática monástica
— cenóbio para o texto das Instituições que se refere sobretudo
aos iniciandos, e anacorese para as Conferências que relatam ex­
periências espirituais muito mais avançadas. Seja como for, os
propósitos de Cassiano, as regras e as prescrições que avança
aplicam-se a uma forma de vida em que a renúncia a qualquer
forma de relações sexuais se operou já. Neste estádio, já não se
trata de tomar em consideração os privilégios do estado de virgin­
dade sobre o do casamento, mas de desenvolver o que decorre
dessa escolha prévia. Cassiano raramente emprega o termo de
“virgindade”: a propósito de Elias e de Jeremias, que, “a usar do
casamento, preferiram perseverar na virgindade”204; e a propósito
das virgens loucas e das virgens prudentes, que são ditas umas e
outras virgens, porque não tiveram esposo, mas não praticando as
primeiras mais do que a virgindade do corpo205. É o termo “casti­
dade” — castitas — que em Cassiano cobre a maior parte das
questões ou dos temas que Gregório de Nissa, Basílio de Ancira,
Crisóstomo e de uma maneira geral os Padres Gregos associavam
à prática da virgindade e às regras internas desse estado.

204 J. CASSIANO, Conferências, XXI, 4.


205/Wd., XXII, 6.
As Confissões da Carne 235

Como os seus antecessores tinham feito para a virgindade, Cas-


■ \iano distingue a continência da castidade. Nas Instituições, apoia
esta distinção no uso tradicional das palavras gregas e marca ao
' mesmo tempo a hierarquia de valores entre os dois termos: “Não
negamos que ñas comunidades se encontrem também homens
continentes: é possível fazê-lo muito facilmente, reconhecemo-lo.
' ’Com efeito, são duas coisas diferentes ser continente — quer dizer,
• enkratês — e ser casto e, por assim dizer, passar a esse estado de
*•-' integridade ou de incorrupção a que se chama hagnos, virtude só
4j
•• ‘ concedida àqueles que se mantêm virgens na sua carne e no seu
iespírito, como foram [...] Jeremias e Daniel.”206 Entre as duas no-
■ ções, há a diferença que vai do negativo ao positivo. De um lado,
- % abstenção externa em relação ao sexo, do outro, um movimento
i; interior do coração: “A incorrupção da carne reside menos na pri-
c- vação de mulher do que na integridade do coração que conserva
, ? sem corrupção a santidade pelo temor de Deus ou o amor da cas-
'.■> tidade.”207
t Nas Conferências, Cassiano retoma mais longamente esta distin-
A ção. Dá-lhe o mesmo valor fundamental: a continência é recusa,
rejeição (districtiof, a castidade, força positiva que eleva e que se
\ sustenta através do “deleite que toma da sua própria pureza”208.
* Assim, os pagãos não são capazes senão de continência. Sócrates
não era casto, ele que se abstinha de consumar o amor que experi­
mentava pelos rapazes: fazia violência ao seu “desejo mau” e à
' “volúpia do seu vício”, sem os banir do seu coração209. Esta oposi-
'■ ção não está contudo isenta de uma certa ambiguidade. Cassiano,
'■ com efeito, descreve o reinado da continência como um momento
que deve durar todo o tempo enquanto subsistam os menores traços
de ardores carnais: “Enquanto resta alguma atracção pela volúpia,
não se é casto mas tão-só continente [...]. Enquanto experimenta-

206 J. CASSIANO, Instituições, VI, 4.


207 Ibid., VI, 19.
208 “Propriae paritatis delectatione subsistit”, J. CASSIANO, Conferências, XII,
10.
209 Ibid., XII, 5.
236 Michel Foucault

mos as revoltas da carne, reconheçamos [...] que permanecemos


ainda sob o ceptro débil da continência, fatigados por constantes
combates, cujo desfecho continua a ser necessariamente duvido­
so.”210 Por comparação com estes esforços da continência, a casti­
dade aparece como um estado terminal em que já não se têm de
combater “os movimentos da concupiscência carnal”2"; é então, e
só então, que a alma se pode tornar “a morada do Senhor”, que não
está nunca nos “combates da continência”, mas “na paz da castida­
de”212. Ora, Cassiano insiste em toda a sua obra — e tal é precisa­
mente o tema da XII Conferência consagrada à castidade — no
facto de a luta contra os assaltos da carne não poder ser tida nunca
por definitivamente acabada. “Temos também um corpo, que é
uma pobre besta de carga.”213 Aqueles não só recomeçam quando
os cremos vencidos, mas, como veremos, a sua ameaça tem para a
virtude um valor positivo: acontece-lhes ser efeito da beneficência
de Deus, que não quer que nos deixemos entorpecer na tranquili­
dade da alma. De maneira que a castidade, como estado espiritual­
mente diferente da continência, constitui um ponto ideal em cuja
direcção devemos caminhar indefinidamente, sem termos a certeza
de o podermos alcançar por completo214. Mas Cassiano descreve-a
também por comparação com a continência (atitude negativa de
recusa) como uma força positiva que a redobra, a sustenta, a anima
e transforma a simples abstenção em ascensão rumo a Deus: “Não
poderemos dominar nem banir o desejo das coisas presentes, se, no
lugar dessas inclinações nocivas, que aspiramos a repelir, não lhes
fizermos suceder as salutares [...]. Queremos expulsar do nosso
coração os apetites da carne: dêmos prontamente lugar às alegrias
espirituais.”215

210/Wá.,XII, 10.
211 ZW</.,XII, 11.
mibid.
213 Z¿>k/.,XI, 15.
214 Como veremos, só a graça pode permitir alcançá-lo, e as próprias tentações
são talvez uma graça.
215 ZZu¿., XII, 5.
As Confissões da Carne 237

' A castidade deve pois ser pensada em termos de estado e em


termos de combate: tranquilidade que já nada pode perturbar —
mas que já não é “uma virtude humana ou que pertença à Terra;
assemelha-se antes ao privilégio do céu, ao dom particular dos
■anjos”216; e também força de confrontação que requer, para poder
triunfar, ardor e paixão, e um desejo que não deixa de ter paren­
tesco com aquele mesmo que se esforça por combater. Para chegar
! à castidade, diz Cassiano num texto notável, “que cada um se in­
flame [...] do mesmo desejo e do mesmo amor que se vêem no
avarento devorado pela cupidez, no ambicioso que a sede das
honrarias trabalha, no homem arrebatado pela violência intolerá­
vel da sua paixão por uma beleza feminina, quando, no ardor de
- uma excessiva impaciência, anseiam por saciar o seu desejo”217.
Apesar de muitos pontos comuns com os grandes teorizadores
da virgindade do século iv, a distinção que Cassiano estabelece
entre continência e castidade revela de facto uma paisagem bas­
tante diferente. Esta é dominada pelas noções de pureza de cora­
ção e de combate espiritual, que adquirem sentido na especifici­
dade da vida monástica da qual Cassiano se inspira seguindo
Evágrio.

1. A pureza de coração. Para designar o estado de virgindade na


sua plenitude, Cassiano não recorre nunca ao vocabulário do noi­
vado, que era tão constante de Metódio de Olimpos a Crisóstomo.
E verdade que utiliza por vezes termos que, até certo ponto, se
aproximam daquele. Podemos relevar quatro de entre os princi­
pais. Cassiano fala da união que liga a alma a Deus218; da “fusão”
que a faz “afundar-se” nele219; da entrada soberana do Senhor ne-

216/Wd., XII, 14.


■217 Ibid., XII, 4.
218 Ibid., X, 8: “Deo jugiter inhaerere.”
219 Ibid., IX, 18: “in illius dilectio resoluta atque rejecta.”
238
Michel Foucault

la220; do movimento através do qual ele a toma e dela toma pos­


se221. No entanto, não é a união sexual de dois indivíduos que
serve de modelo implícito ou explícito a esta experiência, mas o
acto de conhecimento considerado como relação entre olhar, ob-
jecto e luz. A alma ligada a Deus não é para Cassiano a noiva
enfim reunida ao esposo. É antes o olhar que não se distrai do
ponto em que se fixou, e a ele se apega a ponto de nada mais ver.
Quando fala da alma que se funde em Deus, Cassiano não pensa
na esposa absorta na união espiritual, mas no acto de contempla­
ção que já não é mais do que uma só e a mesma coisa com o que
é contemplado. Quanto à presença de Deus na alma de que toma
posse sem que nada deixe escapar-se-lhe, não é à presença do Se­
nhor no leito nupcial que Cassiano a refere, mas ao raio de luz que
desce até dentro da alma e a ilumina, não deixando nela canto de
sombra algum.
É que a vida monástica, cujas arte e disciplina Cassiano define,
tem por meta a contemplação. Aquele que renuncia ao mundo
orocura chegar a esse “bem principal” que está estabelecido “na
teoria, quer dizer, na contemplação”. Quando lhe tiver acedido, a
alma não terá “outro alimento senão o conhecimento de Deus e a
alegria da sua beleza”. A relação de conhecimento sustenta a rela­
ção da alma com Deus. E até mesmo no momento em que a rela­
ção se torna junção, fusão, posse, é ainda sob a forma de conheci­
mento, ou mais precisamente segundo o modelo do olhar e da luz,
que Cassiano a reflecte. Por conseguinte, a castidade não tem para
ele o mesmo papel que a virgindade entre os autores dos quais
anteriormente falámos. Para estes, tratava-se de conservar na alma
a integridade que lhe permite chegar ao Esposo sem ter sofrido
nunca mácula. Para Cassiano, a castidade tem por papel assegurar
uma “pureza de coração” ou uma “pureza de espírito” que torna

220 Ibid., IX, 19.


221 Ibid., XI, 13: “Quem semel sua virtute possederit, non partem, sed lotam ejus
occupet mentem" [“Quando tomou posse de uma alma, não a possuiu somente em
parte, mas inteira”, tradução de E. PicheryJ.
¿ As Confissões da Carne 239

possível a relação de conhecimento: que não haja perturbação no


olhar, nem sombra que escape à luz, nem mancha que ponha obs­
táculo à transparência. Em suma, à série virgindade-integridade-
-núpcias espirituais, que encontramos claramente desenvolvida em
autores como Basilio de Ancira, Cassiano, à maneira de Evágrio,
’’ substitui a série castidade-pureza de coração-contemplação.
gí A relação da castidade com o conhecimento desenvolve-se en-
v tão segundo dois eixos. Por um lado, a castidade aparece como
condição indispensável da ciência espiritual. A última, ninguém
pode pretender chegar se não praticar a castidade que dá a pureza
de coração. Desde o início das Instituições, Cassiano, ao dar a
significação do traje monástico, mostra que o cinto (que marca a
vontade de destruir todos os germes de luxúria) testemunha o fer­
vor do asceta “pelo progresso espiritual e a ciência das coisas di­
vinas dados pela pureza do coração”222. Mas é na XIV Conferên­
cia, a do abade Nesteros, que Cassiano dá a este tema toda a sua
"dimensão. O conhecimento espiritual exige a pureza do coração e
- a castidade no sentido muito geral em que esta é incompatível com
a agitação dos pensamentos, o movimento desordenado da imagi-
: nação, e toda a preocupação pelas coisas do mundo: “Se quereis
' levantar no vosso coração o sagrado tabernáculo da ciência espiri-
' tual, purificai-vos da contaminação de todos os vícios, abandonai
as preocupações do século presente. É impossível que a alma
ocupada, ainda que ligeiramente, dos cuidados invasivos deste
mundo mereça o dom da ciência, ou seja fecunda em inteligência
espiritual, ou retenha com firmeza as leituras santas que fez.”223
Mas, de maneira muito mais precisa, a castidade como domínio
das paixões carnais em sentido estrito é indispensável à ciência
espiritual. Esta, como um perfume, não pode subsistir num vaso
contaminado: “O vaso penetrado de cheiros repugnantes infectará
mais facilmente o perfume mais odorífero do que ele mesmo re­

222 J. CASSIANO, Instituições, 1,11.


V 223 J. CASSIANO, Conferências, XIV, 9. “É impossível que a alma que não é pura
obtenha o dom da ciência espiritual” (ibid., XIV, 10).
240 Michel Foucault

ceberá alguma suavidade ou agrado; porque aquilo que é puro se


corrompe mais depressa do que se purifica o que está corrompido
[...]. Se o vosso coração deseja pois respirar o seu perfume incor­
ruptível, trabalhai primeiro com todas as vossas forças a fim de
obterdes do Senhor a pureza da castidade.”224 Por fim, devemos
compreender que a castidade do corpo é a primeira forma de uma
série de “castidades” de que o espírito tem de se revestir para
avançar a caminho do conhecimento espiritual sem jamais se se­
parar delas. Devemos renunciar à fornicação do corpo se quiser­
mos compreender as Escrituras, mas devemos manter-nos também
afastados dessa “fornicação” que são as cerimônias idólatras, as
superstições pagãs, os augúrios, os presságios, e dessa outra forni­
cação que é a observância da lei à maneira judaica, dessa outra
ainda que consiste na heresia, dessa última enfim que faz com que
o pensamento se desprenda por pouco que seja de Deus sobre o
qual deveria manter-se sempre fixo. E, à medida que estas diferen­
tes fornicações forem afastadas e que o espírito for casto neste
sentido cada vez mais espiritual, a significação da Escritura
libertar-se-á dos seus mistérios e aparecerá com valores cada vez
mais espirituais225. A castidade praticada e a compreensão da pa­
lavra crescem simultaneamente em espiritualidade. A tal ponto
que, passando ao limite, Cassiano acabaria por dizer, nas Institui­
ções, que a castidade, sob a sua forma perfeita, basta para a inteli­
gência das Escrituras: evoca Teodoro, que devia o seu conheci­
mento do Texto não tanto a uma “leitura estudiosa” — mal
chegava a saber umas quantas palavras do grego — “como unica­
mente à pureza do coração”226.

224 7Wd., XIV, 14 e 16.


225 Ibid., XIV.
226 J. CASSIANO, Instituições, V, 33. Em VI, 18, João Cassiano dá uma formu­
lação mais prudente: “E sem dúvida possível encontrar pessoas castas que não
possuem a graça da ciência, mas é impossível possuir a ciência espiritual sem
uma castidade completa.” De facto, como o prova a continuação do exemplo de
Teodoro, é a graça de Cristo que concede à sua castidade ignorante a compreensão
dos mistérios da Escritura.
As Confissões da Carne 241

Mas esta pureza do coração está ligada ao conhecimento segun-


-' do outra direcção muito diferente: a que se orienta, reflexivamen­
te, para a própria alma, os seus recônditos e as suas profundezas,
t Por comparação com este conhecimento, a pureza não é simples-
f mente uma condição, mas simultaneamente um seu efeito. Não há
; pureza de coração se a alma não velar atentamente sobre si mes-
■ ’ ma, surpreendendo os movimentos que nela se produzem e afas-
tando tudo o que pode desviá-la da sua contemplação. Mas, inver-
tv sámente, é bem graças à pureza que o olhar interior pode penetrar
J os segredos do coração, iluminá-los e dissipar a sua obscuridade:
fc “Atravessando, assim, pela pureza do nosso olhar interior, as ne-
gras trevas dos vícios, poderemos manifestá-las à luz do dia, e
£ seremos capazes de descobrir as suas causa e natureza.”227 Ora, o
•' que é importante notar nesta análise de Cassiano é que a luz assim
i'*" trazida ao coração não o ilumina de uma vez só, expulsando dele
1 tudo o que de impuro possa açoitar. Dissipa as trevas no sentido
'em que faz aparecer o que se pode esconder nelas. Mas o que nelas
I' se esconde é impureza, e é dessa impureza que devemos libertar­
ei -nos pouco a pouco, por meio de um exame atento, uma vigilância
que não afrouxa nunca, um remorso constante e a confissão que
l dela fazemos. De tal maneira que, através de uma circularidade
i que está no centro deste ascetismo do conhecimento de si, quanto
| mais puros somos, mais luz temos para melhor nos conhecermos;
| quanto mais nos conhecemos, mais nos reconhecemos impuros;
^'quanto mais nos reconhecemos contaminados, mais profunda-
mente devemos fazer penetrar a luz que dissipa as trevas da alma.
Ê{Evocando os grandes mestres espirituais, os que não se perdem em
€/“discussões ocas” mas têm a experiência e a prática da virtude,
t Cassiano diz que a pureza “lhes trazia principalmente o seguinte:
g’¿reconhecerem-se cada vez mais enfraquecidos pelo pecado —
$ porque a compunção perante as suas faltas crescia de dia para dia
na proporção do seu progresso na pureza da alma —, e suspirarem
í constantemente do fundo do coração sentindo que nunca pode-
242 Michel Foucault

riam evitar as manchas e as contaminações dos pecados, cuja


marca viam no detalhe minucioso dos seus pensamentos”228.
Numa passagem da Conferência sobre a oração, a alma é com­
parada a urna pena: as contaminações tornam-na pesada, a pureza
assegura-lhe pelo contrário uma leveza ontológica que permite
que o mais pequeno sopro a eleve na direcção do éter228229. Estamos
aqui perante uma maneira de marcar a relação fundamental da
castidade com a luz. Mas podemos ver como, na prática ascética,
esta relação assume formas complexas. A castidade é condição de
acesso a uma compreensão das Escrituras, urna abertura a um
sentido espiritual, urna recta direcção do espírito, uma imobilida­
de do olhar da alma até à contemplação de Deus. Mas desta con­
templação não podemos aproximar-nos sem um conhecimento de
nós mesmos que nos descubra nas nossas impurezas; e, por seu
turno, de onde tiraria este conhecimento a sua luz e a sua força
senão do Verbo de Deus, que penetra em nós e nos descobre tal
como somos sem que sejamos capazes de o vermos por nós mes­
mos? É assim que ele nos faz “sucumbir à nossa indagação e à
nossa exposição (indagini nostrae atque expositioni), e, ‘quebran­
do assim as portas’ da ignorância e ‘rompendo os ferrolhos’ dos
vícios que nos excluem da verdadeira ciência, conduzir-nos-á aos
nossos ‘mistérios secretos’ e, segundo o Apóstolo, revelar-nos-á,
uma vez iluminados, ‘os segredos das trevas e manifestar-nos-á os
pensamentos dos corações”’230. Devemos conceber pois o duplo
processo de uma exposição à luz dos arcanos do coração que é ao
mesmo tempo condição e efeito do conhecimento de Deus e de um
caminhar rumo à ciência espiritual que não pode fazer-se sem um
conhecimento de si que ela torna possível. E, no ponto de articu­
lação destes dois processos, a castidade.

228 Ibid., XII, 15.


229 J. CASSIANO, Conferências, IX, 4.
230 J. CASSIANO, Instituições, V, 2.
F

As Confissões da Carne 243

* 2. O combate espiritual. A referência ao combate espiritual


não está ausente dos tratados de virgindade do século iv. Discre-
4 ta em Gregorio de Nissa, é muito mais frequente em João Crisós-
tomo. Permite reportar o esforço característico da profissão de
virgindade ao tema do mártir que, atravessando as provas, triun-
' fa sobre elas e recebe a coroa231. Em Cassiano, a noção de com-
t bate não tem simplesmente um valor de referência, mas, em
parte, comanda também a análise232. Após a exposição das re­
legras da vida monástica, toda a segunda parte das Instituições
Cenobíticas se apresenta como um tratado do combate espiri-
| tual233. Combate acerca do qual, incansavelmente, Cassiano su-
¿•'blinha, evocando um texto da Segunda Epístola a Timóteo (2,
15), que deve ser conduzido devidamente e segundo as regras
K — legítimo™. Quer dizer que a vida do monge, pelo menos en-
% quanto não alcançou a tranquilidade da vida contemplativa, en-
£ quanto é ainda vida activa, deve desenrolar-se como um comba-
te ininterrupto cujas armas e tácticas têm de ser aprendidas. As
4 ’ Instituições formam o manual dessa aprendizagem. Expõem as
V regras gerais do combate, especificam as suas formas partícula-
res segundo os diferentes adversários a combater, e sublinham
por fim a necessidade de as adaptarmos às situações particulares
¿i e às forças de cada um. Disciplina geral que deve compor-se com
J um princípio de “discernimento”235.

231 Cf. em particular SÃO JOÃO CRISÓSTOMO,Da Virgindade, XXXVIII. Ver


jf igualmente VII, 17 e 22; IX, 24; LXXXIV, 3.
si 232 Esta noção de combate é central tanto em Pacómio como em Evágrio.
1^233 “Depois de termos composto quatro livros sobre as instituições dos mosteiros,
dispomo-nos agora [...] a travar o combate contra os oito vícios principais”, J.
•i CASSIANO, Instituições, V, 1.
ií 234 As expressões respeitantes à “correcção” do combate são muito numerosas.
|| Assim, a título de exemplo, ibid., V, 17 e 18; VI, 5; VIII, 5; IX, 2; XI, 19; XII, 32.
ÍI 235 Assim a propósito do combate contra a gula: “não é fácil a observância de
uma regra uniforme para o jejum. [...] Uma resistência física desigual, a idade ou
4 o sexo podem fazer variar o tempo, a quantidade e a qualidade do alimento; mas
? - a virtude interior de continência impõe a todos a mesma obrigação de se mortifi-
* carem”, ibid., V, 5.

y
244 Michel Foucault

De que tipo de combate se trata? Os termos usados por Cassia-


no abrem um largo leque: colluctatio, agón, certamen, pugna,
bellum. Os primeiros de entre estes termos fazem referência ao
combate do atleta que depara com um rival e deve, para o vencer,
ter seguido uma preparação, ter sido qualificado, e ter usado con­
tra ele dos procedimentos regulamentares que o autorizam a final­
mente receber a coroa. Mas os outros termos são tomados de em­
préstimo ao vocabulário da guerra: expulsar o inimigo, desarmar
os seus ardis, repelir o assalto das suas tropas. Por um lado, a luía
espiritual reporta-se ao modelo atlético, pelo outro, ao modelo
militar. De facto, não há descontinuidade entre o primeiro e o se­
gundo. Urna longa passagem desse capítulo V, que, dando as regras
do primeiro combate a travar (contra a gula), delineia o método
geral da luta, é característico desta dupla referência. Começa por
um exemplo de alusões à prática do atletismo e dos jogos: treino
dos concorrentes, exame no termo do qual se aceitam os candida­
tos, método usado pelos lançadores de dardo, preparação e prática
dos pugilistas, etc.236 Mas, insensivelmente, Cassiano passa ao te­
ma da batalha entre inimigos. O soldado substitui então o atleta:
contra ele, “tropas”, “coortes de adversários” que ele deve repelir
do territorio; há inimigos no exterior, mas há também inimigos
internos que o enfraquecem por meio de “lutas intestinas”237.
O entrelaçamento destas duas metáforas faz aparecer duas com­
ponentes essenciais do combate espiritual. Por um lado, como
prova atlética, este combate supõe exercício, treino, vontade de se
superar a si mesmo, trabalho de si sobre si, controle e medida das
próprias forças. Ascese no sentido estrito do termo. Mas, como
guerra contra um adversário (e ainda mais inimigo incansável,
susceptível de todos os ardis, do que rival num jogo honesto), a
luta desenrola-se contra um outro. Atlético, o combate impõe um
modo de relação de si consigo mesmo. Belicoso, é uma relação
com um elemento irredutível de alteridade.
AS'Confissoes da Carne 245

Quem é este outro, e contra quem deve ser o combate travado?


A segunda parte das Instituições (capítulos V-XII) enumera as
oito formas de combate necessárias e os oito adversários: gula,
fornicação, avareza, cólera, tristeza, acédia, vangloria, orgulho.
Reconhecemos aqui um esboço do quadro que se tornará mais
tarde o dos sete pecados capitais238. Mas, tal como não devemos
confundir pecado capital e pecado mortal, não devemos ver nos
oito adversários designados por Cassiano uma espécie de código
dos actos a não cometer ou das leis cuja transgressão será punida.
Nada aqui há de estrutura ou valor jurídico. Devemos ter presente
que esta lista de Cassiano deriva directamente de Evágrio. Ora,
este não procurava traçar um quadro das faltas ou dos interditos,
queria estabelecer uma tipologia dos pensamentos. “Oito”, dizia
ele, “são os pensamentos genéricos.”239 E estes pensamentos, na
medida em que vêm agitar a alma, perturbar a sua tranquilidade
ou toldar o seu olhar, são-lhe insinuados pelos demônios: daimo-
niôdeis logismoi. Não depende pois de nós, mas dos demônios que
nos assaltem. É de nós, em contrapartida, que depende o facto de
se demorarem ou não, suscitarem ou não paixões240.
Cassiano não emprega o termo “demônio” para designar os oito
adversários contra os quais se subdivide o combate espiritual.
Chama-lhes “espírito” (spiritus'): espírito de gula, espírito de for­
nicação, espírito de avareza, etc. Os seus recursos à grande demo-
nologia, que era tão importante no monaquisino egípcio, são bas­
tante discretos. Mais do que nas Instituições, é nos textos mais
especulativos das Conferências que dá, não o sistema geral dessa
demonologia, [mas] as indicações indispensáveis à compreensão
do que são aqueles espíritos, quais são a origem e os modos de
acção daquelas “forças adversas”241. Não devemos crer que pene­

238 Sobre a história destas listas dos pecados capitais, cf. A. GUILLAUMONT,
[“Introduction” no volume I do Traite pratique d’Evagre le Pontique, pp. 67
e sgs.].
239 EVÁGRIO PÔNTICO, Tratado Prático, 6.
240 [Ibid.]
241 [J. CASSIANO, Conferências, VIII, 13.]
246 Michel Foucault

trem na própria alma e nela se instalem. Há decerto entre eles e a


alma humana parentesco e semelhança de natureza, mas a alma é
impenetrável. Os espíritos não podem senão instalar-se o mais pró­
ximo possível dela, quer dizer, num corpo, e mais facilmente num
corpo enfraquecido que lhes dá lugar. A partir desta inserção ma­
terial, suscitam no corpo movimentos que, por seu turno, induzem
pensamentos, imagens, recordações, etc. Insidiosamente estes pen­
samentos fazem o seu caminho na alma ainda mais perigosamente
pelo facto de a sua origem se esconder, podendo cada um de nós
imaginar que é de si mesmo que vêm. Mas não é tudo: o demônio
pode ver como reage a alma a tais insinuações. Não que o seu olhar
possa penetrar no interior da alma, mas, emboscado no corpo, pode
observar, pelos movimentos que nele se produzem, de que maneira
a alma acolhe ou rejeita as sugestões que lhe faz. Pode portanto
continuá-las, intensificá-las, modificá-las; pode também mudar in­
teiramente os seus ataques, tentar, depois de um “género” de pen­
samentos, uma categoria completamente diferente, etc. Trata-se em
suma de um jogo complexo entre a alma e o seu adversário, em que
os pensamentos são enviados, repetidos, aceites, de novo relança­
dos por intermédio do corpo que lança e recebe movimentos. Nes­
tes o Inimigo detecta sinais que guiam a sua acção, e é neles tam­
bém que a alma deve reconhecer os sinais da presença do seu
adversário. O combate espiritual é pois indissociavelmente con­
fronto com o outro, dinâmica de movimentos que passam da alma
ao corpo e inversamente, tarefa enfim de decifração procurando
captar o que se esconde sob as aparências de si mesmo.
Quanto ao termo “combate”, se é idealmente definido pela tran­
quilidade da alma, a sua realidade é ambígua. Cassiano evoca
efectivamente a possibilidade de se chegar a um estado em que os
assaltos do Inimigo, após tantos fracassos, terão enfim cessado. E
cita certas personagens santas que alcançaram esse cume. Mas,
como já vimos242, tal estado não pode ser considerado nunca nem
como um direito adquirido, nem como uma posição inexpugnável.

242 [Cf. supra, pp. 236-237.]


. As Confissões da Carne 247

Vários caíram de entre os que se sentiam abrigados e porque se


criam abrigados. Mais precisamente, porque criam que essa pro­
tecção, era a si mesmos, aos seus exercícios, ao seu progresso e à
sua força que a deviam. De facto, era a sua confiança que os expu­
nha, a sua segurança que os tornava frágeis. Aqueles contra os
quais o Inimigo já nada pode são os que sabem que nada podem
: contra o Inimigo se Deus não vier em seu auxílio: “A experiência
e os testemunhos inumeráveis da Escritura persuadem-nos sobeja-
mente que as nossas forças humanas, se não se apoiassem sobre o
| - socorro que só Deus pode der, não poderíam vencer tão poderosos
¿ inimigos, e que é a ele que devemos referir a cada dia toda a hon-
l ■ ra das nossas vitórias.”243 A partir daqui os assaltos dos pensamen-
| tos maus iluminam-se de um valor completamente diferente: se se
A apaziguassem, ou até mesmo fossem sempre sem vigor, a alma
* não tardaria a adormecer na sua confiança em si mesma ou a
' orgulhar-se da presunção de estar fora do seu alcance. Seria então
■ que a força adversa poderia, por surpresa, vencê-la sem lhe deixar
- sequer a possibilidade de resistir. Há portanto um valor positivo na
permanência e na intensidade do combate. Devemos por isso ver,
nesta perpétua e sensível ameaça do mal, um benefício. Logo, um
efeito da beneficência de Deus. A guerra que nos atravessa, “digo
que é o efeito de uma providência divina. [...] Assim, a guerra que
uma disposição do criador acende em nós tem de certa maneira a
l sua utilidade: excita-nos; força-nos a tornarmo-nos melhores; e se
>, ’ chegasse a acabar, veriamos suceder-lhe uma paz funesta”244. Cas-
siano acaba assim por lamentar os que são castos por natureza: a
tepidez espia-os. “Livres da lei da carne, crêem não ter necessida­
de nem do labor da abstinência nem da contrição do coração. A
sua segurança amolece-os, e nunca os vemos afadigarem-se a
1 buscar em vão ou a possuir a perfeição do coração, nem a purifica­
rem-se sequer dos vícios do espírito.”245 Paradoxo fundamental do
248 Michel Foucault

combate espiritual: só pode alcançar o seu termo continuando; se


se interrompe, corre o risco de conduzir à derrota. As suas penas,
o seu labor, os seus sofrimentos são um bem indispensável. A sua
recompensa na tranquilidade seria um perigo temível. Não pode­
mos travá-lo sem nos fiarmos inteiramente em Deus, e quem re­
pousasse sobre essa força, sem se bater com todas as forças de si
mesmo, seria por ela abandonado246.
Assim aparece o papel essencial da noção de tentação. Também
aqui, não foi a espiritualidade monástica a introduzir a sua ideia
complexa. Mas é certo que lhe conferiu um destino singularmente
importante e que em torno dela organizou alguns dos elementos
mais decisivos da sua tecnologia. A tentação de maneira nenhuma
é uma categoria jurídica: não é nem uma falta, nem o começo de
uma falta, nem sequer a intenção de a cometer. É antes de mais um
elemento dinâmico nas relações entre o exterior e o interior da
alma: é a insinuação na alma de um pensamento que lhe vem de
uma força diferente de si mesma. Não há tentação a não ser porque
este pensamento está já presente na alma, é pensamento desta al­
ma; mas é nela o traço de um movimento que vem de outro lugar,
o efeito de uma vontade estranha, é feita na alma de um rasto que
remete para um outro. É em seguida um episódio dramático no
combate, uma batalha ou fase da batalha que pode ser ganha ou
perdida: a alma pode deixar-se surpreender e invadir por ela, ou
pelo contrário repeli-la e vencê-la; a tentação pode arrastar consi­
go o desejo, ou pelo contrário suscitar a vontade ardente de a
afastar e de nos afastarmos dela. Por fim, é objecto de uma análi­
se necessária: porque, se a tentação é de facto um assalto contra a
alma, violento ou quase imperceptível, frontal ou insidioso, esse
assalto pode vir do Diabo (não sem que Deus permita que o Ini­
migo possa assim perdê-la) ou pode vir de Deus (não sem que
Deus procure por esse meio pôr à prova a alma, exercitá-la e
reforçá-la, logo, salvá-la). No coração da tentação há sempre um
segredo por levantar: Satanás pode esconder-se sob as aparências

246 Sobre tudo isto, cf, [nota incompleta].


As Confissões da Carne 249

do bem, fazendo intervir as astúcias maléficas da ilusão, mas a


vontade e a beneficência de Deus estão sempre presentes nos pe­
rigos que a alma corre, ainda que esta, na sua cegueira, disso não
se aperceba.
De facto, e trata-se de um facto importante, na formação da
ética cristã, não é em torno da categoria de falta, ainda que alar­
gada, ainda que interiorizada, que o cristianismo desenvolveu as
tecnologias da alma ou de si mesmo, mas em torno da noção de
■tentação, que é ao mesmo tempo uma unidade dinâmica nas rela­
ções de si mesmo com o exterior, uma unidade táctica de recuo ou
de rejeição, de geração ou de expulsão, uma unidade de análise
que reclama, na reflexão de si sobre si mesmo, o reconhecimento
do outro e das figuras interiores que o mascaram.
O tema da castidade encontra-se assim enquadrado entre o prin­
cípio de uma pureza de coração que o liga ao mesmo tempo ao
objectivo da contemplação divina e à tarefa do conhecimento, e o
princípio de um combate espiritual que o liga, através da noção de
tentação, à exigência da decifração do outro nos segredos da alma.

O combate da castidade é analisado por Cassiano no sexto ca­


pítulo das Instituições (“Do espírito de fornicação”) e em várias
de entre as Conferências', a quarta sobre “a Concupiscência da
carne e do Espírito”, a quinta sobre os “Oito principais vícios”, a
duodécima sobre a “castidade” e a vigésima segunda sobre as
“Ilusões nocturnas”. Figura na segunda posição numa lista de oito
combates247, sob a forma de uma luta contra o espírito de fornica­
ção. Quanto a esta fornicação, subdivide-se por seu turno em três
subcategorias248. Quadro de aparência muito jurídica se o aproxi­
marmos dos catálogos de faltas como os que encontraremos quan­

247 Os sete outros, como já vimos, são a gula, a avareza, a ira, a [tristeza], a acédia,
a vangloria e o orgulho.
248 Cf. infra, pp. 253-255.
250 Michel Foucault

do a Igreja medieval organizar o sacramento da penitência segun­


do o modelo de uma jurisdição. Mas as especificações propostas
por Cassiano têm sem dúvida outro sentido.
Examinemos, para começar, o lugar da fornicação entre os ou­
tros espíritos do mal.

1. Cassiano completa o quadro dos oito espíritos do mal através


de agrupamentos internos. Estabelece pares de vícios que têm
entre eles relações particulares (de “aliança”) e de “comunida­
de”249: orgulho e vangloria, preguiça e acédia, avareza e ira. A
fornicação faz par com a gula. Por várias razões: porque são dois
vícios “naturais”, que são inatos em nós e dos quais nos é por
conseguinte muito difícil desfazermo-nos; porque são dois vícios
que implicam a participação do corpo, não só para se formarem,
mas para efectuarem o seu objectivo; porque, finalmente, há entre
eles ligações de causalidade muito directa: é o excesso de alimen­
to que acende no corpo o desejo da fornicação250. E, ou por estar
assim fortemente associado à gula, ou pelo contrário devido à sua
natureza própria, o espírito de fornicação desempenha, por com­
paração com os outros vícios entre os quais se conta, um papel
privilegiado.
Antes de mais, na cadeia causai, Cassiano sublinha o facto de
os vícios não serem independentes uns dos outros, ainda que cada
um de nós possa ser atacado, de modo mais particular, por um ou
outro251. Um vector causai liga-os uns aos outros: há de início a
gula, que nasce com o corpo e acende a fornicação; depois, este
primeiro par engendra a avareza, entendida como apego aos bens
terrenos; a qual faz nascer as rivalidades, as disputas e a ira; do
que resulta o abatimento da tristeza, que provoca o desgosto pela
vida monástica no seu todo e a acédia. Este encadeamento supõe
que nunca poderemos vencer um vício se não tivermos triunfado

249 Ibid., V, 10.


250 J. CASSIANO, Instituições, N, e Conferências, V.
251 Conferências,\, 13-14.
^As Confissões da Carne 251

sobre aquele no qual se apoia. “A derrota do primeiro apazigua o


que se lhe segue; vencido aquele, este enfraquece sem mais la­
bor.”252 No princípio dos outros, o par gula-fornicação, como “uma
árvore gigante que estende até longe a sua sombra”253, deve ser
' desenraizado. Daí a importância ascética do jejum como meio de
vencer a gula e de cortar prontamente o caminho à fornicação. Tal
é a base do exercício ascético, pois é aqui que começa a cadeia
causai.
O espírito de fornicação encontra-se também numa posição
dialéctica singular na sua relação com os últimos vícios e sobretu­
do com o orgulho. Com efeito, para Cassiano, orgulho e vangloria
’ não pertencem à cadeia causal dos outros vícios. Longe de serem
engendrados por eles, são provocados pela vitória que sobre eles
se obtém254: orgulho “carnal” perante os outros pela exibição que
alguém faz dos seus jejuns, da sua castidade, da sua pobreza, etc.;
orgulho “espiritual” que faz crer que um tal progresso se deve
apenas aos méritos próprios255. Vício da derrota dos vícios ao qual
se segue uma queda ainda mais pesada por nos fazer cair de mais
alto. E a fornicação, o mais vergonhoso de todos os vícios, o que
mais rubor causa, constitui a consequência do orgulho — castigo
mas também tentação, provação que Deus envia ao presunçoso
para lhe lembrar que a fraqueza da carne continua a ameaçá-lo se
a graça não vier em seu socorro. “Porque alguém gozou por muito
tempo da pureza do coração e do corpo, por uma consequência
natural, [...] no mais fundo de si mesmo, glorifica-se em certa
medida [...]. Mas o Senhor aparenta, para seu bem, abandoná-lo: a
pureza que lhe dava tanta segurança começa a turvar-se; no meio
da prosperidade espiritual, ele vê-se vacilar.”256 No grande ciclo

252 Ibid., V, 10.


253 [Ibid.]
254 Ibid.
255 J. CASSIANO, Instituições, XII, 2.
256 J. CASSIANO, Conferências, XII, 6. Ver exemplos da queda no espírito de
fornicação, devido à presunção e ao orgulho, in Conferências, II, 13; e sobretudo
’ em J. CASSIANO, Instituições, XII, 20 e 21, onde as faltas contra a humildade
252 Michel Foucault

dos combates, no momento em que a alma já não lutar senão con­


tra si mesma, os aguilhões da carne fazem sentir-se de novo, mar­
cando assim o inacabamento necessário desta luta e ameaçando-a
de um recomeço perpétuo.
Finalmente, a fornicação tem relativamente aos outros vícios
um certo privilégio ontológico, que lhe confere uma importância
ascética particular. Tem, com efeito, como a gula, as suas raízes
no corpo. Impossível vencê-la sem o submeter a macerações. En­
quanto a ira ou a tristeza se combatem “simplesmente pela indús­
tria da alma”, ela não pode ser desenraizada sem “a mortificação
corporal, as vigílias, os jejuns, o trabalho que quebra o corpo”257.
O que não exclui, pelo contrário, o combate que a alma deve travar
contra si mesma, uma vez que a fornicação pode nascer de pensa­
mentos, de imagens, de recordações: “Quando o demônio pela sua
astúcia subtil insinuou no nosso coração a recordação da mulher,
começando pela nossa mãe, as nossas irmãs, as nossas parentes ou
certas mulheres piedosas, devemos o mais prontamente possível
expulsar de nós essa recordação, temendo que, se nela nos demo­
rarmos demasiado, o tentador tome disso ocasião para insensivel­
mente nos fazer pensar depois noutras mulheres.”258 No entanto, a
fornicação apresenta uma diferença capital relativamente à gula.
O combate contra esta última deve ser travado com mesura, pois
não podemos renunciar completamente ao alimento: Devemos
“prover às exigências da vida: [...] isto, por temermos que o corpo,
esgotado por nossa culpa, deixe de poder levar a cabo os exercí­
cios espirituais necessários”259. Esta inclinação natural pela comi­
da, devemos mantê-la à distância, tomá-la sem paixão, não temos
de a arrancar: possui uma legitimidade natural; negá-la totalmen­
te, quer dizer, até à morte, seria “carregar a alma de um crime”260.

que devemos a Deus são sancionadas pelas tentações mais humilhantes, as de um


desejo contra usum naturae e da imundície de uma “paixão impura”.
257 J. CASSIANO, Conferências, V, 4.
258 J. CASSIANO,Instituições, VI, 13.
259 Ibid., V, 8.
260 Conferências, V, 19.
>As Confissões da Carne 253

Em contrapartida, não há limite na luta contra o espírito de forni-


cação, tudo o que pode levar-nos a ele deve ser extirpado e nenhu­
ma exigência natural pode justificar, neste domínio, a satisfação
de uma necessidade. Trata-se pois de fazer morrer inteiramente
uma inclinação cuja supressão não acarreta a morte do nosso cor-
‘ po. A fornicação é entre os oito vícios o único que é ao mesmo
tempo inato, natural, corporal na sua origem e que é necessário
' destruir inteiramente como devemos fazer com esses vícios da
alma que são a avareza ou o orgulho. Mortificação radical por
conseguinte que nos deixa viver no nosso corpo libertando-nos da
carne. “Sair da carne permanecendo embora no corpo.”261 É a este
para lá da natureza, na existência terrestre, que a luta contra a
fornicação nos dá acesso. E “arranca ao lodo terreno”. Faz-nos
viver neste mundo uma vida que não é deste mundo. Porque é a
mais radical, trata-se de uma mortificação que nos traz, já neste
,mundo, a mais alta promessa: “na carne frágil”, confere “a cidada-
?nia que os santos têm a promessa de possuir uma vez livres da
corruptibilidade carnal”262.
Vemos pois como a fornicação, sendo embora um dos oito ele­
mentos do quadro dos vícios, ocupa relativamente aos outros uma
posição particular: à cabeça do encadeamento causai, no princípio
do recomeço das quedas e do combate, num dos pontos mais difí­
ceis, e mais decisivos, do combate ascético.

| 2. Cassiano na quinta Conferência divide o vício da fornicação


, em três espécies. A primeira consiste na “conjunção dos dois se­
xos” (commixtio sexus utruisquéf, a segunda consuma-se “sem
■ ' contacto com a mulher” (ahsqtte femíneo tactu) — o que valeu a
Onan a sua condenação; a terceira é “concebida pelo espírito e
pelo pensamento”263. Quase termo a termo a mesma distinção é
retomada na décima segunda Conferência: a conjunção carnal

261 Instituições, VI, 6.


262 Ibid.
1263 Conferências, V, 11.
254 Michel Foucault

(carnalis commixlio), a que Cassiano dá aqui o nome de fornicario


no sentido restrito; depois a impureza, immunditia, que se produz
sem contacto com uma mulher, quando se dorme ou durante a
vigília, e que é devida à “incúria de um espírito sem circunspec­
ção”264; enfim, a libido que se desenvolve nos “recônditos da al­
ma”, e sem que haja “paixão corporal” (sine passione corporisf65.
Esta especificação é importante porque só ela permite compreen­
der o que entende Cassiano pelo termo geral fornicario, do qual
não dá de resto qualquer definição de conjunto. Mas é importante
sobretudo pelo uso que Cassiano faz destas três categorias e que é
muito diferente do que podíamos encontrar em numerosos textos
anteriores.
Existia com efeito uma trilogia tradicional dos pecados da car­
ne: o adultério, a fornicação (que traduzia a palavra grega porneia
e designava as relações sexuais fora do casamento) e a corrupção
de crianças. São estas três categorias, em todo o caso, que encon­
tramos na Didakhê’. “Não cometerás adultério, não cometerás
fornicação, não seduzirás rapazes novos.”266 São elas que encon­
tramos na carta de Barnabé: “Não cometas nem fornicação nem
adultério, não corrompas as crianças.”267 Sucedeu com frequência
posteriormente que só os dois primeiros termos fossem retidos
— designando a fornicação todas as faltas sexuais em geral e o
adultério as que transgridem a obrigação de fidelidade no casa­
mento268. Mas de todas as maneiras era perfeitamente habitual
acompanhar esta enumeração de preceitos respeitantes à cobiça do
pensamento ou do olhar, ou a tudo o que pode conduzir à consu-

264 Ibid.,XíI,2.
265 Ibid. Cassiano apoia a sua tripartição numa passagem de [SÃO PAULO], Epís­
tola aos Colossenses, 3,5.
266 Didakhê, II, 2.
267 Epístola do Pseudo-Bamabé, XIX, 4. Um pouco acima (X, 6-8), a propósito
dos interditos alimentares, o mesmo texto interpreta a interdição de comer hiena
como proibição do adultério, a de comer lebre como interdição da sedução de
crianças, a de comer doninha como condenação das relações bucais.
268 Assim SANTO AGOSTINHO, Sermão, 56,12.
As Confissões da Carne 255

inação de um acto sexual interdito: “Não sejas cobiçoso, porque a


' cobiça leva à fornicação, abstém-te dos dizeres obscenos e dos
" olhares ousados, pois tudo isso engendra adultérios.”269
¿ít'A análise de Cassiano tem as duas particularidades seguintes:
- não dar um lugar à parte ao adultério, que se insere na categoria
da fornicação em sentido restrito, e sobretudo não atender senão
às duas outras categorias. Em parte nenhuma, nos diferentes textos
■ em que evoca o combate da castidade, Cassiano fala das relações
.' sexuais propriamente ditas. Em parte nenhuma são considerados
os diferentes “pecados” possíveis segundo o acto cometido, o par­
ceiro com quem é cometido, a sua idade, o seu sexo, as relações de
parentesco que se possam ter com ele. Nenhuma das categorias
. que constituirão na Idade Média a grande codificação dos pecados
de luxúria aparece aqui. Sem dúvida Cassiano, dirigindo-se a
monges que tinham feito o voto de renunciar a toda a relação se-
; xual, não tinha de retomar explícitamente esse tema preliminar.
Devemos notar, contudo, que sobre um ponto importante do ceno­
bio, e que suscitara em Basilio de Cesareia ou em Crisóstomo re­
comendações precisas270, Cassiano se contenta com alusões furti­
vas: “Que ninguém, sobretudo entre os mais jovens, se demore
com outro, ainda que por pouco tempo, ou se retire com ele ou se
dêem a mão.”271 Tudo se passa como se Cassiano não se interes­
sasse senão pelos dois últimos termos da sua subdivisão (concer­
nente ao que se passa sem relação sexual e sem paixão do corpo),

269 Didakhê, UI, 3.


1 270 BASÍLIO DE CESAREIA, Exortação a Renunciar ao Mundo, 5: “Evita todo
o comércio, toda a relação com os jovens confrades da tua idade. Foge deles como
do fogo. Numerosos são, por desgraça, aqueles que por seu intermédio o inimigo
incendiou e entregou às chamas eternas.” Cf. as precauções indicadas nas Grandes
Regras (34) e nas Regras Breves (220). Ver igualmente SÃO JOÃO CRISÓSTO­
MO, Contre les détracteurs de la vie monastique (P. G., t. 47, col. 319-386).
271 J. CASSIANO, Instituições, II, 15. Os que infringem esta lei cometem uma
falta grave e são suspeitos de “conjurationis pravique consilü". Serão estas pa­
lavras uma maneira alusiva de designar um comportamento amoroso ou visarão
antes o perigo de relações privilegiadas entre membros da mesma comunidade? As
mesmas recomendações em Instituições, IV, 16.
256 Michel Foucault

como se elidisse a fornicação como conjunção entre dois indiví­


duos e não concedesse importância senão a elementos cuja conde­
nação anteriormente não tinha mais do que um valor de acompa­
nhamento por comparação com a dos actos sexuais propriamente
ditos.
Mas, se as análises de Cassiano omitem a relação sexual, se se
desenvolvem num mundo tão solitário e numa cena tão interior,
não é simplesmente por uma razão negativa. É que o essencial do
combate da castidade visa um alvo que não é da ordem do acto ou
da relação: reporta-se a uma outra realidade que não a da relação
sexual entre dois indivíduos. Uma passagem da duodécima Confe­
rência permite que nos apercebamos do que é esta realidade.
Cassiano caracteriza nela as seis etapas que marcam o progresso
na castidade. Ora, como se trata nesta caracterização não de mos­
trar a castidade ela mesma, mas de relevar os sinais negativos que
permitem reconhecer os seus progressos — os diferentes traços de
impureza que sucessivamente desaparecem —, é-nos assim indica­
do aquilo contra que nos devemos bater no combate da castidade.
Primeira marca dos ditos progressos: o monge, quando desper­
to, não é “quebrado” por um “ataque da carne” — imougnatione
carnali non eliditur. Portanto, ausência de irrupção na alma de
movimentos que levem a melhor sobre a vontade.
Segunda etapa: se se produzem no espírito “pensamentos volup­
tuosos” (voluptariae cogitationes), aquele não se “demora” neles.
Não pensa naquilo que involuntariamente e contra si mesmo lhe
acontece então pensar272.
O terceiro estádio chega quando uma percepção vinda do mun­
do exterior deixa de poder provocar a concupiscência: o olhar
pode cruzar-se com uma mulher sem experimentar cobiça alguma.
Na quarta etapa, deixa de se experimentar, em estado de vigília,
até mesmo o movimento da carne mais inocente. Quererá Cassia-

272 O termo usado por Cassiano para designar o facto de o espírito se demorar
em tais pensamentos é immorari. A delectado morosa será, mais tarde, uma das
categorias importantes na ética sexual da Idade Média.
s Confissões da Carne 257

no dizer que na carne deixa de produzir-se seja que movimento


for? E que se exerce sobre o próprio corpo um domínio total?
’ parece pouco verosímil uma vez que por outro lado insiste muitas
vezes na permanência dos movimentos involuntários do corpo. O
; termo que utiliza — perferre — refere-se sem dúvida ao facto de
í' esses movimentos não serem susceptíveis de afectar a alma e de
esta não ter de os suportar.
Quinto grau: “Que, se o assunto de uma conferência ou a con­
sequência necessária de uma leitura transmite a ideia de geração
humana, o espírito não se deixe aflorar pelo mais subtil consenti­
mento no acto voluptuoso, mas o considere com um olhar tranqui­
lo ê puro, como uma obra bem simples, um ministério necessário
atribuído ao género humano, e não seja afectado pela sua lembran­
ça mais do que se pensasse no fabrico de tijolos ou no exercício de
qualquer outro ofício.”
Alcançamos, enfim, o último estádio quando “a sedução dos
fantasmas femininos não causa ilusão durante o sono. Ainda que
não creiamos este engano culpado de pecado, é no entanto indício
de uma cobiça que se esconde ainda nas medulas”273.
Nesta designação dos diferentes traços do espírito de fornicação
'que se apagam à medida que a castidade progride, não há pois
relação alguma de si com um outro, não há acto algum, e nem
sequer a intenção de o cometer. Não há fornicação no sentido res­
trito do termo. Deste microcosmos da solidão estão ausentes os
dois elementos principais em torno dos quais girava a ética sexual
não só dos filósofos antigos, mas de um cristão como Clemente de
Alexandria — pelo menos no livro II de O Pedagogo', a conjunção
de dois indivíduos (sunousia) e o prazer do acto (aphrodisia). Os
elementos postos em jogo são os movimentos do corpo e os da
alma, as imagens, as percepções, as recordações, as figuras do
sonho, o curso espontâneo do pensamento, o consentimento da
vontade, a vigília e o sono. E desenham-se aqui dois pólos que
deveremos efectivamente ver que não coincidem com o corpo e a

273 Conferências, XII, 7.


258 Michel Foucault

alma: o pólo involuntário que é quer o dos movimentos físicos,


quer das percepções que se impõem, quer das recordações e das
imagens que sobrevêm e que, propagando-se no espírito, investem,
chamam e atraem a vontade; e o pólo da própria vontade que acei­
ta ou repele, se afasta ou se deixa cativar, se demora, consente. De
um lado, pois, uma mecânica do corpo e do pensamento que, ludi­
briando a alma, se carrega de impureza e pode conduzir até à
polução; e, do outro, um jogo do pensamento consigo mesmo.
Encontramos aqui as duas formas de “fornicação” no sentido am­
plo que Cassiano definira a par da conjunção dos sexos e às quais
reservou toda a sua análise: a immunditia que, na vigília ou no
sono, surpreende uma alma incapaz de se vigiar e conduz, fora de
todo o contacto com o outro, à polução; e a libido que se desenro­
la nas profundezas da alma e a propósito da qual Cassiano lembra
a proximidade das palavras libido — libet2™.
O trabalho do combate espiritual e os progressos da castidade
cujas seis etapas Cassiano descreve podem então compreender-se
como uma tarefa de dissociação. Estamos muito longe da econo­
mia dos prazeres e da sua limitação estrita aos actos permitidos;
longe igualmente da ideia de uma separação tão radical quanto
possível entre a alma e o corpo. Trata-se de um perpétuo labor
sobre o movimento do pensamento (quer prolongue e repercuta os
do corpo, quer os induza), sobre as suas formas mais rudimenta­
res, sobre os elementos que podem desencadeá-lo, de maneira a
que o sujeito nunca em tal se implique, nem mesmo através da
forma mais obscura e mais aparentemente “involuntária” da von­
tade. Os seis degraus segundo os quais, como vimos, a castidade
progride representam seis etapas nesse processo que deve desla-
çar a implicação da vontade. Desfazer a implicação nos movi­
mentos do corpo — é o primeiro degrau. Depois desfazer a im­
plicação imaginativa (não nos demorarmos no que temos no
espírito). Depois desfazer a implicação sensível (deixarmos de
experimentar os movimentos do corpo). Depois desfazer a impli-

274 Ibid., V, 11; e XII, 2. Cf. supra, pp. 250-253.


As Confissões da Carne 259

cação representativa (deixarmos de pensar nos objectos como


objectos de desejo possível). E finalmente desfazer a implicação
onírica (o que pode haver de desejo nas imagens todavia involun­
tárias do sonho). A esta implicação, da qual o acto voluntário ou
7 a vontade explícita de cometer um acto são a forma mais visível,
mas tão condenável que deve encontrar-se excluída quando o tra­
balho ascético começa, a esta implicação do sujeito, ainda mais
temível por se produzir naquilo que nele é menos voluntário,
Cassiano dá o nome concupiscencia. É contra ela que se orienta
o combate espiritual, e o esforço de dissociação, de desimplica-
ção, que visa.
• Assim se explica o facto de, ao longo de toda essa luta contra o
espírito de “fornicação” e pela castidade, o problema fundamental,
• e ,por assim dizer único, seja o da polução — dos seus aspectos
voluntários ou das complacências que a chamam às formas invo­
luntárias durante o sono ou no sonho. Importância tão grande que
! Cassiano fará da ausência de sonhos eróticos e de polução noctur-
' na o sinal de que se atingiu o estádio mais alto da castidade. Volta
com frequência ao tema: a prova de “que atingimos essa pureza
' será que nenhuma imagem nos engane quando estamos em repou­
so e nos distendemos no sono”275, ou ainda: “Tal é o fim da inte­
gridade e a sua prova definitiva: que nenhuma excitação voluptuo­
sa sobrevenha durante o nosso sono, e que não tenhamos
consciência das poluções às quais a natureza nos constrange.”276
Toda a vigésima segunda Conferência é consagrada à questão das
“poluções da noite”, e à necessidade de “aplicarmos toda a nossa
força para nos livrarmos delas”. E, por várias vezes, Cassiano evo­
ca algumas personagens santas como Sereno que tinham alcança-
"do um grau tão alto de virtude que não se achavam nunca expostas
•a semelhantes inconvenientes277.

275 J. CASSIANO, Instituições, VI, 10.


276 Ibid., VI, 20.
277 J. CASSIANO, Conferências, VII, 1; XII, 7. Outras alusões ao mesmo tema
em J. CASSIANO, Instituições, II, 13; III, 5.
260 Michel Foucault

Dir-se-á que, numa regra de vida em que a renúncia a toda a


vida sexual era fundamental, é inteiramente lógico que um tal te­
ma se torne tão importante. Lembrar-se-á também o valor conce­
dido, em grupos mais ou menos directamente inspirados pelo pi­
tagorismo, aos fenómenos do sono e do sonho como reveladores da
qualidade da existência e às purificações que devem garantir a sua
serenidade. Por fim e sobretudo, devemos pensar que a polução da
noite se tornava um problema em termos de pureza ritual; e é pre­
cisamente este problema que é ocasião da vigésima segunda Con­
ferência: pode alguém aproximar-se dos “santos altares” e [parti­
cipar no278] “banquete salutar”, depois de se ter maculado durante
a noite?279 Mas, se todas estas razões podem explicar a existência
de uma tal preocupação entre os teorizadores da vida monástica,
não podem dar conta do lugar exactamente central que a questão
da polução voluntária-involuntária ocupou em toda a análise dos
combates da castidade. A polução não é simplesmente objecto de
um interdito mais intenso do que os outros, ou mais difícil de ob­
servar. É um “analisador” da concupiscência, na medida em que é
possível determinar, ao longo de tudo o que a torna possível, a
prepara, a incita e por fim a desencadeia, que é, no meio das ima­
gens, das percepções, das recordações da alma, parte do voluntá­
rio e do involuntário. Todo o trabalho do asceta sobre si mesmo
consiste em não deixar nunca envolver-se a sua vontade nesse
movimento que vai do corpo à alma e da alma ao corpo e sobre o
qual essa vontade pode ter preensão, para o favorecer ou para o
deter, através do movimento do pensamento. As cinco primeiras
etapas dos progressos da castidade constituem os desprendimentos
sucessivos e cada vez mais subtis da vontade no que se refere aos
movimentos cada vez mais tênues que podem conduzir à polução.
Resta portanto a última etapa. A que a santidade pode alcançar: a
ausência dessas poluções “absolutamente” involuntárias que têm lu-

278 [Manuscrito: “aproximar-se do”, corrigido em 1982 (“O Combate da Castida­


de”) por “participar no”.]
279 Ibid., XXII, 5.
I
fet-
H As Confissões da Carne 261

gar durante o sono. Cassiano faz, apesar de tudo, notar que, por se
produzirem desse modo, nem todas são forçosamente involuntarias.
|\Um excesso de alimentação, pensamentos impuros durante o dia são
/ para elas uma espécie de consentimento, senão de preparação. Dis-
! tingue também a natureza do sonho que a acompanha e o grau de
- ■ impureza das imagens. Aquele que é assim surpreendido erraria
í descarregando a causa sobre o corpo e o sono: “É sinal de um mal
que lavrara interiormente, o qual não foi a hora da noite a fazer nas­
cer, mas que, enterrado no mais fundo da alma, o repouso do sono
J2' faz aparecer à superfície, revelando a febre escondida das paixões
C que contraímos alimentando ao longo de dias pensamentos mal-
' sãos.”280 E, por fim, resta a polução sem qualquer traço de cumplici-
' dade, sem esse prazer que é prova de que nela se consente, sem o
acompanhamento sequer da mais pequena imagem onírica. Tal é,
f sem dúvida, o ponto a que pode chegar um asceta que se exercite
' suficientemente: a polução não é mais do que um “resto” em que o
sujeito já não toma seja que parte for. “Devemos pois esforçar-nos
por reprimir os movimentos da alma e as paixões da carne até que
. a carne satisfaça as exigências da natureza sem suscitar volúpia, de-
'f sembaraçando-se da superabundância dos seus humores sem qual-
, quer prurido malsão nem suscitar o combate pela castidade281. Uma
vez que não se trata senão de um fenómeno da natureza, só um poder
que é mais forte do que a natureza pode livrar-nos dele: é a graça. E
por isso que a não-polução é marca de santidade, o selo da mais alta
castidade possível, benefício que podemos esperar, não adquirir.
Pelo seu lado, o homem não deve menos do que manter-se, no
que a si mesmo se refere, num estado de perpétua vigilância quan­
to aos menores movimentos que podem produzir-se no seu corpo
ou na sua alma. Velar dia e noite, de noite pelo dia e de dia pen­
sando na noite que virá. “Como a pureza e a vigilância durante o
dia dispõem a ser casto durante a noite, assim também a vigilância
nocturna fortalece o coração e lhe prepara forças para que observe

280 J. CASSIANO, Instituições, VI, 11.


281 Ibid.,VI,22.
262 Michel Foucault

a castidade durante o dia.”282 Esta vigilância é a aplicação da “dis­


criminação” que já vimos283 estar no centro da tecnologia de si
mesmo tal como se desenvolveu na espiritualidade de inspiração
evagriana. O trabalho do moleiro que separa os grãos, do centu-
rião que reparte os soldados, do cambista que pesa, para as aceitar
ou rejeitar, as moedas, é o trabalho que o monge deve fazer sem
cessar sobre os seus próprios pensamentos a fim de reconhecer
quais de entre eles são portadores de tentação. Um tal trabalho
permitir-lhe-á separar os pensamentos segundo a sua origem,
distingui-los segundo a sua qualidade própria, e dissociar o objec-
to que neles é representado do prazer que poderia evocar. Tarefa
da análise permanente que cada um deve conduzir sobre si mesmo
e, através do dever de confissão, em relação com os outros284. Nem
a concepção de conjunto que Cassiano faz da castidade e da “for-
nicação”, nem a maneira como as analisa, nem os diferentes ele­
mentos que faz intervir aqui e que relaciona uns com os outros
(polução, libido, concupiscência) podem compreender-se sem refe­
rência às tecnologias de si por meio das quais caracteriza a vida
monástica e o combate espiritual que a atravessa.

De Tertuliano a Cassiano deveremos ver um reforço dos “inter­


ditos”, uma valorização mais acentuada da continência completa,
uma desqualificação crescente do acto sexual? Não é sem dúvida
nestes termos que o problema tem de ser posto.

282 Ibid., VI, 23.


283 Cf. supra, pp. 143-149.
284 Cf., na Conferência XXII, 6, o exemplo de uma “consulta” a propósito de
um monge que, sempre que se apresentava à comunhão, era vítima de uma ilusão
nocturna, e não se atrevia portanto a tomar parte nos santos mistérios. Os “mé­
dicos espirituais”, após interrogatório e discussões, diagnosticam que é o diabo
quem envia essas ilusões para impedir o monge de aceder à comunhão que deseja.
Abster-se era por isso cair na armadilha do diabo. Comungar era apesar de tudo
vencê-lo. Uma vez tomada esta decisão, o diabo deixou de ter razões para provocar
uma tal impureza proibitiva.
As Confissões da Carne 263

A organização da instituição monástica e o dimorfismo que se


,i estabelece assim entre a vida dos monges e a dos leigos introduzi-
, ram, no problema da renúncia às relações sexuais, mudanças im-
í portantes. Conduziram, de modo correlativo, ao desenvolvimento
de tecnologias de si bastante complexas. Assim apareceram, nesta
> prática da renúncia, uma regra de vida e um modo de análise que,
a despeito de continuidades visíveis, marcam em relação ao passa-
■ do importantes diferenças. Em Tertuliano o estado de virgindade
A implicava uma atitude exterior e interior de renúncia ao mundo,
completada por regras de apresentação, de conduta e de maneira
- de ser. Na grande mística da virgindade que se desenvolve a partir
do século ni, o rigor da renúncia (sobre o tema, já presente em
Tertuliano, da união com Cristo) inverte a forma negativa da con-
tinência em promessa de casamento espiritual. Em Cassiano, que,
. de novo, é testemunha muito mais do que inventor, produz-se co-
,■ mo que um desdobramento, uma espécie de retracção que abre
, toda a profundidade de uma cena interior.
>, Mas de maneira nenhuma se trata da interiorização de um ca­
tálogo de interditos, substituindo à proibição do acto a da intenção.
Trata-se da abertura de um domínio (cuja importância sublinha­
vam já textos como os de Gregorio de Nissa ou sobretudo de Ba­
silio de Ancira) que é o do pensamento, com o seu curso irregular
e espontâneo, com as suas imagens, as suas recordações, as suas
percepções, com os movimentos e as impressões que se comuni­
cam do corpo à alma e da alma ao corpo. O que está em jogo,
então, não é um código de actos permitidos ou proibidos, é toda
uma técnica destinada a vigiar, analisar e diagnosticar o pensa­
mento, as suas origens, as suas qualidades, os seus perigos, os seus
poderes de sedução, e todas as forças obscuras que podem
esconder-se sob o aspecto que ela apresenta. E se o objectivo é de
facto finalmente expulsar tudo o que é impuro ou indutor de im­
pureza, não pode ser alcançado senão por meio de uma vigilância
que nunca desarma, uma suspeita contra si mesmo da qual cada
um deve ser portador em toda a parte e a cada instante. É neces­
sário que a questão se mantenha sempre posta de maneira a detec­
264 Michel Foucault

tar tudo o que se pode esconder de “fornicação” secreta nos recón­


ditos mais profundos da alma.
Nesta ascese da castidade, podemos reconhecer um processo de
“subjectivação” que relega para longe uma ética sexual centrada
na economia dos actos. Mas devemos sublinhar imediatamente
duas coisas. Esta subjectivação é indissociável de um processo de
conhecimento que faz da obrigação de buscar e de dizer a verdade
de si mesmo uma condição indispensável e permanente de seme­
lhante ética. Se há subjectivação, esta implica uma objectivação
indefinida de si por si — indefinida no sentido em que, nunca
adquirida de urna vez por todas, não tem termo no tempo; e no
sentido em que deve ser levado sempre tão longe quanto possível
o exame dos movimentos de pensamento, por tênues e inocentes
que possam parecer. Por outro lado, esta subjectivação sob a forma
de busca da verdade de si efectua-se através de relações complexas
com os outros. E de várias maneiras: porque se trata de detectar
em si a força do Outro, do Inimigo, que em cada um se esconde
sob as aparências de si mesmo; porque se trata de travar contra
este Outro um combate incessante do qual não se pode sair vence­
dor sem o socorro da Omnipotência, que é mais poderosa do que
ele; porque, enfim, a confissão aos outros, a submissão aos seus
conselhos, a obediência permanente aos directores são indispensá­
veis a este combate.
A subjectivação da ética sexual, a produção indefinida da ver­
dade de si mesmo, a instauração de relações de combate e de de­
pendência com o outro fazem pois parte de um conjunto. Estes
elementos foram progressivamente elaborados no cristianismo dos
primeiros séculos, mas foram ligados de novo, transformados,
sistematizados, por meio das tecnologias de si desenvolvidas na
vida monástica.
CAPÍTULO III

Ser casado

I. O DEVER DOS ESPOSOS


II. O BEM E OS BENS DO CASAMENTO
[III. A LIBIDINIZACÁO DO SEXO]
O DEVER DOS ESPOSOS

1: Não se encontram no cristianismo antigo tratados do casamento


• c( imo se encontram tratados da virgindade; a vida matrimonial
não é, enquanto tal, objecto de uma elaboração que faria dela uma
prática específica e uma “profissão” dotada de um sentido espiri-
‘ lual particular. Não há arte, não há tekhnê da vida matrimonial, se
- exceptuarmos o capítulo de O Pedagogo acima estudado [pp. 27-
1 -51], e que já vimos como estava próximo da moral antiga. O que
‘ não quer dizer, decerto, que não haja reflexões sobre o próprio
“ princípio do casamento, sobre a sua legitimidade ou a sua aceita-
bilidade: todos os debates em torno do encratismo, todas as polé-
micas com os gnósticos e os movimentos dualistas são atravessa-
. dos por esta questão do casamento; o [terceiro] dos Stromata de
Clemente de Alexandria, como vimos, transmite um testemunho
■ precoce sobre a extensão destes debates, que sob formas diversas
se prolongaram nas épocas seguintes. Mas, se a questão do “direi­
to” ao casamento e do seu valor relativo por comparação com a
’’continência estrita e o celibato é posta desde muito cedo, não de­
semboca todavia sobre a constituição de uma arte da existência
matrimonial. É significativo, por exemplo, que. Tertuliano ponha o
problema do princípio do casamento no Adversus Marcionem —
quer dizer, num texto de contestação teórica contra um adversário
.. gnóstico — e que não dê conselhos sobre a vida matrimonial se­
268 Michel Foucault

não através dos textos que se reportam a maneiras de viver fora do


casamento, virgindade ou viuvez (De virginibus velandis, Ad
uxorem, Exhortado ad castitatem).
É sobretudo no fim do século iv que vemos desenvolverem-se
as reflexões e os textos destinados a guiar os cristãos casados na
sua vida conjugal e nas relações que mantêm enquanto esposos.
Muito mais nitidamente do que antes, o casamento desenha-se
como profissão cristã e as relações entre esposos tornam-se tam­
bém domínio de análise, de exercício, ao mesmo título, embora
com uma intensidade muito menor, que as relações de si consigo
mesmo na existência ascética. Esta evolução pode ser associada a
vários fenómenos.
Devemos ver nela, para começar, uma ligação com a valoriza­
ção extrema da vida monástica e da renúncia radical ao mundo, ao
mesmo tempo um efeito e um contrapeso. Perante as formas de
ascetismo intenso que ameaçavam deslocar o centro de gravidade
do cristianismo para fora das comunidades urbanas, para longe de
toda a vida pública, e para o lado de grupos restritos de eleitos,
houve, na segunda metade do século iv, um esforço, particular­
mente sensível no Oriente, onde o monaquismo se desenvolvera,
no sentido de reforçar a significação religiosa da vida quotidiana,
e atenuar assim o dimorfismo que ameaçava estabelecer-se nas
modalidades da vida cristã. Já não bastava dizer que a continência
não era de preceito e que não era indispensável à salvação, era
além disso necessário fazer aparecer como acessíveis os valores
àqueles que conduziam a vida do mundo, e portanto as regras a
que eles deviam submeter-se. João Crisóstomo insiste muitas ve­
zes na ideia de que não deve haver diferença fundamental entre a
vida de asceta e a do homem casado: “Um homem que está no
mundo não deve ter sobre o monge senão uma vantagem: a de
poder coabitar com a sua esposa legítima. Tem esse direito, mas,
de resto, tem o mesmo dever a cumprir que o monge.”1

1 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, VII Homilía sobre a Epístola aos Hebreus, 4. Cf.
igualmente Contra os Inimigos da Vida Monástica, III, 14.
r
As Confissões da Carne 269

Este texto é revelador de um movimento que faz refluir para a


vida do mundo um conjunto de valores, de preocupações e de prá­
ticas que tinham tomado uma extensão particular na vida de asce-
se. Novo rigorismo? Talvez. Mas que devemos ler na mesma medi­
da como uma difusão do ideal monástico e como um esforço para
i. limitar até certo ponto os seus efeitos; tratava-se de dar, perante ele,
7J uma intensidade religiosa a urna vida que nao impunha semelhan-
tes rupturas. Desta transferência, vários grandes pastores, nos fi-
¡■L nais do século iv, foram ao mesmo tempo testemunhas e agentes,
■gormados na disciplina ascética, tendo praticado algum tempo o
■mônaquismo, tinham podido, uma vez à frente de uma igreja, de-
■ganvolver uma prática pastoral inspirada nessa primeira experiên-
K cia. Foi o caso de Basilio de Cesareia, de Gregorio de Nazianzo, de
E.Gregorio de Nissa e do próprio Crisóstomo. Em condições muito
diferentes, São Jerónimo e Santo Agostinho, no Ocidente, desem-
penharam um papel até certo ponto semelhante: favoreceram o
desenvolvimento de uma pastoral que tinha por objectivo ajustar à
<s, vida no mundo certos valores ascéticos da existência monástica,
; bem como as práticas de direcção dos indivíduos.
Ora, este fenómeno não pode ser separado das novas relações
í' que se estabelecem na mesma época entre o cristianismo e o Im-
i' pério. Cruzam-se então dois processos. Instituição de início reco-
j nhecida, depois oficial, a Igreja Cristã ocupa cada vez mais fácil e
i visivelmente funções de organização, de gestão, de controle e de
regulamentação da sociedade. E a burocracia imperial, pelo seu
1 lado, procura aumentar cada vez mais, por cima das estruturas
í‘ tradicionais, a sua influência sobre os indivíduos2. No ponto on­
de estes dois processos se cruzam, vemos produzir-se o efeito
: paradoxal seguinte: práticas e valores que tinham sido desenvolvi­
dos ou identificados em modos de vida em ruptura explícita com
o mundo e a sociedade civil começam a intervir, não sem atenua­
ção e modificação, em formas institucionais sustentadas ou apoia­

2 Sobre este ponto, cf. [J. DANIÉLOU e] H.-I. MARROU, Nouvelle histoire de
I 1’Églíse, Paris, 1963,1.1, p. 268.
270 Michel Foucault

das pela organização do Estado e das estruturas políticas gerais.


Produz-se assim uma dupla pressão: uma vinda do reforço do ideal
ascético, fora das formas tradicionais da vida social e até mesmo
contra elas; a outra vinda do apoio recíproco que as instituições
eclesiásticas e as estruturas do Estado são susceptíveis de se da­
rem3. A vida dos indivíduos, no que pode ter de privado, de
quotidiano e de singular, acha-se assim tornada objecto, senão de
uma administração, pelo menos de uma preocupação e de uma
vigilância que não são sem dúvida semelhantes nem às que po­
diam assegurar as cidades helenísticas, nem às que exerciam as
primeiras comunidades cristãs.
Há aqui uma novidade que seria difícil contestar. Não é, no
entanto, que se tenha produzido uma ruptura brusca. Um dos tra­
ços mais marcantes desta pastoral da vida quotidiana é, em vários
pontos importantes, estar em continuidade com a moral filosófica
como a que pudemos encontrar em Plutarco, Musónio, Séneca ou
Epicteto. De tal modo que, até mesmo quando as referências explí­
citas aos autores pagãos quase desapareceram — são muito sensi­
velmente menos numerosas e menos positivas por exemplo em
Crisóstomo do que em Clemente de Alexandria dois séculos antes
—, podemos notar a permanência ou a ressurgência de temas ca­
racterísticos da filosofia helenística. Mas, por um lado, estes temas
são reinscritos num contexto teológico particular, estão ligados a
valores e a práticas cujo ascetismo, por atenuado que esteja, se
refere, apesar de tudo, de maneira mais ou menos directa, à exi­
gência geral de morrer para o mundo; articulam-se [por outro la­
do] sobre relações de autoridade de tipo pastoral. Por todas estas
razões, os elementos comuns à moral filosófica da Antiguidade e
à ética cristã tiveram efeitos diferentes. Ao que se deve acrescentar
que a extensão do cristianismo, a sua constituição como religião
de Estado e a importância das instituições eclesiásticas — afinal
de contas, o cristianismo foi a primeira religião a organizar-se em

3 Cf. sobre este apoio e os conflitos que lhe estão ligados, ibid., pp. 282 e sgs.
Cf., sobre o casamento, pp. 362-364.
As Confissões da Carne 271

Igreja — lhe deram uma capacidade de penetração muito maior do


que a da filosofia da Antiguidade, ainda que sob as suas formas
populares. Também aqui, convém não forçar as coisas. O cristia­
nismo, sobretudo nas suas exigências morais quotidianas, não se
tornou, no início do século v, uma regra de vida reconhecida e
praticada por todos; nunca o foi de resto ao longo de toda a sua
história. Mas transportava uma exigência de universalidade, e esta
apoiava-se num suporte institucional que fazia dele mais do que
um princípio geral (como podia sê-lo a ética estoica, por exemplo):
uma possibilidade efectivamente instaurada de generalização in­
definida.
Nesta ética, o casamento — as relações entre esposos, a consti­
tuição e a manutenção da família em torno do casal — constitui
sem dúvida uma das peças essenciais. A primeira razão é que
entre a existência ascética e a vida no mundo a diferença mais
sensível ligava-se ao casamento. “Estais grandemente enganados e
> cometeis um erro pesado se acreditais que sejam exigidas do ho-
- mem do mundo e do monge duas coisas diferentes; a diferença
entre eles está em que um é casado e o outro não; quanto a tudo o
mais, estão submetidos a obrigações comuns.”4 Tratar-se-á por­
tanto de definir, a propósito desta mesma diferença e onde ela in­
tervém de maneira mais significativa — as relações sexuais entre
esposos —, o conjunto das regras e práticas que devem ser aplica­
das para que a menos ascética destas duas formas de vida não
' seja despojada de todo o valor religioso nem privada da esperança
da salvação. Mas, por outro lado, o desenvolvimento da adminis­
tração imperial e o apagamento progressivo dos poderes tradicio­
nais davam à família, entendida como célula matrimonial, um
papel cada vez mais importante: faziam-na aparecer como o ele­
mento de base da sociedade e o ponto de articulação principal
entre a conduta moral dos indivíduos e o sistema das leis univer­
sais. E assim que chegamos ao seguinte resultado que à primeira
vista pode parecer paradoxal: entre a intensificação da ascese e a

4 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, Contra os Inimigos da Vida Monástica, III, 14.


272 Michel Foucault

extensão das estruturas estatais, a célula familiar, as relações entre


os esposos, a vida quotidiana do casal e até a sua actividade sexual
tornam-se paradas em jogo importantes.
Não o eram já n’A República e n’As Leis, ou na Política de Aris­
tóteles? É certo que sim. Mas num outro registo. O que mostra o
exame dos textos cristãos consagrados a este problema em finais
do século iv e no início do século v, é que, ao contrário do que se
passava entre os gregos clássicos, e ao contrário também do que
deixam supor as interpretações correntes, não é enquanto podem
e devem ser procriadoras que as relações sexuais entre esposos se
tornaram importantes.
Reservo um último capítulo à concepção de Santo Agostinho.
Ao mesmo tempo porque constitui o quadro teórico mais rigoroso
que permite dar lugar simultaneamente a uma ascese da castidade
e a uma moral do casamento. E porque, tendo servido de referên­
cia constante à ética sexual do cristianismo ocidental, será o ponto
de partida do estudo seguinte. No presente capítulo, estudarei a
arte da vida matrimonial tal como a podemos encontrar no fim do
século iv, na literatura homilética, que era um dos instrumentos
principais da actividade pastoral. E, para evitar a dispersão nessa
literatura imensa, tomarei, por referência privilegiada, as homílias
de Crisóstomo. Não sem sublinhar que pertencem, com as infle­
xões que lhe são próprias, a toda uma corrente. Muitas das idéias
que formula a propósito do casamento, poderiamos encontrá-las
em contemporâneos por vezes próximos como Gregório de Nissa
ou mais distantes como São Jerónimo. Algumas têm o seu ponto
de partida em Orígenes. Não é portanto a um Crisóstomo funda­
dor de uma nova ética do casamento que me referirei, mas a Cri­
sóstomo como testemunha e exemplo de uma pastoral da vida dos
cônjuges que se achava já bastante desenvolvida na época em que
ele escreve. Acrescentemos que Crisóstomo conheceu e praticou a
vida monástica antes de regressar a Antioquia; que os textos que
escreveu nos anos que se seguiram ao seu regresso estão fortemen­
te marcados por essas práticas ascéticas - - como o Adversas
oppugnatores vitae monasticae [Contra os Inimigos da Vida Mo-
■Às Confissões da Carne 273
T

nóstica]', que escreveu o seu tratado Da Virgindade, por volta de


382, sob essa inspiração; que, tendo exercido diversos cargos pas­
torais, do diaconado em Antioquia ao episcopado em Constantino-
pla, o essencial da sua obra é (a partir de 386) consagrado à pre­
gação e às homilias. E que por fim deu frequentemente conselhos
sobre o modo de conduta a adoptar no estado do casamento: algu­
mas das suas homilias — em particular a vigésima sobre a Epís­
tola aos Efésios, a décima nona sobre a Primeira Epístola aos
Corintios, a décima sobre a Epístola aos Colossenses, a quarta de
entre as que comentam o texto Vidi Dominum, finalmente as três
que pronunciou em Constantinopla imediatamente no início do
século v, e que são habitualmente chamadas as Três Homilias so­
bre o Casamento5 — constituem verdadeiros pequenos tratados
do estado matrimonial. Neles é encarada uma multiplicidade de
questões muito concretas: como educar os filhos em vista do ca­
samento, como escolher esposa, como se deve desenrolar a ce­
rimônia do casamento, que conduta manter em relação à mulher
na vida de todos os dias, a que princípio de economia submeter as
relações sexuais, etc.
Estes textos são muitas vezes opostos ao De virginitate, e às
fórmulas depreciativas que aí se utilizam contra o casamento: longa
descrição dos seus inconvenientes, afirmação constante da superio­
ridade da virgindade, tema de que tendo agora o tempo “chegado
ao seu termo”, “o momento já não é o de pensar no casamento”6.0
problema não é aqui avaliar a consistência do pensamento de Cri­
sóstomo. Recordarei somente, a título preliminar, um certo número
de proposições que encontramos claramente formuladas num texto
todavia tão ascético: que o casamento não pode ser considerado um
mal em si mesmo (em tal caso, não haveria que honrar a virginda­
de); que Deus, ainda que deseje que dele nos abstenhamos, de
maneira nenhuma o proíbe; que o bom casamento implica relações
de amizade que assegurem a sua paz; que a mulher tem para com

5 São contemporâneas do De bono conjugad de SANTO AGOSTINHO (401).


6 [SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, Da Virgindade, LXXIII.J
274 Michel Foucault

o marido deveres dos quais nem mesmo os legítimos cuidados da


mortificação podem dispensá-la7. Sejam quais forem as mudanças
de tónica e até mesmo a temática nova que Crisóstomo desenvolve­
rá na sua pastoral do casamento, temos aqui as proposições de
charneira que permitem articular a segunda com os textos que
cantam a renúncia definitiva ao casamento.
Nem por isso deixamos de poder relevar na sua pastoral dois
grandes eixos de tensão.
O primeiro é caracterizado pela coexistência, na concepção do
laço matrimonial, entre uma teologia complexa das relações entre
a Igreja e Cristo, e uma sabedoria cujos preceitos estão muito pró­
ximos daqueles que encontrámos em vários moralistas da Antigui­
dade pagã.
Esta tensão aparece claramente em certas passagens, como a da
terceira Homília sobre o casamento, que trata da força viva que
atrai mutuamente um homem novo e uma jovem, e da solidez do
laço que se forma entre eles. O nascimento, um longo hábito de
vida comum tinham até então ligado os filhos aos seus pais8. E
eis que, de súbito, na presença um do outro, um rapaz e uma rapa­
riga, esquecendo essas ligações, sentem nascer um laço mais forte
do que o anterior, apesar de tantos anos de familiaridade. Há aqui
como que o recomeço do que se passava na primeira idade, quan­
do, antes ainda de saber falar, a criança pequena sabia reconhecer
os seus pais: “Assim o esposo e a esposa, sem que ninguém os
tenha aproximado, os exorte, os instrua dos seus deveres, não têm
necessidade senão de se verem para ficarem unidos.”9 E, como
se eles mesmos reconhecessem o carácter imperioso e o alto valor
deste laço tão súbito, os pais não experimentam com isso “nem
desgosto, nem despeito, nem dor”; longe disso, dão graças. E,
referindo-se à Epístola aos Efésios, Crisóstomo acrescenta: “Pau­
lo, dando-se conta de tudo isto, considerando que os dois esposos

7 Ibid., I, II, III, XLVII, XLVIII, LIV, LXXXV.


8 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, III Homília sobre o casamento, 3.
9 [Ibid.]
As Confissões da Carne 275

deixam os seus pais para se apegarem um ao outro e que um tão


longo hábito tem a partir de então menos império do que esta de­
cisão fortuita, reflectindo além disso que não se trata aqui de um
facto humano Paulo, por conseguinte, escreveu: Eis o grande
mistérioMistério cujas três formas visíveis uma das Homílias
sobre a Epístola aos Efésios indica claramente. Trata-se de uma
força que, na natureza, é mais forte do que todas as outras forças:
mais imperiosa, mais tirânica do que as que podem ligar-nos aos
outros homens ou fazer desejar as coisas; epithumia, que parado-
1 xalmente junta duas qualidades habitualmente incompatíveis: du­
ração e vivacidade11. E, por outro lado, trata-se de uma força que,
se aparece de súbito, estava escondida no fundo de nós mesmos;
está “dissimulada na nossa natureza”, e não temos consciência
dela12. Enfim, para designar a natureza deste laço, Crisóstomo
emprega simultaneamente dois termos, que encontramos ora
acompanhando-se, ora separadamente, em muitos outros dos seus
textos: sundesmos, a amarra, a cadeia que liga por meio da coer-
ção ou pelo menos da obrigação dois indivíduos (Crisóstomo uti­
liza muitas vezes a palavra desmos relacionando-a com o tema da
servidão); e sumplokê, o entrelaçamento, a intricação que une duas
substâncias e dois corpos e tende a formar uma nova unidade.
‘ Como pôde introduzir-se ocultando-se de nós, na nossa nature-
za, uma força que triunfa sobre a própria natureza? Neste amor
que transporta o homem e a mulher um para o outro a fim de
constituírem uma união duradoura, neste “mistério” do qual falava
São Paulo, Crisóstomo vê a marca da vontade de Deus.
Da sua vontade primeiro como Criador13. Foi a partir do ho­
mem e da sua própria carne que moldou a mulher. Saídos da mes­
ma substância, Adão e Eva eram substancialmente unificáveis. E
O
10 Ibid.
11 “Outôs pasês turannidos autê hê agapê turannikôtera", SÃO JOÃO CRISÓS­
TOMO, XX Homília sobre a Epístola aos Efésios, 1.
12 “Emphôleuôn tê phusei, kai lanthanôn hêmas”, ibid.
13 Este tema é desenvolvido em particular no início da XX Homilia sobre a Epís­
tola aos Efésios, 1.
276 Michel Foucault

os seus descendentes são ainda da mesma substância. “Nenhuma


essência estrangeira pode pois penetrar na nossa.” Ao longo de
todas as gerações, a humanidade manteve-se ligada a si mesma, e
limitada à sua própria substância. Nesta relação com a unidade
primitiva, da qual o género humano partiu sem dela sair nunca
mais, o incesto desempenha dois papéis. Inevitável na origem dos
tempos, é ontologicamente valorizado, uma vez que refere todos
os indivíduos à identidade de uma só e mesma substância. Permi­
tindo que “o homem desposasse a sua própria irmã, ou antes a sua
filha, ou antes ainda a sua própria carne”14, Deus construiu a
humanidade como uma árvore; e deu-lhe a mesma beleza que às
grandes árvores: para ramos inumeráveis, uma só raiz. Por disper­
sos que os homens hoje estejam, mantêm-se através desta raiz
unidos e associados. Bem-aventurado incesto que nos tornou todos
parentes. Mas a sua interdição hoje não está em contradição com
aquele princípio primeiro. Não faz mais, pelo contrário, do que
seguir a sua consequência e multiplicar os seus benefícios. Crisós­
tomo explica que, impedindo doravante os homens de desposaren)
as suas irmãs e as suas filhas, obrigando-os a virarem para o ex­
terior essa força que têm da sua origem comum, Deus faz com que
a sua afeição se não concentre sobre um objecto único. O laço de
parentesco primitivo é de certo modo reactualizado com aqueles
que não são nossos parentes imediatos. Não podermos desposar as
nossas irmãs força-nos a que nos liguemos com estranhos, quer
dizer, a que nos re-liguemos com parentes desconhecidos15.
Mas a força que liga homens e mulheres não é somente o rasto
de uma origem. É também a figura de uma outra união: a que liga
Cristo à Igreja. Redenção em vias de se cumprir, e já não Criação.
Depois de ter evocado o laço que se estabelece tão bruscamente
entre um homem e uma mulher, rompendo o longo apego aos pais,

14 [/¿zá.J
15 A proibição do incesto explicada pela obrigação da ligação a outrem não é
própria nem a São João Crisóstomo nem aos autores cristãos. Encontramo-la em
[nota incompleta].
í "As Confissões da Carne 277
Ft’ 1' *
’’Crisóstomo prossegue dizendo que é da mesma maneira que Cris-
* to “deixou o seu Pai para descer até à Igreja”16: “Sabes agora que
mistério é o casamento, de que grandes coisas é símbolo.”17 Esta
•' ideia vem de Orígenes18. Faz do casamento a figura que represen­
ta de maneira sensível o laço que Cristo estabelece com a Igreja:
/ é o Esposo, é a alma e é a cabeça; é ele aquele que comanda19, ao
F passo que ela é a noiva; é o corpo da sua alma e o membro do seu
? corpo; deve obedecer-lhe. Ele veio até ela, por amor, quando os
homens a odiavam, a execravam, a insultavam20. Aceitou-a com
todos os defeitos que podia ter, todas as contaminações das quais
• -?. era portadora; mas, para velar por ela, para a ensinar, a esclarecer
e por fim a salvar. Como esposo perfeito, sacrificou-se por ela,
A tudo sofrendo e dilacerado mil vezes21. Mas em contrapartida o
-• laço de Cristo com a Igreja serve de modelo a todo o casamento:
é a mesma obediência que deve ligar a mulher ao homem; o mes-
mo primado dele sobre ela; a mesma tarefa de educação, e a mes-
>" ma aceitação do sacrifício para a salvar. O laço matrimonial deve
o seu valor ao facto de reproduzir, à sua maneira, a forma de amor
' que liga, o primeiro à segunda, Cristo à Igreja. “O lar é uma pe-
quena Igreja.”22
Duplo fundamento teológico do laço entre marido e mulher: na
’ Criação, por um lado, e na Redenção, por outro, na unidade subs-
” tancial da carne por um lado e na Encarnação por outro, na origem
dos tempos e na aproximação do seu fim. Isto permite a Crisósto-
|'mo aproximar o valor do casamento do da virgindade. Ou, mais
exactamente, não pensar o casamento como sendo apenas uma
incapacidade de uma vida de continência absoluta. E doravante
~ possível dar directamente ao casamento um valor positivo, ainda
9
M1
*
C' 16 |7tó/.,4.]
17 [SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, III Homilia sobre o casamento, 3.]
í 18 [Cf. por exemplo ORÍGENES, Homílias sobre o Cântico dos Cânticos.]
19 [SÃO PAULO, Epístola aos Efésios, 5,23.]
20 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, III Homilia sobre o casamento, 2.
21 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, XX Homilia sobre a Epístola aos Efésios, 2.
278 Michel Foucault

que não seja tão elevado. A virgindade restitui o estado paradisía­


co realizando sobre a Terra uma vida angélica; o laço matrimonial
faz menos, sem dúvida, mas lembra a unidade de substância da
Criação. A virgindade faz da alma a esposa de Cristo; o casamen­
to, por seu turno, é a imagem da união da Igreja com o Salvador.
Não devemos pois surpreender-nos vendo Crisóstomo, que o De
virginitate faz facilmente passar por um detractor do casamento,
prometer às pessoas casadas méritos e recompensas que são, tam­
bém, muito elevados. Uma vida de casamento, se obedecer aos
preceitos, “não é muito inferior à vida monástica; tais esposos
pouco terão a invejar aos celibatários”23. Ou ainda: se usardes
devidamente do casamento, “ocupareis o primeiro lugar no reino
dos céus, e gozareis de todos os bens”24.
Esta promoção espiritual do casamento requer todo um desen­
volvimento de reflexões sobre a vida matrimonial; autoriza uma
arte das relações entre marido e mulher perante a tekhnê da exis­
tência virginal, arte que, sem nunca pretender atingir a mesma
elevação, logra até certo ponto um equilíbrio comparativo com a
segunda. Ora, o que caracteriza estas regras da vida matrimonial
é a sua grande proximidade daquelas que podiam encontrar-se
entre os moralistas da época imperial, ou em Clemente de Ale­
xandria, a propósito do qual vimos tudo o que tomava de emprés­
timo daqueles. Neste sentido, temos a impressão de que a justifi­
cação teológica do casamento, permitindo evitar os excessos do
encratismo e sobretudo as consequências do dualismo implícito
na recusa de toda a conjugalidade, permitiu dar um fundamento
a toda uma ética do casamento já corrente; e portanto continuar
o movimento (já sensível em Clemente de Alexandria) de aclima­
tação da moral pagã do casamento no interior do cristianismo.
E, com efeito (excepto num ponto capital, que teremos de analisar
longamente mais adiante), a alta teologia da conjugalidade
articula-se, em João Crisóstomo, sobre preceitos de vida matri-

23 Ibid., 9.
24 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, VII Homilia sobre a Epístola aos Hebreus, 4.
ík-,

g As Confissões da Carne 279


»

J monial surpreendentemente próximos dos que Musónio, ou Séne-


! ca, ou Epicteto, ou Clemente de Alexandria tinham tornado fami-
t> liares. Certas inflexões são modificadas, a maior parte dos
desenvolvimentos torna-se mais ampla, os valores da caridade
passam a ser mais sublinhados. Mas são os mesmos temas funda-
* mentais que encontramos.
f — Princípio da desigualdade natural. Deus, ao criar primeiro o
homem e ao dar-lhe a mulher “como auxiliar”, segundo o texto do
Gênesis, marcou bem que o homem ocupa a primeira posição, e
■íqüe está destinado a comandar. Ele é a cabeça: “Representemo-
"í-nos o marido como ocupando o posto de chefe; a mulher, como
ocupando o lugar do corpo [...]. Paulo atribui a cada um o seu
■ lugar; a um a autoridade e a protecção, à outra a submissão.”25
_ Princípio de complementaridade, que dá um conteúdo posi­
tivo a esta desigualdade, que permite fazê-la funcionar como um
princípio de ordem na vida conjugal, e assegurar o bom entendi­
mento quando poderia ser ocasião de conflito: “Considerando
que duas espécies de assuntos dividem a nossa vida, os assuntos
« públicos e os assuntos privados, o Senhor dividiu a tarefa entre o
: homem e a mulher: a esta conferiu o governo da casa, àquele to­
dos os assuntos do Estado.” O homem lança o dardo; a mulher
maneja a roca. Um participa nas deliberações públicas; a outra faz
^triunfar as suas opiniões em casa. Ele gere os dinheiros públicos;
1 ela educa os filhos que são a seu modo um “tesouro precioso”.
Assim Deus evitou “dar as duas aptidões à mesma criatura”, te-
r: mendo que um dos dois sexos fosse eclipsado pelo outro e pare­
cesse inútil; não quis dar uma parte igual aos dois sexos, temendo
i que essa igualdade engendrasse conflitos e que as mulheres ele-
. vassem as suas pretensões ao ponto de disputarem aos homens o
’^primeiro lugar; mas, conciliando a necessidade de paz com as
conveniências da hierarquia, fez da nossa vida duas partes das
quais reservou ao homem a mais essencial e a. mais séria, atri­
buindo à mulher a mais pequena e a mais humilde; de tal modo

25 [SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, XX Homilia sobre a Epístola aos Efésios, 1.]


280 Michel Foucault

que as necessidades da existência no-la façam honrar, sem que a


inferioridade do seu ministério lhes permita entrarem em revolta
contra o seu marido”26.
Para que esta complementaridade possa funcionar devidamente,
não convém que o homem despose uma mulher mais rica do que
ele. Porque aquele que desposa uma mulher afortunada toma “um
soberano”, se escolhe uma mais pobre, pelo contrário, encontra
nela “uma auxiliar, uma aliada [...]. O embaraço que a sua pobre­
za causa à esposa inspira-lhe toda a espécie de cuidados e de
atenções em relação ao marido, a obediência, uma submissão
perfeita, e suprime todas as causas de disputas”27.
— Princípio do dever de ensino ligado ao respeito do pudor.
Uma vez que é a cabeça, o marido deve guiar a mulher, servir-lhe
de educador e formá-la nas virtudes. “Que, rodeando-a de um
piedoso respeito desde a primeira noite em que ela entrou em sua
casa, ele lhe ensine a temperança, a modéstia, a doçura, a levar
uma vida sempre honesta, a não amar o dinheiro, a praticar a filo­
sofia cristã, a não carregar de ouro as suas orelhas, o seu rosto, o
seu pescoço.”28 “Aproveitai para lhe traçardes regras de conduta,
do tempo em que a vergonha, à semelhança de um freio, a impede
de se queixar, de reclamar [...]. Que tempo poder ia ser mais bem
escolhido para a educação de uma mulher do que aquele em que
ela ainda se ruboriza diante do seu marido, e não deixou de o te­
mer? Usai da ocasião para lhe traçardes o seu dever, e de qualquer
maneira, de boa vontade ou contrariada, ela obedecer-vos-á.”29
Podemos vê-lo: se faz parte do direito e do dever do marido ensi­
nar a sua esposa, há em contrapartida um domínio em que a igno-

26 Cf. SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, III Homília sobre o casamento, 4. O mesmo


tema no tratado Sobre o Casamento Único, 4. Numa nota sobre este último texto,
B. Grillet aproxima esta passagem do texto de XENOFONTE: “A divindade adap­
tou desde o princípio a natureza da mulher aos trabalhos e aos cuidados do interior,
a do homem aos do exterior”, Econômico, VII, 21.
27 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, III Homilia sobre o casamento, 4.
28 [SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, XX Homilia sobre a Epístola aos Efésios, 7.]
29/bíd., 8.
í As Confissões da Carne 281

rância deve ser respeitada; é tudo o que toca o pudor. Conselho de

I prudência que os moralistas antigos também davam30: “Deixai-lhe


por muito tempo os seus temores púdicos, não os expulseis brus­
camente Respeitai de início a sua reserva; não imiteis a pre­
cipitação desregrada de certos homens; sabei esperar longamente,
acabareis por ficar bem.”31

$ — Princípio da permanência do laço e da reciprocidade das


pbrigações. Depois de estabelecido de uma vez por todas, salvo
|m caso de adultério32, o laço do casamento não pode ser desfeito.
c Mas é ainda necessário compreendermos bem que não é somente
í ( tacto de a mulher ser casada que constitui uma relação sexual
F' corno adúltera. Não é assim que julgam as leis, é verdade. Mas “a
Ii de Deus” afirma-o, diz Crisóstomo, que de novo a este propó-
to redescobre as concepções de autores como Musónio33. “Mui-
•s imaginam que alguém só se torna adúltero pela sedução de
uma mulher pertença de um marido. E eu pretendo que seja quem
Ifor que, sendo casado, tem relações culpadas e ilícitas com uma
mulher, ainda que uma mulher pública, uma serva, uma qualquer
pessoa não casada, comete um adultério. Com efeito, não é somen­
te da pessoa desonrada, mas também do autor da sua desonra a
qualidade que constitui o adultério.”34 E ainda: “Se a tua mulher
veio a ti, se deixou o seu pai, a sua mãe e toda a sua família, não
fí é para que a ultrajes, para que a substituas por uma vil cortesa.”35
i Èste laço intangível, e que até mesmo uma relação episódica com
Juma escrava macula, compreende-se que a morte não possa
' desfazê-lo inteiramente. Sobre o novo casamento, Crisóstomo tem
í
a mesma posição de reprovação prudente que a maior parte dos
KW
30 Cf. capítulo “A Casa de Iscómaco”, em O Uso dos Prazeres. [Tradução de
Manuel Alberto, Lisboa, Relógio D’Água, 1998. (N. T.)J
31 Ibid.,1.
32 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, XIX Homilía sobre a Primeira Epístola aos Co­
rintios, 2.
282 Michel Foucault

autores cristãos e que vários autores neo-estóicos. Não é absoluta­


mente proibido (sobretudo no caso de se ser jovem) voltar a ca­
sar36. Mas mais vale, apesar de tudo, “esperar a morte, permane­
cer fiel aos compromissos, manter a continência, ficar junto dos
filhos, e merecer assim uma parte mais abundante nas bondades
de Deus”37.
— Princípio de um laço afectivo que constitui ao mesmo tempo
a meta e a condição permanente do bom casamento. Se devemos
escolher com tanto cuidado aquela com quem haveremos de casar
(uma grande parte da III Homilía sobre o casamento é consagrada
a definir os princípios desta escolha), é que é necessário podermos
amá-la: tomando a que devemos tomar, “não ganharemos somente
o não termos de a repudiar jamais, mas ainda o amá-la com uma
ternura profunda”38. Uma passagem do pequeno tratado Sobre o
Casamento Único (que dataria da mesma época que o tratado so­
bre a virgindade) propõe sobre esta afeição, da qual faz de resto
um dos pontos positivos do casamento, uma interpretação muito
terra-a-terra: o homem ama aquilo de que é senhor, e sobretudo
aquilo de que é o único e primeiro senhor; tal é o caso das vestes,
dos móveis. Por maioria de razão, deverá ser assim quando se tra­
ta da mulher (“o bem mais precioso para o homem”). Quando sa­
bemos que somos o seu primeiro e exclusivo possuidor, recebemo-
-la com “solicitude”, “afeição”, “benevolência”39. É evidentemente
uma outra tonalidade que encontramos nas homílias mais tardias.
E em particular nesse discurso fictício endereçado à jovem esposa
por um marido cristão ideal. A afeição não se refere aí a uma re­
lação de posse e de domínio, mas a uma certa forma de relação de
alma a alma, que comporta vários aspectos: reconhecimento das
qualidades de alma da mulher; desejo de conquistar a sua afeição;

36 O novo casamento com uma mulher repudiada é um adultério, porque o repúdio


não desfaz o laço, SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, II Homília sobre o casamento, 3.
37 [Ibid., 4.]
38 [SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, III Homilía sobre o casamento, 2.]
39 Prothumia, philia, eunoia: SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, Sobre o Casamento
Único, 5.
p-í As Confissões da Carne 283
t 1

£ vontade de não ter com ela mais do que um só e o mesmo pensa­


mento; e consciência de que a união definitiva não poderá produ-
Iir-se senão na vida futura. E, a partir do momento que tal é o
bjectivo final do casamento, a vida neste mundo conta pouco e o
rarido acha-se pronto a sacrificar, a esse fim, a sua própria vida:
Desdenhei de tudo para não ver mais do que as qualidades da tua
lma, que estimo acima de todos os tesouros Foi por isso que
íe apeguei a ti; é por isso que te amo e te prefiro à minha própria
ida, porque a vida presente nada é; mas dirijo-te as minhas súpli-
as, as minhas recomendações, e faço tudo para que nos seja dado,
epois de termos passado a vida actual num amor mútuo, conti-
uarmos ainda reunidos e venturosos na vida futura [...]. A tua
feição agrada-me acima de todas as coisas, e nada me seria tão
enoso como ter fosse no que fosse um outro pensamento que não
i teu. Ainda que tenha de perder tudo, tornar-me mais pobre do
ue Irus, correr os perigos mais extremos, tudo sofrer, nada me
ustará, nada temo, contanto que possua o teu amor.”40 E o texto
jrmina, de modo muito característico, com a fórmula que é exac-
amente a inversa daquela que, em Xenofonte, iniciava um discur-
so análogo. Neste considerava-se que o marido deveria dizer à
Ç|esposa que, se a escolhera e se os pais dela lha tinham dado, fora
É em vista do bem da sua casa e dos seus futuros filhos41. Em Cri-
sóstomo, o marido somente deseja ter filhos depois de essa reu-
nião das almas, prefigurando a união no além, se ter realizado:
[tj “Desejarei ter filhos, quando tiveres ternura por mim.”42
“ O respeito destes princípios deve constituir, segundo Crisósto-
mo, o fundamento de uma regra de vida matrimonial, de um
“saber-ser casado”. Assim será assegurada a tranquilidade da al­
ma, ao passo que os amores exteriores, e esses, sobretudo, que se
podem encontrar junto das prostitutas, estão necessariamente en-
m venenados. Com aquelas, com efeito, “tudo é amargura e dano”:

40 [SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, XX Homília sobre a Epístola aos Efésios, 8.]


»‘41 [XENOFONTE, Econômico, capítulo VII.]
42 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, XX Homilia sobre a Epístola aos Efésios, 8.
284 Michel Foucault

despesas, humilhações, sortilégios e filtros; “Se buscais o prazer,


fugi das cortesãs”. Em contrapartida, em tua casa, junto da tua
mulher, “encontras ao mesmo tempo prazer, segurança, recreio,
respeito, consideração e boa consciência [...]. Quando tens à mão
uma fonte de água límpida, porquê buscares um charco lamacen­
to?”*3 A esta paz da alma correspondem a boa ordem e a prospe­
ridade da casa: “Quando um general organizou fortemente o seu
exército, nenhum inimigo ousa atacá-lo: o mesmo se passa aqui;
quando a mulher, os filhos, os servidores, concorrem em vista do
mesmo fim, reina na família uma concórdia perfeita [...]. Velemos
pois com grande cuidado sobre as nossas mulheres, os nossos fi­
44 O laço entre os esposos constitui,
lhos, os nossos servidores.”43
para a ordem geral da casa, um modelo que os filhos e os servido­
res por seu turno retomam. De tal maneira que, se aquele laço for
sólido, e se se apoiar no amor, na medida, no respeito, na autori­
dade reconhecida, todos em redor disso poderão beneficiar: “Co­
mo deverão ser os filhos nascidos de pais tão virtuosos; os escra­
vos adstritos ao serviço de tais senhores; enfim, tudo o que deles
está próximo! [...] Em geral, os servidores moldam-se pelos seus
senhores, afectam as suas paixões, amam o que os ensinaram a
amar, rezam como eles, vivem como eles.’45 “A casa, ordenada a
partir e em torno de um laço conjugal elaborado ele mesmo com
base em tais regras éticas, poderá constituir o abrigo cuja necessi­
dade o homem experimenta contra as agitações do mundo exte­
rior. “Um casamento segundo as regras não é assunto de somenos
importância; e mil infortúnios aguardam aqueles que não usam
dele como convém [...]. Com efeito, o esposo que se conforma às
leis conjugais encontra na sua casa, na sua mulher, uma consola­
ção, um asilo contra todos os males, públicos ou outros, que po­

43 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, I Homilia sobre o casamento, 5. Cf. também na


terceira destas Homílias, 9: “Se conduzirmos assim os nossos esforços, não haverá
nem divórcio, nem suspeita de adultério, nem motivo de ciúme, nem batalhas, nem
querelas, mas saborearemos todas as doçuras da paz e da concórdia.”
44 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, XX Homilia sobre a Epístola aos Efésios, 6.
45 Ibid., 9.
\s Confissões da Carne 285

dem feri-lo. Pelo contrário, aquele que trata ligeiramente e sem


reflexão este único assunto, ainda quando a praça pública seja
para ele sem tempestade, não verá, ao voltar para sua casa, mais
do que recifes e rochedos perigosos.”46
• Kalon ho gamos, dizia já o tratado Da Virgindade. Tão belo e
;tão importante que Crisóstomo (que de resto encoraja os pais a
não se oporem aos seus filhos quando estes querem renunciar ao
mundo) considera que os adolescentes devem ser preparados
para o casamento. Uma parte da IX Homilia sobre a Primeira
Epístola a Timóteo é consagrada a este tema. “A rapariga jovem
deve sair da casa paterna para casar, como um atleta sai da pa­
lestra, formada e exercitada.”47 Esta preparação é a que deve ser
dada a almas e corpos “difíceis de domar” e que requerem “vi­
gilantes, preceptores, professores, guardas e governadores”48. A
parte essencial desta preparação consistirá em impedir os rapa­
zes e as raparigas de terem relações sexuais antes do casamento.
E por duas razões: porque “o que está cheio de reserva antes do
IBsiRi

casamento está-lo-á bem mais depois; e aquele que, antes do


casamento, frequentou as cortesãs fará o mesmo depois de casa-
,do”; mas também porque, reservando-se assim para essa relação
do casamento, que será a primeira, cada um dos dois esposos
terá pelo outro “uma afeição mais viva”49. Preparação para o
r amor através da castidade; mas seria imprudente que esta se
t prolongue muito no tempo: “Casemo-los cedo.”50 Ou, como Cri-
w sóstomo diz noutro lugar: “Vendo como arde essa fornalha,

SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, II Homilia sobre o casamento, 1.


47 [SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, IX Homilia sobre a Primeira Epístola a Timó-
jV teo, 2.] A relação entre o exercício da preparação para o casamento e o combate
« atlético dos que escolheram a virgindade aparece claramente na V Homilia sobre
a Primeira Epístola aos Tessalonicenses, 3. Antes do casamento os filhos são
como uma matéria inflamável. É necessário velar por eles como “por virgens
* enclausuradas” (I Homilia sobre Ana, 6],
1$ 48 [SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, IX Homilia sobre a Primeira Epístola a Timó-

A" 49 íbid.
F 50 \Ibid.}
286 Michel Foucault

esforcemo-nos [...] por ligá-los em conformidade com a lei de


Deus, nos laços do casamento.”51
Como vemos, quando Crisóstomo, temperando certos aspectos
dos seus primeiros escritos, confronta com a virgindade a família
conjugal convenientemente organizada, e quando faz dela um lu­
gar de tranquilidade privada oposto às agitações públicas e sus­
ceptível de conduzir ao bem que buscamos, nada há aqui que, no
seu princípio, seja especificamente cristão. Todos estes temas es-
tevam já formados. Não devemos decerto ignorar que Crisóstomo
os reinscreve em referências propriamente cristãs: a hierarquia
“natural” entre o homem e a mulher, ele reporta-a à Criação; nas
virtudes do casamento, vê a promessa de recompensas futuras —
“desta maneira, aqueles que amam a Deus poderão agradar ao
Senhor, passar virtuosamente toda a vida presente, e obter por fim
os bens prometidos”51 52; e as prosperidades de uma vida conjugal
bem governada são para ele o efeito de uma bênção53.
Há contudo uma diferença — e é capital — que impede de co­
locar Crisóstomo e todos os que fazem as mesmas análises que ele
no século iv na simples continuidade de Clemente de Alexandria
e, por maioria de razão, dos moralistas da Antiguidade. Trata-se
da questão das relações sexuais no interior do casamento. E, mais
precisamente, da recusa de fazer da procriação um dos fins essen­
ciais do casamento, juntamente com a afirmação de que as rela­
ções sexuais são, entre esposos, objectos de obrigação.

O casamento não tem por fim a procriação. Com efeito, Crisós­


tomo não diz as coisas assim. Deparamos com três séries de for­
mulações. Numas, enumerando os fins pelos quais Deus instaurou
o casamento, ele contenta-se com não fazer menção alguma da

51 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, LIX, Homília sobre o Génesis, 3 (P. G„ t. 54,


col. 517-518).
52 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, XX Homília sobre a Epístola aos Efésios, 9. Cf.
igualmente: “Usai com moderação do casamento, e ocupareis o primeiro lugar no
Reino dos Céus”, VII Homília sobre a Epístola aos Hebreus, 4.
53 [SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, III Homília sobre o casamento, 9.]
As Confissões da Carne 287

procriação. Porque foi, pergunta na III Homilía sobre o casamen­


to, que Deus deu aos homens esta instituição? “A fim de que evi­
temos as fornicações, a fim de que reprimamos a nossa concupis-
céncia, a fim de que vivamos na castidade, a fim de que nos
tornemos agradáveis a Deus contentando-nos com a nossa própria
mulher.”54 Noutros textos, Crisóstomo põe efectivamente a pro­
criação entre os fins do casamento, mas numa posição secundária
e a título somente provisório. É a tese do De virginitate'. “O casa­
mento foi por certo dado em vista da procriação, mas muito mais
ainda para apaziguar o fogo do desejo inerente à nossa natureza.
Paulo atesta-o quando diz: 'Para evitar afornicação, que cada um
tenha a sua mulher', não diz: para fazer filhos. E quando convida
(marido e mulher) ao retomar da vida comum, não é para que te­
nham numerosa descendência.”55 Mas as Homílias sobre o casa­
mento não dizem coisa muito diferente: “Há duas razões pelas
quais o casamento foi instituído: a fim de que sejamos continentes,
e afim de que sejamos pais. Mas, destes dois motivos, é o da con­
tinência o mais importante”56; e, depois de ter explicado as razões
desta importância e os motivos que fizeram com que Deus instau­
rasse o casamento, conclui que este não tem senão um fim, e um
só: impedir a fornicação. Assim, no termo da análise, a procriação
desapareceu. Por fim, encontramos também em Crisóstomo a re­
cusa de estabelecer uma correlação teológica entre casamento e
procriação. O primeiro pode ser perfeitamente válido sem dar lu­
gar a nascimento algum, e de resto, sem a vontade de Deus, não
seria por si mesmo capaz de povoar a Terra. Quanto à segunda,
Deus poderia perfeitamente assegurá-la sem passar nem pelo ca­
samento nem pelos laços do corpo57.

54 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, III Homília sobre o casamento, 5. Ou ainda: “O


casamento não é nunca louvado por si mesmo, mas por causa da fornicação, das
tentações, da incontinência”, Da Virgindade, XXXIX.
55 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, Da Virgindade, XIX.
56 SÃO JOAO CRISÓSTOMO, I Homilía sobre o casamento, 3.
57 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, Da Virgindade, XV. O exemplo de Abraão prova
que o casamento em si mesmo não determina a procriação.
288 Michel Foucault

Esta dissociação é importante se nos lembrarmos da insistência


com que fora sublinhado em toda a cultura helénica o laço entre o
casamento e a paidopoiia, a fabricação de filhos: recordemos o
Pseudo-Demóstenes dizendo que as esposas são feitas para darem
descendência legítima e que o estado de casamento se reconhece
por se procriarem filhos próprios; recordemos também todos os
filósofos que faziam da procriação o fim essencial do casamen­
to58. A posição de Crisóstomo é de molde a surpreender, quando
pensamos que Clemente de Alexandria retomara, como uma evi­
dência, essa tese antiga59, mas de forma que surpreenda igual­
mente quando pensamos que muito cedo, e de uma maneira geral
no cristianismo a partir de Agostinho, a procriação voltará a apa­
recer no primeiro plano da teologia do casamento e da ética se­
xual; será definida, ao lado do sacramento e da fidelidade, como
um dos bens do casamento e como a primeira das finalidades le­
gítimas que o acto sexual entre esposos pode propor-se. Crisósto­
mo será uma excepção? Marcará simplesmente um episódio, um
instante de flutuação que a doutrina e a prática não irão reter?
Excepção, por certo que não: porque, de Orígenes até ele, o casa­
mento foi encarado não em função dos seus fins procriadores, mas
na sua posição hierárquica por comparação com a virgindade e
com o celibato voluntário; foi a questão da continência, e não dos
filhos, o ponto essencial do debate. Crisóstomo deve ser conside­
rado como pertencendo a toda essa corrente de pensamento que
tem São Jerónimo por testemunha no Ocidente, e o problema que
se lhe pôs foi o seguinte: como estabelecer uma pastoral das rela­
ções conjugais (que deixa de poder ser dispensada em nome de
uma valorização unilateral do ascetismo) a partir de uma moral da
continência? E, se esta corrente constitui ela mesma um episódio,
este último é importante; porque foi aqui que a questão das rela­
ções sexuais no interior do casamento foi reelaborada; e, devido a
ele, a proposição de que a procriação é um fim do casamento não

58 Cf. supra, p. 27.


59 Cf. supra, pp. 27-28.
1
EAs Confissões da Carne 289
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tem, em Agostinho e nos seus sucessores, o mesmo sentido que


entre autores anteriores, sejam estes pagãos como Musónio ou
cristãos como Clemente de Alexandria.
ÍW A dissociação entre casamento e procriação é traçada por Cri-
fsóstomo a partir da história geral do homem, da sua queda e da sua
Igsalvação. Faz valer, com efeito, que a procriação é anunciada no
I Génesis justamente no momento da criação do homem — “Crescei
| e multiplicai-vos”60 — antes portanto da da mulher, antes da queda,
£'■ antes da morte e da dor que a sancionam. É pois anterior à institui-
í ção do casamento. Que pode então significar esse preceito dado por
\ Deus ao homem solitário? Sabemos que Gregorio de Nissa vê nele
ro anúncio de uma geração que se operaria à maneira angélica e
< teria permitido povoar o paraíso como o céu está povoado de anjos.
’ Crisóstomo vê-o antes como um anúncio e uma promessa: a funda­
rão, desde a criação do homem, de uma possibilidade que será
^ efectuada mais tarde61. E sê-lo-á após a queda. Por causa desta?
| Não, pelo menos, directamente, mas de modo indirecto, uma vez
'...que a queda provoca a morte e que é a título de compensação que
?a progenitura é dada ao homem. Mas devemos ter presente ainda
sB;
que não se destina a preencher uma Terra que a morte despovoaria
rapidamente, mas a dar ao homem juntamente com o pensamento
das gerações futuras a imagem quer de uma imortalidade da qual
fora destituído, quer de uma ressurreição que o salvaria. É a pro­
criação como imagem da imortalidade perdida que a primeira das
três Homílias sobre o casamento evoca: “Quando não havia espe-
rança de ressurreição [...], Deus deu aos homens esta consolação da
' paternidade de maneira a que aqueles que morriam pudessem so-
>' breviver.se em imagens vivas.”62 A XVIII Homilia sobre o Gênesis
faz da procriação uma figura da promessa de que a vida viria de­
pois da morte: no momento em que infligia aos homens “o castigo
terrível da morte”, Deus mostrou como amava a humanidade —

' 60 Gênesis, 1,28.


í 61 [Nota vazia.]
1 62 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, I Homilia sobre o casamento, 3.
290 Michel Foucault

como era philanthrôpos — ao conceder-lhe “a sucessão dos filhos


como uma imagem da ressurreição”63. A procriação no sentido fí­
sico do termo não tem pois sentido a não ser reportando-se a estas
duas referências que se situam uma e outra às portas do tempo. E
não tem outro papel senão produzir imagens que vemos bem que
não teriam razão de ser antes da queda, e que deixam de a ter tam­
bém a partir do momento em que chega o tempo da ressurreição. A
procriação fez o seu tempo. E o preceito do “crescei e multiplicai-
-vos” que fora formulado desde que o homem fora moldado por
Deus, e que por conseguinte domina o tempo, deve carregar-se de
um sentido novo: é às gerações espirituais, mais belas do que as do
corpo, que doravante devemos aplicar-nos64.
Quanto ao casamento, se está ligado, também ele, à queda, não
é do mesmo modo. Enquanto a “multiplicação” se funda ontolo-
gicamente no acto criador, e está, por isso, pelo menos a título de
possibilidade, presente desde o paraíso, e se foi a queda a dar-lhe
a sua realidade material — bem como a sua função de imagem
relativamente às realidades espirituais —, o casamento, esse, es­
tava totalmente ausente de uma condição humana que ainda não
conhecera a queda. O texto do De virginitate é muito explícito
sobre este ponto: “Moldado por Deus, o homem viveu no Paraíso,
e sem que de modo algum se pusesse a questão do casamento.”65
Deus, contudo, criara a mulher antes da queda, para que ela fosse
a companheira do homem. Mas companheira, no sentido de auxi­
liar (boêthos), não de esposa: “Ainda então o casamento não pa­
recia necessário. De facto, não se via dele rasto, ambos o dispen­
savam.”66 O casamento aparece com a queda, com “a corrupção
da morte, a maldição, o sofrimento, as penas da vida”67. Neste

63 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, XVIII Homilia sobre o Gênesis, 4.


64 [Nota vazia.]
65 "Gamou logos oudeis ên”: SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, Da Virgindade, XIV, 3.
66 “Kai oude houtôs ho gamos anankaios einai edokei”, ibid. Sobre a questão do
sentido a dar a essa função de auxiliar que a mulher tinha antes da queda: [cf. supra,
pp. 207-208, e infra, pp. 317-325].
67 [Ibid., XIV, 5.]
As Confissões da Carne 291

sentido, pode dizer-se que é uma consequência da queda, como a


procriação carnal. Mas, enquanto esta é uma consolação, o casa­
mento é uma maneira de pôr um limite aos desejos do corpo: um
sinal de paragem contra os excessos a que a queda deu livre cur­
so. As Homilías sobre o casamento não modificam no essencial
aquilo que, mais de uma década mais cedo, o De virginitate ex­
punha a propósito do “momento meta-histórico” do casamento,
do seu papel sob a lei hebraica, e da função que ainda hoje tem a
exercer. Quando muito atenuam um pouco a insistência que Cri-
spstomo pusera na “condescendência” de Deus, ao conceder o
casamento como essa alimentação que se dá a crianças demasia­
do fracas para suportarem um regime adulto, como uma medica­
ção amarga a que temos de nos submeter quando estamos no
momento de força máxima da doença68. O casamento é apresen­
tado sobretudo como limite e como lei. “Foi a partir do dia em
que se introduziu a concupiscência que se introduziu o casamento
que refreia a incontinência, e leva o homem a contentar-se com
uma mulher.”6970Enquanto a procriação era uma possibilidade pré­
via que se tornou, após a queda, uma consolação, o casamento é
uma lei que tem a sua razão de ser na revolta, posterior à queda,
do corpo contra a alma e que tem por fim subjugar os desejos
daquele. E por isso uma “roupa de servidão”. Reencontramos as­
sim a estranha formulação que figura no tratado Sobre o Casa­
mento Único. Diz-se neste último que o casamento não pode
chamar-se “casamento” em consequência da união sexual, porque
toda a fornicação mereceria receber então esse nome; o que ca­
racteriza o casamento é o facto de a mulher se contentar com um
homem e um só™. Na sua essência, o casamento é limitação.

68 Ibid., XVI e XVII.


69 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, I Homília sobre o casamento, 3. Sobre a ideia de
que a lei está para o pecado como o remédio está para a doença, cf. Da Virgindade,
XVII, 3.
70 “Dia to stergein heni tên gamoumenên andri", SÃO JOÃO CRISÓSTOMO,
Sobre o Casamento Único, 2.
292 Michel Foucault

Esta definição do papel do casamento é importante. Em vez de


situar o laço matrimonial numa economia geral, natural ou social,
da procriação, situa-o (pelo menos hoje, uma vez que a Terra está
povoada,e os tempos chegaram) numa economia individual da
epithumia, do desejo ou da concupiscência. Neste sentido faz co­
municar a ética do casamento com a preocupação do ascetismo e
a preocupação da continência até mesmo mais rigorosa. O casa­
mento é uma maneira, a par ou antes abaixo da virgindade, de
solucionar a questão da concupiscência; esta encontra-se tanto no
coração da moral do casamento como dos procedimentos ascéti­
cos entre aqueles que renunciaram a todo o laço matrimonial. A
concupiscência é o objecto comum às regras do estado de casa­
mento e à tekhnê da profissão de virgindade.
O que distingue todavia as regras do casamento das “técnicas”
da segunda não é simplesmente o facto de serem mais tolerantes e
de permitirem com uma só pessoa aquilo que o estado de virgin­
dade exclui com seja quem for. E também o serem de tipo jurídico.
E de várias maneiras. Enquanto a virgindade, como já vimos, é de
conselho mas nunca de preceito, enquanto está excluído que seja
obrigatória, o casamento, esse, é uma obrigação para todos os que
não podem alcançar a perfeição do estado virginal. O casamento
é em si mesmo uma lei. Mas cria também obrigações. E obriga­
ções que se referem ao que é precisamente a razão de ser do casa­
mento: a saber, a economia da concupiscência. Porque quem se
casa para poder “limitar a uma só pessoa” o seu desejo, obriga-se
com efeito a essa unicidade da relação; mas obriga-se também
perante o cônjuge a permitir-lhe satisfazer com uma pessoa e uma
só o seu próprio desejo. Uma vez que a economia da concupiscên­
cia é o propósito comum aos dois cônjuges quando se casam, é de
facto necessário que cada um deles desempenhe o papel que o
outro espera dele, para alcançar esse propósito. Deste modo, o fim
da “limitação” da concupiscência que todo o casamento se propõe
tem por consequência necessária a aceitação recíproca do acto
sexual para que cada um dos dois encontre no casamento o asce­
tismo temperado que nele procurava. De maneira que pode pare-
ti
4
* As Confissões da Carne 293

" cer paradoxal, a aproximação entre casamento e virgindade, a

S f definição de um tema que lhes é comum — a economia da concu-


piscência —, ainda que não lhe dêem a mesma solução, leva a es­
tabelecer como obrigação estrita para cada um dos dois esposos o
JúA ter com o outro relações sexuais. Mas por certo sob certas reservas
e num quadro regulamentar.
3^ No início da XIX das Homílias sobre a Primeira Epístola aos
■ Coríntios João Crisóstomo expõe as obrigações recíprocas dos
.^esposos quanto às relações sexuais. Comenta aí a frase de São
Paulo: “Que o marido dê à mulher o que lhe deve, e assim a mulher
, ,ao seu marido (7, 3).”7i Crisóstomo apresenta estas obrigações es­
sencialmente como o dever de não se introduzirem no casamento
Xuma abstenção e práticas de renúncia que não convêm senão à as-
cese de uma vida votada à continência. Uma vez escolhido o casa­
mento como forma de vida, não é permitido a um dos cônjuges
■i
ft
procurar levar dentro dele o outro modo de existência. Ou a casti­
dade rigorosa, ou o casamento. Sem dúvida, a simetria entre os ti­
pos de existência não é perfeita: porque se à castidade não é per­
mitido fazer excepção sob seja que forma for, certas abstenções,
em contrapartida, podem ter lugar no casamento. Abstenções ri­
tuais e de carácter obrigatório72. Abstenções voluntárias também:
mas devem ser sempre decididas de comum acordo, e não resultar
da decisão de somente um dos cônjuges; e, de qualquer maneira,
não devem ser nunca definitivas; “se quiserdes abster-vos de acor-
:> do com o vosso cônjuge, que seja por pouco tempo”73.
Quanto à natureza ou à forma dos actos requeridos, tendo em -
' conta as recomendações de pudor ou de reserva que Crisóstomo
í faz muitas vezes, não dá indicação alguma. Nem preceitos a res­
peito da procriação possível, nem indicações sobre os tempos
oportunos, nem sobre as práticas sexuais interditas. Na IV Homi-

71 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, XIX Homilia sobre a Primeira Epístola aos Co-
$
Illi ■intios,l.

Illi 72 Ibid.
73 Ibid.
294 Michel Foucault

lia sobre a Epístola aos Romanos, Crisóstomo entrega-se a longas


considerações sobre os pecados de Sodoma, sobre a interversão
dos papéis entre homens e mulheres, e sobre a inversão das leis da
natureza; no entanto, ao que parece, não é a práticas conjugais que
se refere, mas no essencial à passividade e à prostituição masculi­
nas, ou às relações sexuais entre mulheres. Seja como for, nem
nesta homilia, nem naquela que comenta a Primeira Epístola aos
Corintios, parece impor aos cônjuges um tipo de relação sexual
determinado e justificável porque susceptível de ser fecundo. Não
é a morfología da relação que é para ele determinante, mas um
princípio de igualdade formal e jurídica. Enquanto, em todos os
outros planos, há diferença e hierarquia entre o homem e a mulher,
enquanto não têm as mesmas aptidões naturais, enquanto a mulher
deve temer o seu marido e obedecer-lhe, no plano das relações
sexuais, em contrapartida, não deve haver desigualdade alguma.
“Que em todo o outro lugar a vantagem seja do homem, mas em
matéria de continência, não”; neste ponto, não deve distinguir-se
“o mais ou o menos: o direito é o mesmo” [ibid}. Crisóstomo usa
aqui um vocabulário evidentemente político e jurídico. Recusa a
pleonexia (o “mais poder”, o “mais força” de um lado do que de
outro); estabelece o princípio de isotimia (igualdade dos privilé­
gios). As obrigações que fixa aos esposos constituem portanto
uma espécie de igualdade política quanto às relações sexuais: os
direitos de um fixam os deveres do outro.
No entanto, não é apenas sobre uma simetria no poder de deci­
são e uma comunidade de vontade que Crisóstomo funda este
sistema de obrigações. A sua forma é a de uma igualdade política.
O seu fundamento é o de uma propriedade. Retomando o texto de
São Paulo, segundo o qual o corpo do homem não lhe pertence,
mas à mulher, e reciprocamente, faz da obrigação de um cônjuge
não se recusar ao outro a consequência de uma apropriação mútua
dos corpos que se operaria no casamento. Apropriação que pode
criar duas situações, segundo se acentue o facto de haver proprie­
dade, ou o facto de esta apropriação incidir sobre o corpo de seres
humanos. Neste último caso, é ao modelo da escravatura que so-
-^^•1 -
’ As Confissões da Carne 295

’ mos conduzidos; mas por muitas razões — e entre outras pelo


’ facto de a “isotimia” implicar uma igualdade de indivíduos livres74
, este tema da escravatura permanece relativamente alusivo75 e
metafórico. Em contrapartida, a ideia de uma apropriação traz
consigo a de uma dívida: aquele cujo corpo se tornou propriedade
do outro deve-lhe alguma coisa — a saber, o uso desse corpo.
I' Crisóstomo faz notar que São Paulo emprega, para designar esta
£ obrigação, a expressão opheilomenên timên e que opheilê se refere
f à dívida. O dever entre esposos é uma dívida. E é este tema
“ jurídico-económico que leva Crisóstomo a falar de fraude a pro-
■ pósito dos que se furtam a tal dever. Devemos sem dúvida notar
f que a explicação por ele apresentada é estranhamente coxa: “não
me roubais”, diz Crisóstomo, “se eu consentir que me tomeis um
;■ objecto que me pertence, mas tomá-lo pela força a alguém que o
não consinta é roubar”. De um princípio que tal poderiamos espe­
rar que se deduzisse a liberdade para cada um dos cônjuges de
poder recusar-se ao outro. Mas, se tivermos presente que o casa-
# mento efectuou uma transferência de propriedade, vemos que,
para Crisóstomo, aquele dos dois que se recusa ao outro usa de
violência para com ele: toma, ou retoma, pela força aquilo de que
•» o casamento fizera proprietário o outro. É por isso que, muito lo­
gicamente, nos é dado como exemplo de semelhante fraude o caso
das mulheres que, sem o consentimento do seu marido, decidem
praticar a castidade. Cometem uma falta grave contra a “justiça”76.
O modelo da propriedade da dívida é bastante importante em
Crisóstomo. Utiliza-o várias vezes, entrelaçando com insistência o
i«,, tema das trocas económicas do casamento com o princípio da
transferência de propriedade do corpo. Por vezes faz valer a dupla
f-' confusão que, no casamento, faz de dois corpos um só ser, e de
* duas fortunas um único bem: “Não sois mais do que um mesmo

>i74 Sobre o casamento como laço entre dois indivíduos livres, cf. [nota incom­
pleta] .
,75 Ibid.
76 “Meizona tês dikaiôsunês amartian.”

s
296 Michel Foucault

ser, uma mesma vida, e falais ainda do teu e do meu! [...] Deus
tornou-nos coisas comuns mais necessárias do que as riquezas.”77
Por vezes também faz valer que, se o marido pode considerar co­
mo seu o dote da mulher, esta pode assumir justificadamente que
o corpo do seu marido lhe pertence. “Não é estranho que o dote
que ela te traz seja objecto de toda a tua solicitude, e que evites
cuidadosamente tudo o que possa diminuí-lo, e que esses tesouros,
muito mais preciosos do que um dote, quero eu dizer, a continên­
cia e a castidade, bem como a tua própria pessoa [...], tu os esban­
jes e os corrompas?” A esta analogia dote da mulher/corpo do
marido, Crisóstomo acrescenta imediatamente a seguinte observa­
ção que mostra melhor ainda a que ponto semelhante comparação
é inadequada à sua própria concepção da dupla propriedade mú­
tua: “Se te sucede tocares no dote da tua mulher, é ao teu sogro
que tens de prestar contas; mas, se atentares contra a castidade,
será Deus a pedir-tas, Deus que instituiu o casamento e de quem
tens a tua esposa.”78 De facto, a partir do momento em que o nas­
cimento de uma progenitura deixa de aparecer no horizonte do
casamento, o laço entre a conjunção física e a circulação dos bens
não pode ser mais do que da ordem de uma analogia mais ou me­
nos bem fundada. Devemos reter contudo do recurso que a ela faz
Crisóstomo a sua vontade de marcar bem a presença de uma obri­
gação de tipo formal e jurídico. Há para ele um direito interno ao
casamento, absolutamente simétrico entre os dois cônjuges, e que
decorre da propriedade mútua dos corpos.
Mas porque é que Crisóstomo pensa o casamento como trans­
ferência de propriedade, mais do que como união, fusão, constitui­
ção de um só ser — tema que evoca várias vezes mas que não
seria susceptível de fundamentar um laço de tipo jurídico? Preci­
samente porque o corpo depois da queda é o lugar dos excessos da
concupiscência; e porque quem se casa para pôr limites a tais ex­
cessos pede depois ao outro que assegure essa limitação. Cada um

77 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, XX Homília sobre a Epístola aos Efésios, 9.


78 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, I Homília sobre o casamento, 4.
IF
I As Confissões da Carne 297

,dos cônjuges torna-se senhor e possuidor do corpo do outro, na

! medida em que pode dominar a sua concupiscência. E, recusando-


|-se a fazê-lo, um cônjuge torna-se responsável pelas perturbações
'■ que a concupiscência do outro possa produzir. Estas perturbações,
: Crisóstomo descreve-as de duas maneiras. Desordem doméstica,
dissensão, desorientação na casa familiar: o bom ordenamento das
, pessoas e das coisas que vimos repousar sobre a unidade do casal,
Crisóstomo mostra que depende em parte do respeito e da justiça
l nas relações sexuais. “Grandes males nascem” quando a última é
ü transgredida, “as fornicações, os adultérios; as desordens domésti-
' cas são as suas consequências”; o marido frustrado dos seus direi­
tos “suscita querelas e causa mil aborrecimentos à sua mulher”79.
Mas, mais profundamente, é da perturbação na alma do outro, dos
seus desejos, das suas tentações, das suas dificuldades em dominá-
,-las, que se torna culpado aquele que recusa nas relações conjugais
, >o equilíbrio da justiça. Porque o casamento colocou-o em posição
fu
de contribuir para a salvação do seu cônjuge. No fundo da apro­
priação dos corpos, há a seguinte transferência: já não é aqui o
objectivo de uma progenitura comum que justifica a “dívida dos
corpos” implicitamente contraída pelos esposos quando se casam;
mas a responsabilidade de cada um frente aos pecados do outro.
O “fruto” que está então em causa é espiritual: é a salvação de
cada um através do outro. Quiasma salutar. Crisóstomo pode em­
pregar, neste ponto preciso, a palavra agapê no seu sentido duplo
de amor conjugal e de caridade.
É necessário reconhecer que, sobre este tema, o tratado Da
Virgindade não representa exactamente as mesmas posições que
as homílias anteriores. Nele Crisóstomo insiste já sobre a obriga­
ção em que a mulher se encontra de não se furtar, ainda que por
razões de continência, ao dever conjugal: “A mulher que é conti­
nente contra a vontade do seu marido não só se vê privada das
recompensas da continência, como é responsável pela conduta
adúltera do seu marido e terá a prestar por esta mais contas do que

79 [SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, XIX Homilía sobre a I Epístola aos Corintios, 1.]
298 Michel Foucault

ele. Porquê? Porque foi ela que o impeliu para o abismo do debo­
che ao privá-lo da união legítima.”80 Mas, a esta obrigação, dá um
sentido extremamente limitado: concessão a uma necessidade físi­
ca que reclama a indulgência e à qual não se deve opor uma recu­
sa unilateral81; mas está fora de causa atribuir um valor espiritual
a semelhante concessão: “Não é cumprindo, enquanto esposa, os
seus deveres conjugais que a mulher poderá salvar o seu marido,
mas praticando abertamente a vida do Evangelho; o que muitas
mulheres, de resto, realizaram ainda que fora do casamento.”82
O auxílio que os esposos podem trazer-se um ao outro não passa
por aqui, ainda que tal deva ser conservado: “Não retiro absoluta­
mente [à mulher] todo o concurso nas coisas espirituais — nem
Deus o quer! —, afirmo somente que o fornece não no exercício
do casamento, mas quando, embora continuando fisicamente sua
mulher, excede a sua natureza para se elevar à virtude dos homens
bem-aventurados.”83 A relação entre esposos, neste tratado em
que a vida de casado é apresentada nos seus inconvenientes, surge
como aquilo que deve, apesar de tudo, subsistir depois de alguém
se ter desligado suficientemente do casamento, e estar com a sua
mulher “como não a tendo”84. Em contrapartida, nas homilías

80 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, Da Virgindade, XLVIII, 1.


81 Ibid., LXXV: “A concupiscencia é um instinto natural que, por isso, tem direi­
to a uma grande indulgência, e um dos esposos não tem poder de frustrar o outro
contra a sua vontade.”
82 Ibid., XLVII, 2. Neste texto, a expressão para to suneinai — “na relação se­
xual” — não deveria sem dúvida ser traduzida por “cumprindo os seus deveres
conjugais”. O que força e limita o seu sentido. Trata-se de todas as relações se­
xuais, quer a mulher nelas cumpra o seu dever ou procure satisfação.
83 [Ibid., XLVII, 1.] Notar o texto: “hotan mê ta tou gamou prattê alia menousa
lêi phusei gunê". A mulher deve continuar mulher “pela natureza”, “fisicamente”,
mas não é “a prática das coisas do casamento” que terá valor salutar. Parece estar­
mos aqui perante a oposição entre o estado em que devemos continuar e a prática
que teria ou não um valor. Não se trata da oposição que será posteriormente tão im­
portante na jurisprudência penitencial entre reclamar e conceder o dever conjugal.
84 [Ibid., LXXIV-LXXV.] GREGORIO DE NISSA, no seu tratado Da Virginda­
de, evoca também ele a dívida — ophlêma, mas indicando que é alguma coisa de
baixo — tapeinon (V) ou de vão, de estéril — psukhron (VIII).
|L
ctS.'

As Confissões da Carne 299

' mais tardias, este cumprimento do dever não é um resto inevitável,


& que continua a ser necessário observar entre esposos depois de se
terem despojado de todos os outros aspectos da vida de casamen­
to; tem um duplo valor: espiritual, uma vez que manifesta um laço
' de caridade, e moral, uma vez que assegura no casal um bom en­
tendimento que se repercute em toda a ordem da casa. A partir do
momento em que o casamento é pensado como uma profissão, um
* estado que merece e reclama uma tekhnê específica, então a rela-
ção conjugal deixa de ser uma imposição residual à qual não te-
■jmos o direito de nos subtrairmos; é um elemento no labor pela
salvação mútua.
èr Uma vez mais, Crisóstomo não é tomado aqui pelo inventor
- desta maneira de analisar as relações conjugais e o estado de ca-
sarnento. É a testemunha de um pensamento do qual muitos ele-
j mentos se encontram já em Orígenes. E, como este deu alguns dos
* princípios fundamentais aos quais se referirão posteriormente as
- instituições da vida monástica, formulou da mesma maneira clara-
’ mente alguns dos princípios da ética e da espiritualidade cristãs do
casamento, antes que este nas suas formas concretas desse lugar a
reflexão e prescrições específicas85.
■ As homilías de Crisóstomo, em todo o caso, manifestam a exis­
tência de uma pastoral da vida casada em que as relações sexuais
estão fortemente ligadas a essa noção de opheilê, de debitum — de
dever-dívida —, que se tornará no cristianismo uma categoria fun­
damental para pensar, justificar, codificar e distribuir segundo um
sistema de regras as relações conjugais. No curso da Idade Média
* será construído um imenso edifício jurídico que faz aparecer os
. . esposos como sujeitos de direito em relações complexas de dívi-
ió das, de reclamações, de aceitações e de recusas. Tanto pelo menos
’tf
85 Cf., em particular, os fragmentos sobre a Primeira Epístola aos Corintios, pu-
1 blicados no Journal of Theological Studies, t. IX (1908), que tratam da questão
A da dívida, e o capítulo XIV, 24, dos Comentários sobre São Mateus, que trata do
d. marido que toma a sua mulher adúltera não realizando os seus desejos.
300 Michel Foucault

como os grandes interditos sexuais, este código contribuirá para a


juridificação da prática sexual, ao mesmo tempo que dará acesso
à autoridade da instituição religiosa sobre as relações mais secre­
tas entre esposos. Ora, o que é importante sublinhar, se quisermos
fazer a historia desta estranha noção, é que ela não deriva (excepto
de modo secundário, lateral, e porque ai, retrospectivamente, des­
cobriu como que uma estrutura de apoio previamente disposta) da
ideia de que o casamento tem por fim a procriação. Pelo contrário,
foi quando o pensamento cristão desligou o casamento desse fim
que lhe era tão facilmente reconhecido desde a Antiguidade pagã
que uma tal noção começou a desenvolver-se claramente. O tema
escatológico de um fim dos tempos em que já não é necessário
pensar numa progenitura foi sem dúvida fundamental. Mas não
teria bastado por si só para constituir o suporte dessa noção, se o
casamento, frente ao monaquismo, à vida de virgindade e à arte de
a conduzir, a Igreja, nos seus vínculos cada vez mais numerosos e
profundos com a administração do Estado e a sociedade imperial,
não tivesse desenvolvido uma pastoral da existência conjugal, des­
tinada a conduzi-la e a mostrar como se conduzir nela. E esta arte
da vida matrimonial ordena-se em torno da mesma questão que a
da vida de continência: como gerir, combater, vencer, numa luta
que é indissociável da própria vida, a concupiscência? De uma
maneira que só à primeira vista é paradoxal, é a epithumia, o de­
sejo, a concupiscência, que constitui a “matéria-prima” que deve
ser tratada pelas artes da vida monástica e as da vida casada. Com
uma diferença: é que, num caso, é consigo só e sob a forma do
combate espiritual com os seus próprios “pensamentos” (no senti­
do amplo do termo) que cada um deve agir, para não lhe dar saída
alguma possível (constituindo de certo modo a polução involuntá­
ria durante o sonho a forma “mais pura” dessa impureza, à qual só
Deus pode pôr definitivamente termo); e, no outro caso, existe
efectivamente uma saída legítima, ainda que “concertada”, mas
devemos ver bem que uma tal legitimidade se liga ao facto de
cada um dos cônjuges permitir assim ao outro escapar às tentações
da sua própria concupiscência. Quer dizer que o tema é com efeito
As Confissões da Carne 301
íI
ainda e sempre o da relação consigo; acrescendo que, no caso do
” casamento, esta relação não se soluciona sem a relação com o ou­
tro. E é ainda necessário lembrar que, no caso da virgindade mo­
nástica, há urna forma de relação com o outro igualmente indis­
pensável: é o laço de direcção.
’íj5' A simetria entre a arte da vida monástica e a arte da existência
matrimonial não deve ser sobrestimada. As diferenças, bem enten-
• j • a •
dido, são inumeráveis. E, sobre o tema preciso da concupiscencia,
$ devemos com efeito constatar que a ascese monástica dará lugar a
práticas de constante vigilância de si, de decifração dos seus pró-
j prios segredos, de pesquisa indefinida nas profundezas do cora­
ção, de elucidação do que pode ser ilusão, erro e engano relativa­
mente a si mesmo; ao passo que os preceitos da vida matrimonial
tomarão muito mais a forma de uma jurisdição do que de urna
¿ veridicção, e que o tema da divida dará lugar a um trabalho inces-
5 sante de codificação e a urna longa reflexão sobre a jurisprudên­
cia. O dimorfismo éjá aparente em textos como os de Crisóstomo;
. e sé-lo-á cada vez mais, marcando em profundidade a maneira de
<- reflectir e regular os comportamentos sexuais no Ocidente: em
termos de verdade (mas sob a forma de um segredo no fundo de
si mesmo a elucidar indefinidamente se se quiser ser “salvo”), e
em termos de direito (mas tanto sob a forma de um direito de di­
vida e de obrigações como sob a do interdito e da transgressão).
Esta dimorfismo está ainda longe de ter desaparecido, ou pelo
t menos esgotado os seus efeitos. Mas parece-me que na sua origem
’ não devemos ver a sobreposição no cristianismo de um anterior
direito do casamento e as formas mais recentes de uma renúncia
completa ao mundo. Foi o movimento no sentido de constituir, no
exercício do poder pastoral, uma tekhné da vida conjugal — infe­
rior à da vida monástica, mas não heterogénea a esta — que con­
duziu ao mesmo tempo a fazer da concupiscéncia de cada um dos
dois esposos (e não da progenitura comum) a forma essencial da
relação conjugal e a organizar entre essas duas solidões o cruza-
i mento das responsabilidades e o encadeamento de urna divida.
Até mesmo na forma dual do casamento, o problema fundamental
302 Michel Foucault

é o daquilo que cada um deve fazer com a sua própria concupis-


cência; é portanto a relação de si consigo. E o direito interno do
sexo conjugal foi de início organizado como uma maneira de gerir
através do outro esta relação fundamental de si consigo.
i
II

O BEM E OS BENS DO CASAMENTO

A virgindade é superior ao casamento, sem que o casamento


seja um mal nem a virgindade uma obrigação: esta tese geral,
Santo Agostinho recebeu-a de uma tradição já claramente forma­
da antes dele. Ela atravessa toda a sua obra; e ele expõe-na de
maneira explícita nos dois grupos de textos que teve ocasião de
consagrar aos problemas do casamento e da virgindade: nos pri-
| meiros anos do seu episcopado, quando tinha de discutir tanto as
’ teses de inspiração maniqueísta (no De continentia, cerca de 396)
como as proposições de Joviniano (no De bono conjugali, 401, ou
J no De sancta virginitate, 401); depois no momento das suas polé­
micas anti-pelagianistas, cerca de quinze anos mais tarde, quando
se apoia na superioridade da continência estrita e completa, reco­
cínhecida pelos seus adversários do momento, e singularmente por
' Juliano de Eclana, para afirmar contra elas que a concupiscência
é um mal86.
Uma passagem do De sancta virginitate situa bem, pelo menos
s- em termos negativos, o princípio geral. Este é o mesmo que, com
inflexões talvez diferentes e outros gumes polémicos, podemos

86 Muitos outros textos tratam dos mesmos temas: sermões, tratados que cor­
respondem a questões pastorais precisas (De bono viduitatis, 414), a posições ju­
rídicas (como o De conjugiis adulterinis, 419, a propósito do privilégio paulino).
304 Michel Foucault

encontrar em Gregório de Nissa, João Crisóstomo ou no Adversus


Jovinianum de Jerónimo. “Alguns que tinham o desejo da virgin­
dade pensaram que era necessário detestar o casamento tanto co­
mo o adultério; outros, que defendiam a união matrimonial, pre­
tenderam que a continência perpétua, por excelente que fosse, não
tinha mais mérito do que a castidade conjugal. Como se a vanta­
gem de Suzana devesse tornar-se humilhação de Maria ou a van­
tagem ainda maior de Maria tornar-se condenação de Suzana.”87
Contra estes dois erros, um dos quais condena o casamento e o
outro não lhe prefere a virgindade, Agostinho faz valer que o ca­
samento e a virgindade não se distinguem como o mal do bem,
nem se aproximam um do outro como dois bens equivalentes;
devem ser medidos e separados como um menor bem por compa­
ração com um bem maior. Duas elevações, numa mesma paisa­
gem, mas das quais uma é muito mais alta do que a outra: “Que
aqueles que não querem o casamento não lhe fujam, pois, como de
um pântano de pecado, mas que o superem como uma colina boa
mas inferior, a fim de irem repousar-se na montanha bem mais
alta da castidade.”88
Desta concepção geral de dois bens desiguais, Agostinho tira
conclusões que, enquanto tais, estão em conformidade com a dou­
trina já construída. Indiquemo-las rapidamente para podermos, a
seguir, marcar melhor o que constitui a elaboração própria de
Santo Agostinho.
— Uma vez que o casamento não é um mal, de maneira nenhu­
ma pode ser proibido; nem a virgindade, seja qual for a sua exce­
lência, imposta. A frase do Apóstolo, “se estás livre do laço con­
jugal, não busques uma esposa”89, não deve ser compreendida
como uma proibição, mas como um conselho. Como poderia a
virgindade ser dita “santa” se não fosse mais do que a observância
de uma lei editada para todos, e se não fosse livremente escolhida

87 SANTO AGOSTINHO, De sancta virginitate, XX (19).


88 XVIII (18).
89 [I Coríntios, 7,27.]
■/As Confissões da Carne 305
liillfc
r*
• por aqueles que, legítimamente, teriam podido casar: “Pode pois
¡buscarse urna esposa, mas vale mais não o fazer.”90
-s Esta superioridade da virgindade, não devemos compreendê-
■'-la como o beneficio que poderia dar na vida do mundo. Traz
ííconsigo urna certa “tranquilidade”, ao passo que o casamento,
i necessariamente, está ao serviço do “tempo presente”? Talvez seja
■.verdade, embora devamos ter em conta os diversos combates da
vida de continência. Mas erraríamos querendo evitar o casamento
simplesmente para não nos submetermos à “aflição das preocupa­
ções terrenas”91, das quais a virgindade está livre. Se é preferível
fugir aos inconvenientes do casamento, não é por perturbarem o
'repouso da alma, é porque a desviam do que deveria ser o seu
objecto; “forçam a pensar nas coisas de Deus menos do que o
devido para se adquirir essa glória que não será feito de todos”92.
E sem dúvida possível encontrar, no laço matrimonial, a possibili­
dade de uma “santidade conjugal”; mas esta é “menor por causa
das preocupações dadas pelo pensamento dos prazeres mundanos.
É toda essa atenção da alma que se despende em encontrar o ne­
cessário para contentar um marido que a cristã que não é casada
economiza e concentra na sua intenção de agradar a Deus”93.
• > — Se o privilégio da virgindade está ligado a esta possibilidade
de concentrar e de dirigir a “intentio animi”, é que o seu fim con­
siste em estabelecer uma certa relação com Deus, que é incompa­
tível com o estado de casamento. A ausência de corrupção que
caracteriza a vida dos anjos, que recompensará os eleitos e que
, permite ver Deus face a face, é a isso que tende a vida de virgin­
dade: “Manter a sua carne virgem e abster-se por piedade de toda
®"'a relação carnal é fazer obra angélica; é propor-se, numa carne
corruptível, uma incorruptibilidade perpétua.” Apresentando na
sua carne “alguma coisa que já não é carne”94, aqueles que se

' 90 SANTO AGOSTINHO, De sancta virginitate, XV (15). •


91 [Ibid., XIII (13).]
92 Ibid., XIV (14).
93 SANTO AGOSTINHO, De bono viduitatis, XIX (23).
94 [De sancta virginitate, XIII (12).]
306 Michel Foucault

votam a uma continência perfeita prefiguram de certo modo um


além no qual o casamento já não existirá.
— Nessa outra vida, a virgindade que tem mais méritos recebe­
rá recompensas mais ricas. Como Cipriano ou Atanásio, Agosti­
nho95 retoma a parábola das sementes do Evangelho de São Ma­
teus (alguns grãos produzem cem, os outros sessenta e outros
trinta somente), e aplica-a aos méritos e recompensas comparados
da virgindade e do casamento. Propõe a este respeito, de resto,
várias interpretações possíveis: que a virgindade produz cem, a
viuvez sessenta e o casamento trinta; ou ainda o martírio cem, a
virgindade sessenta e o casamento trinta; ou ainda o martírio
acompanhado pela virgindade cem, a virgindade e o martírio se­
parados um do outro sessenta. Agostinho não quer, sem dúvida,
atribuir demasiada importância a estes cálculos simbólicos: “Os
dons são demasiado numerosos para que possamos reduzi-los a
todos a três graus.” Mas devemos admitir entre eles uma diversi­
dade: seria grande a audácia dos homens se quisessem ser eles a
decidir e a fixar aqui a Deus as suas opções. “Resta, todavia, com
toda a evidência, que estes dons são numerosos na sua diversidade
e que os melhores são úteis não para o tempo presente, mas para
a eternidade.”96
Nenhum destes pontos pode ser considerado específicamente
de Santo Agostinho. Todavia, no uso que ele faz destes temas,
surgem de imediato diferenças consideráveis.

Numa palavra podemos dizer que, falando do casamento ou da


virgindade, Atanásio, Gregorio de Nissa, Basilio de Ancira ou
Crisóstomo se propunham sobretudo definir modos de vida, des­
crever os combates, perigos e recompensas de cada um deles,
ajuizar do seu valor relativo, marcar o seu lugar respectivo no in­
terior da comunidade cristã. Além disso, nesta comparação das

95 Ibid., XLIV (45)-XLV (46).


96 Ibid., XLVI (46). Cf. Quaestiones in Evangelium secundum Matthaeum, I, IX,
onde Agostinho propõe a segunda das interpretações aqui indicadas.
® As Confissões da Carne 307

tekhnai, era evidente que o ponto forte, ou o elemento de referén-


Í , cia, era constituido pela virgindade como o estado mais perfeito a
que é possível aceder nesta existência. O próprio Crisóstomo, que,
justamente na época de Agostinho, delineava uma regra da vida
conjugal, não evita referi-la à arte difícil da continência, que con-
serva para ele, não só, bem entendido, a sua superioridade ética e
ontológica, mas também um privilégio metodológico: define a boa
gjf conduta do casamento como a menos má gestão possível de um
desejo contra o qual as pessoas casadas não têm a força ou a cora-
9. gem necessária para empreenderem uma luta radical.
5 Os textos de Santo Agostinho não seguem exactamente a mes-
ma direcção.
Em primeiro lugar porque a acentuação se desloca no sentido do
casamento. Não devemos contudo enganar-nos, porque já vimos
*■ que Agostinho não considera nunca o casamento como equivalen­
te — e ainda menos como preferível — a uma virgindade auténti­
camente praticada. É, e continuará a ser sempre, de valor menor.
*’ Mas é a este “menor” que Agostinho atende e cuja significação, até
certo ponto, repensa. Por um lado, tenta definir o que há de valor
directamente positivo no casamento: o lugar que tem, e que talvez
S tenha tido sempre, na Criação; o fundamento que encontra na co­
munidade eclesiástica; o que leva a que o valor “menor” do casa­
mento não deva ser compreendido como a diminuição, a degrada­
ção parcial do alto valor da virgindade; tem por si mesmo o seu
valor próprio, ainda que este não seja o mais elevado. Por outro
lado, faz o essencial da sua reflexão “técnica” incidir sobre o ca­
samento, as regras que nele devem ser observadas e a conduta a ser
> nele mantida. O que não quer dizer que não encontremos, sobre a
prática da castidade, indicações numerosas e precisas — nos ser-
” mões97 ou ainda em certas polémicas anti-pelagianistas98 mais do

97 Em particular os sermões 205-211. Cf. sobre este ponto L. VERHELFEN, Nou-


| velle approche de la Règle de saint Augustin, Bégrolles-en-Mauges, 1980,pp. 153-
-200.
98 Assim no Contra Julianum, III.
308 Michel Foucault

que no De sancta virginitate, onde o elogio da castidade, contra os


discípulos de Joviniano, prevalece sobre a arte e a maneira de vi­
ver em continência. Mas é a propósito do casamento — no De
bono conjugali, e mais tarde no De nuptiis et concupiscentia, ou
no Contra Julianum — que Agostinho desenvolve uma tekhnê e
regras de conduta próprias a uma [forma] de vida. Podemos falar,
até certo ponto, de uma inversão do primado metodológico em
benefício do casamento e da tekhnê, da arte de nos comportarmos
que é própria do estado matrimonial.
Mas o essencial não está, sem dúvida, para Agostinho na defi­
nição comparada de dois tipos de existência. E o que o distingue
da maior parte dos seus predecessores ou contemporâneos é o seu
objectivo último: definir o quadro geral que permite pensar ao
mesmo tempo o exercício da virgindade e o do casamento, a sua
positividade respectiva e a sua diferença de valor. Através da hie­
rarquia que separa virgindade e matrimonialidade, através das
condutas diversas que se impõem a uma e a outra, o que Agosti­
nho constrói é a teoria de conjunto da qual as duas relevam. Numa
palavra: para lá da comparação entre a virgem e os esposos, entre
o continente e os cônjuges, já largamente desenvolvida antes dele,
Agostinho faz aparecer, não uma terceira personagem, nem uma
figura compósita, mas o elemento fundamental que se reporta aos
dois outros: o sujeito de desejo.
Antes de analisar a constituição de uma teoria da concupiscên-
cia no capítulo seguinte, estudaremos neste o primeiro aspecto
evocado — a acentuação que se desloca no sentido do casamento
e a definição de um “bem” positivo, que, sem lhe permitir preva­
lecer sobre a virgindade, o fundamenta no seu valor próprio. Este
deslocamento marca-se, em Agostinho, numa concepção da Igreja
como corpo espiritual, na exegese dos textos bíblicos relativos à
Criação e à existência antes da queda, na elaboração, por fim, de
um sistema de regras susceptíveis de fazer intervir, na vida dos
esposos e nas suas relações, o bem que é próprio do casamento.
As Confissões da Carne 309

- I -

' Não é necessário ser-se virgem, ou renunciar ao casamento, ou


praticar uma continência absoluta para se pertencer à comunidade
cristã, ainda que a Igreja reserve à virgindade um lugar de eleição:
Agostinho repete-o depois de muitos outros, insistindo particular­
mente na ideia de que, por valioso que seja o casamento, por santa
que possa ser a virgindade, o que prevalece ainda sobre ambos é
o estarem reunidos numa só comunidade e coexistirem na unidade
da Igreja. O conjunto é ainda mais belo do que o mais belo dos
seus elementos: “O corpo dos fiéis [...] forma os membros de
Cristo e o templo do Espírito: e designa aqui, bem entendido, os
’fiéis dos dois sexos. Há aqui, pois, pessoas casadas e pessoas não
casadas, com uma distinção de mérito todavia, uma vez que certos
membros prevalecem sobre outros, mas sem que nenhum esteja
separado do corpo [...]. Se uma criatura tomada à parte é melhor
que tal outra, todas elas, tomadas no seu conjunto, são melhores
do que seja qual for em particular.”99 Mas, se a coexistência da
virgindade e do casamento é mais bela do que a virgindade isola­
da, é porque não basta dizer que o casamento é, também ele, um
bem, mas atenuado e um pouco menor: pois não deixaria então de
ser subtracção à excelência da virgindade. Temos de supor que há
entre eles outra coisa mais do que uma sobreposição simples: uma
correlação que tem sentido e valor — uma correlação que faz com
que, se o casamento encontra na virgindade um suplemento, esta
descobre nele um complemento. Os modos de vida podem bem ser
distintos nas comunidades de cristãos, mas deve haver na comuni­
dade constituída pela Igreja um laço necessário entre casamento e
virgindade.
De Orígenes ou Metódio de Olimpos a Crisóstomo ou Jeróni­
mo, nunca a virgindade foi dissociada de certas modalidades de
união espiritual. Era definida pela recusa de todo o “casamento”,
fosse este institucional, ligando a um ser humano, ou esse que em

99 SANTO AGOSTINHO, De bono viduitatis, VI (8-9).


310 Michel Foucault

geral liga ao mundo da carne. Mas esta renúncia tinha por corre­
lativo — ao mesmo tempo efeito e condição, recompensa e caução
— um laço com Cristo. A alma virgem era a noiva ou a esposa de
Cristo; e, desta união, devia nascer uma infinidade de frutos espi­
rituais.
Em Santo Agostinho, as relações entre virgindade, casamento e
fecundidade espiritual são muito mais complexas. Ao mesmo tem­
po porque revestem outras formas que não somente a da correla­
ção virgindade-núpcias com Cristo; e sobretudo porque estão im­
plicadas no conjunto das relações de Deus com a sua Igreja, da
Igreja com Cristo, de Cristo com os fiéis, e de cada um destes com
o todo da comunidade. Além da escansão que isola as virgens re­
lativamente aos outros fiéis, além das diferenças de estatuto que
marcam as pessoas casadas, as que o não são ainda, as que são
viúvas, as que levam uma vida de continência, as que se lhe con­
sagraram por meio de votos, além da questão das formas e das
regras de vida, Santo Agostinho faz aparecer, através de tudo o
que deve constituir a Igreja como realidade espiritual e única, re­
lações que supõem ao mesmo tempo virgindade e casamento,
núpcias e integridade, maternidade ou paternidade e castidade
absoluta. Já não se trata então de caracteres que poderíam afectar
indivíduos e designá-los como virgens, ou cônjuges, ou pais, mas
de um tecido cerrado de laços espirituais em que cada um dos
elementos é ao mesmo tempo, por referência aos outros, virgem e
esposo, progenitor e filho. Assim, virgindade e matrimonialidade,
a este nível, não se opõem como dois modos de vida alternativos,
mas conjugam-se como aspectos permanentes e simultâneos das
relações que formam a Igreja como unidade espiritual. Concebi­
dos nestes termos, e sob a forma de virgindade fecunda ou de ca­
samento virginal, não há diferença de valor entre virgindade e
casamento. Mas é sobre o fundo desta concepção das relações
espirituais entre Deus e o homem através da Igreja que Santo
Agostinho vai fundar e explicar a hierarquia que devemos respei­
tar entre virgindade e casamento entendido no sentido carnal.
As Confissões da Carne 311

O início imediato do De sancta virginitate é sobre este ponto


significativo, sobretudo se o considerarmos à luz do vasto conjun­
to de sermões que têm por tema a Igreja-Virgem100101 . Um imenso
tecido de relações espirituais e de parentescos que excedem os do
sangue são ai representados; casamento e virgindade, virgindade
e maternidade não aparecem nunca dissociadas; a sua implicação
recíproca é lembrada constantemente por expressões como: “virgi-
■ nali conubio spiritualiter conjugatus”, “virginum sponsus”, “vir-
ginitas fecundationem non impedit, [...] fecunditas virginiíatem
non adimit”m, etc.
Para nos atermos a indicações esquemáticas, podemos desenhar,
da maneira seguinte, as relações numerosas e emaranhadas que
esta passagem menciona. Cristo é, pois, filho de uma Virgem102;
dela, nasceu física, corporalmente; e não por meio da simples pre­
servação de uma integridade que um homem “teria podido violar”,
mas como fruto de uma virgindade que, voluntariamente, se vota­
ra à união com Deus103; virgem ele mesmo, é o esposo da Igreja,
também ela virgem, que se ligou a ele por meio de uma união es­
piritual; mas é também e mais particularmente, nessa Igreja, o
esposo das virgens a que o unem núpcias virginais104. Maria, a mãe
eternamente virgem de Cristo, não o é simplesmente no corpo, mas
é-o também espiritualmente, uma vez que se votou a Deus e fez
nascer Cristo na sua vontade, servindo assim de modelo a todas as
almas que, consagrando a Deus a sua vontade, fazem Cristo nascer
em si mesmas105. Ora, todos os que fazem a vontade de Deus são,
já na Terra, irmãos de Cristo que veio mostrar essa vontade e o
caminho para a seguir; a Virgem é, pois, igualmente irmã de Cris­
to106. Mas temos de considerar que é também filha de Cristo, por-

100 Em particular os sermões [138,188,191, 192,195,213].


101 SANTO AGOSTINHO, De sancta virginitate, II (2).
102 Ibid.
103 Ibid., IV (4).
104 Ibid., II (2).
105 Ibid., V (5).
106 Ibid.
312 Michel Foucault

que todos aqueles que crêem nele são seus filhos e merecem ser
assim chamados, como diz São Mateus, “os filhos do esposo”107. A
Igreja, quanto a ela, é “a virgem de Cristo”, unida a ele de maneira
espiritual108; corporalmente, não pode ser chamada virgem senão
quanto a alguns dos seus membros, não o sendo quando conside­
ramos aqueles de entre os fiéis que são casados109. Esposa-virgem
de Cristo, a Igreja é mãe dos cristãos porque é ela que o faz nascer
no Espírito ao acolhê-los no baptismo110; mas, na medida em que a
comunidade dos santos constitui o corpo místico de Cristo, for­
mando-os, gestando-os, é também mãe de Cristo, como o são
aqueles “que fazem a vontade do Pai”; “a Igreja entre os santos que
possuirão o reino de Deus é, segundo o espírito, inteiramente mãe
de Cristo”111. E devemos acrescentar ainda que toda a alma piedo­
sa individualmente tomada é filha de Cristo, uma vez que foi dada
à luz a partir das núpcias deste com a Igreja, irmã de Cristo, uma
vez que tal como ele cumpre a vontade de Deus112, e mãe de Cris­
to, uma vez que o fez nascer nela, sendo, à imagem de Maria,
aquela que faz o que o Pai quer113.
Santo Agostinho descreve, pois, uma rede de relações espiri­
tuais que se reproduzem e se invertem, fazendo de cada um dos
quatro elementos do conjunto — Cristo, Maria, a Igreja, as almas
— virgens e cônjuges, genitores e filhos. Casamento, fecundidade,
virgindade não definem a posição ou a qualidade intrínseca de um
de entre eles, mas permitem descrever as diferentes relações que
simultaneamente cada um mantém com todos os outros. Podemos
por isso dizer que, no sistema das relações espirituais, casamento
e virgindade não podem ser dissociados (e a sua não-dissociação é
manifestada pela sua fecundidade), mas que nenhum dos dois ter-

107ZWJ.,VI (6) (Mt., 9,15).


108 Ibid.
109 Ibid.
110 Ibid., II (2); V (5).
111 Ibid., NI {G).
112 Ibid., N (5).
113 Ibid.

As Confissões da Carne 313

r '<
: mos pode ser considerado superior ou inferior ao outro. Ora, desta

1 'implicação recíproca do casamento e da virgindade nas relações


Kespirituais, Santo Agostinho não tira a conclusão de uma identida­
de de valor espiritual entre a virgindade corporal e o laço matri­
monial. Pelo contrário, aos jovinianistas como mais tarde a Juliano
de Eclana, opõe o princípio de uma hierarquia estrita. É que, com
efeito, para ele, a virgindade física pode bem representar a virgin­
dade espiritual; as virgens são, de facto, no mundo, a manifestação
das relações virginais que produzem os frutos espirituais; é que a
virgindade do corpo não pode existir realmente e merecer o nome
, de ¡virgindade a menos que seja sustentada e animada pela virgin-
dade do coração ou do pensamento: “Não é de si mesma, mas de
ser consagrada a Deus, que a virgindade tira a sua honra. Mantém-
”-se na carne, mas é por meio de uma religião e de uma devoção
plenamente espiritual que é mantida, de tal maneira que a própria
^’virgindade da carne é espiritual, votada e conservada como o é por
/ meio da continência e da piedade. Do mesmo modo que ninguém
JT faz do seu corpo um uso impuro senão depois de ter concebido
essa malícia no seu espírito, assim também ninguém mantém a
' ' pureza no seu corpo senão depois de ter implantado a castidade no
“Nesta condição, a virgindade física produzirá as
seu espírito.”114115
gestações das quais é capaz e que lhe são prometidas; em si mes-
r ma, dará à luz Cristo; pelo seu exemplo, suscitará esse mesmo
Cristo no coração dos outros; e dará à luz na Igreja uma nova
descendência de Cristo apelando às almas para que se convertam.”
J Em contrapartida, o que o casamento produz não são frutos
'■ espirituais. Da união física do homem e da mulher não nascem
I cristãos mas somente seres humanos; estes não podem tornar-se
... membros de Cristo e filhos de Deus a não ser por meio da opera-
k ção espiritual do sacramento: “Aquelas que na vida conjugal en-
> gendram segundo a carne, tornam-se mães não de Cristo, mas de
Adão.”’15 É portanto possível dizer que, do papel de Maria ao

114 Ibid., VIII (8).


115 [Ibid., VI (6).]
314 Michel Foucault

mesmo tempo virgem e mãe de Cristo, as mulheres que recusaram


o casamento e se consagraram a Deus tomaram um aspecto: a
virgindade, tanto corporal como espiritual. Mas não é possível
dizer simetricamente que as mulheres que casaram e tiveram fi­
lhos retomaram a maternidade física e espiritual de Maria: porque
a Virgem fez nascer Cristo pela operação de Deus; a mulher casa­
da dá nascimento, por efeito da natureza, a seres humanos que não
são cristãos. E só essa virgindade de coração que a liga a Cristo na
Igreja e a faz oferecer a Deus os seus filhos lhe permite ser espi­
ritualmente mãe: “Neste santo parto cooperam também as mães,
fazendo com que aqueles que deram à luz como ainda não cristãos
se tornem aquilo que elas bem sabem não ter podido dar à luz
corporalmente: só para isso contribuem, no entanto, tornando-se
também elas virgens e mães de Cristo, quer dizer, na fé que opera
sobre a caridade.”1’6 Não há pois simetria entre a virgindade e a
fecundidade carnal. Ou ainda, transpondo-se e manifestando-se
na carne, o laço entre a virgindade e as núpcias espirituais desfaz-
-se, e o casamento, a procriação segundo a carne não podem ser
considerados como a herança da maternidade de Maria, enquanto
a castidade das que, no seu coração e no seu corpo, fizeram voto
de renunciar ao casamento é efectivamente neste mundo, como a
Virgem, consagrada a Deus. As mulheres casadas não teriam en­
tão por que dizer às virgens: “Vós sois virgens, nós somos mães:
que a vossa virgindade intacta vos console de não terdes filhos;
que o benefício de os termos compense a nossa virgindade perdi­
da.”117
Assim, Agostinho de certo modo alargou, e multiplicou, temas
que lhe eram anteriores: o da virgindade como união com o Espo­
so e o da Igreja noiva de Cristo. Teceu todo um conjunto de rela­
ções que unem, de modo espiritual, virgindades igualmente espi­
rituais; descreveu os frutos inumeráveis destas núpcias que, não
sendo embora corporais, são contudo mais do que um puro símbo-

116ZWrf.,vn(7).
117 Ibid.
As Confissoes da Carne 315

lo. Colocou indissociavelmente casamento e virgindade no nível


das relações que constituem a unidade espiritual da Igreja. Seja
qual for o lugar inferior que o casamento deve ocupar na vida
s®( deste mundo, há uma figura do casamento espiritual que não pode
ser dissociada da virgindade. O que mostra que o casamento não
é um bem menor pela sua própria forma, mas antes pelo que o
levou na história da nossa queda a ser o que é neste mundo.
De onde a pergunta: que se passou com as relações de casamen­
to por efeito da queda? Deveremos admitir que não havia antes da
queda mais do que uma forma de união espiritual — que a virgin­
dade reproduzira neste mundo à sua maneira? Não teremos de
admitir que o casamento, com a união física que comporta, existia
já? E que seria esse o casamento não introduzido, mas modificado
: pela queda?

- II -

Como Orígenes, a maior parte dos exegetas cristãos tinha nega­


do que tivesse havido relações sexuais no paraíso e que o primeiro
casal tivesse podido, antes da queda, procriar fisicamente a seguir
a uma conjunção carnal. Assim, Gregório de Nissa admitia que os
humanos tivessem recebido desde a sua criação o direito e a pos­
sibilidade de se multiplicarem: não por efeito contudo de uma re-
ít lação sexual, mas de uma operação que não conhecemos — como
=• não conhecemos a que povoara o céu de anjos, fazendo-os proli­
ferar em miríades. Por que razão, então, fora a diferença dos sexos
marcada desde a Criação, e dada ao homem e à mulher a ordem
de se multiplicarem? E que, respondia Gregório de Nissa, Deus
sabia, na sua presciência, que o homem viria a cair: fora-lhe assim
dado antecipadamente um meio através do qual poderia perpetuar
a sua espécie para lá da morte que viria a ser a sua condenação"8.
Neste tipo de exegese, vemos o acto sexual como fazendo parte da
queda e das suas consequências. Pertence a um bloco que com-

118 GREGÓRIO DE NISSA, De hominis opificio, XVII.


316
Michel Foucault

preende o primeiro pecado, a morte e a procriação. Depende da


desobediência inicial, uma vez que foi esta que determinou a sua
realização (na existência do primeiro casal) e até mesmo a sua
possibilidade (na presciência de Deus); está ligado à procriação,
que é o seu fim e razão de ser; está ligado à morte, uma vez que é
uma das formas dessa corrupção que priva os homens da sua
imortalidade e uma vez que se destina a compensar os seus efeitos.
Por fim, é indissociável da cobiça, epithumia: foi com efeito o
desejo que provocou a queda — o desejo em geral, a cobiça pelo
prazer e não o apetite sexual119; é o gosto pelos prazeres da Terra
mais do que pela contemplação de Deus que introduz a corrupção
e a morte; é a vontade de se perpetuarem que impele os homens a
procriar. O acto sexual faz por isso parte, a título quer de conse­
quência, quer de meio, de um conjunto de quatro elementos — o
desejo, a queda, a morte, a procriação — que o acarretam ou o
reclamam.
Neste interpretação que era tradicional na sua época, Agostinho
vai efectuar um deslocamento e uma dissociação. Vai fazer re­
montar, senão a conjunção sexual pelo menos a sua possibilidade
legítima, do mundo decaído à existência paradisíaca, tal como saía
das mãos do Criador. Mas tal só podia ser aceite na condição de
essa conjunção sexual se desprender de tudo o que pode constituir
para ela os estigmas da existência decaída. Esta requalificação
meta-histórica da relação conjugal, com todas as dissociações que
implica, Agostinho só por etapas a levou a cabo.
O De Genesi contra Manichaeos, redigido pouco depois do seu
baptismo, está ainda próximo das teses de Gregorio de Nissa ou de
Crisóstomo. O homem paradisíaco, com o seu corpo de barro, é
nele descrito como dotado de qualidades celestiais que o tornam
incorruptível, o libertam de toda a necessidade física, o poupam a
todos os movimentos desordenados da alma e fazem com que ele

119 Gregorio de Nissa não supõe que a primeira falta foi sexual: tratava-se somen­
te de um abandono ao prazer em geral. Cf. M. AUBINEAU, nota à tradução do De
sancta virginitate,p.42O.
As Confissoes da Carne 317

seja inacessível à concupiscência120. Agostinho depara então com


o mesmo problema que os seus predecessores: que sentido dar,
nessa existência sem falta, sem morte e sem cobiça, às seguintes
afirmações do Gênesis: que Deus criou o homem e a mulher (1,
27), que lhes disse que crescessem e se multiplicassem (1, 28) e
que o Criador quis na mulher dar uma auxiliar ao homem (2, 18)?
Como evitar referir este tema da auxiliar ao do nascimento de uma
progenitura que derivaria da diferença dos sexos? E como, a partir
daí, não dar um lugar à procriação sexual na existência de imorta­
lidade sem corrupção que era a do paraíso?
Agostinho, como os seus predecessores, faz valer os recursos da
" ^interpretação espiritual. Formalmente, todavia, a sua posição é
v”' ambígua; ou, mais precisamente dizendo, tolera as duas interpre­
tações, uma vez que diz que estes textos do Gênesis podem ser de
igual modo compreendidos “spiritualiter”, o que autoriza, por
h conseguinte, pelo menos por preterição, a que os interpretemos
“carnaliter”. Mas, de facto, Agostinho não desenvolve senão a
’' significação espiritual. O “auxílio” que a mulher deve trazer ao
I homem, interpreta-o como uma relação de comando e de submis­
são. Assim, a relação que se estabelece sobre a diferenciação do
homem e da mulher não passa pelo sexo em si mesmo. Casta
conjunctio. Quanto ao crescimento e à multiplicação, Agostinho
interpreta-os como devendo ser os dos frutos espirituais: “alegrias
inteligíveis e imortais”, diz o primeiro texto do De Genesi contra
v Manichaeost2[, ou “boas obras do louvor divino”120 122, diz o segundo.
121
O ponto mais difícil de uma interpretação semelhante é de fac-
1 to o sentido preciso a dar ao tema do auxílio que o homem recebeu
~ da mulher. Porque é que a contemplação de Deus não bastava a
Adão para produzir os inumeráveis frutos da alegria? Porque teria
ele necessidade de outro alguém para cantar os louvores de Deus?
Agostinho, no De catechizandis rudibus, propõe uma interpreta­

120 SANTO AGOSTINHO, De Genesi contra Manichaeos, II, 7 (8) e I, 19 (30).


121 [Ibid.,t, 19(30).]
122 [Ibid., II, 11 (15).]
318 Michel Foucault

ção por meio das relações de glorificação e de imitação. Se Deus


pode tirar glória do homem, é na medida não por certo em que o
segundo é moldado no barro, mas na medida em que se lhe asse­
melha; e em que se lhe assemelha não só por ter sido moldado à
sua imagem, mas porque, voluntariamente, imita, com a sua razão,
a sabedoria de Deus. Da mesma maneira, o homem por seu turno
é glorificado pela mulher se a mulher o segue, o imita e reproduz
o exemplo de sabedoria que ele lhe dá. E Deus glorifica-se ainda
mais porque por seu turno a sua imagem se torna modelo123. Como
no De Genesi contra Manichaeos, Agostinho não exclui absoluta­
mente a interpretação carnal e material que admitia as relações
sexuais antes da queda. Não a supõe directamente; mas, ao apre­
sentar a interpretação espiritual, toma o cuidado de notar que
aquilo que esta exclui é a ideia de que a mulher antes da queda
tivesse podido ser para o homem uma auxiliar a propósito da
“concupiscencia carnal”: como poderia tê-lo sido nesse sentido,
quando o corpo de ambos não era ainda corruptível? É bem visível
que, nesta exegese, permanece lugar livre para relações sexuais
sem concupiscência, e para uma proliferação que não tivesse de
compensar a mortalidade dos corpos. Mas tal possibilidade, Agos­
tinho deixa-a passar inteiramente sob silêncio: não se lhe refere
nunca. E é a partir dos textos posteriores que retrospectivamente
descobrimos que o silêncio dos textos desenha aqui como que em
eco outras interpretações possíveis.
O início do De bono conjugali tem de particular oferecer um
jogo destas interpretações sem querer escolher explícitamente en­
tre elas. Veremos todavia que o próprio conteúdo do livro e a

123 SANTO AGOSTINHO, De catechizandis rudibus, XVIII, 29: “Fecit illi etiam
adjutorium feminam [...] ut haberet et vir gloriam de femiha, cum ei praeiret ad
Deum, seque illi praeberet imitandum in sanctitate atque pietate, sicut ipse essei
gloria Dei, cum ejus sapientiam sequeretur.” [“Depois, para o ajudar, criou a mu­
lher [...]. Tinha em vista que para si o homem fizesse da mulher um título de glória,
quando avançasse diante dela direito a Deus e se oferecesse à sua imitação por
meio da santidade e da piedade, tal como ele mesmo seria um título de glória para
Deus, quando imitasse a sua sabedoria”, tradução de G. Combés.]
As Confissões da Carne 319

análise do bem do casamento implicam de facto o privilégio de


uma das hipóteses, que Agostinho apesar de tudo quer, no plano
da exegese, considerar como igualmente plausíveis sem ter de as
’ sondar mais: não há exame aprofundado de cada uma delas, não
; há parecer definitivo sobre uma ou outra. A passagem apresenta-
-se pois como a indicação das diferentes e “numerosas” interpre­
tações que foram dadas do crescimento e da multiplicação ordena­
das ao primeiro casal antes da queda. Interpretação pela procriação
física mas não sexual, esta hipótese aproxima-se da sugerida por
Gregório de Nissa — mas este referia-se à multiplicação enigmá-
J tica dos espíritos angélicos. Agostinho toma três modelos de pro-
f criação não sexual, e que dizem os três respeito a corpos — e a
corpos neste mundo: a criação por Deus do primeiro homem e da
i primeira mulher; a formação do corpo de Cristo no seio da Vir­
gem; e, por fim, exemplo que deve falar aos próprios descrentes, a
reprodução das abelhas. Estas três procriações foram operadas ou
operam-se ainda sine concubitu, e por um bem-fazer (munus) de
■ Deus. Seguindo a lição destes exemplos, podemos pois supor, com
alguns, que Deus podia fazer com que o primeiro casal procriasse
fisicamente sem relação sexual.
A segunda interpretação é bem conhecida: é a que entende esta
multiplicação num sentido “místico e figurado”; a multiplicação
que era proposta — ao mesmo tempo prescrita e prometida — re­
presentava de facto o progresso do espírito e a abundância da
virtude. Em tal caso, não teria havido nascimento real antes da
queda; depois de esta ter acarretado a morte, a descendência teria
sido dada ao homem para que este pudesse, apesar de tudo,
perpetuar-se. É a interpretação que já encontrávamos em Gregório
de Nissa.
A terceira hipótese, que Santo Agostinho cita como sustentada
por alguns, é sem dúvida menos corrente. A Criação teria dado ao
homem um corpo, não espiritual, mas animal; a esse título ele
seria susceptível de morrer; mas, se não tivesse intervindo a falta,
se o homem se tivesse mantido sempre na obediência, esta morta­
lidade não se teria nunca tornado uma morte; os humanos teriam
320 Michel Foucault

acedido directamente ao seu destino espiritual; em suma, teriam


passado sem intermédio do paraíso terrestre onde dispunham do
mundo ao paraíso celestial onde Deus é contemplado face a face.
Mortais escapando à morte, animais de razão e de inocência, os
homens teriam podido pois perfeitamente gestar, e gestar à manei­
ra dos animais, quer dizer, através da relação sexual — etiam per
concubitum —, até que, segundo a palavra, a Terra se enchesse de
uma descendência que não se destinaria a substituir os antepassa­
dos, mas a sobrepor-se-lhes. Nesta interpretação, a relação sexual,
no sentido físico e animal mais estrito, torna-se portanto plena­
mente possível no paraíso: não é nem a consequência nem a causa
da queda; é inscrita na natureza humana pelo próprio acto criador.
Está desligada por isso quer da falta, quer da concupiscência. Es­
tará na mesma medida desligada da morte?
Poderiamos crer que sim, após um exame apressado, uma vez
que o aumento dos seres humanos se faria sem que a morte inter-
viesse, e até à concorrência de um povoamento adequado da Terra.
Procriação sem óbito, multiplicação que nenhuma perda travaria.
No entanto, devemos notar que, antes da exposição das três possi­
bilidades interpretativas que evoca, Agostinho enuncia uma pro­
posição que não parece ser uma das opiniões que podem ser sus­
tentadas e o foram efectivamente, mas antes um princípio geral:
através do pecado, os homens revestiram a condição da morte, e
não pode haver união sexual (concubitus) senão entre corpos mor­
tais. Ora, é este princípio geral que encontramos nas três interpre­
tações, sob reserva de uma modulação particular no caso da ter­
ceira: aqui, com efeito, o concubitus está ligado à possibilidade da
morte, à mortalidade, que faz parte da natureza humana tal como
foi criada; é, por isso, na sua possibilidade, anterior à falta, que
introduz simplesmente a condição efectiva da morte para o género
humano. Numa tal interpretação, antes da emergência da falta, da
corrupção e da morte, antes dos laços que as prendem uma à outra,
a mortalidade e a relação sexual estavam originária e simultanea­
mente presentes, implicadas uma e outra na animalidade da cria­
tura.
As Confissões da Carne 321

É esta terceira interpretação que se encontra finalmente retoma­


da e desenvolvida no De Genesi ad litteram (cuja redacção come-
’ ça pouco tempo depois do De bono conjugad, mas que será termi-
* nada muito mais tarde), depois no XIV livro de A Cidade de Deus,
e nos textos antipelagianistas, que dele são mais ou menos con­
temporâneos. O terceiro capítulo do livro IX do De Genesi ad li­
tteram comenta a passagem, ou antes a frase das Escrituras (Gé-
Inesis, 2,18) em que Deus diz, falando do homem: “Far-lhe-ei urna
auxiliar semelhante a ele.” É urna vez mais a natureza desta auxi­
liar que põe o problema da existência possível das relações sexuais
no paraíso. No livro III, capítulo 21 do mesmo texto, Santo Agos­
tinho comentara o “Crescei e multiplicai-vos”. “Embora” esta or­
dem, explicara ele, “pareça” não poder ser realizada senão através
do concubitus, podemos conceber “outro modo” de multiplicação:
não comportaria a concupiscência da corrupção, e seria o efeito de
um sentimento de piedade. O que esta passagem deix,a na sombra
é a questão de sabermos se este “outro modo” exclui o concubitus
(e é portanto uma dessas operações misteriosas às quais o Senhor
pôde e continua sempre a poder ter recurso) ou se se trata de um
^¿concubitus que teria essa particularidade, surpreendente para
fe. aqueles que não conhecem senão o homem decaído, de não ser
i acompanhado de concupiscência, mas de um movimento da alma
completamente diferente124. Esta incerteza é removida, sem dúvida
t fj> possível, no livro IX do De Genesi.
( Qual poderá ser a natureza do auxílio a que Deus destinava a
mulher? Cinco vezes ao longo deste [livro125], reaparece a mesma
resposta: “para engendrar filhos” (III, 5), “para a procriação” (V,
f , 9), “para a geração” (VII, 12), “para a gestação de filhos” (VIII,
A 13), “para a descendência” (XI, 19). O mesmo é dizer que Agosti-
< , nho abandona aqui inteiramente a ideia de que um tal auxílio seria


J1! 124 Sobre esta passagem, cf. o comentário de P. Agaesse e A. Solignac in (Euvres
'de saint Augustin, t. 49, De Genesi ad litteram (VIll-XIl), Paris, Desclée de Brou-
wer, Bibliothèque augustinienne, 1972, pp. [516-530], nota 42.
«p 125 [Manuscrito: “capítulo”.]
322 Michel Foucault

de ordem espiritual e teria por objectivo contribuir para as alegrias


da contemplação ou da oração126. Ora, como nada no versículo em
questão do Génesis autoriza directamente esta afirmação, é sobre
o raciocínio que Santo Agostinho a estabelece. Ou antes, sobre
dois raciocínios. Um dos quais procede por eliminação'27. Para
que, no paraíso, poderia ter servido a mulher? Para o trabalho da
terra? Por certo que não, porque então o trabalho não era necessá­
rio, e fosse como fosse um outro homem teria sido mais eficaz.
Para que o homem não estivesse só, pudesse viver e falar com al­
guém (convivere e colloquif! Também não, porque é bem sabido
que o melhor companheiro do homem é ainda um homem, e que,
se para a tranquilidade desta relação entre companheiros, certa
desigualdade fosse necessária, teria bastado entre estes dois ho­
mens um pacto apoiado na precedência do que fora criado primei­
ro. Nem para a sociedade, nem para o trabalho: o auxílio da mu­
lher não podia reportar-se senão aos filhos. O outro raciocínio
consiste em mostrar os benefícios de uma descendência para os
primeiros homens e de um povoamento de toda a Terra128. Deve­
mos notar que Agostinho não se serve directamente do texto
“Crescei e multiplicai-vos” para fazer da procriação paradisíaca a
simples aplicação de tal preceito. Quer mostrar que antes da que­
da, fora da morte, e independentemente da preocupação de substi­
tuir os que desaparecem, a proliferação do género humano era já
de buscar. Multiplicando-se, com efeito, a humanidade aumenta a
beleza da Terra. E como não teria sido a multiplicação de homens
justos, antes da queda, um muito grande ornamento se reflectir-
mos sobre as quatro’ coisas seguintes: que as próprias espécies
animais aumentam a beleza do mundo inferior, que os homens até
mesmo corrompidos levam ainda a melhor sobre os animais, que
uma humanidade de numerosos pecadores, mantidos na paz pelo

126 O que não quer dizer que, no casamento, a mulher não possa desempenhar o
papel espiritual. Trata-se aqui do seu destino originário.
127 SANTO AGOSTINHO, De Genesi ad litteram, IX, 5, 9.
128/Wrf.,IX,9,14 e 15.
As Confissões da Carne 323

exemplo de alguns homens rectos, é em si mesma qualquer coisa


de belo, e que por fim os homens que teriam nascido dos primei-
ros pais teriam sido, sem a falta destes, ao mesmo tempo imortais
; e justos? Portanto, a proliferação é em si mesma (e não por com­
pensação da morte) um bem. E que melhor meio para constituir à
I superficie do mundo urna tal societas, do que o nascimento de
- gerações sucessivas “a partir de um só homem”?
Por meio desta multiplicação a partir de um tronco único, a
' humanidade pode cobrir a superfície da Terra tanto quanto Deus
o quis, e conservar a unidade com que o seu Criador desde a ori­
gem quis marcá-la. O décimo quarto livro de A Cidade de Deus,
-consagrado às consequências do pecado original e à concupiscên-
cia, começa precisamente por este tema. A multiplicidade-unidade
<1 do género humano, a humanidade como societas ligada pela seme­
lhança e o parentesco em relações de paz aparecem, antes de toda
a falta e toda a queda e toda a morte, como o fim que Deus visava
jf desde a Criação: “Querendo Deus não só unir os homens numa só
£ . sociedade através da semelhança da natureza, mas também graças
'v aos nós do parentesco, reuni-los numa harmoniosa unidade nos
laços da paz, instituiu a humanidade a partir de um só homem.
Esta humanidade em cada um dos seus membros não devia mor­
rer.”129
Em resumo, sendo os três dados escriturários fundamentais a
} este respeito a criação de dois sexos distintos, a prescrição de cres-
. cimento e de multiplicação, finalmente a adjunção da mulher a
título de auxiliar para o homem, os exegetas anteriores parecem
; ter feito incidir o essencial do seu esforço sobre os dois primeiros;
o seu propósito era evitar não só a presença do acto sexual, mas a
sua própria possibilidade antes da queda; para isso era necessário
que referissem a “mais tarde” o uso de uma diferenciação dos se­
xos cujos efeitos e sentido deviam continuar virtuais até à queda;
era necessário que dessem à multiplicação uma significação espi­
ritual; e, por conseguinte, o terceiro elemento só podia ser deixado

129 SANTO AGOSTINHO, A Cidade de Deus, XIV, 1.


324 Michel Foucault

na vagueza: o auxílio da mulher continuava a ser um tema sem


conteúdo preciso. Em contrapartida, para Agostinho, é esse ele­
mento que serve de ponto de apoio à análise. Tentando circunscre­
ver tanto quanto possível a significação a dar àquele auxílio, ten­
tando definir o que poderia ser, fora de toda a queda e antes da
queda, a relação homem-mulher, procurando o que podiam ser a
forma e o propósito da sua associação, Agostinho, através de elimi­
nações sucessivas, é levado a dar uma significação “física”, “corpo­
ral”, “carnal” à ordem dada ao primeiro casal de se multiplicar, e
um valor imediatamente actualizável à diferenciação originária dos
sexos. Do facto de o ajudante dado ao homem ter sido esse “outro”
que é a mulher — quer dizer, não só um ser que se lhe assemelhe,
não só alguém que lhe seja inferior, mas alguém cuja semelhança-
-inferioridade tome a forma da diferença de sexo —, Agostinho
deduz que essa alteridade tinha por função auxiliar o homem a
fundar e a desenvolver sobre toda a Terra uma societas: uma mul­
tiplicidade de indivíduos ligados entre eles por uma identidade de
natureza e um parentesco de origem. Não foi para compensar os
limites da morte que a multiplicidade dos nascimentos sucessivos,
segundo Agostinho, se introduziu na história do mundo, mas devi­
do com efeito ao privilégio originário de uma “sociedade” como
ornamento e beleza do mundo. E em função das relações do ho­
mem com os homens que a mulher lhe é adjunta a título de auxiliar.
Quem semeia, com o gênero humano, a raça dos seus companhei­
ros inumeráveis tem necessidade da fecundidade de uma terra130.
O “casamento” do primeiro casal implicava para Agostinho ou­
tra coisa que não somente uma relação espiritual; supunha pelo
menos a possibilidade de uma conjunção física, desenhada pela
diferenciação originária dos sexos e prometendo a procriação física

130 “Propter quid aliud secundum ipsum quaesitus est femineus sexus adjutor,
nisi ut serentem genus humanum natura muliebris, tamquam terrae fecunditas,
adjuvaref' [“Por que outra razão Deus dotou o homem de uma auxiliar de sexo
feminino semelhante a ele, senão para que a natureza da mulher, como uma terra
fértil, o secundasse na sementeira do gênero humano”, tradução de P. Agaêsse e A.
Solignac], SANTO AGOSTINHO, De Genesi ad litteram, IX, 9,15.
As Confissões da Carne 325

da descendência. Relação sexual e geração deixam de pertencer em


termos unívocos e necessários à economia da queda. Têm já lugar,
juntamente com o casal dos dois primeiros humanos queridos por
Deus, na ordem de uma Criação ainda não alterada pela queda.
Desta tese, Agostinho não se afastará nunca mais. Tornamos a
encontrá-la largamente exposta no XIV livro de A Cidade de
Deus. Deus criou os primeiros humanos, “homem e mulher”; ins­
creveu “o seu sexo na carne”; e isso “para engendrarem filhos e
por esse meio crescerem, multiplicarem-se, encherem a Terra”;
criou-os pois “como nós vemos e reconhecemos hoje entre os ho­
mens a diversidade dos sexos”131. Tornamos a encontrá-la igual­
mente nos escritos antipelagianistas, sem que nunca os diferentes
contextos polémicos, ou a necessidade de responder às objecções,
tenham modificado o seu fundo: “E a diversidade dos sexos
reporta-se aos órgãos daqueles que engendram, e a sua união
reporta-se à procriação dos filhos, e a própria fecundidade
reporta-se à bênção do casamento.”132
Mas, se a união dos sexos tinha direito de cidade no paraíso, no
primeiro casal, a que sistema de regras deveremos submetê-la no
mundo de hoje?

- III -

Tenha sido ou não a primeira grande sistematização cristã da


vida conjugal e das suas relações internas, o De bono conjugal!
manteve-se em todo o caso como a referência essencial da teologia
moral do casamento para o cristianismo medieval e moderno133. A
‘ teoria dos filis e dos bens do casamento será reportada à sua auto­
ridade. Bens do casamento que asseguram o valor, a par mas

131 SANTO AGOSTINHO, A Cidade de Deus, XIV, 22. À objecção segundo a


qual a Escritura não menciona a união sexual antes da queda, Agostinho responde
que a queda interveio demasiado cedo após a Criação; ou que Deus ainda não or­
denara ao primeiro casal que se unisse.
132 SANTO AGOSTINHO, De nuptiis et concupiscentia, II, 5 (14).
133 [Nota vazia.]
326 Michel Foucault

abaixo, da continência: a progenitura, a fé que une os cônjuges, o


sacramento que os marca de modo indelével. Fins do casamento,
que codificam “o uso” do casamento e que permitem definir as
relações sexuais proibidas e permitidas: a procriação e o remédio
para a concupiscéncia.
Este edificio teórico é bem conhecido. Seria evidente e comple­
tamente inexacto dizer que os seus elementos fundamentais não se
encontram em Santo Agostinho — encontramo-los em numerosas
passagens da sua obra134. Erróneo também pretender que não cor­
respondem ao texto do De bono conjugad. O final do tratado, que
resume o seu conjunto, é muito explícito: “O casamento é pois um
bem em todos os povos e em toda a humanidade porque é o lar da
geração dos filhos e o pacto de uma casta fidelidade. Mas no povo
de Deus acrescenta a esses títulos a santidade do sacramento [...].
Os bens do casamento resumem-se pois inteiramente em três pa­
lavras: os filhos, o pacto de fidelidade, o sacramento.”135136
137
E, numa
outra passagem, Agostinho evoca com efeito os dois fins que serão
regularmente citados mais tarde: “liberorum procreandorum cau­
sa' e “infirmitatis invicem excipiendae causa”'26. Devemos reco­
nhecer que esta formulação esquemática não dá bem conta nem do
movimento dos textos nem das refundições importantes que Agos­
tinho trouxe à concepção do casamento, à análise que dele pode­
mos fazer e por fim ao sistema das regras que devem presidir à
conduta dos esposos.
Agostinho, como já vimos, dá ao casamento uma dupla caução:
a da origem, uma vez que faz parte da Criação; a da Igreja, uma
vez que faz parte das formas espirituais que a constituem. É por­
tanto um bem — aliquid boni'21. Bem em si mesmo, o que quer
dizer que não o é só por comparação (melhor que o mal da forni-
cação), o casamento não é no entanto um bem por si mesmo.

134 Assim no De nuptiis et concupiscentia, I, 1 (1) e I, 21 (23). No Contra Ju-


lianum, V, 46, temos à exposição clássica dos “dois fins” e dos “três bens”.
135 SANTO AGOSTINHO, De bono conjugali, XXIV (32).
136 Ibid., VI (6).
137 ¡bid., III (3).
As Confissões da Carne 327

Referindo-se a uma diferença filosófica tradicional, Agostinho


distingue o que é desejável por si mesmo, e o que é desejável por
outra coisa que não por si mesmo, quer dizer, por um desses fins
que não têm necessidade de se referir a qualquer outro. Traça o
quadro seguinte. Fim por si mesma: a sabedoria (sapientiafr bem
que se refere a esse fim: o saber (doctrina), que não se deseja por
si mesmo mas a fim de se alcançar a sabedoria. Fim por si mesma:
a saúde (salus)-, bens que se lhe referem: beber, comer, dormir.
Quanto ao casamento, que, como o saber, o alimento, o sono, não '
é o próprio fim de si mesmo, a que bem se refere? A amizade que,
tal como a saúde e a sabedoria, é desejável por si mesma138.
Todo o De bono conjugali se coloca sob o signo da seguinte
noção que aparece desde as primeiras linhas do texto: a amizade
é um fim que exerce sobre o homem uma força considerável, de­
vido à sua própria natureza: o indivíduo com efeito é um “elemen­
to”, uma “parte” do género humano, e é, em si mesmo, enquanto
homem, um ser social139. A amizade liga-o a esse conjunto do qual
ele naturalmente faz parte; e o casamento é desejável, na medida
em que permite formar, multiplicar e estabelecer solidamente tais
laços de amizade.
Nada de muito novo neste tema. É perfeitamente familiar na
filosofia antiga. E está também presente em muitos autores cris­
tãos: encontrámos uma sua versão nas homilías de Crisóstomo.
Contudo, é a partir desta concepção da societas e da amicitia que
Agostinho elabora a sua teoria do casamento e das relações conju­
gais, e nela introduz um certo número de elementos decisivos.
Essencialmente sobre três pontos: sobre o papel do casamento na
economia geral da salvação; sobre a natureza do laço conjugal;
sobre o princípio de regulação das relações sexuais entre esposos.

138 “Propter amicitiam sicut nuptiae vel concubitus", ibid., IX (9). Sobre o “vel
concubitus”, cf. infra, pp. 328-330.
139 “Homo humani generis pars est et sociale quiddam est humana natura”, ibid.,
!(!)•
328 Michel Foucault

1. Quando Crisóstomo, em textos plenamente contemporâneos


do De bono conjugali, via no casamento uma maneira de estabe­
lecer entre os homens um laço de sociedade, designava assim uma
utilidade a que poderiamos chamar episódica. O casamento tinha
o seu papel entre queda e salvação: depois da primeira, para repa­
rar as destruições da morte ou delas consolar os homens; antes da
segunda, cuja iminência hoje torna doravante inútil a multiplica­
ção dos humanos. O valor do casamento pertence para ele a um
tempo que é o da lei e da morte. Um tempo que se conclui.
O De bono conjugali articula de um outro modo os momentos
da história humana e a necessidade da societas. Numa palavra:
desprende esta da sua função episódica e do seu estatuto provisó­
rio. Torna-a uma constante e já não um momento; mas a esta
constante, o drama das relações entre Deus e o homem traz modi­
ficações capitais.
Já o vimos: se o ser humano foi criado “homem e mulher”, foi
em vista de uma societas cuja necessidade estava inscrita na pró­
pria natureza de indivíduos destinados a pertencer ao gênero huma­
no. A “societas” não esperou pelo castigo da morte para se tornar
necessária e fazer do casamento um bem. Mas estará ainda inscri­
ta no nosso presente? Terá na hora da Encarnação suficiente futuro
para recomendar o casamento? O seu papel natural não pertencerá
doravante ao passado? O De bono conjugali evoca bem, com efeito,
o momento em que a proliferação do gênero humano deixará de ser
requerida: ‘“A ciência será destruída’ [...]. Do mesmo modo, esta
procriação de mortais que é o fim do casamento deixará de existir,
enquanto a continência, que é desde este mundo uma forma anteci­
pada da vida dos anjos, permanecerá eternamente.”140 Uma formu­
lação como esta está muito próxima, até mesmo nos seus termos,
das de Crisóstomo, de Gregório de Nissa ou de Basílio de Ancira.
Mas devemos distinguir no tema do “tempo da continência” duas
idéias diferentes. A que é evocada no texto precedente: trata-se na
realidade do fim dós tempos, em que, com efeito, as relações físicas

140 Ibid., VIII (8).


As Confissões da Carne 329

deixarão de ter o seu lugar, uma vez que a cidade celeste admitirá
somente relações espirituais. E a que é evocada por várias vezes
noutras passagens141: trata-se então da situação actual do gênero
humano. Agostinho caracteriza-a por um facto e uma tarefa. O
estado de coisas é um povoamento já bastante abundante: foi asse­
gurado, e continua ainda a sê-lo, por um grande número de pessoas
que, casadas ou não, não praticavam a continência; oferecendo as­
sim uma grande “provisão de sucessões”. A tarefa: é a que consiste
em ligar a partir de tantos seres humanos santas amizades, e em
formar assim, pouco a pouco, através de todas as nações, um “vas­
to parentesco espiritual”, uma “sociedade santa e pura”. O presente
deve pois ser pensado menos na urgência do que na longa duração;
menos como um termo iminente do que como um equilíbrio a
deslocar lentamente. O De bono conjugali não anuncia a entrada
numa idade da virgindade, em que o casamento, até então necessá­
rio, deverá ser abandonado; mostra antes, mantendo embora, bem
entendido, o horizonte do fim dos tempos, a existência de um pe­
ríodo, o nosso, no qual a proliferação do gênero humano, graças às
uniões físicas, será como que a matéria necessária à multiplicação
de parentescos espirituais. Virgindade e matrimonialidade poderão
achar-se portanto associadas, cada uma delas no seu lugar, de acor­
do com o princípio de que o conjunto em que se compõem é ainda
mais belo do que a mais bela das duas.
Agostinho redefine assim, em profundidade, a escansão que era
de maneira bastante geral reconhecida antes dele: momento da vir­
gindade paradisíaca, na inocência que precede a queda; depois,
tempo do casamento e da fecundidade, sob a lei da morte; depois,
regresso à virgindade, quando chega a salvação e o tempo se acaba.
A escansão que se desenha no De bono conjugali é muito diferente:
não faz alternar num ciclo virgindade e casamento; marca antes as
diferentes maneiras de constituir a societas, que é, em qualquer ca­

141 Assim em XIV (32), ibid:. “Na nossa época, é melhor, de todos os pontos de
vista, e mais santo não buscarmos uma descendência carnal [...] e submetermo-
-nos espiritualmente ao único esposo, Cristo.”
330 Michel Foucault

so, o “fim” do gênero humano. Houve de início a possibilidade, no


paraíso, de uma societas ao mesmo tempo corporal e espiritual; veio
depois o tempo em que os homens propagaram a raça, uns “venci­
dos pela paixão” (yicti libidiné), os outros — os Patriarcas — “con­
duzidos pela piedade”: os últimos, se lhes tivesse sido permitido,
ter-se-iam mantido continentes; mas se casaram e “se reclamavam
filhos no seu casamento, era em vista de Cristo, para distinguir a sua
raça, segundo a carne, de todas as nações”142. Hoje, a distinção é
outra: já não entre a proliferação ímpia e a procriação santa, mas
entre os que se votaram às relações espirituais e os que, não poden­
do aceder à continência, continuam a povoar a Terra. Uns e outros
preparam a cidade futura: os primeiros multiplicando as relações
espirituais; os segundos vergando-se à lei do casamento único que
figura simbolicamente a unidade vindoura da sociedade celestial143.
Por fim, o quarto tempo é o desta cidade ela mesma. Nela, a multi­
plicidade já não será a da proliferação dos seres humanos, resultan­
tes das suas conjunções; e a unidade já não será a dos casais adstri­
tos a não praticarem mais do que um só casamento. A multidão das
almas reunir-se-á e não terá mais do que um só coração e um só
espírito na unidade de Deus. Todas as relações, doravante espiri­
tuais, convergirão só na sua direcção; e é assim que, depois da “pe­
regrinação” deste mundo, a societas a que estava destinado o gênero
humano encontrará a sua realidade final na unidade da cidade celes­
te. Agostinho já não refere, pois, o valor do casamento a esse bem
absoluto da virgindade que marcava o estado inicial da humanidade
e o ponto último do tempo; refere-a ao fim universal e constante da
societas. E, se o casamento nem sempre teve a mesma forma, nem
o mesmo papel, nem as mesmas obrigações, se nem sempre se opôs
do mesmo modo à virgindade, é que antes e depois da queda, antes
e depois da vinda do Salvador, o gênero humano não caminhou da
mesma maneira rumo à cidade futura.

142 Ibid., XVII (19) e XIX (22).


143 Ibid., XVIII (21).
As Confissões da Carne 331

2. O privilégio concedido à societas permite dar uma caracteri­


zação do casamento centrada na noção de laço. O casamento é
antes de mais uma associação, e como tal um elemento de base da
sociedade. Ora, deveremos compreender que este laço recebe o seu
valor do acto natural da procriação que permite em formas legíti­
mas, ou de uma estrutura jurídica que compromete os cônjuges um
com o outro? O laço matrimonial será condição de um parentesco
ou efeito de um “pactum”! A análise do De bono conjugali é mais
complexa do que a simples escolha entre estes dois termos.
Não devemos minimizar o papel da procriação e da descendên­
cia na problemática agostiniana do casamento. Veremos mais
adiante a sua importância. E é um facto que, se não houvesse pro­
genitura, e por isso sucessão nas gerações, o género humano não
poderla, nos seus elementos contemporâneos e sucessivos, estar
ligado segundo a modalidade de urna connexio societatisw*. Se
encararmos o género humano na sua totalidade e no seu destino, a
necessidade do casamento não pode ser pensada sem a progenitu­
ra. Mas, tomado em si mesmo, e como instauração de uma relação
entre duas pessoas, o laço matrimonial não pode ser considerado
como dependente da progenitura e da procriação. Por si mesmo, o
casamento constitui o primeiro elo da sociedade, e esse laço não é
menos forte do que o do nascimento, como o Criador o mostrou
“ao tirar a mulher do homem” e “ao marcar mais ainda a força da
sua união através da costela que extraiu de um para formar a ou­
tra”145. Antes ainda de toda a procriação, o casamento é por si
mesmo um bem, na medida em que estabelece entre o marido e a
mulher uma relação que tem o triplo carácter de ser “natural”, de
juntar dois sexos diferentes146, e de constituir como elemento de
base da sociedade uma conjunção de amizade e de parentesco147.
Segue-se pois que, se a procriação prolonga este laço — e, em

144ZWd.,I(l).
145 Ibid.
146 “Naturalis ín diverso sexu societas", ibid., III (3).
147 “Amicalts quaedam et germana conjunctio", ibid., I (1). Notar que esta con­
junção é aqui definida pela relação de obediência e de comando.
332 Michel Foucault

certas condições, está bem que seja assim —, não é dele condição
e a sua ausência não o compromete. E Agostinho apresenta dois
testemunhos de que assim é. O casamento existe entre pessoas
idosas, ainda que a estas seja impossível procriar, ou que os seus
filhos tenham já morrido; em qualquer dos casos, o laço subsiste,
independentemente da progenitura148. Do mesmo modo, o casa­
mento não pode ser desfeito quando, contraído em vista de se te­
rem filhos, permanece estéril a despeito dos esposos149.
A esta relação o De bono conjugali dá regularmente o nome de
pactum ou à&foedus, cujas conotações jurídicas são evidentes150.
Examinando as coisas de mais perto, Agostinho desenvolve a sua
análise em dois registos. Refere-se, com efeito, ao tema de um laço
que recebería uma caução institucional ou das regras de direito, ou
da lei divina; ora, o direito civil é invocado como revelador a pro­
pósito da forma do laço matrimonial: assim, a lei romana manifes­
ta o carácter exclusivo deste laço, uma vez que proíbe o marido de
tomar uma segunda esposa enquanto a primeira viver151; ora, as
leis religiosas fazem valer princípios justos que as regras da socie­
dade ignoram: assim impedem —diferentemente das leis civis —
o novo casamento de um esposo cuja mulher cometeu adultério152.
Mas Agostinho faz entrar em jogo também o pactum num outro
registo, o das relações entre as almas e entre os corpos: apego das
almas que constitui entre os esposos — e independentemente do
ardor físico, muitas vezes até mesmo com uma intensidade inversa
da sua — um ordo caritatis', mas também laço físico, no sentido
de cada um dos dois cônjuges reservar o seu corpo para o outro.
Na famosa passagem da Primeira Epístola aos Corintios — “o
corpo da mulher não está em seu poder, mas no do marido, e de
modo semelhante o corpo do marido não está em seu poder, mas
no da mulher” (7, 4) —, vê-se geralmente a afirmação do direito

148 Ibid., III (3).


149 Ibid., VII (7) e XV (17).
150 Sobre este tema, cf. [nota incompleta].
151 De bono conjugali, VII (7).
152 Ibid.
As Confissões da Carne 333

r de cada um dos esposos a ter relações físicas com o outro; mas


Agostinho, pelo menos numa das duas citações que déla faz,
$ atribui-lhe uma significação de certa maneira negativa: exprimiría
| a proibição de violar o pacto conjugal, como acontece “quando, ao
L apelo da sua própria paixão, ou ao da de outrem, o esposo tem
relações com uma outra mulher, ou a mulher com um outro ho-
mem”153. Não-traição, mais do que posse: tais laços são da ordem
da fides.
Ordem que não é estranha ao direito, bem entendido, e muitas
vezes se conjuga com ele154, mas que apesar de tudo não lhe pode
ser reduzida — como prova imediatamente o exemplo de fides
dado por Agostinho: que, num negócio, se trate de um punhado de
palha ou de uma montanha de ouro pouco importa, a fé que ga­
rante a honestidade é exactamente a mesma e tem o mesmo valor.
É necessário compreendermos que a fides sustenta a convenção,
> que se manifesta na exactidão com que aquela é observada, mas
que não é da mesma natureza que ela. E, do ponto de vista das
faltas que podem ser cometidas no que se lhe refere, não tem os
mesmos efeitos que a convenção tal como a garantem as leis.
Agostinho, em três exemplos, mostra claramente que para ela a
fides não se identifica com o pactum — pelo menos, se entender­
mos este último num sentido puramente jurídico. Estes três exem­
plos têm por quadro o adultério, que é ao mesmo tempo uma ca­
tegoria do direito e um atentado a. fides. Parecería à primeira vista
que a condenação do adultério manifesta a adequação entre o laço
jurídico e o apego da fidelidade. Ora, cada um dos exemplos cita­
dos por Agostinho mostra o seu desfasamento.
— Suponhamos uma mulher que deixou o seu esposo por um
amante: ruptura de fidelidade. Mas haverá daí em diante para ela,
e para a sua moralidade, alguma diferença conforme se mantenha

153 [ZWd.,IV(4).]
154 Notar a propósito deste princípio de não-traição a expressão de AGOSTINHO:
“Cui fidei tantum jurís tribuit Apostolus, ut eam potestatem appellaret” ([Subli­
nhado por M. F. “O Apóstolo atribui a esta fidelidade um tal carácter de justiça que
lhe chama poder”, tradução de G. Combés]), ibid., IV (4).
334 Michel Foucault

ou não fiel ao seu amante? Do ponto de vista do pactum jurídico,


não há qualquer diferença, uma vez que o único pactum existente
— o que a ligava ao seu marido — foi quebrado. E todavia pode­
mos dizer que, sendo embora desonesta, a mulher o será menos se
se mantiver apegada ao seu cúmplice do que se de novo mudar de
amante. Mas será mais honesta se aquele por quem abandonar
aquele for o seu marido, para junto do qual regresse. A fides, como
aqui vemos, modula a falta segundo graus que a transgressão do
pactum não conhece.
— Imaginemos agora um homem e uma mulher que vivem
juntos; não procuram ter filhos — sem nada fazerem de criminoso
em vista de impedir um nascimento; assumiram o compromisso
da fidelidade e a ele se atêm com efeito pelo menos até à morte de
um deles. A esta união que nenhum acto jurídico sustenta — e que
é portanto concubinato — podemos dar o nome de “casamento” a
partir do momento em que a fidelidade seja nela respeitada. A
simples fides pode pois do ponto de vista da moralidade ter os
mesmos efeitos que teria um pactum reconhecido pela lei.
— Seja finalmente um homem e uma mulher que não são casa­
dos. Têm uma ligação transitória. O homem, pelo seu lado, não
espera senão uma ocasião que o faça encontrar uma mulher rica e
respeitável. Mas a mulher, essa, entende permanecer fiel ao seu
amante; e, depois de abandonada guarda continência. Não pode­
mos dizer que não pecou, pois teve relações fora do casamento.
Mas poderiamos chamar-lhe adúltera? E se nada tiver feito, ao
longo de toda a sua ligação, a fim de não ter filhos, não prevalece­
rá sobre “bom número de matronas”, que não são adúlteras mas
não se servem do casamento senão para satisfazerem a sua concu-
piscência?
Estes exemplos155 mostram bem a não-coincidência da fides
com o que seria um vínculo puramente jurídico. Ainda quando
parece ter a mesma forma e as mesmas consequências — a propó­
sito do adultério —, introduz elementos que são irredutíveis a uma

155 Encontramo-los nos capítulos IV e V.


As Confissões da Carne 335

{ simples obrigação de direito. Elementos positivos: as afeições da


alma, os compromissos que se reportam a si mesmo, o respeito
devido ao outro; mas também modulações da falta, que permitem
hierarquizar entre elas condutas que a forma da lei assimilaria.
Desta fé, Agostinho não faz um traço próprio do casamento
cristão. Pode constituir um bem do casamento em “todos os po­
vos” e “entre todos os homens”156. Em contrapartida, o que não
i pertence senão à união dos cristãos é ser um “sacramento”. O
sentido que esta palavra toma no De bono conjugali talvez não
seja muito fácil de captar, na medida em que não se trata eviden­
temente do “sacramento do casamento”, tal como este será enten­
dido muito mais tarde no cristianismo medieval, e também na
medida em que no entanto Agostinho o aproxima do “sacramento
da ordem”, tal como é conferido pela ordenação de um clérigo.
Mas a própria maneira como a aproximação se opera, bem como
uma citação que Agostinho toma de empréstimo à Primeira Epís­
tola aos Corintios, permite que distingamos aquilo que faz do ca­
samento cristão um “sacramentam”.
O texto escriturário diz que “a mulher não deve separar-se do
seu marido, e que, se se separar, deve ou manter-se sem tornar a
casar ou reconciliar-se com ele” (I Cor., 7,10-11). Para Agostinho
esta passagem ilustra o sacramento e não a fidelidade — a que São
Paulo se referiría ao falar do poder que cada um dos esposos exer­
ce sobre o corpo do outro. É que a fidelidade supõe a reciprocida­
de (daí a palavra pactum que se lhe aplica, ainda que na condição
de se lhe dar um valor que não é o jurídico); quando um dos côn-
, juges desfaz esse laço, como poderia ainda continuar a impor-se o
simples dever de fidelidade? Ao passo que, se a mulher está sepa­
rada do seu marido — Agostinho não está a pensar evidentemente
na mulher adúltera, mas naquela que tivesse deixado o seu marido
após o adultério deste, ou naquela que ele tivesse repudiado —, o
sacramento retira-lhe o direito de contrair uma outra união. O
casamento com o laço exclusivo que estabelece com uma pessoa e

156 De bono conjugali, XXIV (32).


336 Michel Foucault

só uma continua a obrigar cada um dos cônjuges, ainda quando


um deles o tenha, por sua própria iniciativa, desfeito. Trata-se de
certo modo de uma marca pessoal. Tal é o sentido da aproximação
operada entre o casamento e a ordenação. Esta é evocada por
Agostinho somente sob um dos seus aspectos: uma vez consagra­
do, aquele que recebeu o sacramento da ordem pode de facto não
ter recebido rebanho, ou pode de facto ter sido demitido do seu
cargo, mas nem por isso deixa de continuar ordenado ou o sacra­
mento de o marcar para sempre157. Ora, esta marca de onde pode­
ría vir? Por certo que não de um laço jurídico que não é susceptí­
vel de impor ao indivíduo uma coerção que subsista uma vez
desfeito o laço. Por certo que também não de uma fidelidade que
implique uma reciprocidade das vontades. Mas de uma marca, de
um selo imposto por Deus e que liga o indivíduo ao seu estado de
casamento, enquanto o próprio Deus não chamar a si o seu cônju­
ge. “Na Cidade do nosso Deus, onde, desde a primeira união de
duas criaturas humanas, as núpcias se revestem de um carácter
quase sagrado, o casamento, depois de legalmente concluído, não
pode ser desfeito de qualquer outra maneira que não a morte de
um dos esposos.”158
Em suma, o laço do casamento tal como é descrito no De bono
conjugali distingue-se de um laço jurídico de duas maneiras: pela
“fidelidade” e pelo “sacramento”. Uma e outro podem ser ditos
“bens” do casamento na medida em que não se limitam a assegurar
o que cada um pode procurar por si mesmo, mas fazem entrar cada
um dos dois esposos numa societas. Uma sociedade na qual a sua
alma e o seu corpo estão ligados pelo apego da fidelidade. Uma
sociedade na qual Deus os faz participar individual e definitiva­
mente através da marca indelével do casamento que lhes impõe.

157 Ibid., XXIV (32), cf. também VII (6): “Usque adeofoedus illud initum nuptia-
le cujusdam sacramenti res est, ut nec ipsa separatione irritum fiai” (e a continua­
ção) [“O contrato social é a tal ponto sagrado que nem mesmo a separação pode
rompê-lo”, trad. G. Combés).
158 Ibid., XV (17).
As Confissões da Carne 337

3. Devemos voltar agora a essa questão da progenitura, que pa­


rece tornar-se bastante secundária a partir do momento em que a
essência do casamento cristão se define pelo laço de fidelidade e
pela marca do sacramento. Agostinho diz explícitamente e por
varias vezes que a progenitura é um dos três “bens” do casamento
— um dos elementos que, mantendo o casamento num lugar abai­
xo do da continência, permitem reconhecê-lo como bom, se não
por si mesmo, pelo menos em si mesmo.
No entanto as formulações do De bono conjugali, como as dos
textos posteriores, dão a este terceiro bem uma posição particular.
Por um lado, com efeito, Agostinho diz — e mostra através das
suas análises — que é menos importante do que os outros. “No
nosso casamento a santidade do sacramento tem mais valor do que
a fecundidade do seio.”159 E menos constitutivo do casamento do
que os outros dois bens, uma vez que a ausência ou o desapareci­
mento da progenitura não dissolve o casamento e inversamente
não pode ser a intenção de fazer filhos a transformar uma ligação
em casamento160. Mas, por outro lado, abundam as afirmações,
dizendo que a procriação é o propósito, e até mesmo o único pro­
pósito do casamento. Em todas as nações o casamento tem o mes­
mo propósito: a procriação de filhos161; a geração é aquilo que
causou que as núpcias fossem instituídas162.
A explicação deve sem dúvida ser procurada na relação entre
estas duas noções de “bem” e de “fim” do casamento. Se nos lem­
brarmos da teoria geral dos bens163, compreenderemos facilmente
como a progenitura pode ser considerada um bem do casamento a
par do sacramento e da fidelidade. O casamento, como se recordará,
é um fim desejável, mas como meio para outro fim, que, esse, vale

159 Ibid., XVIII (21).


160 Ibid., XXIV (32). Vimos em contrapartida que uma ligação que comporta
compromisso de fidelidade, sem que haja intenção de progenitura, pode ser dita
connubium.
161 Ibid., XVIII (22).
162 Ibid.
163 Exposta em XVI (18), cf. supra, pp. [325-327],
338 Michel Foucault

em si mesmo: a amizade ou o laço que apega naturalmente os hu­


manos uns aos outros enquanto partes de um mesmo género huma­
no. A progenitura é uma maneira de ligar os indivíduos e por isso
de produzir ou desenvolver a societas. Mas devemos imediatamente
sublinhar que não opera esse laço no casamento como o sacramen-
tum ou &fides. Estes últimos são caracteres próprios do laço matri­
monial; fazem intrinsecamente parte dele. A progenitura não pode
ser mais do que um efeito do casamento, uma das suas consequên­
cias. E o laço matrimonial, que forma em si mesmo um elemento da
sociedade, encontra na primogenitura um meio de desenvolver para
lá de si mesmo as relações necessárias a essa sociedade. A progeni­
tura é um “objectivo” que o casamento deve propor-se em vista de
um fim que alcança noutro lugar no seu próprio ser de laço indelé­
vel entre indivíduos. Mas devemos acrescentar que, sem a procria-
ção, o laço do casamento não seria por si só suficiente para que
pudesse desenvolver-se uma sociedade à escala do género humano:
o primeiro casal teria ficado só no mundo. Podemos dizer pois que
a proles é em si mesma um bem do casamento, uma vez que liga os
indivíduos; que não é uma sua condição indispensável, uma vez que
o casamento pode existir sem ela; que é um seu objectivo, uma vez
que é um meio para o casamento de aceder ao seu fim, a sociedade;
que é até mesmo “o único” objectivo do casamento, por oposição ao
sacramento e à fidelidade (que fazem, esses, parte intrínseca do laço
matrimonial) e em função do seu carácter indispensável para a uni­
dade dos indivíduos no interior do género humano.
Mas o papel da procriação no casamento é ainda complicado pelo
facto de não poder ser dissociado do estatuto das relações sexuais.
Não só, certamente, porque estas relações são indispensáveis à pro­
les, mas porque a determinação da progenitura como fim serve de
princípio regulador das relações sexuais: “A continuidade da socie­
dade faz-se através das crianças, único fruto honesto, não da união
(conjunctiò) do marido e da mulher, mas do seu comércio carnal
(concubítus)'M. Com efeito, para Agostinho, é bem a necessidade da

164 [De bono conjugali, 1(1).]


As Confissões da Carne 339

proles que faz com que a “conjunção” de dois indivíduos no casa­


mento se dobre de um acto entre homem e mulher. Mas seria errôneo
reduzir a análise de Agostinho à pura e simples sujeição da relação
sexual à possibilidade e à obrigação de fazer filhos. Longe de encon­
trarmos nele um bloco unitário constituído pelo casamento, a relação
sexual e a procriação (como era o caso entre certos moralistas da
época helenística e romana, ou em Clemente de Alexandria), pode­
mos constatar um certo número de dissociações e de desfasamentos.
Devemos sublinhar primeiro a maneira como o De bono conju-
gali volta à questão da impureza das relações sexuais165. As prescri­
ções do Levítico tinham muitas servido aos autores cristãos para
mostrarem que toda a relação física trazia em si alguma coisa do mal
e da falta, uma vez que reclamava ritos de purificação, até mesmo
entre esposos legitimamente casados. Ao que Agostinho responde
por meio de dois argumentos. Um é de alcance geral: o que é impu­
ro não é, de si, um pecado: as regras das mulheres são impuras, e os
cadáveres também; onde está a falta? O outro argumento é específi­
co da relação sexual: a semente é, sem dúvida, impura. Mas é-o
como tudo o que é ainda grosseiro, imperfeito, mesclado de elemen­
tos que devem desaparecer para [que] a forma definitiva e perfeita
apareça. De modo que, assim compreendidas, as prescrições do
Levítico não designam a impureza do acto sexual em si mesmo, mas
a da semente; não se reportam senão àquilo que a semente deve
despir de si mesma antes de atingir a sua finalidade; por fim, têm
um valor simbólico: mostram ao homem que deve “purificar-se des­
sa vida informe, revestindo a forma da doutrina e da ciência”166.
. Assim, Agostinho, justificando embora as práticas rituais, evita dar
ao acto sexual em si mesmo uma valorização negativa. Conserva-o
no estatuto natural que lhe dá a sua utilidade para o desenvolvimen­
to do gênero humano: “o que o alimento é para o indivíduo, a união
[concubitus) é-o para a saúde do gênero humano”167.

165 Ibid., XX (23).


166 Ibid.
167 Ibid., XVI (18).
340 Michel Foucault

Que o acto sexual não seja em si mesmo mau não significa que
seja sob todas as suas formas e em todos os casos aceitável. Agos­
tinho faz intervir várias formas de limitações. Umas pertenciam já
à moral antiga. As outras são mais específicas da doutrina cristã.
As primeiras são as que, de um modo geral, prescrevem a “tempe­
rança” e a rejeição de toda a forma de “excesso”. Ora, como se
define a temperança? Pela manutenção no “uso natural”168. E este
uso natural é, para Agostinho como para a tradição antiga, o acto
sexual quando tem a forma que permite eventualmente a procria-
ção. Mas, relativamente a este uso natural, podem ser cometidos
dois tipos de faltas, entre as quais Agostinho não marca uma se­
paração muito nítida, embora marque entre elas uma grande dife­
rença moral. Por um lado, há o simples “excesso” quantitativo; é
aquele a que nos entregamos indo “para lá da necessidade da
propagação”: gestos feitos e prazeres tomados que não são sim­
plesmente os que requer o acto sexual “natural”, mas que o acom­
panham ou o preparam. Por outro, há os actos contranatura, que
são definidos pelo uso de uma parte do corpo da mulher que a tal
não é destinada169. As primeiras de entre estas faltas não são mui­
to consideráveis. As segundas, em contrapartida, são muito graves.
Sob reserva desta hierarquia, Agostinho condena-as numa fórmu­
la que poderiamos encontrar entre os filósofos da Antiguidade: “A
honra conjugal é a castidade na procriação.”170
Mas faz intervir também outros princípios de regulação do acto
sexual. Esses mesmos a que se referia Crisóstomo na mesma épo­
ca. Abrem a possibilidade de legitimar entre os esposos actos se­
xuais que não têm fim procriador: na condição de cada um dos
dois parceiros não ter em vista senão evitar ao outro pecados
maiores — aqueles que cometeríam ou fora do casamento, ou os
que seriam contra as regras da natureza. Aqui já não se trata do

168 A temperança tem por papel "redigere" o prazer, a delectatio, “in usum natu-
ralem”, ibid., XVI (18).
169 íbid.,Xl (12).
nOIbid.
As Confissões da Carne 341

fim “natural” do casamento, mas da consequência do laço pessoal


que ele estabelece e da ordem das obrigações a que compromete.
Esta tomada em consideração da concupiscência do outro, do au­
xílio que é necessário prestar-lhe em vista da sua salvação, funda
o dever conjugal. E significativo que o texto de São Paulo a respei­
to do corpo da mulher que está no poder do marido e do do mari­
do que está no poder da mulher não seja comentado por Agostinho
como a expressão de um direito de posse do qual o acto sexual
seria consequência directa171. Se um dos esposos pode reclamar o
corpo do outro, e se este não pode recusar-lho, não é que seja seu
senhor e soberano, mas é que se trata para si mesmo de escapar ao
risco de cair no pecado: “Devem-se também, para evitarem as
relações interditas, uma espécie de servidão recíproca que seja um
apoio mútuo da sua fraqueza.”172 Em suma, cada um deles deve
esse serviço, essa servidão, não em função do domínio do outro
sobre o corpo do cônjuge, mas da sua fraqueza relativa ao seu
próprio corpo.
Deste princípio, Agostinho extrai certas consequências gerais já
bem conhecidas: ninguém pode votar-se à continência perpétua
sem o consentimento do outro. Estabelece a hierarquia, que terá
tanta importância mais tarde e suscitará tantas dificuldades: a re­
lação conjugal que se faz em vista da procriação é completamente
isenta de pecado; a que é consumada “para satisfazer a concupis­
cência” constitui uma falta venial; quanto aos actos que se come­
tem fora ou contra os laços do casamento (fornicação ou adulté­
rio), ou ainda os que, no casamento, são contrários à natureza, são
pecados mortais. Mas Agostinho vai muito mais longe na codifi­
cação das relações entre esposos. E que a própria ideia de um
pecado venial ligado à relação quando esta se destina a satisfazer
somente a concupiscência não é clara. Por que razão o dever con­
jugal não se destinará a fazer com que, independentemente até da

171 Sobre uma outra citação deste mesmo texto e a sua interpretação como regra
de fidelidade, cf. supra, p. [337].
172 De bono conjugali, VI (6).
342 Michel Foucault

procriação, se torne possível dar à concupiscência do outro um


modo de se satisfazer sem cair em faltas talvez mais graves? É
necessário por isso introduzir uma distinção entre aquele que re­
clama que lhe seja prestado o dever conjugal e aquele que o presta.
O último, pelo menos na medida em que aceite para evitar ao seu
cônjuge cair numa falta mais grave, não comete ele mesmo qual­
quer falta, ainda que venial, uma vez que tudo o que faz é aplicar
uma regra que deriva do estado de casamento173. Mas aquele que
o reclama? A posição de Agostinho parece menos clara. Por um
lado, fala de pecado venial174 para aqueles que estão “sob o jugo
da concupiscência”, e, portanto, ao que parece, para aqueles que
reclamam o dever para outros fins que não a procriação. Mas, por
outro lado, evoca a tolerância que o Apóstolo concede aos que
manifestam uma insistência abusiva em reclamar o dever175: se­
riam eles por conseguinte a cometer um pecado venial. Devere­
mos compreender então que aqueles que reclamam o dever com a
intenção de evitarem o risco de um pecado mortal não cometeríam
qualquer pecado, mas seriam assim tão inocentes como os que o
prestam? — o que parece difícil em si, mas constitui a única solu­
ção compatível com a ideia do pecado venial contraído por aqueles
que o pedem com demasiada insistência. Quanto aos dois esposos
que, nos termos de um consentimento mútuo, reclamam um do
outro o dever conjugal, o texto de Agostinho a seu respeito é difí­
cil de interpretar. Segue-se imediatamente à proposição que des­
culpa de todo o pecado o cônjuge que presta o dever para evitar ao
outro o pecado: “Se contudo os dois esposos estão sob o jugo de
uma tal concupiscência, fazem alguma coisa que em nada perten­
ce ao casamento. Mas se, pelo contrário, têm mais atracção, na sua
união, pelo que é honesto do que pelo que é desonesto, quer dizer,
mais atracção pelo que pertence ao casamento do que pelo que não
lhe pertence, têm para desculpar as suas fraquezas a garantia do

173 Zòz</., X (11).


174XI (12).
YlSIbid.
if.

sí As Confissões da Carne 343

I Apóstolo.”176 Parece possível compreendermos que a relação con­


jugal, se for realizada por urna e pela outra parte devido à concu-
piscência de cada um dos dois esposos, sai das regras estritas do
i casamento e pode por isso tornar-se urna coisa grave. Pode no
* entanto manter-se dentro dos limites de indulgência do venial com
|,uma condição: que os cônjuges se atenham ao que é honesto (quer
dizer, aos gestos delimitados pela vontade de procriação, ainda
Íque tal vontade não esteja presente) ou de um modo geral ao que
pertence “ao casamento”: quer dizer, o nascimento possível de
sl uma progenitura e o cumprimento do dever.
* De facto, o De bono conjugali delineia aqui os primeiros rudi-
* mentos de uma jurisprudência das relações sexuais entre esposos
' que, sobretudo na segunda metade da Idade Média e até ao século
xvni, assumirá uma importância considerável. Constituir-se-á as-
; sim um código extremamente complexo da sexualidade conjugal.
, Para que este se desenvolva, será necessário todo um conjunto de
condições sociais e culturais. Será necessário também que sejam
redesenhadas, ou pelo menos completamente elaboradas algumas
das proposições que o De bono conjugali contém ainda. Essas
proposições referem-se à maneira como o casamento transmuta
qualitativamente as relações sexuais e o prazer a que dão lugar.
Duas séries de passagens em particular são significativas. Umas
reportam-se à moderação da libido. Logo na abertura do tratado,
é dito que “o laço conjugal transforma em bem o mal de concupis-
cência”. E esta transformação é explicada pelo papel de modera­
ção interna que seria desempenhado, precisamente lá onde a volú­
pia é mais intensa, pela intenção de procriar: “O laço conjugal [...]
comprime a volúpia nos seus impulsos, põe uma espécie de pudor
no seu ardor e tempera-os por meio da paternidade. Mistura-se,
com efeito, não sei que gravidade às efervescências da volúpia
quando, no momento em que o homem e a mulher se unem, pen­
sam que vão tornar-se pai e mãe.”177 Mais longe, Agostinho acen-

176 \Ibid.,X (11).]


177 Ibid., III (3).
344 Michel Foucault

tua ainda a mesma ideia de que o bom uso da conjugalidade


constitui um freio para a concupiscência; chega a dizer que, bem
temperado, o prazer no casamento poderá já de maneira nenhuma
ser “libido". Passa-se, diz Agostinho, com o concubitus a mesma
coisa que com o alimento: “O uso de um e outro não se dá sem um
prazer carnal {delectado carnalis), prazer que, medido e reduzido
pela temperança à sua satisfação natural, não pode ser olhado co­
mo uma concupiscência {libido)"™
Nas Retractationes™, Agostinho voltará a esta passagem, fazen­
do valer que não falou de um apagamento da libido pelo casamento,
mas quis dizer que o uso da libido, se for bom e correcto, não será
ele mesmo uma libido. Esta precisão ou esta correcção concordam
bem com a teoria da concupiscência que ele terá entretanto desen­
volvido. Mas não parece estar efectivamente presente no De bono
conjugad. O princípio segundo o qual não há relação sexual sem
concupiscência desde a queda, estando a diferença moral apenas no
uso, não se encontra na análise do De bono conjugad. Prova-o uma
segunda série de textos: estes referem-se aos Patriarcas, cujas irre­
gularidades relativas à monogamia sabemos que puseram bastantes
problemas aos exegetas cristãos. Estes Patriarcas, segundo Agosti­
nho, quando se casavam, quando procriavam, “não eram vencidos
pela concupiscência”180. Experimentavam por certo um prazer na­
tural, como hoje os santos da nova aliança experimentam prazer
comendo pão; mas nada havia neles da “concupiscência irracional e
criminosa”. E que, sabendo que a procriação era necessária para
que nascesse a raça do Senhor, e que a sua descendência pertencería
à “economia profética” {dispensado propheticd), o seu desejo {desi-
deriuni) era espiritual. Para explicar a forma espiritual deste desejo,
Agostinho emprega um termo importante: o de sacramento. O de­
sejo dos profetas “estava de acordo com o sacramento da época”181.

178ZWd.,XVI(18).
179 [Retractationes, II, 22 (21)].
180 De bono conjugali, XIII (15).
181 ftírf.,XVII(19).
As Confissões da Carne 345

O emprego aqui desta palavra explica-se por uma passagem ante­


rior em que os “sacramentos proféticos” são as marcas visíveis se­
gundo as quais a salvação futura se escondera antes da vinda do
Salvador. Os profetas eram portadores desses sinais; a sua conduta
mostrava em si mesma o selo da vontade de Deus. Desenha-se aqui
a concepção do “sacramento”, tal como é evocada no mesmo texto
a propósito do casamento cristão. E parece possível dizer-se que o
casamento dos Patriarcas, e é essa a sua superioridade por compa­
ração com os de hoje, era inteiramente um “sacramentum": o sinal
em cada um de um parentesco espiritual presente e por vir.
Podemos dizer em termos esquemáticos que, no casamento dos
profetas, o sacramento apaga todo o traço de concupiscência, en­
quanto, no casamento dos cristãos de hoje, aquela é atenuada, di­
minuída e modificada. Mas a possibilidade e a forma desta modi­
ficação mantêm-se enigmáticas, o que torna evidentemente
bastante incertos vários elementos da codificação que Agostinho
entende fazer das relações sexuais entre esposos. E uma economia
da concupiscência no casamento que ainda falta. Ou, noutros ter­
mos, a definição do laço do casamento e das regras de vida que
devem caracterizar o estado matrimonial não pode completar-se
sem uma teoria da libido. Enquanto o ponto central das preocupa­
ções e das análises era a virgindade ou a continência, eram sufi­
cientes regras de abstenção no quadro de uma economia da pure­
za. Mas, a partir do momento em que é necessário definir, tocando
os seus fundamentos, uma tekhnê da vida e das relações conjugais,
é uma teoria da concupiscência e uma economia do desejo o que
nos falta. E Agostinho estabelecê-la-á por meio de uma definição
da diferença introduzida na relação sexual pela queda; por meio de
uma especificação das formas próprias da libido no homem caído;
por meio da distinção estrita entre a libido e o uso da libido. Aca­
bará assim por dar os fundamentos ao mesmo tempo de uma
concepção geral do homem de desejo, e de uma jurisdição fina dos
actos sexuais que uma e outra marcarão profundamente a moral
do Ocidente cristão.
[III]

[A LIBIDINIZAÇÃO DO SEXO]

¿I
A conjunção física dos sexos, quando se faz no casamento
dando-se por fim a procriação, é pois, como diz o De bono conju-
gali, isenta de falta: ihculpabilis^2. Deveremos ir mais longe?
Vimos que tinha o seu lugar, na criação do ser humano, antes
da falta e da queda, ainda que não tivesse então realidade: era a
obra de Deus que a destinava à constituição de um género humano
como “sociedade”. No casamento de hoje, tem ainda esse papel,
uma vez que é necessária à procriação; e esta procriação constitui
um dos fins e um dos bens da conjugalidade. Por conseguinte, não
poderemos considerá-la um bem — um bem originariamente dis­
posto por Deus e mantido depois da queda? Não nos arriscaremos
a ser levados a passar do bonum conjúgale ao bonum sexualel
Uma breve evocação, na Cidade de Deus, do que o acto sexual
é na sua forma e no seu desenrolar-se permite-nos cingir o proble­
ma. Agostinho retoma aí muito fielmente a descrição clássica do
paroxismo sexual com os seus três pontos essenciais: um abalo
físico do corpo que não é possível dominar, uma comoção da alma
que é arrebatada contra vontade pelo prazer, um eclipse final do
pensamento que parece aproximá-lo da morte. “O desejo {libido')
através qual são excitadas as partes vergonhosas do corpo” não se

182 [SANTO AGOSTINHO, De bono conjugali, X (11).]


As Confissões da Carne 347

contenta com “apoderar-se do corpo inteiro, exterior e interior­


mente; abala o homem inteiro, unindo e misturando as paixões da
alma e os apetites carnais para abrir caminho a essa volúpia, que
é a maior de todas as do corpo, de tal maneira que, no momento
em que alcança o seu auge, toda a lucidez bem como aquilo a que
poderiamos chamar a vigilância do pensamento são quase aniqui­
ladas”. A conclusão deixa-se extrair com facilidade: “Que amigo
da sabedoria e das alegrias santas (sapientiae sanctorumque gau-
diorum) que leve a vida conjugal não preferiría, se pudesse, gerar
filhos sem esse ‘desejo’ (libidò)Tni3 Atente-se na formulação: os
“amigos da sabedoria” que desejariam desembaraçar-se desta en­
fermidade e de semelhante violência são sem dúvida tanto os pa­
gãos que tentaram praticar a virtude como os cristãos que buscam,
além da sabedoria da sua fé, as alegrias celestiais. Agostinho indi­
ca claramente que se refere a uma concepção secular que faz do
acto sexual um acontecimento físico com efeitos tão perigosos,
para o corpo e para a alma, que dele é desejável abstermo-nos
tanto quanto possível. Talvez tenha em mente o texto do Horten-
sius que de resto cita no Contra JulianumlM: “O que produz a
volúpia, não é demasiadas vezes a ruína da saúde? [...] Quanto
mais violentos são os seus movimentos, mais inimigos são da fi­
losofia [...]. Quem se entrega a esta volúpia, rainha de todas as
outras, não se põe numa impotência radical de cultivar o seu espí­
rito, de desenvolver a sua razão e de alimentar pensamentos sé­
rios? Não está nela esse abismo que tende incessantemente, noite
e dia, a produzir em todos os nossos sentidos essas violentas co­
moções cujo segredo pertence às volúpias levadas ao extremo?
Que homem sábio não preferiría que a natureza nos tivesse recu­
sado todas as volúpias?” Eis colocada a seguinte alternativa. Ou
devemos admitir que a humanidade, ao sair perfeita das mãos do
Criador, conhecia já este transporte dos sentidos, esta fraqueza da
alma, esta pequena epilepsia que assume as feições da morte; o

183 [SANTO AGOSTINHO, A Cidade de Deus, XIV, 16.]


184 SANTO AGOSTINHO, Contra Julianum, IV, 72; cf. também ibid., V, 42.
348 Michel Foucault

que é contraditório com a soberania de uma criatura à qual as


outras deveríam ser submetidas. Ou devemos esquivar o que há de
enfermidade vergonhosa neste acto e não ver nele mais do que
aquilo que teve de natural desde a fundação do gênero humano.
Ou já na origem, o corpo humano manifestava uma fraqueza in­
trínseca, um mal que fazia parte da sua natureza. Ou as volúpias
de hoje prolongam até nós uma inocência que ele tem do seu esta­
do primeiro. E esta alternativa que Agostinho acusa os pelagianis-
tas de terem artificialmente construído quando colocam a escolha
entre um maniqueísmo que denuncia o mal inerente à Criação, e a
sua própria tese, que vê nas relações entre homem e mulher após
a queda o simples efeito de um apetite natural — adpetitus natu-
ralis185 que evitam o mais possível designar pelos termos de
libido, de concupiscência186.
De facto, não se tratava nem para os pelagianistas, em geral,
nem para Juliano de Eclana, em particular, de inocentar todas as
relações sexuais a coberto da sua natureza primeira e de em qual­
quer caso as admitir. Agostinho reconhece a prática de continên­
cia dos seus adversários187. Mas o que é decisivo neste debate é a
determinação do ponto a partir do qual e em nome do qual se
opera a delimitação entre o que se pode aceitar e o que é necessá­
rio recusar nas relações sexuais. Por onde passa a linha divisória a
partir do momento em que não se trata de recusar todo o acto se­
xual como mau, e a partir do momento em que não nos queremos
contentar com dizer que o toleramos contanto que tenha lugar no
interior do casamento?
E conhecida a posição de Juliano de Eclana. Dava do apetite
natural que opera nas relações sexuais uma caracterização muito
em conformidade com toda uma Tradição filosófico-médica: “O

185 SANTO AGOSTINHO, De nuptiis et concupiscentia, II, 7 (17).


186 AGOSTINHO faz com frequência esta acusação de resto pouco exacta a Ju­
liano de Eclana, no De nuptiis et concupiscentia (loc. cit.) e no Contra Julianum.
187 AGOSTINHO serve-se desse facto para concluir que os próprios pelagianis­
tas são obrigados a reconhecer em si mesmos o mal da concupiscência (Contra
Julianum).
As Confissões da Carne 349

seu género é o fogo vital; a sua espécie, os movimentos genitais; o


seu modo, a acção conjugal; o seu excesso, a intemperança da
E, a partir daí, era-lhe fácil marcar o ponto ético de
. fornicação ”188189
separação das águas: pelo seu género e pela sua espécie, aquele
apetite é obra do próprio Criador ao moldar o corpo humano; não
pode a tal título ser urna falta; pelo seu modo, releva da vontade
humana, e se esta seguir o modo que lhe foi fixado, quer dizer a
conjugalidade, é inocente; por fim, é somente nos seus excessos,
quer dizer quando a vontade é má, que podemos falar de mal. É
portanto o excesso que define o que é condenável.
Esta noção de excesso é importante. Ao mesmo tempo porque
deixa intacta a própria natureza do desejo, fazendo com que o mal
comece apenas com o “de mais”; e porque permite uma grande
flexibilidade na determinação dos actos que podem manifestar que
o limite foi “ultrapassado”. Ora, tal era uma das categorias éticas
mais frequentes na Antiguidade, formando oposição à temperança e
à moderação; fora retomada muitas vezes em toda a moral cristã. E
devemos sublinhar que Agostinho a ela recorreu no De bono conjú­
gale. o comércio carnal, o concubitus, quando é utilizado como
condição necessária da geração, é, segundo este texto nos diz, “sem
falta”. Mas é somente dentro desse limite que releva do casamento e
do seu bem. Se comporta algo mais, se vai “além dessa necessida­
de”, já não pertence à razão, mas à concupiscencia (libido)'19. Pode­
mos assim supor que o mal começa com o excesso; que, antes desse
limite, não há ainda libido, e que pode haver pois uma naturalidade
que, quando se mantém não excessiva, não pode dizer-se má.
Na elaboração que Agostinho empreende posteriormente, e so­
bretudo a partir de 412-413, trata-se para ele ao mesmo tempo de
escapar à alternativa que os pelagianistas tentavam construir, e
livrar-se de uma ética do não-excesso190. Se o primeiro aspecto do

188 [SANTO AGOSTINHO, Contra Julianum, III, 26.]


189 SANTO AGOSTINHO, De bono conjugali, X (11).
190 Sobre a discussão do tema pelagianista do excesso, cf. em particular SANTO
AGOSTINHO, Opus imperfectum, IV, 24.
350 Michel Foucault

seu esforço é evidentemente capital para o desenvolvimento da


teologia cristã, o segundo é essencial na história da nossa moral.
Ao pôr num lugar tão alto na Criação e entre os fins actuais do
casamento a procriação conjugal, desligara em certa medida a
relação sexual da desqualificação ético-religiosa da impureza.
Mas, ao deslocar a linha divisória, e ao inscrever uma certa forma
de mal no próprio acto sexual, tornava-o portador de uma negati-
vidade muito mais essencial do que o simples limite exterior do
excesso. A imensa discussão com os pelagianistas que Agostinho
vai conduzir durante mais de quinze anos introduz-nos num siste­
ma de moral e em regras de conduta nos quais as duas grandes
categorias fundamentais para a Antiguidade e o cristianismo pri­
mitivo — a impureza e o excesso — vão, não por certo desapare­
cer, mas começar a perder uma parte do seu papel preponderante
e organizador.
Para escapar à alternativa pelagianista ou, mais geralmente,
para se desprender de igual modo de uma desqualificação global
pela impureza e de uma delimitação puramente exterior pelo
excesso, Agostinho teve de levar a cabo duas operações: definir
no interior do acto sexual uma linha divisória anterior ao exces­
so, que pudesse marcar o mal que lhe é inerente; mas definir
também o mecanismo através do qual a queda pôde introduzir
uma tal disposição numa naturalidade do acto sexual que até
então não a conhecia. Teve, em suma, de estabelecer o aconteci­
mento meta-histórico que redesenhou o acto sexual na sua forma
originária de maneira a doravante fazê-lo comportar necessaria­
mente esse mal que podemos constatar com os filósofos antigos
quando vemos como se desenrola: reencontrar aquilo a que po­
deriamos chamar a “libidinização” do sexo paradisíaco. Teve
também de definir uma teoria da concupiscência — da libido
— como elemento estrutural interno do acto sexual tal como
actualmente o conhecemos. E foi a partir daí que Agostinho
pôde delinear uma moral da conduta sexual que já não está po­
larizada pelo tema da virgindade e da continência, mas centrada
no casamento e nas relações obrigatórias que comporta; e esta
As Confissões da Carne 351

• moral, articulando-se sobre as noções de consentimento e de


uso, afastará numa certa medida os temas da impureza e do ex­
cesso para fazer entrar em jogo modelos jurídicos. É desta ela­
boração que devemos tentar reencontrar o desenho geral de
acordo com os textos escritos no decorrer da polêmica com os
pelagianistas e Juliano de Eclana, ou pelo menos durante esse
período: O livro XIV de A Cidade de Deus, o De nuptiis et con-
cupiscentia, o Contra duas epistulas Pelagionorum, o Contra
, Julianum, bem como o Opus imperfectum.

- I -

*•' No seu Contra duas epistulas Pelagionorum, Agostinho expli­


ca que não podemos imaginar senão sob quatro formas o uso das
i„ relações sexuais no paraíso: os humanos cedendo ao seu desejo
sempre que este se apresenta — o que está excluído, porque seria
tornar escravos criaturas de Deus; os humanos refreando os seus
desejos e combatendo-os até ao momento conveniente — o que é
| igualmente incompatível com a felicidade paradisíaca; os huma­
nos, no momento necessário, ao sabor da sua vontade, e segundo
as previsões de uma justa prudência, fazendo surgir o desejo-
-libido que leva à relação sexual e a acompanha; os humanos,
enfim, na ausência total de libido, fazendo obedecer sem dificul­
dade os órgãos da geração, como qualquer outro membro do cor­
po, às ordens da vontade191. Só as duas últimas possibilidades po­
dem ser retidas como conciliáveis com a beleza e a bondade da
obra de Deus; e ainda assim, quanto à penúltima, Agostinho não
parece cedê-la aos seus adversários excepto a título de concessão.
Deixemos de momento de parte o sentido de uma tal concessão. A
relação sexual no paraíso é pois definida de preferência por Agos­
tinho como um acto do qual a libido é excluída pelo menos naqui­
lo que comporta de força coerciva.

191 SANTO AGOSTINHO, Contra duas epistulas Pelagionorum, 1,17 (34).


352 Michel Foucault

Ora, se supusermos a ausência da última, em que consistiría o


acto sexual? Num movimento natural e espontâneo cujo desenro­
lar-se nada vem perturbar? De maneira nenhuma. O texto di-lo
sem ambiguidade: trata-se, bem pelo contrário, de um acto cujos
elementos são na sua totalidade colocados sob o controle exacto e
sem falha da vontade. Tudo o que nele se passa, o homem podia
querê-lo, e com efeito queria-o. A relação sexual sem libido é in­
tegralmente habitado pelo sujeito voluntário. Esta concepção não
é neste texto que aparece pela primeira vez. Agostinho evocou-a
com frequência. Assim já no De Genesi ad litteram, pelo menos a
título de hipótese: “Porque não acreditar que estes primeiros ho­
mens, antes do pecado, podiam comandar os órgãos da geração a
fim de procriarem filhos, como comandavam os outros membros
que a alma move sem embaraço algum e sem o aguilhão do prazer
para os aplicar a alguma tarefa?”192 A ideia é desenvolvida mais
longamente no livro XIV de A Cidade de Deus. Apoia-se sobre
quatro conjuntos de referências. Sobre o que se passa no corpo
humano, no qual a vontade pode comandar os braços e as pernas,
“todos os membros constituídos por ossos rígidos, como as mãos,
os dedos, os pés”; mas também, e Agostinho tem o cuidado de o
fazer notar, os membros “que não têm senão carnes e nervos”, ou
até mesmo órgãos internos como os pulmões, dos quais fazemos
uso voluntário para respirar ou gritar193. Sobre o que se passa entre
os animais, que Deus tornou capazes de moverem a sua pele na
zona que uma mosca acaba de picar194. Sobre o que podemos cons­
tatar em certas pessoas, que são capazes, quando querem, de me­
xer as orelhas ou o cabelo, reproduzir o canto dos pássaros, trans­
pirar, chorar, simular a morte e nada sentir dos golpes que lhes
sejam aplicados195. E por fim sobre a habilidade que os artesãos
têm de fazer os gestos que a sua profissão torna necessários: “Não

192 SANTO AGOSTINHO, De Genesi ad litteram, IX, 10 (18).


193 SANTO AGOSTINHO, A Cidade de Deus, XIV, 24. No De nuptiis et con-
cupiscentia, II, 31 (53), Agostinho cita também o exemplo da bexiga e da urina.
194 SANTO AGOSTINHO, A Cidade de Deus, XIV, 24,1.
195 Ibid., 24, 2.
As Confissões da Carne 353

movemos as mãos e os pés quando assim queremos em vista de


actos próprios desses membros, sem resistência alguma, com uma
facilidade que admiramos em nós como nos outros, sobretudo
entre os artesãos dos diversos ofícios, nos quais uma arte mais
hábil acorre em auxílio de uma natureza demasiado fraca e dema­
siado lenta? E não creriamos que, na obra da geração [...], tanto
estes membros como os outros pudessem obedecer ao homem a
um sinal da sua vontade?”196 O homem, na conjunção sexual do
paraíso, não o imaginemos como um ser cego transportado por
movimentos cuja inocência está garantida justamente na medida
em que lhe escapam; mas como um artesão reflectido que sabe
servir-se das suas mãos. Ars sexualis. Se a falta lhe tivesse deixado
tempo para tanto, teria sido, no Jardim, um semeador aplicado e
sem paixão. “O órgão destinado a esta obra teria semeado o cam­
po da geração como agora a mão semeia a terra.”197 O sexo para­
disíaco era dócil e razoável à maneira dos dedos da mão.
De facto, parece bem que Agostinho tenha sido levado no cur­
so da sua discussão com Juliano a atenuar a ideia de uma relação
sexual que teria o mesmo desenrolar-se voluntário que um gesto
da mão, e que teria perdido posteriormente a possibilidade de se
controlar, como punição da queda. O exemplo de movimentos do
corpo que não têm a forma de gestos voluntários que nem por

196 Ibid., 23,2.


197 Ibid., 23, 3. Notemos a reutilização da tradicional metáfora das sementeiras.
Clemente de Alexandria, como muitos outros, empregava-a para significar a neces­
sidade de fecundar o sulco bom. Agostinho emprega-a para caracterizar a procria-
ção paradisíaca, no que esta teria de voluntário do lado do homem, de honroso e
não de doloroso do lado da mulher. O tema é desenvolvido ao longo de todo o De
nuptiis et concupiscencia, II, 14 (29). A semente humana teria sido semeada sem a
menor paixão vergonhosa, “obedecendo” os órgãos genitais “ao gosto da vontade,
tal como a segunda [semente: os grãos de trigo] é lançada sem a menor paixão ver­
gonhosa, pelas mãos do camponês [...] E em seguida o Criador [...] teria agido a
seu gosto na mulher, tocando as sementes de homens — coisa que ainda agora faz
—, tal como dispõe a seu gosto das sementes de trigo na terra, assim concebendo
as venturosas mães sem volúpia libidinosa e tendo os seus partos sem gemidos
doridos”.
354 Michel Foucault

isso foram inscritos entre as consequências da queda e a preocu­


pação por parte de Agostinho de não imaginar no dia que se se­
guiu à Criação um corpo fundamentalmente diferente do nosso
inclinaram-no a admitir antes na origem uma actividade sexual
que teria podido ser desencadeada ou interrompida à vontade, que
não teria portanto escapado às ordens que lhe fossem dadas pela
razão, mas que, nesse quadro, poderia ter tido um desenvolvimen ­
to próprio. Tal era a terceira hipótese que concedia aos pelagia-
nistas na sua resposta à sua carta, e que aceitará bastante facil­
mente nos livros IV e V do Contra Julianum: podia bem haver
antes da queda “movimentos carnais”; os sentidos podiam ser
“estimulados”; mas esta estimulação estava “submetida ao impé­
rio da vontade”198.
Quer se tenha tratado de um gesto voluntário ou de um “movi­
mento carnal” controlado pela vontade, de todo o modo as rela­
ções sexuais não comportavam, na Criação, esse abalo que hoje
arrebata o corpo e a alma, caracterizando a sua actual “libido”199:
esta consiste não nalguma impureza substancial, não num certo
exagero da sua violência, mas precisamente na forma involuntária
do movimento. O ponto decisivo, o que separa, no que se refere às
relações sexuais, a Criação da queda, e por onde, por conseguinte,
deverá passar a linha divisória moral, é pois aquele onde o invo­
luntário faz irrupção no lugar e na vez do voluntário.
Neste ponto, devemos reconhecer a marca da falta original e da
queda — ou, mais precisamente, da redefinição das relações de
obediência e de domínio entre si e si mesmo que delas dependem.
Lembremos rapidamente como Agostinho define esta mudança

198 SANTO AGOSTINHO, Contra Julianum, IV, 62.


199 Quanto ao uso deste termo, aproximadamente equivalente em AGOSTINHO
ao de concupiscentia, devemos notar que o encontramos usado ou no sentido mui­
to geral do desejo do que se não tem (pode ter um valor positivo: concupiscência
pelas coisas espirituais), ou no sentido de movimento da carne tal como se podia
manifestar sob o controle da vontade no paraíso (uso muito mais [raro], mas ates­
tado no Contra Julianum, IV, 62), ou as mais das vezes no sentido de movimento
involuntário provocado pela atracção sexual.
& Confissões da Carne 355

■C‘.qu<| atinge a materialidade do corpo através da estrutura do sujeito


Iõmo vontade de si sobre si. Era ligeira a obrigação que Deus
impusera aos homens ao proibir-lhes o fruto. Mais grave ainda,
por conseguinte, a sua revolta. E, depois de uma tal desobediência,
Deus, na sua bondade, não quis que ela fosse um castigo definitivo,
nem o abandono do homem a forças espirituais ou materiais que
i dominassem para sempre. Quis que fosse muito exactamcnte
ajustada à falta, e tanto às forças do homem como à possibilidade
da salvação. Fez com que fosse a reprodução no homem da deso­
bediência que levantara o homem contra ele. O castigo-conse-
quência da falta não se inscreve entre a alma e o corpo, entre a
matéria e o espírito, mas no próprio sujeito doravante em revolta
contra si mesmo (corpo e alma incluídos). O homem decaído não
fI caiu sob uma lei ou uma força que o subjugam inteiramente; uma
f cisão marca a sua própria vontade que se divide, se vira contra si
mesma e escapa ao que ela mesma pode querer. É o princípio,
í fundamental em Agostinho, da inoboedentia reciproca, da deso-
bediência em contrapartida. A revolta no homem reproduz a revol-
g ta contra Deus.
||; A partir deste princípio, poderá compreender-se a transforma-
l3j ção introduzida no acto sexual? Temos de nos reportar à exegese
que Agostinho propõe da primeira passagem do Gênesis que se
o, reporta à questão do sexo após a desobediência dos homens e o
O castigo de Deus, uma vez que, logo que cometem a falta, é um
Wgesto de pudor que os primeiros humanos efectuam: “Abriram-se
'• ’ os olhos aos dois; viram que estavam nus e, cosendo folhas de fi­
gueira, fizeram para si umas cintas.”200201
A comparação das inter­
f pretações que Agostinho sucessivamente propôs desta passagem é
significativa. No De Genesi contra Manichaeosim, o despertar
deste pudor é definido como a passagem de uma “simplicidade”
que equivale a inocência a uma perversidade que afecta o próprio
olhar e que é traduzida por ele. Sobre a sua nudez, o homem e a

200 Gênesis, 3,7.


201 Cf. também SANTO AGOSTINHO, De nuptiis et concupiscentia, 1,6 (7).
356 Michel Foucault

mulher lançam “olhos perversos” porque, já e doravante habitados


pelo mal, reconhecem assim o que perverte agora toda a natureza
humana e faz corar o seu orgulho — o seu “orgulho astucioso” —,
quer dizer, o próprio princípio da falta em que caíram202. Na rela­
ção dos olhos que acabam de se abrir com o sexo que deve cobrir-
-se, o último aparece como a manifestação de uma depravação
global da natureza humana.
Mais tarde, no De Genesi ad litteram, Agostinho insiste na
necessidade de não darmos simplesmente a esta abertura dos
olhos a interpretação figurada de uma perda da inocência. Deve­
mos compreender que houve descoberta, por um olhar que
preexistia, de uma realidade física: e esta realidade, ela, era nova,
não devendo senão à queda a sua existência. Este “alguma coisa”,
sanção da falta e manifestação primeira das suas inumeráveis
consequências, não é evidentemente o sexo, já presente e já visto;
é o seu movimento, cuja involuntária espontaneidade para os dois
não houvera ainda lugar de constatar. Um tal movimento está liga­
do ao olhar de duas maneiras: provocado por ele e espectáculo
para ele. “A partir do momento em que transgrediram o preceito,
totalmente despojados dessa graça interior que tinham ofendido
por um gesto de arrogância e por orgulhoso amor do seu próprio
poder, deitaram os seus olhos sobre os seus corpos (membro) e
sentiram um movimento de concupiscência que lhes era desconhe­
cido (eaque motu eo quem non noverant, concupiverunt).”203 E
deste movimento, os primeiros humanos não podem deixar de
corar, porque é esse mesmo “movimento carnal que impele os
animais a acasalar”, porque é a manifestação de que doravante “a

202 “Os seus olhos abriram-se; e então viram que estavam nus, mas com olhos
perversos, aos quais essa simplicidade, indicada pela palavra nudez, parecia ver­
gonhosa. E como já não eram simples com ‘folhas de figueira, fizeram para si
umas cintas’, como para se cobrirem e esconderem a simplicidade da qual corava
o seu orgulho astucioso", SANTO AGOSTINHO, De Genesi contra Manichaeos,
11,15,23.
203 SANTO AGOSTINO, De Genesi ad litteram, XI, 31 (41).
Confissões da Carne 357

Ü lei dos membros resiste à lei do espírito”204 e porque é a “conse-


$ quência da transgressão do preceito”205.
SL É esta interpretação da abertura dos olhos como apreensão de
uma realidade nova que encontramos retomada nos textos poste-
riores. O livro XIV de A Cidade de Deus é muito explícito acerca
deste ponto. Não devemos imaginar que os humanos antes do pe-
cado fossem cegos. Eva não vira “que o fruto era bom para comer”
|,e agradável à vista? Podiam pois ver o seu próprio corpo. Mas
j teremos de admitir que com efeito dirigiam os seus olhares sobre
o seu sexo? Não, porque este estava coberto pela “veste da graça”
tf — veste que fazia com que, por um lado, os seus membros não se
- revoltassem contra a sua vontade e que, por outro lado e por con-
h seguinte, eles não lhes prestassem atenção e não procurassem co-
.t^nhecer o que essa veste podia esconder206207 . Mas, com a falta e a
graça que se retira, o castigo aparece: é a “desobediência em
* contrapartida”, a reprodução física, no corpo e muito precisamen-
fte através do sexo, contra a vontade humana da insurreição por
meio da qual o homem se erguera contra Deus. Ora, esta revolta
K atrai para si o olhar e a atenção: “Para ferir a sua desobediência
por reciprocidade (reciproca inoboedientiá), produziu-se um mo-
' vimento inteiramente novo de impudor corporal que tornou a sua
’■ nudez indecente, fez com que eles a notassem e os encheu de con-
*, fusão (Jecit adtentos redditque confusos)1’’1. Sob o regime da
graça, a inatenção do olhar e o uso voluntário do sexo estavam
S ligados, fazendo com que este fosse visível sem correr nunca o
-■ risco de estar nu. A queda, em contrapartida, liga a atenção dos
olhos e o involuntário do movimento, fazendo com que o sexo
esteja nu, mas com uma tal vergonha, um tal sentimento de humi-

204 [SANTO AGOSTINHO, Sermão 162,12.]


205 SANTO AGOSTINHO, De Genesi ctd litteram, XI, 32 (42). Note-se que, se­
gundo Agostinho, no gesto do pudor primeiro não devemos ver uma consciência
clara, mas o efeito de um “instinto obscuro” (occulto instinctu).
206 “Non adtenti, ut cognoscerent quid eis indumento gratiae praestaretur”, SAN­
TO AGOSTINHO, A Cidade de Deus, XIV, 17 (39).
207 [Ibid., XIV, 17 (39-40).]
358 Michel Foucault

lhação seguindo-se a um orgulho tão enganador que leva a que se


procure torná-lo, a ele, sinal e efeito da revolta, fisicamente invisí­
vel. Numa palavra, o sexo “surge”, levantando-se na sua insurrei­
ção e oferecendo-se ao olhar208. É para o homem o que o homem
é para Deus: um rebelde. Homem do homem, que se erige diante
dele e contra ele, como Adão, homem de Deus, sentiu que devia
esconder-se após a sua desobediência.
Podemos então definir isso, esse “alguma coisa” que, com a
queda, modificou o uso inocente do sexo que teria sido possível no
paraíso. Não é um órgão novo — a distinção dos sexos preexistia
e a falta não a tornou má209; não é um acto — tinha já o seu lugar
e a sua função, e essa função, conserva-a ainda. É a forma invo­
luntária de um movimento que faz do sexo sujeito de uma insur­
reição e objecto do olhar. Visível e imprevisível erecção.
Registemos, por certo, o facto de a libido assim concebida se
caracterizar essencialmente pelo sexo masculino, as suas formas e
as suas propriedades. E originariamente fálica. Agostinho dá-se
bem conta da objecção possível e tenta encontrar o traço simétrico,
na mulher, do movimento indecente que envergonhou o homem
assinalando-lhe a revolta presente em si mesmo, logo a sua degra­
dação: “Não foi um movimento visível que a mulher velou; aquilo
que o homem experimentava, experimentou-o ela mesma, ainda
que de maneira mais secreta; ambos velaram da vista do outro
aquilo que cada um deles experimentava.” E talvez por sentir o que
tinha de artificial esta simetria levando a mulher a velar o que é

208 Nesta passagem, AGOSTINHO não retoma a indicação do De Genesi ad lit-


teram sobre o olhar indutor de concupiscencia. Os olhos aqui não fazem mais do
que constatar. Nos dois livros Sobre a Graça de Jesus Cristo e o Pecado Original,
sublinha sobretudo que antes da queda não havia razão para se sentir vergonha:
“Aquilo que Deus fizera não devia inspirar confusão alguma ao homem, que não
tinha por que corar do que Deus julgara a propósito criar nele: esta nudez primitiva
do homem não feria nem o olhar de Deus nem o do próprio homem”, II, 34.
209 Cf. no Contra Julianum, III, 16, a afirmação de que a distinção entre os sexos
não seria má; ainda que hoje os homens se encontrassem a tal ponto dominados
pela concupiscência que todos os seus actos sexuais se fizessem contra as leis e as
regras, “a condição dos corpos, como Deus os criou”, continuaria a ser a mesma.
As Confissoes da Carne 359

nela invisível, e sem dúvida também para conservar o tema já evo­


cado do pudor perante o desejo recíproco, Agostinho acrescenta na
mesma passagem: “O homem e a mulher coraram, ou cada um por
’si, ou um pelo outro.”210 A mulher vela aquilo que provoca o movi-
¡ mento que o homem tem de esconder; e este deve esconder aquilo
que provoca o movimento escondido na mulher. De todas as ma­
neiras, a visibilidade do órgão masculino está no centro do jogo.
E devemos, além disso, notar que o mesmo jogo manifesta a
entrada do homem no reino da morte. Morte que se reporta à gra­
ça de Deus que lhe é retirada; morte também neste mundo, uma
vez que a mortalidade se torna doravante uma doença fatal; morte,
enfim, como veremos, porque é através do papel indispensável da
união sexual no nascimento que o pecado original se transmite de
geração em geração. No movimento involuntário do sexo e na vi­
sibilidade que lhe está ligada, o homem deve reconhecer a morte:
“Neste movimento de revolta que se eleva na carne contra a alma
rebelde e que os obrigou a cobrir a sua nudez, sentiram essa pri­
meira morte em que a alma se vê abandonada por Deus.”211 Ante­
riormente, a maior parte dos exegetas via na morte física a expli­
cação, senão do aparecimento dos sexos, pelo menos do seu uso.
Para Agostinho, o acto sexual não tem por que esperar o apaga-
mento das gerações para se exercer, mas o involuntário que dora­
vante o habita significa uma morte espiritual da qual o fim suces­
sivo das existências terrestres é também uma manifestação. O
corpo que escapa à vontade do homem é também um corpo que
morre: a retirada da graça subtrai-o ao seu domínio ao mesmo
tempo que actualiza a morte212.

210 Ibid., IV, 62. Cf. igualmente V, 23.


211 SANTO AGOSTINHO, A Cidade de Deus, XIII, 15. Cf. Sermão 179, 4: “Os
nossos primeiros pais, depois de terem pecado, fizeram cintas para cobrir as partes
vergonhosas do corpo, que nos dão a vida e ao mesmo tempo a morte”; Discurso
sobre o Salmo 9,14: “As portas da morte” deverão talvez interpretar-se “como os
sentidos do corpo e os olhos que se abriram no homem depois de ter provado o
fruto proibido”.
212 SANTO AGOSTINHO, A Cidade de Deus, XIV, 15, 2.
360 Michel Foucault

A este movimento que atravessa e transporta todos os actos


sexuais, que os torna ao mesmo tempo visíveis e vergonhosos, e
que os liga à morte espiritual como à sua causa, à morte física
como ao seu acompanhamento — a este movimento ou, mais
exactamente, à sua forma e à sua força involuntárias —, Agostinho
dá o nome de libido. É ela que marca o que há de específico nos
actos sexuais do homem decaído; ou, utilizando os termos de um
outro vocabulário: a libido não é um aspecto intrínseco do acto
sexual que lhe estaria ligado analíticamente. E um elemento que a
falta, a queda e o princípio de “reciprocidade de desobediência”
lhe associaram sintéticamente. Circunscrevendo este elemento,
fixando o seu ponto de emergência na meta-história, Agostinho
estabelece a condição fundamental para a dissociação desse “blo­
co convulsivo” em cujos termos se pensavam o acto sexual e o seu
perigo intrínseco. Abre um campo de análise e ao mesmo tempo
desenha a possibilidade de um “governo” das condutas de um
modo completamente diferente do da alternativa entre a abstenção
ou a aceitação (mais ou menos concedida de bom grado) das rela­
ções sexuais.

- II -

A queda provocou pois aquilo a que poderiamos chamar a libi-


dinização do acto sexual: quer admitamos que este, sem a falta,
podería desenrolar-se sem libido alguma; quer suponhamos que
teria feito entrar em jogo uma “libido '' muito diferente da que co­
nhecemos agora, uma vez que obedecería exactamente à vontade.
A libido, em todo o caso, manifesta-se hoje sob a forma do in­
voluntário. Aparece nesse suplemento que se levanta para lá da
vontade, mas que não é mais do que o correlativo de uma deficiên­
cia, e o efeito de uma degradação.
Este estigma do involuntário no acto sexual posterior à falta
toma dois aspectos principais. Há em primeiro lugar todas as de­
cepções através das quais o sexo pode frustrar as intenções do
sujeito. Em Adão, o sexo rebelde anunciara-se por meio de uma
As Confissões da Carne 361

irrupção brusca; nos homens da sua descendência, manifesta-se


tanto por quebras importunas como por movimentos inconvenien­
tes. O involuntario do sexo decaído é a erecção, mas é igualmente
a impotência. Uma passagem de A Cidade de Deus di-lo clara­
mente. Enquanto os outros órgãos, nas suas funções respectivas,
estão ao serviço do espírito e podem ser “movidos por um sinal da
vontade”, o mesmo não acontece com o sexo: “Até mesmo aqueles
que se entregam a essa volúpia não se sentem comovidos a seu
gosto, quer nas suas relações conjugais, quer nas vergonhas da
impureza. Essa emoção por vezes produz-se importunamente sem
ter sido querida. Por vezes engana o ardor do desejo: a alma arde
de cobiça, o corpo permanece gelado. Assim, coisa estranha, não
é somente à vontade de engendrar que a paixão se recusa a obede­
cer, mas à própria paixão de gozar.”213 O que Agostinho traduz por
meio de uma fórmula notável: a libido é sui juris2'\
Mas a forma do involuntário, Agostinho vê-a também na im­
possibilidade de dissociar o acto sexual destes movimentos que
não se controlam e da força que os arrebata. Por sábios que possa­
mos ser, por justo e razoável que seja o fim que nos propomos na
conjunção dos sexos, por maior conformidade que nisso mostre­
mos com a lei de Deus e o exemplo dos Patriarcas, não podemos
fazer com que ela se produza sem esses abalos dos quais não so­
mos senhores e que marcam a presença inextirpável da libido no
ser humano. Não há intenção recta, não há vontade legítima que
possa romper, neste mundo, o laço travado entre ela e o uso dos
órgãos sexuais Até mesmo no casamento, o acto conjugal “não
depende da vontade, mas de uma necessidade sem a qual todavia,
na procriação dos filhos, é impossível alcançar-se o resultado que
essa mesma vontade busca”215. O que explica que o fim do casa­
mento possa ser bem conhecido de todos, que a sua celebração

213 Ibid., XIV, 16; cf. no De nuptiis et concupiscentia, II,'35 (59), uma alusão ao
excesso de rapidez ou de lentidão através do qual os órgãos sexuais decepcionam
a vontade.
214 Ibid., 1,6 (7).
215 Ibid., I, 8 (9).
362 Michel Foucault

possa bem ser solene, enquanto ainda assim o acto legítimo dos
esposos, “embora aspirando a ser conhecido, não faria corar me­
nos a ser visto”216. A distinção entre conjunção sexual e movimen­
to da libido, que a reflexão e a exegese permitem em teoria esta­
belecer, escapa em contrapartida à vontade e não pode ser
realizada na prática. A esses órgãos destinados à procriação desde
a origem, mas abalados desde a queda por movimentos dos quais
não podem livrar-se, os homens, observa Agostinho, dão o nome
de “natureza”217.
“Natura”, “sui júris”. Deveremos então compreender que a li­
bido releva de uma natureza estranha ao próprio sujeito, que se
lhe impõe como um elemento exterior, e que a queda desapossou
de certo modo o sujeito da sua própria carne, a ponto de esta agir
sem ele? Pelo que não se lhe poderia imputar o que nela se passa?
Deveremos considerar que a libido está fora do sujeito? Se é uma
natureza, como não pedir dela contas a Deus — e ser-se portanto
levado ou a vê-la como criação de um Deus mau, como os mani-
queístas fazem, ou a nada nela reconhecer, como fazem os discí­
pulos de Pelágio, que seja intrínsecamente mau? Em suma, se é
sui juris, como pode essa natureza ser imputada ao sujeito? Para
responder a estas questões, Agostinho teve de definir por um lado
as relações da libido com a alma (o que assegura o princípio da
imputabilidade) e a fixar por outro lado o estatuto da libido por
referência ao pecado (o que permite estabelecer o que pode ser
imputado).

1) Sobre o primeiro ponto, o pensamento de Agostinho evoluiu.


Muito esquemáticamente podemos dizer que, até às Quaestiones

216 SANTO AGOSTINHO, A Cidade de Deus, XIV, 18. Agostinho explica da


maneira seguinte o facto de não se admitir que os filhos sejam testemunhas das
relações sexuais dos seus pais — relações semelhantes contudo àquelas das quais
nasceram (ibidi). Cf. também o De gratia Christi et de peccato originali', a relação
conjugal não se dá sem um “movimento animal (bestialis motus) do qual cora a
natureza humana”, II, 38 (43).
217 SANTO AGOSTINHO, De nuptiis et concupiscentia, I, 6 (7).
As Confissões da Carne 363

ad Simplicianum™, é antes de tudo no corpo — num corpo ferido


pela morte e dominado pelo princípio do mal — que põe o ponto
de origem dos movimentos da concupiscência: o seu carácter in­
voluntário está ligado ao facto de serem carnais, no sentido de
marcarem o poder do corpo sobre a alma. Mas, a partir dos textos
seguintes — e sobretudo do De Genesi ad litteram é na própria
alma que procura colocar o princípio da concupiscência e o ponto
de partida involuntário que a atravessa. Uma passagem de A Cida­
de de Deus, que precede imediatamente a análise dos movimentos
sexuais, fixa o quadro geral da explicação218
219. Agostinho lembra o
princípio de que não pode haver falta sem que esta tenha sido
precedida de uma vontade má. Ora, esta vontade, fonte de todo o
pecado, origem da primeira falta e portanto da queda, consiste
num movimento da alma que, afastando-se de Deus, se afeiçoa a
si mesma e nisso se compraz. É o movimento, livremente efectua­
do pelos dois primeiros humanos, que introduziu no mundo a
concupiscência e os setts movimentos involuntários. A natureza
humana torna-se assim depravada. Mas que sentido dar a esta
“depravação”?220 O que fora moldado por Deus e acabava de sair
das suas mãos terá podido ser alterado pelo homem? Como pode­
rá pois uma falta voluntária de uma alma livre ter por consequên­
cia movimentos involuntários num corpo cuja natureza foi fixada
por Deus? A explicação proposta por Agostinho apoia-se nas duas
faces do acto criador. Houve criação de uma natureza; mas essa
criação fez-se a partir de nada. Quer dizer que é de Deus somente
que o homem tem ser em vez de ser nada: é da sua omnipotência
e. só dela que tem o seu ser, e, ao afastar-se da vontade de Deus,
afasta-se disso que precisamente o faz ser. Não devemos ver, pois,
na natureza depravada, a alteração do que foi feito por Deus, mas
a degradação do ser que dele temos, e que se marca cada vez mais,

218 Sobre este tema, cf. o artigo de A. SAGE, “Le péché originei dans la pensée de
saint Augustin”, Revue d’études augustiniennes, t. 15,1969.
219 SANTO AGOSTINHO, A Cidade de Deus, XIV, 13-15.
220 SANTO AGOSTINHO, De nuptiis et concupiscentia, I, 32 (37). Agostinho
fala de mutatio naturae.
364 Michel Foucault

à medida que o abandonamos para nos comprazermos em nós


mesmos. “O vício não podia depravar senão uma natureza tirada
do nada. Ser uma natureza vem-lhe de ter sido feita por Deus;
decair do seu ser, de ter sido feita de nada. A sua degradação, é
verdade, não aniquilou o homem totalmente, mas, descendo para
si mesmo, ele tinha menos ser do que quando aderia àquele que é
soberanamente. Abandonar Deus, com efeito, para se ser em si
mesmo, quer dizer para se comprazer em si, ainda não é ser nada,
mas é aproximar-se de não ser mais do que isso.”221
Ao afastar-se de Deus, e recusando-se a obedecer-lhe, o homem
pensava tornar-se senhor de si mesmo: cria libertar o seu ser. Não
faz mais do que decair de um ser que não se sustenta senão da
vontade de Deus. A revolta posterior do corpo é a consequência
desta vontade que, querendo o seu ser próprio, se afasta do que a
fez ser, o faz cair quando procura elevar-se, e o enfraquece quando
crê tender para o domínio de si. O involuntário da concupiscência
não deve ser pensado como uma natureza que se opõe ao sujeito,
ou o encerra, ou o arrasta para baixo. Não é o corpo livre de todo
o controle e escapando à alma, é antes de mais o menos ser, a
falta de ser do sujeito a cuja vontade sucede querer o contrário do
que queria. Vontade virada contra si mesma, vontade dissociada,
por uma falha de ser que ela mesma quis ao querer ser por si mes­
ma. No movimento da libido que dobra e acompanha o acto sexual
sem poder dissociar-se dele, não devemos ver o surgimento de
uma natureza exterior ao sujeito, e que, desembaraçada da sua
influência, faria agir as suas próprias leis sem que ele pudesse
fosse o que fosse para o impedir; mas antes a cisão que, dividindo
o todo do sujeito, o fez querer o que ele não quer. “Uma justa con­
denação seguiu-se pois à falta; e tal que o homem destinado, se
tivesse obedecido, a gozar de uma carne espiritual viu o seu pró­
prio espírito tornar-se carnal. Por orgulho, comprazera-se em si
mesmo. Mas, em vez de se tornar mais completamente seu senhor,
ao entrar em desacordo consigo mesmo, sofreu uma servidão dura

221 SANTO AGOSTINHO, A Cidade de Deus, XIV, 13,1.


As Confissões da Carne 365

e miserável sob as ordens daquele a quem obedecera ao pecar,


muito longe de adquirir a liberdade que desejara. Por sua própria
vontade, morreu no seu espírito; morrerá a despeito de si mesmo
no seu corpo.”222
Não devemos por isso fazer passar a linha que separa o volun­
tário e o involuntário algures entre a alma e o corpo, ou entre a
natureza e o sujeito. Foi no interior do sujeito que, desde a origem,
passou. Melhor: não devemos imaginar duas regiões que uma
fronteira separaria; trata-se de uma vontade cujo afastamento vo­
luntário daquilo que a mantém no ser a deixa existir no que tende
a aniquilá-la — o involuntário. A comparação com a sexualidade
animal é esclarecedora. Agostinho reporta-se-lhe no Opus imper-
fectum. Juliano de Eclana fizera valer que os animais conhecem a
cobiça sexual, e que não se pode negar que Deus seja neles o autor
desses movimentos: ou temos de reconhecer que uma tal concu-
piscência é naturalmente boa, ou que Deus criou voluntariamente
o mal. Agostinho responde dizendo que o mal da concupiscência
não existe entre os animais, não porque seria voluntária, mas por­
que o involuntário que a caracteriza não é neles uma revolta, não
marca a cisão entre os desejos da carne e os do espírito. “A con­
cupiscência da carne é um castigo enquanto exerce o seu império
sobre o homem, não enquanto exerce o seu império sobre os ani­
mais, porque nos últimos a carne não cobiça nunca contra o espí­
rito.”223 Os actos sexuais entre os animais bem podem ter a mesma
forma, mas não relevam da mesma concupiscência. Ou, antes, o
que é próprio da concupiscência humana consiste no facto de a sua
semelhança com a dos animais ser o efeito de uma revolta e de
uma divisão de si contra si mesmo que são inteiramente estra-
nha[s] à natureza animal. O sujeito não foi encerrado pela queda
numa “natureza” animal que teria as suas próprias leis. O involun­
tário da concupiscência, que toma a forma dos movimentos ani­
mais, é inscrito, por obra da queda, na estrutura actual do sujeito.

222 Ibid., XIV, 15, 1.


223 SANTO AGOSTINHO, Opus imperfectum, IV, 38.
366 Michel Foucault

Tocamos aqui num ponto importante na história da subjecti-


vação do sexo e da formação do homem de desejo. Agostinho
não é evidentemente o primeiro, nem entre os autores cristãos
nem de um modo geral entre os autores da Antiguidade, a ter
marcado com o selo do involuntário o desejo sexual. Tal era até,
como já vimos, um lugar-comum. Mas esse involuntário era
definido ora como uma instância ou uma parte da alma, cujos
movimentos se tratava de limitar ou de dominar os movimentos
conservando o privilégio hierárquico dos outros, ora como uma
“paixão” — um pathos — que, vindo do corpo, ameaçava com­
prometer a soberania da alma sobre si mesma. Ora, a análise de
Agostinho não faz da concupiscência nem uma potência especí­
fica na alma, nem uma passividade que limite o seu poder, mas
a própria forma da vontade, quer dizer, daquilo que faz da alma
um sujeito. Não é para ele o involuntário contra a vontade, mas
o involuntário da própria vontade: aquilo sem o que a vontade
não pode querer, excepto precisamente o socorro da graça, que
só ela pode libertá-la dessa “enfermidade” que é a própria forma
do seu querer.
Compreendemos a partir daqui porque é que o facto para a
concupiscência de ser sui juris não é exclusivo da sua imputabili­
dade ao sujeito: é na medida em que é “de nossa vontade” que é,
por isso mesmo, sui juris; e inversamente a nossa vontade não
pode escapar à concupiscência a não ser renunciando a ser sui
juris, e reconhecendo que não pode querer o bem excepto pela
força da graça. A “autonomia” da concupiscência é a lei do sujeito
quando este quer a sua própria vontade. E a impotência do sujeito
é a lei da concupiscência. Tal é a forma geral da imputabilidade
— ou antes, a sua condição geral.

2) Mas esta possibilidade de imputação deve ser precisada. Com


efeito, as análises anteriores mostram que a concupiscência não é
uma potência autónoma na alma, nem uma força que viria do ex­
terior afectar a sua fraqueza. E da alma, nesse sentido muito pre­
ciso de ser constitutiva da forma actual da sua vontade: é “lei do
As Confissões da Carne 367

■ pecado”224. Mas, se caracteriza a estrutura da vontade, parece


muito difícil imputá-la como se imputaria um pecado a quem o
tivesse cometido.
A vontade poderá ser culpada de ser o que é? Mas se o não é,
¡ como acusar, a título de pecado, o que dela vem e não é senão o
efeito da sua natureza? A propósito do pecado original e do bap­
tismo, os tratados antipelagianistas desenvolvem muito ampla­
mente este debate. Está fora de questão retomarmos aqui essa
longa argumentação, trata-se apenas de mostrar nesta acção do
pecado original e dos pecados o papel que Agostinho faz desem­
penhar a concupiscência e o modo como abre lugar ao princípio
jurídico da imputabilidade.
A concupiscência é dita “pecado”, mas “segundo uma certa
maneira de falar”225. Ora, de que maneira de falar se trata ao
certo?
Antes do baptismo, a lei do pecado pode ser dita, em cada alma,
pecado actual, merecendo a esse título o castigo que espera os que
¡ não puderam ser baptizados. Desta actualidade, Agostinho dá vá­
rios esquemas de explicação. Um pode ser dito originário e sin­
crónico: em Adão “existem todos os homens no estado de semen­
te”; obras de Deus, tais sementes não comportam mal algum, mas
participaram no acto da falta e, por conseguinte, não permanece­
ram estranhas à condenação. Nascem pois portadoras desse peca­
do, em cujos acto e castigo tomaram parte226. Um outro esquema
é o da ressurgência permanente. Agostinho ilustra-o através do
exemplo, que cita muitas vezes, da oliveira. Uma oliveira pode ser
.. com efeito domesticada pelos cuidados do jardineiro, mas nem por
isso dará menos origem a oliveiras bravas cujos frutos são tão
amargos como se nada se tivesse passado227.0 mesmo sucede com
a humanidade: o baptismo bem pode ter regenerado os indivíduos,

224 SANTO AGOSTINHO, De nuptiis et concupiscentia, 1,23 (25).


225 Ibid.
226 SANTO AGOSTINHO, Opus Imperfeclum, 12.
227 Cf. SANTO AGOSTINHO, De nuptiis et concupiscentia, I, 32 (37) e II, 34
(58): Contra Julianum, VI, 15.
368 Michel Foucault

os que nascem deles continuam sob a lei do pecado: continuam


marcados pela actualidade da primeira falta.
Mas encontramos também em Agostinho um outro esquema que
é o das reactualizações sucessivas e do seu encadeamento. Para
dizer a verdade, não se trata de um esquema exclusivo dos outros,
mas antes de um seu desenrolar-se no tempo. Não pode haver nas­
cimento, com efeito, sem conjunção sexual dos pais; e esta, ainda
que tenha lugar no casamento e visando os fins que a este foram
fixados, não pode efectuar-se sem os movimentos involuntários
dos quais vimos que constituíam o primeiro estigma da queda. E
esta concupiscência, marca ainda hoje da primeira falta, transmite
a toda a alma que vem a este mundo a forma que a caracteriza, a
lei do pecado que antes do baptismo existe nela como pecado em
acto. Esta argumentação que Agostinho retoma com muita fre­
quência é importante na história da teologia moral e da ética cristã.
Dois temas essenciais dela se destacam, com efeito. Um diz
respeito ao lugar da concupiscência sexual. Para Agostinho, esta
não foi a causa efectiva da falta original, não foi mais do que sua
consequência. Mas é, através da cadeia temporal de todos os actos
sexuais que fazem nascer as gerações sucessivas, o suporte da
actualidade em cada homem do pecado original. Estamos lembra­
dos de que era uma questão debatida (continuará de resto a sê-lo
posteriormente) a de sabermos se não deveriamos entender em
termos sexuais o consumo pelos primeiros humanos do fruto proi­
bido. Agostinho acaba por colocar o acto sexual no centro da
economia do pecado original e das suas consequências, mas a tí­
tulo de veículo permanente da sua actualidade através das gera­
ções humanas. Está, relativamente a essa falta inicial e determi­
nante, numa posição de consequência que não se apaga e de causa
sempre renovada. E será somente no fim dos tempos, quando o
homem tiver sido libertado do corpo de morte que deve à sua pró­
pria falta, que desaparecerá do mundo esta concupiscência sexual
através da qual se actualiza em cada um a primeira falta. Termos
nascido do sexo dos nossos pais liga-nos, através do tempo, à falta
dos primeiros de entre eles.
As Confissoes da Carne 369

Mas podemos ver também nas teses de Agostinho formar-se um


outro tema talvez mais importante ainda, porque não ficaria ligado
somente à teologia cristã. Inscreveu-se, por razões que terão de ser
posteriormente examinadas, como uma das constantes do pensa­
mento ocidental a propósito do sexo. Trata-se do tema de um laço
fundamental e indissociável entre a forma do acto sexual e a estru­
tura do sujeito. Segundo o esquema agostiniano, se todo o indivíduo
que chega ao mundo é sujeito de concupiscência, é porque nasceu
de uma relação sexual cuja forma comporta, com absoluta necessi­
dade, a parte vergonhosa do involuntário na qual se lê o castigo da
primeira falta. Inversamente, se não é possível um uso do casamen­
to, ainda que em vista dos melhores fins, sem que entrem em jogo
na relação sexual esses movimentos que não podemos dominar, é
porque todo o homem nasce desde a queda como sujeito de uma
vontade concupiscente. Em suma, a verdade daquilo que o homem
é como sujeito manifesta-se na própria forma a que está submetido
todo o acto sexual. Esta forma, por conseguinte, embora portadora
da marca de uma falha, de um defeito, de um acontecimento origi­
nário, não deve ser referida a uma natureza estranha, mas antes à
estrutura do próprio sujeito. Enquanto, na concepção platônica, o
desejo é portador da marca de uma divisão que põe cada um de nós
em busca de um parceiro (seja do mesmo sexo ou do outro), e o
defeito é pois a marca do outro, aqui o “defeito” é a degradação e o
menos ser que são devidos à falta e que se marcam no próprio sujei­
to através da forma fisicamente involuntária do seu desejo.
A libido, no sentido em que Agostinho emprega com frequência
o termo sem mais precisões, quer dizer a forma sexual do desejo,
é portanto o laço trans-histórico que liga a falta originária da qual
é consequência à actualidade desse pecado em todo o homem. E
é, além disso, em cada um de nós, a maneira como se encontram
ligadas uma à outra a forma involuntária do acto sexual e a estru­
tura “enferma” do sujeito.

3) Actualidade em todo o homem do pecado original, a concu­


piscência é pois “de certa maneira” um pecado. É-Ihe imputável e
370 Michel Foucault

é condenável nele. É ela que justifica a danação dos que morrem


sem baptismo.
Qual é então o efeito do baptismo? Por certo que não apagar a
concupiscência, da qual vemos bem que subsiste não só entre os
cristãos em geral, mas também entre os mais santos, como subsis­
tia do mesmo modo entre os próprios Patriarcas, quando, obede­
cendo à injunção de Deus, tinham de gerar descendentes228. O que
o baptismo apaga, eis que uma passagem capital do De nuptiis et
concupiscentia o explica claramente: é o “reatus" dessa concupis­
cência — o facto de ela poder ser imputada ao indivíduo seu por­
tador e de constituir para ele uma culpabilidade actual: “A concu­
piscência da carne é remida no baptismo, não de maneira a deixar
de existir, mas de maneira a deixar de ser imputada como peca­
do.”229 E portanto uma operação de tipo jurídico que o baptismo
opera sobre a concupiscência do sujeito na medida em que esta é
nele a presença actual do pecado original. Apaga o que nesta pre­
sença constitui a culpabilidade actual, mas mantém a vigência
daquilo que forma a estrutura permanente do sujeito. Depois do
baptismo, a concupiscência já não pode ser considerada por si
mesma um pecado em acto no sujeito. Mas permanece como “lei
do pecado”, quer dizer, como o que incansavelmente impele o su­
jeito a cometer o pecado se lhe não resistir. “Nos regenerados já
não é ela mesma um pecado.”230 No entanto, podemos continuar a
chamar-lhe “pecado” por duas razões231: porque vem do pecado e
porque, vitoriosa, comete o pecado. Até mesmo depois de ter dei­

228 A propósito de Abraão, AGOSTINHO diz que Deus lhe devolveu a fecundida-
de que perdera, para gerar Isaac, mas não a concupiscência, que continua a ser no
corpo o que era. Enquanto Juliano de Eclana cria poder extrair da tese agostiniana
a proposição de que Deus deveria ter devolvido a Abraão uma concupiscência de­
clarada todavia má, ou que Isaac nascera fora de toda a concupiscência, Contra Ju-
lianum, III, 23. Cf. igualmente SANTO AGOSTINHO, Opus imperfectum, V, 10.
229 SANTO AGOSTINHO, De nuptiis et concupiscentia, 1,25 (28); cf. igualmen­
te Opus imperfectum, V, 10.
230 [SANTO AGOSTINHO, De nuptiis et concupiscentia, I, 23 (25).] Cf. o reto­
mar desta tese no Contra Julianum, VI, 60.
231 SANTO AGOSTINHO, De nuptiis et concupiscentia, 1,23 (25).
As Confissões da Carne 371

xado de ser ela mesma um pecado, continua a ser aquilo que liga
o pecado original (do qual é estruturalmente efeito) aos pecados
actuais (cujo princípio é geneticamente).
Sob que forma subsiste? Como a projecção, a sombra produzida
pela queda da qual é de certo modo a consequência analógica.
Pelo facto de a queda ser degradação do ser, a concupiscência é ela
mesma fraqueza e enfermidade. No vocabulário médico que é
correntemente utilizado na literatura cristã para designar o peca­
do, Agostinho, quando quer fazer valer a diferença das noções,
utiliza de preferência os termos de ferida ou doença para falar do
próprio acto do pecado, e os termos de disposição (affectio ou
valitudò) ou de fraqueza (languor) para falar da concupiscência.
Uma passagem das últimas páginas do De nuptiis et concupiscen-
tia mostra bem este jogo de vocabulário: “As feridas (vulnerã)
infligidas ao corpo fazem manquejar os membros ou tornam difí­
ceis os seus movimentos [...]. A ferida a que chamamos pecado
[aqui Agostinho refere-se ao pecado original] fere a própria vida,
da qual o homem vivia segundo a justiça [...]. Assim, através des­
te grave pecado do primeiro homem, a nossa natureza presente
nele conheceu a degradação (in deterius commutatd): não só se
tornou pecadora, como engendrou ainda pecadores. E contudo
esta enfermidade ela mesma, que destruiu a força de bem viver,
não é seguramente uma natureza, mas um vício (non est utique
natura, sed vitiuníy, como por certo um mau estado de saúde, para
o corpo (mala in corpore valetudo), não é de maneira alguma uma
substância ou natureza, mas um vício; e as mais das vezes, embo­
ra nem sempre, as disposições doentias dos pais são de certo modo
transmitidas pela geração e manifestam-se no corpo dos filhos.”232
Mas o elemento correlativo e indissociável desta enfermidade
que caracteriza a concupiscência é a força dos movimentos da
mesma concupiscência. Aquilo por que é fraca, como a vontade do

232 Ibid.., II, 34 (57). Esta passagem desenvolve as indicações do livro I, 25 (28).
Juliano de Eclana criticara estes dois textos e AGOSTINHO responde-lhe no Con­
tra Julianum, VI, 53-56, e no Opus imperfectum, VI, 7.
372 Michel Foucault

sujeito sobre si mesmo, e também aquilo por que é forte, como


presença no sujeito da vontade má. A imputabilidade, o reatus que
faz da concupiscência uma culpabilidade em acto, foi efectiva­
mente apagada pelo baptismo, mas não a presença activa dessa
concupiscência. Até mesmo naquele que foi regenerado, ela conti­
nua a agir de alguma maneira (agit aliquid). E qual é a forma
desta actividade, senão “os desejos maus e vergonhosos”?233 Sobre
a presença da concupiscência no coração dos homens, as proposi­
ções fundamentais de Agostinho são demasiado conhecidas para
que seja necessário retomá-las aqui.
Lembremos somente que vê, nessa presença, o princípio de um
combate espiritual que só poderá alcançar termo definitivo no dia
em que nos tivermos libertado do “corpo de morte” que é hoje o
nosso. Mas lembremos também que este corpo de morte não é um
elemento material do qual nos tivéssemos tornado prisioneiros de­
pois da queda. Caracteriza a nossa própria maneira de querer, e
nenhum pecado pôde ser cometido por nós sem nós; a nossa vonta­
de, em todos os casos, esteve nisso implicada. Que o pecador não
procure refugiar-se por trás da desculpa de não ter sido ele a agir,
mas a concupiscência nele, pois semelhante discurso provaria so­
mente que não se conhece a si mesmo: “Quando é do conjunto: co­
ração que decide e corpo que efectúa, que ele mesmo é constituído,
imagina ainda que não é de si mesmo que se trata.”234 Recordemos
por fim que, uma vez que a concupiscência pertence à própria estru­
tura da nossa vontade decaída, que esta por si mesma não pode
querer senão segundo a forma da concupiscência, que uma e outra
não se enfrentam nunca como dois elementos estranhos inimigos
um do outro e que são forçados a sobrepor-se, mas estão ligadas
numa natureza que é a da queda, a concupiscência jamais poderia
ser vencida no combate espiritual sem a intervenção da graça divina.

233 “Agit autem quid nisi ipsa desideria mala et turpia", SANTO AGOSTINHO,
De nuptiis et concupiscentia, 1,27 (30).
234 Ibid., I, 28 (31).
As Confissões da Carne 373

- Ill -

Os efeitos e consequências da teoria agostiniana da concupis-


cência foram evidentemente consideráveis. Gostaria somente de
sublinhar um seu aspecto que se reporta ao governo das almas e à
conduta sexual dos esposos em particular. Trata-se da sua “juridi-
ficação” ou antes da introdução de elementos que permitiam pen­
sar em formas de tipo jurídico práticas, regras, prescrições e reco­
mendações, que tinham sobretudo [sido] reflectidas segundo as
formas da ascese espiritual e das técnicas de purificação da alma.
Centrando a sua análise da concupiscência não já sobre o proble­
ma do puro e do impuro, da alma e do corpo, da matéria e do es­
pírito, da paixão e do domínio de si, mas sobre o do voluntário e
do involuntário ou mais exactamente da própria estrutura da von­
tade, era bem num sistema de referências jurídicas que se inscre­
via. Empreendia a tarefa seguinte, à qual o cristianismo ocidental
durante tantos séculos se dedicará e à qual (ou à impossibilidade
da qual) ficará a dever no século xvi a grande fractura da Reforma,
a saber: pensar o pecador como sujeito de direito; ou, como diria­
mos num outro vocabulário: pensar simultaneamente e [segundo]
uma só forma o sujeito de desejo e o sujeito de direito. As duas
noções sem dúvida mais importantes para esta juridificação foram
a de consentimento (consensus) e a de uso (usus).

1.0 De nuptiis et concupiscentia235 distinguirá cuidadosamente


a imputabilidade — o reatus — da concupiscência e do pecado. A
.primeira estabelecia-se através do caracter actual da concupiscên­
cia como pecado original em todo aquele que viesse ao mundo; e
era ela a ser suprimida pelo baptismo, não sem que a própria con­
cupiscência subsistisse. No caso do pecado, as coisas são diferen­
tes: o acto, uma vez cometido, desaparece, mas o seu reatus per­
manece. Distinção em que Juliano de Eclana não via senão uma
dialéctica que punha em jogo “a recíproca de todos os contrários”:

235 Ibid.,1,26 (29).


374 Michel Foucault

não via com efeito a possibilidade de ser suprimido o reatus da


causa — a concupiscência — sem que fôssemos levados a apagar
também o do pecado ou que pudéssemos incriminar o pecado sem
fazer da concupiscência da qual ele procede um mal substancial
no ser humano. A resposta que lhe dá Agostinho no VI livro do
Contra Julianum136 permite situar precisamente o ponto onde se
forma, relativamente à concupiscência, a imputabilidade do peca­
do. Até mesmo depois do baptismo, a concupiscência continua
presente — em acto, uma vez que o baptismo não apagou senão o
aspecto jurídico que a tornava condenável. Mas que quer dizer
“em acto”? Por certo que não que seja sempre activa, sempre ma­
nifesta, e sem cessar insistente sob a forma de desejos prementes,
uma vez que lhe acontece estar “adormecida”, sem objecto algum
que venha solicitar a cobiça. Assim, um homem tímido é actual-
mente tímido, ainda que nada tema por nada haver a temer. A con­
cupiscência pode estar pois presente tão só como “qualidade”. Mas
pode tornar-se, a partir daí, em acto como actividade: sob a forma
de um desejo que pôde ser suscitado por um objecto. Não é ainda
pecado, quer dizer elemento imputável, porque, embora tendo mu­
dado de forma — de disposição geral, tornou-se um desejo activo
—, continua a ser esse estigma do pecado original cujo reatus foi
suprimido. Mas, inversamente, até mesmo enquanto disposição
que se torna activa, nunca domina inteiramente a alma, nunca
impõe um acto qualquer que seja. Para que este possa ter lugar, é
necessário que intervenha um acto específico da vontade. Por for­
te que seja o movimento da concupiscência, e na própria medida
em que esta é a forma da vontade — por degradada que esteja do
ser que tinha de Deus —, não pode tornar-se um acto sem o acto
próprio da vontade. Não pode haver pecado sem esse suplemento
— por ínfimo e invisível que possamos imaginá-lo — que faz com
que queiramos o que a concupiscência quer. Tal é o consentimen­
to; é este que torna possível a imputação de um acto que tem ori­
gem numa concupiscência que, ela mesma, não é imputável. Como23

236 SANTO AGOSTINHO, Contra Julianum, VI, 60.


As Confissões da Carne 375

diz uma outra passagem do Contra Julianunr. “O espírito faz o


bem quando se recusa a consentir na concupiscência má, mas este
bem ainda não é perfeito, uma vez que os maus desejos ainda não
desapareceram; quanto à carne, forma o mau desejo, mas, enquan­
to não obtém o consentimento do espírito, não atinge a perfeição
do mal e não chega sequer a ser parte das obras condenáveis.”237
Numa primeira aproximação, esta noção de consentimento po­
de parecer não muito diferente da que podemos encontrar na espi­
ritualidade da qual, na mesma época, Cassiano era testemunha no
Ocidente. Afinal de contas, o labor ascético que prescrevia tinha
entre os seus temas principais o do consentimento: acolher ou não,
aceitar ou recusar os desejos que se apresentavam ao espírito se­
gundo neles se reconhecesse uma inspiração divina ou a do mal.
No entanto, este consentimento não tem por completo a mesma
forma nem os mesmos mecanismos. Trata-se, em Cassiano, do
acesso ao interior da alma de elementos — idéias, imagens, suges­
tões de acção — sobre cujo valor e cuja origem é necessário que
nos interroguemos. O problema é o de abrir ou fechar as portas da
alma, de rejeitar o que nela pôde introduzir-se e pode corrompê-la,
de a proteger, pois, para que ela possa enfim dirigir para as coisas
eternas o olhar claro da contemplação. O consentimento, nele,
obedece sobretudo ao modelo do limiar: comporta um exterior e
um interior; assegura uma triagem, abre-se ou fecha-se; acolhe,
expulsa. E de novo encontramos aqui a forma tradicional da sepa­
ração entre o puro e o impuro.
Em Agostinho, o consentimento tem uma outra forma e um
outro modo de acção. Há para isso uma razão fundamental: en­
quanto numa espiritualidade como a de Cassiano desejo e vontade
são duas instâncias diferentes, a concupiscência para Agostinho
pertence à própria forma da vontade. O consentimento não é, se­
gundo ele, a aceitação, pela vontade, de um elemento estranho; é
uma maneira para a vontade de querer, enquanto acto livre, o que
quer enquanto concupiscência. No consentimento — e dir-se-ia a

237 Ibid., III, 62.


376 Michel Foucault

mesma coisa do seu contrário, a recusa —, a vontade toma-se a si


mesma por objecto. Quando consente, não quer simplesmente o
que é desejado, não quer simplesmente o que é querido no desejo.
Quer essa vontade que tem a forma da concupiscência, dá-se a si
mesma enquanto fim, enquanto vontade degradada. Quer-se a si
mesma concupiscência. De modo recíproco, o não-consentimento
não consiste em vencer o desejo rejeitando da alma a representa­
ção do objecto desejado, mas não o querendo como o quer a con­
cupiscência. Esquemáticamente: o consentimento, em Cassiano, e
noutros que lhe são próximos, incide essencialmente sobre o ob­
jecto — objecto do desejo que expulsamos como objecto da repre­
sentação, para que não se torne objecto da vontade. O consenti­
mento e a recusa em Agostinho desenrolam-se no interior da
própria vontade, no movimento através do qual ela se quer, ou se
não quer, tal como é. O sujeito toma-se aí como objecto da sua
própria vontade, propondo-se querer como não querer a forma
concupiscente da sua vontade degradada. O consentimento como
elemento indispensável à constituição de um acto imputável como
pecado não é pois simplesmente a transformação de um desejo em
acto real; não é sequer simplesmente a aceitação desse desejo no
pensamento, sob a forma de representação recebida. É um acto da
vontade sobre si mesma — e sobre a sua forma mais do que sobre
o seu objecto. Quando o sujeito consente, não abre as portas a um
objecto desejado, constitui-se e sela-se a si mesmo como sujeito
desejante: a partir de então os movimentos da sua concupiscência
passam a ser-lhe imputáveis. O consentimento — e tal é a razão
do papel central que desempenha em Agostinho e que desempe­
nhará mais tarde — permite determinar o sujeito de concupiscên­
cia como sujeito de direito.

2. Esta estrutura do sujeito de direito-sujeito de concupiscência


tem efeitos importantes sobre a codificação das relações conju­
gais. Poderá fazer-se valer, e ter-se-á razão, que Agostinho modi­
ficou muito poucas coisas no conteúdo das prescrições que eram
admitidas antes dele ou na sua época: interdição, sob pena de pe­
As Confissões da Carne 377

cado grave, das relações sexuais fora do casamento, sob a forma


quer do adultério se ao menos um dos parceiros for casado, quer
da fornicação se nenhum dos dois o for; recomendação de não
praticar as relações conjugais em certas circunstâncias — no mo­
mento da oração ou em certos períodos do ano238; condenação
extremamente severa, como crimes abomináveis, de todo o acto
sexual que se fizesse contra o uso natural — produzindo-se este
quando o homem não se serve do “órgão feminino destinado à
procriação”239; reprovação de todos os “excessos” a que poderiam
entregar-se os esposos quando, respeitando esse uso natural, vão
além do que é estritamente requerido por ele: pecados ligeiros.
Este perfil geral das interdições não é diferente do que se conhecia
já e que os moralistas não cristãos apresentavam havia muito tem­
po pelo menos a título de recomendações prementes.
Mas Agostinho retoma todo este conjunto, sistematiza-o e
funda-o em torno da noção de uso. Usus. Trata-se de facto de uma
noção complexa que Agostinho encontra já utilizada, mas à qual
dá uma significação muito mais precisa. Por uso do casamento,
entendiam-se as relações sexuais entre esposos, ao mesmo tempo
porque era o casamento que tornava legítimo um acto que fora
dele era condenável, e porque tal acto consistia no exercício de um
direito assim adquirido por um esposo sobre o corpo do outro. O
uso do casamento tinha portanto um sentido ao mesmo tempo
institucional e corporal, jurídico-físico: os esposos servem-se de
um direito servindo-se de um corpo.
Agostinho introduz nesta noção já formada uma dimensão no­
va. No acto sexual entre esposos, não se utiliza simplesmente se­
gundo ele o direito do casamento e o corpo do outro, os esposos
servem-se da sua própria concupiscência. O problema com efeito
era o seguinte: a partir do momento em que o acto sexual e a pro­
criação após a queda não podem fazer-se sem movimentos de
concupiscência involuntários e por conseguinte vergonhosos, po­

238 [Nota vazia.]


239 SANTO AGOSTINHO, Opus imperfectum, V, 17.
378 Michel Foucault

deremos evitar deduzir que toda a relação conjugal é em si mesma


má? Como poderemos dizer que o casamento é um bem se o acto
que legitima é em si mesmo um mal? Ou não podemos sustentar a
tese de que o casamento é positivamente um bem (e não simples­
mente um mal menor quando comparado com a fornicação); ou
não podemos manter a proposição de que o mal da concupiscência
acompanha necessariamente toda e qualquer relação sexual. Ora,
a noção de usus permite precisamente conservar estas duas teses,
mas na condição de operarmos duas dissociações: na relação con­
jugal, entre o movimento da libido e o acto da vontade; e neste
acto de vontade, entre o consentimento que poderiamos dizer
“objectivo” dado a esse movimento em si mesmo (e que não pode­
mos não aceitar, uma vez que é inseparável da relação sexual) e o
consentimento ou o não-consentimento subjectivo dado a essa
concupiscência como forma de vontade: pode-se, com efeito, nesta
relação sexual, querer satisfazer a concupiscência, quer dizer, que­
rer essa forma degradada de querer, ao querer gerar filhos, evitar
ao outro cônjuge cair na fornicação. Na relação conjugal, se o
desenrolar-se do acto sexual não é modificável na sua estrutura de
concupiscência, o consentimento, pelo seu lado, é modificável;
permanece livre. O usus é pois uma certa modalidade de jogo
entre consentimento e não-consentimento. Pode fixar fins que se­
jam tais que o sujeito não se quererá a si mesmo como sujeito
concupiscente no momento em que comete um acto cujas condi­
ções de realização implicam a concupiscência.
Esta concepção traz consigo várias consequências.
Abre a possibilidade de pensar a relação sexual como inevitavel­
mente associada a um mal, quer dizer, a uma concupiscência que é
o efeito directo da primeira falta e o primeiro castigo visível que
ela recebeu, mas de pensar ao mesmo tempo nas relações sexuais,
quando se levam a cabo, um acto específico de vontade que, segun­
do queira ou não a forma da concupiscência, será ou não mau, será
ou não pecado. Tal é o sentido da formulação célebre que será re­
petida durante mais de um milênio: nas relações conjugais,
servimo-nos de todos os modos de um mal; mas desse mal pode­
As Confissões da Carne 379

mos fazer um uso bom ou mau: e é aqui que se situa a possibilida­


de do pecado. A importância desta concepção aparece quando a
comparamos com as proposições de Juliano. Aparentemente, são
exactamente simétricas e inversas, dizendo Juliano: “Aquele que
[...] conserva o modo legítimo usa bem do que é bom; aquele que
o não conserva usa mal desse bem; finalmente quem, por amor da
santa virgindade, despreza todos os modos, ainda que legítimos,
esse recusa o que é bem para alcançar o que é melhor.” E Agosti­
nho: “Aquele que observa o modo da concupiscência usa bem do
mal; aquele que não o observa usa mal do mal; aquele que [...]
despreza o próprio modo legítimo recusa-se ao uso do mal para se
aplicar ao que é mais perfeito.”240 Sob a correspondência termo a
termo das duas formulações, devemos reconhecer uma dissimetria
profunda: para Juliano, a partir do momento em que o prazer toma­
do nas relações sexuais é um bem disposto pelo próprio Deus na
Criação, não pode ser senão bom recorrer a ele, contanto que sob
as formas ordenadas pela providência e desenhadas pela natureza;
o pecado começa no desvio ou no extravasamento. O uso do qual
fala no seu texto é pois a modalidade do acto físico, a sua forma (e,
sob este aspecto, Juliano mantém-se de facto no quadro de uma
moral do excesso). Para Agostinho, a partir do momento em que o
mal da concupiscência é “encontrado na natureza humana”, o pon­
to decisivo deve ser situado nos fins perseguidos, quer dizer, na
própria forma da vontade; é ela que determina o valor do acto físi­
co241: e com Agostinho entramos numa moral sexual centrada num
sujeito jurídico. Em Juliano, é o pecado (o acto excessivo) que de­
termina o mal e o faz aparecer. Em Agostinho, o mal é prévio e
está inevitavelmente inscrito na relação sexual; mas o pecado que
dele deriva distingue-se dele o suficiente para não ser nunca seu
resultado necessário e constituir um acto imputável.

240 SANTO AGOSTINHO, Contra Julianum, III, 42.


241 Notar que Juliano fala daquele que conserva “o modo legítimo” (trata-se da
forma do acto sexual); e Agostinho daquele que observa “o modo da concupiscên­
cia” (trata-se da forma da vontade).
380
Michel Foucault

Assim, a ideia de um uso da concupiscéncia, que Agostinho


insere na análise do acto sexual entre o uso justificado do casa­
mento e o uso natural do corpo, permite pensar o individuo —
quer dizer, cada um dos dois cônjuges — como formando um su­
jeito único de desejo e de direito: é bem “o mesmo”, enquanto
sujeito (e não por sobreposição de duas naturezas, ou por um exílio
da alma num mundo estrangeiro), que age na necessidade do dese­
jo e na liberdade do bem e do mal. Mas devemos ver bem que,
apesar desta unidade do sujeito, o desejo continua a ser um mal e
o seu uso continua a ser independente. Pode acontecer que se faça
um uso absolutamente não concupiscente da concupiscéncia, mas
esta nem por isso será suprimida. Acontece com muita frequência
que se use da concupiscéncia em vista somente dela mesma de tal
maneira que ela parece tudo vencer, mas este uso nem por isso
será menos um acto específico e imputável. Ora, através precisa­
mente desta irredutibilidade, vemos abrirem-se possibilidades
muito amplas de juridificação das relações entre os esposos. Se o
acto sexual fosse em si mesmo e naturalmente um bem, a codifi­
cação destas relações poderia [fazer-se] simplesmente em função
da forma que se considera “natural”: sendo o restante excesso,
abuso, transgressão dos limites, passagem para o lado do contra­
natura. Permaneceríamos assim numa moral da natureza. Se a
relação sexual se definisse somente pelo mal ou pela contamina­
ção que traz consigo, a codificação far-se-ia em função de um
ideal de continência completa e o valor dos comportamentos
hierarquizar-se-ia por referência a ela: estaríamos numa ética da
pureza. Finalmente, se supuséssemos que o mal do desejo poderia
ser reabsorvido pouco a pouco pelo exercício da vontade que o
controla e limita, estaríamos ainda no registo das prescrições de
sabedoria. Mas a dissociação, no acto sexual, entre o mal da libido
e a possibilidade de nos servirmos dela bem ou mal permite codi­
ficar os comportamentos sexuais em função desses usos, dos fins
que se dão, das circunstâncias que os modificam, etc. São os dois
fins reconhecidos como legítimos — a procriação, o evitar o pe­
cado ao outro — que vão servir assim de fio condutor para qua-
As Confissoes da Carne 381

dricular o desenrolar-se dos actos sexuais entre esposos e definir


o que é permitido, proibido, sob que condições, em que ocasiões.
Agostinho, é certo, não desenvolve muito estas possibilidades.
Sê-lo-ão, e muito mais tarde, não de resto como simples desenvol­
vimento lógico, mas quando todo um conjunto de outros processos
tiverem, na sociedade e na Igreja medievais, reforçado a importân­
cia das relações de tipo jurídico. Não deixa de ser verdade que
encontramos na análise agostiniana da concupiscência a matriz
teórica que permitirá tais desenvolvimentos. As relações conjugais
que, sob as recomendações de conjunto do comedimento, do pudor
ou do respeito e através da finalidade geral da procriação, conti­
nuavam a ser assunto privado e secreto darão lugar a regras inu­
meráveis e a uma casuística desenvolvida acerca da maneira de aí
se exercerem os direitos de cada um e de aí se cumprirem os seus
deveres. O cristianismo medieval — sobretudo a partir do século
xiii — será sem dúvida a primeira forma de civilização a desen­
volver a propósito das relações sexuais entre esposos regras tão
prolixas. As regras do casamento, às da troca ou da transmissão de
bens na aliança, às regras de comportamento mútuo entre os côn­
juges, que encontramos na maior parte das sociedades sob formas
variadas e com mecanismos de imposição muito diversos, acres­
centa a seguinte singularidade: uma codificação muito precisa dos
momentos, das iniciativas, dos convites, das aceitações, das recu­
sas, das posições, dos gestos, das carícias, eventualmente, como
veremos, das palavras, que podem ter lugar nas relações sexuais.
O grande dimorfismo que marcara a vida antiga — separando
essas relações sexuais das quais se fala, que se contam e que são
forçosamente exteriores ao casamento, e as da matrimonialidade
que escapam ao olhar e ao discurso —, esse grande dimorfismo
desaparece. Fala-se, pelo menos na prática da confissão, tanto, se
não mais, das segundas como das primeiras. O sexo no casamento
passa então a ser objecto de jurisdição e de veridicção.
Mas por enquanto tudo isto, em Agostinho e na sua época, não
são mais do que possibilidades. No imediato, o que talvez tenha
sido ainda mais importante foi que, com a ideia da concupiscência
382 Michel Foucault

como mal, era possível juntar, num mesmo tema de combate espi­
ritual, o exercício da virgindade e a prática do casamento. Nos dois
estados é do mesmo mal que se trata, é a mesma renúncia à forma
concupiscente da vontade que se exige: sendo a diferença que, no
casamento, o não-consentimento passa por uma certa forma de
uso da qual a virgindade habilmente se afastará. Os dois estados
definem-se como práticas não demasiado diferentes frente à con­
cupiscencia da qual há agora uma teoria susceptível de justificar
ambos, com a sua diferença de valor mas também o seu laço in­
trínseco. E sobretudo podemos ver que, numa concepção assim, as
noções de consensus e de usus não servem para definir directa­
mente as relações entre esposos. Não fundamentam a sua codifi­
cação senão através do consentimento (ou do não-consentimento)
que cada um concede à sua própria libido, ou através do uso (bom
ou mau) que cada um faz da sua própria libido. Quer dizer que
toda a regulação das condutas sexuais pode doravante fazer-se a
partir da relação que cada um deve manter consigo mesmo. A
problematização das condutas sexuais — quer se trate de saber o
que são na verdade ou de definir o que deveríam ser — torna-se o
problema do sujeito. Sujeito de desejo, cuja verdade não pode ser
descoberta senão por ele mesmo no fundo de si mesmo. Sujeito de
direito, cujas acções imputáveis se definem e repartem como boas
ou más segundo as relações que ele tem consigo mesmo.
Numa palavra, podemos dizer que o acto sexual no mundo an­
tigo é pensado como “bloco paroxístico”, unidade convulsiva em
que o indivíduo se afundava no prazer da relação com o outro, a
ponto de mimar a morte. Deste bloco não se punha a questão de
fazer a análise, era necessário somente ressituá-lo numa economia
geral dos prazeres e das forças. Este mesmo bloco foi dissociado,
no cristianismo, por regras de vida, por artes de condução de si
mesmo e de condução dos outros, por técnicas de exame ou pro­
cedimentos de confissão, por uma doutrina geral do desejo, da
queda, da falta, etc. A unidade, no entanto, recompôs-se, já não em
torno do prazer e da relação, mas do desejo e do sujeito. Recompôs-
-se em termos tais que a difracção permanece e que a sua análise
As Confissões da Carne 383

é possível: é possível tanto sob a forma da teoria e da especulação


como sob a forma prática do exame individual, quer pelo outro,
quer por si mesmo. E, sob estas últimas formas, não é simplesmen­
te [recomendada], mas obrigatória. Operou-se assim uma recom­
posição em torno daquilo a que poderiamos chamar, por oposição
à economia do prazer paroxístico, a analítica do sujeito da concu-
piscência. Aqui ficam ligados, por meio de laços que a nossa cul­
tura alongou mais do que desatou, o sexo, a verdade e o direito.
ANEXOS
Anexo 1

O que se trata de demonstrar:

1. Existe um núcleo prescritivo relativamente constante no cris­


tianismo. Este núcleo é antigo. E formou-se antes do cristianismo.
Encontra-se claramente atestado entre os autores pagãos da época
helenística e romana.

2. É este núcleo que encontramos sem modificação maior nos


Apologetas do século n. Clemente de Alexandria integra-o na sua
teologia de inspiração platónica, bem como num conjunto de pre­
ceitos morais de inspiração estoica.

3. É a nova definição das relações entre subjectividade e verda­


de que vai dar a este núcleo prescritivo antigo uma significação
inédita, e trazer à concepção antiga dos prazeres e da sua econo­
mia modificações importantes.

4. Estas modificações incidem menos sobre a separação entre


permitido e defendido do que sobre a análise do domínio dos
aphrodisia e sobre o modo de relação que o sujeito é chamado a
ter com eles. Não foram por isso tanto a lei e o seu conteúdo que
mudaram, mas a experiência, como condição de conhecimento.
Anexo 2

-1 -

Podemos pois pensar que o cristianismo dos cinco primeiros


séculos definiu duas modalidades regulares e distintas segundo as
quais o indivíduo teria de se manifestar “em verdade” para se li­
vrar do mal: por um lado, um grande rito penitencial, único, glo­
bal, reportando-se ao conjunto da sua existência, e metamorfo-
seando por vezes em termos definitivos toda a sua vida; por outro,
uma prática contínua de exame e de vigilância que tenta recaptu­
rar e dizer os movimentos profundos da alma. Por um lado, uma
aleturgia na qual o “fazer-a-verdade” dos gestos, das atitudes, das
lágrimas, das macerações e das formas de vida parece prevalecer
largamente sobre as formulações do discurso; por outro, uma ale­
turgia na qual o “dizer-a-verdade” parece impor uma verbalização
o mais exaustiva possível dos segredos da alma. A “exomologese”
como manifestação do ser pecador pode opor-se a “exagoreusis”
como enunciação dos movimentos de pensamento. Oposição que
parece justificar-se tanto do ponto de vista da tecnologia própria
de cada uma destas práticas, como do ponto de vista do seu con­
texto institucional.
A técnica da exomologese do penitente assenta no ordenamento,
na intensificação brutal e na exposição à luz de um conjunto de
descontinuidades: ruptura com a vida anterior, cujas formas e
marcas se abandonam; afastamento do penitente da comunidade,
As Confissões da Carne 389

perante a qual se humilha para mostrar como é indigno de nela


permanecer; ruptura com o seu próprio corpo que é abandonado à
fome, à miséria, à ausência de cuidados; choque entre a vida e
morte, uma vez que quem se coloca como Lázaro no limiar do
túmulo se opõe à morte do corpo que assim aceita a vida eterna
da alma, que é o seu prêmio. Neste jogo das descontinuidades,
rupturas e entrechoques, a verdade vem à luz sob a forma de uma
manifestação. Não são as faltas cometidas que aparecem nos seus
detalhes, com as suas condições e a parte de responsabilidade do
seu autor; é o próprio corpo do pecador, o corpo pecador, tal como
a primeira falta o marcou: votado à morte, contaminado de impu­
rezas, trabalhado por necessidades que não pode satisfazer. E esta
manifestação não é simplesmente revelação de uma figura oculta:
é posição à prova para o sujeito, ou antes do próprio sujeito. Prova
em dois sentidos: uma vez que, praticando o rigor de tal exercício
tão duramente e durante tanto tempo quanto possível (ou pelo
menos até ao termo fixado), o pecador “ganhará” a sua reconcilia­
ção; e como um metal submetido à prova do fogo, as impurezas
que se misturavam à sua alma desprender-se-ão dela e serão calci­
nadas no ardor posto pelo penitente contra si mesmo. A exomolo-
gese do penitente é uma dupla manifestação (da renúncia ao que
se é e do ser de contaminação e de morte a que se renuncia) como
prova purificadora de si sobre si.
No longo trabalho da sua vida como uma “arte” que se aprende
e que se exerce, o monge submete-se também ele à prova da renún­
cia a si. Mas num outro sentido e por outros meios. Na medida em
que se desprendeu já do mundo, não é sob a forma da descontinui-
dade e da ruptura que tem de fazer aparecer a verdade do mal; mas
antes sob a forma de uma tripla continuidade: vigilância ininter­
rupta sobre si mesmo, os seus pensamentos, o seu curso espontâ­
neo, o seu movimento insidioso; manutenção de uma relação de
direcção que o obriga ao mesmo tempo a falar e a escutar, a con­
fessar e a submeter-se; humildade perante todos e obediência rigo­
rosa à regra da comunidade. A manifestação própria à exagoreusis
passa pela linguagem; consiste num discurso obrigatório, tão fre­
390 Anexos

quente e tão completo quanto possível endereçado àquele que está


encarregado de dirigir a conduta do que confessa: tem por objecto
principal o que se esconde no fundo da alma, e que aí se esconde
ao mesmo tempo porque se trata dos primeiros entre os primeiros
movimentos da alma, ainda tão tênues que corremos o risco de se
escaparem ao olhar se não lhes prestarmos uma atenção penetran­
te, e porque se trata dos incitamentos do Sedutor que se dissimula
sob formas enganadoras. A exagoreusis tem pois por tarefa dizer
a verdade, mas como resultado de actos de conhecimento que no
fundo de si mesmo iluminam o inapercebido e apreendem a pre­
sença do Outro. A renúncia a si toma aqui, por isso, uma forma
muito particular: trata-se de fazer incidir sobre si mesmo uma
atenção contínua, o mais detalhada e aprofundada possível. Mas
não para se saber o que se é no fundo, não para apreender a forma
autêntica, primitiva e pura de uma subjectividade, mas para se le­
rem nos arcanos mais profundos da alma os embustes do Maligno,
para se renunciar por conseguinte a participar pelo querer em to­
dos esses movimentos que são outras tantas tentações, para se
abandonar toda a vontade pessoal em benefício das vontades de
Deus e das lições do director.
Digamos, esquematizando enormemente, que a exomologese
própria do estatuto penitencial se refere a um “já não ser” que, nos
confins da vida e da morte, promete o outro mundo através da
renuncia ao real; e que o exame-confissão da vida monástica visa
um “já não querer” que, do fundo da alma, expulsa o outro através
da formulação da verdade.
Além disso, cada uma destas duas práticas parece ter o seu lu­
gar institucional próprio. A dramaturgia penitencial encontra o
seu lugar numa comunidade de fiéis em que se trata de estender
àquele que caiu uma segunda tábua de salvação, mas de tal manei­
ra que à falha possa responder uma esperança de perdão, ao mes­
mo tempo que o brilho manifesto da satisfação fará eco ao escân­
dalo da falta. O exame-confissão, quanto a ele, teria antes o seu
lugar numa vida monástica em que o objectivo da contemplação
torna necessário o controle do pensamento, em que a existência
As Confissões da Carne 391

comunitária convoca como ascese os exercícios de obediência e


em que a prática da direcção deve determinar as vias comedidas e
justas da ascese.
Veremos adiante que limites dar a esta oposição e que correcti-
vos convém introduzir nela. Ainda que relativizada, ainda que re­
ferida a um conjunto que integra os seus elementos, será contudo
necessário que a tenhamos presente. O dimorfismo, nas socieda­
des cristãs, entre a vida do século e a da regra foi um fenômeno
demasiado constante e demasiado importante para não ter tido,
neste ponto como noutros, consequências decisivas. E de facto
muitas das grandes modificações que vão sofrer os procedimentos
de penitência entre os séculos vi e xvn têm a sua origem nas prá­
ticas que vigoravam sobretudo em meio monástico: foi dos con­
ventos que chegou a partir do século vii a penitência tarifada e
privada; foi nos conventos que se praticaram esses exames de
consciência regulares e sistemáticos que a devotio moderna difun­
diu nos meios laicos; foram ainda as ordens religiosas os princi­
pais agentes da extensão da direcção das consciências — que seria
um fenômeno tão notável nos séculos xvi e xvn. Na importância
crescente assumida pelas técnicas de exame (de si mesmo e dos
outros) e pelos procedimentos de verbalização das faltas, e na di­
minuição correlativa da parte do “fazer-a-verdade” por compara­
ção com o “dizer-a-verdade”, as instituições monásticas desempe­
nharam um papel decisivo. Foram, durante mais de um milênio, o
núcleo, senão permanente, pelo menos com frequência muito in­
tenso, da arte das artes, do regimen animarum', elaboraram-no,
difundiram-no, por vezes dilataram-no; aconteceu que ele lhes
fosse tomado de empréstimo e que se tentasse utilizá-lo em con­
corrência com elas e para limitar a sua influência. Contribuíram
muito para o aumento considerável da propensão para o discurso
e para a vontade de saber que caracteriza a experiência de si mes­
mo e dos outros nas nossas sociedades. E, quando se ouvir dizer
no século xvn — e em termos um tanto duvidosos do ponto de
vista do dogma — que confessar é uma maneira de dirigir as
consciências, poderemos dizer que a exagoreusis prevaleceu sobre
392 Anexos

a exomologese — ou que passou pelo menos a recobri-la em gran­


de medida.1
Em todo o caso, a historia das relações entre o “fazer-o-mal” e
o “dizer-a-verdade” no Ocidente cristão não poderia ser escrita
sem se referir à existência destas duas formas, às suas diferenças,
à sua tensão e ao lento movimento que acabou por privilegiar uma
a expensas da outra, quando, no curso do século xvi e mais ainda
ao longo de todo o século xvii, a questão do governo dos indiví­
duos se tornou, tanto do ponto de vista político como do ponto de
vista religioso, um problema maior.

- II -

Seria erróneo todavia imaginarmos que temos aqui duas práti­


cas sem interferências e relevando de dois conjuntos institucionais
radicalmente separados. As coisas são mais complicadas: primei­
ro porque o exame das instituições mostra como as práticas se
sobrepõem e se misturam; em seguida porque, atendendo às pró­
prias práticas, podemos reconhecer não só elementos, mas tam­
bém um fundo que lhes é comum.

1. É certo que o estatuto monástico era exclusivo do estatuto de


penitente, e isso tanto mais que o monge aparecia de maneira cada
vez mais nítida como aquele que levava a vida penitencial por
excelência. “Quando se trata do monge que renunciou ao mundo e
ao seu serviço, e que prometeu servir sempre Deus, porque se lhe
imporia a penitência? [...] Para o monge, a penitência pública é

1 O jogo de oposição e de complementaridade entre exomologese e exagoreusis


aparece claramente nesses movimentos de penitentes que tiveram tanta importân­
cia sobretudo no sul da Europa a partir do século xiv (cf. I. MAGL1, Gli uomi-
ni delia penitenta, Bolonha, 1967). As manifestações penitenciais ostensórias
combinavam-se neles com uma prática intensiva da confissão oral e da direcção.
Assim também entre os penitentes franceses nos finais do século xvi, e em dife­
rentes movimentos da Contra-Reforma em que se desenvolviam simultaneamente
técnicas de direcção e manifestações ascéticas.
As Confissões da Carne 393

inútil porque, retornando dos seus pecados, chora, e porque con­


cluiu um pacto eterno com Deus.”2
No entanto, se quem se torna monge não tem de se fazer, em
acréscimo, penitente, utilizam-se elementos dos ritos penitenciais
no interior da vida monástica. Os textos de Cassiano, e sobretudo
as Instituições que se referem às práticas do cenobio, são sobre
este ponto muito claras: são descritas neles formas que são pró­
prias da penitência, e a expressão “puhlice paenitere" repete-se
várias vezes, sem que, bem entendido, se trate de assumir o esta­
tuto de penitente. Assim, Pafnúcio, que aceita, por espírito de hu­
mildade, ser acusado injustamente de uma falta grave, é submetido
a um tratamento inteiramente semelhante ao que podia ser evoca­
do por Tertuliano, Ambrosio ou Jerónimo a propósito das penitên­
cias públicas: “Afasta-se no mesmo instante da igreja [...]; sem
tréguas, expande-se em lágrimas e orações, triplica os seus jejuns,
e rebaixa-se ainda mais profundamente perante os homens [...].
Durante cerca de duas semanas, põe-se assim aos pés de todos, na
maior contrição de espírito e de corpo; até então, no sábado e no
domingo acorria à igreja de manhã muito cedo, não para receber
a santa comunhão, mas para se prosternar à porta e implorar em
súplicas o seu perdão.”23 Mas, aquém destas grandes manifesta­
ções destinadas a satisfazer os pecados graves, encontramos o
testemunho de outras práticas, intermédias entre a confissão e a
tentação e as exomologeses solenes e duradouras. Cassiano enu­
mera de resto uma série de faltas que requerem um acto peniten­
cial preciso e determinado de antemão: partir casualmente um
recipiente de barro, enganar-se ainda que levemente ao cantar um
salmo, responder duramente, inutilmente, recalcitrantemente, obe­
decer com negligência, preferir a leitura ao trabalho, demorar-se

2 [FAUSTE DE RIEZ, Discours aux moines sur la pénitence (P. L., t. 58, col.
875-876), citado in C. VOGEL, Le pêcheur et lapénitence dans 1'Eglise ancienne,
Paris, 1966, p. 131.]
3 J. CASSIANO, XVIII, 15. Notar a expressão “locum paenitentiae suppliciter
postulavit" para significar que Pafnúcio pediu a penitência. Trata-se da forma tra­
dicional para se solicitar o estatuto, o lugar de penitente.
394 Anexos

depois da sinaxe em vez de regressar à cela, falar com alguma


pessoa secular fora da presença do ancião, etc.4 Para designar a
sanção prevista, Cassiano emprega a expressão “penitência públi­
ca”, ainda que não se trate, segundo parece, senão de um certo
número de elementos tomados de empréstimo à grande dramatur­
gia da penitência canónica: afastamento, gesto de súplica, atitude
de humildade5 (“Na reunião geral dos irmãos para a sinaxe, im­
plorará o seu perdão prosternado por terra durante todo o tempo
do ofício, não o obtendo antes de, por decisão do abade, lhe ser
ordenado que se levante”6).
Temos aqui o esboço de toda uma disciplina monástica na qual
se reúnem as manifestações ostensórias dos ritos penitenciais e o
controle dos gestos e dos pensamentos numa relação contínua e
incondicionada de obediência. A importância desta sobreposição
é dupla.
Manifesta em primeiro lugar o sentido “penitencial” que, de
modo cada vez mais insistente, será dado à instituição monástica.
Organizar uma arte disciplinada da contemplação pela via da hu­
mildade, da submissão ao outro e da purificação do coração — tal
é o objectivo que parece ter sido originalmente dado ao cenobio7.
E Cassiano não diz que o fim (Jinis) nem que a meta (destinatio)
da existência monástica seja conduzir a uma vida de penitência.
Vemos todavia destacar-se, através dos seus textos, o princípio de
uma coincidência. Com efeito, dá por um lado à noção de penitên­
cia um sentido estreito, quando fala dela como do conjunto dos
procedimentos no termo dos quais as faltas podem ser remidas por

4 J. CASSIANO, Instituições, IV, 16.


5 Na versão latina que SÃO JERÓNIMO dá das regras de Pacómio, encontra­
mos também as expressões “aget paenitentiam publice in collecta, stabitque in
vescendi loco”, Praecepta et Instituía, VI, in Dom A. BOON, Pachomiana Latina,
Lovaina, 1932.
6 J. CASSIANO, Instituições, IV, 16.
7 No entanto, o monaquisino sírio parece ter insistido no aspecto penitencial
da vida monástica (cf. A, VOÔBUS, [History of Ascetism in the Syrian Orient,
Lovaina, 1958]).
As Confissões da Carne 395

Deus8. Mas dela dá também uma definição muito geral, que se


refere aos resultados não só de tais práticas, mas de todos os exer­
cícios espirituais da vida monástica. A penitência é então caracte­
rizada como um estado, o estado que o monge deve procurar al­
cançar: “consiste em doravante não se cometerem mais pecados”9.
Este estado tem as suas marcas — a saber, que o coração se en­
contra livre daquilo que o inclina aos seus pecados —, e essa
marca (indicium) tem ela mesma sinais que permitem reconhecê-
-la: a própria imagem das faltas se apagou dos arcanos do coração
e, por “imagem”, não devemos entender somente o deleite que
experimentamos ao pensar nela, mas também o simples facto de a
recordarmos10* . A penitência é então essa pureza do coração que o
exame, a humildade, a paciência, a obediência, a discrição, a con­
fiança nos anciãos, a aplicação posta também em nada lhes dissi­
mular podem, com a graça de Deus, produzir na alma. E, uma vez
que a contemplação, que é o fim da vida monástica, não é possível
a não ser por uma tal pureza do coração, vemos que a penitência,
entendida não só como procedimento de remissão mas como esta­
do purificado constantemente mantido, acaba por coincidir em
suma com a própria vida monástica.
Esta deve ser incessantemente movida à confissão das faltas, às
manifestações penitenciais, à descoberta dos segredos do coração
e à abertura da alma. Discurso perpétuo: “Por todo o tempo, pois,
que a penitência dure [...], é necessário que as lágrimas de uma
confissão humilde, caindo sobre a nossa alma como uma chuva
benfazeja, nela venham extinguir o fogo vingador, aceso na nossa
consciência.”" Mas é isso mesmo que deve permitir purificar o

8 É a estes actos penitenciais que CASSIANO se refere quando escreve: “Dum


ergo agimus paenitentiam, et adhuc vitiosorum actuum recordatione mordemur"'
[Conferências, XX, 7) [“Por todo o tempo, pois, que dura a penitência e que senti­
mos o remorso dos nossos actos viciosos”, tradução Dom E. Pichery],
9 Ibid., XX, 5 (“consiste em doravante não se cometerem mais os pecados dos
quais nos arrependemos ou dos quais a nossa consciência experimenta o remorso”).
10 Ibid.
nibid.,XX,1.
396
Anexos

pensamento, até nos seus recessos mais profundos, de tudo o que


pode suscitar a tentação, constituir os seus primeiros germes ou
deixar subsistir os seus últimos rastos. Esquecimento, portanto, e
silêncio do coração. Nesta potente pulsação da confissão e do es­
quecimento, a vida monástica revela aquilo que é: a vida penitente
por excelência; penitência (exercício) para a penitência (estado)
— entendendo-se que tal estado não é nunca outra coisa senão a
firmeza num combate que reclama a permanência do exercício.
Ora, esta tendência para conceber a existência monástica como
a própria prática da vida de penitência acompanhou uma evolução
institucional cuja importância histórica foi considerável. A disci­
plina cenobítica, as relações de hierarquia e de obediência, as re­
gras de vida comum e de comportamento individual deram cada
vez mais lugar a práticas que poderiamos dizer intermédias (entre
os grandes ritos penitenciais e o discernimento perpétuo dos pen­
samentos); trata-se de práticas, de resto jurídicas e regulamentares,
que tendem a definir um código em que sanções determinadas são
associadas a infracções precisas. Para dizer a verdade, este desen­
volvimento aparece quando muito esboçado em Cassiano, para o
qual se trata sobretudo de mostrar como até mesmo às mais pe­
quenas falhas correspondem actos de satisfação ao mesmo tempo
duros, públicos e humilhantes. Vemos assim um hebdomadário
que faz penitência pública por ter deixado escapar três lentilhas12;
São Jerónimo refere do mesmo modo que, nos três mosteiros de
mulheres dirigidos por Paula, os excessos verbais eram sanciona­
dos pela exclusão da mesa comum e a estação de pé à porta do
refeitório13. Mas a comparação entre as Instituições cenobíticas e
a Regra do Mestre ou a de São Bento mostra a importância cres­
cente destas codificações punitivas que estabelecem entre falta e
penitência uma relação bastante diferente das anteriores. Esta re­
lação comporta primeiro uma avaliação da falta: pelos prebostes
de que início deviam começar por repreender, antes de remeterem

12 J. CASSIANO, Instituições, IV, 20.


13 SÃO JERÓNIMO,carta 107,19.
As Confissões da Carne 397

o caso para o abade; o qual por seu turno deve exercer o seu direi­
to soberano de julgar. Comporta também um princípio de propor­
cionalidade: “É pela gravidade da falta que deve medir-se a exten­
são da excomunhão ou do castigo; esta gravidade é remetida para
o juízo do abade.” Comporta uma distinção precisa que separa as
faltas públicas daquelas “cuja matéria é escondida”: as últimas
devem ser reveladas somente ao abade e a alguns anciãos capazes
de “cuidarem das suas próprias feridas e das dos outros”. Compor­
ta por fim um princípio de correcção progressiva (as punições não
são as mesmas conforme o culpado tenha mais ou menos de quin­
ze anos; a reincidência modifica a pena; o abade verbera o delin­
quente e deve velar muito particularmente sobre ele)14.
Numa palavra: a instituição monástica, na medida em que se
apresentava como lugar de vida penitencial permanente, mobili­
zou todo um conjunto de procedimentos susceptíveis de garantir a
remissão do mal — expulsando-o, corrigindo-o ou curando-o.
Num extremo encontramos as formas rituais e ostensórias da exo-
mologese; num outro as técnicas de exame e de confissão no dis­
curso de exagoreusis; e entre os dois os métodos destinados a
punir em função de um código que define a gravidade das faltas e
dos castigos proporcionais. Entre a manifestação da verdade atra­
vés dos “factos e gestos” do estatuto penitencial (espécie de veri-
-ficaçãó) e a sua enunciação numa relação permanente de direc­
ção (yeri-dicçãó), a regra monástica faz aparecer o que se tornará
mais tarde, no cristianismo ocidental, a forma mais importante da
relação entre o mal e a verdade, entre o “fazer-o-mal” e o “dizer-
-a-verdade” — a saber, a jurisdição.

2. Inversamente, seria do mesmo modo inexacto não vermos do


lado dos leigos senão as formas solenes da penitência pública. Tam­
bém entre eles, como entre os monges, havia toda uma gradação de
práticas diversas que iam das formas canónicas que marcavam a
pertença à ordem dos penitentes às modalidades finas da direcção.

14 Regra de SÃO BENTO, XXIV, XLIV, XLVI; cf. Regra do Mestre, XIV.
398 Anexos

Devemos começar por notar a diferença, indicada desde a ori­


gem, entre as faltas graves que põem em questão a purificação do
baptismo e as pequenas falhas quotidianas que mostram como esta­
mos ainda afastados da perfeição conclusa. As três grandes “que­
das” que tinham suscitado, no século n, as longas discussões sobre
a penitência eram a idolatria, o homicídio e o adultério. Posterior­
mente, o sistema dos pecados e a distinção entre aqueles têm neces­
sidade da penitência canónica e aqueles para os quais ela não era
necessária complicaram-se muito. Desenharam-se dois eixos de
distinção: o do público e do escondido, por um lado; o do grave e
do leve, por outro. Por um lado, vemos afirmar-se a ideia de que a
publicidade da penitência, além das suas funções de humilhação e
de manifestação do pecador, deve ter por papel corresponder à pu­
blicidade da falta: o exemplo deve compensar o escândalo. Mas,
inversamente, se a falta tiver sido secreta, e se ninguém tiver tido
ocasião de se escandalizar com ela ou de nela deparar com um mau
exemplo, o brilho de uma exomologese espectacular acarreta o ris­
co de efeitos nocivos. Daí a ideia de que à falta escondida deve
corresponder antes uma penitência “privada”. “Devemos”, diz Santo
Agostinho, “acusar diante de todos os pecados cometidos diante de
todos; e mais secretamente os que foram cometidos de maneira
mais secreta”15. E é no mesmo espírito que São Leão, um pouco
mais tarde, criticará a prática (talvez local) de ler publicamente a
lista das faltas cometidas pelos pecadores16 e recomendará que o
detalhar dos pecados somente se faça numa confissão secreta. Os
argumentos apresentados nos séculos v-vi a favor de formas de pe­
nitência que não sejam públicas são de resto interessantes na medi­
da em que mostram claramente uma desafecção relativa ao tais ritos
solenes, uma repugnância perante a sujeição a humilhações seme­
lhantes e uma tendência a reportar para o último momento da vida
a aceitação de um estatuto penitencial que perde assim todo o seu

15 “Corripienda sunt secretáis quae peccantur secretáis”, SANTO AGOSTI­


NHO, Sermão 72 (P. L., t. 38, col. 11).
16 SÃO LEÃO, carta 168.
As Confissões da Carne 399

conteúdo. Daí o conselho de São Leão, de prudência humana: se


está bem, diz ele, que quando alguém cometeu uma falta não se
recuse a corar diante dos homens, há contudo pecados que mais
vale não tornar públicos porque isso poderia servir os inimigos
daqueles que publicamente os confessam17. Pomério irá ainda mais
longe na Vita contemplativa, [uma vez que] recomenda aos que
coram de confessar as suas faltas que se imponham a sua própria
penitência e se afastem por si mesmos da comunhão18. Seja como
for, será um sistema binário (falta pública — penitência pública;
falta privada — penitência privada) que os teólogos da época ca-
rolíngia farão valer, apoiando-se na autoridade de Santo Agostinho.
A outra distinção estabelece-se entre pecados graves e faltas
leves. Os primeiros, de início definidos pela tríade idolatria-
-homicídio-adultério, foram alargados e sistematizados de manei­
ra mais ou menos aproximativa como infracções ao Decálogo19.
E Cesário, o bispo de Aries, apresenta, através de diferentes ser­
mões, uma lista que se pode resumir assim: sacrilégio, apostasia e
superstição; homicídio; adultério, concubinagem, fornicação; es­
pectáculos sangrentos ou lascivos; roubo; falso testemunho, perjú­
rio e calúnia20. Destes grandes pecados, distinguem-se as faltas

17 Ibid.
18 POMÉRIO, De vita contemplativa, II, 7 (P. L., t. 59, col. 451-452).
19 Ao expor as três formas de penitência — a que precede o baptismo, a que
deve caracterizar a vida inteira, e a que deve corresponder a faltas graves, SANTO
AGOSTINHO, no sermão 351 (7), diz [da última] que ela deve ter lugar “pro
illis peccatis [...] quae legis decalogus continent” [tradução: “para os pecados
contidos no Decálogo”]. No sermão 352 (8), falando ainda desta terceira forma
de penitência, diz que se refere aos ferimentos graves: “Talvez seja um adultério,
um homicídio, um sacrilégio; em todo o caso, é uma matéria grave e uma ferida
perigosa, mortal, pondo em perigo a salvação.”
20 Cf. C. VOGEL, La discipline pénitentielle en Gaule, Paris, 1952, p. 91. Esta
lista dos pecados mortais não deve evidentemente ser confundida com os pecados
capitais que relevam de um outro tipo de análise, uma vêz que se trata de definir
a raiz, “o espírito” que pode conduzir ao pecado. Esta definição de oito “espíritos
maus” foi inicialmente de tradição monástica. Encontramo-la em Evágrio e Cas-
siano. Cf. A. GUILLAUMONT, “Introdução” ao Tratado Prático [de EVÁGRIO
PÔNTICO].
400
Anexos

leves ou quotidianas, as que nos arriscamos a cometer sem quase


nos darmos conta, ou às quais pelo menos não atribuímos por
vezes importância. Era a propósito das faltas leves que São Cipria­
no recomendava que se procurassem os sacerdotes, que se lhas
confessassem “com toda a brandura e cumplicidade” e expondo-
-lhes o fardo da consciência a fim de que eles lhe dessem remé­
dio21. Ora, para estas faltas de importância menor não é requerido
o recurso ao estatuto penitencial; podem aplicar-se meios diversos.
Toma-se por referência então a célebre lista dos meios de remissão
que Cassiano lembrava na vigésima conferência: caridade, esmola,
lágrimas, confissão, aflição do coração, emendas de vida, inter-
cessão dos santos, conversão dos outros, perdão das ofensas. Mas,
sobretudo, considera-se que é tarefa do sacerdote escolher a satis­
fação a cumprir em função quer da falta, quer do pecador, como
um terapeuta: “Uma vez que os homens pecam de maneiras tão
diferentes, como não compreender que não podem ser curados da
mesma maneira, uns pelo ensino, os outros pela exortação, outros
pela tolerância, outros pela repreensão?”22
Vemos assim desenhar-se no interior da comunidade dos leigos
o papel do sacerdote como guia de vida e director das almas. A
ars artium que seguramente se desenvolveu de uma maneira ao
mesmo tempo mais intensa, mais reflectida, mais cuidadosamente
teorizada no meio monástico não se manteve estranha às funções
do bispo (ou do sacerdote) no que se refere aos crentes que tinha a
seu cargo. E isso em função de dois princípios. Um é que a vida
cristã na totalidade deve ser uma vida de penitência; a metanoia,
essa transformação que acompanha o baptismo, não é o acto de
um momento: deve percorrer a vida inteira, submetendo-a à “hu­
mildade perpétua da súplica”23. Não é pois tão-só como aquele que

21 SÃO CIPRIANO, De lapsis, XXVIII (P. L., t. 4, col. 488). Notar contudo que
até mesmo no caso das faltas leves São Cipriano parece indicar que se deve tomar
por um tempo o estatuto de penitente, segundo o ritual canónico (cartas XVI, 2, e
XVII, 2).
22 POMÉRIO, De vita contemplativa, II, 1.
23 SANTO AGOSTINHO, Sermão, 351.
As Confissões da Came 401

“concede” a penitência, impõe as mãos, decide da reconciliação


que o bispo se deve preocupar com o mal cometido, procurar
conhecê-lo, e velar pela sua expulsão; mas antes como alguém que
tem de velar a cada instante pela existência de todos e pela sua
vida quotidiana. De onde o segundo princípio: aquele que está à
cabeça da comunidade — chame-se-lhe bispo ou sacerdote — de­
ve ser como um pastor para o seu rebanho, tomando conta de
[todos] e de [cada um] individualmente, e esforçando-se por
conhecê-los até ao fundo da alma. Como diz São Gregorio, no
início do século vi, o mais importante não são os pecados que são
visíveis e conhecidos por todos, são as faltas escondidas; há muros
que é necessário atravessar e portas secretas que é necessário
abrir24, e se é requerido ao pastor que examine cuidadosamente a
conduta exterior dos fiéis, é a fim de descobrir assim o que o co­
ração deles pode encerrar de abominável e de criminoso25.
A relação de direcção e a prática do exame-confissão não estão
pois exclusivamente reservadas à instituição cenobítica, ainda que
tenha sido neste que receberam no século m a sua elaboração mais
complexa; e no contexto das perseguições, São Cipriano insistira
sobretudo, por um lado, nas tarefas gerais de ensino e no auxílio,
na vigilância, nos encorajamentos relativamente aos relapsos2627 .
Santo Ambrosio põe igualmente, e de maneira muito clara, o dever
de ensino na primeira linha do ofício episcopal: “episcopi pro-
priiirn munus docere populum”21. Mas é significativo que, no
início do século vi, Gregorio, o Grande, abra a sua Regula pasto-
ralis por meio de uma referência explícita a Gregorio de Nazianzo,

24 GREGORIO, O GRANDE, refere-se aqui a um texto de Ezequiel que será


bastante citado a propósito da direcção da consciência e dos métodos de exame:
“flz um buraco na muralha e surgiu-me uma porta” (8,8).
25 GREGORIO, O GRANDE, Regra Pastoral, livro I, capítulo 9.
26 Assim SÃO CIPRIANO, cartas VIII, XXX, XLIII. Ou ainda, a propósito da
reintegração dos relapsos: “Examinar a conduta, as obras e os méritos de cada um;
fazer entrar em linha de conta a natureza e a qualidade das faltas... Resolver por
meio de um exame atento a outorga dos pedidos que nos são endereçados” (carta
XV).
27 SANTO AMBROSIO, De officiis ministrorum, 1,1.
402 Anexos

parecendo assim indicar que o papel do bispo ou do sacerdote,


como o do abade ou do ancião no mosteiro, é dirigir almas: “A
arte de conduzir as almas é a arte das artes, a ciência das ciências.
Quem não sabe que é incomparavelmente mais difícil curar as
feridas das almas do que as dos corpos”28; ninguém pode dizer-se
médico se não conhecer os remédios; “e no entanto alguns não
receiam tomar a qualidade de médico das almas sem conhecerem
as regras desta ciência divina29.”
Em suma, pode-se abordar a análise das práticas penitenciais,
ou mais precisamente das relações entre o fazer-o-mal e o dizer-
-a-verdade, de duas maneiras: segundo uma perspectiva “técnica”
ou “praxeológica”, que faz aparecer dois procedimentos distintos,
a da exomologese e a da exagoreusis-, segundo uma perspectiva
institucional, que faz aparecer um continuum de práticas, em que
estes dois esquemas se sobrepõem, se combinam e desenham fi­
guras intermédias. Dualidade pois dos procedimentos de verdade,
dualidade das formas de aleturgia, ou das maneiras para o cristão
de fazer de si mesmo — do seu corpo e da sua alma, da sua vida
e do seu discurso — o lugar de emergência da verdade do mal do
qual quer purificar-se. Mas também gradação das práticas instituí­
das e dos ritos, gradação nas formas de comportamento que são
impostas aos indivíduos, e que devem responder ao mal através de
um conjunto de condutas que vão das macerações públicas e sole­
nes à confissão secreta e quase perpétua.
As duas grandes formas de aleturgia são portanto aplicadas,
sustentadas e aproximadas uma da outra por um campo institucio­
nal que, apesar da diferença de estatuto entre vida secular e vida
regular, apresenta uma certa unidade. A que é constituída pela
existência de um tipo muito particular de poder. Poder que é espe­
cífico às Igrejas cristãs e do qual dificilmente, sem dúvida, se
encontrariam equivalentes noutras sociedades e religiões. Poder
do qual uma das funções mais importantes é conduzir a vida dos

28 [GREGORIO DE NAZIANZO, Discurso II, 16.]


29 GREGORIO, O GRANDE, Regra Pastoral, livro I, capítulo 1.
As Confissões da Carne 403

fiéis como vida de penitência, e de exigir incessantemente, como


preço do mal, a extensão dos procedimentos de verdade — exo-
mologese ou exagoreusis.

- III -

É muito anterior ao cristianismo a ideia de um poder que se


exerceria sobre os homens da mesma maneira que, sobre o reba­
nho, a autoridade do pastor. Toda uma série de textos e de ritos
muito antigos se referem ao pastor e às suas ovelhas para evocar o
poder dos reis, dos deuses ou dos profetas sobre os povos que têm
por tarefa guiar.
No Egipto, na Mesopotâmia, o tema do pastoreio (divino ou
real) parece ter sido claramente marcado, embora mantendo-se
bastante rudimentar. Na cerimônia da coroação, os faraós rece­
biam as insígnias do pastor30. O termo “pastor” fazia parte da ti-
tulatura dos reis babilônios e assírios, para marcar ao mesmo
tempo que eram os [mandatários31] dos deuses e que tinham de
velar, por eles, pelo bem do rebanho32. Mas, entre os hebreus, a
temática do pastoreio é muito mais ampla e complexa. Cobre uma
grande parte das relações entre o Eterno e o seu povo. Yahweh
governa conduzindo: marcha à cabeça dos hebreus quando estes
saem da cidade, e, por meio do seu poder, “condu-los aos prados
da sua santidade”33. O Eterno é o pastor por excelência. A refe­
rência ao pastor caracteriza a monarquia de David, na medida em
que esta se legitima por ter recebido de Deus o encargo do reba­
nho34; este encargo caracteriza também o papel daqueles que,
postos à frente do povo, lhe comunicaram a vontade de Yahweh e

30 H. FRANKFORT, La Royauté et les Dieux, Paris, 1951, p. 161.


31 [Manuscrito: “mandantes”.]
32 C. J. GADD, Ideas ofDivine Rule in the Ancient East, Londres, 1948.
33 Êxodo, 15,13.
34 PH. DE ROBERT considera que David beneficiou da titulatura pastoral; os
outros reis só colectivamente eram chamados pastores e para serem designados
como “maus pastores” {Les Bergers d’Israêl, Genebra, 1968, pp. 44-47).
404
Anexos

se deixam por ele guiar a fim de bem conduzirem as ovelhas:


“Conduziste o meu povo como um rebanho pela mão de Moisés e
de Aarão.”35
Marca igualmente a promessa messiânica; aquele que há-de vir
será o novo David; por oposição a todos os maus pastores que
dispersaram as ovelhas, aquele que há-de vir será o pastor único,
designado por Deus para reconduzir até ele o seu rebanho.
Na Grécia Clássica, o tema do poder pastoral parece ter ocupa­
do, em contrapartida, um lugar menor. Os soberanos homéricos
eram efectivamente designados como “pastores dos povos”, mas
sem que nisso houvesse muito mais do que o vestígio de uma an­
tiga titulatura ritual. Mas mais tarde os gregos não parecem ter
estado muito inclinados a fazer da relação entre o pastor e as suas
ovelhas o modelo das relações que devem atar-se entre os cidadãos
e aqueles que os comandam. O termo “pastor” não faz parte do
vocabulário político nem em Isócrates, nem em Demóstenes36.
Excepções: os pitagóricos, no que alguns crêem reconhecer uma
influência oriental e até mesmo específicamente hebraica, outros
pelo contrário um simples lugar-comum37. E por certo Platão, A
República, As Leis e O Político. Nos dois primeiros destes textos,
o tema do pastor é relativamente acessório: serve para fazer a crí­
tica moral das teses de Trasímaco38, ou para definir a função de
certos magistrados subordinados39. Em contrapartida, ocupa uma
posição central em O Político. Quando neste se trata de indagar
qual a definição da arte “real” de comandar, é à sua figura que se

35 Salmos, 77,21 [O salmo diz o “teu” e não o “meu povo”].


36 O facto é ainda mais impressionante em Isócrates, dado que a descrição do
bom magistrado no Areopagítico lhe atribui várias funções e virtudes que noutros
lugares pertencem à temática do pastor.
37 A primeira opinião é a de Grube, na sua edição dos Fragmentos de Arquitas. A
segunda é a de A. DELATTE no seu Essai sur la politique pythagoricienne, Paris e
Liège, 1922. Os textos do Pseudo-Arquitas citados por Estobeu aproximam nomos
e nomeus c chamam a Zeus Nomios.
38 PLATÃO, A República, livro I, 343-345.
39 PLATÃO, As Leis, livro X: os pastores são opostos aos “animais de rapina”,
mas distinguem-se dos senhores.
As Confissões da Carne 405

atende: não é o rei pastor dos homens? Sabemos que, ao aplicarem


a este tema o método da divisão, os interlocutores de O Político
falham. E falham porque a actividade própria do pastor sobre o
rebanho — alimentá-lo, cuidar dele, conduzi-lo ao som da música,
ou compor as uniões fecundas — pode designar as funções do
padeiro, do médico ou do ginasta, mas não pode caracterizar apro­
priadamente aquele que exerce um poder político. Ou antes, se­
gundo a lição do mito, é necessário distinguir as fases do mundo.
Quando este girava sobre o seu eixo num certo sentido, cada espé­
cie era guiada pelo seu génio-pastor; o rebanho humano, por seu
turno, era guiado pela “própria divindade”: tudo era fornecido aos
homens em matéria de alimentação e eles voltavam à vida depois
da morte. Afirmação significativa: “Uma vez que a divindade era
o seu pastor, não tinham necessidade de constituição política.”4041
Mas, quando o mundo passa a girar no outro sentido, uma vez que
o deus-pastor se retirara, os homens têm necessidade de ser dirigi­
dos: não todavia por um pastor humano, mas por alguém capaz de
ligar os elementos da cidade como os fios de um tecido. Cabe-lhe
fazer com tantos indivíduos diferentes um pano sólido. O homem
político não é pastor, é tecelão. Platão não exclui pois por comple­
to a personagem do pastor, mas divide o seu papel: por um lado,
repele-o para o passado de uma história mítica, por outro, para as
actividades auxiliares do médico e do gimnasiarca. Mas dispensa-
-o quando se trata de analisar a cidade real e o papel daquele que
exerce o poder. A política, na Grécia, não é assunto de pastores.
Teremos de esperar pela difusão de temas orientais na cultura
helenística e romana para que o pastoreio apareça como a imagem
adequada para representar as formas mais altas do poder: “a tare­
fa do pastor é tão elevada”, diz Fílon de Alexandria: “atribuímo-la
justificadamente não só aos reis, aos sábios, às almas de uma pu­
reza perfeita, mas também ao Deus soberano’541. Na literatura
política da época imperial, o poder do príncipe é por vezes refèri-

40 PLATÃO, O Político, 271e.


41 FÍLON DE ALEXANDRIA, De agricultura, 50.
406 Anexos

do ao do pastor: quer para manifestar o apego recíproco que deve


ligar o soberano e o seu povo42, quer para exaltar a preeminéncia
daquele que prevalece sobre os seus súbditos do mesmo modo que
o pastor sobre os seus animais43.

Esqueçamos por um instante lugares e cronologias. Não procu­


remos saber que lugar e que sentido a figura do pastor pode ter
tido ñas diferentes culturas em que a vimos aparecer. Tomemo-la
como um tema que circula no mundo helenístico e romano, no
momento em que o cristianismo se vai apossar dele e dar-lhe, pela
primeira vez na historia do Ocidente, uma forma institucional.
Que tipo de poder era pois representado na figura do pastor?

1. Reunir. O seu poder consiste numa relação essencial com a


multidão; exerce-se sobre o número (ainda que inumerável), mais
do que sobre a superfície. Outros constroem o edifício de um Es­
tado, de uma cidade, de um palácio com alicerces sólidos. Ele
reúne uma massa: “Aquele que dispersou Israel reuni-lo-á; guardá-
-lo-á como um pastor o seu rebanho.”44 Esta reunião tem dois
operadores. A unicidade, porque é porque está só, e é único, que o
pastor faz a unidade das ovelhas, “submetendo os povos” à sua
vontade única; o pastor soberano faz com que “os homens leais
avancem todos ao mesmo passo”45. E a acção instantânea: é a sua
voz, o seu gesto que fazem nascer, a cada instante, da multiplici-

42 DIÃO CRISÓSTOMO, Discursos, I.


43 Fílon de Alexandria refere que, para Calígula, “não sendo os pastores de ani­
mais eles mesmos nem bois, nem cabras nem carneiros”, ele mesmo, pastor da
espécie humana, devia com efeito pertencer a uma outra espécie ainda superior,
quer dizer, divina e não humana (citado por P. VEYNE, Le Pain et le Cirque, Paris,
1976, p. 738). Sobre a metáfora do príncipe que não é um boieiro, mas um touro
no meio do rebanho, cf. DIÃO CRISÓSTOMO, Discursos,II.
44 Jeremias, 31,10.
45 C. J. GADD, Ideas of Divine Rule in the Ancient East, p. 39.
As Confissões da Carne 407

dade, o rebanho: “Assobiarei para os reunir.”46 Com ele ausente,


os animais não podem senão dispersar-se. Ao contrário do funda­
dor de império ou do legislador, o pastor não deixa a sua obra
para trás.

2. Guiar. O que é próprio do pastor não é fixar os limites de


uma pátria, nem conquistar novas terras. A sua residência é o seu
percurso; atravessa os prados, conduz às fontes, faz o seu caminho
no deserto. Amon, o deus pastor dos povos do Egipto, “conduzia
as gentes em todos os caminhos”, “guiava o rei pelo tempo todo
em cada uma das suas excelentes empresas”47. O pastor é o se­
nhor das transumâncias. Quando exercem o seu poder, os outros,
na sua maioria, mantêm-se “em cima”; ele anda “à frente”: “Ó
Deus, quando saias à cabeça do teu povo.. ,”4849O que remete para
várias diferenças essenciais: o seu poder não tem a sua razão de
ser aí onde está; é finalizado por um alhures e um mais tarde.
Poder que tem a forma de uma missão. Não consiste em pôr a lei
de uma vez por todas, mas em fixar a meta e em escolher a cada
instante, segundo as circunstâncias, o melhor caminho. Um poder
que indica. Por fim, em vez de vergar os povos à sua própria von­
tade, o pastor mostra-lhes o caminho que ele mesmo toma; dá o
exemplo e dirige-os menos por meio de um poder que faz tremer
do que por uma certa força singular, e um pouco misteriosa. Um
poder que arrasta.

3. Alimentar. “Companheiro fulgurante que participa no pasto­


reio de Deus, que toma conta do país e o alimenta, pastor de abun­
dância.”*9 O pastor não é o que cobra o tributo, ou acumula os te­
souros. O seu papel é tornar prósperos os animais dando-lhes
largamente de comer e de beber. Faz viver, não no sentido amplo em

46 Zacarias, 10,8.
47 In S. MORENZ, La Religion des Égyptiens, Paris, 1962, p. 94.
48 Salmos, 68,8.
49 R. LABAT, Le Caractère religieux de la royauté assyro-babylonienne, Paris,
1939, p. 352.
408
Anexos

que os bons governos enriquecem o Estado, mas no sentido preciso


em que assegura, cabeça a cabeça, o sustento de todos: “Graças à
tua boca benfazeja, ó meu pastor, todos vão ansiosamente em direc­
ção a ti.”50 É principio nutriente. Os sofistas, e Trasímaco com eles,
enganavam-se, quando criam que o poder do pastor era, como qual­
quer outro, egoísta, não visando “noite e dia” senão utilizar os ani­
mais em seu proveito — boa carne ou negócio interessante: “o que
assim se representavam não era um pastor”, este não deve ter outra
preocupação que não seja proporcionar ao rebanho a melhor das
condições possíveis51. Maldição também dos reis de Israel, que não
pensaram antes do mais e somente no seu povo: “Ai dos pastores
que se apascentam a si mesmos. Acaso não é o rebanho que os pas­
tores devem apascentar?”52 A relação do pastor com as suas ovelhas
tem portanto três caracteres: pelo objectivo visado, deve ser produ­
tora de abundância — ou pelo menos de vida ou de sobrevivência;
pela sua forma, é da ordem do zelo, da aplicação, eventualmente da
preocupação e da dor53; por fim, o seu efeito está numa espécie de
identificação global entre a gordura dos rebanhos aos quais nada
falta e a riqueza de um pastor que não pensa senão neles. O poder
sobre... parece tornar-se numa atenção a... que justifica e acaba por
envolver todos os seus efeitos de autoridade54.

4. Velar. A atenção do pastor estende-se a todos; mas a sua arte é


lançar um olhar particular sobre cada um. Onde o rei não veria mais
do que súbditos indiferentemente submissos, o magistrado cidadãos
iguais, o eretismo pastoral esforça-se por apreender a individualida-

50 Citado ibid., p. 232.


51 PLATÃO, A República, livro I. Cf. Crítias, 109b; na Atlântida, os deuses,
enquanto pastores, eram os “provedores de alimento” do gado humano.
52 Ezequiel, 34,2.
53 “Ó Rei, que velas quando todos os homens dormem e procuras o que é bom
para o teu gado”, Hino egípcio, citado por S. MORENZ, La Religión des Égyp-
tiens, p. 224.
54 DIÃO DE PRUSA, ao falar do soberano-pastor, diz que este não age em vista
de si mesmo, mas do bem dos homens, que não participa nas riquezas e nos praze­
res, mas na epimeleia e nos phrontides. Discursos, I.
As Confissões da Carne 409

de de cada um. O que quer dizer, em primeiro lugar, que deve ter
em conta tanto quanto possível a mais pequena das diferenças: o
pastor dos homens não deverá nunca esquecer que “entre eles como
entre os actos, há dissemelhanças, além de que nenhuma coisa hu­
mana, por assim dizer, se mantém estável”. O que quer dizer tam­
bém que a lei, como imperativo geral imposto do mesmo modo a
todos, não é por certo para o pastor das multidões “o procedimento
de governo mais correcto”. O que quer dizer finalmente que aquele
não pode desempenhar o seu papel de pastor a não ser aproximando-
-se de cada ovelha; tendo em conta a sua idade, a sua natureza, a sua
força e a sua fraqueza, o seu carácter e as suas necessidades, deve
“prescrever-lhe com exactidão o que lhe convém”, a ela e a ela só55.
Tal é sem dúvida um dos traços mais característicos da modalidade
pastoral do poder: este tem a seu cargo o rebanho inteiro, mas deve
modular os cuidados a dar a cada uma das cabeças que o compõem.
Poder sobre multiplicidades que unifica e ao mesmo tempo poder
de decomposição que individualiza. Omnes et singulatim, segundo
uma fórmula que continuará a ser por muito tempo aquilo a que
poderiamos chamar o “paradoxo do pastor”, o desafio maior que a
pastoral do poder deverá incessantemente relevar.

5. Salvar. A tarefa última do pastor é fazer com que o rebanho


regresse são e salvo. A salvação neste caso comporta quatro tare­
fas essenciais: fazer escapar o rebanho aos perigos que o ameaçam
no lugar onde está, e que o forçam a ir buscar refúgio alhures, e
assim a fixar a partida oportuna, a despertar os animais adorme­
cidos, em suma, a chamar — “Deixar-vos-ei sair de entre os povos
e congregar-vos-ei de todos os países por onde fostes dispersos.”5657
Afastar os inimigos que possam apresentar-se pelo caminho,
mantê-los à distância como fazem os cães de guarda, defender^1.

55 PLATÃO, O Político, 294a-295c.


56 Ezequiel, 20,34.
57 Sobre o pastor que monta guarda com os seus cães, cf. PLATÃO, A República,
III, 416a e IV, 440d.
410 Anexos

Saber evitar os perigos da estrada, as fadigas, a fome e as doenças,


pensar as feridas e sustentar os mais fracos, em suma, cuidar’'1-,
finalmente, encontrando o bom caminho, garantir o regresso de
todos os animais ao redil, reconduzi-los. O bom pastor deve salvar
todos os animais, mas também a mais pequena ovelha que esteja
em perigo. E aqui que o paradoxo do pastor se torna uma prova
decisiva. Porque há casos em que, para salvar a totalidade do re­
banho, é necessário excluir o animal cuja doença ameaça infestar
todos os outros — é necessário “fazer uma selecção entre os ele­
mentos que são sãos e os que o não são, os que são de boa raça e
os que não são de boa raça”, prestar cuidados a uns e despedir os
outros, não conservar a não ser “o que há de são e de não conta­
minado”5859. Mas há o caso inverso, e é talvez aí que a singularida­
de do poder pastoral se distingue melhor do papel do magistrado
ou do hábil soberano: os últimos sabem que será sempre necessá­
rio salvar a cidade, o Estado, o império, ainda que este ou aquele
tenham de perecer em vista da salvação de todos. O pastor, pelo
seu lado, está pronto, por um só que esteja sob ameaça, a fazer por
um instante como se o resto não existisse. Para o pastor, cada uma
das suas ovelhas é sem preço, o seu valor não é nunca relativo.
Moisés, no tempo em que era pastor de Jetro, perdera um dos seus
cordeiros, partira em sua busca, encontrara-o junto a uma fonte
(“não sabia que era porque tinhas sede que fugiras; deves estar
cansado”); trouxera-o sobre os seus ombros e Yahweh, ao vê-lo,
dissera: “Uma vez que tens piedade do rebanho de um homem,
serás o pastor do meu rebanho, o pastor de Israel.”60 Entre a sal­
vação de todos e a salvação de cada um, imperativos absolutos um
e outro, o poder pastoral multiplica obrigações inconciliáveis.

58 Graças ao pastor, os animais não sofrem fome nem sede, “o sol e o calor não
os atingem”, [Isaías, 49,10].
59 PLATÃO, Ai Leis, 735a-736c.
60 Comentário rabínico do Êxodo, citado por PH. DE ROBERT, Les Bergers
d’Israel, p. 47.
As Confissões da Carne 411

6. Prestar contas. A iminência da fome e da morte, a necessi­


dade de uma protecção incessante, o cuidado da salvação domi­
nam as relações das ovelhas e do pastor; excluem que este seja
alguma vez inocente das desgraças que lhes acontecem; a menor
das suas faltas — negligência, avidez, egoísmo, rigor excessivo
— arrisca-se a conduzir os animais à sua perda: “Se forçasse a sua
marcha um único dia, morreria todo o rebanho.”61 Falta que o
pastor pagará ele mesmo imediatamente, porque, se se extraviar o
rebanho, é a si mesmo que se perderá; e terá fome por sua vez, se
o reduzir à fome: “os pastores foram insensatos... por isso não
prosperaram e os rebanhos da sua pastagem dispersaram-se”62.
Mas terá também de prestar contas das suas faltas àquele que lhe
entregou as ovelhas para que ele as conduzisse. Ambivalência do
poder pastoral: é total, tem de velar sobre todas as coisas e de o
fazer até ao detalhe; o pastor assume o encargo de tudo o que diz
respeito ao rebanho, o seu poder é indiviso enquanto se exerce,
uma vez que o seu único limite e a sua única lei é o bem dos pró­
prios animais. Mas chega o momento em que é necessário prestar
contas de tudo. O pastoreio é um poder que nasce de manhã e
morre com a noite: um poder de “trânsito” não só pelo seu objecto,
mas também pela forma segundo a qual se delega e se restitui. O
pastor não recebe o rebanho senão para o devolver. Ainda que
seja rei, só o tem a seu cargo por ter sido escolhido: “Trouxeste-me
do meio das montanhas, chamaste-me para ser o pastor dos ho­
mens, confiaste-me o ceptro da justiça.”63 Das suas faltas, ser-lhe -
-ão pedidas contas, e, se perdeu o rebanho, será punido por isso.
Yahweh perguntará: “Onde está, pois, o rebanho que te fora con­
fiado, as ovelhas que te foram confiadas?”64 E, vendo que os
pastores falharam, dir-lhes-á: “Dispersastes e afugentastes as mi­
nhas ovelhas, não vos ocupastes delas; por isso, irei eu ocupar-me

61 Gênesis, 33, 13.


62 Jeremias, 10,21.
63 Prece de Assurbanípal II à deusa Isthar, citada por PH. DE ROBERT, loc. cit.,
p. 14.
64 Jeremias, 13,20.
412 Anexos

de vós, devido à maldade das vossas acções.”65 O poder do pastor


está tomado numa longa rede de responsabilidades em que as fal­
tas estão ligadas quer a sanções imediatas, quer a punições diferi­
das; está submetido a “contas” perpétuas — enumeração dos ani­
mais confiados e reconduzidos, cálculo dos vivos e dos mortos,
contagem dos erros, das inabilidades, das negligências.
Misturei, eu sei, contra todo o método, muitas coisas díspares:
Platão e a Bíblia, os deuses do Egipto e os reis da Assíria. É que
se tratava somente de mostrar que, ao falarmos dos deuses, dos
reis, dos profetas, ou até mesmo dos magistrados como de pastores
à cabeça do seu rebanho, não celebramos somente o seu poder ou
a sua bondade através de uma metáfora familiar, mas designamos
também uma certa maneira de exercer o poder. Ou, pelo menos,
designamos um conjunto, sem sistematicidade mas não sem coe­
rência, de funções próprias de um certo tipo de autoridade. Ainda
que desligada dos contextos religiosos políticos nos quais assumia
o seu valor profundo, a imagem do pastor tinha a sua lógica.

Duplo acontecimento considerável para o mundo antigo: o cris­


tianismo é a primeira religião que nele se organiza como Igreja. E
esta Igreja define o poder que exerce sobre os fiéis — sobre cada
um e sobre todos — como um poder pastoral.
Longe de ser no cristianismo uma maneira de representar este
ou aquele aspecto do poder, a figura do pastor recobre pelo con­
trário todas as formas de governo eclesiástico: todas se justificam
pelo facto de terem, a exemplo do Cristo-pastor e sob a sua condu­
ção, de levar o rebanho humano (incluindo a mais pequena ovelha)
até ao prado eterno. E não se trata de uma simples metáfora, mas
da introdução de instituições e procedimentos destinados, através
de toda a sociedade, a regularem a “conduta” dos homens; o termo
deve ser entendido no sentido das palavras: maneira de os dirigir,

65 Jeremias, 23,2.
As Confissões da Carne 413

maneira para eles de se comportarem. O cristianismo, como Igre­


ja, instaurou um poder geral susceptível de “conduzir a conduta”
dos homens: poder muito diferente daqueles que o mundo antigo
podia conhecer, fosse esse poder o do príncipe sobre o Império, ou
o do magistrado sobre a cidade, do pai sobre a “família”, do patro­
no com a sua clientela, do Senhor com os seus servidores ou es­
cravos, do chefe de escola com os seus discípulos. E se o cristia­
nismo pôde, de maneira bastante rápida, inserir-se na organização
da “romanitas”, foi talvez em parte por trazer consigo tais proce­
dimentos de poder: bastante novos e específicos para não serem
imediatamente incompatíveis com os que já existiam, bastante
eficazes para darem resposta a todo um conjunto de necessidades
recentemente aparecidas. O poder pastoral tornou-se uma institui­
ção ao mesmo tempo global (que se reporta em princípio a todos
os membros da comunidade), especializada (pois tem objectivos e
métodos próprios) e relativamente autónoma (ainda que esteja li­
gada a outras instituições com as quais interfere ou sobre as quais
se apoia).
Está fora de questão resumir aqui, ainda que brevemente, o
processo desta institucionalização. Trata-se de indicar apenas al­
gumas das modificações que o cristianismo trouxe à temática
anterior do pastoreio: as que permitem compreender a importância
concedida às confissões da carne. Quer dizer, as que tendem a
fazer do pastoreio um governo dos homens através da manifesta­
ção da sua verdade individual. Têm dois aspectos principais que a
patrística latina faz aparecer claramente.

1. O primeiro diz respeito à natureza e à forma que ligam o


pastor ao rebanho inteiro e a cada uma das ovelhas.
a. Na temática antiga do pastoreio, o pastor deve ao rebanho o
seu zelo, a sua atenção, a sua vigilância e as suas vigílias, a sua
dedicação: relação de beneficência, necessária à sobrevivência do
rebanho. No cristianismo, é a própria vida do pastor que deve po­
der ser oferecida ao rebanho e pelo rebanho: ele defende-o contra
os lobos, dá a sua existência por ele; e é por meio do seu sacrifício
414 Anexos

que as ovelhas acedem à vida eterna66. Segundo o modelo crísti-


co, a morte do pastor, ou pelo menos a sua morte neste mundo, é
a condição da salvação do rebanho. Relação sacrificial em que o
pastor se troca contra todos e cada um, ganhando assim o seu
próprio mérito através do gesto que salva os outros67.
b. A reciprocidade entre o pastor e o rebanho obedecia antes do
cristianismo a um princípio de causalidade global: gordura do re­
banho, riqueza do pastor; miséria do gado, pobreza do seu senhor.
Na forma cristã do pastoreio, a reciprocidade já não é simplesmen­
te da ordem da causalidade, mas da identificação; e estabelece-se
além disso ponto por ponto; o sofrimento de cada ovelha é uma
dor que o pastor experimenta; os seus progressos são o seu aper­
feiçoamento próprio. A compaixão do pastor é uma identidade
imediata: experimenta, “no fundo do coração, a enfermidade das
almas fracas”; regozija-se com “o avanço dos seus irmãos como
com o seu próprio”68.
c. O pastor cristão não tem somente de prestar contas por cada
animal, mas por cada falta, por cada queda, por cada passo. No dia
temível, os pecados das ovelhas ser-Ihe-ão reprovados como pró­
prios, se [não] tiver podido69 preveni-los por meio do seu ensino,
da sua vigilância, do seu rigor ou da sua caridade. Até mesmo
aqueles que renegaram, até mesmo os “lapsi” poderão fazer valer
contra o pastor não terem sido apoiados, encorajados, munidos de
ensinamentos e de conselhos salutares70.
d. O pecado do pastor está no centro da relação que ele mantém
com o rebanho: as suas próprias faltas acarretam os passos em
falso das ovelhas (e agravam-se mais por isso); e os pecados do
rebanho acumulam-se na sua culpa. Importância, por conseguinte,

66 Evangelho de São João, 10,11-18.


67 SÃO JERONIMO, carta 58: ’’Aliorutn salutemfac lucram animae tuae.”
68 GREGÓRIO, O GRANDE, Regra Pastoral, livro I, capítulo 49. Cf. também o
livro II, capítulo 2: “olhar como seu bem próprio e seu benefício próprio o bem e
o benefício do próximo”.
69 [Manuscrito: “se tiver podido”.]
70 SÃO CIPRIANO, carta XLIII, cf. também carta VIII.
As Confissões da Carne 415

para o pastor de ser tão puro e tão perfeito quanto possível: “Es­
tando obrigado pelo seu cargo a retirar do coração dos outros o
que possam ter de impuro, não deve ter impureza alguma no seu
próprio coração.”71 Mas importância também para não cair no
pecado de orgulho, e na cegueira do desconhecimento das suas
próprias fraquezas, de não se atribuir superioridade alguma e até
mesmo de conservar sempre presentes no espírito as suas próprias
imperfeições7273
: servidor de todos, pescador entre os outros, e
mesmo com mais gravidade do que os outros, uma vez que terá de
reconhecer as suas fraquezas nos pecados do rebanho.
e. O que faz com que o pastor não deva tirar nem orgulho algum
por ter sido designado, nem razão alguma por exercer uma domi­
nação (potestas)'"'. Seguindo o exemplo de São Gregorio, deve
tremer quando se vê encarregado da condução das almas, apreen­
são que não deve nunca perder de vista se quiser esconjurar “o
orgulho, os pensamentos ilícitos, os pensamentos importunos e
iníquos”. E seria, contudo, pecado esquivar-se a esse dever e dei­
xar as ovelhas sem pastor74.
Entre o pastor cristão e o seu rebanho, a economia própria do
pecado e da salvação, o contágio e a multiplicação das faltas, a
troca dos sacrifícios, a vigilância sobre si mesmo que não pode
separar-se nunca da solicitude para com os outros estabelecem
laços muito mais numerosos, complexos e sólidos do que os que
encontramos na temática antiga do pastor. E, sobretudo, a indivi­
dualidade do laço desempenha agora um papel essencial: devido à
comunicação directa que se estabelece entre cada acto de cada fiel

71 GREGORIO, O GRANDE, Regra Pastoral, livro II, capítulo 2.


72 SANTO AMBRÓSIO, De officiis ministrorum, livro II, capítulo 24. Felizmen­
te Deus deixa sempre algumas imperfeições nos justos “a fim de que, no meio do
esplendor das virtudes que lhes valem a admiração de todos, a contrariedade que
lhes causam as suas imperfeições os mantenha de cabeça baixa”.
73 Ibid. Ambrosio refere-se aqui à Primeira Epístola de São Pedio, 5,3.
74 GREGORIO, O GRANDE, Regra Pastoral, livro II, capítulo 2; e livro I, capí­
tulo 6: “Aqueles que a sua humildade leva a que fujam da condução das almas não
são na verdade humildes excepto quando não resistem obstinadamente à ordem da
Providência que a tal os comete.”
416
Anexos

e o mérito do pastor, e através da problematização do próprio pas­


tor que já não é por meio de qualquer direito de natureza ou de
instituição o “bom” pastor, mas, como todos os outros, um peca­
dor cujas faltas cada ovelha deverá temer.

2. O cristianismo reclama do pastor uma forma de saber que


excede largamente a habilidade ou a experiência que a tradição
atribuía aos pastores dos homens. No coração da actividade pasto­
ral, a Igreja inscreveu um imperativo de verdade, ou antes, um
conjunto de imperativos.
Imperativo de rigor doutrinai. Se não conhecer ele mesmo a
verdade, e não lhe estiver incondicionalmente apegado, o pastor
conduzirá o rebanho à sua perda: “Não é possível que os sacerdo­
tes, uma vez que são os primeiros guias, percam as luzes da ciên­
cia sem que aqueles que os seguem fiquem vergados sob o peso do
pecado que os oprime.”75 E deve velar incessantemente por que os
membros da comunidade continuem ligados a essa verdade e por
ela; porque é a verdade que os une, o erro que os separa,
dispersando-os longe do caminho, e tornando por fim necessária
a sua exclusão; ao pastor compete reconduzir as “ovelhas que ba­
lem errantes” e que as heresias e o espírito de seita tenderão a
separar76.
Imperativo de ensino. Pastor da verdade, o pastor deve fornecer
a todos o alimento espiritual sob a forma da boa doutrina. “Epis-
copi proprium munus docere", dizia Santo Ambrósio logo no iní­
cio do De officiis ministrorum. Mas este ensino é mais complexo
do que uma simples lição. Em primeiro lugar, porque o pastor cuja
ciência nunca é inteiramente completa tem de aprender ao ensi­
nar77: a verdade revela-se para ele no zelo e na caridade da sua

75 GREGÓRIO, O GRANDE, ibid., livro I, capítulo 10.


76 SÃO CIPRIANO, carta XLV; cf. também a carta de DIONÍSIO, bispo de Lida:
“reconduzir ao seu verdadeiro pastor o gênero humano acorrentado por múltiplos
erros, o rebanho de Cristo que se dispersara” (in Cartas de São Jerónimo, t. IV, p.
159, carta 94).
77 SANTO AMBRÓSIO, De officiis ministrorum, I, 1.
As Confissões da Carne 417

palavra. E depois não pode tratar-se de comunicar somente a dou­


trina: aquilo que ensina deve aparecer e impor-se na sua vida, na
sua conduta, na sua virtude; ele deve ser como um rosto vivo da
verdade que prega78. Por fim, não pode ensinar toda a gente da
mesma maneira: os espíritos dos auditores são como as cordas de
urna cítara, diferentemente retesadas: não podem ser tocados da
mesma maneira; é frequente que sejam prejudiciais a alguns pro­
cedimentos que são proveitosos para outros: não podemos instruir
os homens como as mulheres, os ricos como os pobres, os alegres
como os tristes79.
Imperativo do conhecimento dos indivíduos. Aquele que guia a
comunidade deve, pois, conhecer cada um, e cada um deve poder
confiar-se-lhe: quando são atacados pela tentação, os fracos têm
de poder procurar asilo no seio do seu pastor, “como os filhos no
seio da sua mãe”80. Mas é também necessário que o pastor descu­
bra, ainda que a despeito de eles mesmos, o que aqueles dissimu­
lam ou se dissimulam a si mesmos. Segundo as palavras de Eze-
quiel, atravessar a muralha, e abrir as portas escondidas81: quer
dizer, “examinar a conduta exterior” dos pecadores a fim de
“descobrir por ela o que eles escondem no seu coração de mais
criminoso e mais detestável”82. A extorsão das verdades voluntá­
ria ou involuntariamente escondidas faz parte das relações do
pastor com as suas ovelhas.
Imperativo de prudência. Por mais apegado que esteja às coisas
celestes, o pastor nada deve ignorar ou negligenciar das realida­
des: deve “aplicar-se sempre a examinar todas as coisas, a fazer

78 Os que não praticam o que ensinam “destroem por meio dos seus costumes
corruptos o que se esforçam por estabelecer por meio das suas palavras”; são como
pastores que bebem uma mesma água clara, mas a corrompem com os seus pés su­
jos e não deixam às ovelhas mais do que uma água enlameada, SÃO GREGORIO,
O GRANDE, Regra Pastoral, livro I, capítulo 2.
79 São Gregorio estabelece também na Regra Pastoral trinta e seis distinções que
é necessário ter em conta para bem se instruírem os fiéis.
80 [Ibid., livro I, capítulo 4.]
81 Ezequiel, 8,8.
82 GREGORIO, O GRANDE, Regra Pastoral, livro II, capítulo 9.
418 Anexos

um discernimento justo e exacto do bem e do mal, saber estudar


os tempos, os lugares, as maneiras e as pessoas, quando se trata de
dizer ou de fazer alguma coisa”83. Deve [aplicar-se] para não sol­
tar as suas palavras “no ar”84, não ser nem demasiado indulgente
nem demasiado severo85, não fazer, quando castiga, como esses
lenhadores desastrados a quem o machado foge das mãos e vai
ferir os seus companheiros86. Sem nada perder da sua fidelidade
à pura doutrina, sem “se desprender da contemplação das coisas
mais elevadas”, é necessário que o pastor não esqueça “as neces­
sidades do próximo” e “condescenda com as necessidades mate­
riais dos seus irmãos”87.
O pastoreio é, pois, um laço de formação e de transmissão da
verdade. O saber-fazer do pastor — essa familiaridade com as
coisas, em que se misturavam antecipação e vigilância — torna-se
na Igreja Cristã um saber muito mais preciso e complexo, com
regras e métodos; é que, na relação do pastor com as ovelhas, a
verdade tornou-se um operador decisivo, sob a dupla forma de
uma conformidade doutrinai, que é necessário conhecer e fazer
conhecer, e de segredos individuais que é necessário descobrir,
que se trata eventualmente de castigar e de corrigir, que é, em todo
o caso, necessário ter em conta.

83 Ibid., livro II, capítulo 1.


84 SANTO AMBRÓSIO, De ojficiis ministrorum, 1,1.
85 Ibid., n, 24.
86 GREGÓRIO, O GRANDE, Regra Pastoral, livro II, capítulo 9.
87 lbid., livro II, capítulo 1; livro II, capítulo 5.
Anexo 3

“Enuncia a tua falta a fim de destruíres a tua falta”, diz São João
Crisóstomo, na segunda das Homilías sobre a penitência.
E lembra-te que Deus, depois do crime, interrogou Caim. Não
que tivesse necessidade da sua resposta para saber o que a voz do
sangue clamava já sobre a terra. Queria somente que o assassino
dissesse: sim, matei. Pedia-lhe que, pelo menos, reconhecesse:
homo homologeis tautà™. E é porque Caim se recusa a reconhe­
cer, é porque afirma “não saber”, que Deus vai puni-lo. Duas ex­
pressões utilizadas por São João Crisóstomo merecem ser retidas.
Porque Caim não foi o primeiro a dizer a sua falta, Deus recusa-se
não directamente a perdoar-lhe o seu acto, mas a “acolhê-lo na
metanoia”: o que quer dizer que a ausência de confissão retira a
Caim a própria possibilidade de se arrepender, de se converter, de
se afastar (ou ser afastado) do crime cometido; era necessário que
dissesse o crime para dele se desprender. Além disso, e por conse­
guinte, o que Deus vai castigar é menos o próprio homicídio do
que a impudência de Caim88 89. Termo importante, o de anaideiat

88 O termo aqui utilizado é, como veremos, um termo que tem um sentido ao


mesmo tempo preciso e complexo no procedimento penitencial. Na XIX Homilía
sobre o Génesis, 2, a reinterpretação do texto bíblico a partir das práticas peniten­
ciais é mais explícita ainda: Deus, hiatros [médico], queria que a falta de Caim
fosse apagada dia tés homologías tou ptaismatos [pelo reconhecimento da falta].
89 Deus reprova a impudência muito mais ainda do que o pecado.
420
Anexos

reporta-se à temeridade da mentira manifesta; à ausência de arre­


pendimento a propósito do crime cometido; à contradição que faz
com que Caim tenha vergonha de confessar o que não teve vergo­
nha de fazer; à afronta por fim feita a Deus que oferecia ao crimi­
noso a possibilidade de ser perdoado90. O impudor da não-
-confissão desloca assim o crime contra Abel no sentido de uma
ofensa a Deus; pelo menos a falta contra a verdade que era devida
a Deus recobre a falta contra o sangue que o ligava ao irmão.
Ora, em que consiste o castigo desta impudência? A lei do san­
gue reclamava, sem dúvida, a morte do culpado. Mas Caim, e tal
será justamente a sua punição, continuará em vida. O seu castigo
será ser na terra a lei encarnada — nomos empsukhos: terá de andar
pelo mundo como uma “lei viva”, uma “esteia em marcha” selada
sobre o seu próprio silêncio, mas que faz ressoar, “mais estrondoso
do que uma trombeta”, o mugido da voz. Phônê\ a palavra é signi­
ficativa. É a mesma que foi utilizada para designar a voz do sangue
de Abel a secar nos sulcos do arado: uma vez que não houve con­
fissão para o fazer calar, é ainda esse grito que se faz ouvir no
castigo de Caim. Mas, quanto a este grito do sangue, a voz, aphônê
que ressoa na boca de Caim apresenta duas diferenças. Não reclama
a morte contra a morte; diz, pelo contrário, a todo o homem deste
mundo: não faças o que eu fiz. E, além disso, não se trata aqui da
voz do sangue derramado e do cadáver abandonado; é uma voz que
faz agora corpo com Caim. Por se ter esquivado à confissão que a
teria suspendido, tornou-se ele mesmo a lei que não se cala: aquele
que o matasse seria sete vezes maldito. Caim foi tomado pela lei;
não pode desligar-se dela; percorrerá o mundo a gemer — stenôn
—, fazendo assim ressoar indefinidamente o grito da lei, que ne­
nhum discurso de confissão (homología) veio interromper91.

90 O elemento da vergonha e do impudor no acto e na confissão está no cen­


tro da economia cristã da penitência. Na XIX Homília sobre o Génesis, 2, Caim é
caracterizado por [três] adjectivos: agnômôn, anaisthêtos, anaiskhuntos [ingrato,
insensível, impudente].
91 Na XIX Homília sobre o Génesis, 3, Crisóstomo releva que Caim faz uma con­
fissão precisa — meta akribeias — quando disse: julguei o meu crime demasiado
As Confissões da Carne 421

A Caim que se cala, a tradição patrística opõe muita§,,yezes


duas outras personagens, Eva e David, que reconheceram ambos a
sua falta. Na mesma segunda Homilía sobre a penitência, São João
Crisóstomo evoca, depois do silêncio de Caim, as confissões de
David. De facto, traça, em torno de cada uma das duas figuras,
dois ciclos da verdade e da falta que se opõem termo a termo.
Caim conhecia a sua falta; David, pretende Crisóstomo, não co­
nhecia a sua; e, para estabelecer tal facto, que nada justifica no
texto bíblico, evoca uma concepção “filosófica” da paixão: a alma
deve guiar o corpo como a alma conduz o carro; se estiver ofus­
cada por alguma paixão, ou se se embriagar, ou até mesmo se
simplesmente afrouxar a sua atenção, já não saberá para onde vai,
e o carro vacilará na lama. Foi assim com David que, embriagado
pela paixão, não soube que estava em vias de pecar. Outra diferen­
ça: é Deus quem se apresenta a Caim, Deus todo-poderoso e a
quem nada escapa; é tão só Natan quem se apresenta a David.
Natan é um profeta como David, não tem qualquer preeminência
sobre ele. Dir-se-ia um médico que quer tratar outro; e David teria
podido muito bem, considera Crisóstomo, repeli-lo dizendo-lhe:
“Quem és tu? Quem te enviou?... Que audácia te move?...” Em
todo o caso, nenhuma autoridade, nenhuma coerção pode ter im­
pelido David a falar contra a sua vontade. Melhor: Caim tinha de
responder a uma pergunta que designava já o seu crime: onde está
Abel? David, por seu turno, ouve que se lhe propõe uma fábula:
um rico para poupar o seu próprio rebanho mata a ovelha de um
pobre que não tinha outro bem. A fábula, como podemos ver se­
gundo Crisóstomo, tinha duas funções: prova posta ao juízo do rei,
apólogo a decifrar em vista da identificação do culpado. A prova,
David responde pronunciando ele mesmo a sentença: “O homem
que tal fez merece a morte.” Quanto ao enigma, é efectivamente
Natan quem o resolve: és tu o homem que tal fez; mas David acei-

grande para ser perdoado. Mas esta confissão não vale, porque não foi feita a tempo
— en kairô. Este problema do momento é igualmente importante na doutrina e na
prática da penitência.
422
Anexos

ta imediatamente a designação e ocupa por si mesmo pela confis­


são o lugar que Natan lhe aponta: “Pequei contra o Eterno.” Ñas
suas duas respostas, à prova e ao enigma, David opõe-se a Caim;
este negara a lei que o unia [ao seu irmão] (não sou o guarda do
meu irmão); e, quando acabara por reconhecer a envergadura do
seu crime e pedira ele mesmo a sentença de morte, já não o fizera
no bom momento — en kairó pedia-o retrospectivamente, de­
pois de ter sido denunciado pela voz do sangue. David, esse, co­
meçara por dizer a lei, pronunciar a sentença, e condenar-se a si
mesmo ainda antes de o saber; depois, uma vez descoberta a ver­
dade, aceitara por si mesmo a sentença que acabava de pronunciar.
Assim feita “no bom momento”, a confissão de David aparece com
as suas duas faces, a da sentença formulada e aceite, a da falta
reconhecida, e com mais mérito ainda por não se tratar de afastar
a severidade de uma sentença por si mesma de antemão decidida.
Assim analisada através do adulterio de David, ou antes, da versão
cuidadosamente modificada que dele dá São João Crisóstomo, a
confissão surge como não sendo apenas o reconhecimento de que .f
se cometeu uma falta, mas também a adesão profunda à sentença
que a condena92. Segundo urna temática essencial à penitência
cristã, o pecador que confessa como David é ao mesmo tempo o
seu próprio acusador e o seu próprio juiz: “Tiveste a grandeza de .
alma de confessar a tua falta... Formulaste a tua própria senten­
ça.” Se o perdão é a resposta imediata à confissão, é porque esta
não é simplesmente o enunciado exacto dos factos, mas também
porque retoma por sua conta os elementos que constituem um

92 Nesta exegese de Samuel 2, 11, o papel que Crisóstomo atribui à ignorância


de David é capital, urna vez que é ela que lhe permite pronunciar uma sentença
ainda mais “pura”, ainda mais “rigorosa” e justa pelo facto de David não saber que
é visado pela fábula de Natan e de não ter sequer consciência [de ter] cometido >
um pecado com Betsabé: o que torna a sua confissão uma descoberta. Ora, esta
ignorância da natureza do acto que cometeu é acrescentada ao texto bíblico por
Crisóstomo. Deveremos ver aqui um eco da tragédia grega? Ou, mais geralmente,
do valor concedido ao esquema daquele que condena um culpado que acabará por
se revelar como sendo ele mesmo?
As Confissões da Carne 423

procedimento judicial. O dizer-a-verdade, a “veridicção”, assume


os seus efeitos remissivos no quadro da relação com uma jurisdi­
ção — relação que desloca para o sujeito que é culpado e que fala
a instância que acusa e a que julga.
Eva é a outra figura regularmente oposta a Caim. Na XVII Ho­
mília sobre o Génesis (5), Crisóstomo faz de Eva e de Adão peca­
dores que confessam. Esta confissão tem duas formas. Uma forma
verbal quando Adão e depois Eva, após terem por um momento
tentado esconder-se, respondem a Deus que os chama e reconhe­
cem que, com efeito, comeram do fruto proibido (Crisóstomo faz
notar que, se Deus perguntou ao homem: Comeste? E à mulher:
Porque comeste?, se solicitou pois deles confissão, em contrapar­
tida à serpente, cujo pecado é irremissível, não estende sequer
essa tábua de salvação, e diz tão só: Uma vez que fizeste isso, serás
maldita)93. Mas esta confissão verbal era precedida de uma outra,
que não passava pelas palavras, mas ao mesmo tempo pela cons­
ciência e pelo gesto. Assim que comeram o fruto, Adão e Eva
sentem-se nus, têm vergonha e procuram cobrir-se. Esta interpre­
tação da vergonha como uma forma de confissão é importante e
esclarece aquilo que [Crisóstomo] descreve como sendo, na XIX
Homilía, a impudência, a anaideia de Caim. Ao dar a um tal pu­
dor valor de confissão, Crisóstomo quer dizer, em primeiro lugar,
que a confissão não é simplesmente comunicação ao outro daqui­
lo que cada um já sabe por si mesmo, mas é antes de mais desco­
berta interior. Quer dizer também que a confissão é um gesto que
ao mesmo tempo esconde e mostra, mais precisamente que mostra
ao querer esconder. Esta vontade de esconder autentica a consciên­
cia de que fizemos mal, e o gesto que mostra manifesta que não

93 Na edição francesa, esta passagem entre parênteses contém vários desvios


da norma. Como noutros casos, procurou-se não a “normalizar” na tradução. No
entanto, parece preferível transcrever aqui a redacção original do trecho em causa:
“(Chrysostome fait remarquer que, si Dieu a demandé à 1’homme: As-tu mange?
Et à la femme: Pourquoi as-tu mangé? si done il a sollicité d’eux des aveux, en
revanche au serpent, dont le peché est irrémissible, il ne tend pas cette planche de
salut, et il dit seulement: Puisque tu as fait cela, tu seras maudit.)” (N.T.)
424 Anexos

tememos revelar a todos essa consciência. É, pois, necessário que


no centro da confissão entre em jogo este pudor. Sem vergonha de
se ter pecado e, por conseguinte, sem desejo de o esconder, não
haveria confissão, mas apenas um pecado impudente. Mas, se urna
tal vergonha fizer com que nos escondamos a ponto de não querer
confessar, e se, como Caim, negarmos o nosso próprio crime, en­
tão a própria vergonha se tornará impudência.
Porque Adão e Eva tiveram essa vergonha que não tem vergo­
nha de confessar, a sua falta não é irredimível. E, se a sua falta
acarretou a queda dos homens, o seu pudor, que descobre escon­
dendo, é como que a primeira forma do que aparecerá como res­
gate. Perante a serpente e Caim, que são da raça da maldição,
Adão e Eva, como David, são postos na árvore genealógica da
salvação. E isso por terem confessado. Vemos, nesta exegese de
Crisóstomo, desprender-se a seguinte ideia sem dúvida fundamen­
tal no cristianismo: que o pecado, no próprio momento em que
infringe a vontade de Deus ou a sua lei, faz com que se contraia
uma obrigação de verdade. Esta tem dois aspectos: devemos
reconhecer-no,s como autores do acto cometido e reconhecer que
esse acto é mau. Tal foi a obrigação de verdade a que Caim se
esquivou através do “Não sei” que acrescentava ao crime de san­
gue contra o seu irmão um crime de verdade contra Deus. Foi à
mesma obrigação que Adão, Eva, David se submeterem, resgatan­
do assim por meio da obediência ao princípio do dizer-a-verdade
a desobediência à lei. No coração da economia da falta, o cristia­
nismo pôs o dever de dizer-a-verdade. Mas as exegeses de São
João Crisóstomo, que estão aqui a título de exemplo e de primeira
indicação, mostram bem que este dever de verdade não tem sim­
plesmente um papel instrumental no procedimento de perdão: um
meio de o obter, ou de atenuar a pena. Assim que o crime é come­
tido, é de imediato contraída uma dívida de verdade em relação a
Deus. Esta dívida é tão essencial, tão fundamental que, se for sal­
dada, qualquer pecado, por mais grave que seja, poderá ser remi­
do; mas, se for esquivada, não só se mantém a falta cometida, co­
mo se cometerá uma outra necessariamente mais grave, uma vez
As Confissões da Carne 425

que se refere necessariamente a Deus. É significativo que Santo


Ambrosio, ao comentar a mesma passagem do Génesis (4, 9-15)
que São João Crisóstomo, afirme como ele que Deus puniu em
Caim quem não disse a verdade mais do quem matou o seu irmão.
“Non tam majori crimine parricida quam sacrilega.”94 Onde
Crisóstomo falava de impudência, Ambrosio fala de sacrilégio.
Não que haja entre os dois uma diferença de severidade. A anai-
deia, em Crisóstomo, designava a infracção à relação de “pudor”
que o pecado faz contrair perante Deus; e é esta infracção que
Ambrosio, no vocabulário jurídico latino, designa como sacrile-
gium. Um pouco mais tarde, Santo Agostinho dará à não-confissão
de Caim uma significação na aparência muito diferente. Também
ele sublinha que a pergunta posta por Deus nada mais é do que
uma prova oferecida a Caim para que eventualmente ele se possa
salvar através dela; porque Deus sabia bem o que fora feito. Mas,
ao responder “Não sei”, Caim deu de certo modo a primeira figu­
ra da recusa por parte dos judeus de ouvirem o Salvador. Caim
rejeita o apelo a reconhecer a verdade do Evangelho. Um diz fal­
samente que ignora o que a voz do sangue grita e que Deus lem­
bra. Os outros negam falsamente o que o sangue de Cristo grita e
que as Escrituras tinham anunciado. “Fallax ignoratio, falsa ne-
gatio.”95 Mas, ao deslocar assim da confissão das faltas para a fé
no Evangelho a lição de Caim, Santo Agostinho não modifica no
fundamental o que diziam as Homílias sobre a penitência ou o De
paradiso. Liga fortemente e por meio de um laço explícito o que
Crisóstomo e Ambrosio, no texto em questão, deixavam no estado
implícito: a saber, que a obrigação de verdade em relação às faltas
é profundamente aparentada à obrigação de verdade relativa à
Revelação. O dizer-a-verdade e o crer, a veridicção sobre si mesmo
e a fé na Palavra são ou deveríam ser indissociáveis. O dever de
verdade, como crença e como confissão, está no centro do cristia­

94 [SANTO AMBROSIO, De paradiso, XIV, 71.]


95 SANTO AGOSTINHO, Contra Faustum, XII, 10.
426 Anexos

nismo. Os dois sentidos tradicionais da palavra “confissão”96 co­


brem estes dois aspectos. A “confissão” é, de um modo geral, o
reconhecimento do dever de verdade.
Deixarei de lado, bem entendido, o problema no cristianismo do
dever de verdade compreendido como fé, para não considerar se­
não o dever de verdade compreendido como confissão97 e assu­
mindo os seus efeitos numa economia da falta e da salvação. Mas
as relações entre estes dois aspectos deverão ser incessantemente
evocadas. E isso na precisa medida em que será sempre necessário
sublinhar que o “dizer-a-verdade” da falta ocupa no cristianismo
um lugar sem dúvida muito mais importante e desempenha nele
em todo o caso um papel muito mais complexo do que na maior
parte das religiões — e estas são numerosas — que requerem a
confissão dos pecados. Pelo menos, por comparação com as reli­
giões gregas e romanas, o cristianismo impôs aos seus fiéis uma
obrigação de “dizer-a-verdade” sobre si mesmos infinitamente
mais imperiosa na sua forma e mais exigente no seu conteúdo.
E através destas novas regras de “veridicção” que devemos ten­
tar compreender o que no cristianismo foi dito a propósito da
carne.

96 Enquanto regularmente, ao longo das páginas anteriores, a palavra portuguesa


“confissão” traduz o “aveu” francês, aqui, como na passagem imediatamente se­
guinte, traduz a palavra francesa “confession”, que, entre outros usos, designa o
sacramento da penitência — a confissão feita ao sacerdote confessor. (N.T.)
97 Aqui “confissão” traduz de novo o francês “aveu”. (N. T.)
Anexo 4

Mas o problema central não está aqui. Está na necessidade de


pensarmos a possível relação sexual anterior à queda fora da cate­
goria da corrupção. Esta, com efeito, tal como era utilizada pela
maior parte dos predecessores de Agostinho, estabelecia entre a
morte dos indivíduos e a conjunção dos sexos ao mesmo tempo
uma comunidade de essência e uma causalidade recíproca: impu­
ra, a relação sexual era uma forma de corrupção, tal como a mor­
te, uma vez que é destruição do corpo. O acto sexual podia, pois,
ser pensado como um dos efeitos dessa corrupção que feriu os
homens quando a morte lhes foi imposta a título de castigo. E,
inversamente, podia considerar-se que, transmitindo a impureza
aos corpos, atingia a sua incorruptibilidade e os expunha à destrui­
ção. A redefinição fundamental operada por Agostinho consiste
em desfazer esta categoria global da corrupção dissociando, por
um lado, o morto da mortalidade e, por outro lado, a conjunção
dos sexos de um estado corrompido do corpo.
Que o primeiro casal não teria morrido se não tivesse pecado, é
o que mostra claramente, segundo Agostinho, o texto do Gênesis (2,
17); “No dia em que o comeres [ao fruto proibido], morrerás.” E
assim depois e por causa da transgressão que a morte se produz, mas
como interviria uma possibilidade já formada, que não tivesse en­
contrado ainda, antes desse acontecimento, as condições para se
realizar. No caso em que tivesse sido a própria possibilidade da
428 Anexos

morte e não a sua realização a ficar a dever-se à falta, Deus não teria
falado de uma sucessão temporal, mas de uma implicação necessá­
ria; teria dito “se comerdes dele, morrereis”. Devemos, pois, conce­
ber que o homem, ao sair das mãos do Criador, trazia em si a possi­
bilidade da morte: como um corpo absolutamente são, e que não foi
atingido por forma alguma nem de doença nem de envelhecimento,
pode ser dito mortal. Mas é num sentido diferente que dizemos estar
exposto a morrer um corpo doente. Tal foi o caso da humanidade
depois da queda: “Esta vida, não digo somente desde o nascimento,
mas desde o primeiro instante da nossa concepção, que outra coisa
é senão uma espécie de doença incipiente que fatalmente nos con­
duz à morte?”9899 Devemos, por isso, distinguir entre a mortalidade e
a morte, ou antes, devemos definir a mortalidade anterior ao pecado
como condição ontológica do homem tal como foi criado. Longe de
marcar um defeito, era susceptível de marcar a sua virtude e a sua
sabedoria, a partir do momento em que permanecesse em suspenso
a título de condição geral enquanto o homem seguisse fielmente a
lei de Deus. E devemos definir a mortalidade posterior ao pecado
como o caminhar efectivo da morte durante uma vida inteira cuja
falta original faz, para todos os homens, uma espécie de longa doen­
ça. A mortalidade da condição humana não é o efeito de uma cor­
rupção, ainda que tenha chegado um dia em que todos os homens,
fatalmente, morrem da corrupção dos seus corpos".
Por outro lado e simetricamente, Agostinho dissocia, da corrup­
ção, o acto sexual pelo menos no seu princípio e na sua possibili­
dade originária. Uma passagem de A Cidade de Deus é sobre este
ponto particularmente significativa. Na preocupação de manterem
o princípio de uma existência paradisíaca incorrupta, muitos exe-
getas negavam toda a relação física entre Adão e Eva antes da sua
falta. A humanidade anterior à queda era, pois, virgem, e a virgin-

98 SANTO AGOSTINHO, De Genesi ad litteram, IX, 9,16-17.


99 Quando Agostinho fala da necessitas mortis, quando diz que todos os ho­
mens são morituri, dá um sentido forte e preciso a estas expressões: trata-se de
distinguir esse inevitável futuro dos homens caídos do estatuto de homo mortalis
dado aos nossos primeiros pais.
As Confissões da Carne 429

dade hoje era, pois, mutatis mutandis, regresso a esse estatuto de


origem. Ora, Agostinho admite ao mesmo tempo a possibilidade
de uma relação física real e a manutenção da virgindade da mu­
lher: “O esposo teria fecundado a esposa sem o aguilhão de urna
paixão sedutora, na serenidade da alma e na integridade perfeita
do corpo. Se a experiência não no-lo pode mostrar, nem por isso
há razão para o pormos em dúvida; porque essas partes do corpo
teriam sido não excitadas por um ardor perturbante, mas usadas
segundo as necessidades por um poder senhor de si. Assim, a se­
mente teria podido ser comunicada à esposa conservando nela a
sua virgindade, como hoje o fluxo menstrual pode produzir-se
sem atingir a virgindade. Porque é pela mesma via que uma coisa
é introduzida e a outra rejeitada.”100 Teremos de voltar, mais
adiante, à significação desta efusão fecundante que teria sido ab­
solutamente voluntária e se faria sem ruptura do hímen. O que
devemos sublinhar aqui é que a relação sexual se faz sem “corrup­
ção” física. E por corrupção devemos entender ao mesmo tempo o
atentado à integridade corporal da mulher e a violência de um
movimento que transporta involuntariamente o corpo do homem.
Todos estes fenómenos que fazem escapar o corpo ao domínio
da alma, que o atravessam de movimentos sem controle, que o
ferem como que de doença e o destroem em parte, de tudo isto que
anuncia a fatalidade da morte e a prepara, o primeiro casal teria
podido, unindo-se embora os seus membros, manter-se livre. Po­
dia conhecer “um casamento honrado” e “um leito imaculado”101.
Mas, uma vez dissociada esta categoria geral da corrupção que
ligava a relação sexual à morte e à impureza, o problema é o de
sabermos o que podia ser a relação dos sexos entre mortais para
os quais a morte não era ainda inevitável, e nos quais a falta não
introduzira ainda a impotência, a fraqueza, as paixões e todas as
doenças do corpo e da alma. Em suma: é necessário fazer-se a
teoria das relações entre o acto sexual e a concúpiscência.

100 SANTO AGOSTINHO, A Cidade de Deus, XIV, 26.


101 [Epístola aos Hebreus, 13,4.]
índice das obras citadas

A BÍBLIA1

Antigo Testamento

Gênesis
Pp. 53,58,181-182,185,205-206,279, 289,317, 321-322,355,411,425,
. 427
Êxodo
Pp. 403,410
Levítico
Pp. 28,46,50,186,191,339
Samuel
P.422
Salmos
Pp. 404,407
Provérbios
P. 132
Isaías
P.410
Jeremias
Pp. 48,406,411-412
Ezequiel
Pp. 28,401,408-409,417

1 Michel Foucault não se atém nunca a uma só tradução: pode citar a tradução
de Louis Segond, a da Bíblia de Jerusalém (Paris, Éd. du Cerf, 1977) ou a dos
tradutores de tratados patrísticos.
432 índice das obras citadas

Zacarias
P.407
Apocalipse
Pp. 188-190

Novo Testamento

Evangelho de São Mateus


Pp. 306,312
Evangelho de São João
P.414
Actos dos Apóstolos
P.65
Paulo, Primeira Epístola aos Coríntios
Pp. 60,165,181-183,213,281,304,332,335
Paulo, Epístola aos Gálatas
P.57
Paulo, Epístola aos Efésios
Pp. 274,277
Paulo, Epístola aos Colossenses
Pp. 217,254
Paulo, Epístola aos Hebreus
Pp. 93,429
Primeira Epístola de São Pedro
P.415

AUTORES ANTIGOS2

Abreviaturas

C.U.F. “Collection des Universités de France” (“Collection Budé”), Pa­


ris, Les Belles Lettres.
S. C. “Sources chrétiennes", Paris, Éditions du Cerf.

2 Menciona-se para cada obra a tradução ou edição que Michel Foucault consultou
habitualmente. No entanto, muito pontualmente, poderá referir-se a outra fonte — por
exemplo, para Santo Agostinho: Monsenhor Péronne et al., Paris, L. Vivès, 1869-
-1878; ou para São João Crisóstomo: Padre Bareille et al.,Paris, L. Vivès, 1865-1873,
ou ainda: Padre Joly, Nancy, Bordes Frères, 1864-1867. Há que dizer que as citações
podem ter sido reformuladas por Foucault a partir do texto latino ou grego (de resto,
não hesita em se referir directamente à Patrologia, grega ou latina, de Migne).
As Confissões da Carne 433

P. G. Patrologice cursus completus, Series Grceca, edição de J.-P. Mig-


ne, Paris, 1857-1866.
P. L. Patrologice cursus completus, Series Latina, edição de J.-P. Mig-
ne, Paris, 1844-1865.
B. A. “Bibliothèque augustinienne”, Paris, Desclée de Brouwer.
ffi. C. São João Cristóstomo, CEuvres complètes, tradução em francês
sob a direcção de M. Jeannin, Bar-le-Duc, L. Guérin & C'c, édi-
teurs, 1863-1867.
CE. T. CEuvres de Tertullien, Paris, L. Vivès, 1852.

SANTO AGOSTINHO
De bono conjugali, texto estabelecido e traduzido em francês por G. Com-
bès, B. A., 1948.
Pp. 273, 303,308,318,321, 325-344,346,349
De bono viduitatis, texto estabelecido e traduzido em francês por J. Saint-
-Martin, B. A., 1939.
Pp. 303,305,309
De catechiz.andis rudibus, texto estabelecido e traduzido em francês por
G. Combès e A. Farges, B. A., 1949.
Pp. 317-318
De conjugiis adulterinis, texto estabelecido e traduzido em francês por G.
Combès, B. A., 1948.
P. 303
De continentia, texto estabelecido e traduzido em francês por J. Saint-
-Martin, B. A., 1939.
Pp. 165, 206,303
Contra duas epistulas Pelagionorum, texto estabelecido e traduzido em
francês por F.-J. Thonnard, E. Bleuzen e A. C. De Veer, B. A., 1974.
P. 351
Contra Faustum, P. L., tomo 42.
P.425
Contra Julianum, texto traduzido por Abade Burleraux, in CEuvres com­
plètes de saint Augustin, sob a direcção de Monsieur Poujoulat e Abade
Raulx, Bar-le-Duc, 1864-1872,17 volumes, tomo XVI, 1872.
Pp. 308, 326,347-349,351,354,358,367,370-371, 374-375,379
La Cité de Dieu, texto traduzido em francês por G. Combès, B. A., 1959-
-1960.
Pp. 321,323,325,346-347,351-352,357,359-365,428-429
Discours sur les Psaumes, P. L., tomos 36 e 37.
Pp. 117-118,202,359
434 índice das obras citadas

De Genesi ad litteram, texto estabelecido e traduzido em francês por P.


Agaesse e A. Solignac, B. A., 1972.
Pp. 207,321-322,324,352,356-358,363,428
De Genesi contra Manichaeos, in (Euvres complètes de saint Augustin,
tomo III, tradução em francês por Monsieur Péronne et al., Paris, L.
Vivès, 1873.
Pp. 316-317, 356
De gratia Christi et peccato originali, texto traduzido em francês por J.
Plagnieux e F.-J. Thorinard, B. A., 1976.
P.362
De nuptiis et concupiscentia, texto traduzido em francês por F.-J. Thon-
nard, E. Bleuzen e A. C. De Veer, B. A., 1974.
Pp. 308,325-326,348, 351-352, 355,361-363,367-373
Opus imperfectum, P. L., tomo 45.
Pp. 349,351, 365,367,370-371, 377
Quaestiones in Evangelium secundum Matthaeum I, P. L., tomo 35.
P.306
Retractationes, texto estabelecido e traduzido em francês por G. Bardy,
B. A., 1950.
P. 344
De sancta virginitate, texto estabelecido e traduzido em francês por J.
Saint-Martin, B. A., 1939.
Pp. 165,303-306,308, 311-314
Sermons, P. L., tomo 38.
Pp. 82,254,357,359,398

SANTO AMBRÓSIO
Apologia de propheta David, texto traduzido em francês por M. Cordier,
S. C„ 1977.
Pp. 114,117
De Cain et Abel, P. L., tomo 14.
P. 117
Enarrationes in Psalmos Davidicos, P. L., tomo 14.
Pp. 96,115
Explanatio symboli, texto estabelecido e traduzido em francês por Dom
B. Botte, S. C., 1961.
P.83
Expositio Evangelii secundum Lucam, texto estabelecido e traduzido em
francês por Dom G. Tissot, S. C., 1956-1958.
Pp. 115,117
As Confissões da Carne 435

De lapsu virginis consecratae, P. L., tomo 16.


Pp. 165,216
De officiis ministrorum, P. L., tomo 16.
Pp. 401,415-416,418
De paenitentia, texto estabelecido e traduzido em francês por R. Gryson,
S. C„ 1971.
Pp. 95-97,99,107,109,115,117
De paradiso, P. L., tomo 14.
Pp. 114-115,117,425
De sacramentis, texto estabelecido e traduzido em francês por Dom B.
Botte, S. C„ 1961.
Pp. 85, 87-88
De Spiritu Sancto, P. L., tomo 17.
P.96
De virginibus, P. L., tomo 16.
Pp. 165,197,199,203,211
In Psalmum David CXVIII Expositio, P. L., tomo 15.
P. 129

SANTO ANTÃO
Apophtègmes des Pères, P. L., tomo 65.
P. 135

ARISTÓTELES
Ethique à Nicomaque, texto estabelecido e traduzido em francês por R.
-A. Gauthier e J.-Y. Jolif, Lovaina-Paris, Publications universitaires de
Louvain, 1958-1959.
P.37
Histoire des animaux, texto estabelecido e traduzido em francês por P.
Louis, C.U.F., 1964-1969.
, Pp. 43-44
Génération des animaux, texto estabelecido e traduzido em francês por P.
Louis, C.U.F., 1961.
P.44

SANTO ATANÁSIO
Apologia ad imperatorem Constantium, P. G., tomo 25.
P. 195
Vita S. Antonii, P. G., tomo 26.
P. 157
436
índice das obras citadas

ATENÁGORAS
Supplicatio pro Christianis (Supplique au sujet des chrétiens), texto esta­
belecido e traduzido em francês por G. Bardy, S. C., 1943.
P.22
Legatio, texto estabelecido por W. Schoedel, Oxford, Clarendon Press,
1972.
Pp. 166

BARNABÉ, PSEUDO-BARNABÉ
Épitre, texto traduzido em francês por Irmã Suzanne-Dominique e Fr.
Louvei, in Les Ecrits des Pères apostoliques, Paris, Ed. du Cerf, 1979,
tomo III.
Pp. 46,65,94,167,254

BASÍLIO DE ANCIRA
De 1’intégrité de la virginité, P. G., tomo 30; traduzido em francês por A.
Vaillant, in São Basílio, De virginitate, Paris, Institut d’études slaves,
1943.
Pp. 165,199,204,216-217,220,224-226,228-233
De renuntiatione saeculi, P. L., tomo 31.
P. 138

BASÍLIO DE CESAREIA
Constitutions monastiques, P. G., tomo 31.
Pp. 131,149
Exhortation à renoncer au monde, texto in P. L., tomo 31.
P.255
Grandes règles, P. G., tomo 31.
P.255
Règles brèves, P. G., tomo 31.
P.255

SÃO BENTO
La Règle, texto traduzido por A. de Vogüé, S. C., 1972.
Pp. 136,397

CÍCERO
De finibus, texto estabelecido e traduzido em francês por J. Martha, C.U.F.,
1928-1930.
P. 187
As Confissões da Carne 437

CLEMENTE DE ALEXANDRIA
Excerpta ex Theodoto, P. G., tomo 9.
P. 67
Le Pédagogue, texto traduzido em francês por H.-I. Marrou e M. Harl, S.
C., 1960.
Pp. 23-30,32-35, 38-40,42,44-53,55,57-60,128-129,180,257
Le Protreptique, texto estabelecido e traduzido em francês por C. Mondé-
sert, S.C., 1949.
Pp. 24,59
Quis dives salvetur, P. G., tomo 9.
Pp. 95,130
Les Stromates (II), texto estabelecido e traduzido em francês por C. Mon-
désert, H.-I. Marrou e O. Staehlin, S. C., 1976.
Pp. 23,32-34,38,58
Les Stromates (III), P. G., tomo 9.
Pp. 24,32,38,57-59,201,267

CLEMENTE DE ROMA
Première Epitre, texto em francês por Irmã Suzanne-Dominique, in Les
Ecrits des Pères apostoliques, Paris, Ed. du Cerf, 1979, tomo I.
P.93

SÃO CIPRIANO
Correspondance, texto estabelecido e traduzido em francês por Cônego
Bayard, C.U.F., 1925.
Pp. 96-98,101-105,109, 112,115,400-401,414,416
De habitu virginum, P. L., tomo 4.
Pp. 166,171,173-177
De lapsis, P. L., tomo 4.
■ Pp. 104,109,112,115,400

CIRILO DE JERUSALÉM
Procatéchèse, texto traduzido em francês por A. Faivre, Lyon, J.-B. Péla-
gaud, 1844.
P.83

DEMÓCRITO
In Die Fragmente der Vorsokratiker, texto estabelecido por H. Diels e W.
Kranz, Berlim, Weidmann, 1903.
P. 52
438 índice das obras citadas

PSEUDO-DEMÓCRITO
In Geoponica sive Cassiani Bassi scholastici de re rustica eclogae, texto
estabelecido por H. Beckh, Leipzig, Teubner, 1895.
P.42

DIÃO CRISÓSTOMO [DIÃO DE PRUSA]


Discours 1-11, texto estabelecido e traduzido por J. Cohoon, Cambridge,
MA, Harvard University Press, Loeb Classical Library, 1932.
Pp. 406,408

DIDAKHÊ
Texto traduzido por R.-F. Refoulé, in Les Écrits des Pères apostoliques,
Paris, Éd. du Cerf, 1979, tomo I.
Pp. 66, 84,94,167,254-255

DIOCLES
Du regime, in Oribase, Collection médicale. Livres incertains, tomo III,
texto traduzido em francês por U. Bussemaker e Ch. Daremberg, Paris,
J.-B. Baillière, 1858.
P. 29

DOROTEU DE GAZA
Vie de Dosithée, in (Euvres spirituelles, texto estabelecido e traduzido em
francês por Dom L. Regnault e Dom J. de Préville, S. C., 1964.
P. 138

ELIANO
De natura animalium, texto estabelecido e traduzido em francês por M.
Dacier, Paris, Impr. Auguste Delalain, 1827.
P.42

EPICTETO
Manuel, texto estabelecido e traduzido em francês por A. Jagu e J. Soui-
lhé, C.U.F., 1950.
Pp. 121, 187

EURÍPIDES
Ion, texto estabelecido e traduzido em francês por L. Parmentier e H. Gré­
goire, C.U.F., 1959.
P.37
As Confissões da Carne 439

EUSÉBIO DE CESAREIA
Histoire ecclésiastique, livros I-IV, texto estabelecido e traduzido em fran­
cês por G. Bardy, S. C., 1962.
P. 168

EUSÉBIO DE EMESA
Homélies, in Clavis Patrum Graecorum. Ab Athanasio ad Chrysosto-
mum, texto estabelecido por M. Geerard, Turnhout, Brepols, 1974.
Pp. 165,199,204,210,216

EVÁGRIO PÔNTICO
Traitépratique, texto estabelecido e traduzido em francês por A. e C. Gui-
llaumont, S. C., 1971.
Pp. 151-152,165,245, 399

FAUSTE DE RIEZ
Discours aux moines sur la pénitence, P. L., tomo 58.
P. 393

FÍLON DE ALEXANDRIA
De opificio mundi, texto estabelecido e traduzido em francês por R. Arnal-
dez, Paris, Éd. du Cerf, 1976.
Pp. 206-207
De specialibus legibus, texto traduzido em francês por S. Daniel e A.
Mosès, Paris, Éd. du Cerf, 1970-1975.
P.50
De agricultura, texto traduzido em francês por J. Pouilloux, Paris, Éd. du
Cerf, 1961.
P.405

GALENO
Commentaire aux Épidémies d’Hippocrate, in Opera omnia, ed. C. G.
Kühn, Leipzig, Carl Cnobloch, 1821-1833, tomo XVII.
P.52
De utilitate partium, in Opera omnia, ed. C. G. Kühn, Leipzig, Carl Cno­
bloch, 1821-1833, tomo IV ; tradução francesa de Ch. Daremberg, (Eu-
vres anatomiques, physiologiques et médicales de Galien, Paris, J.-B.
Baillière, 1856.
P.52
440 índice das obras citadas

Traité des passions de 1’âme et de ses erreurs, in Opera omnia, ed. C. G.


Kühn, Leipzig, Carl Cnobloch, 1821-1833, tomo V; tradução francesa de
R. Van der Heist, Paris, Delagrave, 1914.
Pp. 122,125

GREGORIO, O GRANDE
Homélies sur 1'Évangile, P. L., tomo 76.
Pp. 118-119
Le Pastoral, texto estabelecido e traduzido em francês por Abade Boutet,
Paris, Desclée de Brouwer et Lethielleux, coll. “Pax”, 1928.
Pp. 401-402,414-418

GREGÓRIO DE NAZIANZO
Discours 1-3, texto estabelecido e traduzido em francês por J. Bernardi,
S. C., 1978.
Pp. 100,131,402

GREGÓRIO DE NISSA
De la création de 1’homme, texto traduzido em francês por J. Laplace, S.
C., 1943.
P.208
Oratio catechetica magna, texto em francês por A. Maignan, S. C., 1978.
P. 88
De la virginité, texto estabelecido e traduzido em francês por M. Aubi-
neau, S. C., 1966.
Pp. 194-195,199-201,207-210,213,216-218,222-223

HERMAS
Le Pasteur, texto estabelecido e traduzido em francês por R. Joly, Paris,
S.C., 1968.
Pp. 65-66,68-69, 87,92,115-116

HIÉROCLES DE ALEXANDRIA
Fragments, in JEAN STOBEE, Florilegium, ed. A. Meineke, Leipzig,
Teubner, 1856-1864, tomo III.
Pp. 27,41

SANTO HILÁRIO
In P. L-, tomo 9.
P. 129
As Confissões da Came 441

HIPOCRATES
Épidémies, in (Euvres completes, tomo V, texto traduzido por E. Littré,
Paris, J.-B. Baillière, 1846.
P.29

SANTO HIPÓLITO
Canons, texto estabelecido e traduzido em francês por R.-G. Coquin, in
Patrologia Orientalis, tomo 31/2, Paris, Firmin-Didot, 1866.
Pp. 81,84
Tradition apostolique, texto estabelecido e traduzido em francês por Dom
B. Botte, S. C., 1946.
Pp. 80-82

IRENEUDELYON
Adversus haereses, P. L., tomo 7.
Pp. 66,103

ISÓCRATES
Aréopagitique, texto estabelecido e traduzido em francês por G. Mathieu,
C. U.F., 1942.
P.404

JOÃO CASSIANO
Conferences, texto estabelecido e traduzido em francês por E. Pichery, S.
C., 1955-1959.
Pp. 132-135,139-140,142-145,147-149,151-154,156-159,224,234-240,
242,245,247,249-254,256,260,395
Institutions cénobitiques, texto estabelecido e traduzido em francês por
J.-C. Guy, S. C., 1965.
Pp. 132, 134-142, 146, 155-157, 160, 224, 234-235, 239-245, 249-253,
255,259-262, 393-394,396

SÃO JOÃO CRISÓSTOMO


Commentaires sur saint Matthieu, in GE. C., tomo 7.
P.299
Contre les ennemis de la vie monastique, in CE. C., tomo 2.
Pp. 268,271
Homélie Vidi Dominum, in CE. C., tomo 6.
P.273
442 índice das obras citadas

Homélies sur Anne, in CE. C., tomo 5.


P. 285
Homélies sur l’Épltre aux Colossiens, in CE. C., tomo 11.
P. 273
Homélies sur la Ire Épitre aux Corinthiens, in CE. C., tomo 9.
Pp. 273,281,293-294,297
Sur la I" Épitre aux Corinthiens. Fragments, in Journal of Theological
Studies, IX, 1908 (éd. C. Jenkins).
Pp. 299
Homélies sur l’Épitre aux Éphésiens, in CE. C., tomo 9.
Pp. 273-281,283-284,286,296
Homélies sur l’Épitre aux Hébreux, in CE. C., tomo 9.
Pp. 268,278,286
Homélies sur la Ire Épitre aux Thessaloniciens, in CE. C., tomo 11.
P. 285
Homélies sur la Irc Épitre à Timothée, in CE. C., tomo 11.
P.285
Homélies sur l’Évangile de saint Jean, in CE. C., tomo 8.
P. 88
Homélies sur la Genèse, in CE. C., tomo 5.
Pp. 114,208-209,212,286,289-290,419-420,423
Trois homélies sur le mariage, in CE. C., tomo 4.
Pp. 273-274,277,280-282,284-287,289,291,296
Homélies sur la pénitence, in CE. C., tomo 5.
Pp. 114,419,421,425
Homélies sur saint Matthieu, in CE. C., tomos 7 e 8.
P. 121
Qu’il est dangereux pour l’orateur et pour l’auditeur de parler pour plaire,
in CE. C., tomo 3.
P. 150
Sur le mariage unique, texto estabelecido e traduzido em francés por B.
Grillet e P. Ettlinger, S. C., 1968.
Pp. 280,282,291
Huit catéchéses baptismales, texto estabelecido e traduzido em francés
por A. Wenger, S. C., 1957.
P. 82
De la virginité, texto estabelecido e traduzido em francés por B. Grillet e
H. Musurillo, S. C., 1966.
Pp. 165, 196-197, 200-201, 204, 208, 210-213, 216, 218, 220-221, 243,
273,285,287,290,298
As Confissões da Came 443

SÃO JERÓNIMO
Adversas Helvidium De perpetua virginitate B. Mariae, P. L., tomo 23.
Pp. 165,199,213
Adversas Jovinianum, P. L., tomo 23.
Pp. 165,168,196,198-199,207, 304
Lettres, texto estabelecido e traduzido em francês por J. Labourt, C.U.F.,
1949-1963.
Pp. 107,112,138,165, 168,199, 396,414,416

JUSTINO
Apologies, texto traduzido em francês por L. Pautigny, Paris, A. Picard et
fils, 1904.
Pp. 22,66,68,84

SÃO LEÃO
Lettres, P. L., tomo 13.
Pp. 97,99,112, 398

LUCRÉCIO
De rerurn natura, texto estabelecido e traduzido em francês por A. Ernout
e L. Robin, C.U.F., 1920-1928.
P.43

MARCO AURÉLIO
Pensées, texto estabelecido e traduzido em francês por A.-I. Trannoy,
C.U.F., 1925.
P. 187

METÓDIO DE OLIMPOS
Le Banque t, texto estabelecido e traduzido em francês por H. Musurillo e
_ V.-H. Debidour, S. C., 1963.
Pp. 171,177-178,180-187,190-193,215

MUSÓNIO RUFO
Reliquiae, texto estabelecido por O. Hense, Leipzig, Teubner, 1905.
Pp. 27,36,55

OCELO LUCANO
De universi natura, ed. F. W. A. Mullach, Paris, A. Firmin-Didot, 1860.
P.36
444 índice das obras citadas

ORÍGENES
Commentaire sur saint Jean, livre VI, texto estabelecido e traduzido em
francês por C. Blanc, S. C„ 1970.
P. 88
Contra Celsum, texto estabelecido e traduzido em francês por M. Borret,
S. C., 1976.
P.43
Exhortatio ad martyrium, texto traduzido em francês por G. Bardy, Paris,
J. Gabalda, 1932.
P. 118
Homélies sur le Cantique des cantiques, texto traduzido em francês por
Dom O. Rousseau, S. C., 1954.
P.277
Homélies sur la Genèse, texto estabelecido e traduzido em francês por H.
de Lubac e L. Doutreleau, S. C., 1976.
P.206
Homélies sur les Nombres, P. G., tomo 12.
P. 83

OVÍDIO
Métamorphoses, texto estabelecido e traduzido em francês por G. Lafaye,
C.U.F., 1965.
P.42

PACIANO DE BARCELONA
Lettres, P. L., tomo 13.
Pp. 98-99
Parénèse, P. L., tomo 13, tradução francesa in C. VOGEL, Le Pécheur et
la pénitence dans PEglise ancienne, Paris, Ed. du Cerf, 1969.
P. 110

PACÓMIO
Praecepta et Instituía, in Dom A. Boon, Pachomiana Latina, Lovaina,
Bibliothèque de la Revue d’histoire ecclésiastique, 1932.
P. 394

PAULINUS
Vztó Ambrosii, P. L., tomo 14.
P. 105
As Confissões da Carne 445

PLATÃO
Cratyle, texto estabelecido e traduzido em francês por L. Méridier, C.U.F.,
1931.
P.69
Les Lois, texto estabelecido e traduzido em francês por A. Diès e E. des
Places, C.U.F., 1951-1956.
Pp. 50,272,404,410
Le Politique, texto estabelecido e traduzido em francês por A. Diès, C.U.F.,
1935.
Pp. 405,409
La Republique, texto estabelecido e traduzido em francês por E. Chambry,
C.U.F., 1931-1934.
Pp. 272,404,408-409

PLOTINO
Ennéades, texto estabelecido e traduzido em francês por E. Bréhier,
C.U.F., 1924-1938.
P. 187

POMÉRIO
De vita contemplativa, P. L., tomo 59.
P.399

QUODVULTDEUS
Sermones 1-3, texto estabelecido por R. Braun, Turnhout, Brepols, 1953.
P. 84

RÈGLE DU MAITRE
Texto estabelecido e traduzido por Adalbert de Vogüé, S. C., 1964.
P. 397

RUFO DE ÉFESO
(Euvres, ed. C. Daremberg e C. E. Ruelle, Paris, Imprimerie nationale,
1879.
P.52

SÉNECA
De ira, texto estabelecido e traduzido em francês por A. Bourgery, C.U.F.,
1922.
Pp. 127-128,150,154
446
índice das obras citadas

Lettres á Lucilius, texto estabelecido e traduzido em francês por F. Pré-


chac e H. Noblot, C.U.F., 1945-1964.
P.55
De tranquillitate animae, texto estabelecido e traduzido em francês por R.
Waltz, C.U.F., 1927.
Pp. 122,124-126

SORANO
Traité des maladies des femmes, in Corpus Medicorum Graecorum, t. IV,
Leipzig, 1927; tradução francesa de F. J. Hergott, Nancy, Impr. Berger-
-Levrault, 1895.
Pp. 51-52

TERTULIANO
Adversus Marcionem, texto estabelecido e traduzido em francês por A.-E.
de Genoude, in CE. T., tomo 1.
Pp. 72,267
De baptismo, texto estabelecido e traduzido em francés por F. Refoulé e
M. Drouzy, S. C., 1952.
Pp. 71-72,77, 84,118
De carne Christi, trad. A.-E. de Genoude, in CE. T., tomo 1.
P.59
De cultu feminarum, texto estabelecido e traduzido em francés por M.
Turcan, S. C., 1971.
P. 173
Exhortatio ad castitatem, trad. A.-E. de Genoude, in CE. T., tomo 3.
Pp. 171-172, 268
De paenitentia, texto estabelecido e traduzido em francés por P. de La-
briolle, Paris, Picard, 1906.
Pp. 71-79,96,108-112,115-116
De pudicitia, texto traduzido em francés por P. de Labriolle, Paris, Picard,
1906.
Pp. 106,109,118,171
De resurrectione carnis, trad. A.-E. de Genoude, in CE. T., tomo 1.
Pp. 87,166,214
Ad uxorem, trad. A.-E. de Genoude, in CE. T., tomo 3.
Pp. 171,173,214,268
De virginibus velandis, trad. A.-E. de Genoude, in CE. T., tomo 3.
Pp. 171-173,215,268
As Confissoes da Carne 447

TITO LÍVIO
Histoire romaine, tradução francesa sob a direcção de M. Nisard, Paris,
Firmin Didot frères, 1839.
P. 174

XENOFONTE
Economique, texto estabelecido e traduzido em francês por P. Chantraine,
C.U.F., 1949.
Pp. 280,283

AUTORES MODERNOS

A. D’ALES
L’Edit de Calliste. Etude sur les origines de la penitence chretienne, Paris,
Beauchesne, 1914.
Pp. 93,103

DOME. AMAND E C. MOONS


“Une curieuse homelie grecque inedite sur la virginite adressee aux peres
de famille”, Revue benedictine, LXIII, 1953.
Pp. 165,203,221

E. AMMAN
Entrada “Penitence”, Dictionnaire de theologie catholique, Paris, Letou-
zey et Ane, 1933, tomo XII.
P. 103

A. BENOIT
Le Bapteme chretien au second siede. La theologie des Peres, Paris, PUF,
1953.
Pp. 65,87

J.-P. BROUDEHOUX
Mariage et famille chez Clement dAlexandrie, Paris, Beauchesne, 1970.
P.62

O. CHADWICK
John Cassien. A Study in Primitive Monasticism, Cambridge, Cambridge
University Press, 1950.
P. 134
448
índice das obras citadas

A. DELATTE
Essai sur la politique pythagoricienne, Paris et Liege, Bibliothéque de la
Faculté de Philosophie et Lettres de l’Université de Liege, 1922.
P.404

F. J. DÖLGER
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P.394
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Indice
Advertência, por Frédéric Gros

I. [A formação de uma experiência nova]


I. Criação, procriação
[II. O baptismo laborioso]
[III. A segunda penitência]
[IV. A arte das artes]

II. [Ser virgem]


[I. Virgindade e continência]
[II. Das artes da virgindade]
[III. Virgindade e conhecimento de si]

III. Ser casado


I. O dever dos esposos
II. O bem e os bens do casamento
[III. A libidinização do sexo]

Anexos
Anexo 1
Anexo 2
Anexo 3
Anexo 4

índice das obras citadas

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