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Curso Lacan

Aula 13/14

Na aula de hoje, vamos continuar o comentário do texto A instância da letra e a razão


desde Freud retomando o problema relativo ao uso de metáforas na clínica analítica.
Sabemos que um dos dispositivos maiores do tratamento psicanalítico é a simbolização.
Lacan não deixa de utilizar termos de forte ressonância para falar do que estaria em jogo na
simbolização. Trata-se do “nascimento da verdade pela palavra”1. Uma palavra capaz de
conferir às funções do indivíduo um sentido. Lacan chegará mesmo a comparar o
inconsciente a um texto no interior do qual certos capítulos estariam “marcados por um
branco”, “censurados”2. No entanto, a metáfora do texto censurado pode ser enganadora por
nos levar a acreditar em alguma forma de núcleo de conteúdos recalcados que deveriam ser
recuperados através de procedimentos hermenêuticos de interpretação. Por isto, devemos
compreender melhor qual a estrutura desta palavra capaz de fornecer ao sujeito a
possibilidade de nomear aquilo que seria a verdade de seu desejo, dando com isto um
sentido, reordenando as contingências passadas em uma necessidade por vir.
A melhor maneira de compreender este ponto passa por uma reflexão mais
demorada a respeito dos usos clínicos da metáfora. Devemos compreender melhor o Lacan
entende por metáfora e porque é através dela que: “se produz um efeito de significação que
é de poesia ou de criação, dito de outra forma de advento da significação em questão” 3. Ou
seja, seria através da metáfora que a experiência da significação e do sentido se constituem
para o sujeito. Mas porque seria necessariamente através da metáfora que ocorreria esta
nomeação do desejo? O que significa desejar algo que tem a estrutura de uma metáfora?
Notemos que, no nosso texto, Lacan não discute diretamente este ponto. Na
verdade, ele prefere passar a uma outra questão, por ele apresentada como “o ponto crucial
do nosso problema”4. Trata-se da função do sujeito. Notemos como, até agora, vimos Lacan
fazer a crítica da função do Eu como espaço de alienação e desconhecimento. O Eu
desconhece sua própria gênese, sua dependência em relação à imagem do outro. Agora,
trata-se de apresentar aquilo que, no interior da experiência subjetiva, não se submete
integralmente à forma do Eu. Para tanto, Lacan fará uma distinção importante entre Eu e
sujeito.
No entanto, esta maneira de distinguir Eu e sujeito vai na contramão da redução
egológica do sujeito que marca a história da filosofia moderna, redução que visava fundar a
subjetividade como espaço do que se submete à forma da unidade sintética. Por isto, Lacan
precisa falar que entre o sujeito e o Eu (assim como a consciência) existe uma relação de
descentramento. Um sujeito descentrado é necessariamente aquele que não pode mais ser
pensado como suporte de atributos como identidade, consciência de si e transparência.
Antes, ele é profundamente clivado.
É a fim de discutir este ponto que Lacan retorna ao campo de filosofia para lembrar
como o sujeito com o qual a psicanálise lida é diferente do conceito moderno de sujeito, tal
como nós encontramos em Descartes. Na verdade, o conceito psicanalítico de sujeito tem
para com o conceito moderno de sujeito uma relação de “subversão”. Não é por outra razão
1
LACAN, E., p. 256
2
Idem, p. 259
3
Idem, p. 515
4
Idem, 516
que um dos textos mais importantes de Lacan chama-se exatamente Subversão do sujeito e
dialética do desejo no inconsciente freudiano. Subversão significa desviar algo de seu lugar
natural, inverter a ordem natural (como fica claro no latim subversionem, subversum). No
nosso texto, tudo se passa como se Lacan dissesse que a reflexão sobre a maneira com que
a linguagem se relaciona à referência possibilitaria subverter o lugar natural do sujeito. Mas
como compreender o que está realmente em jogo nesta relação entre sujeito e linguagem?
Para compreender o que Lacan tem em mente, devemos inicialmente aceitar que não
há relação à si que seja independente da estrutura da linguagem. A maneira com que eu me
relaciono comigo mesmo, com que eu determino o que deve ser entendido por “eu mesmo”
é profundamente dependente das possibilidades inerentes à minha linguagem. Para Lacan,
não há nada como relações à si mesmo pré-linguísticas. Ou seja, os limites da minha
linguagem não são apenas os limites do meu mundo, como dizia Wittgenstein. Eles são
também os limites das minhas possibilidades de auto-afecção, pois determinam os modos
possíveis do meu pensar.
No entanto, percebam a natureza de uma questão maior sugerida por Lacan em
nosso texto: “Não se trata de saber se eu falo de mim de maneira conforme àquilo que sou,
mais se, quando falo de mim, sou o mesmo que este a respeito do qual eu falo” 5. Ou seja,
mesmo que não exista relação à si independente da estrutura da linguagem, Lacan não
deixa de se perguntar: mas quando falo de mim, ou seja, quando me objetivo no interior da
linguagem com suas regras e sua ordem, sou ainda o mesmo de quem falo? Para que uma
pergunta desta natureza fizesse algum sentido, seria necessário admitir a possibilidade de
algo anterior ao advento do si mesmo, algo ainda impessoal, despersonalizado que, de uma
certa forma, não se submeteria integralmente à linguagem. Como se a nomeação de si, a
assunção de um lugar na ordem simbólica, nunca deixasse de produzir algo como um
excedente, um resto que só aparece como perda. Daí uma afirmação como:

“O significante se produzindo no campo do Outro faz surgir o sujeito de sua


significação. Mas ele só funciona como significante ao reduzir o sujeito em última
instância a ser apenas um significante, a petrifica-lo através do mesmo movimento
que o chama a funcionar, a falar como sujeito” (LACAN, 1973, pp. 188-189).

Ou seja, mesmo o campo intersubjetivo da cadeia significante só pode fazer o sujeito falar
ao petrificá-lo e ao dividi-lo, pois: “se ele aparece de um lado como sentido, produzido pelo
significante, do outro ele aparece como aphanisis” (LACAN, 1973, p. 191). Que o sujeito
deva aparecer do outro lado como aquilo que não se objetiva, como aphanisis, ou seja,
como o que esta em vias de desaparecer, eis algo que deve ser compreendido em todas suas
consequências. Lacan tenta dar conta desta situação fazendo apelo à distinção lingüística
entre sujeito da enunciação e sujeito do enunciado. Em uma frase como, por exemplo, a
clássica “Eu minto”, vemos claramente como o sujeito que aparece no enunciado (este que
mente) não pode se confundir com a posição ocupada pelo sujeito que enuncia (este que
fala a verdade). Esta distinção serve a Lacan para exemplificar como o sujeito pode
transcender o enunciado, colocar-se em um contexto que não está posto pelo enunciado,
mas apenas pressuposto. Desta maneira, ele não será totalmente representado pelas
determinações fornecidas pela linguagem.

5
Idem, p. 517
No entanto, a princípio, parece que estamos em plena contradição. Por um lado,
Lacan insistiria não haver nada como relações à si mesmo pré-linguísticas. No entanto, por
outro lado, ele não deixa de dizer que a entrada no interior do universo da linguagem, na
ordem simbólica que estrutura o pensar, não deixa de produzir uma perda. Em nosso texto,
ele chega mesmo a subverter a fórmula do cogito cartesiano (“Penso, logo sou”) a fim de
afirmar: “Penso onde não sou, logo sou onde não penso” 6. Pode parecer que Lacan faz aqui
uma profissão de fé irracionalista. Algo como: minha verdadeira natureza está lá onde o
pensamento ainda não foi capaz de impor sua ordem e seu sistema. Deveríamos então
retornar a este impensado originário, pois seria a incapacidade de retornar a esta dimensão
do imediato e do impensado que nos faria sofrer.
Mas esta não é a via de Lacan. Se assim fosse, não haveria sentido em se perguntar
sobre “a razão depois de Freud”, mas apenas de um certo irracionalismo freudiano. É para
evitar confusões desta natureza que Lacan não deixa de completar sua frase dizendo: “Eu
não sou, lá onde sou o joguete do meu pensamento; penso no que sou, lá onde imagino não
pensar”7. Ou seja, há um pensamento que está lá, em uma Outra cena, onde o Eu imagina
que não há pensamento algum. Lacan lembra que já Freud falava, de maneira
extremamente significativa, de “pensamento inconsciente”, pensamento que não é acessível
à consciência e que dá forma às formações do inconsciente. Isto significa: há um
pensamento que não pode ser pensado a partir do sistema de regras, normas e leis próprias à
linguagem da consciência. Já vimos como Lacan insistia que as formações do inconsciente,
em especial os mecanismos oníricos com seus processos de condensação e deslocamento,
são estruturados como uma linguagem. Daí uma afirmação chave como: “O inconsciente
não é o primordial, nem o instintual e de elementar ele conhece apenas elementos
significantes”8. Mas estaria Lacan dizendo algo como: há a linguagem da consciência, com
seu sistema próprio de representações e de constituição de objetos, e há a linguagem do
inconsciente, que não opera por representações e que desconhece a fixidez própria à noção
de objeto? Lembremos como, em nosso texto, Lacan propõe uma certa interpretação
estilística do inconsciente, isto ao ler os mecanismos de defesa, tais como eles são escritos
por Otto Fenichel, como figuras da retórica e tropos lingüístico. Assim, ao invés de falar de
isolamento, repressão, inversão, Lacan preferirá falar de perífrase, elipse, digressão, ironia,
litote etc.
Se este for o caso, não há como deixar de notar a existência de um problema de
difícil equação. Ele é enunciado pelo próprio Lacan: “O que pensa assim em meu lugar é
um outro eu?”9. Pergunta fundamental por questionar se existiria algo como um Eu
profundo para além de um conceito alienado de Eu. Se assim fosse, resolveríamos um
problema, a saber, a injunção de não aceitar relações à si pré-linguísticas, mesmo admitindo
que a sujeição à linguagem que estrutura a ordem simbólica social, com seus lugares e
divisões, produz algo que só pode ser pensado através de um outro regime de linguagem.
De fato, por vezes parecer ser este o caminho de Lacan. Um exemplo privilegiado
aqui seria seu conceito de sintoma. O sintoma faria apelo à existência de uma outra cadeia
significante que insiste na cadeia que compõe o texto do pensamento da consciência, já que
ele é um significante que ocupa o lugar de um significante recalcado. Na dimensão do

6
Idem, p. 517
7
Idem, p. 517
8
Idem, p. 522
9
Idem, p. 523
sintoma, a metáfora é solidária de uma operação de recalcamento de significantes.
Podemos encontrar tal estrutura do sintoma na seguinte afirmação sobre a metáfora:

Devemos definir a metáfora pela implantação de um significante em outra cadeia


significante através da qual este que ele suplanta cai para o nível de significado e,
como significante latente, perpetua o intervalo no qual uma outra cadeia
significante pode entrar10.

Ou seja, a interpretação do sintoma nos abriria à dimensão de uma outra cadeia de


significantes, uma espécie de cadeia latente que nos revelaria a verdadeira estrutura de
associações que estabelecem o sintoma em seu sentido. Esta cadeia latente parece nos levar
a uma linguagem mais próxima o que é da ordem da verdade do desejo do sujeito.
Mas notemos a dificuldade que encontramos ao tentar responder a pergunta: quem
fala esta outra linguagem, quem articula esta outra cadeia significante? Lacan dirá, em
nosso texto, uma de suas frases lapidares: “O inconsciente é o discurso do Outro”, isto para
completar: “Se disse que o inconsciente é o discurso do Outro, com um grande O, é para
indicar o para além no qual se vincula o reconhecimento do desejo e o desejo e
reconhecimento”11.
Notemos aqui podemos enfim compreender a diferença lacaniana crucial entre
“outro” e “Outro”. Os “outros” são fundamentalmente outros empíricos que vejo diante de
mim em todo processo de interação social. Já o “Outro” é o sistema estrutural de leis que
organizam previamente a maneira como o “outro” pode aparecer para mim. O primeiro diz
respeito aos fenômenos, o segundo, à estrutura. Como vemos, o primeiro está submetido ao
segundo, o que nos explica como outro pode se articular a uma estrutura global do meio
social. O Outro pode, no entanto, ser representado por uma figura empírica que, por sua
vez, representa a Lei.Daí porque Lacan falará, por exemplo, do Outro paterno.
Mas para nossa discussão interessa lembrar como este discurso do Outro tem uma
peculiaridade que toca a própria noção de “discurso”. Através dos sintomas, formações
oníricas, chistes etc. é a estrutura que age no interior do sujeito. Ela impõe sua
sobredeterminação, ela constrói associações, sem que esta construção possa submeter-se ao
esquema de uma intencionalidade consciente. No entanto, se não há uma intencionalidade
consciente que determine uma singularidade, se é apenas a estrutura que age, como explicar
que sujeitos submetidos ao mesmo sistema de leis possam ter formações do inconsciente
tão distintas e intraduzíveis entre si? Precisamos explicar, por exemplo, como nossos
sonhos parecem normalmente seguir uma espécie de gramática privatizada, modo particular
de organização. Pois não se trata apenas de dizer que o conteúdo semântico dos sonhos é
particular. Também sua forma sintática, seu regime de construção segue regras particulares.
Isto faz com que o analista nunca saiba de antemão o que um sonho significa. Náo há um
“dicionário universal dos sonhos”, pois, no interior da análise, o analista precisa descobrir a
gramática particular através da qual o sujeito constrói o significado, deforma, condensa,
desloca, transpõe em imagens, enfím, relaciona elementos oníricos. Uma gramática
particular que Lacan chamará um dia de “alíngua” (lalangue).

10
LACAN, E., p. 708
11
Idem, p. 524
O desejo como regra

Neste sentido, a clínica lacaniana só poderá ser uma certa forma de crítica da alienação.
Proposição que nos leva diretamente a um problema, já que quem diz alienação diz perda
de uma essência. Mas se o Eu é o resultado de um processo social de identificação, então só
posso falar em alienação de si se aceitar a existência de algo, no interior do si mesmo, que
não é um Eu, que é uma certa essência recalcada pelo advento do Eu. Digamos que é neste
Si mesmo estranho ao Eu, um Si mesmo que Lacan chama de “sujeito”, que encontraremos
o desejo. A este respeito, Lacan chega a criar uma dualidade entre moi (o Eu produzido pela
imagem do corpo) e Je (o sujeito do desejo), isto para falar da: “discordância primordial
entre Eu [moi] e o ser [do sujeito]” 12. Esta discordância entre o Eu e o sujeito do desejo é
fundamental. É por isto que o sujeito em Lacan é irremediavelmente descentrado, ou seja,
ele nunca se confunde com o Eu.
Por sua vez, o conceito lacaniano de desejo virá de Alexandre Kojève. Podemos
dizer que, para Kojève, a verdade do desejo era ser pura negatividade que desconhece
satisfação com objetos empíricos. “Revelação de um vazio” 13, manifestação do negativo no
sujeito, o desejo seria “nada de nomeável” 14. Daí porque Kojève insistirá que o desejo
humano não deseja objetos, ele deseja desejos, ele só se satisfaz ao encontrar outra
negatividade. A este desejo que sempre se manifesta como inadequação em relação a todo
objeto, Lacan dará o nome de “desejo puro”.
De fato, Kojève foi, ao menos neste ponto, fiel à intuição hegeliana de insistir que a
primeira manifestação da subjetividade é uma pura negatividade que aparece inicialmente
como desejo. Ao articular desejo e negatividade, Hegel vincula-se a uma longa tradição que
remota a Platão e compreende o desejo como manifestação da falta 15. No entanto, já em
Hegel esta falta não é falta de algum objeto específico, falta vinculada à pressão de alguma
necessidade vital, tanto que o consumo do objeto não leva à satisfação. A falta é aqui um
modo de ser do sujeito, o que levará Lacan a falar do desejo como uma “falta-a-ser”. Um
modo de ser que demonstra este indeterminação fundamental do sujeito moderno, esta
liberdade manifestada pela ausência de essência positiva que faz com que ele nunca tenha
correlação natural com atributos físicos, nunca seja completamente adequado às suas
representações, imagens e papéis sociais. É pensando nisto que o jovem Hegel chamará o
homem de “a noite do mundo”.
Atualmente, há várias críticas que visam esta concepção lacaniana do desejo como
negatividade. Uma das mais conhecidas vem de Gilles Deleuze (1925-1995), para quem tal
noção de desejo seria, no fundo, a tentativa de implementação clínica de uma espécie de
teologia negativa que só poderia produzir uma certa moral da resignação infinita, um
retórica da perpetuação da falta, da finitude absoluta. Pois, segundo Deleuze, “não falta
nada ao desejo, não há objeto que lhe falte”16. Ele é antes a manifestação produtiva de uma
vida em expansão. No entanto, questionamentos desta natureza são falhos por ignorarem
que a negatividade do desejo lacaniano visa, entre outras coisas, criticar o caráter normativo
de toda tentativa de construir relações de identidade imediata entre o desejo e seus objetos.
12
Jacques Lacan, Escritos (Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 1996), p. 188
13
Alexandre Kojève, Introdução à leitura de Hegel, p. 12
14
Jacques Lacan, SII, p. 261
15
Sobre este ponto, ver “Hegel e o trabalho do desejo” Em: Vladimir Safatle, A paixão do negativo (São
Paulo; Unesp, 2006)
16
Gilles Deleuze e Félix Guatarri, L´anti-Oedipe (Paris : minuit, 1969), p. 34
Normatividade a respeito da qual não conseguimos escapar quando afirmamos nada faltar
ao desejo. Não é a “finitude” que interessa a Lacan, mas a noção de que há algo no sujeito
que só se manifesta de maneira negativa, como se a negatividade trouxesse uma forma de
presença daquilo que desconhece imagem. No entanto, esta negatividade deve ser
compreendida não de maneira transcendente, mas ligada àquilo que existe antes da entrada
do sujeito no universo da linguagem, a saber o corpo libidinal e polimórfico. Esta
polimorfia do corpo

Simbolização analítica como metáfora

Sabemos que, para o Lacan do período do paradigma da intersubjetividade, a simbolização


do desejo era o dispositivo maior de interpretação analítica e de subjetivação na clínica. É
ela que permitiria a realização dos processos reflexivos de reconhecimento intersubjetivo
na clínica através da nomeação do que até lá só podia se manifestar sob a forma de
sintomas, de inibições e de angústia.
A análise da teoria lacaniana da simbolização nos demonstra a existência de uma
especificidade muito significativa que pode nos fornecer a chave capaz de abrir a
compreensão do regime de articulação entre Lei e desejo proposta pela psicanálise. Para
Lacan, a simbolização analítica trabalha através de metáforas. Todos os dispositivos
maiores de simbolização que operam na clínica são metáforas: "O simbolismo analítico",
dirá Lacan, "só é concebível ao ser reportado ao fato lingüístico da metáfora" 17. Pensemos,
por exemplo, na palavra plena (Lacan deixará evidente a estrutura metafórica da palavra
plena ao explicar que a significação do ato performativo "Você é minha mulher" seria:
"este corpo da mulher que é minha, é agora metáfora do meu gozo "18), no Nome-do-Pai
(lembremos da metáfora paterna como exposição da lógica operatória do Nome-do-Pai) e
no Falo (cuja estrutura metafórica analisaremos mais à frente).
Na verdade, Lacan vai ainda mais longe ao afirmar que a metáfora não deve ser
distinguida do símbolo e que toda espécie de emprego do símbolo é metafórico. Em suma:
"Toda designação é metafórica"19. Eis uma fórmula plena de conseqüências, já que ela não
se restringe ao domínio da clínica mas procura fornecer uma teoria geral da nomeação e do
regime operatório do Simbólico.
Mas o que tal fórmula poderia significar? Estaríamos diante de uma deriva
relativista sempre possível para um pensamento cuja concepção de verdade é claramente
não-correspondencial e cuja concepção de linguagem é claramente não-realista? Deriva
que abriria a clínica ao relativismo de uma interpretação que não faria mais distinção entre
organização simbólica do pensamento e produção de metáforas?
A fim de responder tal questão, devemos começar pelo começo. Nós conhecemos a
importância dada por Lacan à noção de metáfora. É ela que ultrapassaria a barra entre
significado e significante produzindo assim um efeito de sentido fundamental para o
sucesso da simbolização. Mas o que é uma metáfora para Lacan? Estaríamos, com ele,
diante de um conceito de metáforas como alegoria (o que significaria privilegiar seu
caráter ficcional)? Estaríamos diante de metáforas como descrição de analogias, de
similaridades ou, para ser mais exato de “semelhanças de família” que, enquanto modos de
17
LACAN, E., p. 703
18
LACAN, S XIV, sessão de 07/06/67
19
LACAN, S XVIII, sessão de 10/02/71
descrição, teriam um lugar privilegiado nos enunciados científicos, basta ver os trabalhos
que aproximam metáforas e modelos explicativos? Conhecemos, neste sentido, alguns
pesquisadores que vêem a utilização da metáfora na clínica como um modo de
simbolização ligado a uma compreensão pré-proposicional e intuitiva de experiências pré-
reflexivas20. A posição lacaniana estaria configurada em alguma destas possibilidades?
Vale a pena pois seguir o encaminhamento lacaniano a respeito dos usos da metáfora.
A definição lacaniana de metáfora é muito ampla e mesmo supreendente: “a
metáfora é radicalmente o efeito da substituição de uma significante por outro em uma
cadeia, sem que nada de natural o predestine a esta função de foro” 21. Ou seja, a metáfora
seria um puro jogo de substituição entre dois significantes que são elementos de contextos
e sistemas de significação totalmente autônomos entre si.
Lacan serviu-se desta noção de substituição significante para dar conta da estrutura
do sintoma. Tal como a metáfora, o sintoma faz apelo à existência de uma outra cadeia
significante que insiste na cadeia que compõe o texto do pensamento da consciência, já que
ele é um significante que ocupa o lugar de um significante recalcado. Na dimensão do
sintoma, a metáfora é solidãria de uma operação de recalcamento de significantes.
Podemos encontrar tal estrutura do sintoma na seguinte afirmação sobre a metáfora:

Devemos definir a metáfora pela implantação de um significante em outra cadeia


significante através da qual este que ele suplanta cai para o nível de significado e,
como significante latente, perpetua o intervalo no qual uma outra cadeia
significante pode entrar22.

Mas esta possibilidade de substituição entre termos sem contigüidade metonímica


pressupõe uma outra operação que é fundamental para a compreensão da importância da
metáfora na teoria lacaniana e que nos envia ao problema da relação entre metáfora e
referência. Para além da função da metáfora como procedimento de seleção de elementos
presentes no eixo diacrônico da linguagem, há a noção da metáfora como modalidade de
relação com a referência. É esta função que permite a Lacan: "ligar a metáfora à questão do
ser"23.
Normalmente, quando falamos da teoria lacaniana da metáfora, o exemplo
privilegiado vem do verso de Victor Hugo, Seu feixe não era avaro nem odiento, no qual o
significante feixe vem no lugar do nome próprio Booz e coloca em relações dois sistemas
distintos de significação a fim de permitir o deciframento de um sentido ligado ao advento
da paternidade. Mas Lacan serviu-se várias vezes de um outro exemplo, este mais
inesperado e talvez mais interessante: “O gato faz au-au e o cachorro faz miau”. Tão
interessante quanto o exemplo é o comentário :

A criança, de um só golpe, desconectando a coisa de seu grito, eleva o signo à


função de significante, e a realidade à sofística da significação, e pelo desprezo da

20
Ver, por exemplo, FRIE, Methapor and Aesthetic experience in Subjectivity and Intersubjectivity in
Modern Philosophy and Psychoanalysis, Lanham: Rowman and Littlefield, 1997, pp. 147-154
21
LACAN, E., p. 890
22
LACAN, E., p. 708
23
LACAN, E., p. 528
verossimilhança, abre a diversidade de objetivações a serem verificadas de uma
mesma coisa24.

O importante aqui é a idéia de uma operação da linguagem que se faz a partir do


“desprezo pela verossimilhança”, quer dizer, a partir da abstração daquilo que se apresenta
como experiência imediata. Neste sentido, a metáfora coloca o poder de abstração da
linguagem através da negação da referência, ou ainda, da anulação da faticidade da
referência. “Ao jogar com o significante”, dirá Lacan, “o homem coloca seu mundo em
questão a todo instante, isto até sua raiz” 25.
Se lembrarmos que, para Lacan, o mundo do homem está mais próximo de uma
construção imaginária (para Lacan, o conceito de ´mundo´ nos leva necessariamente ao
conceito de Umwelt), poderemos desvendar a razão desta posição fundamental da metáfora
na clínica. Ela procura abrir, no campo língüístico, o espaço a um nível de experiência
subjetiva para além do Imaginário. A negação da referência feita pela metáfora não é
negação de um sense data (já que não há espaço para a percepção imediata em Lacan),
nem deveria ser negação do Real (que já foi negado pela Bejahung primordial e que será
caracterizado exatamente por ser aquilo que, na referência, não se submete à simbolização
metafórica). Ela é negação de uma construção imaginário naturalizada (lembremos aqui
da afirmação do Imaginário enquanto regime de categorização espaço-temporal que
constitui os objetos ao substancializá-los sob a forma de entidades fixas ou de ´coisas´)26.
Aqui, é Jakobson que permite a Lacan fundar suas conclusões sobre a função
negativa da metáfora, até porque o exemplo do gato e do cachorro vem dele. Neste caso,
Jakobson via, na capacidade da criança em desconectar o sujeito e o predicado, a
descoberta da predicação, quer dizer, a descoberta da possibilidade em servir-se da
estrutura proposicional do julgamento para negar aquilo que se apresenta como realidade
imediata. De onde se segue a afirmação lacaniana segundo a qual a metáfora “arranca o
significante de suas conexões lexicais”, já que não haveria metáfora se não houvesse
distância entre o sujeito e seus atributos.
Nós vemos como há um verdadeiro trabalho do negativo que a metáfora deixa
evidente. Devemos falar de trabalho do negativo porque, se podemos desconectar o cão de
seu grito, é porque ele foi negado enquanto presença naturalizada. Isto nos explica por que
Lacan não cessa de articular as operações de simbolização à pulsão de morte ; chegando a

24
LACAN, E., p. 805
25
LACAN, S IV, p. 294
26
No entanto, é verdade que Lacan desliza de maneira sintomática em direção à idéia da metáfora como
negação do real. Pensemos, por exemplo, em sua afirmação a respeito do caráter metafórico próprio ao
trabalho do Witz: "Tudo o que Freud desenvolve na sequência [de suas considerações sobre o Witz] consiste
em mostrar o efeito de uma nadificação, o caráter verdadeiramente destrutivo, diruptivo, do jogo de
significante em relação àquilo que podemos chamar de `existência do real`” (LACAN, S IV, p. 294). Mas, se
a metáfora é negação do real, então o real terá o mesmo estatuto do empírico. No entanto, podemos tentar
compreender esta afirmação de Lacan dizendo que o real é o que, na referência, apresenta-se como fora da
simbolização. Ele não se confunde totalmente com a referência (já que a referência sempre é intuída através
do Imaginário). Ao contrário, ele indica o que, na referência, não se esgota na imagem e no significante.
Lacan é muio claro neste sentido quando afirma: “O referente é sempre real, pois ele é impossível de ser
designado, não restado assim outra coisa a não ser construí-lo” (LACAN, S XVIII, sessão do 20/01/71)
Assim, o jogo significante pode ter um efeito de nadificação do real porque ele perpetua o real como o que
resta fora da simbolização.
falar, a respeito da relação entre metáfora e referência: "nós encontramos aí o esquema do
símbolo como morte da coisa"27.
Isto permite a Lacan mostrar como a linguagem é feita de significantes puros, ao
invés de ser feita de signos. Por pressupor a negação da referência, a metáfora se coloca
como significante puro desprovido de força denotativa. Significante que produziria sentido
através de uma : “conotação pura e simplesmente liberada da denotação” 28. Este é o ponto
central para Lacan : simbolizar através de metáforas significa necessariamente simbolizar
através de significantes puros que são a negação do empírico. Eles são a formalização da
inadequação da linguagem às coisas sensíveis, tal como vemos na afirmação:

Os significantes só manifestam inicialmente a presença da diferença enquanto tal e


nada mais. A primeira coisa que implicam é que a relação do signo à coisa seja
apagada29.

Ausência de força denotativa, anulação da faticidade da referência, anulação da


relação entre signo e coisa, "ordem fechada" 30 dos significantes, palavra como assassinato
da coisa: com a centralidade lacaniana da metáfora na produção da significação estaríamos
entrando em uma concepção totalmente convencionalista e arbitrária do sentido na sua
relação à designação? Eis uma questão que envia necessariamente a outra: qual é o gênero
de negação própria ao trabalho da metáfora lacaniana?
Tais questões têm conseqüências fundamentais para um pensamento da clínica.
Pois elas nos levam a perguntar qual pode ser a eficácia de uma clínica que opera através
de significantes puros desprovidos de força denotativa, isto ao invés de produzir
interpretações através de símbolos e de signos. Significantes desprovidos de toda
significação e que, por isto, não podem produzir um alargamento do horizonte de
compreensão da consciência.

Teoria como ficção?

Antes de continuar, faz-se necessário algumas explicações sobre as conseqüências do uso


lacaniano da metáfora. Quando afirma que a simbolização analítica é metafórica, não nos
parece que Lacan opere uma hipóstase do caráter ficcional da metáfora31. Apesar do dito
canônico: "a verdade tem um estrutura de ficção"32, não devemos acreditar que, para
Lacan, a verdade é um ficção, uma metáfora naturalizada na melhor tradição da genealogia
nietzscheana33. Há uma verdade que aparece como o núcleo real de uma situação na qual o
27
LACAN, S IV, p. 377.
28
NANCY et LABARTHE; Le titre de la lettre, Paris: Galilée, 1973, p. 76.
29
LACAN, S X, sessão do 06/12/61.
30
LACAN, E., p. 502
31
Para uma posição contrária, ver SIMANKE, A letra e o sentido do ´retorno a Freud´ de Lacan: a teoria
como metáfora in SAFATLE, Um limite tenso, Unesp, 2003
32
Como, por exemplo, in LACAN, S IV, p. 253
33
Lembremos da questão de Nietzsche : « O que nos obriga a supor que há uma oposição essencial entre
´verdadeiro´ e ´falso´ ? Não basta a suposição de graus de aparência, e como que sombras e tonalidades do
aparente, mais claras e mais escuras, - diferentes valeurs, para usar a linguagem dos pintores ? Por que não
poderia o mundo que nos concerne – ser uma ficção ? » (NIETZSCHE, Para além do bem e do mal, par. 34)
sujeito engajou-se. Lembremos ainda uma vez que, para Lacan, não há praxis que esteja
mais orientada do que a psicanálise em direção ao que, no coração da experiência, é o
núcleo do Real. Que este Real só possa ser alcançado através do fantasma, que esta
verdade só possa aparecer em uma estrutura de ficção, isto na verdade significa apenas a
impossibilidade da posição da verdade em um discurso que procura legitimar-se através de
um princípio de adequação ou de um Telos da transparência.
Neste sentido, "a verdade tem estrutura de ficção" deve ser lido com a idéia de que
"o sujeito se fala como seu eu"34. Da mesma maneira que as performances lingüísticas do
sujeito são sempre afetadas pela estrutura narcísica e imaginária do eu, a verdade (que é
verdade do desejo do sujeito) só pode apresentar-se através da ficção própria ao
Imaginário, já que: "O Imaginário é o lugar no qual toda verdade se enuncia" 35. Mas não se
trata de reduzir a verdade à ficção ou o sujeito ao eu. A idéia central aqui consiste em dizer
que a verdade só pode aparecer como comportamento negativo em relação ao
estabelecimento da positividade do saber - uma negatividade cuja evidência seria
produzida pela metáfora. Pois, para Lacan, a metáfora é escritura da verdade como
inadequação.
Notemos aqui a existência de uma conjunção fundamental. Inicialmente, há uma
maneira de escrever a verdade, do mesmo modo que há uma maneira de dizer a verdade
("Eu, a verdade, falo"). Mas ela só pode se escrever como inadequação, do mesmo modo
que o dizer da verdade só pode ser um ´semi-dizer´. Tal tensão entre a escrita e a
resistência ao escrito guiará Lacan durante toda sua trajetória intelectual. Mesmo após o
esgotamento desta estratégia de simbolização metafórica como processo de subjetivação do
desejo na clínica, a procura por uma escritura da inadequação continuará marcando as
tentativas lacanianas de uso clínico do matema e do poema. O que nos explica por que a
clínica lacaniana se esforçará em formalizar (inicialmente através do significante e,
posteriormente, através da letra): "Algo que o discurso só pode conseguir apreender ao
fracassar"36.
Mas devemos insistir também em um outro aspecto da metáfora: seu caráter
performativo (e não seu caráter supostamente constatativo) cuja força perlocucionária seria
capaz de instaurar e de transformar tanto a um segmento da realidade socialmente
reconhecida quanto os sujeitos que nela se engajam 37. Pensemos aqui, por exemplo, nas
considerações lacanianas a respeito da palavra plena (não percamos de vista que, para
Lacan, todo uso do símbolo é metafórico), cujos casos paradigmáticos são estes "atos de
falar"38 como: "Você é minha mulher".

34
LACAN, S III, p. 23
35
LACAN, S XXII, sessão de 18/03/75
36
LACAN, Discours de Tokio, conferência não-publicada
37
Podemos falar em força perlocucionária da metáfora lacaniana porque, através de sua enunciação, ela é
capaz de realizar um ato que produz efeitos no enunciador e neste que recebe a palavra. Neste sentido,
Lacan faz uma espécie de uso clínico da idéia de Austin segundo a qual: “Dizer algo normalmente provoca
certos efeitos sobre os sentimentos, pensamentos, atos do auditório ou deste que fala ou mesmo de outras
pessoas. E podemos falar no intuito, na intenção ou no propósito de suscitar tais efeitos (...) Chamamos tal ato
de um ato perlocucionário ou uma perlocução"(AUSTIN, Quand dire c'est faire, Seuil: Paris, 1970, p. 114).
Vários comentadores já fizeram tal aproximação entre a estrutura lacaniana da metáfora e os problemas dos
performativos em Austin. Ver, por exemplo, FELMAN, Le scandale du corps parlant, Paris: Seuil, 1980,
BORCH-JACOBSEN, Lacan: the absolute master, Stanford: Stanford university Press, 1991, pp. 143-146,
FORRESTER, Seductions of psychoanalysis, Cambridge: Cambridge University Press, 1991
38
LACAN, S VI, sessão de 19/11/58
Lacan é claro a respeito da força perlocucionária de exemplos desta natureza. A
este propósito, ele falará que: "a unidade da palavra enquanto fundadora da posição de
dois sujeitos é aí manifesta"39. O advento do significante é instauração da realidade
partilhada pelos sujeitos.
Mas, se nos perguntarmos sobre o critério que impede a transformação da
performatividade da interpretação metafórica em simples operação de sugestão, a resposta
só pode ser: a convicção que ela despertaria viria da sua capacidade em ser simbolização
que conserva a negatividade do desejo puro. De onde se segue o papel maior da metáfora
enquanto escritura da inadequação entre designação e significação. Graça a seu caráter de
escritura de inadequação, a metáfora poderia inscrever, no sistema simbólico, a
"permanência transcendental do desejo".
Isto pode nos explicar porque Lacan irá aproximar sua concepção da metáfora da
metáfora surrealista, o mesmo surrealismo que afirma que toda conjunção de dois
significantes seria suficiente para constituir uma metáfora. Como dirá Breton, a respeito do
jogo surrealista do um no outro: "Todo e qualquer objeto está ´contido´ em todo e qualquer
outro objeto"40. Esta formalização estética de uma noção de indiferenciação e de
intercambialidade absoluta do objeto empírico pode servir a Lacan para expor a
inadequação entre a referência e o desejo que habita a língua. Ele serve claramente a Lacan
na medida em que ele procura um dispositivo de simbolização da relação negativa entre a
transcendência do desejo e os objetos empíricos-imaginários.

A afirmação metafórica e o resto metonímico

No entanto, há uma crítica possível a esta concepção de metáfora. Ela parece


privilegiar a função negativa da metáfora em sua relação com a referência e esquecer que a
metáfora instaura uma positividade ao afirmar necessariamente algo sobre a referência. A
metáfora parece colocar relações de familiaridade e afirmar, por exemplo, que o coração é
duro como uma pedra, que o beijo é impessoal como um parecer jurídico. Assim, dizer
simplesmente que a metáfora é escritura da inadequação significa perder aquilo que nos
permite afirmar que há metáforas mais adequadas que outras. Qual seria então a natureza
desta afirmação presente na metáfora? Estaríamos diante de uma analogia mais profunda
entre coisas aparentemente dissemelhantes?
Lacan recusou esta noção de metáfora como descrição de analogias e de
similaridades41. Neste sentido, ele parece caminhar na contra-corrente dos teóricos que
pensam o poder da metáfora como um caso típico de posição de "semelhanças de
família"42. No seu ponto de vista, seria mais correto dizer que a metáfora opera uma
identificação entre significantes autônomos, isto com todo o peso criacionista que o
conceito de identificação tem em psicanálise. Ao menos neste sentido performativo, Lacan
está mais próximo da interactive view própria às considerções de Max Black sobre a
metáfora. O mesmo Max Black para quem: "É mais produtivo dizer que a metáfora cria a
similitude do que dizer que ela formaliza uma similitude que existiria anteriormente"43.
39
LACAN, S III, p. 47.
40
BRETON, Perspective cavalière, p. 53.
41
Cf. LACAN, E., 889.
42
Ver, por exemplo, HESSE, Language, metaphor and a new epistemology in The construction of reality,
Cambridge: Cambridge University Press, 1986, pp. 147-161
43
BLACK, Models and metaphors, Ithaca NY: Cornell, 1968, p. 37
Tal como na palavra plena “Você é minha mulher”, a metáfora seria um “ver
como” que instaura de maneira performativa uma realidade, que faz o coração se
transformar em pedra, que faz esta mulher se transformar em minha mulher. Eu vejo este
coração como uma pedra, eu vejo esta mulher como minha mulher. Devemos falar deste
“ver como” enquanto uma relação marcada por um complexo de implicação, já que a
identificação metafórica instaura um novo sentido nos dois sistemas de referências
presentes no enunciado.
Mas é importante sublinhar que, para Lacan, a identificação não é posição de uma
identidade: “A identificação nada tem a ver com a unificação” 44. Dizer que há algo que só
pode ser nomeado através do “ver como” da identificação nos conserva na via da metáfora
como escritura da inadequação. O “como” desta visibilidade instaurada pela metáfora
acaba por indicar um limite à potência descritiva da língua. Sempre é possível insistir que o
caráter de “ver como” próprio à identificação que suporta a substituição metafórica nos
coloca diante da opacidade de uma coisa que só pode ser nomeada através de suas
conexões. Ou seja, sempre há um fracasso da língua que é formalizado pela metáfora.
Isto levará Lacan a sublinhar um aspecto que particulariza sua noção de ação da
metáfora. Para além do que Lacan chama de vertente do sentido na metáfora, haveria
necessariamente uma vertente que permaneceria sempre unterdrück pela simbolização
metafórica45. Trata-se aqui de uma colocação central pois ela indica um limite ao regime
econômico próprio à simbolização analítica46. Nas operações de sentido próprias à
substituição de significantes, faz-se necessário reconhecer o que não passa de um sistema
significante de referências a outro. Neste sentido, Lacan falará de “ruínas do objeto
metonímico”, ou ainda de “resíduo, dejeto da criação metafórica” 47 que resiste à nomeação.
Na passagem de ‘esta mulher’ para ‘minha mulher’ há a produção de um resto, produção
daquilo que nesta mulher não se deixa ver como minha mulher.
Tal simbolização metafórica lacaniana não é pois exaustão completa no Simbólico.
Lacan sabe que não há simbolização metafórica sem produção de um resto metonímico.
Mas, antes dos anos sessenta, ele não tem à sua disposição um processo clínico de
subjetivação capaz de dar conta do que aparece neste momento como objeto metonímico.
Novamente, ele já reconhece um limite às operações de simbolização sem poder passar a
novos modos de subjetivação na clínica.
Em suma, toda complexidade do problema da metáfora em Lacan vem do fato de
que ela dever preencher uma dupla função. Inicialmente, ela deve dar conta de um
processo performativo de instauração simbólica de uma realidade: há uma força
perlocucionária da metáfora, já que ela muda a realidade do que nomeia. Mas, por outro
lado, a metáfora não poderia naturalizar o que ela instaura. Se digo “Você é meu pai”, o
nome do pai deve continuar como uma metáfora (se não fosse assim, ele seria
simplesmente o resultado de uma interpelação subjetiva, interpelação do Senhor que aliena
totalmente o sujeito no significante ‘pai’). Como Lacan pensa a performatividade da
44
LACAN, S IX, sessão do 29/11/61
45
Cf. LACAN, S XIV, sessão de 14/12/66. Há uma distinção entre Unterdrückt e Verdrängt importante neste
contexto. Sabemos que o recalcamento e o retorno do recalcado são a mesma coisa. Mas o que é unterdrück
não passa por estes sistemas de inversões.
46
Tal reconhecimento de um limite à simbolização metafórica levará Lacan a afirmar que: “todas as vezes que
vocês introduzem a metáfora, vocês continuam na mesma via que dá consistência ao sintoma. Sem dúvida,
trata-se de um sintoma mais simplificado, mas ainda é um sintoma, ao menos em relação ao desejo"
(LACAN, S VIII, p. 251)
47
LACAN, S V. p. 53
metáfora no interior de uma teoria não realista da linguagem, a questão maior consiste em
impedir que o nome se transforme em naturalização e reificação do sentido. Pois a força do
nome deve ser a apresentação da: “potência da pura perda [que] surge do resíduo de uma
obliteração"48. De uma certa maneira, a metáfora bem-sucedidade deve sempre ser uma
metáfora fracassada.

Por que os psicóticos não são poetas?

Se quisermos compreender a função do recurso lacaniano à metáfora, devemos analisar


porque só a nomeação metafórica poderia produzir o reconhecimento do desejo.
Partamos do exemplo fornecido pela psicose. Segundo Lacan, os psicóticos são
incapazes de criar metáforas49; de onde se segue que a escritura psicótica não pode ser
poesia. Sabemos que isto não significa que eles sejam incapazes de se servir de metáfora –
nem todos os psicóticos são afásicos de similaridade. O que tal impossibilidade pode pois
significar?
Vimos como a metáfora nos leva ao problema da relação negativa entre significante
e referência. A metáfora apareceu enquanto uma escritura da verdade como inadequação.
Isto dava à metáfora um poder clínico central. Ela podia transformar a nomeação do desejo
na simbolização reflexiva da não-identidade entre o desejo e os objetos empíricos. Neste
sentido, se o Simbólico é composto por metáforas, então ‘unir um desejo à Lei’ só pode
significar: dar uma determinação simbólica à impossibilidade do desejo ligar-se a um
conteúdo objetal empírico. Assim, a metáfora pode aparecer como o operador de
formalização da falta própria ao desejo.
A tentativa de denegar a natureza metafórica da relação entre significante e
referência ganha forma sintomática na neurose. A opacidade do significante transforma o
simtoma neurótico em uma questáo nominalista do tipo: “O que é uma mulher?”, “O que
quer dizer ‘ter um sexo’?”, “O que é a morte?”. “O que é um pai?”. Questões que expõem a
opacidade do significante vindo do Outro e que são versões do Che vuoi? que fornece o
fundamento da experiência neurótica. Se o sujeito pudesse ocupar a posição do Senhor que
quer unir significante e significado, então a presença do significante não seria uma questão.
Notemos que, por exemplo, se a mulher enquanto significante aparece como questão para o
neurótico, é porque:

O neurótico quer retransformar o significante naquilo do qual ele é signo. O


neurótico não sabe, e não é para menos, que é enquanto sujeito que ele fomentou
isto: o advento do significante enquanto anulação principal da coisa. Pois é o
sujeito que, ao anular todos os traços da coisa, faz o significante. O neurótico quer
anular tal anulação, ele quer fazer com que isto não tenha acontecido50.

A fórmula é supreendente por demonstrar que o neurótico é um mal dialético. Ele quer
anular a anulação da coisa pelo significante. Este programa poderia nos levar à sublimação
enquanto modo possível de presença da singularidade, mas, se ele nos leva à neurose, é
porque o neurótico pensa por signos. Ele quer colocar uma correspondência entre a coisa e
48
LACAN, E., p. 691
49
"Algo me supreendeu [na leitura de textos de psicóticos] – mesmo quando as frases podem ter um sentido
nunca encontramos algo que pareça com uma metáfora" (LACAN, S III, p. 247)
50
LACAN, S IX, sessão do 14/03/62
as representações próprias ao pensamento fantasmático do eu (lembremos do julgamento
de existência em Freud como tentativa de reencontrar um objeto fantasmático na
realidade). E se Lacan pode afirmar que o neurótico tenta: “satisfazer, através da
conformação do seu desejo, à demanda do Outro "51, é porque ele quer anular a
incondicionalidade da demanda através da sua objetificação, da sua conformação a um
objeto empírico adequado ao desejo.
No caso do discurso psicótico, a natureza metafórica do significante não é
denegada (com as inversões infinitas de posição e de anulação do posto que a denegação
inaugura), mas simplesmente forcluída. É neste sentido que devemos compreender a
impossibilidade dos psicóticos criarem metáforas. Ao invés de uma construção metafórica,
há uma construção imaginária que preenche a falta e a indeterminação de sentido própria à
metáfora. É neste sentido que a linguagem psicótica adquire uma ‘inércia dialética’, tal
como Lacan insiste ao comentar a significação do delírio.
A respeito dos neologismos que normalmente compõem o delírio piscótico, Lacan
dirá: “É uma significação que não envia a nada, a não ser a ela mesma, ela fica irredutível.
O doente sublinha que a palavra tem peso em si mesma"52. Encontramos tal inércia também
nas considerações de Lacan a respeito da economia do inconsciente na psicose. Se é
verdade que, na psicose, o inconsciente não é recalcado, apresentando-se a céu aberto:
“Contrariamente ao que poderíamos acreditar, que ele esteja aí não significa em si mesmo
resolução alguma mas, ao contrário, uma inércia toda particular" 53. Tal significação inerte é
o signo de uma linguagem reduzida à economia imaginária do discurso, linguagem
naturalizada e coisificada, já que ela não dispõe da dimensão do Outro. Trata-se de uma
linguagem na qual o Outro está reduzido ao outro, o que produz uma suplementação do
Simbólico pelo Imaginário54. Lacan constrói sua teoria da psicose através da idéia de uma
redução do desejo ao imaginário devido à forclusão do Nome-do-Pai (que também deve
ser compreendido como a forclusão do caráter metafórico do pai). “Lá onde a palavra
[metafórica] está ausente”, dirá Lacan, “lá se situa o Eros do psicotizado"55.
Ainda sobre esta inércia própria à linguagem psicótica, lembremos que Freud
caracterizou tal linguagem como: “uma linguagem que trata as palavras como coisas”56.
Consideração ilustrada pelo exemplo da analisanda de Victor Tausk, conduzida à clínica

51
ibidem
52
LACAN, S III, p. 43
53
LACAN, S III, p. 164
54
Deriva-se daí a impossibilidade de uma mediação simbólica da alteridade. Um acontecimento da ordem da
alteridade só pode ser assumido como identificação imaginária, com as consequências de desintegração do
corpo próprio, explosão de rivalidade sob a forma de delírio de perseguição e de anulação dos regimes de
identidade que sustentavam uma certa establidade pré-psicótica. Neste sentido, podemos compreender porque
Schreber nunca integrou espécie alguma de figura feminina e por que o surto psicótico se deu à ocasião da
realização da identificação imaginária com a figura feminina através da afirmação: “seria bom ser uma mulher
no momento do coito”. Identificação resultante da descoberta de sua impossibilidade em ser genitor.
55
LACAN, S III, p. 298. Hoje, discute-se a existência de casos de psicose que não estão necessariamente
vinculados à forclusão do Nome-do-Pai. Fala-se assim de neo-surto (néo-déclenchement) e de psicose
oridinária a fim de insistir na sua diferença com a psicose ‘extraordinária’ fundada na conjunção entre
forclusão do Nome-do-Pai e anulação do poder de simbolização do Falo (Ver, por exemplo, ECF,
Conversation d'Arcachon - cas rares. Les inclassables de la clinique, Paris: Agalma, 1997). Se esta
perspectiva estiver correta, ela exigirá uma reconsideração da relação entre Lei e psicose, assim como dos
modos de suplementação do Nome-do-Pai. No entanto, a análise desta perspectiva escapa aos propósitos deste
livro.
56
FREUD, GW vol. X, p. 298
após uma disputa com seu amante e portando a seguinte reivindicação: “Meus olhos
(Augen) não estão como devem estar, eles estão revirados (verdreht)”. Resultado da
coisificação da metáfora: “meu amado é um hipócrita, um Augenverdreher”. Pois, se Freud
afirma que, na esquizofrenia, há a predominância da relação de palavra sobre a relação de
coisa, é porque as palavras foram coisificadas.
Assim, psicose e neurose nos mostram como a denegação ou a forclusão da
natureza metafórica da linguagem impedem o reconhecimento intersubjetivo do desejo.
Agora, faz-se necessário compreender como a metáfora pode nos ajudar a descrever os
dispositivos maiores da simbolização analítica que preenchem o papel de fundamentos da
cadeia significante. Tratam-se do Nome-do-Pai e do Falo: significantes que articulam a
diversidade dos modos de sexuação, de socialização e de gozo.
A relação de complementaridade entre estes dois operadores clínicos é evidente, já
que o Pai é o portador do Falo e o Falo é a significação do Nome-do-Pai. Tal relação de
complementaridade leva Lacan a afirmar: “o falo, ou seja, o Nome-do-Pai; a identificação
desses dois termos tendo, em seu tempo, escandalizado pessoas piedosas”57.
Tal discussão sobre o Falo e o Nome-do-Pai serve também para um outro objetivo.
Atualmente, vários críticos acusam Lacan de ter hipostasiado uma Lei simbólica de forte
conteúdo normativo. A partir do momento em que a totalidade dos modos de cura foi
pensada através do fortalecimento da identificação simbólica a uma Lei paterna e fálica de
aspirações universalizantes, Lacan teria anulado a diferença irredutível própria ao desejo e,
conseqüentemente, limitado a multiplicidade plástica de identidades sexuais e sociais.
As colocações mais conhecidas contra as conseqüências deste ‘falocentrismo’
lacaniano vieram de Derrida com o texto O fator de verdade. Para Derrida, o significante
fálico apareceria como um operador de simbolização hermenêutica e de totalização
sistêmica. Ele seria o elemento transcendental capaz de guardar a presença: “É aquilo que
permite, através certos arranjos, a integração do falocentrismo freudiano em uma semio-
linguística saussureana fundamentalmente fonocêntrica”58.
Derrida pode falar de falocentrismo porque a presença do Falo como ‘significante
transcedental’ do desejo produziria a indexação dos circuitos de significantes e desvelaria o
sentido da cadeia. Sentido que sempre seria desvelamento da castração da mulher como
verdade59. Falicizar o desejo seria pois uma maneira de subjetivar a castração e de produzir
um ponto de basta cuja verdadeira função consistiria em impedir a disseminação e a
polissemia capazes de provocar: “sem esperança de reapropriação, de fechamento ou de
verdade, os reenvios de simulacro a simulacro, de duplo a duplo”60. Mas tal leitura pode ser
relativizada se insistirmos no caráter metafórico do Falo e do Nome-do-Pai.

57
LACAN, S XVIII, sessão do 20/01/71
58
DERRIDA, La carte postale, Paris: Flammarion, 1980, p. 506.
59
Derrida chega a falar em “significado primeiro” (Cf. DERRIDA, Positions, Paris: Minuit, 1975, p. 120) a
fim de assinalar o pretenso regime de adequação que estaria presente no sistema simbólico lacaniano.
60
DERRIDA, idem, p. 489

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