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Instituto de Psicologia
Programa de Pós-Graduação em Psicanálise
Rio de Janeiro
2010
2
Rio de janeiro
2010
3
Aprovada em _____________________________________
Banca examinadora:
__________________________________________________
Prof. Doutor Marco Antonio Coutinho Jorge (orientador)
Instituto de Psicologia da UERJ
___________________________________________________
Prof. Doutora Heloisa Caldas
Insituto de Psicologia da UERJ
___________________________________________________
Prof. Doutora Vera Pollo
Universidade Veiga de Almeida
Rio de Janeiro
2010
4
Agradecimentos
Seria impossível agradecer a todos que, direta ou indiretamente, colaboraram para que
este trabalho tivesse início e chegasse ao fim. Entretanto, não posso deixar de sublinhar a
importância inestimável do meu marido, Charles, e dos meus filhos, João e Miguel. Amor,
força, coragem e muita compreensão foram os ingredientes mágicos que eles adicionaram ao
meu desejo para que eu conseguisse concluir esse momento de passagem em minha vida
pessoal, profissional e acadêmica. É para eles que dedico este trabalho.
Aos amigos pessoais, poucos, mas tão especiais, por acreditarem que o percurso seria
feito. Aos colegas de turma, aos do grupo de orientação e aos grandes mestres, com os quais
aprendi a pesquisar, a todos vocês, muito obrigada!
5
1
Trata-se de um trecho da carta de Sigmund Freud a Stefan Zweig de 20/07/1938 in Jorge:M.A.C. Sexo e discurso em Freud
e Lacan, p. 136.
6
SUMÁRIO
2.1. O “Outro Geográfico” na obra de Dali – uma estética entre ruínas e rochas p.43
3.2. O efeito do estranho no Angelus de Millet em Dali: o método paranóico crítico p.67
3.3. O efeito do estranho na obra arte de Dali – que efeitos suas telas suscitam? p.73
ANEXO
BIBLIOGRAFIA
7
8
Quem disse que os sonhos não são reais ou que a realidade supostamente
compartilhada não está atravessada por nossos ‘delírios íntimos’, isso que com Freud e Lacan
chamamos de fantasia? Dali nos ensinou a sonhar de olhos abertos e a ver em suas telas o
desejo e os pesadelos da nossa própria humanidade. As imagens, sempre impregnadas por um
dado do real nem sempre são agradáveis, mas elevam o espírito de todo aquele que não é cego
para sua realidade. Sendo assim, posso dizer que ao estudar a obra de Dali aprendi um novo
verbo - dalinizar - que, para mim, significa uma ação subversiva de interpretação da
realidade. Penso que a experiência estética pode, de certo modo, equiparar-se àquela vivida
em análise, pois nos toca no mais íntimo de nossa subjetividade na medida em que nos
descola da ‘chatice’ da visada plana e bidimensional do mundo do qual fazemos parte. É
precisamente por isso que o verbo dalinizar reflete, de certo modo, aquilo a que nos
propusemos em nossa práxis, ou seja, a escutar além dos muros da razão. Tomando
emprestadas as palavras do espanhol Juan Gris 3, Dali afirma apaixonadamente: “Nós amamos
a emoção que corrige a regra!”4. Nós, psicanalistas, também.
Dali dizia que seu nome significava desejo em catalão e o que pude entender com isso
é que ele, em sua arte, ia além, aliás, muito além do convencional. Acho que esse trabalho, em
muitos momentos, descambou para o não convencional. Comparando-me a uma “águia
domesticada”, cheguei a pensar que a escrita acadêmica poderia representar um ato de
contenção poética doloroso. No entanto, no decorrer do trabalho, percebi que isso não seria
possível para aquele que tem a escrita poética como causa. Espero que o resultado dessa
experiência de escrita comprove que o vôo valeu à pena. Afinal, ainda que, por vezes, julgasse
não saber por onde estava indo, o caminho foi trilhado. É chegada a hora de compartilhar essa
2
Dali apud Pauwels:1968: 65-65.
3
José Victoriano González-Pérez conhecido artisticamente como Juan Gris (Madrid, 23 de Março de 1887 — Boulogne-Sul-
Seine, 11 de Maio de 1927) foi um pintor espanhol que desenvolveu a sua atividade principalmente em Paris, é considerado
como um dos mestres do cubismo.
4
Dali apud Pauwels, op. cit., p.64.
9
Mas afinal, o que me capturou em Dali? Muitas coisas, mas certamente seu estilo
próprio é algo que impressiona. O estilo daliniano é uma marca transparente que sobrevoa
toda sua obra pictórica, de tal modo que ela prescindiria até mesmo de um certificado de
autenticidade; afinal não se pode falsificar um estilo, ou, mais precisamente, isso que Lacan
também chamará de objeto6. Comenta-se que, em algum momento de sua vida, Dali teria
passado a assinar telas em branco para que alguns de seus ‘discípulos’ pudessem vender suas
telas como Dalis originais. Vejo nisso uma atitude tipicamente daliniana a nos instigar,
pondo-nos em xeque em relação ao que podemos pensar sobre o que realmente confere valor
a uma obra de arte. O ponto aqui é: o nome de Dali. Um nome que vende uma obra ou uma
obra que vende um nome? Dali responde a essa questão: “[...] Tenho mais glória do que
minha pintura.”7
Parece que para o mercado milionário das artes o que se vende enquanto um valor é o
nome do artista. Teria sido isso que Joyce pretendia nos fazer claro, quando disse que seria
5
Dali, S., “Vida Secreta de Salvador Dali” e “Diário de um gênio” in Obras completas de Salvador Dali, v. I.
6
Lacan, J., “A juventude de Gide ou a letra e o desejo”, in Escritos, p. 751.
7
Pauwels, J.L., As paixões segundo Dali, p.93.
10
lido pelos universitários por mais de 300 anos? Talvez não. Mas afinal, é o nome de Joyce ou
a novidade de sua obra que se pretende fazer circular? Ambos, certamente, pois um nome só
fica na história se sua obra o suporta como tal, ou seja, se sua produção o sustenta como um
nome de artista.
O tema que deu origem à minha pesquisa tocava na questão do nome, ainda que, de
início, eu me interessasse mais pelo tema do nome próprio e, em especial, pelo nome do irmão
morto de Dali - o outro Salvador Dalí. Entretanto, com o passar do tempo, meu interesse foi
reconduzido para outro foco – o da obra de arte de Dali. Aos poucos, pude perceber que suas
telas produziam efeitos de estranhamento e, ao mesmo tempo, iluminavam o caminho por
onde passavam. Cheguei mesmo a me indagar se isso que na obra de Dali mobiliza o fruidor
também poderia ter a ver com o que Lacan chama de epifanias joyceanas8. Onze anos antes da
publicação do artigo “O Estranho”9, Freud também já se questionava em seu texto, “O poeta e
o fantasiar”10, sobre como certos escritores, através de suas obras, podiam tocar a alma do
leitor e fazê-lo se emocionar. Será possível pensarmos que o belo e o horror se encontram no
ponto de estranhamento que a tela suscita no observador? Se pensarmos bem, o efeito do
estranho no fruidor de uma obra de arte como a de Dali só pode ser produzido se a sensação
suscitada for paradoxal e, portanto, ambígua. Afinal, o que há de estranho no quadro que nos
olha? Como articularmos isso ao tema do estranho em Freud? As tentativas de responder a
algumas dessas questões se desdobrarão ao longo do capítulo três, mas as articulações que
conduzirão a essas respostas se apoiarão ao longo de todo o trabalho.
8
O termo epifania é aplicado quando um pensamento inspirado e iluminante acontece e que parece ser divino em natureza.
Lacan fala das epifanias joycianas para enaltecer a abilidade de James Joyce em fazer, através da escrita, com que o leitor
‘visualize’ tal sensação.
9
Freud, S., “O estranho”, AE, v. XVII; ESB, v. XVII.
10
Freud, S., “O poeta e o fantasiar”, AE, v. IX; ESB, v. IX.
11
11
Freud, S., A interpretação dos sonhos, AE, v. IV; ESB, v. IV.
12
Freud, S., op. cit., AE, v. XVII; ESB, v. XVII.
12
Sua obra escrita explica bem como isso se deu. Aliás, embora Dali seja mais
conhecido por seu trabalho como pintor surrealista, poucos sabem que ele tinha uma obra
escrita extensa a qual consta de vários textos autobiográficos e ensaios sobre arte, todos
reunidos em oito grandes volumes. Embora Dali tomasse a si mesmo como exemplo para falar
de arte e de outros assuntos, os textos que ele entendeu como autobiográficos foram
compilados no primeiro volume, onde encontramos os ensaios, “Vida secreta de Salvador
Dali” e “Diário de um gênio”13. Já os volumes quatro e cinco foram dedicados a ensaios sobre
arte, onde o pintor fala sobre seus pares, sua visão da arte moderna e, finalmente, enaltece
aqueles que considerava os grandes mestres da pintura. O ensaio onde ele desenvolve sua
teoria sobre a paranóia crítica é intitulado “O Mito trágico do Angelus de Millet: interpretação
paranóico-crítica” ([1933-1938] -1963/2005)14 e está no volume cinco. Também estão nesse
mesmo volume os ensaios intitulados “50 segredos mágicos para pintar” (1948/2005)15 e “Os
cornudos da velha arte moderna” (1957/2005)16. Como o próprio Dali explica, na introdução
desse quinto volume, o texto que deu origem ao ensaio sobre o Angelus de Millet teve início
em um manuscrito de 1933 que foi finalizado em 1938, mas só veio a ser publicado, pela
primeira vez, em 1963.
Uma vez que seria impossível para o objetivo desse trabalho a leitura sua obra
completa, dedicamo-nos ao estudo de alguns textos dos volumes aqui citados para
compartilhar do pensamento daliniano em sua relação com o campo que nos concerne, ou
seja, o da psicanálise em sua conexão com a arte. Afinal, embora Dali se proclamasse poeta,
não é por esse meio - o da escrita literária – que ele nos causa efeito estético, como ocorre
quando estamos diante de seus quadros. Para a psicanálise, no entanto, admitimos que o
mérito de sua escrita esteja em sua proposta inovadora de conhecimento da realidade com a
aplicação do seu método paranóico crítico à criação artística. A leitura dessa obra de Dali nos
conduz, inevitavelmente, a uma revisão dos textos freudianos que tratam da temática da
questão da realidade psíquica com certa ênfase nos textos que versam sobre o estranho e a
paranóia.
13
Dali,S., op. cit. v. I.
14
Dali, S., “O mito trágico do Angelus de Millet”, in Obras completas de Salvador Dali, v. V.
15
Dali, S., op. cit. v. V.
16
Dali, S., op. cit. v. V.
13
sua vida, ou seja, as cidades onde viveu e construiu o que considero ser suas ‘casas-museu’.
As três cidades são, respectivamente, Figueres, sua cidade natal, Cadaqués, cidade onde
passava férias de verão com a família e onde construiu sua morada conjugal com Gala e,
finalmente, Púbol, onde comprou e reconstruiu um castelo para sua amadíssima mulher.
Conhecido como triângulo daliniano (Fig. 1 - mapa), esses três lugares do extremo nordeste
da Catalunha marcaram o pintor surrealista de inúmeras maneiras, mas ressaltarei a influência
da natureza ampudarneza sobre a arte de Dali. Assim como os fortes ventos da tramontana e
as águas do mediterrâneo cavavam entalhes incríveis nas duras rochas do Cabo Creus em Port
Lligat, sua história familiar – tal qual esse ‘Outro geográfico’ – marcaria tanto o artista que o
faria se sentir como essas rochas que tanto o inspiravam. Afinal, é ele quem nos diz: “Dali é o
cabo Creus”17.
Além disso, falaremos como a arte de grandes pintores, como Rafael Santi18, Diego
Velásquez19, Jan Vermeer van Delft20, Jean-Louis Ernest Meissonier21 e Jean-François22,
operou para Dali como grande Outro. Não nos interessa fazer uma análise das obras desses
artistas em detalhe, mas apontar que foi pela excelência técnica dessas obras que Dali se
fascinou. O retorno de Dalí a esses grandes mestres o fez se proclamar um homem do
Renascimento, significante este que perpassa toda sua obra e que revela sua obsessão pelos
temas da ressurreição e da imortalidade. Ao tomar as obras desses grandes mestres como
referências para sua criação artística, percebemos que é desse lugar que Dali tirará os
17
Pauwels, J.L., op. cit., p.17.
18
Rafael Sanzio (em italiano Raffaello Sanzio; Urbino, 6 de abril de 1483 — Roma, 6 de abril de 1520), frequentemente
referido apenas como Rafael, foi um mestre da pintura e da arquitetura da escola de Florença durante o Renascimento
italiano, celebrado pela perfeição e suavidade de suas obras. Também é conhecido por Raffaello Sanzio, Raffaello Santi,
Raffaello de Urbino ou Rafael Sanzio de Urbino.
19
Diego Rodríguez de Silva y Velázquez (Sevilha, 6 de Junho de 1599 — Madrid, 6 de Agosto de 1660) pintor espanhol e
principal artista da corte do Rei Filipe IV de Espanha. Artista do período barroco contemporâneo, importante como retratista.
Além de inúmeras interpretações de cenas de significado histórico e cultural, pintou inúmeros retratos da família real
espanhola, notáveis figuras europeias e plebeus, culminando na produção de suas obras-primas, Las Meninas (1656) e Papa
Inocêncio X (1649-1650).
20
Johannes Vermeer (Delft, 31 de Outubro de 1632 - Delft, 15 de Dezembro de 1675) pintor holandês, também conhecido
como Vermeer de Delft ou Johannes van der Meer. Depois de Rembrandt, ele é o segundo pintor holandês mais importante
do século XVII, período conhecido por Idade de Ouro Holandesa, devido às conquistas culturais e artísticas do país nessa
época. Seus quadros são admirados por suas cores transparentes e pelas composições inteligentes e brilhantes que faz com o
uso da luz.
21
Jean-Louis Ernest Meissonier (21 de fevereiro, 1815 - 31 de Janeiro de 1891) pintor e escultor francês neoclássico famoso
por suas representações de Napoleão, seus exércitos e temas militares.
22
Jean-François Millet ( 4 de Outubro , 1814 - 20 de Janeiro , 1875 ) Pintor romântico, um dos fundadores da Escola de
Barbizon na França rural. Precursor do Realismo. Suas telas frequentemente retratam a vida de trabalhadores rurais.
14
significantes para construir sua relação com o mundo da arte, sendo precisamente aí que ele se
distancia totalmente da proposta do grupo surrealista.
Tentaremos apreender com Dali o que de real se deixa entrever, por exemplo, na tela
de Jean-François de Millet, O Angelus (Fig. 2). Sabemos que, para tentar dar conta da
angústia causada por essa tela, Dali recorreu à escrita, desenvolvendo - a partir de suas
impressões sobre esse quadro - vários textos importantes sobre o método paranóico-crítico.
Vários desses textos encontram-se sistematizados em seu ensaio intitulado “O mito trágico do
Angelus de Millet: interpretação paranóico-crítica” ([1933-1938] 1963/2005).
Desenvolveremos melhor esse assunto no capítulo 3. Nele, exploraremos o tema do “O
estranho”23 fazendo referência, primeiramente, ao efeito angustiante que a tela O Angelus
(Fig. 2) de Jean-François Millet teve sobre Dali. Entendemos que a obra de arte - a partir de
sua relação com a Coisa – pode nos indicar o quão íntimos somos do que nos parece estranho.
Dali usa a técnica do trompe-l’oeil 24 para nos ‘confundir’ o suficiente e nos fazer aderir a sua
tese de que a interpretação da realidade é paranóica. É nesse sentido que entendemos que uma
produção artística pode operar como o analista que, no lugar de objeto a, mobiliza ‘algo’ da
realidade psíquica do sujeito. Esse ‘algo’ do real que mobiliza o sujeito fruidor pode advir de
qualquer obra de arte, seja uma tela de Dali, Millet, Velásquez ou Vermeer – não importa. É
certo que não se trata de ‘qualquer coisa’ no sentido que Lacan confere ao objeto a enquanto
objeto causa de desejo, mas no sentido mesmo do objeto enquanto perdido, ou seja, das Ding.
Vemos, por exemplo, como Freud se mobilizou tanto com o conto “O homem da
areia”, de Ernst Hoffmann, o que o levou a escrever o seu inquietante artigo “O Estranho”25.
Nesse texto, vemos como se dá a relação do sujeito com a castração e com o desejo. Freud
nos faz ver que esse ‘algo estranho’ que nos mobiliza é, na ‘realidade’, muito íntimo a nós.
Nesse sentido, supomos que o objeto de arte pode operar sobre o sujeito tocando-o de modo
particular, permitindo a este – a partir de sua realidade psíquica - tecer suas interpretações
sobre o objeto que lhe extasia, quer isso lhe cause êxtase, perplexidade ou pura angústia.
Aliás, Freud sempre se questionou sobre o fato de certos escritores, através de suas
obras, poderem emocionar o leitor, mobilizando nele questões edípicas sem, no entanto,
23
Freud, S., op. cit., AE, v. XVII; ESB, v. XVII.
24
Trompe-l'œil (francês) significa “enganar o olho” - é uma técnica envolvendo imagens extremamente realistas e que cria
uma ilusão de ótica de modo que os objetos representados aparecem em três dimensões, embora seja, de fato, uma pintura
bidimensional.
25
Freud, S., op. cit.,AE, v. XVII; ESB v. XVII.
15
causar-lhe horror ou repulsa. O interesse de Freud no assunto sempre foi grande, o que fica
claro nos ensaios sobre “O poeta e o fantasiar”26 e “O delírio e os sonhos na ‘Gradiva’ de W.
Jensen”27. Assim, será ainda nesse mesmo capítulo 3 que tentaremos entender melhor o que,
na obra de Dali, produz efeitos de estranho e qual a relação disso com o belo e o horror. Não
nos interessa aqui falar da estética daliniana do ponto de vista da filosofia ou de sua relação
com o mundo das Belas Artes. O que nos interessa circunscrever nesse trabalho é justamente
aquilo que Freud entendia por estética, ou seja, uma “doutrina das qualidades do sentir”28.
Após termos revisto alguns pontos importantes da teoria psicanalítica, percebemos que
Freud foi certeiro ao nos dizer que o poeta antecede o psicanalista. Assinala, também, que é
com esse escritor criativo que o psicanalista deve tentar, humildemente, aprender um pouco
mais sobre as coisas referentes ao amor, ao sexo e à morte. Dali se dizia poeta e, ainda que
26
Freud, S., idem.
27
Freud, S., “O Delírio e os sonhos na ‘Gradiva’ de W. Jensen”, AE, v. IX; ESB, v. IX.
28
Freud, S., op. cit., AE, v. XVII, p. 219; ESB, v. XVII, p. 237.
29
Freud, S., op. cit.,AE, v. XVII; ESB, v. XVII.
16
não seja como escritor literário que ele nos toque, sua obra pictórica pode, muitas vezes,
tomar ares de poesia e, até mesmo, nos inspirar.
17
[...] Já havendo o método catártico renunciado à sugestão, Freud deu um passo a mais,
rejeitando igualmente a hipnose. Ele trata com igualdade seus enfermos, do seguinte modo:
sem procurar influenciá-los de maneira alguma, faz com que se estendam comodamente num
divã, enquanto ele próprio, retirado do olhar dos pacientes, senta-se atrás deles. Não lhes pede
para fechar os olhos e evita tocá-los, bem como empregar qualquer procedimento passível de
lembrar a hipnose. Esse tipo de sessão se passa à maneira de uma conversa entre duas pessoas
em estado de vigília, uma das quais é poupada de qualquer esforço muscular e de qualquer
impressão sensorial capaz de desviar sua atenção de sua própria atividade psíquica.32
Esse recorte do texto de Freud é bastante relevante para a abertura desse trabalho, pois
trataremos de assinalar, mais adiante, de assinalar como os surrealistas fizeram um uso
equivocado da proposta freudiana no direcionamento de suas produções literárias. Entretanto,
não devemos ver tal equívoco como depreciativo do criador da chamada escrita automática, o
poeta André Breton, pois suas pesquisas acerca do inconsciente, ainda que pelo viés da
equivocação, confirmam o quão impactante a descoberta freudiana foi para o mundo das artes
naquele momento histórico. Aliás, o grande mérito dos surrealistas foi justamente abrir as
portas para a psicanálise na França. Afinal, esse grupo composto por intelectuais, médicos e
artistas, incluindo aí o próprio Dali, se dedicou à leitura dos textos freudianos tendo como um
de seus preferidos o artigo “O delírio e os sonhos na Gradiva de W. Jensen”33.
Mas enquanto Freud não gostava nada da forma como os surrealistas entenderam e
tentaram aplicar seu método terapêutico, Lacan, ao contrário, reconheceu que foi através do
30
Freud, S.,op. cit., AE, v. IV; ESB, v. IV.
31
Freud, S., “A hereditariedade e a etiologia das neuroses”, AE, v.III; ESB, v.III.
32
Freud apud Roudinesco, E., Dicionário de psicanálise, p. 604.
33
Freud, S., op. cit., AE, v. IX; ESB, v. IX.
19
Curiosamente, não foi somente Lacan que se encantou com Salvador Dali. Se Freud
desdenhou e, até mesmo, criticou o movimento surrealista de Breton, chamando seus
expositores de ‘loucos rematados’, com o pintor catalão, a história foi bem diferente. Em seu
livro, Sexo e discurso em Freud e Lacan35 (1988), Marco Antonio Coutinho Jorge ressalta
como Freud havia se impressionado com Dali através de um encontro entre os dois
promovido por um amigo comum, o escritor Stephen Zweig, em Londres, em 1938.
Aliás, o que a destruição teria a ver com o desejo de criação? A clínica, nesse sentido,
pode nos ajudar a esclarecer tais questões e é por isso que não podemos nos furtar a incluir em
nosso trabalho algumas referências a nossa práxis em sua conexão com o tema aqui abordado.
34
Roudinesco,E., Jacquess Lacan – esboço de uma vida, história de um sistema de pensamento, p. 37
35
Jorge, M.A.C., op. cit., p. 136.
36
Freud, S., “Por que a guerra?”, AE, v. XXII, p.183; ESB, v. XXII, p. 193.
37
Freud, S, op. cit., AE, v. XXII, p. 187- 198; ESB, v. XXII, p. 197 – 208.
20
papel de intermediar conflitos entre os homens que, cegos pelos equívocos promovidos por
seu narcisismo, deixam-se levar pela ira implacável da pulsão de morte. Com Freud, também
entendemos que o altruísmo é, na realidade, fruto dos processos de recalcamento da pulsão de
morte que também pode ser entendida como pulsão de domínio. Embora pudéssemos pensar
que é a libido que mais sofre ação do recalque, Freud nos faz ver, ainda nesse artigo, que é a
agressividade que deve sucumbir às ações educativas e civilizatórias, caso contrário,
precisaríamos resolver nossas diferenças nos moldes dos bárbaros.
Lacan aponta que “a questão do bem é desde o início articulada em sua relação com a
Lei”38. Lacan nos faz ver, com Freud, que a moral e os bons costumes são fruto da ação
civilizatória. Dispersando-se um pouco desse maniqueísmo que a civilização construiu ao
longo do tempo, o discurso do analista questiona ‘essa onda do bem’ e insiste em privilegiar o
desejo cuja base pulsional é sempre sem pé nem cabeça39. Tal expressão é utilizada por Lacan
para se refereir à montagem da pulsão como uma pintura surrealista, ou seja, algo que não
passa pelo crivo da razão. Desse modo, vemos que arte e o desejo são politicamente
‘incorretos’ justamente porque a base pulsional que os move traz em si um paradoxo: para
criar, é preciso destruir.
Ainda hoje vemos como esse sentimento se repete, seja na história da humanidade,
seja nas histórias de cada um. As guerras no Oriente Médio, o alto índice de assassinatos nas
grandes cidades e as experiências que a clínica do real nos aponta, tudo isso evidencia o
quanto o sujeito ‘treme’ diante da angústia de desaparecer da cadeia significante. Nos
Escritos, em “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano”, Lacan
propõe que “um significante é aquilo que representa o sujeito para outro significante”40.
Também sabemos, com Lacan, que esse mesmo sujeito é, desde sempre, marcado pelas
palavras e pelo dom de amor do Outro, sendo esse grande Outro aquele que o ‘presenteará’
com um corpo de significantes. Portanto, podemos entender que nada pode ser mais
38
Lacan, J., O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise, p. 270.
39
Lacan, J. O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, p. 160.
40
Lacan, J., in Escritos, p. 833.
21
angustiante para o sujeito marcado pelo significante do que ver no rosto sem vida do próximo
o apagamento do seu desejo.
O sujeito marcado pelo desejo que se exprime em sua fala não se resigna à
contemplação passiva do horror que as guerras impõem à humanidade, às marcas que se
fazem vistas em seu corpo falante ou que se repetem em atos aparentemente sem sentido. A
clínica nos ensina muito sobre isso. Assim, tem-me sido possível verificar como o analisando
- em sua batalha particular - luta incansavelmente contra a mortificação de seus desejos que os
ditos do Outro parecem lhe impor. Em algum momento, ele percebe que, para reescrever sua
história, é preciso tornar suas as suas próprias palavras. Lembro-me que, no auge de sua
angústia, certo analisando revelou que, após ter lido o jornal na sala de espera, sentira grande
desconforto. Associando seu mal estar à notícia que lera, lembrou-se de um sonho e disse:
“temo que certas palavras que me designaram por toda uma vida possam ter destruído meus
sonhos como as bombas que caíram sobre Gaza”.
Uma mera notícia de jornal? Não. O analisando fez com esse recorte o que Dali
propusera ao longo de todo seu método paranóico crítico. Ele fez outra coisa: ‘palavras-
bomba’. Uma metáfora de sua dor diante da inevitável constatação de que as palavras dos pais
poderiam ter tido sobre ele um efeito devastador. Palavras que revelavam um código ao qual o
paciente se via preso.
41
Duchamp M. apud Cabanne P., Engenheiro do tempo perdido, p. 194. “Além do mais, são sempre os outros que morrem”.
42
In O GLOBO, 05/01/2009.
43
Dali, S., op. cit. v. V.
22
Tablas de Moisés, ya estaba contenida en los códigos de las espirales genéticas” 44. Parece que
o artista genial percebeu que Deus é um dos nomes do Outro cujos significantes herdamos
bem antes de nascermos. Ele fez isso ao nos dar a preciosa pista da genealogia da lei a que
estamos submetidos ainda que ele a tivesse nomeado através do discurso da ciência.
Diferentes momentos, diferentes escritas para dar conta de um encontro com o real,
isso que explode nos céus de Gaza em pleno ano novo e que não são fogos de artifício. O
analisando - nas duras batalhas travadas em sua longa travessia – sentiu-se sob fogo cruzado
ao se dar conta da alienação aos significantes que o Outro lhe impusera como um código
oculto de condutas que precisava ser questionado. Duchamp deixa claro que o falasser45 não
morre a não ser quando está escrito que morreu, quando, enfim, ele é o outro que sumiu da
cadeia significante. Modos de se reinventar através de um novo dizer sobre o real.
É sabido que Dali foi batizado com o mesmo nome de um irmão morto, fato que o
aterrorizou ao longo de sua vida. Não pretendo me alongar nesse ponto, mas é preciso lembrar
que ele jamais se resignou em ocupar o lugar do morto, vendo nisso uma tarefa impossível.
Em vários momentos de seu ensaio autobiográfico, “Vida Secreta de Salvador Dali”46, o
artista falou sobre seu pavor diante da morte. Ele tentou dar conta disso, nomeando-se o
“Salvador da arte moderna da preguiça e do caos”47. Em meio ao movimento surrealista
inaugurado por Breton, Dali se destacou pela elaboração teórica do seu método paranóico-
crítico de conhecimento da realidade, pois, com isso, convocou um novo olhar sobre o mundo
que ele pretendia reconstruir e deixou claro que havia uma realidade para além daquela que
julgávamos poder compartilhar. Através do estudo da obra de Dali, entendemos um pouco
mais daquilo que, com Freud, chamamos de realidade psíquica.
44
Dali, S. op. cit. p. 409, v. V. “A lei moral deve ser de origem divina, já que, antes das tábuas de Moisés, já estava contida
nos códigos das espirais genéticas” (minha tradução deste e dos demais trechos em língua estrangeira ao longo do trabalho).
45
Falasser é um neologismo que Lacan emprega para se referir ao sujeito da linguagem marcado pelo desejo e que está
inserido no discurso.
46
Dali, S., op. cit. v. I.
47
Dali, S., op. cit. v. V, p. 40-43.
23
Por ora, voltemos ao caos estabelecido com a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e
os efeitos disso sobre o mundo das artes, bem como sobre algumas produções teóricas de
Freud.
Com a Primeira Grande Guerra, os ideais estéticos cultuados até então foram
duramente destituídos e o homem do pós-guerra já não acreditava mais na moral e nos bons
costumes. A negação da harmonia era a forma de expressão do estado de espírito dos que
foram para os campos de batalha e de lá retornaram devastados. A proposta do dadaísmo era,
portanto, conivente com a vivência de desamparo no pós-guerra. A palavra dada, de origem
francesa, significa cavalo de brinquedo, mas é alusiva ao non-sense que a linguagem de um
bebê contém, o que nos leva a verificar o caráter anti-racionalista que o nome do movimento
evoca. Possivelmente, a arte Dadá, como o próprio nome sugere, foi uma tentativa de
simbolizar esse sentimento de despedaçamento psíquico através da perspectiva de
esfacelamento do código lingüístico e das belas artes. Sendo assim, enquanto unidade
harmônica, o belo era contrário à proposta niilista do movimento Dadaísta porque era
24
encarado como uma camuflagem diante do horror vivenciando nos campos de batalha. Afinal,
não há beleza na guerra.
Com os assassinatos de guerra, as barreiras diante da castração foram içadas, o que foi
insuportável para o homem comum. Recrutado para guerrear, ele tinha que, em nome de sua
autopreservação, convocar a força de Tanatos e, desse modo, executar seu semelhante, ainda
que isso lhe custasse o trauma de ver no outro a face de sua própria morte. Em “Introdução à
psicanálise e as neuroses de guerra” (1919), Freud fala das neuroses de guerra como
traumáticas uma vez que elas são conseqüência de um conflito no eu. Diz Freud:
Para dar conta da angústia real que a matança do próximo provocou em toda uma
geração de jovens idealistas, era preciso recorrer à escrita. Ainda que os Dadaístas parecessem
ir contra a estrutura da linguagem regida por um código e por uma estética, eles não
conseguiam abrir mão do simbólico. Afinal, ainda que de modo anárquico, eles pretendiam
fazer poesia com palavras escolhidas aleatoriamente de revistas e jornais. Essas palavras
precisavam ser lançadas no papel, - soltas e desconexas - para demonstrar o non-sense em que
seus autores estavam imersos. A escrita possível desses poetas era sem sentido e o corpo de
palavras fragmentado. Sendo contra a tradição e os bons costumes, esse movimento teria,
inevitavelmente, vida curta, mas causaria tanta confusão que os fundadores do Surrealismo se
afastaram da proposta dos Dadá por julgá-la não científica e ingênua.
48
Freud, S., “Introdução à psicanálise e às neuroses de guerra”, AE, v. XVII p.207; ESB, v. XVII p. 224-225. Todas as
versões em português inseridas no corpo do trabalho foram cotejadas com a tradução argentina; muitas vezes, quando o texto
em português não deturpava a idéia principal, optei pela versão brasileira da Standard Edition, ainda que, quando necessário,
eu fizesse livremente pequenas alterações.
49
Nadeau, M., História do Surrealismo, p. 46.
25
experimentos com a escrita e com a criação. Além disso, não podemos nos esquecer de que
esses artistas estavam imersos no caldo gélido da pulsão de morte e a única forma de erotizar
e aquecer esse caldo seria através da criação. Para sobreviver ao caos, era preciso fazer uso da
força criadora da pulsão de morte.
Sade nos mostrou a teoria segundo a qual, pelo crime, ocorre de o homem
colaborar com novas criações da natureza. A idéia é de que o puro elã da
natureza é obstruído por suas próprias formas, de que nos três reinos,
através do que manifestam como formas fixas, acorrentam a natureza num
ciclo limitado, aliás manifestamente imperfeito, como o mostra o caos, e até
mesmo a turba de conflitos, a desordem fundamental de suas relações
recíprocas.56
Se por um lado o caos da linguagem e das belas artes preconizado pelo dadaísmo tinha
uma intenção destrutiva, por outro, criava uma oportunidade para o surgimento de uma nova
ordem que seria encabeçada pelos surrealistas.
O ano de 1924 registra a fundação oficial do grupo surrealista que tinha um escritório-
sede, uma revista – Surréalisme - e um manifesto, o Manifesto do Surrealismo escrito por
André Breton nesse mesmo ano. A proposta inicial do grupo de surrealistas era valorizar um
processo de realismo que fosse “hostil a todo surto intelectual e moral”, como assinala
Nadeau57. Entretanto, Breton discordava desse grupo e possivelmente por isso resolveu
escrever seu manifesto, onde preconizava que a poesia deveria ser escrita segundo um
método: o automatismo psíquico.
Podemos entender o porquê de Freud ter mantido certa distância desse movimento,
uma vez que é nítido como Breton se valeu de conceitos da psicanálise e da psiquiatria de
modo equivocado. Provavelmente inspirado pela noção de automatismo mental desenvolvido
58
por Gaetan Gatian de Clérambault - que enfatizava o caráter patológico dos pensamentos
que acometiam pacientes psicóticos como se estes estivessem possuídos por palavras -,
Breton criou o método da escrita automática a partir do que ele entendeu por automatismo
psíquico. Em seus comentários sobre um caso clínico de psicose, Angelina Harari utiliza a
noção de automatismo mental esclarecendo que, em termos patológicos,
Mas para Breton o automatismo mental seria entendido de modo diferente; ele o
utilizou como inspiração para criar o método da escrita automática. Vemos que ele chega até
a definir o surrealismo a partir do que nomeou de automatismo psíquico:
57
Nadeau, M., op. cit., p. 53.
58
Gaetan, Gatian de Clérambault (1872-1934) psiquiatra francês, hostil ao freudismo e ao surrealismo, mas, ainda assim,
fora designado por Lacan como seu “único mestre em psiquiatria”, como aponta Elizabeth Roudinesco e Michel Plon, in
Dicionário de Psicanálise, p 120.
59
Harari, A., Clínica lacaniana da psicose: de Clérambault à inconsistência do Outro, p.57.
28
Não podemos negar que sua inventividade tinha o mérito de evidenciar o fato de que o
inconsciente é uma estrutura de linguagem, ainda que ele tenha entendido isso de modo
equivocado no que tange à teoria freudiana. Afinal, como sabemos com Freud e Lacan, seria
impossível forçar uma produção inconsciente, uma vez que o sujeito do inconsciente já se
manifesta sem tal artifício, quer ele queira ou não. Nesse sentido, a produção artística entraria
na série de produções inconscientes do artista, uma vez que elas trazem as marcas da sua
realidade psíquica. Entretanto, como jamais poderemos compartilhar dessa mesma realidade –
a do artista –, o trabalho artístico, enquanto um objeto calado não pode ser analisado como
pretendiam os surrealistas. Além do mais, é sempre bom salientar que uma análise só pode ser
feita com a associação livre, regra fundamental, o que implica na posição do sujeito falante.
60
Breton apud Nadeau, op. cit., p. 55.
61
Freud, S., op. cit., AE, v. IX, p. 127; ESB, v. IX, p.135 .
62
Roudinesco, E. e M. Plon, op. cit., p. 144.
29
revolucionário: “O poeta, à escuta de seu inconsciente, terá contribuído com algo para a
riqueza desse? Todos são poetas desde que se disponham a se colocar às ordens” 63. Com isso,
Breton alçava o surrealismo à categoria de “arte mágica” que estaria ao alcance de todos,
desde que as pessoas obedecessem a uma série de ordens, dentre as quais destaco as
seguintes: deviam estar em um lugar bem cômodo para que pudessem se auto-concentrar;
deviam se manter o mais passivas e receptivas possível.
Para o artista de Figueres, a ordem, desde sempre, emergiu do caos. Com Dali, vemos
que é impossível se livrar das heranças ou da tradição e que o simbólico não pode prescindir
do sentido que o imaginário dá para o encontro com o real. É nesse cenário que surge o
revolucionário artista catalão.
63
Breton apud Nadeau, op. cit., p. 56.
64
Gaillemin, J.L., Dali - the impresario of surrealism, p. 60-61.
30
Uma atividade com tendência moral que poderia ser provocada pela vontade
violentamente paranóica de sistematizar a confusão. O fato mesmo da
paranóia, especialmente a consideração do seu mecanismo como força e
poder, conduz-nos às possibilidades de uma crise mental de ordem, talvez
equivalente, mas, em todo caso, nas antípodas da crise à qual nos submete
igualmente o fato da alucinação. Creio estar próximo o momento em que, por
um processo de caráter paranóico e ativo do pensamento, será possível
(simultaneamente ao automatismo e a outros estados passivos) sistematizar a
confusão e contribuir para o descrédito total do mundo da realidade.65
Nesse ensaio, bem como em vários momentos ao longo de sua extensa obra
autobiográfica, Dali tentou explicar a aplicação de seu método. Referindo-se à sua obsessão
por uma obra de Jean-François Millet, O Angelus (Fig. 2), ele acreditava que seu pensamento
obsessivo diante dessa tela estava relacionado a um mal-estar que ele tinha sempre que via
esse quadro. Dali tinha uma impressão muito ruim sobre essa tela e, desde sua infância,
afirmava que algo nesse quadro parecia secretamente apontar para uma íntima relação entre
sexo e morte. De fato, havia uma história intrigante acerca desse quadro a qual foi revelada
depois que Dali requisitou um estudo de raios X sobre a tela. Tais estudos revelaram que
havia um esboço de uma figura geométrica semelhante a de um caixão o qual fora superposto
pelo saco de batatas. Imediatamente, Dali identificou nesse saco de batatas o motivo do seu
mal-estar. Ou seja, sua interpretação paranóico-crítica revelara uma realidade que jazia
escondida sob outra realidade aparente. Falaremos sobre isso um pouco mais no capítulo 3.
Qual a relação que Dali fazia do que entendia por paranóia com um método de
conhecimento da realidade e, mais ainda, com um método de criação?
Com uma estranha explicação para sua teoria intitulada paranóico-crítica, Dali dizia
que comparava sua estrutura psíquica à vida de um tipo de caranguejo conhecido como
Bernardo-Eremita e explicava que a estrutura dura que lhe servia de proteção seria Gala e que
ele seria o interior mole. Então, para Dali, como enfatiza Pierre Ajame, o Salvador, seria o
paranóico-mole, o interior do Bernardo-Eremita, e Gala, a crítica dura66, correspondendo à
65
Dali apud Quinet in Psicose e laço social, p. 109.
66
Ajame, P., As duas vidas de Salvador Dali, p. 64-66.
31
Dali definiria melhor seu método através da aplicação de sua teoria ao seu processo
criativo, tendo como principal objetivo atingir o conhecimento da realidade. Para tanto, ele
precisaria, antes de tudo, promover o total descrédito do que se pudesse entender como
realidade, pois, para além desta, haveria outra ainda mais real – uma super-realidade. Ele
aplicou esse método através da técnica do trompe-l´oeil com o uso de imagens duplas, como
podemos ver no quadro O homem invisível (1929-1933) (Fig.6). Segundo Dali, com o método
paranóico-crítico, as associações de idéias eram intermináveis e só podiam surgir de uma
idéia obsessiva como a que o mobilizara diante da tela de Millet. Para o artista, que se
denominou um “delírio vivente e controlado”, seu método paranóico-crítico foi um meio de
“descarregar suas angústias e contradições, com plena lucidez, fazendo com que os demais
participassem delas”68.
Dali apropriou-se do termo paranóia para utilizá-lo como significante que nomeia um
método de conhecimento da realidade. O curioso é que, com a psicanálise, o que entendemos
por conhecimento paranóico diz respeito ao conhecimento imaginário e projetivo do eu
consciente, ou seja, trata-se muito mais de um desconhecimento promovido pelo próprio eu.
Entretanto, não é difícil supor o porquê de Dali ter afirmado que a aplicação desse método
poderia operar o que ele chamou de descrédito da realidade. Uma realidade caótica, tanto no
mundo das artes como no plano pessoal provavelmente evidenciava que outra realidade
precisava ser construída, mas isso só seria possível se ele pudesse retratá-la em detalhes, aos
moldes de um fotógrafo de almas.
67
Dali, S., op. cit. v. V, p. 411.
68
Coleção Gênios da arte, p. 55.
32
Ao longo de suas explicações sobre esse método, Dali enfatizava que, para que um
artista pudesse ser considerado grande e permanecer na cultura, era preciso voltar à tradição e
às artes clássicas. Em sua autobiografia transcrita por seu amigo Jean-Louis Pauwels, Dali
explicava seu fascínio pelo conhecimento:
Percebemos, portanto, que Dali apropriou-se das idéias do mestre da psicanálise ao seu
modo e, assim, conseguiu elevar sua paranóia-crítica ao status de um método que se propunha
a subverter o olhar ingênuo das pessoas sobre a realidade. Se o artista surrealista dalinizou a
teoria de Freud, vejamos em que pontos dos textos freudianos ele provavelmente se apoiou.
Iniciamos nosso percurso falando do efeito das guerras sobre a arte, a literatura e a
humanidade no início do século XX. Feito esse percurso, podemos ver que à destruição
sucedeu-se, inevitavelmente, a criação. Isso não parecia ser nenhuma novidade para Dali que
via no cataclismo uma oportunidade para regeneração:
Com tal idéia em mente, Dali evidenciava a necessidade do artista operar ativamente
com e sobre a realidade para que algo de novo pudesse surgir. Em seu livro Sim ou a
paranóia (1971/1974), Dali afirma:
69
Dali apud Pauwels, op. cit., p.212-213.
70
Dali apud Pauwels, op. cit. p. 92-93.
71
Dali, S., Sim ou a paranóia, p 16-17.
33
O ensaio de Freud não é simples, mas percebemos que um dos pontos de grande
interesse para os surrealistas e para Dali versa sobre a questão da realização do desejo. Isso se
evidencia através das formações substitutivas, da fantasia e dos devaneios do personagem
Norbert que vai à Pompéia em busca do seu objeto de desejo - Gradiva. Freud faz uma
analogia entre o destino de Pompéia – soterrada e depois escavada – e o destino das idéias
intoleráveis que deverão também ser escavadas em análise. Idéias de conteúdo erótico,
incestuoso, ou seja, que apontam para o desejo. A análise dessa obra literária é complexa e
longa, mas o que nos interessa ressaltar aqui é que esse foi o texto-base que inspirou todo
movimento surrealista.
Mas como Dali se apropriou desse artigo de Freud para construir seu método? Assim
como Norbert elegera Gradiva como objeto de desejo, Dali escolheu Gala como sua musa,
tendo sido também, segundo ele, a mulher que o salvara de seus delírios. Ele atribuía a ela a
criação de seu método paranóico-crítico que surgiu como fruto dessa união. Dali repetiu
várias vezes, ao longo de toda sua vida, que o amor de Gala operara sobre ele “uma
verdadeira cura psíquica”73. Ele dizia: “Gala me curou de todas as minhas angústias. [...] Ela
canalizou e sublimou meus desvios nas formas clássicas. E foi o classicismo que me salvou
do delírio”74. A analogia feita por Dali entre Gradiva e Gala é clara, principalmente quando
lemos o que Freud nos diz sobre o que ele julgava ser a cura do delírio do personagem de
Jensen, o Norbert:
72
Freud, S., AE, v. IX; ESB, v. IX.
73
Dali, S., op. cit. v. V, p. 474.
74
Dali apud Pauwels, op. cit. p. 53.
34
Dali dizia que antes de ser curado pelo amor de Gala ele confundia delírio e realidade
e afirmava o seguinte:
Em seu livro Sim, ou a paranóia77, Dali compilou vários textos onde - de modo
exaustivo e confuso - tentava explicar seu método paranóico-crítico como também o fizera em
seu ensaio sobre o mito trágico. Não vamos nos repetir sobre isso, pois falaremos um pouco
mais sobre esse assunto nos capítulos 2 e 3, mas vale a pena ressaltar que é no livro
supracitado que ele menciona a tese de Lacan, Da psicose paranóica em suas relações com a
personalidade (1932). Dali elogia as idéias do amigo por estarem de acordo com o que ele
propusera em seu método e diz que ele teria se inspirado no trabalho de Lacan e não o
contrário, como muitos tendem a pensar. Não nos interessa saber o que veio primeiro, se a
tese de Lacan, ou as teorias de Dali, mas apontar que havia nesse momento uma estreita
relação entre o pensamento de ambos. Referindo-se à tese de Lacan, Dali chegou a dizer: “É a
ela que devemos a motivação de conseguirmos, pela primeira vez, uma idéia homogênea e
total do fenômeno, fora das misérias mecânicas onde se atola a psiquiatria corrente”78. Vemos
nesse elogio a Lacan um auto-elogio de Dali, uma vez que seu método, assim como a tese
lacaniana, enfatiza o aspecto transformador da realidade que se dá por meio do delírio de
interpretação. Em sua tese, Lacan deixa isso claro quando - discorrendo sobre o diagnóstico
de sua paciente - afirma: “No interior do quadro existente da paranóia, nosso diagnóstico
ficará, sem dúvida alguma, com o de delírio de interpretação.”79. Dentre os vários aspectos
75
Freud, S., AE, v. IX, p.32 ; ESB, v. IX, p. 42
76
Dali apud Pauwels, op. cit. p. 55.
77
Dali, S., Sim ou a paranóia.
78
Dali, S. idem, p. 31.
79
Lacan, J., Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade, p.202.
35
que caracterizam tal quadro, Lacan também nos fala sobre “a extensão progressiva do delírio,
a transformação do meio externo”80 (idem).
Não temos intenção, para o propósito desse trabalho, de discorrer sobre a questão
nosográfica envolvendo a paranóia ou de corrigir as idéias dalinianas a esse respeito, mas
apontar como esse significante capturou Dali e como foi importante na escrita de seu método.
Parece-nos, contudo, importante ressaltar que também os significantes conhecimento,
transformação e realidade estejam presentes no método daliniano de criação a partir do caos.
Tal fato aponta para a íntima relação entre o conhecimento e o que é da ordem da visão, ou
seja, aponta para o fato de que o eu sendo sede das identificações imaginárias é, em sua
essência, paranóico e, por isso mesmo, distorce aquilo que entende por realidade. Como nos
relembra Philippe Julien, “Ora, o eu humano se constitui por identificação graças à visão do
objeto e conforme a mesma bipolaridade. O eu tem, pois, uma estrutura paranóica, ou não
é.”81. Assim, a aplicação de seu método à criação de suas obras de arte nos faz ver como Dali
pretendia nos ensinar sobre isso que, com Freud, nomeamos de realidade psíquica.
Embora Dali tivesse lido muito sobre ciência, filosofia, psicanálise e psiquiatria,
parece-nos claro que Freud foi sua maior referência. Não podemos afirmar que Dali tenha lido
toda obra de Freud, mas tudo indica que ele leu, pelo menos, os textos onde Freud trabalha a
fantasia, os delírios e os sonhos, além daqueles que versam sobre a paranóia. Como sabemos,
o caso clássico de Freud sobre a paranóia foi escrito a partir da análise que ele fez do relato
das memórias de Schreber, em 1911. Entretanto, há textos anteriores e posteriores a esse que
podem nos esclarecer um pouco mais quanto às idéias propostas no método daliniano de
conhecimento e de reconstrução da realidade.
80
Lacan, J., idem.
81
Julien, P., As psicoses: um estudo sobre a paranóia comum, p. 13.
82
Freud, S., Rascunho H, AE, v. I, p.246; ESB, v. I, p. 253.
83
Freud, S., Rascunho K, AE, v. I, p.261; ESB, v. I p. 267.
36
as causas precipitantes do adoecimento devem ser de natureza sexual e devem ter ocorrido na
infância, período anterior à maturidade sexual, fato que também ocorre na histeria. A
diferença reside no fato de que no caso da neurose obsessiva e da paranóia a experiência é
vivenciada como ativa, sendo seguida da sensação de prazer. Tal vivência irá se transformar
posteriormente em angústia, culminando, finalmente, no adoecimento psíquico e na produção
de sintomas.
esplêndido, é verdade, mas pelo menos de maneira a poder viver nele mais uma vez”87. Logo
depois, acrescentará que “A formação delirante, que presumimos ser o produto patológico, é,
na realidade, uma tentativa de restabelecimento, um processo de reconstrução”88.
Assim, nesse mesmo artigo sobre a perda da realidade na neurose e na psicose, Freud
ressalta que, na neurose, o sujeito ignora a realidade sem, no entanto, repudiá-la. Entretanto, é
possível verificar que, mesmo na neurose, há inúmeras tentativas de substituir uma realidade
desagradável por outra, o que só pode acontecer por intermédio do mundo de fantasia que o
neurótico cria para si, afastando-se, portanto, do fragmento da realidade sentida como
intolerável. Na psicose, o dano causado ao eu tentará ser reparado com o repúdio da realidade
através da tentativa de substituí-la por outra. Freud assinala que, no caso da psicose, a
reparação da perda da realidade se dará “[...] não às expensas de uma limitação da realidade –
87
Freud, S., op, cit., AE, v. XII, p.65; ESB, v. XII, p. 78.
88
Freud, S., op.cit., AE, v. XII, p. 65; ESB, v. XII, p. 78.
89
Freud, S., “Neurose e psicose”, AE, v. XIX, p.155; ESB, v. XIX, p. 169.
90
Freud, S., op. cit., “Neurose e psicose”, AE, v. XIX, p.157; ESB, v. XIX, p. 169.
91
Freud, S., “A perda da realidade na neurose e na psicose”, AE, v. XIX; ESB, v. XIX.
92
Freud, S., “A perda da realidade na neurose e na psicose”, AE, v. XIX, p. 195; ESB, v. XIX, p. 207.
38
como na neurose -, senão por outro caminho, mais soberano: pela criação de uma nova
realidade, que já não oferece o mesmo motivo do escândalo daquela que fora abandonada
[...]”93. Isso ocorre porque na psicose há a prevalência do imaginário em detrimento do
simbólico. Já na neurose, o imaginário está em íntima relação com o simbólico, o que se
evidencia pelo fato de que o sintoma neurótico é da ordem de uma escrita enigmática e,
portanto, representa um significado que precisa ser decifrado.
Ao final desse texto sobre a perda da realidade, Freud assinala que um comportamento
‘normal’ ou ‘sadio’ combinaria certas características de ambas as reações idealmente falando,
ou seja, o sujeito repudiaria a realidade tão pouco quanto uma neurose, mas depois, ele se
esforçaria como acontece em uma psicose, por efetuar uma alteração dessa realidade através
de um processo ativo de criação sobre a mesma. Desse modo, o sujeito dito ‘normal’
continuaria no laço social sem se confinar em seu narcisismo como ocorre nas psicoses ou nas
neuroses graves.
Feito esse breve percurso nos textos freudianos, vemos o quanto Dali se inspirou na
psicanálise para a criação do seu método paranóico-crítico de conhecimento da realidade. Para
Dali, a aplicação de seu método pressupõe uma atitude ativa sobre a realidade que se pretende
modificar, ou seja, ele rejeita a realidade para poder reconstruí-la sobre novas bases. A
aplicação desse método na obra pictórica de Dali é visivelmente perceptível, ou seja, ele nos
‘incita’ a olhar para a realidade aos moldes de um paranóico, isto é, vendo sempre outra coisa.
Aproximando-se, talvez, do que Freud idealizava como normalidade, o artista de Figueres não
se resignou a sucumbir sob os destroços da catástrofe subjetiva que lhe acometera por conta
de sua expulsão da casa paterna. Além de ler os textos freudianos e de se debruçar sobre os
estudos da ciência, Dali também empreendeu uma rigorosa revisão da técnica utilizada pelos
artistas clássicos, fazendo, desse modo, um retorno ao antigo para criar algo novo. Sua
intenção era clara: queria se reinventar.
93
Freud, S., op. cit., AE, v. XIX, p.194-195 ; ESB, v. XIX, p. 206.
39
extrema importância que Dali dava aos estudos da ciência de seu tempo poderia nos induzir
ao equívoco de crermos que suas obras que eram puramente racionais. Pelo contrário, a
ciência permitia-lhe ser cada vez mais surrealista em suas propostas, o que culminaria, a partir
dos anos cinqüenta, em uma atitude mística.
Sua atitude renascentista tinha a ver com a reconstrução de ruínas. Imprimindo sobre
o ‘velho’ uma escrita própria, ele reconstruiu um antigo museu que fora destruído pela guerra
civil espanhola, transformando-o em seu Teatro-museu Gala-Dali (Fig.7). Do mesmo modo,
conseguiu restaurar um Castelo em Púbol (Fig. 8) para presenteá-lo a Gala. Partindo de um
antigo casebre que pertencera à viúva de um pescador da região de Cadaqués, Dali construiu,
após vários anos, a casa (Fig. 9) onde passaria a viver com Gala depois da expulsão de casa
pelo pai. Aliás, foi na baía de Port Lligat e no rochoso Cabo Creus – regiões litorâneas da
cidade de Cadaqués - que Dali se apropriou dos significantes da natureza para reimprimi-los
ao longo de sua obra. Sobre isso falaremos mais detalhadamente no próximo capítulo.
94
Dali, S., op. cit., p. 107.
40
Em suas telas, verificamos uma repetição dos recortes dessa região, em especial, do
litoral de Port Lligat juntamente ao Cabo Creus, em Cadaqués. Tal fato nos fez pensar que
Dali não escapou da influência desse ‘Outro geográfico’, ou seja, disso que tento evocar como
algo da ordem de um real simbolizável que envolveu o artista através das histórias contadas
pelo povo da região bem como a história de sua própria família em relação a esses lugares.
Um real cuja influência em sua vida o faria tecer com palavras e imagens a história de seu
nome.
95
Roig, S., Dali, El triángulo de L’Empordà, p. 203.
96
Todas as colagens de fotos referentes às casas-museu e ao litoral nordeste da Catalunha foram retiradas do livro de Sebastà
Roig, Dalí, El triángulo de L’Empordà.
42
2.1 O “Outro geográfico” na obra de Dali - uma estética entre ruínas e rochas
Dali é o cabo Creus. Ele é um ponto de referência trágico, eriçado, da navegação interior. É
um lugar de provas e de metamorfoses, onde se fazem trocas entre o maleável e o rochoso,
onde o delírio aspirante se transforma em formas triunfantes, a angústia em iluminação, o
delírio em armadura exata, o onirismo líquido em estrutura granítica. Ele escreveu: “Dali
deve mimetizar-se no cabo Creus. E: “Minha paranóia tem a permanência e a dureza
analítica do granito.97
Esta citação é parte do livro biográfico organizado por Jean-Louis Pauwels, amigo e
biógrafo de Dali, um jornalista a quem o artista deu permissão para fazer gravações de suas
falas. O livro intitulado As paixões segundo Dali 98 (1968) é resultado das conversas dos dois
amigos, mas é o próprio Dali quem ‘fala/escreve o texto’, de modo que este passa a ser
também um livro autobiográfico. A citação acima é parte do prefácio que foi escrito por
Pauwels para introduzir os capítulos nos quais o Divino Dali tomará a palavra que também é
escrita.
O que seria uma estética entre ruínas e rochas e o que isso tem a ver com o que
concerne ao tema do Outro na teoria lacaniana? Começarei minha resposta pelo que entendi
como sendo uma estética daliniana. Como sabemos, a estética é um ramo da filosofia que tem
por objeto o estudo da natureza do belo e dos fundamentos da arte. Ela estuda o julgamento e
a percepção do que é considerado belo bem como daquilo que, enquanto uma produção
artística, mobiliza no espectador certas emoções, sejam boas ou más.
A estética daliniana é, portanto, isso que me mobilizou em suas telas como algo que
aponta para o real. Freud já havia nos alertado para esse aspecto da obra de arte em seu artigo
97
Pauwels, J.L.,op. cit. p.17.
98
Pauwels, J.L., op. cit.
99
Croce, B., Breviário de Esthetica, p. 9.
43
sobre o Estranho ao afirmar que a estética deveria ser uma “teoria das qualidades do nosso
sentir”100 (1919/1996), pois nem sempre uma obra prima se faz notória pelo belo. Ao nos
depararmos com algumas telas dalinianas verificamos que há um ar de desolação terrificante
que pode causar um desconforto íntimo, pois suas cenas parecem ter sido retiradas de um
sonho ou pesadelo, causando no espectador um sentimento estranho que mistura medo e
fascínio. Falaremos mais exaustivamente sobre esse estranho efeito que as obras de Dali
podem causar no capítulo três. Entretanto, ressaltamos que foi na decrepitude dos espaços
físicos à sua volta que Dali se inspirou para exibir, em imagens, os significantes de sua
origem e, com isso, criar seus objetos de arte surrealistas. Evidentemente, suas casas-museu
também são objetos dessa ordem.
Como poderíamos ousar falar de um Outro geográfico sem falar da história do artista
com esse lugar? Antes de irmos adiante com a teoria acerca do Outro, temos que
contextualizar o artista em sua história para entendermos melhor o que Sebastià Roig chamou
de triângulo daliniano. Ou seja, teremos que saber um pouco sobre o trajeto percorrido pelo
artista tendo como referência os lugares onde ele nasceu, viveu, e morreu e onde construiu
suas ‘casas-museu’.
Como surgiu o triângulo daliniano? Comecemos pelo início, ou seja, pelo primeiro
vértice desse triângulo, sua cidade natal, Figueres, uma pequena cidade mercantil que se
100
Freud, S., op. cit., AE, v. XVII, p.219; ESB, v. XVII, p. 237.
101
Pauwels,J.L., op. cit., p. 15.
44
localiza aos pés dos Pirineus, na fronteira com a França. O artista nasceu no número 20 da
Rua Monturiol (hoje número 6), em 11 de maio de 1904.
No prefácio do seu livro As paixões segundo Dali (1968), Louis de Pauwels descreve
Cadaqués de modo poético, lindo e, ao mesmo tempo, aterrorizante. O biógrafo tece, em
nossa mente, uma imagem granítica, melancólica e obscura do vértice do triângulo daliniano
onde o artista catalão escolheu para viver seu exílio com Gala. Ele carregaria para sempre as
lembranças das primaveras e dos verões em família, bem como seu convívio com os Pichots,
uma família de artistas de quem eram vizinhos. Escreve Pauwels:
102
Dali, S., op. cit., p. 11.
103
Dali apud Roig, op. cit., p 11.
104
Pauwels, J.L., op. cit., p.14-15.
45
A baía de Port Lligat pertence à cidade de Cadaqués e fica próxima do famoso Cabo
Creus (Fig. 10) e foi nessa região inóspita e isolada do mundo que o artista de Figueres
iniciou sua vida conjugal com a musa do surrealismo. Exilou-se em um pequeno casebre que
pertencera à Lydia, uma pescadora da região conhecida como ‘a louca’. Ao longo de muitos
anos, Dali foi comprando outras cabanas de outros pescadores, ligando-as por degraus e
corredores. No livro de arte intitulado Dali de Gala (1962), Robert Descharnes - maior
biógrafo e amigo de Dali - citará o próprio artista para que ele mesmo explique como tal
estrutura surgiu e como passou a fazer parte de sua história:
E assim, sob a influência do gênio de Dali e da força que Gala lhe conferia, esses
pequenos casebres malcuidados, - ou microcélulas, como dizia Dali – transformaram-se em
mais uma de suas obras surrrealistas, a casa-museu de Port Lligat (Fig 9).
Do mesmo modo, também iria surgir, bem mais tarde, o seu Teatro-Museu de Figueres
(Fig. 7) em 28 de setembro de 1978, sua última grande obra de arte surrealista. O artista
catalão “dalinizou” um teatro em ruínas, transformando-o em um “objeto surrealista absoluto;
um labirinto que continha a síntese do seu pensamento e de sua obra, onde o público poderia
explorar a grande cosmogonia daliniana”, como aponta Roig (2003)106. Inspirando-se no que
restou do antigo Teatro Municipal de Figueres, destruído por ocasião da guerra Civil
Espanhola (1936-1939), Dali visualizou um projeto que surgiu desses escombros e que viria a
ser o seu Teatro-Museu, berço de sua última morada. Cercado por seus pães-objetos de arte e
por esculturas, fotos de obras de seus grandes mestres, atravessado pela luz que chegava por
entre os vidros triangulares da sua tão sonhada cúpula geodésica (Fig. 11), Dali passou seus
últimos anos de vida na Torre Galatea (Fig. 12), um anexo do Teatro-Museu, ligado a este
por uma porta. A importância que Dali dava ao projeto desse museu era enorme, como
podemos verificar em vários livros de arte que relatam o feito daliniano:
105
Dali apud Descharnes, R., Dali de Gala, p. 26.
106
Roig, S., op. cit., p.34.
46
Até que ponto esse Outro geográfico tem a ver com a história de Dali?
O Cabo Creus fazia parte do que Dali julgava ser um cataclismo geológico que podia
ser comprovado através do aspecto inusitado das rochas que compunham esse cenário, pois ao
serem atingidas pelos ventos ferozes da tramontana e pela maresia, adquiriam formas
delirantemente monstruosas. Assim, as pedras de aspecto mineral e deformadas pela natureza
se convertiam em seres estranhos ou em partes do corpo, como podemos ver na rocha que deu
origem à obra O grande masturbador (1929), considerada por muitos seu auto-retrato (Fig.
13). Ele iria repetir esse mesmo perfil em várias outras telas, dentre as quais destaco: O Jogo
lúgubre (1929) (Fig. 14), O enigma do desejo – minha mãe, minha mãe, minha mãe (1929)
(Fig. 15), Vestígios atávicos da chuva (1934) (Fig. 16) e A persistência da memória (1931)
(Fig. 17).
107
In: Coleção gênios da arte, p. 88.
108
Gaillemin, J.L., op. cit., p. 15.
109
Dali apud Pauwels, op. cit, p.39.
47
Foi com a matéria-prima dos significantes vindos da natureza e dos lugares por onde
passou que Dali fazia seus quadros se transformarem nessa espécie de sonho. O que o movia
nesse sentido? Além da fascinação com esse ponto do litoral da Catalunha e das fortes
ligações infantis de Dali com Cadaqués, sabemos que o fato dele ter conhecido Gala nesse
local foi decisivo para que ele construísse com ela aí o seu segundo lar, inaugurando, com sua
musa, uma nova vida e uma outra escrita. À beira do Mediterrâneo, impregnado pelo cheiro
molhado da maresia e pelo sussurro obtuso da tramontana, ele passaria a se chamar Gala-
Dali. Sua união com Gala era de tal sorte indissolúvel que eles continuariam casados, mesmo
vivendo em casas separadas. Ainda que os dois tivessem permanecido unidos até a morte dela
em 10 de junho de 1982, o convívio sob o mesmo teto iria ter um fim em 1971 quando eles
passaram a viver em casas separadas. Sebastià Roig esclarece que tal fato se deu porque a
musa surrealista não agüentava mais as extravagâncias do artista e a agitação da vida a
dois110.
Certa vez, Dali dissera à sua amada que, um dia lhe daria um castelo, então, ele
decidiu cumprir sua promessa nesse momento conturbado da vida do casal, comprando para
Gala um castelo na região do Baixo Ampurdán.
110
Roig, S., op. cit., p. 188-189.
48
A lógica que adotei para fazer a descrição do surgimento desses ‘lares dalinianos’
segue a cronologia que o artista nos forneceu. Se guiados pela linha do tempo cronológico,
verificaremos que a última construção de Dali - considerada por ele como seu último objeto
de arte surrealista - foi o Teatro-Museu de Figueres que, não coincidentemente, localiza-se em
sua cidade natal. Tendo optado pela idéia de que a construção do ‘último’ vértice do triângulo
daliniano se amarra às suas origens, privilegiei uma lógica moebiana onde o fim e o início se
fundem em uma só obra e onde tempo e espaço apresentam-se de modo contínuo, sem
demarcações claras. Desse modo, o triângulo se forma como um único movimento no tempo e
no espaço. Pauwels nos esclarece algo muito intrigante e que, de certo modo, corrobora a
idéia de que os lugares que Dali retratou em sua obra eram ligados por uma lógica do
inconsciente: “Port Lligat quer dizer porto ligado, atado, amarrado com nós”111 (1968).
Podemos dizer, portanto, que é nessa mesma direção que supomos haver uma ligação
topológica que une esses três lugares diferentes como se fossem um só. Sem fronteiras
cunhadas por um marco topográfico, o triângulo Daliniano subverte a lógica do topos e nos
mostra que, assim como o tempo, o espaço também está submetido à realidade psíquica. Ao
terem se materializado em objetos de arte surrealistas que trazem parte da história de Dali, as
casas-museu passam a compor, junto com suas telas, o corpo de linguagem do Outro
geográfico de Dali. Em seu livro, Teoria e clínica da psicose, Antônio Quinet se refere à
floresta de significante112 (2000) e nos lembra que, do ponto de vista da psicanálise, o
significante não está colado ao significado, de modo que uma imagem no sonho pode ter valor
de palavra, tal como Freud nos ensinou na “Interpretação dos Sonhos”113 (1900/1996).
Então, sendo o sonho a via régia do inconsciente, é através de suas imagens que temos
acesso à Outra Cena. Tais imagens são - como o próprio Freud nos ensinou - o rébus do
sonho, e, por isso mesmo, estão submetidas às mesmas leis que regem o inconsciente, ou seja,
a metáfora e a metonímia. As telas de Dali são ricas em imagens oníricas onde os paradoxos
se encontram e, por isso, podemos tratá-las como significantes cujos significados não estão
realmente em correspondência ao signo que as comporta. Em seu livro A história da arte
(2008), Ernst Hans Gombrich comenta um quadro de Dali, Aparição de rosto e fruteira numa
praia (1938) (Fig. 21) nos seguintes termos:
O modo de Dali fazer cada forma representar muitas coisas ao mesmo tempo
pode concentrar nossa atenção nos muitos significados possíveis de cada cor e
111
Pauwels, J.L., op. cit., p. 15.
112
Quinet, A., Teoria e clínica da psicose, p. 7.
113
Freud, S., op. cit., AE, v. IV; ESB, v. ESB, v. IV.
49
Não era apenas a costa do Cabo Creus até Estartit, com Cadaqués ao centro,
na luz mediterrânea, que servia de cenário às telas mais célebres: também os
rochedos, recortados pelos elementos, estão na origem de todas estas
estimadas excrescências, destes objetos fósseis, destas ossificações, destes
114
Gombrich, E.. H., A história da arte, p. 594.
115
Lacan, J., O Seminário, o livro 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, p. 26.
116
Lacan, J., op. cit., p. 555-556.
117
Descharnes, R. e Gilles Neret, Dali, p. 9.
50
Não pretendo tecer uma tese sobre essa questão, nem tampouco fazer um inventário na
obra de Lacan apontando onde ele usa o termo Outro, e, assim, poder justificar essa licença
poética que me fez pensar viável isso que chamei de Outro Geográfico de Dali. O fato é que
foram suas telas que apontaram para esse caminho.
Sabemos que, em vários momentos de sua obra, Lacan fala do Outro como tesouro dos
significantes, ou seja, o código lingüístico ao qual todo sujeito está submetido desde o
momento em que é falado e desejado pelo Outro. Também a herança familiar faz parte desse
tesouro dos significantes, os ditos e os não ditos paternos, as histórias da infância, enfim, tudo
que possa se transformar em linguagem. A importância dada aos recortes geográficos mais
presentes na obra de Dali fazem parte da sua tradição familiar. Também foi nesse lugar que
ele teve suas primeiras experiências sexuais e o mais importante encontro de sua vida quando
foi apresentado à Gala.
Como dissemos anteriormente, a analogia feita entre os locais onde Dali nasceu, viveu
e morreu e o Outro surgiu pela constatação de que fragmentos de tais regiões se repetem em
sua obra do início ao fim. É precisamente por isso que ousamos elevar esses pontos
geográficos à categoria de significantes, pois parecem funcionar como fragmentos de um
sonho que insistem em retornar. Quando Dali pintou O grande masturbador (Fig. 13) ele o
fez a partir do que disse ter sido uma ‘interpretação paranóica’ de uma rocha no Cabo Creus.
Nessa tela, como sabemos, ele exibe sua enorme cabeça sustentada pelo nariz com olhos
fechados, sem boca e com várias referências à questão da angústia e do desejo. O que há de
terrível nessa tela é precisamente o fato de que essa figura monstruosamente delicada esteja
de olhos fechados e não possua boca, duas zonas erógenas castradas em sua função,
apontando para a impossibilidade de desejar.
118
Descharnes, R. e Gilles Neret, idem, p. 10.
51
podemos definir essa relação como quisermos. O termo mais simples será
“pertença.119
As obras de Dali comportam muitos significantes para os quais ele deu suas próprias
significações, as quais não nos cabe interpretar. Seu legado, no entanto, nos serviu de pretexto
para abordarmos esse assunto tão inusitado sobre o Outro geográfico como um possível
correspondente de sua estrutura de linguagem, ou melhor, do código daliniano. Sua escrita
seguiu o rumo sobre as terras por onde caminhou, tecendo um triângulo no mapa da amada
Catalunha. Em cada vértice desse trajeto, um museu-obra-de-arte-surrealista, em cada museu,
as obras que o artista catalão escolheu para fazer parte de sua história, impregnada das rochas
do Cabo Creus e da natureza de Cadaqués. Supomos que essa triangulação topológica
confirma a criação original de seu nome próprio com um novo sentido que ele mesmo
conferiu. Desse modo, toda sua vida tornou-se uma grande obra de arte, cujo legado estético
inaugural tem sido preservado e perpetuado em suas casas-museu.
Mas como o artista poderia inventariar e preservar em vida tantas representações para
representá-lo para outro significante? Como deixar esse legado, esse tesouro de significantes
para a humanidade, senão criando um espaço físico para acolhê-los? As casas-museu foram,
desse modo, surgindo como espaços lógicos que, como recipientes significantes,
representavam o artista para o mundo de vários modos. Ele era o Salvador das artes modernas
da preguiça e do caos, ele foi aquele que inventou o método paranóico-crítico de
conhecimento da realidade e o homem que, ao ter encontrado sua mulher, ‘transformou-se’
em Gala-Dali. Vemos, com isso, que a questão referida à sua existência e ao Outro sexo
também pôde ser acolhida nesses templos dalinianos.
119
Lacan, J., O Seminário, livro 16, De um Outro ao outro, p. 53.
120
Embora não caiba para o propósito desse trabalho fazer maiores esclarecimentos teóricos sobre o tema do sinthoma, faço
com esse trocadilho uma breve alusão ao termo introduzido por Lacan no Seminário, livro 23 para designar que o sinthoma é
52
Como vimos na seção anterior, a obra de Dali está definitivamente impregnada de suas
origens catalãs. Os primeiros ventos inspiradores vieram da costa norte do Mediterrâneo
através dos Pichot, amigos e vizinhos da família Dali em Cadaqués. “[...] os Pichot, família de
artistas, gente de luxo, que deslumbraram Dali criança, tocavam música clássica sobre os
rochedos atormentados, assaltados pelos respingos pegajosos. Nas noites de festa, soltavam
seus cisnes no mar, coroados de velinhas acesas.”121 (1968). Eles organizavam concertos à luz
do luar, chegando mesmo a colocar o piano de cauda sobre os rochedos, fato que inspirou
Dali em inúmeras telas onde vemos pianos em cima de lugares inusitados como rochas ou
praias. Parece sonho, mas, nesse caso foi real, aliás, tão real como um sonho. Também as
pessoas à sua volta foram imprimindo no artista uma marca, isso que, com o passar do tempo,
culminaria no estilo daliniano.
aquilo que não cai, mas modifica-se, transforma-se, para que seja possível uma escrita própria que traz em si um traço único.
Em Dali, esse traço se faz claro através de suas inúmeras criações surrealistas dentre as quais incluo suas casas-museu.
121
Pauwels, J.L., op. cit. p. 15.
122
Durante as férias de verão com sua família, em Cadaquès , Dali descobriu a pintura impressionista com Ramón Pichot,
um artista local que fazia viagens frequentes a Paris, trazendo para o menino Dali artigos e revistas de arte.
123
Dali apud Pauwels, op. cit., p. 39.
53
Uma vez aceita a sugestão dos amigos de Cadaqués, Dali ingressou na Escola de
Belas-Artes de Madrid, onde iniciou uma relação de amizade e um diálogo com alguns nomes
importantes do surrealismo, como Federico García Lorca, Luis Buñuel e Breton, dentre
outros. Com o passar do tempo e o afastamento dos ideais surrealistas apregoados por Breton,
o jovem Dali foi formando uma opinião clara sobre o que julgava ser a verdadeira obra arte, o
que não incluía a arte moderna, tampouco o cubismo de Picasso. Na realidade, tais críticas se
estenderiam também a inúmeros outros artistas modernistas que praticavam o que ele
chamava de arte caótica e preguiçosa. Para Dali, a grandiosidade de uma obra de arte está nos
detalhes, na perfeição das nuances de cores, no hiperrealismo das imagens e isso não poderia
ser feito sem um estudo rigoroso. Dali desconsiderava a arte de todo aquele que não
valorizasse a tradição. Ele se dizia um homem do Renascimento, pois além de ir contra a onda
modernista que desprezava o talento, julgava que todo grande pintor deveria,
necessariamente, retornar aos grandes mestres. Seu grande amigo e maior biógrafo, Robert
Descharnes (1993/2006), fala muito bem sobre isso ao destacar que
Podemos verificar que, mais do que a influência dos significantes do Outro artístico
em Dali, personificado nos ditos dos seus mestres admiráveis, ele seguia criando sob a batuta
de um “Outro prévio”125 (1960/1998), esse que lhe ‘ditou’ seu método paranóico-crítico.
Referindo-se à segunda das duas obras supracitadas, A invenção dos monstros (Fig. 23), Dali
explica, segundo Descharnes, que “a personagem dupla, visível no primeiro plano, que tem
nas mãos uma borboleta e uma ampulheta, é o produto pré-rafaelita do retrato duplo de Dali e
126
Gala, pintado imediatamente atrás.” O importante nesse aspecto é que, em seu retorno ao
antigo, Dali pôde renascer do seu próprio caos e, com isso, criar algo novo.
notar que, mesmo tendo grande admiração por Meissonier, este não tivesse tido nota máxima
como os outros. Entretanto, com um rigor impiedoso e cruel, o mestre Dali não poupou
aqueles a quem não admirava tendo execrado pintores como Manet e Mondrian.
Dali tinha verdadeira obsessão pela técnica e pela perfeição dos pintores do século
XVII e aconselhava aos jovens pintores dizendo, “Pintor, pinta!”, ou ainda, “não te assustes
com a perfeição, jamais a alcançarás”128 (2005). Ainda nesse mesmo volume cinco de suas
Obras Completas, Dali explica como aderiu ao título de Salvador das artes, dizendo ter sido o
filósofo e amigo Francisco Pujols o responsável por essa ‘nomeação’:
Para Dali, o artista deve almejar a eternidade e isso não seria possível para seus
contemporâneos, talvez nem mesmo para Picasso que, embora admirado inicialmente por ele,
acabaria também sendo criticado. O desejo de eternidade em Dali é marcante em toda a sua
obra, mas alcançaria sua máxima expressão a partir de meados dos anos quarenta, após a
explosão da bomba atômica. Dali entra em sua fase mística, chegando a escrever, inclusive,
em seu “Manifesto místico”130 (1993/2006) que ele era um ex-surrealista, o que, para
Descharnes, não seria possível, pois o surrealismo já fazia parte dele. O fato é que suas obras,
desde então, passam a valorizar temas religiosos e místicos, onde ele e Gala aparecem unidos
na eternidade como vemos, por exemplo, na tela A ascensão (1958) e (Fig. 25).
Possivelmente, essas são suas mais belas telas porque apontam para o que ele chamou de um
‘realismo quantificado’, ou seja, um realismo que opera de acordo com as leis da física
quântica. O resultado de uma obra é fruto de uma sobredeterminação de fatores que, como
uma explosão atômica, pode resultar em uma nova realidade como podemos ver no quadro
Galatea (1952) (Fig. 26), onde uma série de esferas compõe o rosto da mulher adorada.
Novamente, podemos verificar através da obra de Dali como se dá a operação linguajeira do
inconsciente, ou seja, imagens que, tal como significantes, condensam-se em um texto
misterioso. Dali explicava esse ‘realismo’ do seguinte modo:
128
Dali, S., op. cit., v. V., p 59.
129
Dali, S., op. cit., v. V, p. 10.
130
Descharnes, R. e Gilles Neret, op. cit., p. 157-158.
55
Cada vez mais ligado a Gala, Dali ‘pretendia’ ser imortal, mas não conseguia ver-se
sem sua cara-metade: “Se Gala desaparecesse, ninguém poderia tomar seu lugar. É uma
impossibilidade absoluta. Eu ficaria só. Queria tanto que sobrevivesse que ela se fizesse
fechar comigo num cilindro de hélio, esperando a ressurreição”132. Há quadros lindos que
apontam para esse desejo como verificamos em Crucifixão ou corpus Hypercubicus (1954)
(Fig. 27), onde Dali não pintou o Cristo sofrido, pois o que Gala está vendo “é a própria
imagem de Cristo triunfante” (Dali, apud Coleção Gênios da Arte, 2007: 82-83)133.
Do mesmo modo, a arte que se imortaliza é para ele justamente aquela que não
sucumbe ao que designou como “estigmas de decrepitude” referindo-se à arte moderna. Ao
contrário desta, ele elegeu como ‘futurista’ a obra de Rafael porque, segundo ele, a obra
‘rafaelesca’ se rejuvenesce todos os dias. Paradoxalmente, os quadros futuristas, para Dali,
estariam destinados a morrer de velhos. Ele diz o seguinte: “Rafael: eis aí um pintor futurista,
pois entende-se que continuará exercendo mais e mais influência ativa sobre o futuro”134. Dali
entendia por arte futurista tudo o que pudesse sobreviver ao caos, e exemplificava essa idéia
referindo-se às obras de grandes pintores, como as de Rafael e Vermeer, que sobreviveram à
guerra.
Dali se envolvia de tal modo com a obra dos artistas eleitos por ele como grandes que
- impregnado pelas imagens contidas nesses quadros - metamorfoseava os traços de seus
mestres em telas como A pesca do atum (1966-67) (Fig. 5). Nesse quadro, por exemplo,
percebemos a influência marcante do estilo bélico e agressivo de Meissonier (Fig.28) que,
interpretado por Dali, culminava numa tela repleta de significantes rigorosamente dalinianos.
Dali ia se apropriando dessas obras tal qual ele o fazia com as rochas do Cabo Creus e,
tomando-os como significantes, servia-se delas para tecer uma escrita singular e precisa sobre
suas telas reais.
131
Dali apud Descharnes, e Gilles Neret, op. cit., p. 164.
132
Dali apud Pauwels, op. cit. p. 55.
133
Dali apud Coleção Gênios da arte, p. 82-83.
134
Dali, S., op. cit. v. V, p. 56.
56
tipicamente paranóica” (2006)135 e acrescentava, “[...] a obra representava para ele a maior
violência e a síntese cósmica mais colossal, devido ao rigor de sua construção e ao aspecto
crepuscular dos minúsculos toques com os quais Vermeer pintara o quadro”136. Em Paris, Dali
chegou a proferir uma conferência para explicar os aspectos fenomenológicos de seu método
relacionando a figura da rendeira a de um rinoceronte. A aplicação de seu método sobre o
quadro de Vermeer também culminaria com o filme que fez com Descharnes, o qual foi
intitulado “A história prodigiosa da Rendeira e do rinoceronte”. Vemos, com isso, que a base
da aplicação de seu método está na interpretação paranóica sobre certa imagem/significante
de modo que ele a transforme - através de um processo ativo - em outra coisa, revelando desse
modo, outra realidade. Mas ele só poderia atingir essa realidade se - como esses pintores do
século XVII - pudesse reproduzi-la em detalhes.
Para poder refletir os estados de alma com precisão, Dali se valia do rigor e da técnica
desses mestres. Ele enaltecia Velásquez, dizendo que, assim como Vermeer, o pintor espanhol
“respeitava a realidade com total castidade”. Podemos dizer que, para Dali, o olho e a mão do
artista são uma só coisa:
Através dos significantes que lhe capturavam o olhar nas telas dos grandes mestres ou
na natureza a sua volta, ele elegia aqueles que se prestavam a compor parte da sua história.
Se, por um lado, os pintores que ele admirava pareciam ocupar o lugar de eu ideal, suas obras
surrealistas, por outro lado - uma vez descoladas de seus criadores maravilhosos -, passavam a
pertencer ao reino obscuro dos significantes vindos de um Outro que, para Dali, se
apresentava encarnado no significante Arte.
135
Descharnes, R. e Gilles Neret, op. cit. p. 176.
136
idem
137
Dali apud Descharnes e Gilles Neret, op. cit. p.184.
57
Também levantamos alguns pontos sobre o tema da angústia em Lacan, uma vez que é
disso que trata o texto freudiano, ou seja, da questão da emergência do afeto da angústia de
castração, que se apresenta diante de uma situação que, por ser considerada estranha, absurda,
ou mesmo, terrível, pode representar um sinal de perigo para o sujeito.
Embora saibamos que, para tratar do tema referente à angústia precisaríamos fazer um
longo percurso em Freud, relacionando-o à trajetória de Lacan, resolvemos nos deter no artigo
freudiano sobre “O Estranho”, fazendo breves menções a outros textos que toquem no tema
aqui proposto. Por esse motivo, optamos por nos deter na lição de 5 de dezembro de 1962 do
seminário sobre a angústia onde Lacan fala do objeto hoffmaniano em referência ao texto
freudiano sobre o estranho. Também é preciso ressaltar que, em alguns momentos,
recorremos a contribuições de outros autores, dentre os quais destaco Moustapha Safouan
com sua obra Lacaniana 1139 (2006).
Optamos por um estilo de escrita mais fluido com a intenção de tornar mais claro o
tema do estranho em sua relação com a angústia. Desse modo, qualquer leitor que se sinta
transferido com a psicanálise em sua conexão com a arte, poderá usufruir de nossas
articulações teóricas bem como de nossa breve contribuição com esse tema para a clínica.
138
Freud, S., op. cit. AE, v. XVII; ESB, v. XVII.
139
Saphouan, M., Lacaniana 1.
59
Nessa seção, vamos revisitar alguns pontos principais do que Freud propôs como a sua
teoria sobre o estranho no artigo “O Estranho”140 (1919/1996). Certamente, Freud utilizou tal
expressão para diferenciar sua teoria sobre o estranho daquela contida no ensaio de Ernst
Jentsch, “Zur Psychologie des Unheimlichen”, escrito em 1906 - “Sobre a psicologia do
estranho”. Esse ensaio foi traduzido por “On the psychlogy of the uncanny” na versão inglesa
à qual tive acesso141.
Ao contar uma história, um dos recursos mais infalíveis para produzir efeitos
de estranheza no conto literário consiste em deixar o leitor na incerteza sobre
se uma determinada figura na história é um ser humano ou um autômato, e
fazê-lo de tal modo que sua atenção não se concentre diretamente nessa
incerteza, de maneira que não possa ser levado a penetrar no assunto e
esclarecê-lo imediatamente.143
Após ter lido o ensaio de Jentsch, Freud faz uso do mesmo para discordar do autor no
que tange ao fator gerador do efeito do sentimento do Unheimlich no leitor. Para Freud, o
efeito de estranheza causado no leitor do conto Homem da areia não é fruto da incerteza
intelectual do personagem Nataniel sobre a boneca Olímpia ser ou não ser um objeto
autômato e sem vida. Nesse conto, repleto de situações absurdas, Nataniel se apaixona por
essa boneca cujo vulto feminino ele só podia ver de longe. Sem saber que se tratava de uma
boneca, Nataniel é colocado em uma situação de estranho encantamento por aquele ser. Desse
modo, Hoffmann consegue criar um clima de tamanha incerteza no conto que chegamos
mesmo a duvidar se tal objeto de desejo é ou não um ser animado.
Ao longo desse artigo, Freud fala sobre o tema abordado por Jentsch de modo diverso.
Fazendo inúmeras referências a autores e a obras da chamada literatura fantástica, Freud
sustenta que aquilo que despertaria o afeto da angústia no leitor seria o temor de perder os
140
Freud, S., op. cit., AE, v. XVII; ESB, v. XVII.
141
Versão inglesa de Roy Sellars (mimeo)
142
Na versão para o português do Seminário, livro 10 sobre A angústia de Lacan, utiliza-se “Homem de areia” enquanto a
versão portuguesa da Standard Edition usa “Homem da areia” (grifo meu).
143
Jentsch apud Freud, op. cit. AE, v. XVII, p. 227; ESB, v. XVII, p. 245.
60
olhos, o que é expresso através do personagem Nataniel. Freud afirma que o tema principal do
conto de Hoffmann refere-se ao chamado Homem da Areia que, segundo a lenda, machucava
os olhos das crianças desobedientes. Para Freud, a explicação para tal temor teria suas origens
nas recordações infantis de Nataniel. Esse personagem não conseguia banir de sua mente as
lembranças ligadas à morte misteriosa de seu amado pai. Além disso, Nataniel recordava-se
que, para convencer as crianças a dormir, sua mãe costumava intimidá-las dizendo-lhes que o
terrível homem da areia estava chegando. Tal recordação era acrescida de uma dose extra de
terror, pois sua babá não só confirmava essa lenda como a piorava em sua versão. Dizia-lhes
que esse homem mau jogava areia nos olhos das crianças que não fossem para cama,
incluindo, entretanto, um detalhe ainda mais terrível: ela contava que após terem sido
machucados pelos punhados de areia, os olhos, ensangüentados, saltavam de suas órbitas.
Freud viu nesse conto fantástico material para trabalhar vários temas de sua teoria
sobre a castração. Como sabemos, as articulações teóricas de Lacan sobre esse artigo
freudiano encontram-se no Seminário, livro 10. Nesse seminário totalmente dedicado ao tema
da angústia, Lacan discorre, em detalhes, sobre a relação do surgimento desse afeto com a
presença do objeto causa de desejo o qual também é causa de angústia. Como sabemos, ele
designou por objeto pequeno a tudo aquilo que aponta para a falta no sujeito que imagina já
ter possuído - algum dia em sua vida - um objeto precioso que o completava. Não se sentindo
pleno, entretanto, ele passará toda sua vida substituindo esse lugar vazio por outros objetos
que tenham, para ele, algum valor. Daí Lacan nomear esse objeto pequeno a como objeto
causa de desejo.
A boneca espreitada pelo herói do conto por trás da janela do feiticeiro, que
fabrica em volta dela não sei que operação mágica, é propriamente esta
imagem, i’(a), na operação de complementá-la com aquilo que, na própria
forma do conto, é absolutamente distinto dela, ou seja, o olho. O olho de que
se trata só pode ser o do herói, e o tema de que querem arrebatar-lhe esse olho
dá o fio explicativo de todo o conto.144
É, portanto, por esse viés que Lacan fará sua articulação em relação ao que Freud
chama de angústia de castração como um sinal de perigo, o qual, nesse caso, não só aponta
para o temor de ter seus olhos arrancados, como também de vê-los completar a boneca, ou
seja, de dar a este ser autômato sua própria alma. Completar o buraco do olhar vazado do
outro poderia equivaler, a nosso ver, à perda da própria condição de ser vivente e desejante.
144
Lacan, J., O Seminário, livro 10, A angústia, p. 58.
61
Com Freud, entendemos que o primeiro objeto miticamente perdido do sujeito é o seio
materno; com Lacan, podemos inferir que esse objeto perdido para sempre refere-se ao
próprio sujeito em sua condição primeira de objeto de desejo do Outro. Para Freud, a angústia
estaria relacionada à ausência da mãe, enquanto que, para Lacan, esse sentimento estaria
associado à presença excessiva dessa mãe. Freud nos explica que o menino - ao atravessar o
Édipo, tendo disputado o amor da mãe e feito do pai seu maior rival - abrirá mão do duelo
com a figura paterna por temer perder seu falo imaginário, ou seja, o pênis. Com Lacan,
entendemos essa passagem como o momento da construção da metáfora paterna em que, ao
ser barrado pelo pai, o sujeito se liberta de sua condição de objeto de gozo da mãe. Assim, o
pai barra a mãe e introduz o filho no mundo do desejo, mas o preço a ser pago para se tornar
um sujeito desejante é o de estar marcado definitivamente pela falta, ou seja, pela castração, a
sua e a do Outro. Parece-me que é precisamente aí que Freud localiza a de angústia de
castração, de modo que, mais tarde, toda vez que o sujeito temer passar por alguma perda, ele
poderá reviver tal afeto.
Como sabemos, com as meninas a questão edípica é diferente, ou, como diria uma
paciente obsessiva, “o buraco é mais embaixo”. Sim, o buraco feminino é bem mais embaixo
porque é mais real, pois, embora a mulher esteja referida ao falo - e, portanto, tenha o
complexo de castração, - sua angústia não se localiza no órgão, como nos homens. Portanto, a
angústia nas mulheres é mais difusa porque envolve o medo da perda do amor, fato que torna
essa demanda muito maior do que a do homem.
Será, portanto, nesse seminário dedicado à angústia, que Lacan dirá que aquilo que
causa angústia no sujeito não é a iminência da perda do objeto, mas, justamente o contrário,
ou seja, o que geraria tal afeto seria sua iminente presentificação. Podemos entender melhor
isso se lembrarmos que esse objeto designado por Lacan como objeto pequeno a é equivalente
à falta, sendo esta, portanto, equivalente ao desejo. Assim, só se pode desejar algo se isso
faltar. Se o desejo é, como sabemos, aquilo que move o sujeito em direção aos seus sonhos,
projetos e planos, podemos admitir que, ao tamponar essa falta com um objeto qualquer, o
sujeito vivencie a angústia, uma vez que esse vácuo parecerá não mais existir. Desse modo,
vemos que a saída para o sujeito diante da angústia é voltar a desejar. Em análise, a
oportunidade de falar sobre seu desconforto abre as portas para o simbólico de modo que, ao
tratar essa dor real pelo viés da palavra, o sujeito acaba revelando, pelo avesso, aquilo que já
estava lá desde sempre, ou seja, a falta. Isso é, a princípio, um pequeno resumo do que
podemos entender desse extenso e complexo seminário sobre a angústia.
62
145
Freud, S., “As teorias sexuais infantis”, A.E., v. IX; ESB, v. IX.
146
Saphouan, M., op. cit., p. 181.
63
do estranho com aquilo que a obra de Dali pode suscitar. Como sabemos, as obras de Dali são
plenas de imagens duplas e absurdas que puderam ser assim retratadas através da técnica do
trompe-l’oeil. O efeito dessas imagens outras no quadro pode surpreender o sujeito enquanto
apreciador da obra. A impressão que ele pode ter é que há um olhar a mais dentro do próprio
quadro. Isso pode gerar nele uma sensação de estranhamento diante desse objeto oculto que
olha para ele de dentro de sua tela própria, ou dito de outro modo, que o olha de dentro de sua
tela própria, ou seja, a da sua fantasia.
Tão desconfortável como esse encontro com o real nas telas de Dali foi aquele que
Freud relatou ter tido em uma viagem de trem. O relato dessa experiência de Freud encontra-
se em uma extensa nota de rodapé147 em que ele fala de seu desconforto diante da assunção da
imagem de um velho antipático e decrépito que parecia encará-lo no vagão de trem no qual
viajava. Entretanto, susto maior ele teve quando percebeu que o tal velho com ares de
decadência era ele mesmo, ou seja, tratava-se de sua própria imagem refletida no vidro da
porta do vagão. Ou seja, o outro hostil de Freud, era esse estranho familiar que sempre
habitara sua realidade psíquica. Também podemos pensar que o estranhamento de Freud tenha
a ver com o fato dele não conseguir se reconhecer como um homem cuja castração se revela
no próprio corpo.
A questão sobre a incerteza intelectual desprezada por ele para explicar o surgimento
da angústia deve ser reconsiderada aqui se admitirmos que o estranho no sujeito é o seu
próprio corpo. O jogo angustiante criado por Hoffmann entre o animado e o inanimado
presentifica esse estranho de tal modo que podemos pensar na boneca do conto como uma
metáfora da condição última do sujeito, isto é, a de objeto caído e sem vida, ou seja, a de um
cadáver. Vemos, portanto, como o imaginário pode apontar para algo do real, ou seja, que a
imagem dúbia da boneca aponta para o real da morte. Da mesma forma, a experiência pessoal
de Freud com sua própria imagem refletida corrobora com essa idéia, ou seja, a de que o
estranho é, em última instância, o próprio sujeito.
147
Freud, s., op. cit. AE, v., XVII p. 247; ESB,v. XVII, p. 265.
64
Para Freud, o tema do duplo diz respeito ao fato de que, ao se deparar com sua
imagem refletida, há certa confusão de identidades onde o sujeito, parece ficar,
momentaneamente, na dúvida sobre seu eu, substituindo-o por um estranho. Ele cita,
inclusive, o trabalho de Otto Rank sobre o duplo, apontando a relação desse tema com os
reflexos nos espelhos, as sombras e os espíritos guardiães. Rank fala sobre a crença de certos
povos na imortalidade da alma, equivalendo esta ao primeiro duplo do corpo. Do mesmo
modo, os egípcios faziam imagens dos mortos em materiais duradouros, acreditando que
estariam guardando suas almas, evidenciando, desse modo, que o narcisismo primário domina
tanto a mente da criança como a do homem primitivo. Mas o duplo, Freud aponta, pode
tornar-se também uma figura persecutória porque encarna aquele que anuncia a morte como
algo de que não se pode escapar, pois “depois de haver sido uma garantia de imortalidade,
transforma-se em estranho anunciador da morte”148 (1919/1996).
Freud tenta encerrar seus exemplos sobre sua teoria do estranho dizendo que,
freqüentemente, alguns de seus pacientes homens relataram ter tido uma sensação de
estranheza diante do órgão genital feminino. Ele explica esse sentimento de desconforto de
seus pacientes comparando tal órgão ao Heim (lar) de todos os seres humanos, ou seja, ao
lugar de onde todos nós viemos, mas cuja lembrança está totalmente recalcada. O ponto alto
do texto de Freud surge quando ele diferencia o estranho na literatura fantástica daquele que
se origina dos complexos infantis, pois no caso desses últimos, o que prevalece não é a
sensação de estranhamento causada por um dado absurdo que contraria a realidade material,
pois o que conta, para o sujeito, é sua realidade psíquica. Dito de outro modo, a questão da
contradição da realidade material no caso da leitura dos contos fantásticos não é relevante
como aquela que ocorre na vida real, pois, nesse caso, o estranhamento seria originado dos
complexos infantis. Freud enfatiza que o que se vê mobilizado no sujeito quando este se
depara com alguma cena insuportável é algo que toca a sua realidade psíquica. Sobre isso
discorreremos em maiores detalhes um pouco adiante, quando falarmos sobre os efeitos que a
tela O Angelus (Fig. 2) de Millet teve sobre Dali, bem como o efeito que a obra do artista
surrealista pode exercer sobre as pessoas.
O tema da arte como meio de comoção sempre intrigou Freud. Vemos, por exemplo,
como ele já falava nesse assunto no seu artigo de 1908, “Escritores criativos e devaneio”,
148
Freud. S., op. cit., AE, v. XVII, p 235.; ESB, v. XVII, p. 252.
65
chegando a chamar o escritor criativo de “estranho ser”, pois não entendia como este poderia
“despertar-nos emoções das quais nem nos julgávamos capazes” (1908/1996)149.
Onze anos depois, ele continuaria insistindo no assunto, mas de modo diferente. No
artigo “O estranho” (1919/1996) ele nos fala dos escritores imaginativos como aqueles cujas
regras são aceitas pelo leitor, ou seja, nós já sabemos, previamente, que algo nos
surpreenderá. Facilmente, aceitamos idéias absurdas em seus escritos, pois “nesse caso, todo o
estranhamento que havia aderido a essas figuras se dissipa, pois elas constituem as premissas
dessa realidade poética”150. Na experiência real, diferente da ficção, o que se sente como
estranho está definitivamente ligado ao nosso ambiente psíquico, ou seja, àquilo que deveria
ter ficado recalcado, mas que veio à tona. Ainda que saibamos que não precisamos de uma
imagem concreta para que possamos concebê-la, é interessante notar que os exemplos usados
por Freud para iniciar sua discussão sobre o efeito do estranho sejam exclusivamente de
textos literários.
Partindo da segunda teoria de Freud sobre a angústia, onde ele postula que ela é a
causa do recalque e não o contrário, Lacan nos dirá que esse afeto está ligado ao eu, sendo,
portanto, um sinal do real que invade a ordem imaginária dessa instância psíquica. O duplo -
sendo ele esse objeto estranho, que é o próprio sujeito -, parece, enfim, revelar que algo no
corpo aponta para um real não representável. Em “Inibição, sintoma e angústia”151
(1925/1996), Freud fala sobre esse sinal de perigo, referindo-o a uma possível perda, mas,
com Lacan, podemos entender isso de modo diferente. Lacan nos diz, por exemplo, que é o
jogo de fort-da da criança que garante a esta sua condição de desejante, pois enquanto a mãe
lhe faltar em presença, o desejo se manterá. Do mesmo modo, recorda-nos Saphouan, “não é a
nostalgia do seio materno que engendra a angústia, mas sua iminência”152 (2006).
Após esse percurso, podemos entender que o efeito do estranho, enquanto gerador do
afeto da angústia, tem a ver com essa presença intrusiva do objeto a na sua vertente real.
Finalmente, podemos considerar que, sendo somente na falta que o sujeito pode desejar, a
emergência da angústia, ainda que pelo avesso, pode alçá-lo novamente à condição de
desejante. Mas temos que considerar que o problema será um tanto maior se tal objeto se
apresentar em sua face real, ou seja, aquela que se encontra atrelada marcadamente à pulsão
de morte.
149
Freud, S., op. cit., AE, v. IX, p.127; ESB, v. IX, p. 135.
150
Freud, S., op. cit., AE, v. XVII, p.249; ESB, v. XVII, p. 267
151
Freud, S., “Inibição, sintoma e angústia”, AE, v. XXII; ESB, v. XXII.
152
Saphouan, M., op. cit., p. 181.
66
Após termos feito essa necessária retomada do texto freudiano sobre o estranho,
falaremos agora sobre o efeito que a tela O Angelus (Fig. 2), de Jean-François Millet teve
sobre Salvador Dali. Nessa seção, portanto, trataremos desse tema através de vários textos,
uns colhidos em biografias de Dali, outros colhidos em relatos autobiográficos do próprio
artista.
Se o fenômeno do duplo especular foi motivo suficiente para que Freud trabalhasse o
tema da angústia, podemos pensar que, para Dali, não seria diferente. Entretanto, o duplo de
que se trata em Dali apareceu para ele de modo inusitado. Escondido sob as imagens de uma
tela de cunho aparentemente religioso, jazia algo que o atormentou por muitos anos. Refiro-
me ao quadro de Jean-François Millet, o Angelus (1859). O que tanto atordoava Dali nesse
quadro? Sua resposta a essa questão foi construída nos anos 1930 sob a forma de teoria, ou
seja, através da construção do que ele intitulou método paranóico crítico de interpretação da
realidade.
De fato, havia uma história intrigante acerca desse quadro, à qual Bernard Nominé
também alude em seu livro Psicoanálisis de la vida amorosa154 (2007), apontando para o fato
de que Millet teria originalmente pintado um quadro para representar uma catástrofe agrária
que culminou com a escassez das colheitas de batatas. Aos pés da mulher, como podemos
notar, há um cesto com batatas podres marcando o tom melancólico expresso pelo olhar
lamentoso dos camponeses diante da destruição da terra. Dali interpreta essa cena referindo-se
ao mal-estar provocado pelo ar de desolação dos camponeses, pois julga que eles estariam
velando um filho morto, embora este não esteja visível na tela.
Conhecido pelo realismo de suas telas, Millet aludia nesse quadro à miséria humana e
à pobreza do povo das zonas rurais. Diante de tamanha desolação suscitada pela cena,
153
Dali, S., op. cit., v. V.
154
Nominé, B., Psicoanálisis de La vida amorosa, p. 80.
67
aconselharam a Jean-François Millet que conferisse a sua tela um tom menos dramático. Esse
quadro ficara sem título por vários anos, até que Millet aceitou incluir uma igreja lá no fundo
da tela de modo que sua pintura tomaria um sentido religioso. O quadro se popularizou
largamente, sendo uma das telas mais conhecidas de Millet, de modo que suas cópias
passaram a constar em vários objetos do dia-a-dia das pessoas. O mal-estar ao qual a obra
aludia foi substituído por uma estética ‘politicamente correta’. Supostamente, o disfarce
efetuado pelo belo religioso e contornado pelo cesto de batatas daria conta de esconder o real
da angústia diante da destruição. Assim, o belo e o horror, como ‘gêmeos dizigóticos’,
certamente têm a mesma origem. Ambos apontam para o que Lacan chamou de Heim, “esse
lugar que representa a ausência em que estamos”, ou seja, “um ponto situado no Outro para
além da imagem de que somos feitos”155 (1962/2005). Aliás, é do órgão sexual feminino,
enquanto estranho-familiar, que trata esse Heim, cujo buraco precisa ser tamponado com
algum disfarce primoroso. Como assinala o próprio Freud, esse lugar unheimlch “[...] é a
porta de acesso ao antigo reino da criatura, ao lugar onde cada um já morou no princípio”156.
No ‘Mal-Estar na Civilização’ (1930/1996), Freud diz que a fruição do belo é uma das
formas de se buscar a felicidade. E, mesmo que não creia em uma felicidade plena, ele afirma
que:
Sobre a questão do mal-estar diante das regras que a sociedade nos impõe, Lacan
adota uma visão bem freudiana. Vemos como ele abordou essa questão no seminário sobre a
ética. Nesse ponto de sua teoria, Lacan afirma que o bem é uma barreira para o desejo, uma
vez que a noção de bem está intimamente ligada às leis morais e aos bons costumes. No
capítulo sobre “A Função do Belo” (1960/1997), Lacan afirma que há uma relação do belo
com o desejo, ainda que esta seja ambígua, pois:
Por um lado, parece ser possível que o horizonte do desejo seja eliminado do
registro do belo. E, no entanto, por outro lado, ele não deixa de ser manifesto,
e como foi dito desde o pensamento da Antiguidade até São Tomás, que sobre
isso fornece fórmulas muito preciosas, que o belo tem por efeito suspender,
155
Lacan, J., op. cit., p.58.
156
Freud, S., op. cit. AE, v. XVII, p. 244; ESB, v. XVII, p.262.
157
Freud, S., “O mal-estar na cultura”, AE., v. XXI, p.82; ESB, v. XXI, p. 90.
68
Mas como ele mesmo dizia, Dali era um homem da Renascença e, como tal, estudou
os clássicos e se valeu da ciência em causa própria, ou seja, na direção inversa do discurso
civilizatório. Afinal, havia algo de muito estranho na tela de Millet que suscitava nele um
tremendo mal-estar desde sua mais tenra idade. Ao invés de esconder a fonte de tamanho mal-
estar, Dali o faria vir à tona.
Não podemos afirmar que Dali sabia da história envolvendo a mudança ‘estratégica’
feita no quadro por Millet, mas sua inquietação diante dessa imagem levou-o a solicitar
estudos de raios X ao museu do Louvre sobre esta tela. Fato é que ele descobriu que, sob a
pintura do cesto de batatas havia, realmente, o esboço de algo parecido com um caixão, dentro
do qual ele julgou estar o filho morto do casal de camponeses. A partir de então, Dali escreve
O Mito trágico do Angelus de Millet159 (1963/2005), referindo-nos ao seu método paranóico
crítico. Uma mistura de realidade, lembranças e ficção se convertem na sua tese sobre o tema
mítico da morte do filho. Em sua autobiografia Vida Secreta (1942/2003), Dali fala sobre o
quadro:
A resposta de Dali para tentar dar conta da sua tragédia particular adquiriu ares de
mito, mas com valor de verdade. O filho morto do casal de camponeses, que não aparece
explicitamente no quadro, equivale desse modo, à imagem que Dali fazia do irmão morto,
sendo o próprio Dali aquele que viria substituí-lo. Então, supomos que a explicação que Dali
dá para o seu nascimento, seguido à morte do irmão do mesmo nome, aponta
simultaneamente para o sexo e para a morte, afinal ele fora gerado sobre o leito de um luto
que não se deu.
Como sabemos, Dali foi um leitor da obra de Freud e apreciador dos trabalhos de
Lacan. Sendo assim, muitas de suas explicações mirabolantes sobre esse quadro se baseiam
nas leituras que ele fez dos textos freudianos e em seu convívio com intelectuais ligados à
158
Lacan, J., O Seminário, o livro 7, A ética da psicanálise, p.290.
159
Dali apud Ajame, op. cit. p. 64-66.
160
Dali, S., op. cit. v. I, p. 347.
69
psicanálise, mas isso não retira de suas interpretações o caráter de originalidade. Prova disso é
que, ao longo de sua interpretação sobre o Angelus, Dali dirá que o camponês que vemos no
quadro estaria, na realidade, escondendo uma ereção sob seu chapéu. Aludindo à relação
sexual de seus pais como o fator gerador de sua angústia, Dali fala do tema mítico da morte
do filho do casal de camponeses referindo-se à sua própria história e à do irmão, morto algum
tempo antes de seu nascimento. Além disso, faz questão de apontar que a mulher no quadro
representaria uma figura fálica cujo maior interesse seria o de se fazer fecundada como
podemos notar no seguinte relato:
Essa mãe, que poderia muito bem ser uma variante da mãe fálica com cabeça
de abutre dos egípcios, usa seu marido estranhamente “despersonalizado”
como um carrinho-de-mão com o fim de enterrar seu filho e, ao mesmo
tempo, de se fazer fecundar, sendo ela mesma a terra-mãe nutridora por
excelência.161(1963/2005)
Assim, para Dali, o sexo dos pais traz, imaginariamente, o filho morto de volta.
Podemos agora fazer uma breve articulação com o conto de Hoffmann, pois, embora a
angústia de Nataniel apareça em vários momentos dessa história, Lacan ressalta um trecho em
que isso é insuportável para o herói do conto. Refiro-me ao momento em que Nataniel teme
ter seus olhos arrancados para completar o furo no mesmo local no rosto da boneca. Para Dali,
podemos supor que o insuportável era justamente saber disso, ou seja, que sua função seria a
de ser, ele próprio, aquele que veio ao mundo para tampar o buraco que a morte do irmão
deixou.
A partir de seu segundo encontro com o Angelus, Dali deu início à criação do seu
método paranóico-crítico de conhecimento da realidade, como veremos logo adiante. Para
Dali, não há outra realidade que não a psíquica, ou seja, aquela que tudo distorce. Assim,
através de sua obra, o artista antecede o analista, pois ele tenta nos ensinar sobre a castração
bem antes de termos chegado a ela. Afinal, é justamente com isso que nos confrontamos ao
final de uma análise, ou seja, com nossa condição originária de objeto. É, portanto, a realidade
psíquica que parece importar em todos esses reencontros. Freud, ainda no seu artigo sobre o
estranho, faz questão de apontar que, “[...] quando o estranho se origina de complexos
161
Dali, S., op. cit. v. V., p. 408.
70
infantis, a questão da realidade material não surge; o seu lugar é tomado pela realidade
psíquica”162 (1919/1996).
Nasci duplo. Meu irmão, primeiro ensaio de mim mesmo, gênio extremo e
portanto inviável, vivera apesar disso sete anos, antes que os circuitos
acelerados de seu cérebro pegassem fogo. Por causa desse Salvador, fui o
bem-amado que se ama demais. Não há para criança pequena choque mais
catastrófico do que o amor em demasia, e esse exagero de amor-por-causa-de-
um-outro-eu-mesmo, eu o sentiria com violência e a extensão que o mundo
simbiótico e indiferenciado dos primeiros anos permite. À borda desse
abismo, eu construiria a fortaleza gelatinosa da paranóia [...]163
Mas como e quando se deu o encontro de Dali com o estranho nessa tela?
Em uma extensa nota de rodapé de sua autobiografia Vida Secreta de Salvador Dali
(1942/2003), ele afirma:
Através de seus biógrafos e dos relatos do próprio Dali, sabemos que sua expulsão da
Escola de Belas Artes de São Fernando em Madri se deu por decreto do rei Afonso XIII em
20 de outubro de 1926 – um decreto real - e isso teria abalado definitivamente sua relação
com o pai. Entretanto, será o seu envolvimento com Gala que colocará pai e filho em pé de
guerra, culminando com sua expulsão de casa. Após tantas expulsões, ele se viu amparado por
Gala e com ela foi viver em Cadaqués.
162
Freud, S., op. cit., AE, v. XVII, p.248 ; ESB, v. XVII, p. 265.
163
Dali apud Ajame, p. 38-39.
164
Dali, S., op. cit., p. 346.
71
Como vimos, as interpretações de Dali sobre esse quadro apontam para a relação entre
sexo e morte. Subjacente a essas elucubrações dalinianas, há o tema do objeto de desejo que
ele foi para os pais e sua relação com a imagem do filho morto do casal de camponeses. Em
quase todas as suas interpretações, Dali refere-se à angústia que sentia diante da emergência
de sua própria imagem como objeto de desejo exclusivo do Outro. Aliás, vemos como esse
assunto atormentava Dali. A tela O enigma do desejo: minha mãe, minha mãe, minha mãe
(1929) (Fig. 15), parece evidenciar sua angústia diante do desejo do Outro materno em
relação ao seu nascimento. Que lugar ele ocupava no desejo desse Outro, o de objeto de
desejo ou de gozo? Como escapar disso?
Uma resposta possível seria admitirmos que sua união com Gala operou, para ele,
como um suporte extra em sua estrutura, impedindo-o que sucumbisse à catástrofe subjetiva
que lhe acometera por ocasião de sua expulsão de casa. Afinal, Dali sentiu-se ejetado da casa
paterna tal qual um objeto. Reviver isso foi insuportável para ele, mas Gala o acolheu
conferindo-lhe outro contorno. É precisamente nesse ponto que supomos que Gala tenha
funcionado para Dali como um duplo especular em sua vertente amorosa, contrapondo-se à
imagem do irmão morto que encarnaria, para o artista, a vertente do duplo anunciador da
morte.
Ainda nesse seu mito trágico, Dali compara sua vida conjugal à vida de um tipo de
caranguejo conhecido como Bernardo-eremita. O crustáceo tem este nome porque vive
165
Dali apud Ajame, op cit., p. 100.
72
recluso dentro de sua concha protetora. Dali propõe a seguinte equação para explicar sua
união com Gala: o paranóico seria o mole; e a crítica, o duro. Então, Salvador, seria o
paranóico-mole, o interior do Bernardo-eremita, e Gala, a crítica dura, correspondendo à
carapaça, à concha do caranguejo solitário de aparência esquisita (1986)166. Sua obsessão por
imagens duplas teria surgido daí, segundo o próprio Dali, de modo que o Angelus de Millet
seria inserido em vários de seus quadros. Há uma tela sua que parece ilustrar muito bem o
lugar que Gala ocupava em sua vida. Bernard Nominé167 (2007) comenta a tela O Angelus de
Gala (1935) (Fig. 30), apontando que o que vemos é Gala enquanto esse duplo especular de
Dali, posicionada de tal modo no quadro que sua imagem tampona o vazio percebido por Dali
na cena do Angelus. Vazio que, segundo Dali, o próprio Millet tentara cobrir com o saco de
batatas.
Eis o destino do estranho para Dali, lá onde ele havia visto a morte encará-lo de perto,
ele colocou a arte e a mulher. E o resultado disso é sua mais linda obra de arte: sua vida com
Gala, sua história, seu nome.
3.3. O efeito do estranho na arte de Dali – que afeto suas telas suscitam?
A obra calada de Dali nos convoca um dizer. Nessa seção, trabalharei o tema do
estranho a partir de alguns relatos famosos sobre as telas de Dali. A tentativa é também de
tocar brevemente na questão da obra de arte como objeto destacado de seu criador. Muito
embora esse não seja o tema principal do trabalho em questão, traçarei algumas articulações
que julgo pertinentes para o tema abordado. Inspirando-me na clínica, construí duas histórias
166
Dali apud Ajame, op. cit., p. 64-66.
167
Nominé, B., op. cit., p. 86-87.
73
onde personagens fictícios relatam o que sentiram após terem se deparado com dois quadros
de Dali: Face da guerra (1940) (Fig. 3) e O espectro do sex-appeal (1932) (Fig. 18).
A obra de arte já é em si uma outra entidade, pois encontra-se destacada do sujeito que
a criou. Entretanto, a obra parece falar por si, ainda que isso só seja possível através dos
traços significantes herdados do Outro. Mas a arte não é o sujeito falante, ou seja, ela não é o
artista, e, desse modo, ainda que pareça falar por si, não fala de si. Operando aos moldes de
um analista, ou seja, como objeto a, a obra calada faz surgir um sujeito, e é por isso que a arte
de Dali nos põe a produzir um discurso no campo que nos concerne, ou seja, o da psicanálise.
Ao nos posicionarmos como ignorantes diante de um saber maior, que é o do artista,
podemos, enquanto analistas, fazer o discurso da psicanálise circular para bem dizermos o
que Freud e Lacan nos deixaram como herança, ou seja, o saber sobre o inconsciente.
Através da relação desse conceito lacaniano – o do objeto a – com o que Freud chamava
de das Ding, podemos nos aventurar a tecer alguns comentários sobre a criação da obra de
arte e sua relação com o inconsciente. Em seu livro Fundamentos da Psicanálise de Freud a
Lacan (2002), Marco Antonio Coutinho Jorge diz:
É importante lembrarmos que a obra de arte - enquanto referida à das Ding, sendo ela
mesma, um objeto destacado do seu sujeito criador - não se presta a interpretações do artista.
168
Jorge, M.A.C., op. cit., 140.
74
Consideramos, portanto, que toda obra de arte, inclusive a de Dali, possa conter alguma
referência à fantasia de todo aquele que se sirva dela enquanto um olhar. Mas parece-nos que
é precisamente das Ding que permanece oculto nas grandes obras de arte. Entretanto, das
Ding permanece inapreensível, irreconhecível e radicalmente irrepresentável, assim como a
morte, a mulher e o sexo o são em nosso psiquismo. Talvez seja por isso que podemos pensar
na pulsão de morte como a força que leva o artista a apontar para a existência desse buraco ao
redor do qual ele produz algum saber inconsciente. As telas de Dali nos remetem a isso que
nos olha de fora e por dentro, sendo, por essa característica, que sua obra pode, por vezes,
causar desconforto, susto, assombro, ou até mesmo, êxtase.
Mas o que se busca olhar em um quadro como o de Dali? O que buscamos em uma obra
de arte que nos causa efeitos tão estranhos? Sabemos o que Freud pensa sobre esse tema, a
partir da leitura de seus artigos “Os três ensaios sobre a sexualidade”169 (1905/1996) e “A
pulsão e suas vicissitudes”170 (1915/1996); afinal, é nesse ponto da obra que ele tece sua
elaboração da pulsão de morte no que se refere à pulsão escópica.
169
Freud, S., “Os três ensaios sobre a sexualidade”, AE, v. VII; ESB, v. VII.
170
Freud, s., “A pulsão e suas vicissitudes”, AE, v. XIV; ESB, v. XIV.
171
Freud, S., op. cit., AE, v. VII; ESB, v. VII.
75
Ainda nos “Três ensaios”172, Freud assinala que os olhos seriam a zona erógena mais
distante do objeto sexual e que, por ter essa qualidade especial de excitação, é estimuladora do
objeto sexual que chamamos de beleza. É por isso que julgamos as qualidades do objeto
sexual como excitantes. Do mesmo modo, portanto, a pulsão escópica faz de uma pessoa um
objeto excitante e charmoso, munido do caráter do belo. O objeto olhar, enquanto objeto
pulsional, surge no campo do desejo do sujeito vestindo de beleza aquele ou aquilo que causa
o desejo do sujeito. A beleza é, portanto, produto de sublimação da pulsão escópica que, de
início, só se dirige aos órgãos sexuais. Como vemos, o conceito de belo parece ter suas
origens na excitação sexual. Mas, como o próprio Freud salienta, os órgãos genitais não
portam, em si, alguma beleza, sendo esta transferida para o corpo inteiro. Ainda que os
quadros de Dali tenham inúmeras referências eróticas, muitas delas parecem não servir como
anteparo diante da castração. Ou seja, mais que velar, muitas de suas telas, parecem revelar o
horror da castração.
O efeito do estranho na obra de Dali está precisamente no fato de que muitas de suas
telas trazem em si algo do horror que afugenta e petrifica o olhar do sujeito. Na tela O
Espectro do sex-appeal (Fig. 18), por exemplo, temos um menino que parece estar submetido
ao olhar de um estranho objeto supostamente fálico, mas que se apresenta cambaleante e
frágil. Um olhar petrificado como se estivesse diante da Medusa, esse ser mítico que, para
além de qualquer referência fálica, parece estar ligado ao gozo e, portanto, à morte que faz
sumir o sujeito, transformando-o em corpo rígido, imóvel, pura carne, tal qual as rochas do
Cabo Creus.
Eis o sujeito diante do seu próprio buraco oculto, isso que com Lacan chamamos de
objeto a, ou objeto causa de desejo; ou de seu duplo, ou de das Ding, ou mesmo, esse outro-
eu-de-eu-mesmo, como vimos nas articulações freudianas/dalinianas sobre o estranho familiar
e suas relações com a angústia de castração. Talvez seja por isso que uma obra de arte nunca é
a mesma em seus efeitos para diferentes pessoas. Assim como na relação sexual não podemos
compartilhar de nossa fantasia, não podemos compartilhar de uma obra no que diz respeito à
posição subjetiva de cada um. É por isso que a função dos críticos de arte e dos teóricos é um
tanto arriscada, uma vez que são eles os sujeitos falantes e não o artista criador. Os leigos
apreciadores, sendo menos avisados disso que os olha, podem nos surpreender com as mais
variadas visadas sobre esse olhar que também os olha.
172
Freud, S., op. cit., AE, v. VII; ESB, v. VII.
76
Como exemplo disso, traremos duas opiniões bem interessantes a respeito dos quadros
dos surrealistas e também sobre os de Dali. A obra de arte surrealista, bem como a obra de
Dali, sempre foram alvos dos mais variados comentários e impressões, como poderemos ver a
seguir através de dois relatos históricos muito importantes:
Pintam assim, porque vêem as coisas assim, então esses desgraçados deveriam
morrer em um departamento do Ministério do Interior, ou ser recolhidos ali
para esterilizá-los, a fim de evitar que se propague sua desgraçada herança. Se
não vêem as coisas como as pintam, e apesar de tudo, seguem obstinados em
seu estilo, então esses artistas deveriam ser tratados como criminosos que
173
atentam contra o Estado. (Adolf Hitler, 1937)
173
In Coleção gênios da arte, p.93.
174
Freud apud Jorge, op. cit. p. 93.
77
(Fig. 3). A tela exibe uma caveira povoado por caveiras em seus orifícios - uma imagem
terrível por sua alusão explícita à morte. No instante em que ele se deparou com a tela, ele
ouviu um trovão e, logo em seguida, começou a chover. Apavorado diante do ‘sinal’ que os
‘deuses lhe enviaram’, ele deixou a livraria abruptamente temendo ser punido por ter se
envaidecido de sua sorte. Mais tarde, em análise, ele pôde relacionar sua angústia diante do
rosto da caveira com o temor diante do iminente encontro com a mulher desconhecida.
O medo de ser morto pela mulher que habitava sua fantasia explicitara sua condição de
objeto diante do Outro. Podemos dizer que algo de sua realidade psíquica foi mobilizado pela
obra. O objeto olhar na tela o encarou de fora por dentro, ou seja, tocou em sua fantasia, e o
que veio à tona foi o outro familiar que é ele mesmo em sua condição de objeto. Ao falar mais
sobre isso, o paciente pôde associar seus temores de morrer soterrado a certas situações
concernentes às suas primeiras excitações sexuais na infância.
Há inúmeras telas de Dali que podem evocar as mais díspares sensações, como
ocorreu quando tive a oportunidade de ouvir de uma criança suas impressões sobre a tela O
Espectro do sex-appeal (Fig. 18). Disse o menino: “Isso me parece um cachorro quente, me
lembra churrasco, carne, é.... parece um pedaço de carne, um bife”.
Enquanto essa tela causara grande frisson na época de sua exposição por unir o erótico
a certa decadência do corpo, para o menino faminto essa cena lembrava um cachorro quente e
um bife! Essa é a magia da obra de arte enquanto objeto calado. Em Dalí, isso se torna
absurdamente fantástico, pois algo, em suas telas, parece ter o poder de causar no espectador
desavisado, perplexidade, angústia ou até mesmo fome! Portanto, é por isso que podemos
articular as teorias freudianas sobre o estranho familiar ao estudo das obras de Dali,
apontando que isso que se presentifica em suas telas tem relação com a presença real do
objeto. Seus efeitos são particulares e intransferíveis e, desse modo, referem-se à realidade
psíquica de cada um. Desse modo, um objeto que surge no horizonte de uma tela pode ser
causa de desejo, mas, em sua face real, pode suscitar a emergência da angústia.
feita sobre o quadro, pertence, tão somente, a quem das obras se apropria, colocando esse
sujeito em uma posição outra, ou seja, a de sujeito dividido diante do objeto que lhe causa.
Desse modo, lá onde o sujeito estudioso da vida e da obra de Dali vê o temor à castração, a
decadência da carne e os sacos de batatas que tanto atormentaram Dali no quadro Angelus de
Millet, uma criança desavisada e com fome consegue ver um cachorro quente e um pedaço de
carne.
Finalmente, supomos que haja algo em comum nessas visadas sobre o objeto, afinal
trata-se da carne mesmo, um pedaço de carne, desfigurado e cambaleante. Resta-nos agora um
enigma provocado por outro objeto dentro desse mesmo quadro: o olhar perplexo do menino
no canto inferior direito da tela, aquele com roupas de marinheiro. O que ele estaria ele vendo
ao ser olhado?
79
Considerações finais
Retomando a pergunta que fiz na introdução desse trabalho – o que podemos aprender
com a obra de salvador Dali? – penso que, feito todo esse percurso, posso dar a seguinte
resposta.
Dali trabalhou incansavelmente por toda sua vida. Dos prédios arruinados, do caos
pessoal e das rochas carcomidas pelos ventos do mediterrâneo, ele recolhia significantes como
quem cata lixo para então reciclá-los e reimprimi-los em suas obras de arte. Uma vida de
reconstruções e de criações. Se o seu mundo ruiu após sua expulsão da casa paterna, Dali
tratou de reconstruí-lo junto a Gala. Ao recorrer à criação de seu método paranóico-crítico de
80
Sobre o ideal de normalidade proposto por Freud, nada nos interessa acrescentar nesse
momento. Mas podemos afirmar que Dali era um incansável mestre de obras, pois ao invés de
se resignar ao sofrimento imposto por sua realidade, ele fez outra coisa com isso e, assim,
pôde entrar e se firmar no laço social como um artista e não como um louco. Contrariando o
rótulo da loucura que pudessem querer lhe imputar, ele mesmo não cansava de afirmar: “A
única diferença entre um louco e Dali é que Dali não é nada louco!”. Ou seja, ele se
distanciava da loucura não porque não sofresse de uma angústia real, mas porque
transformava isso em arte. Dali era um artista reconhecido e vivia de sua arte. Aliás, arte que,
por muitos anos, tornou-o muito rico e bem sucedido. Ainda que saibamos que Dali só tenha
conseguido organizar sua vida financeira por intermédio da dedicação e do amor
incondicional de Gala, sua mulher, seu mérito era único e incontestável. Afinal, a tentativa
constante de combater sua realidade insuportável se materializava na mais precisa arte
surrealista. Arte cujo valor, ao longo dos anos, tem se mostrado inestimável aos olhos dos
apreciadores e da qual nós, psicanalistas, temos nos servido para trabalharmos temas que
dizem respeito à teoria e à clínica.
Finalmente, gostaria de apontar que embora o tema da letra na teoria lacaniana não
tenha sido objeto dessa dissertação, seria interessante o considerarmos para estudos futuros,
pois as inúmeras criações surrealistas de Dali nos ensinaram muito mais sobre as noções de
letra e litoral do que poderíamos supor. Vemos que, ao final de sua vida, uma caligrafia
própria se impôs. Sua última tela, A cauda de andorinha (1983) (Fig. 32), parece evidenciar
que a obra de toda uma vida tenha se reduzido ao seu extrato, ou a isso que, com Lacan,
entendemos por puro traço. Um traço que essa tela exibe e que revela a marca do estilo que o
representou para o mundo de um modo muito singular. Ou seja, o traço do Salvador que pode
ser visto bem no centro da tela através da letra S que, espelhada em seu duplo invertido,
parece aludir ao amor dual de Gala e Dali tal qual podemos notar na tela O Angelus de Gala
(1935) (Fig. 30). A ‘Salvadora’ do ‘Salvador’, a Gala de Dali, ambos reduzidos ao traço da
175
Freud, S., op., cit. AE, v. XIX, p. 195; ESB, v. XIX, p. 207.
81
cauda da andorinha. Traço que se deixa ver sob a forma dos bigodes de Dali que, como
hóstias dentro de um cálice sagrado, parecem se oferecer à última ceia da degustação do olhar
do Outro.
82
ANEXO
83
Figura 1
Mapa da Catalunha176
176
O triângulo daliniano: Figueres - H; Cadaqués - C; Girona (Castelo de Púbol) - A
http://maps.google.com.br/maps?f=q&hl’=pt-BR&q=El+Castilo+de+Gala... 23/6/2010
84
Figura 2
55, 5 cm x 66 cm
85
Figura 03
64 cm x79 cm
86
Figura 4
99,85 x 100 cm
87
Figura 5
400 cm x 300 cm
88
Figura 6
Figura 7
177
In Roig, S., op cit. p. 55-56
90
Figura 8
178
In Roig, S., op cit., p 198.
91
Figura 9
179
In Roig, S., op cit., p. 139
92
Figura 10
180
In Roig, S., op cit., p 133.
93
Figura 11
181
In Roig, S., op cit. p. 69.
94
Figura 12
Torre Galatea182
182
In Roig, S., op cit., p.63.
95
Figura 13
Tela O grande masturbador e a rocha no Cabo Creus183 que inspirou Dali nessa obra.
110 cm x 150 cm
183
In Roig, S., op cit. p. 134-135.
96
Figura 14
44,4 cm x 30, 3 cm
97
Figura 15
110 cm x 150,7 cm
98
Figura 16
65 cm x 54 cm
99
Figura 17
24 cm x 33 cm
100
Figura 18
18 cm x 24 cm
101
Figura 19
13,8 cm x 17,9 cm
102
Figura 20
32 cm x 33 cm
103
Figura 21
114,8 cm x 143,8 cm
104
Figura 22
90,5 cm x 66 cm
105
Figura 23
51,4 cm x 78,1 cm
106
Figura 24
184
In Dali, S., op.cit., v. V, p. 68-69.
107
Figura 25
A ascensão (1958)
115 cm x 123 cm
108
Figura 26
65 cm x 54 cm
109
Figura 27
Figura 28
Tela de Meissonier
53,5 cm x 70,5 cm
111
Figura 29
24 cm x 21 cm
112
Figura 30
32,4 cm x 26,7 cm
113
Figura 31
50,8 cm x 78,3 cm
114
Figura 32
73 cm x 92,2 cm
115
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