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Texto II:
Os desdobramentos e a crise da moderna racionalidade técnico-científica.
Retomemos os elementos mais essenciais das nossas análises precedentes. Vimos que a
característica marcante da mentalidade moderna – expressa e impulsionada de modo mais
significativo pelo advento da racionalidade técnico-científica, com Galileu e Newton – foi a
convicção filosófica (formulada nas obras de Bacon, Descartes e Kant) de que o homem só
conhece o que ele produz, pois já seria passado o tempo das vãs disputas escolásticas e teria
chegado o momento de proclamar a virtude emancipatória de uma ciência nova e de um novo
conceito de “razão”. A ciência moderna minou toda a confiança do homem no universo de
sentido e compreensão proveniente da experiência sensorial ordinária, das verdades da
revelação e da especulação vazia, pautada na autoridade da tradição aristotélico-medieval. Essa
desconfiança fez surgir a convicção de que não poderia haver conhecimento seguro acerca de
objetos não produzidos pelo homem, pois a objetividade da natureza resulta da atividade
humana e nunca da passividade inerente à quietude da contemplação inativa. A natureza não é
mais, para a física-matemática, uma dynamis, uma atividade orgânica ou cosmológica (apoiada
em noções como ordem, hierarquia e finalidade), pois toda realidade material foi encerrada e
limitada em um sistema de coordenadas mecânicas nas quais é conhecida, isto é, medida
matematicamente por uma razão calculadora. As causalidades final, formal e material, cruciais
na filosofia da natureza aristotélico-medieval, foram banidas na moderna ciência da natureza,
restando apenas, enquanto causa, algo semelhante à causalidade eficiente. A pergunta pelo como
se dá algo ou como veio a existir torna-se indiferente às questões sobre “o que” é e “por que” é,
prescindindo, portanto, do conhecimento da forma, do conteúdo e da finalidade para qual existe.
Da mesma maneira, a questão do êxito passou a dominar a ciência e a prova da teoria passou a
ser uma prova “prática” ou “técnica” – ou funciona ou não. A racionalidade técnico-científica
formula hipóteses para organizar experimentos e, em seguida, emprega esses experimentos para
verificar suas hipóteses, fazendo dos processos naturais algo sempre passível de se tornar uma
realidade fabricada e controlada pelo homem. A natureza é construída mediante o
comportamento dos fenômenos durante o experimento e de acordo com as funções matemáticas
que o homem é capaz de traduzir tecnicamente em realidade operativa. A ciência moderna põe e
dispõe do objeto em um conjunto de operações causais e processamentos repetíveis em
condições artificiais controladas: o experimento. Portanto, se, com a dissolução dos parâmetros
usuais de juízo e compreensão (provenientes da tradição, da religião e da autoridade), o homem
moderno perdeu toda garantia de conhecimento da verdade como algo dado e revelado, ele
passou a apostar na possibilidade de conhecer o que ele próprio faz, enfim, conhecer a forma
como os objetos afetam o seu aparato racional de estruturação imanente da realidade e os seus
instrumentos tecnológicos de matematização e controle experimental.
Essa convicção abarcou o todo da cultura moderna, acarretando uma avassaladora e
entusiasmada valorização da produção ou do “fazer”, culminando na moderna concepção do
homem como um homo faber, isto é, um construtor e fabricante do mundo. Essa inédita auto-
compreensão do homem moderno aboliu definitivamente a contemplação inativa da ordem do
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Como atesta o sistema cartesiano, o moderno conceito de razão centrada no sujeito não é necessariamente anti-
teológico ou até mesmo anti-religioso, pois visa a abrir o caminho para a possibilidade de que a natureza possa ter sido
criada por Deus, e de que a ordem do mundo seja fundada em uma ordem metafísica, ainda que não mais pautada por
verdades obtidas por revelação e contanto que isso não exclua o direito da razão de moldar o mundo segundo sua forma
calculadora e experimental, pois a racionalidade humana não estaria limitada por nenhuma ordem prévia ou dada de
antemão. O sentido moderno de um mundo racional implicava que ele pudesse ser compreendido e transformado pela
ação intencional do homem. A natureza era tida como racional, com o sujeito e o objeto se encontrando exclusivamente
no elemento da razão, ainda que ambos possuíssem uma origem comum na substancia divina.
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encontro do homem com a natureza na qual esta se mostre em sua dimensão ontológica própria
e se ofereça em sua patente doação, sendo acolhida em sua realidade imediata e aceita em seu
valor intrínseco.
Como os critérios do instrumentalismo e a exigência de produção passaram a governar o
mundo e mentalidade humana, tornando-se guias para toda atividade, o moderno sujeito-
fabricador considerou tudo o que existe como simples meios à sua disposição. O sujeito da
ciência-técnica relacionou-se com o mundo como se todas as coisas pertencessem à categoria de
objetos de uso. A natureza, independente e com sua valia intrínseca, passa a ser considerada
exclusivamente do ponto de vista das finalidades do homem, sujeito-fabricador do real. O
problema inerente a tal instrumentalização do mundo foi a fabricação ter transformado
sucessivamente todo fim atingido em mais um meio para a obtenção de outros fins, que se
tornarão novamente “meios”, assim por diante e a tal ponto que nada mais poderá se manifestar
como tendo um “fim em si mesmo”. Essa instrumentalização promoveu uma curta duração dos
fins, visto que eles logo se tornam objetos passíveis de serem transformados em um meio para
novos fins. E quando aquilo que resulta da fabricação passa a ser considerado como mero
“acidente” do processo de produção que lhe deu existência, os resultados fabricados perdem o
seu significado como “obra acabada”, pois já não são mais um fim em si mesmos, pois são
avaliados não em relação ao seu uso predeterminado, e sim em relação à sua capacidade de
produzir outra coisa. Em meio ao aparentemente interminável progresso moderno, pelo qual a
finalidade de hoje se tornou o meio de um amanhã melhor, ressoa aquela questão, formulada por
Lessing, que essa racionalidade instrumental e utilitarista jamais pôde responder: para que serve
servir?
Esse crescente processo de ausência de valor independente e significado intrínseco de
todas as coisas naturais ou artificiais, no qual todo fim se torna um meio, só pode terminar
quando se faz do próprio homem, como diz Descartes, “o senhor e o mestre da natureza”.
Somente quando o homem, como usuário, tornou-se o fim último dessa cadeia de
funcionalização, é que ela se tornou aparentemente controlável, instaurando um mundo
inteiramente antropocêntrico, no qual os processos naturais foram considerados como meios
para fins. A única solução do dilema de ausência de significado em toda filosofia estritamente
instrumentalista é afastar-nos do mundo objetivo de coisas de uso e voltar a sua atenção para a
subjetividade da própria utilidade. A instrumentalização do mundo gerou no homem moderno a
crença tão bem expressa na clássica asserção de Protágoras: “o homem é a medida de todas as
coisas”. Kant, para evitar que as categorias de meios e fins fossem utilizadas na esfera da ação
política, asseverou que “nenhum homem deve jamais tornar-se um meio para um fim; todo ser
humano é um fim em si mesmo”. Como, para Kant, o homem é o fim supremo de todas as
coisas, ele mesmo não está submetido às categorias de meios e fins, ou seja, só ele é capaz de
usar tudo como “meio”. Contudo, a origem dessa asserção kantiana reside ainda no utilitarismo
antropocêntrico, tanto quanto sua concepção da obra de arte, como único objeto do mundo não
destinado ao uso e proporcionando “prazer destituído de interesse”. Isso porque Kant, mesmo
pretendendo pôr a categoria de meios e fins em seu devido lugar, efetuou uma operação que, ao
elevar o homem ao nível de “fim supremo”, promove, ao mesmo tempo, a submissão do mundo
a esse fim, reduzindo todas as coisas a simples meios, degradando-as em seu valor intrínseco e
dignidade independente.
Na crítica da metafísica elaborada por Kant no século XVIII, o sujeito da ciência, na
relação com os objetos, não se porta mais como um mero observador, mas, antes, interroga
formalmente a natureza por meio de seus princípios, instaurando um tribunal crítico que o põe
na condição de juiz e a natureza na condição de testemunha. O conhecimento se torna uma
forma de produção ou uma atividade produtiva. Em 1796, em um famoso ensaio contra a
filosofia da intuição intelectual e do pressentimento dos românticos (Jacobi, Schlosser e
Stolberg), Kant diz explicitamente que conhecer é um “fazer”, pois na razão teórica vale a “lei
da razão de se adquirir qualquer coisa pelo trabalho”, pois a atividade teórica é um “herkulische
Arbeit” (“trabalho de Hércules”). É famosa a asserção na qual Kant considera que “a razão só
entende aquilo que produz segundo os seus próprios planos; que ela tem de tomar a dianteira
com princípios, que determinam os seus juízos segundo leis constantes, e deve forçar a natureza
a responder às suas interrogações em vez de se deixar guiar por esta”. Em resumo, se o que
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do cinema (em 1895), etc., os homens se viram imersos em um novo universo de relações com o
mundo exterior, cada vez mais regulado por estímulos sensoriais e condicionamentos sócio-
econômicos, enfim, cada vez menos orientados pela “luz natural da razão”, centrada no sujeito
auto-determinado, tal como pensara o projeto do racionalismo iluminista. As maquinarias do
conforto doméstico, com a eletrificação e os sistemas de canalização de águas e esgotos, bem
como as redes viárias, com seus sistemas de bondes e metrôs, e posteriormente com o transporte
de ônibus e automóveis, alteraram a forma a partir da qual o tempo de trabalho e o tempo de
lazer eram divididos. As transformações tecnológicas do processo produtivo, com a introdução
do taylorismo e das linhas de montagem mudaram radicalmente as relações dos homens com os
instrumentos de trabalho. A expansão incomensurável da razão instrumental caminhava junto
com o desmantelamento do “sujeito pensante” e com o seu progressivo deslocamento das
esferas de decisão e conhecimento. A racionalidade deixava de se ancorar nos padrões
iluministas centrados na figura metafísica da subjetividade emancipada, para se constituir em
um complexo sistema de relações técnico-burocráticas, capaz de moldar os diferentes domínios
das organizações estatais, científicas e empresariais. O encurtamento do espaço e do tempo
comprometeu os limites estreitos do Estado nacional e a mundialização desse novo modo de
vida veio a ser efetivada por uma nova e agressiva política internacional, correntemente
chamada de “imperialismo”. Assim, administrar multidões e seus movimentos e organizar a
presença das massas no universo urbano tornaram-se tarefas urgentes para os saberes técnico-
científicos estatais e empresariais. A crescente mobilização do proletariado, fortemente
sindicalizado, promovia o seu ingresso na cena pública e reivindicava direitos em nome de um
“sujeito coletivo” e não mais “individual” ou “subjetivo”, como até então havia sido pensada a
esfera da cidadania pela burguesia liberal e pelo moderno racionalismo metafísico.
No plano filosófico, autores como Saint-Simon (1760-1825) e Auguste Comte (1798-
1857) formularam as bases iniciais de um novo conceito de razão, cujos propósitos foram, por
um lado, elaborar um diagnóstico dessa turbulenta transição para uma nova ordem social,
marcada por graves conflitos e crises, tendo em vista, por outro lado, uma fundamentação
filosófica do projeto industrialista, que recusaria simultaneamente a metafísica iluminista e o
liberalismo burguês. Estes últimos eram vistos como entraves para a consolidação definitiva e
ordenada do avanço técnico-científico como base para o desenvolvimento socioeconômico da
sociedade industrial. Em se tratando de uma filosofia voltada para o projeto de industrialização
integral, sua questão primordial está inteiramente centrada no “nós”, nos homens enquanto
imersos na esfera sócio-econômica, e não mais no “eu” da abstração metafísica, no “sujeito”
iluminista ou no “indivíduo” liberal.
Foi a partir dessa perspectiva que surgiu a “ciência da sociedade” ou a “Sociologia”
como uma investigação empírica independente. A moderna teoria social, chamada por Saint-
Simon de “ciência da produção” ou “ciência do homem6”, recebeu do positivismo seu maior
estímulo durante o século XIX. As potencialidades humanas não seriam mais a preocupação de
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Foi nessa atmosfera teórica e a partir desses pressupostos epistemológicos que foram surgindo as chamadas
“ciências do homem” na passagem do século XIX para o século XX. Essas ciências estudaram seus objetos
empregando conceitos, métodos e técnicas propostos pela moderna ciência da natureza, isto é, a partir do mundo dos
fatos regidos por condições quantificáveis e observáveis. A esperança social depositada nessas ciências seria a
superação da concepção metafísica do homem, pois elas forneceriam uma nova orientação no registro de uma
pretensa objetivação e um ajustamento no domínio das perturbações, dos crimes e dos desvios, procurando responder
aos desafios de adaptação, treinamento e controle social inerentes à conturbada sociedade de massas, cada vez mais
industrial e capitalista. Acreditou-se que a Sociologia, por exemplo, nos ofereceria um saber seguro e definitivo sobre
o modo de funcionamento das sociedades e que os seres humanos poderiam organizar racionalmente o social,
evitando revoluções, revoltas e desigualdades. Acreditou-se, mais tarde, que a psicologia demonstraria como funciona
o comportamento animal e a conduta humana, quais as suas causas e os meios de controlá-las, quais as causas das
motivações e emoções e os meios de controlá-las, quais as causas da aprendizagem e os meios de controlá-las; de tal
modo que seria possível nos livrar das angústias, do medo, da loucura, dos desajustes sociais assim como seriam
possíveis uma psicotécnica, uma psicoterapia e uma psicopedagogia que permitiriam não só adaptar as crianças e os
adultos às exigências da sociedade, como também educá-los, orientá-los, selecioná-los ao emprego e otimizar a sua
capacidade produtiva. Assim, por exemplo, a organização do processo de trabalho nas indústrias apresenta-se como
científica porque é baseada em conceitos da psicologia, da sociologia, da economia, que permitem dominar e
controlar o trabalho humano sob todos os aspectos (controle sobre o corpo e o espírito dos trabalhadores), a fim de
que a produtividade seja a maior possível.
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uma teoria desligada da prática, o conteúdo da teoria não teria nada de metafísico, pois deveria
ser transferido para um plano de atividade racional realizada pelos homens diretamente
associados uns com os outros: a industrialização e a troca. “A sociedade como um todo está
baseada na indústria. A indústria é a única garantia da sua existência e única fonte de toda a
riqueza e prosperidade. A situação que for a mais favorável para a indústria será, pois, a mais
favorável para a sociedade”, afirma Saint-Simon. Nessa perspectiva, o sistema industrial
contribuiria para o restabelecimento dos laços sociais de solidariedade e reciprocidade, pautados
em uma unidade pacífica apoiada sobre a associação e a troca. O governo da sociedade excluiria
a coação e a força bruta, pois privilegiaria senão a competência e a meritocracia. Tal posição
sugere a formação de um Estado tecnocrático que, por seu domínio técnico-científico, afastaria
todo conflito e desordem em nome de uma organização puramente funcional. Tratava-se de
substituir o “governo dos homens” pela “administração das coisas”. O sistema industrial
reconciliaria o mundo moderno com ele mesmo, ou seja, graças ao progresso técnico-científico,
à produção industrial e ao sistema de troca, todas as formas de dominação e a violência seriam
definitivamente banidas, pondo fim ao isolamento social e à miséria econômica7.
Uma das características mais novas dessa concepção positivista da tecnociência está em
que as pesquisas científicas passaram a fazer parte das forças produtivas da sociedade, isto é, da
economia. A automação, a informatização, a telecomunicação determinaram formas de poder
econômico, modos de organizar o trabalho industrial e os serviços, criaram profissões e
ocupações novas, destruíram profissões e ocupações antigas, introduziram a velocidade na
produção de mercadorias e em sua distribuição e consumo, modificando padrões industriais,
comerciais e estilos de vida. Portanto, a ciência-técnica tornou-se parte integrante e
indispensável da atividade econômica, tornando-se agente econômico e político.
Na esteira de seu mestre, o positivismo de Comte empreendeu uma síntese das idéias de
ordem e progresso, visando superar a desordem e a anarquia a fim de restaurar a unidade social.
Trata-se do progresso concebido como lei da história humana e, enquanto tal, legitimadora de
uma ordem social definitiva, pacificada e solidária. A aposta positivista era a de que a ciência-
técnica, que nos conferira o domínio da natureza, tornaria possível, na “física social”, o controle
total da sociedade e dos indivíduos, organizando o mundo dos valores ou a realidade histórico-
social, evitando revoluções, revoltas e legitimando a ordem vigente. A identificação do estudo
da sociedade ao estudo da natureza, que leva a primeira à busca de leis sociais iguais às leis da
física, elimina o papel da prática social como elemento gerador de mudanças na sociedade. A
prática social, especialmente no que se refere à transformação do sistema industrial, fora assim
suprimida pela fatalidade. A sociedade era concebida por leis racionais que funcionavam com
necessidade natural. A sociedade tem uma ordem natural que não muda e à qual o homem deve
submeter-se. Essa posição de submissão aos princípios das leis invariáveis da sociedade leva a
uma posição de resignação grandemente enfatizada na obra de Comte. A pregação da resignação
facilita a aceitação de leis naturais que consolidam a ordem vigente, justificadora da autoridade
reinante e facilitadora da proteção dos interesses hegemônicos naquele momento histórico.
A tarefa do positivismo era, portanto, contra-revolucionária, pois busca formular uma
filosofia que estabilize e justifique a ordem socioeconômica dada. Não era preciso superar ou
transformar o dado, a “filosofia positiva” só precisava compreender e organizar os fatos. Com o
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A industrialização do sistema de produção e da estrutura do trabalho acarretou contínuas crises e conflituosas relações
de força entre a classe dos operários e a classe burguesa dirigente. No âmbito filosófico, esse antagonismo se exprimiu
no confronto entre duas grandes posições ideológicas que permanecem em oposição, de algum modo, ainda hoje: o
liberalismo e o socialismo. Na obra do próprio Saint-Simon e a partir dela, com os sansimonistas ou os primeiros
socialistas franceses (Proudhon, Sismondi, Bazard, etc.), encontramos a formulação de uma dura crítica ao
individualismo burguês e ao princípio liberal da competição irrestrita, acusando-os por acirrar o conflito de classes, pela
concentração de riqueza, pela exploração e pela alienação do proletariado. Para alguns analistas, tais filósofos foram os
precursores do socialismo, pois consideraram que o maior objetivo da emancipação da racionalidade técnico-científica e
da formação do sistema industrial seria a melhoria das condições de vida da classe mais pobre. Eles apoiavam a
intervenção do Estado na economia a fim de impedir a concentração de riqueza e o advento de uma nova dominação
hierárquica que se diferenciaria da opressão do Antigo Regime somente em sua forma. Com o progressivo agravamento
das contradições geradas pelo impacto do capital no sistema produtivo, com o aumento da exploração e das crises de
pobreza, apesar da extrema riqueza acumulada, o pensamento socialista passou a reivindicar, portanto, uma correção ou
uma transformação de base no industrialismo capitalista e não apenas uma justificação filosófica que o legitimasse.
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lado, o idealismo kantiano foi visto como a arbitrária sujeição da realidade empírica à
subjetividade transcendental e, por outro lado, a famosa afirmação de Hegel, de que o real é
racional, foi compreendida pelo positivismo como se apenas o racional fosse real, desprezando,
portanto, os dados da observação empírica e as condições concretas da realidade sócio-histórica.
Para o positivismo, deve ser preservada a independência dos “fatos comuns” e a razão deve ser
dirigida pela observação dos dados empíricos, sem subordinação a qualquer dimensão a priori.
Somente a “filosofia positiva” poderia superar essa negatividade metafísica, pois a racionalidade
técnico-científica seria a única condição necessária para que a humanidade evoluísse em direção
a um futuro próspero e uma vida abastada. Comte procurou restaurar a ordem na sociedade
saída da revolução francesa, substituindo seus princípios abstratos e suas fraturas internas por
mudanças de ordem técnico-científica, pois somente a prática técnico-científica pode produzir
uma forma social orientada para as necessidades da nova sociedade industrial. Recusando tanto
a aristocracia e os monarquistas quanto a burguesia liberal, o positivismo propôs que somente a
nova classe dos “industriais” (envolvida efetivamente com a atividade produtiva), aliando-se à
classe dos engenheiros e dos cientistas, poderia operar uma restauração da ordem social. Comte
via na sociedade industrial o estágio de maturidade histórica da humanidade ocidental-européia.
“Quem não se recorda, contemplando a sua própria história, que foi sucessivamente, com
respeito às noções mais importantes, teólogo na sua infância, metafísico na sua juventude e
físico na sua maturidade?”, indaga Comte.
Por esta via, o positivismo decretou a independência definitiva da racionalidade técnico-
científica com relação à metafísica, ou seja, com relação à especulação que investiga uma idéia
de natureza para além dos dados da observação e do cálculo e uma idéia de homem para além
do horizonte dos dados biológicos e sociológicos. O homem, animal histórico herdeiro de uma
tradição, explica-se, segundo Comte, em sua animalidade pela fisiologia das funções orgânicas
e, em sua dimensão cultural pela sociologia, como ciência da história intelectual e moral da
humanidade da qual a subjetividade e a individualidade são apenas abstrações. Aos olhos de
Comte, o sujeito isolado não pode reivindicar uma existência independente. Engajado no
contexto social, seu pensamento responde a influências que o ultrapassam e, enfim, a pretensa
consciência de si do sujeito pensante não pode fornecer nenhum conhecimento válido. O
conhecimento positivo renuncia à reflexão metafísica e à razão especulativa que só convinham à
infância da razão; e, desse modo, circunscreve seus esforços ao domínio exclusivo da verdadeira
observação, a única base possível dos conhecimentos realmente acessíveis, sabiamente
adaptados às necessidades reais da industrialização. Trata-se de substituir, em todos os
domínios, a inacessível determinação de substâncias, essências metafísicas e princípios
apriorísticos pela simples enunciação das leis naturais, isto é, das relações constantes que regem
os fenômenos observados. Portanto, para o positivismo, não haveria uma “ciência primeira”,
uma “ciência da ciência” ou uma “teoria geral do conhecimento” que investiga os primeiros
princípios do conhecimento independente dos objetos aos quais ele se aplica. Só haveria
conhecimento aplicado aos objetos nas ciências empíricas particulares. Esse recurso positivista
aos fenômenos fez a pergunta pelo conhecimento se voltar diretamente às ciências disponíveis
como sistemas de proposições empíricas e modos técnicos de proceder, como um complexo de
regras com base nas quais as teorias são construídas, verificadas e controladas. A meta da
racionalidade técnico-científica seria simplesmente: “ver para prever e prever para agir”. No
momento culminante do cientificismo positivista a ciência se encontra despojada de toda
dignidade teórica e reduzida a um simples instrumento da atividade vital. As teorias manterão
sua vigência caso se manifestem úteis à vida tecnificada. Toda a justificação teórica do
conhecimento estará vinculada à eficácia técnica com que se realiza esta utilidade. Serão
destituídos de justificação, caducos e fora de uso, no momento mesmo em que demonstrem sua
inutilidade à produção ou ao industrialismo. Destituída de toda orientação teológica, a
racionalidade técnico-científico fica reduzida a si mesma, sem qualquer necessidade de um
fundamento metafísico.
Em um mundo integralmente voltado para a emancipação da atividade produtiva e
instrumental, a racionalidade metafísica será considerada ultrapassada e desnecessária. A
racionalidade humana, para Comte, deve se ocupar somente com a investigação dos fatos
observados ou com os fatos da ordem social vigente e nunca com “ilusões transcendentais”, pois
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