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A verdade da certeza de si mesmo: comentário do cap.

IV da Fenomenologia
do Espírito
Sérgio Dela-Sávia

1. Relativamente ao mundo dos objetos, a certeza que alcança a consciência é o


verdadeiro enquanto alguma coisa de distinto dela. Para a consciência a objeto
é sempre absolutamente outro, mas o que este é, somente o é para a
consciência: conceito. Isso quer dizer: a verdade do mundo (objeto) é sempre
verdade para um outro.

2. Na sua experiência do mundo, a consciência não se perde mais no saber de um


outro de si mesma. Os momento anteriores são agora unificados como
momentos da consciência, cuja verdade destina-se a ser constantemente
ultrapassada, pois cessaram de ser “subsistência simples e independente para
a consciência” (Phénoménologie de l’Esprit, traduction et notes par Jean
Hyppolite, Paris : Aubier, 1941, p. 146). Desde o ser que ela visava como objeto
fora dela (certeza sensível), passando pela oposição dialética entre
singularidade (a coisa) e universalidade (essência, ser para a consciência) no
momento da percepção, até a interioridade do entendimento, a consciência de
si é agora “esse retorno em si mesmo a partir do ser-outro. Como consciência
de si ela é movimento” (ibid., p. 146).

3. A consciência de si (Selbstbewusstsein), então, alcança algo de novo: “uma


certeza que é igual a sua verdade, pois a certeza é para si mesmo seu próprio
objeto e a consciência é para si mesma o verdadeiro” (ibid., 1941, p. 145). Por
mais que a consciência distinga em si suas representações – enquanto suas
representações – ela não são, para si, distintas de si. Nesse caso o conceito é o
movimento do saber e o objeto, o Eu (Moi). “Então”, dirá Hegel, “vemos que
não somente para nós, mas para o saber ele mesmo, o objeto corresponde ao
conceito” (ibid., p. 145). Aqui o em si e o para si coincidem, mesmo se
invertemos os termos: o conceito como aquilo que o objeto é em si (o Eu), e o
objeto como aquilo que é para-um-outro, isto é, o si mesmo, a consciência. “O
em si é a consciência, mas ela é igualmente aquilo pelo qual há um outro (o em
si); e é para ela mesma que o em si do objeto e seu ser para um outro são
idênticos. O Eu é o conteúdo da relação e o movimento mesmo da relação. É ao
mesmo tempo o Eu que se opõe a um outro, e ultrapassa esse outro; e esse
outro para ele é somente ele mesmo” (ibid., p. 145-146. Em grifo no original).

4. Mas nesse movimento de retorno a si mesma a partir do ser-outro, a


consciência, quando ela é, em si, apenas esta diferenciação interna (saber de
si), então ela não é mais do que coincidência consigo: Eu=Eu. Seu movimento
não mais do que uma tautologia, isto é, ela suprime a si mesma. A distinção
que ela realizava, em si mesma, entre ela própria e o mundo, destitui o mundo
de uma realidade própria. Negando efetividade à coisa (o ser-outro, o mundo,
o real), ela tão somente nega a si mesma. Noutras palavras: se a consciência de
si é a verdade da consciência, então ela é, nesse puro retorno a si mesma a
partir de seu ser-outro (experiência do mundo). Porém, se para ela essa
diferença (ser em si e ser outro) não é senão diferença interna, se o ser-outro
não é algo de real, mas apenas momento evanescente de seu estado interno,
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ela se reduz à simples identidade consigo mesma. A consciência de si, assim,


deixa de ser movimento. Como pura identidade, ela perde-se a si mesma e
torna estéril o mundo. Se o outro de si não é para ela, então ela nada é.

5. Recuperando o movimento: 1) num primeiro momento, a consciência é como


consciência, e “ela mantém em si a extensão integral do mundo sensível” (ibid.,
p. 147); 2) num segundo momento, ela é unidade da consciência consigo
mesma, e “o mundo sensível é para ela uma subsistência, mas que é somente
fenômeno, ou uma diferença, que em si não tem nenhum ser” (ibid., p. 147).
Eis o drama de toda consciência de si: ela é a verdade da certeza do mundo,
enquanto extensão fenomenológica (objeto) e, ao mesmo tempo, a verdade de
si mesma, enquanto unidade da consciência (sujeito). Mas essa polarização
consciência de si/mundo, mesmo que nesse momento de sua experiência do
mundo não seja simples polarização sujeito-objeto (pois já passou pelos
momentos posteriores da percepção e do entendimento) deve ser recuperada
numa verdadeira unidade da consciência, de modo que essa unidade se torne
essencial à consciência de si, isso quer dizer, minha relação com o mundo tem
que ser algo essencial à minha consciência de si, parte integrante do
movimento mesmo da consciência em direção ao mundo. Por isso é que Hegel
define a consciência de si como desejo. A consciência do existente não se
define como contemplação do ser, o homem não é um espectador do mundo e
o mundo mesmo não é para ele espetáculo, mas Vida (cf. ibid., p. 147).

6. Nisso se garante a efetividade do real: “a consciência, como consciência de si


tem, doravante, um duplo objeto, um, o imediato, o objeto da certeza sensível e
da percepção, mas que para ela está marcado do caráter do negativo, e o
segundo, ela mesma precisamente, objeto que é a essência verdadeira e que,
inicialmente, está presente na sua oposição ao primeiro objeto. A consciência
de si se apresenta aqui como o movimento no curso do qual essa oposição é
suprimida, movimento pelo qual sua igualdade consigo vem a ser” (ibid., p.
147. Em grifo no original). O mundo, mundo da vida, mundo de objetos se
apresenta à consciência em toda a sua ambigüidade: ele é e não é. Hyppolite
comenta: “ele é, visto que sem ele a consciência de si não poderia afirmar a si
mesma; ele não é, visto que, assimilando-o à sua própria substância, a
consciência de si o nega” (ibid., p. 147, nota 6). Eis a marca do negativo que
caracteriza a relação da consciência com o mundo como desejo. A infinitude da
vida se manifesta à consciência na sua independência, mas a consciência busca
afirmar, igualmente, sua própria independência. Daí o conflito dependência-
independência. “Nesse desejo, a consciência de si busca, no fundo, a si mesma,
e se busca no outro. O desejo é, na sua essência, outra coisa do que parece ser
imediatamente” (ibid., p. 147, nota 6).

7. Como desejo em geral, a consciência tem por objeto sempre “alguma coisa de
vivente” (ibid., p. 148), pois que sua relação se dirige à Vida, do qual ela quer
negar a independência, como vida independente. A atividade negadora (ou a
negação) é, pois, própria da consciência desejante, isto é, da consciência
enquanto desejo. “Mas, quando o objeto é em si mesmo a negação, e quando
nisto ele é ao mesmo tempo independente, então ele é consciência. Para a
consciência de si a Vida é 1) natureza inorgânica universal e 2) pluralidade de
consciências de si. Face ao primeiro, ela é certeza de ser si mesma pela
supressão desse outro na sua independência (desejo). Face ao segundo, ela é
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certeza de ser si mesma pelo reconhecimento de outra consciência. Desse


modo, pela mediação do mundo da vida, a consciência de si é para si e para
um outro. Mas somente aqui ela é consciência humana: “A consciência de si
somente alcança satisfação em uma outra consciência de si” (ibid., p. 153. Em
grifo no original).

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