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No interstício das

disciplinaridades
A psicologia política

Organizadores

Alessandro Soares da Silva


Felipe Corrêa
No interstício das disciplinaridades: a psicologia política
Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)

1ª Edição - Copyright© 2015 Editora Prismas


Todos os Direitos Reservados.

Editor Chefe: Vanderlei Cruz


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Diagramação: Cláudia Reucher
Capa e Projeto Gráfico: Bruno Marafigo

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Elaborado por:Isabel Schiavon Kinasz
Bibliotecária CRB 9-626

I61 No interstício das disciplinaridades: a psicologia política


2015 / organização de Alessandro Soares da Silva, Felipe
Corrêa. – 1. ed. – Curitiba : Editora Prismas, 2015. 310 p. ;
21 cm (Coleção Psicologia Política)
ISBN: 978-85-5507-057-0
1. Psicologia social. 2. Política social. I. Silva, Alessandro Soares
da (org.). II. Corrêa, Felipe (org.)

CDD 302 (22.ed)


CDU 316.6

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www.editoraprismas.com
No interstício das
disciplinaridades
A psicologia política

Organizadores

Alessandro Soares da Silva


Felipe Corrêa

Curitiba
2015
Coleção Psicologia Política

Diretor Científico
Alessandro Soares da Silva (USP – Brasil)

Conselho Editorial
Agustín Espinosa Pezzia (PUCP – Peru)
Alexandre Dorna (UCAEN – França)
Aline Reis Calvo Hernández (UERGS – Brasil)
Ana Raquel Raquel Rosas Torres (UFPb – Brasil)
Bruna Suruagy Dantas (Mackenzie – Brasil)
Cornelis Johannes van Stralen (UFMG – Brasil)
Dario Paez Rovira (UPV – Espanha)
Dennis de Oliveira (USP – Brasil)
Domênico Ung Hur (UFG – Brasil)
Elio Rodolfo Parisi (UNLS – Argentina)
Enock Pessôa (UFAC – Brasil)
Fernando Lacerda (Brasil)
Ignacio Dobles (UCR – Costa Rica)
Isabel Meneses (UPorto – Portugal)
Joelle Ana Bergère Dezaphi (UCM – Espanha)
José Manuel Sabucedo (USC – Espanha)
Juan Romero Romero (UTA – Chile)
Leoncio Camino (UFPb – Brasil)
Lisete Barlach (USP – Brasil)
Márcia Prezotti Palassi (UFES – Brasil)
Maria de Fátima Quintal de Freitas (UFPR – Brasil)
Maritza Montero (UCV – Venezuela)
Mathieu Turgeon (UnB – Brasil)
Mirta González Suárez (Costa Rica)
Pedrinho Guareschi (UFRGS – Brasil)
Salvador Sandoval (PUCSP – Brasil)
Silvina Alejandra Brussino (UNC – Argentina)
Telma Regina de Paula Souza (UNIMEP – Brasil)
Prefácio

A Psicologia Política como um campo interdisciplinar:


Uma leitura alternativa sobre a Psicologia Política?

Agustín Espinosa1

O convite que recebi para escrever o prefacio do


livro No Interstício das Disciplinaridades: a psicologia po-
lítica, organizado por meus colegas e amigos Alessandro
Soares da Silva e Felipe Corrêa, produziu em mim um sen-
timento de gratidão e honra em função do estímulo inte-
lectual que sua leitura implica.
O livro que o leitor tem agora em mãos constitui
uma obra relevante na definição e na evolução do campo
da Psicologia Política no contexto brasileiro em particular e
latino-americano em geral. Seus capítulos estabelecem um
debate com algumas posições hegemônicas sobre a Psico-
logia Política, em geral provenientes da tradição acadêmi-
ca anglo-saxônica. Nelas, se assume a Psicologia Política
como ramo ou subdisciplina estritamente ligada à Psico-
logia Social, da qual nasce e se alimenta metodológica e
conceitualmente, centrando-se de maneira específica nas
análises “psicologistas” do comportamento político. O livro
confronta a posição antes descrita com uma leitura que ca-
racteriza a Psicologia Política como um campo interdiscipli-
nar, que certamente retoma elementos metodológicos e

1  Líder do Grupo de Psicologia Política e professor da Pontificia


Universidad Católica del Perú.
conceituais da Psicologia Social, mas que transcende esta
última ao integrar conteúdos teóricos, metodológicos e te-
mas de natureza política, que vêm sendo abordados em
outras disciplinas, especialmente das ciências sociais.
Nesse sentido, é evidente que a massa crítica de-
dicada ao trabalho de investigação e intervenção psicopo-
lítica no contexto em que se insere o livro aposta numa
proposta interdisciplinar que possa melhor atender as
necessidades de trabalho relativos a assuntos sociopolíti-
cos do cenário latino-americano em geral e brasileiro em
particular. Assim, a leitura interdisciplinar não é caprichosa
ou arbitrária, mas se desprende de uma exaustiva revisão
do trabalho da Psicologia Política em distintos momentos
históricos e em lugares do mundo. Por isso, cabe prestar
especial atenção ao primeiro capítulo do livro pois, entre
outras coisas, Alessandro Soares da Silva nos apresenta
uma excelente descrição historiográfica da produção em
Psicologia Política, levando-nos a referências do princípio
do século XX e, mesmo, do fim do século XIX. Como o
autor bem coloca, essas referências provêm de distintos
campos e disciplinas, permitindo conciliar um conjunto de
aspectos subjetivos da vida política das pessoas com um
elemento central na definição do campo da Psicologia Polí-
tica, que é o nível de análise coletivo. Aqui, o autor identifi-
ca os escritos de Gustave Le Bon como fundamentais para
a integração dos elementos que, desde uma perspectiva
interdisciplinar, permitem uma nova, ou melhor dito, uma
inovadora aproximação da Psicologia Política.
A aposta por uma definição interdisciplinar do
campo envolve oportunidades, mas também implica ris-
cos. Entre os riscos mais importantes que se encontram na
atualidade está a impossibilidade de definir como se con-
figura a possível interação entre disciplinas para dar corpo
a um campo acadêmico coerente, em termos de limites e
alcances. Assim, essa proposta, longe de estar madura, co-
loca inumeráveis questões que precisam ser urgentemente
respondidas, e também implica desafios para consolidá-la
como um campo de alto impacto acadêmico e de relevân-
cia social internacional. Nesse sentido, é imperativo come-
çar a definir os alcances da proposta descrita no presente
livro e, ainda que alguns antecedentes sejam nele delinea-
dos, resta ainda um largo caminho a percorrer.
Um primeiro elemento a ressaltar seria o de de-
finir as contribuições de distintos ramos do conhecimento
para a análise do comportamento político, formal e infor-
mal, como um fenômeno coletivo. Destarte, no livro se
trabalham os aportes da Psicanálise para a compreensão
de fenômenos de natureza social e política (cf. o capítu-
lo de Richter), e da Psicologia Social para o entendimento
específico dos aspectos que produzem a participação em
movimentos sociais e seu impacto na definição de um con-
junto de problemas de natureza política (cf. os capítulos
de Klandermans e de Corrêa e Almeida). Também se apre-
sentam alguns dos aportes mais relevantes da Psicologia
Política brasileira, como é o caso do modelo de Consciência
Política desenvolvido por Salvador Sandoval, que tem de-
monstrado sua funcionalidade para compreender as impli-
cações da participação coletiva e os processos de tomada
de decisão política em determinados contextos sociopolí-
ticos, que envolvem desde a participação em movimentos
sociais e ações coletivas focadas na mudança social até a
geração de políticas públicas derivadas do anterior (cf. os
capítulos de Sandoval e de Silva e Ferreira Junior).
Eis então que aparecem com clareza duas temá-
ticas sobre as quais se poderia delinear uma leitura inter-
disciplinar da Psicologia Política no Brasil. A primeira surge
da proposta leboniana sobre este campo, quando o autor
define a Psicologia Política como uma “ciência do gover-
no”, por meio da qual se deve definir um conjunto de es-
tratégias que, desde perspectivas institucionais e cidadãs,
ajudem a desenvolver propostas de melhoria de qualidade
de vida das pessoas (cf. a análise psicopolítica das políticas
públicas feita por Souza). Esse tipo de proposta e análise de
impacto é fundamental para definir outro elemento indis-
pensável que ajuda a compreender o sentido da Psicologia
Política no contexto latino-americano: seu compromisso
social (cf. o capítulo de Montero). O segundo tema com um
claro desenvolvimento conceitual e empírico na Psicología
Política brasileira está relacionado com a análise dos mo-
vimentos sociais, como formas alternativas de construção
de agência e empoderamento nos coletivos que, muitas
vezes, ficaram alijados das esferas de poder formal e tra-
taram de alcançar objetivos políticos relacionados com o
reconhecimento de suas reivindicações (cf. o capítulo de
Oliveira). Uma vez mais, a análise desses processos nos
mostra uma Psicologia Política socialmente comprometida
na construção de sociedades mais solidárias e justas.
É assim que, em sua busca por definir-se, a
Psicologia Política no Brasil fez seu percurso, não por um,
senão por vários caminhos, e mesmo pelos interstícios
dessas vias, e foi definindo alguns temas que configuram
seu objeto de estudo. Ainda assim, há muito por fazer
nesse campo. Por isso mesmo, fazemos um convite para
a uma reflexão acerca do que-fazer cotidiano da Psicologia
Política, do caminho avançado e dos caminhos por seguir.

Boa leitura!
Sumário

A psicologia política: ser/estar nos interstícios das


disciplinaridades.......................................................... 13
Alessandro Soares da Silva
Para que Psicologia Política?......................................... 39
Maritza Montero
Psicologia Política e subjetividade dos atores políticos:
uma perspectiva psicanalítica....................................... 65
Ernesto Pacheco Richter
Teorias dos movimentos sociais e Psicologia Política..... 85
Felipe Corrêa e Marco Antonio Bettine de Almeida
A oferta e a demanda da participação: os correlatos psico-
sociais da participação nos movimentos sociais.......... 123
Bert Klandermans
A Psicologia Política da crise do movimento sindical
brasileiro dos anos 1990: Uma análise da consciência
política num momento de desmobilização . ............... 175
Salvador A. M. Sandoval
Políticas Públicas no enfoque da Psicologia Política.... 219
Telma R. de Paula Souza
Consciência, participação política e serviço público entre
agentes de apoio da Prefeitura Municipal de São Paulo,
Brasil....................................................................... 239
Alessandro Soares da Silva e Inácio Ferreira Júnior
A primavera “invernal” brasileira: uma esfera pública
radical em disputa...................................................... 285
Dennis de Oliveira
A psicologia política
ser/estar nos interstícios das
disciplinaridades

Alessandro Soares da Silva1

1  Editor da Revista Psicologia Política (2008-2015), líder do Grupo


de Estudos e Pesquisas em Psicologia Política, Políticas Públicas e
Multiculturalismo - GEPSIPOLIM - e docente no Programa de Pós-
Graduação em Psicologia Social do Instituto de Psicologia e da
graduação em Gestão de Políticas Públicas da Escola de Artes, Ciências
e Humanidades da Universidade de São Paulo, Brasil.
Introdução

O ano de 2010 foi particularmente importante


para a Psicologia Política enquanto campo. Neste ano,
completaram-se 100 anos da publicação do livro de Gus-
tave Le Bon, Psychologie Politique et Defénse Sociale
(1910). Também em 2010 celebramos os 10 anos de fun-
dação da Associação Brasileira de Psicologia Política e da
Revista Psicologia Política.
Ao pensarmos o campo, sobretudo balizados por
esses dois eventos, caminhamos para fazer, neste texto, al-
gumas breves considerações acerca da Psicologia Política
desde nossa própria trajetória de pesquisador e editor da
revista Psicologia Política. A reflexão que aqui fazemos, foi
já ensaiada nos editoriais que escrevemos para a revista e
em outros de nossos textos. Como já dissemos antes, não
se trata aqui de realizar homenagens ou mesmo de enal-
tecer a figuras de pais-fundadores, pois nos parece proble-
mático pensar um campo desse lugar. Além disso, não é
muito simples estabelecer quem seria esse tal pai-funda-
dor do campo. Fazer algo do gênero é sempre temerário.
Tal atitude nos levaria a fixar, indevidamente, em uma pes-
soa o que, na realidade, é fruto de um processo que ultra-
passa o limite da ação isolada de um ou outro pensador.
Esse tipo de posição nos parece uma armadilha
bastante atraente aos que gostam de justificar a ciência a
partir de fatos quase mitológicos. Em certa medida, enten-
demos que isso poderia ser o caminho para a construção de
uma espécie de memória oficial da Psicologia Política e que
serviria à manutenção de certos grupos oficiais e de certos
interesses que, em si mesmos, atuariam para homogeneizar
o campo e fazer dele uma disciplina com rubores de paradig-

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 15


ma. Realmente, não são esses nossos interesses e posições.
Contudo, e sem que caiamos nesse tipo de armadilha, faz-se
mister recordar o centenário da obra de Le Bon, somente, e
tão-somente, porque ela é a mais conhecida dentre diversas
publicações sobre Psicologia Política que emergiram no final
do século XIX e nos princípios do XX.
Claro está que Le Bon não foi o primeiro a pen-
sar em uma Psicologia Política – para ele próprio, o funda-
dor da Psicologia Política foi Maquiavel – e nem mesmo o
primeiro a usar o termo num título em uma obra de sua
autoria. Antes dele houve outros autores que pensaram e
nominaram suas obras como sendo de Psicologia Política.
Lembramos aqui dos trabalhos do também fran-
cês Émile Boutmy intitulados Essai d’une Psychologie Po-
litique du Peuple Anglais au XIX Siécle (1901) e Éléments
d›une Psychologie Politique du Peuple Américain (1902),
do italiano Nicolà Forneli autor de Dove si va? Appunti di
Psicologia Politica (1903) e do galego Elói Luis André cha-
mado El Histrionismo Español. Ensayo de Psicología Políti-
ca (1906). Em 1908, Vitor de Brito publicou no Brasil um
livro chamado Gaspar Martins e Julio de Castilhos: estudo
crítico de psychologia política. Certamente, essas obras são
menos conhecidas e todas, inclusive a de Le Bon, pouco ou
quase nada estudadas.
Ao lembrarmos o recente centenário do livro Psy-
chologie Politique et Defense Sociale de Gustave Le Bon
(1910), recordamos os distintos esforços de homens e
mulheres para que se estabelecesse um lugar de produção
de conhecimento que se desse no interstício disciplinar. E
não poderia ser diferente, sendo a Psicologia Política um
fenômeno decorrente das diversas questões que mobili-
zaram médicos, bacharéis em direito, filósofos, cientistas
políticos, sociólogos e também psicólogos sociais. É nes-

16 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


se espaço transfronteiriço que nasce um campo marcada-
mente aberto ao diálogo científico que visa a superação de
questões que transcendem as barreiras disciplinares.

Notas sobre a Psicologia Política

Essa obra de Le Bon foi traduzida para diversos


idiomas, dentre os quais o espanhol (1911) e o português
(1921), tendo refletido consideravelmente na formação
de pensadores interessados em investigar as articulações
possíveis entre psicologia e política. Isso aponta, portan-
to, para o momento vivido nas nascentes ciências sociais
e para o desenvolvimento de uma dada economia política
que ordenou o maior ou o menor desenvolvimento dessa
nova face da ciência como tal. Não obstante, a obra de Le
Bon pensa a Psicologia Política como um campo de conhe-
cimento “interdisciplinar”.
Muitas são as críticas que essa obra e seu autor
receberam e recebem, mas nem por isso ela deixa de ser
importante. Le Bon levantou nessa obra um conjunto de
temários que continuam atuais na Psicologia Política, ain-
da que vistos por outros olhares. Sindicalismo, (neo)colo-
nialismos, governança e relações internacionais são alguns
deles. Algo bastante significativo para nós, é o fato de Le
Bon (1921, p. 6) pensar na Psicologia Política como sendo
“sciencia do governo” e ser “tão necessária que os estadis-
tas não a poderiam dispensar”. Nesse sentido, podemos
dizer que um dos temas que mais se desenvolve na Psico-
logia Política contemporânea refere-se às políticas públicas
ou, porque não dizer, à essa sciência do governo.

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 17


Vale pontuar que, quando foi publicada, a obra
de Le Bon, ou mesmo dos autores que lhe antecederam,
a psicanálise não era ainda um referencial consolidado,
mas que se consolidou como possibilidade de se observar
e analisar os fenômenos que costumamos chamar de psi-
copolíticos. É clara a influência desse autor no desenvol-
vimento de textos psicossociais de Freud, como apontou
Serge Moscovici (1996). Do mesmo modo, as contribuições
de Wilhelm Reich (1976, 1988), Antonio Gramsci (1992),
Charles Merriam (1924), Harold Lasswell (1933, 1948), Al-
fred Sauvy (1949, 1957), Andrea Devoto (1960), William
Stnone (1974) e outros certamente colocam de manifesto
diferenças e antagonismos entre a Psicologia Política lebo-
niana, o desenvolvimento dela própria, bem como de seu
atual estado da arte.
Hoje, a Psicologia Política recebe significativas
contribuições oriundas das mais diversas áreas do saber,
tendo destaque autores como Bert Klandermans, José
Manuel Sabucedo (1996, 2000), Alexandre Dorna (1998,
2004, 2007), Maritza Montero (1987, 1991, 2009), Ignacio
Martín-Baró (1985, 1991), Salvador Sandoval (1989, 1994,
2001), Graciela Mota (1990, 1999, 2002), Ángel Rodriguez
Kauth e Julio Seoane (1988) e David Sears (2003). Essa fa-
ceta da Psicologia Política como espaço de encontros já foi
abordada por Montero e Dorna (1993), quando falam dela
como uma disciplina que se constrói em uma encruzilhada.
Mas, na verdade, para nós, ela é bem mais que
um espaço de saber que está em um momento no qual ne-
cessita decidir para onde deve ir. De fato, o que se chama
de encruzilhada é um espaço de encontros que se originam
exatamente por serem lugares de passagem. Espaços como
as encruzilhadas possibilitam encontros. Desses encontros
surgem novos olhares para a realidade. Mas não só; desses

18 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


encontros nascem diálogos mais duradouros que abrem
portas para a produção de respostas mais eficazes em um
mundo marcado pela complexidade (Silva, 2012). Portanto,
a Psicologia Política constitui-se como um campo dinâmico
e aberto à mudança, cônscio de que se produz no interstí-
cio da disciplinaridade e se firma mediante o diálogo entre
as distintas possibilidades de produção de saberes sobre
os fenômenos coletivos que vivem homens e mulheres na
sociedade, complexa para uns, pós-moderna para outros,
mas que, indubitavelmente, está marcada pelo signo da
transformação. Sem sombra de dúvidas, a Psicologia Políti-
ca latino-americana é bastante diversa, mas se há algo que
aproxima as abordagens que se elaboram nesta parte do
planeta é o seu compromisso com a mudança social, a qual
possibilita vivermos em um mundo mais justo. Foi nesse
sentido que Montero e Dorna escreveram:

Para a libertação, para a transformação social


[…] a psicologia política da América hispano e
lusoparlante encontra o caminho que a vincu-
la à ação e aos problemas mais urgentes des-
ses países, mas não como colocou Le Bon nos
princípios do século, desde o poder e para go-
vernar “melhor”, mas para construir uma so-
ciedade que possa dar a si mesma um governo
de acordo com suas necessidades.” (Montero e
Dorna, 1993, p. 12)

No que concerne à obra de Gustave Le Bon, po-


demos dizer que ela guarda um papel importante na pro-
dução de um conhecimento que disputou (e disputa ainda
hoje) hegemonia, um lugar de reconhecimento no âmbito
das ciências sociais. Para Le Bon (1921, p. 7), “a psycholo-
gia politica se edifica com materiaes diversos, de que os

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 19


principaes são: a psychologia individual a psychologia das
multidões e, enfim, a das raças.” E, em certa medida, não
pouco dessa afirmação se encontra em debate ainda hoje.
A obra de Le Bon punha em debate elementos da moder-
nidade frente a um imenso número de mudanças sociais
vividas na passagem do século XIX para o XX, sobretudo
na França, e atribuía à ação política daqueles que exerciam
o poder o papel de conduzir as multidões de maneira a
produzir/garantir a harmonia social e a manutenção de um
determinado status quo. Por isso, o outro nome da psycho-
logia política é sciencia do governo.
Essa visão leboniana de que a psicologia política
seria a ciência do governo ganha mais sentido na atuali-
dade; em um mundo em que, cada vez mais, as políticas
públicas ganham um papel mais central na vida dos sujei-
tos, dos/das cidadão/dãs. Sem a participação efetiva em
governos, não há como nos darmos essa tal sociedade.

Nesse sentido, um dos objetivos da psicologia po-


lítica é saber mais sobre como se desenvolvem os
fenômenos políticos e o porquê se produzem da
forma que se produzem. Disso decorre que, dida-
ticamente, se poderia dizer que em um primeiro
nível organizativo da psicologia política estariam
os cidadãos e as questões referentes ao como e
porquê pensam sobre a política e seu fazer; as ex-
pressões cidadãs e seus modos de materializar-
-se, de participar ou mesmo negar-se a participar
nos processos políticos; ou ainda o modo como
percebem a eficácia das instituições políticas, re-
presentantes e líderes, ou inclusive o governo em
seu conjunto. (Silva, 2012, p. 14)

As motivações individuais, as ideologias e as ten-


dências são importantes aspectos de estudos psicopolíti-

20 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


cos, visto que indivíduos se agregam em partidos, movi-
mentos e organizações que agrupam e consolidam o po-
der. Motivações individuais e ideologias também guardam
importante e estratégica relação com as motivações cole-
tivas, originando uma dialética indivíduo-coletivo que per-
mite a construção de novas sínteses acerca do ser humano
e do mundo no qual ele vive.
Destarte, a política pode ser tomada como um
ponto de partida para muitas atividades sociais que vão
desde escândalos, marketing, tecnologia da informação e
manejo da informação, até a sofisticação, a desconfiança, o
cinismo, a corrupção, a violência política, as políticas públi-
cas, a socialização e a identidade, passando pelas preferên-
cias de partido, de ideologia, pela polarização da ideología
e filiação política. Esse é um exemplo de possibilidades de
usos de uma psicologia política num mundo marcado pelas
desigualdades. Mesmo alí ela pode ter um papel transfor-
mador. Como já apontamos em outra ocasião,

os grandes transtornos e interrupções nos siste-


mas políticos e nos governos tiveram lugar nos
tempos de crises, sejam elas de ordem pessoal,
interpessoal, social e/ou econômicas. Nesses
momentos crescem as percepções de que go-
vernos são incapazes, corruptos ou incompe-
tentes. Nesses momentos cresce a participação,
mas esta nem sempre gera mudanças duradou-
ras, quem sabe exatamente porque não se gera
uma cultura de participação permanente, de
controle social. E é nesse campo de transforma-
ção dessa cultura da passividade que necessita
de crises para mover-se, que vemos uma prá-
tica científica da psicologia política e daqueles
que a fazem. Sem mudanças nas esferas privada
e pública nas quais os sujeitos vivem e atuam

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 21


não será possível fazermos um mundo melhor e
nem sermos mais felizes (Silva, 2012, pp.14-15).

Entre os múltiplos fatores que se interpõem no


caminho da felicidade estão aspectos da vida humana que,
juntamente com a polarização da ideologia política, espe-
cialmente à luz da mescla com o racismo, as questões de
gênero e de orientação sexual, os desafios econômicos e a
ideologia religiosa marcam lugares simbólicos que (im)pos-
sibilitam um ser/estar no mundo e não podem ser correta-
mente analizados desde uma hermenêutica das disciplinas.
Esses fenômenos transcendem as fronteiras disciplinares e
se encontram no mesmo interstício em que emerge a psi-
cologia política. Entendê-los depende de uma capacidade
de dialogar e de promover/participar de encontros, que
podem ter lugar no âmbito do campo psicopolítico.

Notas sobre a Psicologia Política brasileira

Tais preocupações podem ser vistas quando ob-


servamos mais atentamente os grupos de pesquisa e suas
linhas de investigação, que se relacionam diretamente
com a Psicologia Política no Brasil. Quem sabe, fazer um
diagnóstico dessa evolução seria muito interessante; mas,
infelizmente, não caberia nesse texto. Contudo, vale dizer
que, desde que se fundou a Associação Brasileira de Psico-
logia Política – na Fundação Escola de Sociologia e Política
(FESP), São Paulo, em 10 de dezembro de 2000 – até o pre-
sente momento, foram muitos os avanços que o campo vi-
veu em nosso país. Houve uma expansão dos grupos, tanto

22 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


em número de grupos que assim se reconhecem, quanto
no número de pesquisadoras/es envolvidas/os. Trata-se de
um crescimento constante e sólido.
A Psicologia Política enquanto campo institucio-
nalizado surge em 1965, momento em que se ofertou a
primeira disciplina com esse nome no curso de Ciências
Sociais da Universidade Federal de Minas Gerais. Não se
pode dizer que sua presença fosse orgânica e dinâmica. Ela
também chegou as ser ofertada na Universidade de Brasí-
lia em um período curto nos anos 1980, reaparecendo em
2009 nas ciências políticas. Como um campo de produção
intelectual, os trabalhos de Victor de Britto (1908) ou de
Francisco José Oliveira Vianna (1921, 1933, 1949) foram
muito importantes para que se assentassem as bases de
uma Psicologia Política brasileira.
Entretanto, a criação do grupo de trabalho em
Psicologia dos Movimentos Sociais na Associação Nacio-
nal de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia (ANPPEP),
em 1981, e o Núcleo de Pesquisa em Psicologia Política e
Movimentos Sociais na Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo (PUC-SP), em 1986, foram fundamentais para a
dinamização do campo.
Nessa dinâmica de trabalho em prol da con-
solidação do campo, o Núcleo de Psicologia Política e
Movimentos Sociais da PUC-SP, liderado pelo professor
Salvador Sandoval, organizou o I Simpósio Nacional de
Psicologia Política em maio de 2000. Como frutos desse
encontro nasceram a Associação Brasileira de Psicologia
Política (ABPP), inicialmente nomeada como Sociedade, e
a Revista Psicologia Política (RPP).
O primeiro número da RPP foi resultado de algu-
mas das intervenções do simpósio, trabalhadas para serem
artigos científicos que tratassem de temas relevantes na

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 23


Psicologia Política brasileira. O primeiro fascículo foi lan-
çado em abril de 2001, com oito artigos advindos de oito
instituições nas quais a Psicologia Política era uma possi-
bilidade concreta de se pensar a realidade. Deste então, a
RPP gerou 28 fascículos em 13 volumes; publicou 212 ar-
tigos científicos e reuniu 259 autores e autoras advindos,
originalmente, da antropologia, administração, educação,
educação física, filosofia, direito, marketing, comunicação
social, história, política, psicologia e sociologia, o que faz
da revista e da ABPP um espaço verdadeiramente interdis-
ciplinar, que contribui para os encontros que permitem a
produção da Psicologia Política. Em 13 anos, recebemos
contribuições enviadas da Argentina, Austrália, Brasil, Chi-
le, Colômbia, Costa Rica, Espanha, Estados Unidos, França,
Itália, México, Peru, Portugal e Venezuela.
E, como não poderia deixar de ser, devemos recor-
dar os esforços dos editores Salvador Sandoval e Marco Au-
rélio Máximo Prado (2001-2007) e Celso Zonta (com quem
trabalhei em parceria) (2008-2011). Na primeira dupla de
editores tivemos um originário da história (graduação) e
das ciências políticas (pós-graduação) e outro da psicolo-
gia (graduação) e da psicologia social (pós-graduação). Na
segunda dupla de editores, um era originário da psicologia
(graduação) e da psicologia social (pós-graduação) e outro
da filosofia (graduação) e da psicologia social (pós-gradua-
ção). Isso aponta para a importância desses encontros nas
fronteiras disciplinares, pois eles de fato impulsionaram o
campo psicopolítico no Brasil e a ação desses editores foi
verdadeiramente comprometida com olhares transfron-
teiriços, o que permitiu à Psicologia Política consolidar-se
enquanto um campo que não se compreende como uma
subdisciplina da grande área Psicologia, mas como parte
da área Interdisciplinar de produção de conhecimento. O

24 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


mesmo se pode dizer da ação dos quatro presidentes da
ABPP: Leoncio Camino (2000-2002); Salvador Sandoval
(2002-2004); Cornelis Johannes van Stralen (2004-2008;
2010-2014); Marco Aurélio Máximo Prado (2008-2010).
A cada gestão da ABPP e a cada fascículo da RPP
vemos claramente o compromisso com a construção de
uma Psicologia Política crítica e transformadora e a serviço
de uma sociedade justa, na linha do que foi proposto por
psicólogos/as políticos/as como Ignácio Martín-Baró, Silvia
Lane, Maritza Montero, Ángel Rodriguez Kauth, Graciela
Mota, Leoncio Camino e Salvador Sandoval. O labor das
diretoria da ABPP e dos editores da RPP tem reunido inú-
meros/as pesquisadores/as do campo que tem procurado
refletir sobre aspectos de uma sociedade complexa e que
exige cada vez mais uma resposta interdisciplinar. É nesse
quadro, e com esse intuito, que percebemos os esforços
dos/as autores/as que publicaram seus artigos na RPP.
Tratar de aspectos teórico-práticos da Psicologia
Política e do que significa esse espaço de produção de sa-
ber e de intervenção profissional ainda tem sido um desa-
fio importante para o campo. Exatamente pelo fato de a
Psicologia Política originar-se no interstício das disciplinas
é fundamental discutir qual a sua relevância enquanto um
campo científico que desempenha um papel social e políti-
co. Alexandre Dorna (1998), José Manuel Sabucedo (1996,
2000), Maritza Montero (1987, 1991, 2009), Marco Aurélio
Máximo Prado (2000, 2001) e Alessandro Soares da Silva
(2012) analisam criticamente aspectos históricos, teórico-
-epistemológicos e mesmo as definições mais frequentes
utilizadas na literatura especializada com vistas a entender
seus alcances e limitações.
Nesse processo, há concordâncias e discordâncias,
pois há quem veja a Psicologia Política como uma subdis-

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 25


ciplina capaz de gerar suas próprias teorias, outros como
uma disciplina independente da ciência política e alguns
mais, como nós, como um campo interdisciplinar de conhe-
cimento. Esse debate faz com que esteja em discussão o que
usualmente se aponta como seu objeto e campo de estudo;
as inconsistências e os interesses que jogam um importante
papel na definição do que vem a ser a Psicologia Política.
Nesse jogo de interesses, ainda estamos lutando por conso-
lidar e alcançar o reconhecimento dos aportes latino-ame-
ricanos para Psicologia Política, os quais contêm, para além
das contribuições teóricas, um verdadeiro chamado ao com-
promisso pela luta contra a tirania e a opressão.
Quem sabe por isso temas como políticas públi-
cas e direitos sejam temas recorrentes na Psicologia Polí-
tica brasileira. O estudo do direito e das políticas públicas
como objetos privilegiados da Psicologia Política pode ser
entendido pelo fato de que eles impõem/possibilitam aos
indivíduos padrões de formas de vivenciar interações so-
ciais marcadas pelas relações de poder e que lhes permi-
tem diferentes formas de ser/estar no mundo, em socie-
dades complexas. Lila Spadoni (2009), por exemplo, afir-
ma que a legislação organiza muitas formas de interações
humanas e pode ser estudada enquanto representações
sociais de grupos majoritários. Discute também o impacto
da legislação sobre as representações dos grupos minori-
tários, que podem gerar comportamentos de submissão
ou de desviança. Temas como políticas públicas de saúde e
ordenamento do Estado; relações entre este último, o ter-
ceiro setor e os/as cidadãos/ãs; mudanças sociais advindas
da ação política de atores coletivos (como os movimentos
sociais, que pautam temas-tabu como família, homossexu-
alidade, acesso e permanência na terra, formações iden-
titárias que transgridem a normalidade dominante etc.)

26 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


não só forçam a sua discussão, mas contribuem para que a
própria Psicologia Política seja pensada à luz das dinâmicas
que põem em marcha a própria história contemporânea.
Nesse sentido, há uma perspectiva que vê, a par-
tir da obra e vida de Sílvia Lane, na própria psicologia so-
cial crítica uma forma de Psicologia Política. (Lima, Ciampa
e Almeida, 2009) A justificativa mais corrente é a de que
a práxis em psicologia social ressalta sua relação com a
transformação das condições sociais e individuais contem-
porâneas, sendo que, nessa perspectiva, a psicologia de-
veria estar a serviço da emancipação, desenvolvendo uma
práxis crítica e criadora. Para Aluísio Lima, Antonio Ciampa
e Juracy Almeida (2009), por exemplo, haveria a necessida-
de de se compreender a psicologia social, também, como
Psicologia Política, enquanto afirmação de uma psicologia
social crítica, aberta a novos modos de ser e agir, preocu-
pada com os projetos de vida individuais e com a dinâmi-
ca dos processos históricos e sociais. Porém, essa leitura
amarra a Psicologia Política como subdisciplina ou como
mera variante da psicologia social, o que foge por comple-
to das origens históricas que possibilitaram a emergência
da Psicologia Política. (Sabucedo 2000; Silva, 2012) Ainda
assim, essa leitura é tão legítima quanto as demais leituras
que co-habitam o campo.

Notas sobre a Psicologia Política


latino-americana

A tensão existente entre a Psicologia Política eu-


ro-estadunidense e a Psicologia Política latino-americana
é sabida e pública. Não foram poucas as tensões vividas
durante a Reunião da Cidade do México e acirradas em
No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 27
Barcelona. Desde os anos 1980, as diferenças existentes
entre essas duas grandes matrizes da Psicologia Política se-
mearam entre psicólogos/as políticos/as iberolatinoamen-
ricanos o desejo de um espaço institucional alternativo à
Internacional Society of Political Psychology (ISPP). Portan-
to, as raízes da Associação Ibero-Latinoamericana de Psico-
logia Política (AILPP) remontam aos anos 1970-80, quando
emerge a Psicologia Política latino-americana, inspirada
na produção intelectual e na ação coordenada por Ignacio
Martín-Baró, Maritza Montero, Graciela Mota, Silvia Lane e
Leoncio Camino e outros psicólogos políticos.
A fundação da ISPP em 1978 não foi suficiente
para gerar um espaço associativo que congregasse os/as
profissionais e pesquisadores/as latino-americanos/as, vis-
to que os seus modelos de leitura teórica da realidade e de
intervenção eram bastante distintos dos utilizados nos Es-
tados Unidos. Quando latino-americanos/as compareciam
às reuniões da ISPP sentiam dificuldade de interagir com
uma abordagem hegemônica e que se apresentava neutra.
Além disso, os fazeres latino-americanos eram comumente
menorizados, tidos como uma produção científica pouco
séria. Isso se agravou na Reunião da Cidade do México –
DF, na qual Maritza Montero foi eleita presidente da ISPP.
Nesse momento, estava claro que duas maneiras de posi-
cionar-se e colocar-se diante da Psicologia Política concor-
riam e desejavam se impor, seja para manter o poder, a
posição euro-estadunidense, seja para resistir ao silencia-
mento – a posição ibero-latinoamericana.
Sempre que pesquisadores/as iberoaméricanos/
as se encontravam, esse era um tópico das conversas: a
necessidade de outra organização, alternativa à ISPP, que
se alinhava sempre a partir do hemisfério norte. No Bra-
sil, a cada vez que organizávamos um dos simpósios da

28 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


ABPP marcávamos datas para darmos o início a esse labor
fundacional. Essa ação ganhou força quando, em 2008,
participou, por nosso convite, do V Simpósio Brasileiro
de Psicologia Política, Nelson Molina Valencia (Colômbia)
e Joelle Bergère Dezaphi (Espanha). Nessa ocasião, haví-
amos posto como data de fundação o XXXIII Congresso
Interamericano de Psicologia da Sociedad Interamerica-
na de Psicologia (SIP), que se celebraria em Medellín, na
Colômbia, nos dias 26 e 27 de Junho de 2011. Para isso,
começamos a trabalhar fazendo contato com os/as prin-
cipais pesquisadores/as da região.
Esse labor ganhou ainda mais força quando es-
tivemos fazendo um pós-doutorado na Universidade de
Santiago de Compostela, sob a supervisão de José Manuel
Sabucedo, entre 2009 e 2010. Lá, por diversas vezes, de-
senhamos manuais, coletâneas e encontros que propug-
navam a criação de uma União Ibero-Latinoamericana,
tentativa e conversas que se deram conectadas com Sal-
vador Sandoval e Nelson Molina Valéncia. Por fim, asso-
ciou-se a esses esforços o Grupo de Psicologia Política da
Universidad Nacional de Córdoba (Argentina), liderado por
Silvina Alejandra Brussino. Compartilhamos a coordenação
desses trabalhos com Nelson, Silvina e Salvador, apoiados
institucionalmente por Leoncio Camino, Elio Parisi, Gracie-
la Mota, José Manuel Sabucedo, Joelle Bergère Dezaphi,
Maritza Montero e outros.
Quando da concretização do simpósio que apre-
sentaríamos a SIP e que Nelson Valéncia se encarregara de
organizar, com nosso apoio, vimos por bem chamar José
Manuel Sabucedo, Graciela Mota, Wilson Lopez Lopez, Sal-
vador Sandoval e Silvina Brussino. Infelizmente, nem Sal-
vador nem Graciela puderam estar presentes. Como pre-
paração para Medellín, Silvina Brussino compartilhou com
todos nós e nossas redes um documento que propunha a
No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 29
fundação de uma rede de Psicologia Política. Feitas as pou-
cas emendas ao documento, em Medellín realizamos duas
reuniões, nas quais se associaram cerca de 30 pessoas. O
documento proposto por Brussino chamava-se Red Ibero-
americana de Psicología Política e nele se lia que a rede
deveria ser capaz de:

1.) Proporcionar uma análise de conjuntura que


possibilite identificar os elementos sócio-polí-
ticos emergentes prioritários que hoje interpe-
lam a disciplina, pautando assim uma agenda
de trabalho articulada e compartilhada. 2.) Pro-
mover o desenvolvimento da investigação, pro-
porcionando espaços de intercâmbio, estudos
comparativos e colaborativos que tenham como
objetivo a construção de conhecimento interdis-
ciplinar e latino-americano sobre as vinculações
dos sujeitos e dos grupos com o âmbito político,
fortalecendo, por sua vez, a produção e a circu-
lação de conhecimentos e ferramentas de inter-
venção. 3.) Fortalecer o diálogo acadêmico por
meio: a.) do intercâmbio de docentes, bolsistas
e estudantes, defendendo uma circulação fluida
e sistemática do conhecimento gerado nos dis-
tintos âmbitos da rede, viabilizando a subscrição
de convênios institucionais em nível universitá-
rio que contribuam com a consecução desse ob-
jetivo; b.) da organização de eventos científicos
internacionais e encontros de trabalhos especí-
ficos da área, que possibilitem a socialização das
diversas produções e o intercâmbio de saberes;
c.) da geração de espaços de co-formação nas
distintas instituições e âmbitos nos quais estão
inseridos os grupos e colaborar com a hierar-
quização e a atualização dos/as profissionais da
área; d.) da geração de uma revista latino-ameri-
cana de Psicologia Política. 4.) Gerar novas redes
de comunicação e potencializar as já existentes
com vistas a aumentar a visibilidade da área e
a sistematização das experiências locais, geran-

30 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


do, assim, uma integração maior dos diferentes
saberes do campo, favorecendo o intercâmbio
entre os grupos. 5.) Possibilitar a realização de
acordos específicos de trabalho entre integran-
tes da rede para o desenvolvimento de projetos
concretos de investigação inter-grupais. 6.) Con-
vocar para a participação e envolvimento psi-
cólogos e outros cientistas sociais interessados
na Psicologia Política latino-americana nas dis-
tintas circunstâncias do território, assim como
o desenho de políticas públicas que demandem
uma intervenção especializada, promovendo o
compromisso social dos profissionais da área.
7.) Posicionar-se criticamente diante das instân-
cias correspondentes em relação às condições
de precarização do trabalho que vêm marcan-
do nossos grupos. 8.) Promover nas institui-
ções pertinentes o debate sobre a inclusão da
Psicologia Política como área de exercício legal
da profissão de psicólogo em todo o território
latino-americano e como disciplina obrigatória
na formação de psicólogos e cientistas sociais
latino-americanos. (Brussino e cols., 2011)

No dia 29 de julho de 2011, em Medellín, con-


certou-se a fundação da AILLPP e estabeleceu-se que
Silvina Brussino seria a Secretária Geral pró-tempore da
rede/associação até que se celebrasse em Córdoba o 1º
Encuentro Ibero Latinoamericano de Grupos y Equipos
de Psicología Política, entre os dias 2 e 4 de Novembro
de 2011. A meta estabelecida em 2008 havia sido al-
cançada. Não restam dúvidas que o encontro cordobês
constituiu um frutífero espaço de intercâmbio de idéias
e de um levantamento efetivo acerca do estado da arte
da Psicologia Política na região. No encontro, 11 países
participaram de mesas investigadores: Peru, Colômbia,
Costa Rica, México, Venezuela, Argentina, Brasil, Chile,
Uruguai, Espanha e Portugal. Com a fundação da AILPP,

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 31


as revistas de Psicologia Política argentina e brasileira
passaram a ser veículos oficiais de comunicação, tendo um
de seus fascículos focado em temas eixo para a Psicologia
Política latino-americana. Entre 31 de julho e 3 de agosto
de 2012, celebramos em Lima, no Peru, o I Congreso Ibe-
roamericano de Psicología Política e o II Encuentro Iberoa-
mericano de Grupos y Equipos de Investigación en Psico-
logía Política. No congresso, elegeu-se a primeira diretoria
da associação, cabendo-nos a Secretaria Geral Adjunta e a
Brussino a Secretaria Geral.
A fundação dessa nova entidade – passados 114
anos das obras do francês Emile Boutmy, 107 do livro do
brasileiro Victor de Britto e 105 anos do clássico livro de
Gustave Le Bon –, traz uma força renovada a um campo
que tem enfrentado muita resistência no universo das
ciências estabelecidas. Como é sabido, a Psicologia Política
constituiu-se fora dos muros da universidade e só muito
recentemente começou a abrir espaço dentro do meio uni-
versitário com a fundação da ISPP (Silva, 2012). Entretanto,
parece-nos que a fundação da AILPP vem trazer à luz outro
jeito de fazer Psicologia Política, em que o campo constitui-
-se interdisciplinarmente e no qual o encontro de saberes
disciplinares possibilita a produção de novos olhares, de
novas formas compreensivas dos fenômenos coletivos.

Considerações finais

Essa tem sido a história não só da Psicologia Polí-


tica brasileira, mas de toda a produção latino-americana.
Nesse campo, encontram-se filósofos, historiadores, cien-
tistas políticos, bacharéis em direito, sociólogos e antropó-
logos, comunicadores e psicólogos. Juntos, esses e outros

32 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


profissionais têm se esforçado por construir a Psicologia
Política a partir de distintos e variados diálogos interdisci-
plinares. Disso a revista Psicologia Política tem sido teste-
munha em seus 13 anos de existência.
Ao lermos a produção psicopolítica latino-ameri-
cana, ao observarmos as diferentes formas de intervenção
que se faz desde a Psicologia Política, percebemos o com-
prometimento com posturas científicas críticas e sólidas.
Percebemos que cada uma delas, ainda que partam de
lugares hermenêuticos diferentes, fundamentam-se em
complexas argumentações que são resultantes de encon-
tros, de diálogos, ocorridos nas fronteiras disciplinares e,
muitas vezes, para além delas. Essa é a cara da Psicologia
Política brasileira e ibero-latino-americana, fruto dos esfor-
ços da comunidade científica que se agrega em torno ao
campo da Psicologia Política.
Esta produção de textos não se restringe a posicio-
namentos politica e socialmente comprometidos. Não se
trata disso a Psicologia Política! Não se trata de uma psicolo-
gia comprometida politicamente. Na verdade, é importante
fecharmos esse capítulo reforçando a idéia que orienta des-
de sua criação a revista Psicologia Política, da qual atualmen-
te somos editores: a Psicologia Política como um “campo de
estudos interdisciplinar”, o qual se interessa pelo estudo das
problemáticas “que tem como epicentro a reflexão sobre o
comportamento político nas sociedades contemporâneas”.
Realmente não se pode perder de vista que

O ponto de intersecção entre estas duas áreas


científicas – Psicologia e Política – tem sido a
preocupação com a construção de um universo
de debate no qual nem as condições objetivas
nem as subjetivas estejam ausentes, pelo con-
trário, estão sendo compreendidas, por diferen-
tes abordagens teóricas, como codeterminan-
tes, portanto, constituintes dos comportamen-
tos coletivos, dos discursos, das ações sociais e
No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 33
das representações que constituem antagonis-
mos políticos no campo social. (RPP, 2001, p. 8)

Essa é a perspectiva que temos buscado guardar


e construir desde que iniciamos nossos estudos do cam-
po: uma Psicologia Política que está deslindada no âmbito
da interdisciplinaridade, que se faz nas “encruzilhadas” do
conhecimento, nos “interstícios disciplinares”. Portanto,
vemos nos encontros e diálogos interdisciplinares ocasião
para que a produção que a Psicologia Política trouxe e traz
à comunidade científica torne-se um caminho para a mu-
dança social. Esse tipo de postura é importante porque ga-
rante uma produção de saberes no campo psico-político
que é teórico-metodologicamente capaz de ter maior al-
cance, tanto reflexivamente quanto interventivamente. A
acolhida dessa postura por parte de um grupo expressivo
da comunidade de psicólogos/as políticos/as mostra como
temos avançado rumo a uma leitura alternativa e efetiva
da Psicologia Política que pode contribuir muito para a Psi-
cologia Política mundial, quando investigadores/as de ou-
tras partes do globo decidirem olhar para este rincão.
Certamente, a Psicologia Política brasileira e lati-
no-americana contém um conjunto de contribuições que
guarda elementos comuns e que auxiliam numa compre-
ensão inovadora de fenômenos políticos que afligem o
mundo contemporâneo. Esse modo de olhar que temos
construído coletivamente abre portas para um pensamen-
to mais crítico e comprometido com a transformação so-
cial no instante em que nos convidam a repensar (nosso)
o cotidiano e a ações que são levadas nessa dimensão es-
truturante da vida humana. De modo particular, esse é o
modo de trabalhar e pensar que realizamos no Grupo de
Estudos e Pesquisas em Psicologia Política, Políticas Públi-
cas e Multiculturalismo (GEPSIPOLIM). (Almeida, Silva e
Corrêa, 2012; Costa, D‘Addio, Bosso e Souza, 2013).

34 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


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38 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


Para que Psicologia Política?

Maritza Montero1

1  Foi presidente da International Socity of Political Psychology (2005-


2006) e Professora Titular da Faculdade de Ciências Humanas da
Universidad Central de Venezuela, Venezuela. Texto traduzido pro
Elvira Hernandez Riba e Felipe Corrêa e originalmente publicado em
espanhol na Revista Psicologia Política, 9(18), 2009.
Introdução

A pergunta que serve de título é uma das que re-


correntemente venho me fazendo nos últimos anos, mais
precisamente, nos últimos 15 anos, depois de longos 30
anos realizando estudos em Psicologia Política, sob dife-
rentes perspectivas psico-sociais. Durante esse tempo, vi
e experimentei muitas coisas. Tenho sentido, como ge-
ralmente acontece durante a pesquisa científica, enorme
curiosidade pelos fatos que se produzem na vida cotidiana
de qualquer sociedade e que nos afetam como cidadãos
e cidadãs; especialmente pelas ações diretivas levadas a
cabo por uma população ou por parcelas dela, que podem
desencadear mudanças inesperadas, mudanças desejadas
e também mudanças lamentadas, as quais afetam não so-
mente seus atores diretos, mas toda sociedade. O fasci-
nante, surpreendente e escuro mundo do discurso político
tem me absorvido, assim como as luzes que dele se des-
prendem. Tenho me aventurado também na zona de con-
fluência em que a participação social é a tarefa cidadã que
constrói a sociedade e essa mesma cidadania que a gera.
Nesse sentido, como pesquisadora psico-social,
participei de pesquisas que respondiam a fatos já passados
do momento; para explicar o que havia acontecido e para
dar recomendações e conselhos tardios, cujo valor consis-
tia em fornecer formas mais ou menos úteis de explicar o
que ocorrera. Estudos algumas vezes muito interessantes,
em outros casos meras repetições descritivas de um fato
que já tinha ficado para trás. Estudos que interpretavam
o que já era passado, e que, por isso, tinham a implícita
intenção de constituir uma advertência para o futuro. Mas,
a história se repete? Aparentemente, os fatos históricos

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 41


nunca são iguais entre si e só as ações dos seres humanos
repetem-se vez ou outra, mas sempre com conseqüências
diferentes. Uma encruzilhada, uma emboscada, um con-
fronto, uma negociação sempre podem ser reduzidos a
esquemas de ação e ter uma lógica genérica; mas nós, os
seres humanos, desenvolvemos a lógica e também a cada
dia contradizemos suas normas.
Tenho visto, lido e participado de pesquisas que
produziram respostas em que se anunciaram explicações,
revelaram-se causas e anunciaram efeitos, que:

• Alguma vez deram certo.


• Outras vezes tiveram repercussão em âmbitos
inesperados, não necessariamente positivos (efei-
to perverso, nos termos de R. Boudon, 1993).
• Não tiveram repercussão imediata ou foram
seguidas de um execrável e carregado silêncio,
mas que, algum tempo depois, viraram objeto de
citação e de análise, ocupando um lugar dentro da
zona do rumor e da conversa em voz baixa.
• Foram recusadas por razões alheias ao seu
método, por seu fundamento teórico ou por seus
resultados. A recusa aconteceu, provavelmente,
porque poderiam manifestar aquilo que poderia
ser considerado uma “incorreção política”. Ou
seja, não se encaixavam nos padrões habituais,
considerados politicamente adequados e aceitá-
veis para determinadas hierarquias e grupos so-
ciais, com maior ou menor grau de poder social.

Tudo isso acontece no campo psicopolítico e é fas-


cinante, intrigante, exasperador, perigoso, frustrante, difí-

42 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


cil, desagradável e viciante. E talvez seja assim por se tra-
tar de um campo que parece distante e que interfere de tal
forma em nossas vidas que os fatos nele acontecidos não
só as transformam, como podem, inclusive, extingui-las.
Assim, surgem outras perguntas: A Psicologia Po-
lítica serve para alguma coisa? Suas definições, descrições,
explicações, interpretações, advertências e recomenda-
ções têm algum efeito? Quais e como podem ser caracteri-
zados? Não sei se o que se discute a seguir responde essas
questões. Talvez torne essas questões maiores e mais com-
plicadas ou, provavelmente, só apresente a elas uma res-
posta parcial ou superficial. Mas qualquer que seja o nível
de acerto ou erro, a pergunta enunciada me acompanha
todos os dias e parece-me que refletir sobre seu sentido e
alcance é tarefa inevitável para uma psicóloga venezuelana,
latino-americana, habitante deste planeta, crítica, compro-
metida com a transformação positiva de dois mundos: seu
mundo de vida e aquele em que vive e que transcende os
limites do primeiro e cujas fronteiras podem ser infinitas.

Sobre o ser da Psicologia Política. O que é


Psicologia Política. Sua definição e objeto

Para tratar da pertinência, da utilidade e do al-


cance da Psicologia Política é conveniente, em primeiro
lugar, dizer o que por ela se entende. Muito da Psicologia
Política que é feita atualmente deriva de uma psicologia
social orientada para o conhecimento de fenômenos políti-
cos. Mas essa não é a única abordagem. Outra importante
tendência deriva da psicologia clínica e do caráter mais ou

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 43


menos patológico das grandes figuras políticas. Homens e
mulheres cujas ações, decisões e idéias expressadas em
seus discursos (outra forma de ação) têm influenciado as
sociedades e, conseqüentemente, a vida das pessoas que
delas fazem parte. A origem pode mudar, mas a função é
a mesma: aplicar a psicologia à compreensão da política.
Desde o começo de sua sistematização como uma
extensão da psicologia (meados do século XX), mas não
desde suas origens nas ciências sociais (fim do século XIX),
tem predominado a definição que vê a Psicologia Política
como o estudo da interação entre fenômenos políticos e
processos e fenômenos psicológicos (cf. Bruckner, 1971;
Horkheimer, 1971; Grohs, 1971; Stone, 1974; Hermann,
1986; Gross Stein, 2002). Seu aporte mais importante se-
ria dar explicações teóricas a fenômenos políticos, a partir
de teorias e conceitos psicológicos.
Exemplo disso é a posição de Gross Stein (2002,
p. 79), para quem a Psicologia Política deve estudar a inte-
ração entre “padrões de pensamento, sentimento e iden-
tidade políticos, a interação entre esses padrões e seu im-
pacto na eleições”. Ou seja, trabalhar os fenômenos e pro-
cessos psicológicos em relação a sua ocorrência no campo
político. Em 2002, Hermann (2002, p. 46) modificou sua
postura, dizendo que a Psicologia Política é “como a econo-
mia ou a cultura políticas”, outra “maneira de compreen-
der a política”; uma “maneira de descrever o papel que as
pessoas desempenham na política e, como tal, representa
uma construção da realidade política”. Nesse caso, talvez a
postura epistemológica se modifique ao se admitir o prin-
cípio construcionista, mas não ainda a base ontológica. A
nova definição é, mais uma vez, uma forma de interação
entre dois campos separados. As definições de Lasswell
(1930), Stone (1974) e Hermann (1986) – e, com elas, a

44 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


grande maioria dos psicólogos anglo-saxões e muitos euro-
peus que trabalham com o tema – são desse tipo.

Uma psicologia independente e


uma só esfera

Uma discussão mais recente busca marcar a dis-


tinção entre ciência política e a Psicologia Política, propon-
do abandonar a definição tradicional antes exposta que,
para alguns, poderia implicar a sujeição à influencia dos es-
tudos da política ou a dependência, por razão de constituir
uma extensão da ciência política (Sabucedo, 1996), cha-
mada inclusive de “ciência política psicológica”. (Krosnick
e McGraw, 2002) Uma espécie de depósito de explicações
em que a ciência política buscaria certas formas de com-
preensão que poderiam ser aplicáveis aos fatos políticos.
De fato, para alguns autores (Trognon e Larrue, 1994), não
há uma Psicologia Política, mas uma psicologia social da
política. Vista dessa forma, a Psicologia Política seria uma
disciplina auxiliar da ciência política psicológica.
Por isso, Krosnick e McGraw (2002) defendem o
desenvolvimento de uma Psicologia Política “propriamen-
te dita”2, cujo objetivo seria a produção de teorias no seu
próprio campo de estudo, que pudessem ser postas em
prática em outras áreas de aplicação da psicologia, e não
a apropriação de teorias desenvolvidas na psicologia e seu
deslocamento aos estudos gerados no campo da ciência
política. As teorias dessa Psicologia Política propriamente

2  Os autores usam a expressão “true to its name” no original em


inglês.
No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 45
dita deveriam ser feitas em função de aspectos substanti-
vos, conceituais e metodológicos, levando em conta o con-
texto político, que é um âmbito natural da conduta social
humana, para gerar princípios psicológicos de caráter geral
adaptados a diversos contextos, que pudessem enriquecer
toda a psicologia, incluindo nela o político, que é também
objeto da conduta humana.
Essa discussão indica que a condição definidora
da Psicologia Política ainda não está estabelecida e que as
discussões e dúvidas em relação a ela também não estão
acabadas. Esse ponto tem sido tratado por Billig (1986) ao
distinguir uma Psicologia Política que, como logo depois
sustentaram Krosnick e McGraw (2002), incluiria a política
como parte de seu objeto de conhecimento; a definição
tradicional antes citada, que supõe a separação entre as
esferas da psicologia e da política, corresponderia à psico-
logia da política. Em outras palavras, uma disciplina com
seu objeto e método já definidos, que atinja fenômenos
políticos que se dão no âmbito considerado como alheio a
ela mesma. Ou, como colocado por Jost e Sidanius (2004,
p. 1): “explora as fronteiras que correm entre as nações
intelectuais da ciência política e da psicologia”.
Essa discussão poderia parecer bizantina, mas,
na realidade, a pergunta inicial pode ser respondida com
maior ou menor dificuldade ao se adotar uma definição
que a limite ao estabelecimento, à descrição e à interpre-
tação de formas de interação entre o nível psico-social da
vida humana e a vida política dos seres humanos; ou, ao
contrário, pode-se pretender outorgar à Psicologia Políti-
ca uma tarefa um pouco mais árdua, que prolongue esse
trabalho até a compreensão da política como atividade hu-
mana e de seus efeitos nessa vida humana, incluindo seus
processos e fenômenos psicológicos.

46 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


O âmbito da Psicologia Política

Uma terceira possibilidade de entender esse cam-


po chamado Psicologia Política é a partir da distinção apa-
rente entre espaço público e espaço privado, e dos com-
portamentos humanos que decorrem em função das ma-
neiras que esses espaços são ocupados, bem como as con-
seqüências disso para as coletividades e para os grupos.
Considerando que toda vida humana é social e não pode
ser de outra forma, essa distinção nos permite assinalar
isso que tenho chamado do âmbito do político. Espaço e
tempo que acontece no espaço público, mas que tem con-
seqüências que podem modificar a esfera privada.
O caráter público e o caráter privado de ambos os
espaços respondem a interesses que têm provocado mu-
danças ao longo da historia. De fato, ambos os espaços se in-
ter-relacionam e influenciam um ao outro. Os fatos públicos
afetam as vidas privadas e fatos específicos destas podem
ter conseqüências na vida pública. Exemplos disso encon-
tram-se nos estudos psico-históricos sobre grandes e peque-
nas lideranças. As fronteiras entre um campo e outro estão
geralmente determinadas pelas constituições nacionais e
pelas leis, separando-se assim aquilo que cidadãos comuns
e políticos podem fazer, sendo esses últimos responsáveis
pela gestão e administração do âmbito público. A distinção
entre esses espaços – o que pode e não pode, deve e não
deve, estar em um e noutro – responde às concepções sobre
liberdade e poder que regem uma sociedade.
Essa permeabilidade entre as esferas nos revela
suas características: sua imprecisão e seu caráter cambian-
te. A vida pública é política, na medida em que se refere a

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 47


esse espaço compartilhado por todos os membros de uma
sociedade, seguindo normas explícitas e implícitas cultu-
ral, histórica e dinamicamente estabelecidas e revisadas.
No entanto, se os limites entre ambos os espaços são per-
meáveis, fenômenos tais como o poder e sua forma de ser
exercido, a ideologia e a alienação, podem interferir no que
pode se manifestar ou proscrever em um ou outro espaço.
Assim, a partir dessa perspectiva, a Psicologia Política é

um espaço multidisciplinar que se ocupa de des-


crever, analisar e explicar os fenômenos que di-
zem respeito à vida pública em função das pres-
crições sociais geradas para organizar essa vida,
e dos mecanismos de poder que nela operam,
considerando os recursos comunicacionais, de
persuasão e de força dedicados nesse espaço.

Nesse sentido, mesmo que, por vezes, não este-


jamos conscientes do caráter político presente no simples
fato de viver em sociedade, o uso consciente do espaço
público é tarefa politizadora, na medida em que coloca as
ações e as vozes dos cidadãos e das cidadãs no âmbito que
concerne a todos, tornando público o que foi privatizado.
(Fernandez Christlieb, 1987) Por isso, privatizar é uma for-
ma de proibição ou de dessocialização, tirando da esfera
accessível a todos algo que todos deveríamos conhecer.
Pelo contrário, relegar essa condição cidadã ao es-
paço privado é uma forma de ideologização, pois bloqueia
a expressão de opiniões e impede as manifestações trans-
formadoras originadas na cidadania, dentro da dinâmica
social. Essa posição antiideologizante deve ser considerada
como uma das formas de ação de uma Psicologia Política
transformadora, que busca tornar acessível aos membros
de uma sociedade um conhecimento relativo ao seu com-

48 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


portamento coletivo e individual, relacionado à organiza-
ção social da vida pública, para que, uma vez conscientes
disso, possam então agir.
Uma expressão dessa posição desenvolvida na
nossa América Latina é a psicologia social da libertação,
forma de Psicologia Política que, desde seu desenvolvi-
mento durante a década passada3, tem gerado conceitos
de caráter psicopolítico transferíveis a outros âmbitos não
só da psicologia, mas também das ciências sociais.

Dos objetivos de uma psicologia


que seja política

Quais são os objetivos da Psicologia Política? A


resposta a essa pergunta é necessária para responder
a questão colocada desde o início. Porém, surpreenden-
temente, na literatura, os objetivos da Psicologia Política
parecem ser óbvios ou ter uma visibilidade indivisível e
indiscutível, visto que manuais e compilações mais popu-
lares, em castelhano, inglês, e também aquilo que se en-
contra em francês, português, alemão ou italiano4, não os
abordam explicitamente. Assim, esses objetivos devem ser
deduzidos a partir do que os manuais vigentes apresen-
tam como sendo a Psicologia Política e aquilo que reve-
lam ao definir seu objeto de estudo, sua complexidade e
suas dificuldades. A esse respeito, Margaret Hermann, em
1986, em seu capítulo que introduz uma compilação por

3  A versão original deste texto é de 2009. (N.T.)


4  Refiro-me àquelas obras direcionadas a definir o campo da psicologia
política.
No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 49
ela organizada, implicitamente coloca um objetivo desse
segmento da psicologia, ao se perguntar: “Como os fato-
res psicológicos ajudam a determinar a conduta política e
como as ações políticas afetam os fatores psicológicos?”.
(Hermann, 1986, pp. 1-2, grifos meus) Tal perspectiva é co-
erente com sua definição, que se baseia na interação entre
os campos; porém, alguns elementos de análise de discur-
so podem ajudar a definir um pouco melhor o sentido des-
sa interação: os verbos usados indicam que o psicológico
ajuda, enquanto o político afeta. Isso parece indicar que a
relação não é simétrica. O aspecto político incide, influen-
cia, ou, como acrescenta Hermann: “tem um impacto so-
bre como são as pessoas”. (Hermann, 1986, p. 2) Assim,
há um degrau, uma diferença semântica, uma brecha de
significado entre ambas as esferas, que ajuda a configurar
o lugar auxiliar designado à psicologia.
Outro objetivo implícito é considerar a influência
do contexto nos fenômenos estudados pela Psicologia Polí-
tica. Isto é, como varia a conduta das pessoas em “situação
e tempo particulares” e “em um sistema e cultura políticos
particulares”. (Hermann, 1986, p. 2) Algo que deveria ser
óbvio por ser imprescindível, mas que, longe disso, é uma
necessidade invocada pelos autores citados. (Krosnick e
McGraw; Hermann)
Seoane (1988), discutindo o conceito de Psicolo-
gia Política, não trata diretamente do objetivo ou da justifi-
cativa da tarefa psicopolítica, mas inclui uma breve sessão
sobre a dimensão da sensibilidade social, que ele relaciona
com aquilo que denomina “uma certa militância política”
(Seoane, 1988, p. 33), a qual teria influência na tarefa des-
sa psicologia, como nos casos de W. Reich ou de E. Fromm,
e que considera especialmente significativa para ela, refe-

50 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


rindo-se, inclusive, à possibilidade de existência de com-
promissos de caráter político nos pesquisadores de cam-
po. Mas, como ele imediatamente adverte, para alguns
autores isso poderia ser algo desqualificante, por razão de
permear as posições desses pesquisadores. Esse aspecto
é interessante, visto que o perigo apontado (se é que o é)
está sempre presente em toda ação humana e o compro-
misso pode tanto impulsionar quanto bloquear as ações,
devendo ser sempre reconhecido e explicitado.
Sabucedo (1996, pp. 25-27), seguindo Deutsh
(1983), define os objetivos por meio do objeto, ou seja,
por meio dos temas pesquisados. Eles são classificados nas
seguintes categorias: o indivíduo como ator político, movi-
mentos políticos, lideranças e pessoas políticas, condições
e estruturas políticas, relações entre grupos políticos, pro-
cessos políticos e estudos monográficos, os quais se refe-
renciariam em casos concretos relacionados a localizações
geográficas ou temporais específicas, o que, de fato, pode
também servir de referência a qualquer aspecto dentre es-
ses apontados. Nessa descrição, o que muda é a condição
individual, coletiva ou institucional do sujeito (em geral) da
ação ou do processo político. Isso é o que quase todo mun-
do faz: descrever o objeto e buscar a relação nele existente
entre política e psicologia. Isso é suficiente? Para que serve
estão essa “certa sensibilidade” mencionada por Seoane?
Sensibilidade perante o quê ou para quê? Não achei a res-
posta no seu texto; ela está em outro lugar.
Se o objetivo está definido pelo próprio conceito
de psicologia presente nas definições tradicionais, a men-
cionada relação pode ser, quase sempre, encontrada com
maior ou menor facilidade, com maior ou menor acerto.
Mas, em se tratando de produzir teorias que possam ser

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 51


aplicáveis a contextos variados, parece que são poucos
aqueles que possuem êxito; ademais, nem sempre eles
estão do lado em que são buscados. Refletindo sobre o as-
sunto, acredito que outros objetivos poderiam ser encon-
trados nesta parte do mundo.
Refiro-me à Psicologia Política que é feita na
América Latina, ainda que, certamente, não a tudo que
é feito neste continente, pois se repetem muitas das ten-
dências, dos estilos e dos temas de boa parte dos cinco
continentes; refiro-se, como disse antes, àquela Psicolo-
gia Política que é desenvolvida, ou seja, gerada, nestas
terras. Já mencionei uma definição distinta sobre política
e politização, e introduzi uma linha desenvolvida nesta
América: a psicologia da libertação, também conhecida
como psicologia social da libertação.
Essa corrente psicológica servirá para mostrar ou-
tros objetivos dados à Psicologia Política. De que trata essa
psicologia que considero essencialmente política, mas que
pode ter, e já tem, marcado muitas e diversas formas de fa-
zer psicologia? Mesmo quando foi anunciada por seu pionei-
ro, Ignacio Martín-Baró (1986), como uma “psicologia social
da libertação”, seu objeto e seus objetivos eram claramente
políticos (e todo político é social), e hoje em dia achamos
quem faça psicologia da libertação a partir de campos tão
variados como o comunitário, o educativo, o da saúde, o do
trabalho, para fazer menção a alguns segmentos da psicolo-
gia em que se aplicam princípios gerados com perspectiva
libertadora. E o que é a libertação? Trata-se da emancipação
de grupos sociais que sofrem opressão, que são excluídos
e marginalizados dos meios e modos que lhes permitam
satisfazer dignamente necessidades, tanto básicas quanto
complementares, e desenvolver seus recursos e potencia-
lidades para autodeterminar suas vidas. (Montero, 2000) E

52 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


como acrescentei ao elaborar essa definição: essa emanci-
pação também abrange “os grupos opressores e aquilo que
diz respeito à sua própria alienação e dependência de idéias
socialmente negativas”. (Montero, 2000, p. 10) Libertação é,
então, um conjunto de processos, cuja teorização vem sen-
do desenvolvida na América Latina desde os anos 60 do sé-
culo XX (cf. Freire; Fals Borda), a partir da educação popular,
da sociologia e da antropologia críticas e que, assumida pela
psicologia, está gerando uma corrente psicopolítica que se
estende e toma diferentes áreas da pesquisa social.
Martín-Baró anunciou e enunciou alguns princí-
pios básicos a partir da psicologia social, mas sua orienta-
ção, seu conteúdo e sua definição são políticos, no sentido
de capacitar, fortalecer e facilitar a ação transformadora
da sociedade, em função da igualdade e da justiça social,
dar voz aos silenciados e incorporar o saber popular. Ou-
tras idéias somam-se a estas. Por exemplo, a reconceitu-
ação da noção de poder, como fazem Serrano-García e
López Sánchez (1994), trabalhando a partir do campo psi-
co-social comunitário, mas fazendo um aporte de caráter
político. Digamos, então, que a psicologia social é o caldo
de cultivo que se decanta numa Psicologia Política que
propõe outros temas, outros problemas e busca outras
respostas e outras perspectivas.
Vai surgindo assim uma Psicologia Política – atual-
mente em desenvolvimento, pois não é um produto acaba-
do e nem último – que olha os fenômenos políticos a partir
de outra perspectiva. Por exemplo, a socialização política
não é uma questão de qual filiação partidária é desenhada
para os filhos pelos pais, mas, principalmente, um proces-
so de formação de cidadania e de fortalecimento da socie-
dade civil. Uma Psicologia Política que estuda movimentos
sociais entrelaçados em processos de desenvolvimento

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 53


cidadão e de organização comunitária e para cuja inter-
pretação não servem os modelos clássicos desenvolvidos
na primeira metade do século XX. Uma Psicologia Política
que trabalha, entre outros processos, os de problematiza-
ção, de desideologização, desalienação, desnaturalização
e conscientização. Modelos que podem ser aplicados em
muitos campos da psicologia e para além dela. Processos
que não têm originado, mas estudado, reinterpretado, sis-
tematizado, contribuindo assim para suas formas de apli-
cação e de compreensão.
E a esses, outros conceitos têm sido agregados, a
partir de trabalhos sobre problemas específicos de reali-
dades específicas, produzindo um conhecimento que tem
a dizer ao mundo. Seu caráter político é evidente. Um
exemplo é o altercentrismo como forma ideologizada de
considerar as identidades sociais, entre elas as nacionais.
E também as identidades negativas coexistentes com o
apego e o enraizamento, e seus efeitos no fenômeno do
nacionalismo e nas relações econômicas; as supra-identi-
dades sociais e os supra-nacionalismos relacionados a fa-
tores históricos e condições culturais. A compreensão do
exílio e de seus efeitos; do medo social e sua superação;
da guerra psicológica; do autoritarismo populista e seu
maligno encanto; as multiformes expressões do discurso
político, com sua inesgotável capacidade para re-signifi-
car e utilizar a metonímia e a sinédoque, estreitando as-
sim o horizonte democrático.
Seoane falou de uma certa sensibilidade. Na Amé-
rica Latina, temos descoberto que para fazer Psicologia Po-
lítica essa é uma condição, e também é parte daquilo que
se chama compromisso. Mas, como veremos, isso não ga-
rante nada. É somente uma condição para se fazer. É aí que
reside a característica notável dessa Psicologia Política: sua
54 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)
concepção transformadora, que assume a política como
uma atividade que transcende as associações partidárias,
mas que não as descarta e que, para bem ou para mal, é
essencial na constituição da vida social e do desenvolvi-
mento das formas e processos de ação política, de caráter
individual e coletivo, que constituem o campo de estudo
da Psicologia Política.

Impacto e efeitos da Psicologia Política:


efeitos perversos e outras síndromes

Meus interesses e preocupações estão voltados


para definir qual é a capacidade dessa psicologia incidir na
vida política e no espaço público, na vida das pessoas e,
em geral, qual a sua capacidade de ser útil. Diversos fato-
res conspiram contra as repercussões que os aportes da
Psicologia Política podem ter na sociedade. Em primeiro lu-
gar estão os fenômenos que o sociólogo francês Raymond
Boudon, com acertada sagacidade, chamou de efeitos per-
versos e que definiu dizendo que “existem efeitos perver-
sos quando dois (ou mais) indivíduos que perseguem um
dado objetivo geram um estado de coisas não esperado,
que pode ser indesejável para ambos, ou para um deles”.
(Boudon, 1993, p. 20)
Darei dois exemplos correspondentes a dois níveis
de ação social. O primeiro se deu num programa comuni-
tário destinado à educação cidadã, realizado por meio da
educação artística e cívica, na cidade de Caracas. As crian-
ças que participavam desse programa realizavam pinturas
que geralmente eram expostas publicamente. O trabalho
No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 55
de uma das meninas chamou a atenção de uma pessoa
que visitou a exposição e quis comprá-lo. Era a primeira
vez que isso acontecia e as pessoas responsáveis pelo pro-
grama debateram com os membros do grupo sobre a pos-
sibilidade de venda, estabeleceram um preço justo, que foi
distribuído entre duas partes: uma para comprar materiais
de pintura para todo o grupo e outra para a autora, que
teve uma conta aberta no banco com o propósito de esti-
mular o hábito de economizar e o uso reflexivo do próprio
dinheiro. A menina e sua mãe concordaram e ficaram feli-
zes. Mas, no restante do grupo, criaram-se sentimentos de
maledicência, que foram muito negativos para a menina e
para sua família, fazendo com ela se retirasse do programa.
Tal efeito era imprevisível. Tentou-se fazer um bem e, dis-
so, derivou uma conseqüência negativa.
O que fazer? Uma solução imediata nesse caso
foi recomendar a igualdade como princípio para qualquer
ação. Se no trabalho alguém tiver alguma forma de êxito
material ou imaterial, os benefícios dele resultantes serão
repartidos igualmente entre todos os membros do grupo.
Dessa maneira, o bem produzido é divido entre a autora
ou o autor e quem, por ser parte do grupo, considera que
deve obter a mesma recompensa. Desse modo, o trabalho
criativo vale o mesmo que o trabalho comum, assim como
a ausência de esforço e de originalidade. Mas se o que se
quer é estimular a criatividade, a tarefa bem feita, o esfor-
ço e o trabalho como valor social e não como castigo, esse
novo esforço perverso duplica as conseqüências adversas.
Outro exemplo é oriundo de um fato ocorrido em
2006, que agitou a capital e esteve nas páginas dos jornais
e nos noticiários de TV e rádio, dentro e fora da Venezue-
la: no começo daquele ano desabou o principal viaduto da
estrada que ligava a capital ao aeroporto internacional. Os

56 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


estudos geológicos determinaram que uma das causas foi
o efeito das águas residuais e de construções informais no
morro adjacente a esse viaduto. Um bairro completo próxi-
mo dali, construído por moradores, deveria ser eliminado
e as famílias deslocadas para outros lugares, pois se tratava
de uma zona de perigo. Anunciou-se, então, que o governo
daria a cada família a quantidade de 50 milhões de bolíva-
res para comprar outra moradia; quantidade que, naquele
momento, permitia adquirir alguma moradia equivalente
em outra região. Uma semana depois os preços das mo-
radias desse tipo tinham subido de preço, chegando a 70
milhões ou muito mais, e não se conseguia qualquer casa
ou apartamento na cidade de Caracas pelo primeiro valor.
Primeiro efeito perverso.
Como passava o tempo e a maioria dos possíveis
beneficiários não tinha recebido o valor prometido, acon-
teceram duas coisas: a.) essas pessoas (mulheres em sua
maioria) começaram a protestar enfaticamente na frente do
organismo responsável pelo problema, realizando bloqueios
e ocasionando grandes engarrafamentos no trânsito da ci-
dade; b.) algumas pessoas afetadas declararam à imprensa
que, como 2006 era ano eleitoral, elas deveriam lembrar o
presidente que “ou ele lhes dava uma casa ou não teria seus
votos”. Nesse caso, o efeito perverso reside no cinismo polí-
tico, que evidencia a proposta de vender o voto.
Um segundo fator deriva da conjunção do conser-
vadorismo e da rigidez com a política de filiação partidária,
que pode afetar opiniões e interesses políticos, não somente
na população em geral, mas também nos círculos políticos e
espaços acadêmicos. Parte dessas respostas relaciona-se às
filiações partidárias e aos interesses a elas relacionados; ou
então, a uma variável que pode ser considerada uma forma
de oportunismo político. Ou seja, a conveniência partidária

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 57


e os benefícios de se ligar a um partido político ou a uma
tendência majoritária podem ter reconhecimento ou não,
dar confiança ou não, tomar ou não em conta determina-
das informações e argumentos que, de alguma maneira, não
seguem a posição partidária ou dominante. A filiação não é
aqui o primeiro aspecto, como se poderia dizer da manifes-
tação anterior; são os benefícios pessoais, que podem de-
rivar da posição considerada hierarquicamente superior ou
melhor colocada socialmente.
Dessas duas condições derivam os estudados si-
lêncios perante as violações de direitos humanos, as for-
mas totalitárias de governo, as ditaduras e sua ocupação
do espaço democrático. Entram aqui também essas curio-
sas formas de olhar o outro lado, de esguelha, de piscar ou
de fechar os olhos e outras tantas manifestações de mio-
pia, hipermetropia ou mesmo presbiopia política (olhos
bem fechados), que impedem que certos fenômenos se-
jam vistos em sua totalidade, gerando uma sorte de siné-
doque interpretativa, substituindo a parte que poderia não
comprometer a opinião pelo todo, que mostra o fenômeno
em toda sua crueza. Produzem-se, assim, curiosas e pre-
sunçosas formas de cosmética política, outras tantas vias
para evitar o compromisso, não de caráter partidário, mas
humanitário, que deve ser o centro diretor de toda produ-
ção de conhecimento.
A causa imediata é um tipo de correção política,
que funciona tanto para as direitas quanto para as esquer-
das, e que impõe aquilo que se deve ver, no sentido de
admitir ou não sua existência, porque não compromete ou
não atenta contra as hierarquias estabelecidas, as ordens
dominantes, que terminam por ser consideradas aceitáveis
e adequadas para um certo status-quo flutuante do opinar
sem dizer, do julgar sem provas e sem ter de executar di-

58 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


retamente a sentença. Afastar as minorias, nesse caso de
opinião e conhecimento, ir pela rua principal, gerando o
silêncio ocultante ou desenvolver o ruidoso silêncio das
linguagens ambíguas e incompreensíveis, das culpas vazias
e palavras repetidas.
Assim, ignoram-se as “listas negras”, as formas
de assedio no trabalho contra inimigos de um determi-
nado regime político, a administração enviesada da jus-
tiça e a administração diferencial de penas e castigos,
segundo a filiação ou a orientação partidária das pes-
soas; protagonizam-se ataques ad homines àqueles que
analisam e denunciam esses fatos, evitando tocar nas
questões de fundo. A Psicologia Política tem apontado
e respondido a essa conduta com uma teoria pouco
discutida: a teoria da dominação social (Sidanius, 1993;
Sidanius, Pratto, Martin e Stalwort, 1991), na qual se
oferecem razões que explicam como grupos sociais das
mais diversas tendências podem utilizar o poder para
aumentar sua hierarquia social, usando as instituições
para seu próprio proveito visando gerar e manter formas
de discriminação e de exclusão destinadas a enfraquecer
e submeter outros grupos. Isso significa a utilização dos
poderes judiciário, legislativo e executivo para manter
um sistema hierárquico, exercendo o poder de maneira
opressora, repressora, supressora de direitos e serviços, e
sustentando, ao mesmo tempo, formas de conduta social
assimétricas. Induzem-se, igualmente, as concepções
autodesvalorizantes nas pessoas oprimidas e estimulam-
se os mitos legitimadores dos interesses dominantes. A
atitude aquiescente e cúmplice contribui para a instau-
ração e a manutenção de mitos que se enraízam ou se
ancoram nas concepções dominantes de “moral” ou de
“verdade”, que regem determinados grupos sociais.

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 59


Outro efeito relaciona-se ao que, nas ciências so-
ciais, chama-se de efeito Pollyanna. Ou seja, a tendência
de minimizar os aspectos negativos, polêmicos ou que
provocam dilemas e que, em geral, exigem dos cidadãos
e dos pesquisadores sociais, e de forma especial daque-
les que trabalham no campo psicopolítico, assumir uma
posição e refletir perante certos fenômenos. Perante a
presença de um tema difícil ou de um fato político que
exige reflexão crítica e tomada de posição diante de uma
situação adversa ou problemática, utiliza-se o mecanismo
da negação da realidade contenciosa, trivializando a de-
núncia ou a informação negativa; descartando-a ou mini-
mizando seu significado. Vive-se no melhor dos mundos
possíveis e nada pode ser tão grave. Encontra-se então,
uma maneira de prender-se ao presente, cheio de um oti-
mismo sem transcendência que posterga a avaliação e a
ação para um depois em que é possível que aquilo que foi
deixado de lado seja já algo irrefreável. Outra forma de
irresponsabilidade política.
Soma-se a isso outro fator: a resistência a admitir
as hipóteses, os pressupostos, as interpretações e as ad-
vertências formuladas pela Psicologia Política, por temor
ao compromisso político que sua menção ou implemen-
tação possam sugerir, e ao risco de descrédito, menospre-
zo, castigo ou perda de status. Essa resistência pode estar
contaminada de conveniência pessoal ou de pressão gru-
pal, derivadas de temor ao enfrentamento do poder do
Estado ou de grupos dominantes dentro ou fora dele. Um
exemplo é a resistência em admitir o lugar e o papel que
ocupa a sociedade civil, particularmente em Estados com
governos autoritários. Uma sociedade civil fortalecida e in-
dependente disputa com o Estado e com as organizações

60 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


políticas tradicionais seus lugares de poder. Uma maneira
de desqualificá-la é negar suas realizações, ridicularizar as
organizações que nela surgem; ou seja, desqualificar suas
propostas e modos de ação. Diminuem-se seus méritos e
busca-se silenciar suas manifestações. Isso pode ocorrer
pela via do ataque a suas lideranças, pela apelação à defe-
sa de tradições e velhos modos de fazer, pelos obstáculos
burocráticos e, inclusive, pelos meios violentos ou mesmo
criminosos: ameaças, ataques físicos, espionagem em to-
das suas formas e, às vezes, até assassinato.

A Síndrome de Cassandra

Tudo isso se soma para consolidar situações que


a Psicologia Política anuncia e sobre as quais apresenta
dados e resultados, produz análise e cifras, ou análise e
fatos; citações e documentos que não possuem qualquer
efeito. É falar sem ser escutado, dizer sem ser compreen-
dido, explicar sem ter crédito, revelar sem obter resposta.
Como se as vozes da Psicologia Política não fossem ouvi-
das. O clamor no deserto, o grito sem eco. Tudo é negado,
recusado ou ignorado, quando a resposta, a discussão e o
debate teriam sido necessários. Os reconhecimentos tar-
dios são oportunidades perdidas, pois de nada servem os
“ eu te falei”, “fulano tinha razão”, quando já se está além
do fenômeno e a sociedade é outra. É como se a socie-
dade não pudesse suportar a medida da crítica que pode
conformar parte de uma análise psicopolítica. É, também,
provavelmente, uma das formas de defesa do status-quo,
que fecha seus olhos, tampa seus ouvidos e cobre sua boca
No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 61
para que nada mude e tudo permaneça como está. Mas
já sabemos da impossibilidade dessa ilusão. Tudo muda-
rá, algo permanecerá, mas a permanência num contexto
cambiante necessariamente mudará diante dos olhos que
a contemplam. E então:

Psicologia Política para quê?

Agora, minha resposta é: por muitas razões. A pri-


meira é para ser essa voz que faz questão de mostrar à so-
ciedade seus múltiplos rostos, apontado o que não é uni-
forme, nem estável, nem quieto, nem perfeito; que, dentro
dela, há forças que se debatem e que quando se pensa ter
alcançado um limite, já há outros por vencer. Para revelar
os acertos e os erros, e mostrar as correntes que a con-
formam. Para manter ativa a condição dinâmica e mutável
da sociedade, contribuindo com um olhar crítico para sua
construção, que sempre se deseja ser a melhor possível e
que sempre pode e deve ser melhor.
Para não permitir o esquecimento e, ao mesmo
tempo, para gerar a consciência da força, da fraqueza e da
necessidade de mudança. Para exercitar a memória coleti-
va e a criatividade coletiva e individual.
Para manter a busca contínua de um mundo me-
lhor para todos os seres humanos. Tornar possível a uto-
pia, a partir de utopias que criam novas utopias gerando a
esperança estimulante e positiva.
Para permitir a diversidade em todos os campos
da vida social, sem reservas nem ressentimentos, sem cul-
pa nem vergonha. Sem ser objeto de castigo.
Pela liberdade. Para a democracia. Pela vida.

62 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


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* Tradução Elvira Riba Hernández e Guilherme Borges da Costa.

64 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


Psicologia Política e subjetividade
dos atores políticos
Uma perspectiva psicanalítica

Ernesto Pacheco Richter1

1  É mestre e doutorando em Psicologia Social na Pontifícia Universidade


Católica de São Paulo. Atualmente é professor na graduação em
Psicologia na Universidade Anhanguera, Brasil.
A Psicologia Política, cuja sistematização teve iní-
cio em meados do século passado, tem se consolidado no
meio acadêmico (Dorna, 1998; Sabucedo, 2000; Montero,
2009; Silva, 2012) e caracteriza-se como um campo emi-
nentemente interdisciplinar. Nesse sentido, as contribui-
ções epistemológicas de campos como sociologia, econo-
mia, história e psicanálise, entre outros, vêm a somar na
reflexão sobre o fenômeno político.
É caso cediço que as idéias trazidas por Sigmund
Freud sobre a sexualidade humana e o inconsciente
tiveram impacto não apenas no meio acadêmico da época,
mas sobretudo na cultura. Ele pode ser colocado sem sobra
de dúvidas ao lado de Karl Marx, Albert Einstein, Charles
Darwin, Leonardo da Vinci e Aristóteles, todos pensadores
cujas reflexões perduraram e influenciaram sobremaneira
o conhecimento de forma universal. Moscovici (1981)
os classifica como pensadores da universalidade,
distintamente de Weber, Durkheim e Broglie, considerados
pensadores da universidade, que não transpuseram o
muro da academia e de seus campos de saber.
A produção teórica de Freud, em especial seus tex-
tos sociais, fornece subsídios teóricos importantes de serem
levados em consideração quando fenômenos políticos estão
sendo objeto de reflexão. Afinal, a política é a ciência da po-
lis, daquilo que concerne à vida dos sujeitos em sociedade,
seja ela em sua macro ou micro esfera, englobando desde
conflitos internacionais até o bem-estar social e individual.
Esferas que, em virtude da globalização e das novas tecnolo-
gias de informação, encontram-se imbricadas de uma forma
nunca antes vista na história da civilização.
Nesse sentido, parece-nos propício recorrermos
a um texto que pode ser considerado como precursor da
obra social freudiana. Ainda que o texto de 1908, Moral

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 67


Sexual Civilizada e Doença Nervosa Moderna, marque o
início das obras sociais freudianas, nas quais o antago-
nismo existente entre as imposições da civilização e as
pulsões libidinais é evidente, nem de longe ele tem a re-
levância de textos como Totem e Tabu (1913), Psicologia
das Massas e Análise do Eu (1921) e Futuro de uma Ilu-
são (1927). Menos ainda de O Mal-Estar na Civilização
(1930), incontestavelmente seu trabalho mais significati-
vo para o desenvolvimento de uma teoria social psicana-
lítica. Não obstante, Freud apresenta nesse texto, clara-
mente, que a moral sexual civilizada, aquela que restringe
a livre expressão de nossa sexualidade, desempenha pa-
pel importante no aumento de doenças nervosas. “Quem
penetrar nos determinantes das doenças nervosas cedo
ficará convencido de que o incremento dessas doenças
em nossa sociedade provém da intensificação das restri-
ções sexuais”. (Freud, 1996a, p. 179)
Com esse texto, Freud abre as portas para refle-
tirmos sobre a relação entre sociedade e indivíduo, enfati-
zando que as restrições excessivas à sexualidade impostas
pelas normas e costumes da época, que preconizavam a
abstinência sexual antes do casamento e as restrições ao
exercício pleno da sexualidade mesmo dentro do matri-
mônio, eram prejudiciais à saúde mental. Tanto homens
como mulheres estariam sujeitos a doenças nervosas de-
vido a essas restrições culturais e aos conflitos psíquicos
delas resultantes. Entretanto, as mulheres estariam mais
propensas a elas, uma vez que a carga de restrições sobre
os homens era menor, o que evidencia a organização falo-
cêntrica e normativa da sociedade.
Uma crítica que poderia advir sobre esse trabalho,
e conseqüentemente sobre a relevância da sexualidade na
teoria freudiana, é que a sociedade vitoriana é completa-

68 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


mente distinta da contemporânea e, dessa forma, a teoria
freudiana poderia ser considerada datada; de representar
um tempo que não nos é familiar e, portanto, não nos con-
cerne.Com relação a essa crítica, o artigo do psicanalista Ig-
nácio Alves Paim Filho (2011), sobre a contemporaneidade
da tragédia edípica, apresenta considerações importantes
sobre essa questão. Nele, o autor levanta a hipótese de um
“além ou de um aquém do recalque”. Ele afirma que o dé-
ficit da repressão proporciona a estruturação psicopatoló-
gica contemporânea do sujeito, bem como da cultura. Por
sua vez, o além da repressão causou a estruturação psico-
patológica da época vitoriana. Assim sendo, as idéias de
além (excesso) da repressão de Paim Filho assemelham-se
ao conceito de mais-repressão de Herbert Marcuse (1999),
o qual se caracteriza por controles adicionais de domina-
ção gerados pelas instituições, dentre os quais ele salienta,
como exemplo, as exigências necessárias à perpetuação da
família patriarcal-monogâmica.
Essa crítica parece-nos não se sustentar. Primeiro,
porque ela não comporta a abrangência da obra freudiana
e seus posteriores desenvolvimentos sobre a sexualidade,
que vão muito além do prazer do prazer; que a sexualidade
não se resume aos prazeres e as atividades relacionadas
aos órgãos genitais, “o que está presente, portanto, não
é uma primazia dos órgãos genitais, mas uma primazia do
falo”. (Freud, 1996c, p. 158) Segundo, o ponto fundamental
do trabalho é a apresentação do antagonismo entre indiví-
duo e sociedade; a civilização fundamenta-se na repressão
de nossas pulsões libidinais. Nesse sentido, suas palavras
são enfáticas sobre a repressão e o destino daqueles que
não se submetem, que não introjetam a lei. Ele escreve:

Nossa civilização repousa, falando de modo ge-


ral, sobre a supressão dos instintos. Cada indiví-
duo renuncia a uma parte dos seus atributos: a
uma parcela do seu sentimento de onipotência
No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 69
ou ainda das inclinações vingativas ou agressi-
vas de sua personalidade. Dessas contribuições
resulta o acervo cultural comum de bens mate-
riais e ideais. [...] Aquele que em consequência
de sua constituição indomável não consegue
concordar com a supressão do instinto, tor-
na-se um “criminoso”, um “outlaw”, diante da
sociedade – a menos que sua posição social ou
suas capacidades excepcionais lhe permitam
impor-se como um grande homem, um “herói”.
(Freud, 1996a, p. 173)

Fica claro não apenas como indivíduo e sociedade


estão inexoravelmente ligados, mas também a assimetria
existente nessa relação, a qual já havíamos enfatizado em
outro trabalho, salientando alguns pontos de convergência
entre o pensamento freudiano e adorniano nessa ques-
tão. (Cf. Richter, 2003, pp. 57-59) Theodor Adorno (1991,
p. 136), ao abordar a relação entre sociologia e psicologia
afirma que é “necessário completar a teoria da sociedade
com a psicologia, sobretudo uma psicologia social psica-
naliticamente orientada”. É válido, portanto, afirmar que
esse distanciamento entre a psicologia e a sociologia, entre
indivíduo e sociedade, é apenas aparente; a sociedade se
estende por todo o psicológico. Como suas marcas nunca
são encontradas diretamente, é fundamental o rompimen-
to da mônada em que o sujeito se constituiu para que pos-
samos produzir o conhecimento da realidade do objeto.
Em extensão, podemos pensar em uma psicologia política
psicanaliticamente orientada.
Diferentemente da proposta adorniana, que pre-
conizava ser o sujeito em suas contradições – o singular – a
fonte fundamental, porém não única, de compreensão da
totalidade, da sociedade, o que possibilitaria um processo

70 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


de esclarecimento e, por conseguinte, de transformação
social, Aristóteles colocou a sociedade – a polis – no centro
de seu estudo sobre política. Ainda que não desconsideras-
se aqueles que compõem as cidades-Estado – os sujeitos
–, sua concepção da anterioridade da cidade em relação
à família e desta em relação ao indivíduo revela tanto a
relação entre indivíduo e sociedade, como evidencia uma
perspectiva claramente adaptativa daquele em relação a
esta. A assimetria está manifesta, como podemos eviden-
ciar, em suas palavras:

O homem, por natureza, é um animal político


[isto é, destinado a viver em sociedade], e que
o homem que, por sua natureza e não por mero
acidente, não tivesse sua existência na cidade,
seria um ser vil, superior ou inferior ao homem.
Tal indivíduo, segundo Homero, é “um ser sem
lar, sem família, sem leis”, pois tem sede de guer-
ra e, como não é freado por nada, assemelha-se
a uma ave de rapina.” (Aristóteles, 2008, p. 56)

O filósofo prossegue na página seguinte enfati-


zando ainda mais a exclusão e a sorte daqueles que não
se submetem à lei e à justiça: “o homem que não conse-
gue viver em sociedade, [...] não faz parte da Cidade; por
conseguinte, deve ser uma besta ou um deus”. Algumas
linhas mais adiante ele sacramenta que “o homem sem
virtude é a mais perversa e cruel das criaturas, a mais en-
tregue aos prazeres dos sentidos e seus desregramentos”.
(Aristóteles, 2008, p. 57)
Fica-nos evidente que, para nos constituirmos
como seres políticos e, portanto, adentrarmos o social e
pertencermos à Cidade, é fundamental a presença de um
freio; caso contrário, estamos fadados a viver como ani-

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 71


mais, entregues aos prazeres dos sentidos e seus desregra-
mentos, como deuses ou bestas. Freios que nos são apre-
sentados no lar, na família, na sociedade, como enfatiza
Homero. As diversas instituições, pouco a pouco, freiam a
sexualidade e a tendência à agressividade. Aos indivíduos
aristotélicos que não adentram a sociedade política, lhes é
reservado o rótulo de sem leis, o outlaw freudiano, como
vimos anteriormente.
Podemos, por conseguinte, estabelecer uma ana-
logia entre a constituição do homo politicus aristotélico –
que deve ser reprimido, freado, para que suas emoções
e prazeres não se sobressaiam, permitindo-lhe acesso ao
social – e a própria constituição psíquica do sujeito apor-
tada pela teoria freudiana. Diferentemente de Aristóteles
(2008, pp. 56-57), que preconizava a natureza dos homens
“de distinguir o bem do mal, o útil do prejudicial, o jus-
to do injusto” e, portanto, enfatizava os processos cons-
cientes, Freud voltou-se aos outlaws, mais precisamente
às banidas, àquelas histéricas que sofriam no Hôpital de
la Salpêtrière. O tempo passado na França em companhia
de Jean-Martin Charcot estudando histéricas, como aque-
la retratada por André Brouillet em Une Leçon Clinique à
la Salpêtrière, foi fundamental para o desenvolvimento de
sua teoria da constituição psíquica, que enfatiza os proces-
sos inconscientes e a repressão das pulsões libidinais. Po-
demos, nesse sentido, conjecturar que a concepção freu-
diana do inconsciente e, notadamente, o conceito de re-
calcamento (Verdrängung) tem alguma relação com o freio
que Aristóteles mencionou como algo fundamental para a
constituição do homem político; o freio aristotélico breca
as pulsões libidinais.
Embora ambos os autores partam de premissas
distintas na elaboração de suas teorias e tenham propósi-

72 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


tos distintos – Aristóteles visava o sujeito político, Freud, o
sujeito do inconsciente –, evidencia-se, tanto no primeiro
como no segundo, a indissociabilidade entre indivíduo e
sociedade e, sobretudo, a importância da presença da lei,
que é transmitida nas relações familiares. Ela desempenha
papel significativo na constituição psíquica do sujeito, bem
como é fundamental para o homem político. Logo, para
compreendermos os fenômenos sociais, em particular os
políticos, não há como desconsiderar os aspectos subje-
tivos; e, portanto, a psicanálise pode contribuir sobrema-
neira para o entendimento do complexo fenômeno social
chamado política. As palavras de Adorno acerca da relação
entre sociologia e psicologia que trouxemos anteriormente
referendam a posição da psicanálise nas ciências sociais e
políticas. Assim sendo, a Psicologia Política apresenta um
campo fértil para compreendermos e refletirmos sobre o
alcance, as contribuições e limitações da psicanálise para a
Psicologia Política.
A própria história da constituição da Psicologia
Política enquanto campo de saber comprova a influência
da psicanálise. Os trabalhos de Harold Dwight Lasswell,
que contribuíram sobremaneira nesse processo de consoli-
dação, especialmente nos Estados Unidos, confirmam isso.
Em Psychopathology and Politics (1930), sua aproximação
ao fenômeno político ocorre por via da psicanálise, parti-
cularmente da psicopatologia. Lasswell enfatiza a impor-
tância de levarmos em consideração os aspectos subjeti-
vos dos atores políticos; ele advoga que as histórias de vida
desses atores políticos são fundamentais e abrem um novo
caminho para a compreensão dos fenômenos políticos.
Suas palavras iniciais atestam o valor significativo que a in-
clusão do sujeito traz à ciência política: “biografia política
como um campo da ciência política tem sido invocada para

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 73


proporcionar uma ativa emenda à excessiva ênfase colo-
cada no estudo dos mecanismos institucionais, estruturas
e sistemas”. Caso não considerássemos os atores políticos
e suas histórias de vida estaríamos diante de uma “forma
de taxidermia”. (Lasswell, 1960, p. 1) Nesse sentido, ele ra-
tifica o trabalho de Freud como teoria aplicável à política:
“seu método é de aplicação mais geral para os problemas
práticos da pesquisa e prática política do que é geralmente
entendida”. (Lasswell, 1960, p. 17)
Ainda que saliente acerca da contribuição que as
biografias aportam ao fenômeno político, Lasswell faz uma
ressalva, ao indicar que as biografias autorizadas ou auto-
biografias não são as fontes ideais, uma vez que invariavel-
mente tendem a omitir ou distorcer aspectos íntimos e sub-
jetivos do indivíduo. Assim sendo, as informações mais ricas
e significativas são obtidas em prontuários médicos institu-
cionais de atores políticos, cujas informações psicológicas e
sociológicas permitem estabelecer um panorama amplo de
suas motivações políticas. Sua produção acadêmica acerca
da política que agregava aspectos subjetivos na reflexão so-
bre as motivações políticas fez com que ele fosse reconhe-
cido entre os estadunidenses como um dos fundadores da
Psicologia Política; figura emblemática que, de alguma for-
ma, supre nossa necessidade de paternidade teórica.
Todavia, sabemos que o desenvolvimento de uma
teoria, um campo de saber ou uma disciplina não pode
ser creditado a uma única pessoa. As origens da Psicologia
Política levam-nos ao século XIX e às ciências sociais; inú-
meros autores anteriores a Lasswell contribuíram para sua
emergência, consolidação e expansão.
Alessandro Silva (2012) salienta a importância
de autores como Charles Fourier, Alexis de Tocqueville e
Hyppolite Adolphe Taine, entre outros, que buscaram en-

74 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


contrar tanto razões históricas como psicológicas para os
fenômenos sociais e políticos. Esses autores analisam os
processos envolvidos nas ações coletivas e individuais dos
sujeitos, ainda que com enfoques distintos. Silva, nesse
sentido, concorda com as reflexões realizadas por autores
como Dorna (1998), Elster (1995) e Prochasson (2005),
sobre a importância desses e outros autores na reflexão
sobre a emergência da Psicologia Política enquanto cam-
po de saber, o que pode ser evidenciado pelas seguintes
afirmações: Fourier “representa uma fonte de inspiração
psicológica da política. Suas análises sobre a educação das
crianças, do matrimônio, do papel do pai e das paixões hu-
manas o situam como um dos precursores do freudismo
radical, do utopismo, da dinâmica de grupo e da psicologia
social”. Tocqueville, por sua vez, “sustenta que os homens
enganam-se a si mesmos por excesso de cálculo sobre a es-
tratégia dos demais. De fato, a prática social demonstra que
os ideais se alimentam psicologicamente de crenças, valo-
res e emoções”. (Dorna, 1998, p. 52) Finalmente, Taine pro-
põe o entendimento da história a partir de interpretações
psicológicas e sociológicas. Esses autores, ao introduzirem
aspectos subjetivos na busca de entendimento de práticas
sociais, representam, de certa forma, traços embrionários
do que hoje conhecemos como Psicologia Política.
Se, por um lado, esses autores podem ser con-
siderados como representantes embrionários; por outro,
não há como pensar a emergência da Psicologia Políti-
ca sem fazer jus às idéias dos franceses Émile Boutmy e
Gustave Le Bon e do inglês Graham Wallas. Tanto Boutmy
como Le Bon distanciaram-se da forte tradição naciona-
lista francesa, a qual pregava a defesa da cultura, da li-
teratura e da tradição filosófica nacionais; ambos foram
influenciados pelos ideais liberal-conservadores vindos

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 75


da Inglaterra. Como afirma Consolim, ao refletir sobre a
formação da psicologia social:

Para os psicólogos do “poder social”, tais como


Boutmy e Le Bon, tratava-se de demonstrar que
a “mentalidade” individualista, liberal e tradi-
cionalista dos anglo-saxões era mais civilizada e
próspera do que a francesa. [...] Eram profissio-
nais do mercado e que se construíram com base
na iniciativa privada, onde predominava uma
espécie de culto ao liberalismo conservador in-
glês. (Consolim, 2007, pp. 130-131)

Émile Boutmy (1901, 1902), no início do século


passado, lança duas obras sobre Psicologia Política. Apesar
de ter sido influenciado pelas reflexões de Taine, que
preconizava a importância dos fatores psicológicos no
entendimento da história a partir da análise das relações
entre identidades individuais e coletivas, ele privilegia
a idéia de um caráter nacional, desembocando na sua
proposição da existência de uma personalidade coletiva,
que seria fundamental na compreensão das dinâmicas
sociais, institucionais e jurídicas de uma sociedade.
Le Bom, diante das mudanças do século XIX que
assolavam não apenas o solo francês, mas a Europa como
um todo, e do conseqüente aumento de multidões organi-
zadas que clamavam por transformações sociais, publica
Psicologia das Multidões em 1885. Nesse livro, o autor su-
blinha que os fenômenos sociais não podem ser estudados
sem levarmos em consideração aspectos subjetivos dos
atores sociais que se engajam em uma multidão; idéias,
sentimentos e hábitos desempenham papel fundamen-
tal. As instituições e leis derivam das ações de homens e
mulheres e, por conseguinte, não podem ser pensadas de

76 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


forma descontextualizada. Somos produtos e produtores
das mesmas. Como podemos observar em suas palavras
presentes no prefácio da edição de língua inglesa de 1986:

Homens são regidos por idéias, sentimentos e


costumes, os quais são nossa essência. Institui-
ções e leis são manifestações externas de nosso
caráter, expressão de suas necessidades. Sendo
sua manifestação, instituições e leis não podem
mudar este caráter. O estudo do fenômeno so-
cial não pode ser separado do das pessoas entre
as quais elas vieram a existir. (Le Bon, 2011, p. 5)

Ainda que esse trabalho de Le Bon tenha tido


boa repercussão, sendo traduzido para diversos idiomas,
é em La Psychologie Politique et la Défense Sociale (1910)
que vemos claramente a sistematização de idéias sobre a
Psicologia Política. Dorna (1998, p. 54) salienta que esse
livro contribuiu para a consolidação de um projeto cientí-
fico e metodológico. Ele afirma: “Apesar de seus defeitos,
esse texto merece uma leitura atenta, pois contém alguns
elementos de interesse epistemológico e metodológico”.
Uma das críticas endereçadas a Le Bon é que suas idéias
reforçavam a manutenção do status quo e não promoviam
a mudança. Afinal, sua Psicologia Política era a ciência do
governo; governo das elites.
Wallas publicou Human Nature in Politics em
1908. O autor salienta que o desapontamento com relação
à democracia estava impulsionando estudos sobre as ins-
tituições políticas. Não obstante o crescente interesse por
questões políticas, ele afirma que há excessiva ênfase so-
ciológica, um intelectualismo exacerbado nos estudos polí-
ticos que pode ser danoso, pois desconsidera os atores so-
ciais e políticos. Entretanto, o autor apresenta-se otimista

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 77


com os destinos dos estudos, uma vez que o negligenciar
das questões subjetivas estava com seus dias contados. Re-
tomemos suas palavras:

Eu acredito que esta tendência de separar o estu-


do da política do da natureza humana provará ser
somente uma fase momentânea de pensamen-
to; enquanto durar seus efeitos, tanto na ciência
como na condução da política, eles tendem a ser
danosos. E já há sinais que esta fase está chegan-
do a um fim. (Wallas, 1920, pp. 16-17)

No prefácio da primeira e segunda edições, Wallas


faz referências a vários livros que o ajudaram a desenvol-
ver as reflexões apresentadas. O autor faz menção especial
ao livro Principles of Psychology, de William James, na pri-
meira, e acrescenta An Introduction to Social Psychology,
de William McDougall, na segunda. Ainda que Wallas não
cite o trabalho de Sigmund Freud, não há como negar sua
influência na psicologia, na política, na Psicologia Política e
no pensamento do século XX em geral.
A psicanálise não se restringe a ser um método de
investigação que busca evidenciar o significado inconsciente
de palavras, ações e produções imaginárias e nem um méto-
do psicoterápico que leva em consideração a interpretação
da resistência, da transferência e do desejo. Ela constitui-se,
também, como um conjunto de teorias psicológicas e psico-
patológicas e, por conseguinte, deve ser levada em conside-
ração quando refletimos sobre qualquer evento que ocorra
no social, tenha ele caráter político ou não.
No texto Psicologia das Massas e Análise do Eu
(1921), que consideramos relevante para pensar a interse-
ção entre a psicanálise e a política, Freud enfatiza a relação
entre o social e o individual.

78 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


O contraste entre a psicologia individual e a psi-
cologia social ou de grupo, que à primeira vista
pode parecer pleno de significação, perde gran-
de parte de sua nitidez quando examinado mais
de perto. É verdade que a psicologia individual
relaciona-se com o homem tomado individu-
almente e explora os caminhos pelos quais ele
busca encontrar satisfação para seus impulsos
instintuais; contudo, apenas raramente e sob
certas condições excepcionais, a psicologia indi-
vidual se acha em posição de desprezar as rela-
ções desse indivíduo com os outros. Algo mais
está invariavelmente envolvido na vida mental
do indivíduo, como um modelo, um objeto, um
auxiliar, um oponente, de maneira que, desde
o começo, a psicologia individual, nesse sentido
ampliado, mas inteiramente justificável das pa-
lavras, é, ao mesmo tempo, também psicologia
social. (Freud, 1996b, p. 81)

Assim sendo, não há como pensar a Psicologia Po-


lítica sem levar em consideração as contribuições de Freud,
em especial, e da psicanálise, em geral. Ou seja, a psicaná-
lise pode e deve participar do campo interdisciplinar que
constitui a Psicologia Política.
Freud retoma, nesse texto, tanto o trabalho de Le
Bon como o de McDougall e reflete sobre as instituições
Igreja e Exército, evidenciando os mecanismos inconscien-
tes envolvidos nos movimentos grupais. Sobre a utilização
do pensamento leboniano, Freud (1996b, p. 93) afirma que
ele é importante “por ajustar-se tão bem à nossa própria
psicologia na ênfase que dá à vida mental inconsciente”.
McDougall, por outro lado, contribuiu para a reflexão freu-
diana com a distinção que fez entre multidão e grupo.
Freud (1996b, pp. 86-87) apresenta uma exten-
sa citação do trabalho de Le Bon para realizar uma crítica

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 79


à sugestão envolvida nos movimentos de massa. Há, se-
gundo Freud, ênfase na reciprocidade sugestiva entre os
membros – hipnotizados – de determinado grupo e uma
omissão da figura do líder – hipnotizador. Ele é enfático:

Não podemos deixar de ficar impressionados


por uma sensação de lacuna quando observar-
mos que um dos principais elementos da com-
paração, a saber, a pessoa que deve substituir o
hipnotizador no caso do grupo, não é mencio-
nada na exposição de Le Bon. Entretanto, ele faz
distinção entre essa influência da “fascinação”
que permanece mergulhada na obscuridade e
o efeito contagioso que os indivíduos exercem
uns sobre os outros e através do qual a sugestão
original é fortalecida. (Freud, 1996b, p. 87)

É interessante observar a relação existente entre


essa observação freudiana e a emergência da Psicologia
Política enquanto área de conhecimento. Entre os primei-
ros estudos sistematizados, que buscaram o pensamento
interdisciplinar entre ambas as disciplinas, encontramos
biografias psicológicas de figuras públicas. Trabalhos como
Woodrow Wilson and Colonel House: a personality study
(George; George, 1956), Young Man Luther: a study in
Psychoanalysis and History (Erikson, 1958) e The Revolu-
tionary Personality: Lenin, Trotsky, Ghandi (Wolfenstein,
1967) são significativos desse tipo de produção acadêmi-
ca. Convém salientar que Freud também realizou um estu-
do de Woodrow, aproximando-se da política por meio da
lacuna que ele havia salientado. Em uma publicação post
mortem, com manuscritos que datam da década de 1930,
que envolvem colaboração do diplomata norte-americano
William C. Bullitt, os autores realizam um estudo psicoló-
gico do presidente americano. Ainda que haja controvér-
80 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)
sias sobre o livro (Cf. Gay, 1989, pp. 501-509), certamente
podemos colocá-lo entre textos de Psicologia Política com
enfoque psicanalítico.
Esse tipo de aproximação metodológica, contudo,
não se constituiu como única e predominante. Fred Greens-
tein (1970), que empreendeu uma extensa pesquisa visan-
do à sistematização do estudo da Psicologia Política, apre-
senta três tipos fundamentais de pesquisa, a saber: análise
psicológica individual de atores políticos, análise tipológi-
ca de atores políticos e análises de agrupamentos sociais.
O mais importante e talvez mais conhecido trabalho em
análise tipológica é A Personalidade Autoritária (1950), de
Adorno e colaboradores. No último tipo encontramos The
American People (1948), de Geoffrey Gorer e The Chrysan-
themum and the Sword (1946), de Ruth Benedict.
Greenstein (1970, p. 36) salienta as inúmeras crí-
ticas que diversos autores apresentam às diferentes for-
mas de análises. Ele dispensa um capítulo para cada tipo
de análise, apresentando sistematicamente a metodolo-
gia, os textos que podem ser incluídos em cada categoria
e refuta as críticas a elas. Apesar de refutá-las, o autor
colhe das críticas elementos importantes para refletirmos
o futuro da Psicologia Política. Ao contrapor a tese de que
as características sociais são mais importantes que as
subjetivas, ele afirma: “características sociais e psicológi-
cas são de forma alguma exclusivas. Elas não competem
como candidatas à explicação do comportamento social,
elas são antes complementares”.
Nesse sentido, a psicologia e a psicanálise, bem
como os diversos campos do saber que podem contribuir
para o entendimento do fenômeno político, vêm a somar à
interdisciplinaridade que compõe a Psicologia Política. Não
se trata de requerer uma posição de destaque ou mesmo

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 81


uma hegemonia do saber psicológico ou psicanalítico; tra-
ta-se, sobretudo, de levar em consideração outras contri-
buições teóricas que venham agregar à reflexão sobre toda
e qualquer ação política.
Segundo Lasswell (1960, p. 27), “ninguém mostrou
mais dramática e repetidamente as limitações (bem como
as vantagens) dos procedimentos lógicos do pensamento do
que Freud. Ninguém fez uma contribuição mais importante
para a técnica de complementar o pensamento lógico com
outros métodos de pensamento que Freud”. Esse é o aspec-
to do trabalho do pai da psicanálise que tem relevância para
o pensamento político, e ao qual seria importante devotar
considerações mais extensas.

82 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


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84 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


Teorias dos movimentos sociais e
Psicologia Política

Felipe Corrêa1
Marco Antonio Bettine de Almeida2

1  Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Mudança Social e


Participação Política da Escola de Artes, Ciências e Humanidades
(EACH) da Universidade de São Paulo e doutorando pelo Programa de
Pós-Graduação em Educação pela Universidade de Campinas, Brasil.
2  Professor Associado da Escola de Artes, Ciências e Humanidades
(EACH) da Universidade de São Paulo. Este texto foi originalmente
publicado na Revista Psicologia Política, 25(12), 2012.
Psicologia Política, movimentos sociais e poder

Elaborar uma abordagem psicopolítica das teorias


dos movimentos sociais implica definir dois conceitos fun-
damentais: Psicologia Política e movimento social.
Maritza Montero (2009, pp. 202-203), ao discu-
tir as distintas definições de Psicologia Política, afirma: “a
condição de definição da Psicologia Política não está, de
maneira alguma, estabelecida”; entretanto, ela aponta três
caminhos que vêm sendo percorridos para essa conceitu-
ação. Um deles a define por meio da inter-relação entre
dois campos disciplinares separados: Psicologia e Política,
e utiliza teorias e conceitos psicológicos para explicar fenô-
menos políticos; outro a define como um novo campo dis-
ciplinar, constituído pela fusão da Psicologia e da Política,
com seus próprios fundamentos teórico-metodológicos.
Finalmente, a autora apresenta um terceiro caminho para
a definição de Psicologia Política, conceituando-a como

um espaço multidisciplinar que se ocupa de


descrever, analisar e explicar os fenômenos que
dizem respeito à vida pública, em função das
prescrições sociais geradas para organizar esta
vida, e dos mecanismos de poder que nela ope-
ram, evidenciando os recursos comunicativos,
persuasivos e de força empregados neste espa-
ço. (Montero, 2009, p. 204)

Essa definição tem como foco as interações en-


tre o público e o privado, espaços que se inter-relacionam
e inter-influenciam, na busca pela compreensão das rela-
ções entre sociedade e indivíduo, por meio de elementos
políticos e psicológicos. Tais elementos não são discipli-
nares e se relacionam e se influenciam nas análises mais
abrangentes do poder.
No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 87
Doug McAdam, Sidney Tarrow e Charles Tilly
(2009) concebem os movimentos sociais como parte de
fenômenos mais amplos, ligados ao confronto político3, e
assim os definem:

Um movimento social é uma interação susten-


tada entre pessoas poderosas e outras que não
têm poder: um desafio contínuo aos detentores
de poder em nome da população cujos interlo-
cutores afirmam estar ela sendo injustamente
prejudicada ou ameaçada por isso. [...] Esta de-
finição específica exclui as reivindicações coleti-
vas de poderosos em relação a poderosos, esfor-
ços coletivos para se evadir ou se auto-renovar
e alguns outros fenômenos próximos que, de
fato, compartilham características importantes
com as interações que estão dentro das frontei-
ras. Nós nos concentramos nas relações domi-
nantes-subordinados baseados na hipótese de
que o confronto que envolve uma desigualdade
substancial entre os protagonistas tem caracte-
rísticas gerais distintivas que ligam movimentos
sociais a revoluções, rebeliões e nacionalismos
de base popular (bottom-up). (McAdam, Tarrow,
Tilly, 2009, p. 21)

A relação entre o terceiro caminho apontado por


Montero para conceituar a Psicologia Política e a definição de

3  Trata-se, aqui, do termo “contentious”, que vem sendo utilizado em


casos como “contentious politics”, “dynamics of contention” etc. Ainda
que “contentious” venha sendo traduzido no Brasil como “confronto” –
Cf. Tarrow (2009) e McAdam, Tarrow, Tilly (2009) –, apesar da existência
do termo “confrontation”, possibilidades distintas são possíveis:
“contenda”, “contencioso”, sem mencionar outras. Independente
do termo utilizado, é relevante apontar que “contentious”, para os
teóricos da Teoria do Confronto Político (TCP), envolve o confronto,
mas não se resume a ele.
88 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)
movimento social de McAdam, Tarrow e Tilly permite com-
preender que o poder está no cerne de ambas as definições.
Por um lado, a Psicologia Política pode ser com-
preendida, lato-sensu, como um campo interdisciplinar de
estudos do poder.
A perspectiva interdisciplinar da Psicologia Políti-
ca foi ressaltada por distintos autores; José M. Sabucedo
(1996, pp. 18;24) afirma que ela é uma “disciplina que pre-
tende ser interdisciplinar”, “um campo científico com uma
vocação claramente interdisciplinar”; Alessandro S. da Sil-
va (2012, pp. 15;87) sustenta que ela possui “uma marca
fortemente interdisciplinar” e que pode ser caracterizada
como “um campo interdisciplinar dinâmico”.
Sabucedo (1996, pp. 25-26), ao identificar as linhas
de pesquisa da Psicologia Política, enfatiza seu vínculo com o
campo do poder em geral: “o indivíduo como ator político”,
“movimentos políticos”, “o político ou o líder”, “coalizões e
estruturas políticas”, “relações entre grupos políticos”, “os
processos políticos” e “estudos monográficos”; estes são te-
mas inegavelmente cruzados pela questão do poder.
Os movimentos sociais também estão direta-
mente vinculados às relações de poder, em especial, ao
conjunto de agentes que são subjugados nessas relações.
Sabucedo (1996, pp. 112-113) afirma ainda que os traços
que definem os movimentos sociais são: “1.) Existência de
um conjunto de crenças e de ações orientadas para a ação
social. 2.) Essas crenças e ações devem ter um caráter co-
letivo. 3.) Existência de uma estruturação interna. 4.) Re-
curso a modalidades de ação política não-convencionais.
5.) Os movimentos sociais refletem situações de conflito
e mudança política.” Pode-se, portanto, afirmar, que os
movimentos sociais são caracterizados por elementos de
ordem política – ações coletivas, estruturadas, não-institu-

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 89


cionais, marcadas pelo conflito, com estratégias comuns,
que buscam mudanças sociais etc. – e de ordem psicológi-
ca – conjunto de crenças coletivas, valores compartilhados,
sentimento de injustiça etc. Esses elementos – que são, ao
mesmo tempo, objetivos e subjetivos, materiais e imate-
riais, racionais e emocionais –, articulados conjuntamente,
permitem que determinados agentes, subjugados em rela-
ções específicas de poder, constituam movimentos sociais,
passando a intervir em conflitos, com vistas a modificar re-
lações sociais estabelecidas.
Por ter as condições de proporcionar um arca-
bouço teórico-metodológico que abarque todos esses ele-
mentos, a Psicologia Política vem constituindo um campo
bastante adequado para o estudo dos movimentos sociais.
Não é uma coincidência o fato de os movimentos sociais
virem recebendo destacada atenção nos estudos psicopolí-
ticos. Montero (1991, p. 36) afirma que, na América Latina,
os movimentos sociais ocupam a sexta posição nos temas
mais investigados pela Psicologia Política. Silva (2012, p.
108) destaca os movimentos sociais entre as grandes áreas
de interesses da Psicologia Política, sendo este “um dos te-
mas de maior relevância em países como o Brasil”. Sabuce-
do (1996) dedica um capítulo de sua obra aos movimentos
sociais e, entre as linhas fundamentais de investigação da
Psicologia Política, destaca:

Movimentos políticos. Neste caso, a unidade


de análise já não é o indivíduo, mas o grupo. O
tipo de organização ao qual se alude neste gru-
po não é a formal e institucional, mas se refere
fundamentalmente àquelas associações de indi-
víduos que interatuam para promover, controlar
ou evitar mudanças no meio social e cultural. A
crise de confiança nos partidos políticos e nas

90 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


instituições, e o maior nível de informação e de
competência política dos sujeitos, estão dando
lugar para que sejam cada vez maiores os seto-
res da população que se organizem para incidir
na solução de problemas pontuais. É neste con-
texto que surgem os novos movimentos sociais,
preocupados com temas como ecologia, o de-
sarmamento, a situação da mulher na socieda-
de etc. (Sabucedo, 1996, pp. 25-26)

O movimento social constitui essa organização


não-institucional, que atua nas diferentes esferas sociais,
distintamente dos partidos políticos e das instituições do
Estado, na busca por ganhos de curto prazo. Eles podem
se aproximar mais de paradigmas “clássicos”, marcada-
mente classistas e com demandas voltadas ao campo do
trabalho e às necessidades básicas como moradia, terra,
emprego, salários, etc., ou de paradigmas “contemporâ-
neos”, como os “novos movimentos sociais” aos quais se
refere o autor, com demandas policlassistas e, em grande
medida, culturais e identitárias.
Relacionar diretamente Psicologia Política e mo-
vimentos sociais com o poder exige que se defina esta ca-
tegoria, central para os objetivos pretendidos. Para Tomás
Ibáñez (2007, p. 44), há poder em todas as sociedades:
“as relações de poder são consubstanciais ao próprio fato
social, são-lhe inerentes, impregnam-no, contém-no, no
próprio instante em que dele emanam”. Ele assim reflete
sobre o que chamou de “paradigma estratégico do poder”:

O poder é uma relação, um ato. O poder é algo


que se exerce. O poder tem uma presença difu-
sa em toda a estrutura social, se produz em todo
lugar do social. É onipresente não porque chega
a todos os lugares, mas porque brota de todas as

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 91


partes. [...] O poder toma a forma dos modelos
da física. O poder é consubstancial com o social,
não existem, assim, zonas sem poder, ou que
escapem ao seu controle. O poder é imanente
aos domínios em que se manifesta, a economia
está constituída por relações de poder que lhes
são próprias. O poder é ascendente, os poderes
locais vão delineando efeitos de conjunto que
conformam os níveis mais gerais: modificando
as relações de força locais modificam-se os efei-
tos do conjunto. [...] O poder é, antes de tudo,
uma instância produtiva. O poder produz saber,
engendra procedimentos e objetos de saber.
Quem ocupa uma posição de poder produz sa-
ber. O poder resulta de uma vitória; tem a guer-
ra por origem. Os mecanismos do poder são da
ordem do controle e da regulação, da gestão e
da vigilância. [...] O poder não funciona a partir
do soberano, mas a partir dos sujeitos. A vida é
o símbolo do poder, seu objetivo é gerir e admi-
nistrar a vida. (Ibáñez, 1982, pp. 99-100)

Pode-se, partindo deste referencial, conceituar o


poder como uma relação social dinâmica e conflitiva entre
diferentes forças assimétricas, na qual há preponderância
de uma força em relação à(s) outra(s). Essa relação é, no
mínimo, bilateral, e envolve aqueles que exercem o poder
e aqueles que sofrem seus efeitos; não há, portanto, rela-
ção de poder sem sujeitos. O poder emana das relações
sociais que se dão em todas as esferas sociais e não se res-
tringe, assim, a uma noção jurídica, a um reflexo da econo-
mia, da cultura, às instituições ou aos soberanos.
Para Felipe Corrêa, a dominação é um tipo de po-
der e pode ser definida da seguinte maneira:

Relação social hierárquica que pode ocorrer nas


três esferas da sociedade [econômica, política/

92 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


jurídica/militar, cultural/ideológica] e institu-
cionalizar-se com uns decidindo aquilo que diz
respeito a outros e/ou a todos. Explica as desi-
gualdades estruturais, envolve relação de man-
do/obediência entre dominador/dominado,
alienação do dominado, entre outros aspectos.
É o fundamento básico das relações de classes,
ainda que não possa ser reduzida à dominação
de classe. Sua aplicação generalizada implica um
sistema de dominação. (Corrêa, 2012, pp. 80-81)

Partindo do campo conceitual em questão, e


retomando a definição de movimento social apresentada,
pode-se afirmar que as relações de dominação, como
parte do fenômeno mais amplo do poder, envolvem
questões relativas às três esferas sociais4 e motivam

4  Utiliza-se a definição das esferas de Bruno Rocha (2009, pp. 285-


286). Esfera econômica. A economia está relacionada “ao mundo do
trabalho, da produção e da circulação de bens, produtos, riquezas e
serviços; trata das condições materiais e ainda de bens não tangíveis
de desenvolvimento e existência mesma da sociedade e como se dá a
partilha ou concentração do produto social”. Trata-se de uma esfera
que envolve produção, distribuição e consumo dos bens de uma
sociedade determinada; os meios materiais de existência dos homens
e mulheres; os sistemas de trocas e suas estruturas. Esfera política/
jurídica/militar. A política está relacionada “aos níveis gerais de
decisão numa sociedade; é o nível que analisa os partidos, governos,
organismos macro do Estado e das forças sociais organizadas (grupos,
organizações, dentro do institucional, partidos políticos – esquerda
ou direita, com distintas variações, legais ou não); o espaço das
negociações e enfrentamentos entre dominantes, entre as classes
oprimidas e dos arranjos”. O jurídico está relacionado “ao campo
jurídico e diretamente ao Poder Judiciário; também dos foros, das
normas, das instâncias reguladoras que sancionam (aos litígios por
ex.) e podem definir a punição dentro de uma sociedade. Não se
deve confundir necessariamente o direito com a lei, a defesa com
o advogado e o acordo normativo (ex. uma base estatutária) com a
definição de leis”. O militar está “relacionado ao emprego da força,
No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 93
o surgimento e o desenvolvimento dos movimentos
sociais.
Alfredo Errandonea (1989, pp. 95-96) estabelece
alguns tipos de dominação: a exploração do trabalho (es-
fera econômica); a coação física e o controle político-buro-
crático (esfera política/jurídica/militar); a alienação, a pro-
paganda e as ações culturais e ideológicas que legitimam
dominações (esfera cultural/ideológica). Segundo sustenta
o autor, as dominações podem ser de classe ou não, neste
último caso, nas dominações de gênero, de raça e impe-
rialistas; podem sobrepor-se ou ocorrer separadamente.
Envolvem, assim como os próprios movimentos sociais,
elementos políticos e psicológicos.
As relações de dominação explicam, em grande
medida, a razão de ser dos movimentos sociais, os quais
buscam mobilizar agentes dominados para lutar, de manei-
ra sustentada, contra agentes dominadores, visando modi-
ficar tais relações. Os movimentos sociais têm por objetivo
constituir uma força social e, por meio do confronto políti-

de maneira sistemática ou não, tendo que ver, como todos os níveis


repressivos, de violência na sociedade e do possível enfrentamento
à opressão física, das estruturas de dominação e de libertação/
emancipação através do uso da força”. Esfera cultural/ideológica. A
cultura está relacionada com as atitudes, normas, crenças, mais ou
menos compartilhadas pelos membros de uma sociedade. Envolve
conhecimentos, arte, moral, costumes e hábito, e possui relação com
“as instituições sociais, a forma de vida em sociedade, as existências
familiares, os laços, os vínculos e as perspectivas”. A ideologia diz
respeito a “tudo o que circula no campo das idéias, das subjetividades,
das conotações que não são materiais, ao nível do simbólico e das
representações. Faz parte daquilo que seria o inconsciente coletivo e
também do que transcende o material. Os sentimentos de religiosidade
e o mundo das utopias e das aspirações do ser humano se encontram
neste nível. Os conteúdos das mensagens, a estética e valores contidos
na comunicação e na cultura também estão neste nível”.
94 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)
co, consolidar um contrapoder, capaz de modificar as rela-
ções sociais em jogo entre “dominanantes-subordinados”.
Entretanto, dominação, confronto político e ações
coletivas vêm ocorrendo durante toda a história; os movi-
mentos sociais, distintamente, de acordo com Tilly e Wood
(2008, p. 3), constituem um fenômeno histórico, com início
na Europa Ocidental e na América do Norte, durante o sé-
culo XVIII, que se generalizou globalmente e vem perma-
necendo no tempo até o presente. Os movimentos sociais
surgiram e, em certa maneira, permanecem existindo, a
partir de uma síntese de três elementos:

1. Um esforço público sustentado e organizado


para fazer reivindicações em relação às autorida-
des (chamemos isso de campanha).
2. O emprego de combinações dentre as seguintes
formas de ação política: criação de associações e
coalizões com propósitos especiais, reuniões pú-
blicas, marchas, vigílias, comícios, manifestações,
petições, declarações para a imprensa e panfleta-
gem (chamemos o conjunto variável de atuação
de repertório do movimento social).
3. As representações públicas planejadas pelos par-
ticipantes de “RUNC”: respeitabilidade, unidade,
números e compromisso de uma parte deles e/ou
daqueles em seu círculo (chamemos isso de de-
monstrações de RUNC). (Tilly e Wood 2008, pp. 3-4)

Esses elementos incluem a realização de ações


públicas, sustentadas e organizadas, chamadas de cam-
panhas, assim como combinações distintas entre tipos de
ações, que são parte de um repertório, incidindo direta-

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 95


mente sobre as formas de mobilização, os objetivos e as
alianças. As “demonstrações de RUNC” necessitam de al-
guma explicação. “Respeitabilidade” envolve tudo o que
pode aumentar a credibilidade nas ações do movimento;
por exemplo: a sobriedade das ações, presença de notá-
veis, mães com filhos etc. “Unidade” implica uma iden-
tidade coletiva que pode ser demonstrada na prática de
distintas maneiras; por exemplo, camisetas iguais, faixas,
músicas, palavras de ordem etc. “Números” envolvem a
quantidade de pessoas presentes, podendo ser represen-
tada de diferentes maneiras; por exemplo, com a ocupação
de espaços conjuntamente, abaixo-assinados com muitas
assinaturas, atos massivos etc. “Compromisso” implica a
responsabilidade dos envolvidos em relação ao movimen-
to, demonstrada de várias formas; por exemplo, com o en-
volvimento em enfrentamentos, resistência à repressão,
espírito de sacrifício etc.
Investigar os movimentos sociais envolve a análi-
se de um conjunto de fatores ligados ao contexto em que
eles se inserem, além de fatores ligados a seu surgimento,
desenvolvimento e desaparecimento. Em termos de con-
texto, destacam-se: elementos estruturais e conjunturais,
relações de trabalho, distribuição de renda e diferenças
entre ricos e pobres, relações de propriedade, o Estado e
suas instituições, militarização e repressão, partidos polí-
ticos, legislação e aspectos jurídicos, violência, classes so-
ciais, cultura, crenças, costumes, ideologias, valores etc.
Em termos dos próprios movimentos sociais, destacam-se:
organização e mobilização de recursos (humanos, financei-
ros etc.), oportunidades políticas, identidades e valores co-
letivos compartilhados, comportamento político, relações
com inimigos, adversários e aliados, etc.

96 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


Abordagens e teorias dos
movimentos sociais

Discutem-se, neste momento, quatro teorias dos


movimentos sociais, suas distintas abordagens e os debates
entre elas: os primeiros tempos e as abordagens “psicoló-
gicas”, a abordagem estrutural da Teoria da Mobilização de
Recursos, a ênfase da cultura e da ideologia na Teoria dos
Novos Movimentos Sociais, a mobilização política e a busca
da esfera cultural/ideológica da Teoria do Processo Político.
Conforme aponta Marco A. M. Prado (2001, p. 51),
os séculos XIX e XX envolveram contextos de “rupturas so-
ciais fundamentais” que proporcionaram transformações
de envergadura, “principalmente na Europa Ocidental e na
América do Norte”. Essas mudanças, que ocorreram con-
comitantemente ao surgimento e o desenvolvimento das
Ciências Sociais, subsidiaram investigações sobre massas,
multidões, classes sociais e ações coletivas. Teorias sociais
desenvolvidas por autores clássicos – como, no caso da So-
ciologia, Karl Marx, Max Weber, Émile Durkheim –, em al-
guma medida, estabeleceram as bases para investigações
que incluiriam, em algum tempo, os movimentos sociais.
Os franceses Gabriel Tarde e Gustave Le Bon, por
meio de investigações sobre a psicologia das massas/mul-
tidões, na passagem do século XIX para o século XX, expli-
caram os movimentos sociais de seu tempo como fruto da
desorganização social e da patologia psicológica. Segundo
Serge Moscovici (1993, pp. 197-228), para Tarde e Le Bon,
as multidões, as massas, seriam um “produto da desagre-
gação social e de uma diminuição dos marcos normais da
vida social”. Irracionais por natureza, as multidões viveriam
em um estado de sonho e ilusão, em um tipo de loucura
No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 97
coletiva, possuindo sentimentos contraditórios que se ma-
nifestariam em seu nervosismo e em sua violência.
Nos Estados Unidos, entre os anos 1940 e 1960,
também se desenvolveram teorias para explicar as ações
coletivas em geral, e os movimentos sociais em particular,
que se apoiavam no binômio desorganização social e pato-
logia psicológica. De acordo com esse enfoque sócio-psico-
lógico, Maria da Glória Gohn afirma que

as insatisfações que geravam as reivindicações


eram vistas como respostas às rápidas mudan-
ças sociais e à desorganização social subseqüen-
te. A adesão aos movimentos seriam respostas
cegas e irracionais de indivíduos desorientados
pelo processo de mudança que a sociedade
industrial gerava. Nessas abordagens dava-se,
portanto, grande importância à reação psicoló-
gica dos indivíduos diante das mudanças, rea-
ção considerada como comportamento não-ra-
cional ou irracional. (Gohn, 2007, p. 24)

Para McAdam (2003, pp. 281-282), conciliavam-se


macro-teorias sociológicas, que sustentavam que os movi-
mentos sociais resultavam da desorganização social, com
micro-teorias, que identificavam em déficits sociais e/ou psi-
cológicos fatores que impulsionariam indivíduos a fazer parte
desses movimentos. Diversas teorias desenvolveram-se nes-
sa perspectiva: 1.) A Escola de Chicago e os interacionistas;
2.) A sociedade de massas de Fromm, Hoffer e Kornhauser;
3.) A abordagem sociopolítica de Lipset e Rudolf Heberle; 4.)
O comportamento coletivo sob a ótica do funcionalismo, de
Parsons, Turner, Killian e Smelser; 5.) As teorias organizacio-
nais-comportamentalistas de Selzinick, Gusfield e Messinger.
(Gohn, 2007, pp. 25-48) Elas alinhavam-se, de maneira mais
ampla, à teoria política pluralista, dominante nos Estados Uni-
98 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)
dos daquele momento, produzida por autores como Robert
Dahl, Nelson Polsby e David Truman.

Os pluralistas viam tanto os Estados Unidos quan-


to outros países como sistemas políticos abertos
e, pelo menos, minimamente responsivos, sendo
caracterizados pela barganha e pela negociação,
realizadas por um amplo conjunto de grupos que
possuem relativa igualdade no poder. A presen-
ça de movimentos sociais poderia ser vista como
algo inconsistente com essa teoria, a não ser que
esses movimentos fossem vistos não como esfor-
ços políticos instrumentais, mas como veículos
terapêuticos por meio dos quais pessoas com
necessidades emocionais enfrentariam os efeitos
prejudiciais da desorganização social e pessoal.
(McAdam, 2003, p. 282)

Sendo o sistema político aberto a todos institu-


cionalmente, inclusive às minorias, e funcionando como
uma “poliarquia”, os movimentos sociais não teriam ra-
zão de ser, e só poderiam ser considerados anomalias
sociais – abordagem que se relaciona ao funcionalismo
durkheimiano, explicadas desde um ponto de vista psi-
cológico; caberia à Psicologia, e não à Sociologia ou às
Ciências Políticas, analisá-los.
Tais posições se relacionam, em alguma medida,
no modelo desenvolvido por Prado (2001, p. 158), com
autores que concebem o campo do político sem contradi-
ções, com estabilidade e equilíbrio institucional, e carac-
terizam os sujeitos como psicológicos ou psico-sociológi-
cos: S. Freud, G. Le Bon, N. Smelser, T. Parsons, R. Turner, L.
Killian, G. Mead, H. Cantril.
Os turbulentos anos 1960 foram fundamentais
para uma mudança significativa nas teorias dos movimen-

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 99


tos sociais, demonstrando, empiricamente, o disparate
das posições dos “psicólogos das massas” e as insufici-
ências das posições pluralistas. Esse contexto implicou o
surgimento de uma nova corrente de interpretação dos
movimentos sociais nos Estados Unidos, a Teoria da Mobi-
lização de Recursos (TMR). Ações coletivas desse período
demonstravam que aqueles movimentos sociais possuíam
peculiaridades em relação ao movimento operário; Angela
Alonso (2009, pp. 50-51) afirma que, em grande medida,
eles “não se baseavam em classe, mas, sobretudo, em etnia
(o movimento pelos direitos civis), gênero (o feminismo) e
estilo de vida (o pacificismo e o ambientalismo), para ficar
nos mais proeminentes. Tampouco visavam a revolução
política, no sentido da tomada do poder de Estado”. Não
eram manifestações irracionais, mas mobilizações articula-
das, que colocavam em xeque não só abordagens como as
de Tarde e Le Bon, ou mesmo as pluralistas, mas também o
marxismo e o funcionalismo, que possuíam certa inserção
nos meios acadêmicos.
Reagindo às abordagens anteriores, a TMR vol-
tou-se contra as abordagens psico-sociais, e mesmo contra
a própria Psicologia, enfatizando que esta não seria uma
disciplina capaz de explicar os movimentos sociais. Negou
a ênfase à irracionalidade e, de certa maneira, conforme
afirma Carol Mueller (1992, p. 5) – fundamentada em críti-
cos da TMR como D. Snow, W. Gamson, B. Klandermans –,
a tudo o que era subjetivo: emoções, ideologias, sentimen-
tos, identidades, crenças e cultura. A TMR priorizou ferra-
mentas teóricas provindas das categorias econômicas, sen-
do a variável mais relevante os recursos (humanos, finan-
ceiros, infra-estrutura entre outros), conforme explicam
Bob Edwards e John McCarthy (2004, p. 125): “o conceito

100 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


de recursos é indispensável em qualquer análise do poder
e das relações conflitivas”; conseqüentemente, central na
análise dos movimentos sociais.
Segundo Enrique Laraña (1999, p. 15), “para a te-
oria da mobilização de recursos, os movimentos sociais são
grupos racionalmente organizados que perseguem deter-
minados fins e cujo surgimento depende dos recursos orga-
nizativos que dispõem”. Margit Mayer complementa, com
base em John McCarthy e Mayer Zald, afirmando que a TMR

concebe que o campo dos movimentos sociais


está em livre competição com outros setores da
sociedade em um mercado aberto de grupos
e idéias. Esse mercado não possui tendência
rígida estrutural. Nele, os movimentos sociais
competem com outras organizações pela fideli-
dade e pelos recursos da população, calculam e
executam ações que lhes dão notoriedade e que
aumentam seu número de membros da mesma
maneira que uma corporação se engajaria em
campanhas publicitárias para aumentar suas
vendas e seus lucros. (Mayer,1995, p. 176)

Para os autores da TMR, os movimentos sociais


são atores políticos racionais, no sentido weberiano, que
disputam recursos com outras organizações e instituições,
segundo estratégias e táticas, atuando dentro e fora da
institucionalidade do Estado. Outro aspecto relevante foi
a incorporação da Sociologia das Organizações à análise
dos movimentos, muito em função das obras de Mancur
Olson, McCarthy e Zald. O movimento social, como uma
empresa, seria um ator em um mercado de bens, e deveria
se estruturar da maneira mais adequada possível.
Para McAdam (2003, p. 283), mesmo com todas
as suas limitações, a TMR, contando com a seriedade em-
No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 101
pírica de seus pesquisadores, conseguiu modificar o rumo
das pesquisas sobre os movimentos sociais, “superar a
concepção psicológica tradicional dos movimentos sociais
e reorientar o campo para o estudo das organizações, das
redes, do poder e da política”; além disso, proporcionou
um avanço significativo no debate, que alcançou um novo
patamar a partir de suas formulações.
Fruto do mesmo contexto dos anos 1960 sur-
giu, na Europa, a Teoria dos Novos Movimentos Sociais
(TNMS). Promovida por autores como Alain Touraine,
Jurgen Habermas, Alberto Melucci e Claus Offe, a TNMS
possui foco fundamental na esfera cultural/ideológica,
negando que ela constitua uma superestrutura determi-
nada por uma infra-estrutura de base econômica; tal é
o aspecto que define a TNMS, pois alguns de seus auto-
res negam a distinção entre velhos e novos movimentos
sociais. Essa teoria foi criada, em grande medida, com
base nos objetos (os “novos movimentos sociais”) sobre
os quais se debruçaram seus autores, priorizando nas
análises questões como cultura, ideologia, consciência,
crença, micro-mobilização e solidariedade, ocupando-se,
conforme afirma Laraña (1999, p. 15), “especialmente do
papel que desempenham os processos de construção de
identidades coletivas em sua formação”.
Touraine (2008, p. 216) aponta que “o conceito
de movimento social é útil quando ele ajuda a redescobrir
os atores sociais, quando eles foram esquecidos tanto pe-
las teorias marxistas estruturalistas quando pelas teorias
racionalistas das estratégias e decisões.” Trata-se, para
ele, de colocar a abordagem sócio-cultural no centro das
análises. Para Habermas (2008, p. 201), há uma distinção
entre a velha política, levada a cabo, no caso dos movi-
mentos sociais, por empregados, trabalhadores-operários

102 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


e a classe média profissional, em busca de ganhos econô-
micos e políticos, e a nova política, realizada pela classe
média, pelos jovens e grupos com alto nível de educação,
na busca por qualidade de vida, igualdade, auto-realiza-
ção individual, participação e direitos humanos. Segundo
Habermas (2008, p. 202), esses movimentos são: antinu-
cleares, pacifistas, de ação cidadã, alternativos (ocupações
urbanas e comunidades), de minorias (gays e dificuldade
de locomoção), de defesa do fundamentalismo religioso,
contra impostos, de estudantes, de resistência a reformas,
de mulheres. As questões culturais e ideológicas, centrais
nesses movimentos, teriam, segundo sustenta, constituí-
do imperativos aos pesquisadores. Fundamentada na obra
de Touraine, Alonso (2009, p. 60) afirma que, segundo os
teóricos da TNMS, o trabalho teria perdido a centralidade
nas sociedades contemporâneas e “a dominação teria se
tornado eminentemente cultural”. Os novos movimentos
não surgiriam mais por questões de desigualdades eco-
nômicas, implicando mobilizações de base classista, mas,
como sustenta Habermas (2010, pp.164-165), por lutas
simbólicas, quando sujeitos de direito buscam autonomia
e participação política.
Provavelmente, a categoria mais relevante na
análise da TNMS é a identidade coletiva, a qual seria ge-
rada no processo das ações coletivas. Seriam os atores
sociais que criariam essas identidades, a partir de sua de-
finição em relação a si mesmos, aos outros e ao próprio
ambiente em que estão inseridos; um processo complexo
e não-linear que envolveria relações sociais amplas e cons-
tantes. Melucci desenvolveu uma teoria robusta acerca da
identidade coletiva; criticando abordagens exclusivamen-
te psicológicas ou estruturais, para ele, em um dos casos,
havia “ação sem atores” e, em outro, “atores sem ação”.

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 103


(Alonso, 2009, p. 65) Buscando na identidade coletiva uma
mediação entre comportamentos individuais e os fenôme-
nos coletivos, Melucci afirma:

A identidade coletiva permite que os atores so-


ciais atuem como sujeitos unificados e demarca-
dos e que mantenham o controle de sua própria
ação; por outro lado, entretanto, eles podem
atuar como corpos coletivos, pois completaram,
em alguma medida, o processo construtivo da
identidade coletiva. [...] Pode-se falar da iden-
tidade coletiva como a habilidade de um ator
coletivo reconhecer os efeitos de suas ações e
atribuir a si mesmo esses efeitos. Assim defini-
da, a identidade coletiva pressupõe, primeiro,
uma habilidade de auto-reflexão dos atores so-
ciais. A ação coletiva não é somente uma reação
aos estímulos sociais e do ambiente; ela produz
orientações e significados simbólicos que po-
dem ser reconhecidos pelos atores. Em segundo
lugar, ela implica que eles possuam uma noção
de causalidade e pertencimento; são, portan-
to, capazes de atribuir a si mesmos os efeitos
de suas ações. Esse reconhecimento implica
uma habilidade de apropriar-se dos resultados
de suas próprias ações, de compartilhá-las com
outros e de decidir como elas devem ser realiza-
das. Em terceiro lugar, a identidade implica uma
habilidade de se perceber a duração, o que per-
mite aos atores estabelecer uma relação entre o
passado e o futuro e ligar a ação a seus efeitos.
(Melucci, 2001, pp. 72-73)

O postulado central da TNMS – comum aos traba-


lhos de Touraine, Habermas e Melucci – evidencia novos
tipos de dominação que, ainda que encontrem nas ideolo-
gias elementos explicativos, são marcadamente culturais,
afetando as diferenças entre os âmbitos público e privado,
modificando subjetividades e gerando novos conflitos. As

104 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


demandas dos novos movimentos sociais seriam mais sim-
bólicas, em torno das identidades e dos estilos de vida.5
As críticas publicadas por Cohen em 1985 e a re-
alização dos debates em 1987, que geraram os dois volu-
mes de International Social Movement Research (1988), e
em 1988, que culminaram na edição de Frontiers in Social
Movement Theory (1992), inauguram um período de deba-
tes entre a TMR e a TNMS, que terá como resultado, nos
Estados Unidos, a criação da Teoria do Processo Político
(TPP); figuram entre seus teóricos mais relevantes C. Tilly,
S. Tarrow, D. McAdam, David Snow e Robert Benford. Gohn
(2007, pp. 79-87), num balanço desses debates, que deram
espaço a significativos estudos comparativos entre a TMR
e a TNMS, aponta o esforço para a aproximação, o diálogo
e o intercâmbio entre teóricos de ambas as correntes; teó-
ricos da TMR aceitaram as críticas de seu reducionismo ra-
cionalista e estruturalista e seu desenvolvimento constitui
as próprias raízes da TPP.
De acordo com Alonso (2009, pp. 54;58), a “TPP
investe numa teoria da mobilização política”, sendo esse
um de seus principais fundamentos. McAdam (1999, p. 36)
enfatiza que a expressão “processo político” relaciona-se a
duas noções centrais: 1.) “Em contraste com várias formu-
lações clássicas, considera-se que um movimento social é,
acima de tudo, um fenômeno político, e não psicológico.”
2.) “Um movimento representa um processo contínuo des-
de sua geração até seu declínio, e não uma série descon-

5  Por razão desse foco, parece evidente que autores que definem
a Psicologia Política conforme as duas primeiras conceituações de
Montero [“1.) Inter-relação entre Psicologia e Política, com a utilização
de conceitos psicológicos para explicar fenômenos políticos; 2.) Campo
disciplinar caracterizado pela fusão da Psicologia e da Política, com
seus próprios fundamentos teórico-metodológicos] tenham maior
afinidade com as abordagens da TNMS do que com outras.
No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 105
tinuada de estágios de desenvolvimento.” Os movimentos
sociais, segundo teóricos da TPP, deveriam ser analisados
com o mesmo ferramental utilizado para as análises polí-
ticas e os movimentos sociais deveriam ser analisados em
termos processuais e não parciais.
Prado ressalta, além disso, as tentativas que mar-
caram a TPP em sua busca de superar o racionalismo e o
estruturalismo mais duro da TMR, por meio da incorporação
de aspectos analíticos relativos à esfera cultural/ideológica:

Há uma forte preocupação com explicações que


não se reduzam nem a determinantes estrutu-
rais, nem somente a determinações psicológi-
cas. Estas correntes teóricas são marcadas pela
motivação em explicar o caráter mediatório en-
tre a objetividade e os aspectos subjetivos, pela
compreensão do impacto das ações coletivas
nas instituições políticas e por entender os ele-
mentos culturais que compõem as ações coleti-
vas. (Prado, 2001, pp. 156-157)

Pode-se afirmar que a ênfase na mobilização po-


lítica e o esforço de incorporação dos aspectos culturais e
ideológicos, mesmo que ainda com certos limites, a partir
de um enquadramento macro-histórico, marcam caracte-
rísticas fundamentais da TPP, sendo as “oportunidades po-
líticas” e os “frames” suas categorias mais relevantes. McA-
dam (1999, pp. 40;48) enfatiza que a noção de oportunida-
de política – em certa medida, apropriada de Peter Eisinger
– toma em conta o fato de que “mudanças favoráveis nas
oportunidades políticas diminuem a disparidade de poder
entre insurgentes e seus oponentes”; isso, “aumenta os
custos para se reprimir o movimento”. Conforme enfatiza,
ainda que haja um referencial subjetivo nessas mudanças,

106 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


“elas são mudanças estruturais objetivas”. Visando comple-
mentar essa abordagem mais estrutural, Snow e Benford
(1992, pp. 136-137) enfatizam a noção de frames, partindo
das teorias de Erving Goffman, por meio da qual discutem
como os indivíduos dotam de sentido suas experiências e
ações. Para eles, essa categoria “refere-se a um esquema
interpretativo que simplifica a condensa o ‘mundo de fora’,
apontando e codificando seletivamente objetos, situações,
eventos, experiências e seqüências de ações dentro de um
ambiente presente ou passado de uma pessoa”. Tal noção
prioriza a maneira cognitiva de como agentes percebem a
realidade e como membros dos movimentos sociais for-
mulam suas noções de justiça/injustiça, moral/imoral, to-
lerável/intolerável, as quais possuem relação direta com
sua motivação para se mobilizar.
Para além da abordagem dos primeiros tempos,
que considerava os movimentos sociais como evidência da
desorganização social e da patologia psicológica, as três ou-
tras teorias apresentadas (TMR, TNMS e TPP) constituem
os paradigmas mais difundidos nos meios acadêmicos de
investigação sobre os movimentos sociais.

Em suma, as três teorias – agora clássicas – so-


bre movimentos sociais têm contornos bastante
peculiares. A TMR focalizou a dimensão micro-
-organizacional e estratégica da ação coletiva e
praticamente limou o simbolismo na explicação.
Já a TPP privilegiou o ambiente macropolítico
e incorporou a cultura na análise por meio do
conceito de repertório, embora não tenha lhe
dado lugar de honra. A TNMS, inversamente,
acentuou aspectos simbólicos e cognitivos – e
mesmo emoções coletivas –, incluindo-os na
própria definição de movimentos sociais. Em
contrapartida, deu menor relevo ao ambiente

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 107


político em que a mobilização transcorre e aos
interesses e recursos materiais que ela envolve.
(Alonso, 2009, p. 69)

Em termos históricos, o desenvolvimento da TPP


reduziu o espaço da TMR e logo a suplantou; a TNMS con-
tinuou a existir e desenvolveu-se para além da Europa.
(Alonso, 2009, p. 59) Entretanto, o debate entre a TPP e a
TNMS, estimulado por Melucci e outros, foi fundamental
para o estabelecimento de certos consensos.

O estudo dos movimentos sociais tem sido sem-


pre dividido pelo legado dualista das análises es-
truturais como uma precondição para a ação co-
letiva e das análises das motivações individuais.
Estes paralelos, e algumas vezes, entrelaçados
conjuntos de explicações nunca preencheram
a lacuna entre comportamento e significado,
entre condições “objetivas” e motivos e orien-
tações “subjetivas”. (Melucci, 2001 apud Prado,
2001, pp. 165-166)

A busca de superação desse dualismo foi a tôni-


ca que determinou os debates, principalmente durante os
anos 1990. Teóricos da TNMS assumiram que a TPP possuía
aspectos mais adequados para lidar com a racionalidade
e a lógica dos movimentos sociais, agregando elementos
teórico-metodológicos que envolvem recursos, estratégias
e oportunidades. A TPP admitiu a falta de espaço que ele-
mentos culturais/ideológicos tinham em sua abordagem,
passando a refletir mais profundamente sobre aspectos
subjetivos como emoções, ideologias, sentimentos, iden-
tidades, crenças e cultura. Esse processo, ainda que não
tenha equiparado completamente as teorias (Gohn, 2010,
p. 45), permitiu certa síntese, assumida por parte significa-
tiva dos pesquisadores.
108 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)
Alonso (2009, pp. 69-73) buscou elencar os pontos
fundamentais dessa síntese, aqui reproduzidos esquema-
ticamente. 1.) Os movimentos sociais são atores relevan-
tes da sociedade e fazem parte das disputas políticas que
se dão no Estado, mas também fora dele. 2.) A estrutura
social e tudo o que ela implica – economia, Estado, desi-
gualdades, classes etc. – são fatores relevantes, mas, sozi-
nhos, não são capazes de explicar o surgimento, o desen-
volvimento e o desaparecimento dos movimentos sociais.
3.) Não há determinismo necessário e obrigatório das es-
truturas econômicas e políticas uma em relação à outra e
nem em relação às estruturas culturais e ideológicas. 4.) Na
análise dos movimentos sociais, há elementos relevantes
tanto em termos macro quanto micro-sociais. 5.) O sujeito
é um agente social que, se sofre determinações estruturais,
também possui capacidade para modificar a realidade den-
tro da qual está inserido. 6.) Os movimentos sociais não re-
sultam diretamente de estratégias e cálculos racionais de
determinados atores, ainda que contem, freqüentemente,
com elementos como estratégia (envolvendo força, objeti-
vos, alianças) e racionalidade. 7.) Processos, mobilizações/
desmobilizações e oportunidades políticas são caracterís-
ticas geralmente presentes no surgimento, no desenvolvi-
mento e no desaparecimento dos movimentos sociais. 8.)
Os movimentos sociais possuem características que extra-
polam a racionalidade e que evidenciam aspectos subje-
tivos, emocionais etc., contando sempre com elementos
culturais, ideológicos, identitários e cognitivos, exigindo,
por isso, elementos de análise da Sociologia e das Ciências
Políticas, mas, também, da Psicologia Social.

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 109


Teorias dos movimentos sociais e
Psicologia Política

Podem-se realizar algumas comparações entre


as distintas abordagens e teorias dos movimentos sociais
apresentadas anteriormente.
Em termos de sua concepção de poder e dos pró-
prios movimentos sociais, as abordagens dos primeiros
tempos tendem a conceber o poder de maneira estrita-
mente institucional, como sinônimo de Estado, sendo os
movimentos sociais frutos da desorganização social e da
patologia psicológica. Abordagem que foi modificada ra-
dicalmente a partir da TMR, da TNMS e da TPP, que tra-
balham com uma concepção de poder mais ampla, para
além do Estado, e consideram os movimentos sociais ato-
res políticos relevantes.
A TMR possui foco estrutural, dando foco nas
questões materiais, objetivas, racionais, sendo os recur-
sos as variáveis mais relevantes. De um ponto de vista das
três esferas, pode-se dizer que a TMR concede prioridade
absoluta às esferas econômica e política/jurídica/militar; a
esfera cultural/ideológica praticamente não recebe aten-
ção. Desenvolvendo-se no contato com a TNMS, a TPP,
ainda que incorpore elementos relativos à esfera cultural/
ideológica (elementos imateriais, subjetivos, emoções e
sentimentos), continua a enfatizar aquilo que é objetivo,
estrutural, racional e manter, ainda que de maneira menos
absoluta, o foco nas esferas econômica e política/jurídica/
militar. A TNMS estabelece um contraponto ao foco estru-
tural da TMR e mesmo da TPP, por meio da prioridade que
confere à esfera cultural/ideológica e aos elementos ima-
teriais, subjetivos, às emoções e aos sentimentos.
110 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)
Essas prioridades possuem relação direta com as
disciplinas consideradas mais adequadas para o estudo
dos movimentos sociais. As abordagens dos primeiros
tempos consideram que estes são objeto da Psicologia, e
sugerem uma abordagem, em grande medida, “clínica”;
na TMR sugere-se um abandono da Psicologia e um foco
exclusivo nas Ciências Sociais (especialmente na Sociolo-
gia e nas Ciências Políticas). A TNMS apóia-se bastante na
Psicologia Social e a TPP, ainda que priorize as Ciências
Sociais, considera que a Psicologia Social possui elemen-
tos teóricos relevantes.
Conforme afirmam José Luis Álvaro e Alícia Garri-
do (2007, p. 479): “a escolha dos métodos e técnicas de in-
vestigação deve estar subordinada à natureza do objeto de
estudo e não o contrário”. As abordagens teórico-metodo-
lógicas para o estudo dos movimentos sociais devem, por-
tanto, estar em acordo com seus objetos que, de acordo
com o que afirma Silva (2012, p. 149), vêm tomando “um
lugar expoente no contexto do pensamento das chamadas
Ciências Sociais e Humanas”. Nesse sentido, considera-se
fundamental que se desenvolvam elementos teórico-me-
todológicos capazes de aprofundar o conhecimento dos
movimentos sociais, a partir de uma noção relacional de
totalidade, que não os considera parcialmente, de maneira
reducionista, mas toma em conta suas distintas perspec-
tivas. Como fenômenos ligados diretamente ao poder em
geral, os movimentos sociais devem ser estudados a partir
da noção de interdependência das esferas econômica, po-
lítica/jurídica/militar e cultural/ideológica.
Por isso, a perspectiva interdisciplinar constitui
um aspecto fundamental desses estudos, visto que as dis-
ciplinas, tomadas em conta individualmente, não possuem
a capacidade de explicação necessária. Parece que as te-

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 111


orias dos movimentos sociais vêm demonstrando, com o
passar do tempo, certa aproximação dessa perspectiva,
ao tomarem em conta, partindo de pesquisas empíricas,
abordagens distintas e mais abrangentes.
Abordagens contemporâneas, como a Teoria do
Confronto Político (TCP), desenvolvida entre a segunda
metade dos anos 1990 e início dos anos 2000, vêm ten-
tando trabalhar nesse sentido, incorporando elementos
da síntese mencionada anteriormente e buscando avançar
em relação a elas. A TCP tem proporcionado um conjunto
interessante de ferramentas para a compreensão dos mo-
vimentos sociais e enfatizado dois elementos centrais para
sua investigação: a perspectiva relacional da interdepen-
dência e a necessidade de uma abordagem interdisciplinar.
Propondo ampliar o objeto de estudo e trabalhar em inves-
tigações comparativas, os teóricos da TCP sugerem consi-
derar os movimentos sociais parte de um fenômeno mais
amplo: “contentious politics” [confronto político], que en-
volve lutas políticas coletivas e conflitivas.
Por serem, na maioria, provenientes da TPP, esses
teóricos, buscando estudar os movimentos sociais desde
uma noção relacional – e, portanto, de interdependência
–, tiveram de continuar a incorporação de elementos rela-
tivos à esfera cultural/ideológica em seus métodos e teo-
rias. McAdam (1994) trabalhou as relações entre os movi-
mentos sociais e a cultura, Tarrow (1992) tentou compre-
ender a relação entre movimentos sociais, mentalidades,
culturas políticas e frames coletivos e Tilly (1996) dedicou-
-se ao estudo da ideologia em fenômenos sociais mais am-
plos que os movimentos sociais. Adotam o que chamam de
“perspectiva relacional”:

A necessidade de levar em conta a interação


estratégica, a consciência e a cultura historica-
mente acumulada. Tratamos a interação social,
os laços sociais a comunicação e a conversação
112 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)
não somente como expressões da estrutura,
da racionalidade, da consciência ou da cultura,
mas como lugares ativos de criação e mudança.
Passamos a pensar nas redes inter-pessoais, na
comunicação inter-pessoal e nas várias formas
de negociação contínua – incluindo a negocia-
ção de identidades – como elementos que figu-
ram centralmente nas dinâmicas do confronto.
(McAdam, Tarrow, Tilly, 2001, p. 22)

A adoção dessa perspectiva relacional busca,


em certo sentido, conciliar razão e elementos objetivos,
presentes há mais tempo em suas análises, com a emo-
ção e elementos subjetivos na compreensão dos episó-
dios de confronto.
McAdam, Tarrow e Tilly (2009, p. 13) também no-
taram os problemas da especialização e da disciplinarida-
de para o estudo dos movimentos sociais; se por um lado,
esse foco tem permitido aprofundar verticalmente os es-
tudos, por outro vem impedindo análises mais amplas, re-
lacionais e comparativas. Defendem, por isso, abordagens
interdisciplinares, capazes de abarcar o conhecimento de
distintas áreas de pesquisas e, por isso, compreender mais
adequadamente os objetos.
Em Dynamics of Contention, McAdam, Tarrow e
Tilly (2001), a partir da análise de 18 episódios de confron-
to – nos Estados Unidos, Europa, África e América Latina,
que envolvem movimentos sociais, revoluções, democrati-
zação e nacionalismo –, identificam mecanismos que ocor-
rem em um número significativo de casos e que, articulados,
constituem processos mais amplos, explicando episódios de
confronto. Sua conclusão é que diversos mecanismos – tais
como apropriação social, ação inovadora, certificação, for-
mação de categoria, mudança de identidade, atribuição de
oportunidade/ameaça, competição, agenciamento (broke-
No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 113
rage), atribuição de similaridade entre outros – podem
aparecer, e de fato aparecem, em diferentes episódios. Por
diferentes combinações, os mecanismos articulam-se em
processos mais amplos – tais como constituição de atores
e identidades, polarização, mudança de escala entre outros
–, explicando distintos confrontos. Ao apresentar esse con-
junto de mecanismos e processos, a TCP proporciona aos
investigadores ferramentas de análise e quadros de refe-
rência que auxiliam – por meio de diversas combinações de
mecanismos e processos, ou mesmo articulados com outros
– na análise e na explicação dos episódios de confronto, que
incluem os movimentos sociais.

Nossas análises concretas repetidamente envol-


vem combinações de mecanismos relacionais
com cognitivos e/ou relacionados ao meio. [...]
Em tais circunstâncias, não está claro, a princí-
pio, se estamos observando dois ou três meca-
nismos distintos que freqüentemente se articu-
lam, ou se descobrimos uma combinação, sufi-
cientemente invariável de mudanças cognitivas,
relacionais e relativas ao meio, que justifique
tratar o complexo como um único e robusto pro-
cesso. Também não podemo decidir, no geral e
a priori, como os elementos interagem – se, por
exemplo, as mudanças cognitivas sempre prece-
dem as mudanças relacionais – ou vice-versa. A
interação entre os mecanismos cognitivos, rela-
cionais e relativos ao meio apresenta problemas
urgentes para a teoria e a pesquisa do confronto
político. (McAdam, Tarrow, Tilly, 2001, p. 310)

Os autores afirmam que, independente dos 18


episódios avaliados e da identificação de mecanismos e
processos que ocorrem com freqüência, não se pode con-

114 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


cluir automaticamente: que tais mecanismos são sempre
existentes; que determinados mecanismos sempre criam
os mesmos processos; que a combinação encontrada entre
mecanismos relacionados ao meio, cognitivos e relacionais
sempre se repete. Assim, negam os esquemas pré-defi-
nidos das relações entre estrutura e conjuntura; socieda-
de, grupo e indivíduo; economia, política, cultura; razão e
emoção, objetividade e subjetividade.
O desenvolvimento da TCP constitui um exemplo
concreto de (re)ajuste teórico-metodológico em função do
objeto; neste caso, dos movimentos sociais e outros tipo
de confronto político.
Na TCP, assim como na TMR, na TNMS e na TPP,
os movimentos sociais são fenômenos ligados ao poder,
de inegável relevância política, e que envolvem aspectos
relacionais referentes às três esferas sociais. Entretanto, a
maneira como muitos desses movimentos vêm sendo pes-
quisados permitem apenas compreensões parciais, que al-
gumas vezes ocultam equívocos.
Para a adoção de uma perspectiva relacional,
tomando em conta a interdependência das esferas, e ao
mesmo tempo interdisciplinar, cumpre superar a dicotomi-
zação apontada por Silva:

Como podemos observar, as teorias tradicionais


de análise de movimentos sociais tendem a en-
fatizar e atribuir causalidade a apenas um dos
aspectos do fenômeno, sendo, em alguns mo-
mentos, enfatizada a esfera econômica-estrutu-
ral e, em outros, a simbólica-cultural. Mas con-
vém lembrar que pensar os movimentos sociais
e as ações coletivas dessa maneira dicotomizada
equivale a reduzir fenômenos muito mais abran-
gentes a aspectos que se completam e interagem
de forma complexa. (Silva, 2012, p. 191)

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 115


Essa dicotomização, em certo sentido reducio-
nista, pode ser observada nas abordagens e teorias dos
movimentos sociais: as abordagens “psicológicas” dos pri-
meiros tempos, a abordagem estrutural da TMR, a ênfase
cultural e identitária da TNMS, o foco prioritário na mo-
bilização política na TPP. Ela envolve diferentes questões,
centrais nos debates sobre a teoria social: relações entre
as esferas, com prioridade ou determinação de uma(s) em
relação a outra(s); prioridade no racional e objetivo ou no
emocional e subjetivo; prioridade na estrutura social ou na
ação humana voluntária; prioridade na análise macro-so-
cial ou micro-social.
Pesquisadores contemporâneos têm realizado es-
forços para romper essa dicotomização criticada por Silva.
McAdam (1994, p. 39), ao discutir as oportunidades po-
líticas, afirma: “É extremamente difícil separar essas mu-
danças objetivas nas oportunidades políticas dos proces-
sos subjetivos”. Tarrow (2001, pp. 3-4) propõe que se ana-
lisem elementos estruturais e subjetivos/emocionais dos
movimentos sociais, por meio daquilo que chama familiar
voices [vozes familiares], que envolveriam organizações,
recursos, violência, oportunidades políticas, e loud silen-
ces [altos silêncios], que envolveriam interações culturais,
simbólicas e emoções. Trata-se, para ambos os autores, de
investir em uma reconciliação do racional/objetivo com o
emocional/subjetivo.
Salvador Sandoval (1989, p. 434) afirma que há
“uma nova tendência apontando para a integração futura
dos campos disciplinares da Sociologia e da Psicologia So-
cial especificamente na área de estudo dos determinan-
tes do conflito social”; a necessidade de integrar essas
disciplinas está ligada, em primeiro lugar, à compreensão
dos movimentos sociais como fenômenos que envolvem

116 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


as três esferas sociais e, também, à tentativa de conciliar
estrutura social e ação humana voluntária, análise macro
e micro-social. Posição que parece também ser a de Fede-
rico Javaloy (1993, p. 278), que sustenta uma abordagem
que supere “tanto as perspectivas psicologistas [...], que
não prestam atenção no contexto social, como as exclu-
sivamente sociológicas, que tentam explicar o comporta-
mento coletivo limitando-se a fatores políticos, econômi-
cos e organizacionais”. Apoiando-se em Turner, Javaloy
enfatiza a necessidade de “‘superar a separação entre
indivíduo e sociedade e descobrir alguma maneira de re-
lacionar os processos psicológicos com os determinantes
históricos, culturais, políticos e econômicos da conduta’”.
Seria necessário, segundo sustenta, compreender a agên-
cia humana dentro de um determinado contexto, que
possui influência sobre ela, ainda que não lhe limite ou
determine completamente, assim como compreender as
relações individuais e coletivas, partindo de noções mais
ou menos amplas, de sua interação.
A Psicologia Política, compreendida como campo
interdisciplinar de estudos do poder, permite uma com-
preensão adequada dos movimentos sociais; fundamen-
talmente por dois motivos.
Em primeiro lugar, seu caráter interdisciplinar
permite que se compreendam estes objetos desde suas
várias perspectivas e que se superem as abordagens re-
ducionistas ou parciais. Assim, conforme se viu no debate
das abordagens e teorias dos movimentos sociais, disci-
plinas como Sociologia, História, Psicologia, Ciências Polí-
ticas, Economia entre outras, podem oferecer elementos
teórico-metodológicos importantes para a explicação dos
movimentos sociais.

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 117


Em segundo lugar, sua maneira de compreender o
poder que, ligada diretamente à sua interdisciplinaridade,
toma em conta as três esferas sociais, a partir de uma pers-
pectiva relacional e de interdependência, superando as di-
cotomizações. Os aprendizados realizados com os estudos
das abordagens e teorias dos movimentos sociais indicam
que não se pode trabalhar com métodos, teorias sociais ou
mesmo quadros de referência, que tomem, de antemão,
posições definitivas acerca das determinações entre as es-
feras sociais. A grande maioria dos teóricos dos movimen-
tos sociais afirma que não há determinismo necessário e
obrigatório entre as esferas e, todas elas, quando se trata
de uma análise que envolve o poder, possuem relevância.
Trata-se, portanto, não de forçar um encaixe do objeto no
método e/ou na teoria, mas de observá-lo a partir de um
ferramental teórico-metodológico que proporcione uma
compreensão adequada da realidade social. Os estudos
empíricos vêm demonstrando que essa relação de interde-
pendência entre as esferas faz com que, em distintos mo-
mentos, os movimentos sociais possam ser explicados por
diferentes fatores (econômicos, políticos, culturais etc.) e
dificilmente apenas por um deles; trata-se, assim, de bus-
car compreendê-los por meio dessa perspectiva relacional.
Enfim, considera-se que a Psicologia Política pos-
sui as condições para reunir elementos teórico-metodoló-
gicos com vistas à realização dessas investigações relacio-
nais, mais abrangentes, dos movimentos sociais, e também
elementos que permitam superar as dicotomias que vêm
caracterizando historicamente seus estudos; pode, nesse
sentido, fornecer as bases para uma síntese que explique
esses movimentos por elementos econômicos, políticos e
culturais; racionais/objetivos, emocionais/subjetivos; es-
truturais e voluntários; macro e micro-sociais.

118 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


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122 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


A oferta e a demanda
da participação
os correlatos psico-sociais da
participação nos
movimentos sociais

Bert Klandermans1

1  Professor Titular de Psicologia Social Aplicada no departamento de


Ciências Sociais da Universidade de Amsterdã – VU, na Holanda. Foi
presidente da Internetional Socity of Political Psycology (2012-2014).
O presente texto foi originalmente publicado em inglês na Revista
Psicologia Política (2(2), 2002 e traduzido por Babel Hajjar.
Após algum tempo de envolvimento com a en-
genharia genética, ela decidiu se juntar a uma
organização que estava promovendo protestos
contra organismos geneticamente modificados
em seu país. Afinal, até o príncipe da Grã-Bre-
tanha, Charles, havia falado contra o assunto. A
organização promoveu vários protestos e o re-
sultado final foi que os alimentos geneticamen-
te modificados foram retirados das prateleiras
de diversos estabelecimentos em seu país.

A participação em movimentos sociais nas demo-


cracias ocidentais é um caminho para a influência na polí-
tica tomado por cada vez mais cidadãos. De fato, Meyer e
Tarrow (1998) observam que a participação em movimen-
tos sociais tornou-se prática comum em todas as socieda-
des modernas. A participação em movimentos transfor-
mou-se na forma mais básica de participação política de
nossos dias. Isso não quer dizer que os cidadãos estejam
engajados em movimentos sociais de forma massiva. Na
realidade, eles não estão. Mas às vezes isso acontece. Isso
provoca a questão que vem ocupando uma geração de es-
tudantes dedicados aos movimentos sociais: por que algu-
mas pessoas participam de movimentos sociais, enquanto
outras não? Assim formulada, a questão nos conduz para a
esfera da psicologia social. Afinal de contas, a psicologia so-
cial tenta compreender o comportamento do indivíduo na
sociedade. Este artigo é uma tentativa de fazer um balanço
daquilo que os acadêmicos que estudam movimentos so-
ciais têm encontrado até agora a sobre o tema. Ao fazer
isso, utilizarei a metáfora da “oferta e demanda”, empres-
tada da economia. A demanda refere-se ao potencial de
uma dada sociedade para protestar sobre um tema espe-
cífico; a oferta refere-se, por outro lado, às oportunidades

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 125


oferecidas pelas organizações para que se possa protestar
sobre o referido assunto. Dentro desse quadro, a participa-
ção em um movimento social é o resultado de um processo
de mobilização que traz a demanda por protestos políticos
existente em uma sociedade ao encontro de uma oferta de
oportunidades para se tomar parte em protestos oferecida
por movimentos sociais organizados.
Uma contabilidade inteligível sobre a participação
em movimentos deve levar em consideração cada um dos
seguintes elementos: demanda, oferta e mobilização. Estu-
dos sobre participação tendem a se concentrar na mobili-
zação e negligenciar os fatores de demanda e oferta. Entre-
tanto, não há razão para considerar esses fatores corretos.
É certo que as queixas são abundantes em uma sociedade,
mas isso não significa que não se deva explicar como essas
queixas se desenvolvem e como elas se transformam em
uma demanda por protestos, ou como surgem oportunida-
des de protestar e como essas oportunidades são aprovei-
tadas pelas pessoas lesadas. O lado demanda da participa-
ção, ou participação-demanda, requer estudos de processos
como socialização, formação de queixas, atribuição causal
e formação de identidade coletiva. O estudo do lado ofer-
ta da participação, ou participação-oferta, diz respeito a te-
mas como repertórios de ações, efetividade de movimentos
sociais, frames [quadros de referência] e ideologias pelos
quais o movimento luta e constituintes de identificação que
oferecem. Mobilização é o processo que liga a demanda e
a oferta. A mobilização é, por assim dizer, o mecanismo de
marketing do domínio do movimento social, e assim, o estu-
do da mobilização refere-se a temas como à efetividade da
comunicação (persuasão), a influência das redes sociais, e
os custos e benefícios percebidos na participação.
Neste artigo, discutirei o que a psicologia social

126 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


tem a oferecer em termos de explicações sobre participa-
ção em movimentos. Iniciarei minha exposição com uma
simples taxonomia sobre quatro tipos de participação em
movimentos. Argumentarei que cada tipo de participação
tem sua própria dinâmica motivacional. Uma discussão so-
bre caronistas e limites servirá para dar suporte a esse ar-
gumento. Em seguida, me deterei na participação ao longo
da vida do indivíduo. Para a maioria das pessoas, a partici-
pação em movimentos sociais está entre os eventos mais
significantes de suas vidas e que deixarão seus traços ao
longo de toda sua existência. (Goldstone e McAdam, 2001)
Todos os ativistas tiveram um ponto em suas vidas quando
adentraram em um movimento. Para alguns, esse foi o re-
sultado lógico de um processo de socialização por eles ex-
perimentado; para outros, foi uma questão de conversão.
Independente de como tenha sido seu ingresso nos movi-
mentos, as pessoas tendem a desenvolver neles uma car-
reira. Ao observarmos o curso de uma vida, podemos con-
tabilizar como a participação encaixa-se na história de um
individuo. A parte central deste artigo, entretanto, é uma
discussão sobre a demanda e oferta de participação em
movimentos. O centro dessa tratativa de uma dinâmica de
participação em movimentos é formado por uma discus-
são sobre três razões fundamentais pelas quais as pessoas
tomam parte de um movimento social: instrumentalidade,
identidade e ideologia. Discutirei a demanda e a oferta de
participação em termos desses três motivos.

Formas de participação

A participação em movimentos sociais é um fe-


nômeno multifacetado. Na verdade, existem muitas for-
No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 127
mas diferentes de participação em movimentos, as quais
aderem às suas próprias e específicas dinâmicas psico-so-
ciais. Duas dimensões importantes para distinguir as for-
mas de participação são tempo e esforço. A participação
pode ser de curta ou longa duração, exigindo somente
um pequeno esforço, ou então um esforço substancial.
Proponho uma tipologia que combine as duas dimensões
(Figura 1). Algumas formas de participação são de tem-
po restrito, ou do tipo “só-uma-vez”, e envolvem pouco
esforço ou risco – dar dinheiro, assinar uma petição ou
tomar parte em uma manifestação pacífica.
Exemplos na literatura são os estudos de Klander-
mans e Oegema sobre manifestações e petições contra os
mísseis de cruzeiro na Holanda (Klandermans e Oegema,
1987; Oegema e Klandermans, 1994). Outras formas de
participação são de curta duração, mas envolvem risco ou
esforço consideráveis – uma manifestação pacífica, uma
ocupação ou uma greve. Exemplos na literatura são os es-
tudos de McAdam (1988) sobre o Freedom Summer e os
estudos de Nepstadt e Smith (1999) sobre participantes no
movimento Sanctuary. A participação pode ser também
indefinida, pelo pagamento de uma pequena taxa de ade-
são para uma organização ou por uma escala de plantão
de duas noites por mês. Pichardo et alli (1998) é um exem-
plo de estudo de uma variedade de formas de participa-
ção como essas, que são ao mesmo tempo duradouras e
tributadas, como ser membro de um comitê ou um volun-
tário num movimento organizado. São exemplos o estudo
de Oliver (1984) sobre membros de comitês de bairros e o
estudo de Della Porta (1988, 1992) de membros de organi-
zações clandestinas.

128 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


Figura 1. Formas de Participação

Obviamente, essa não é a única taxonomia conce-


bível para a participação em movimentos, como também
não é a única opção proposta na literatura sobre o assunto.
Por outro lado, em um estudo sobre protestos políticos na
África do Sul, fizemos uma distinção baseada na dimensão
da militância, distinguindo três tipos de protesto: pacifista,
militante e violento. (Klandermans, Roefs e Olivier, 2001a)
Van der Veen (1992) desenvolveu uma taxonomia elabora-
da nas dimensões de aplicação de esforços dos participan-
tes e seu impacto em seu alvo, criando assim um instru-
mento para medir a participação.
Do ponto de vista da psicologia social, tais taxo-
nomias são relevantes, pois é esperado que diferentes
formas de participação envolvam dinâmicas motivacio-
nais significantemente diferentes. Comparações sistemá-
ticas são raras, porém, ao aplicar uma sistemática simi-

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 129


lar à proposta aqui, Passy (2001) demonstrou que não
apenas as dinâmicas motivacionais eram diferentes, mas
que o impacto nas redes sociais era diferente também.
A dimensão esforço obviamente envolve custos, benefí-
cios e riscos da participação. Pode-se prever que os ní-
veis de participação cairão, caso os riscos e custos dessa
participação venham a subir. A dimensão tempo tem uma
ligação mais complicada com os níveis de participação,
conforme abordarei na próxima seção.

Caronistas e Limites: alguns exercícios


sobre dinâmicas motivacionais

Marwell e Oliver (1993) introduziram a distinção


entre funções produtivas desacelerativas e acelerativas no
domínio do movimento social. Embora testados apenas por
meio de modelos matemáticos, esses estudos chamam a
atenção para duas formas fundamentalmente diferentes de
ação coletiva. A função produtiva descreve o quanto cada
participante adicional acrescenta à possibilidade de que o
bem coletivo venha a ser produzido. Algumas vezes, a parti-
cipação segue uma função produtiva desacelerativa, ou seja,
a diferença que cada novo participante traz decai. Formas
de ação que aderem a essa lógica tendem a ter um ponto
de corte, além do qual a diferença torna-se desprezível. Os
membros do conselho de administração de diretores de um
movimento organizado é um exemplo típico, em que cerca
de 10-15 pessoas são necessárias, mas um número supe-
rior a esse pode ser contraproducente. Formas sustentáveis
de participação em movimentos normalmente aderem a

130 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


uma função produtiva desacelerativa. Marwell e Oliver sus-
tentam que a carona – que implica na não-participação de
pessoas que simpatizam com as metas do movimento – é,
normalmente, um problema em formas de ações coletivas
que seguem funções produtivas desacelerativas.
Formas de ações coletivas de curta duração, por
outro lado, seguem uma função produtiva acelerativa; a
diferença que cada participante adicional traz aumenta as
chances de sucesso. As funções acelerativas tendem a ter
valores limites. Antes do limite ser atingido, participantes
adicionais acrescentam muito pouco, mas após ultrapassar
tal limite, o valor adicionado a cada nova participação cres-
ce rapidamente. O resultado é o que se conhece na litera-
tura dos movimentos como participação em cascata. Tais
cascatas são bem conhecidas de simulações matemáticas
de ações coletivas (Chwe, 1999; Kim e Bearman, 1997;
Marwell e Oliver, 1993; Heckathorn, 1993), mas a descri-
ção de Lohman (1993) das Manifestações de segunda-fei-
ra em Leipzig fornece um magnífico exemplo na vida real.
Não é incomum que formas de ação que sigam padrões
produtivos acelerativos transformem-se em desacelera-
tivos em algum ponto, resultando em uma curva em “S”.
Uma greve é um exemplo típico de uma ação coletiva que
segue uma função produtiva acelerativa. Em uma compa-
nhia com mil trabalhadores na área de produção, não faz
muita diferença se 50, 75 ou 100 trabalhadores pararem
por razão da greve; a ação será um fracasso de qualquer
forma. Mas, para além de um número específico, digamos
300 trabalhadores, cada novo funcionário que aderir à
greve rapidamente aumentará as possibilidades de seu su-
cesso, até algum outro número ser atingido, digamos 80%,
após o qual os grevistas adicionais já não importam mais,
pois a companhia já estará em greve.

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 131


Por que esta é uma distinção importante? Por-
que participantes encaram dilemas diferentes nos dois ti-
pos de atividades. No caso da função acelerativa, a preo-
cupação dos participantes é, obviamente, se o limite será
atingido. Se não for, a participação terá sido em vão. Nes-
se contexto, expectativas sobre o comportamento dos
outros torna-se de importância crucial. (Klandermans,
1984) De fato, o otimismo sobre o número de participan-
tes pode levar ainda mais pessoas para a ação, e assim fa-
zer o impensável ser concebível. (Rule, 1988, 1989) Passy
(2001) e Chwe (1999) mostram que as redes de relacio-
namentos são de importância crucial nesse contexto. Por
meio de suas redes de relacionamentos, as pessoas são
informadas do comportamento dos demais. Kim e Bear-
man (1997, p. 90) argumentam que, de fato, a chance de
uma massa crítica de voluntários ser capaz de atingir o ní-
vel limítrofe é muito mais alta do que freqüentemente se
assume. Como conclusão, após várias simulações mate-
máticas sofisticadas, eles constataram que “é fundamen-
tal a organização de atores motivados em um núcleo de
ativistas, que os permita estar densamente ligados e que
os proteja de uma pressão contrária”.
No caso da função desacelerativa, um dilema
completamente diferente deverá ser resolvido. A questão
mais importante desse tipo de formação é se os partici-
pantes estão preparados para dar carona. Evidências em-
píricas sugerem que a maioria dos ativistas mais engajados
estão perfeitamente cientes que estão dando uma carona
aos apoiadores do movimento, que são 90% ou mais; en-
tretanto, não se importam com isso. Ao contrário, isso pa-
rece ser a sua motivação. “Se eu não fizer isso, ninguém irá
fazer”, é o que eles parecem dizer (Klandermans e Visser,
1995; Oliver, 1984; Nandram, 1995). Eles são os que de fato

132 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


crêem nas causas do movimento e estão preparados para
fazer um esforço maior, sabendo que outros não o fariam.
É interessante notar que ambos os tipos
de participação necessitam de pessoas que estejam
interessadas e motivadas pela causa. Na função acelerativa,
essas pessoas devem atingir o limite e desencadear a reação
em cascata; na função desacelerativa são as pessoas que
pagam pela carona que os outros pegam.

A participação no decorrer da vida

A participação em um movimento organizado


não é algo na vida de uma pessoa que surge do nada. Os
processos de socialização criam um envolvimento com os
temas pelos quais os movimentos lutam e uma pronti-
dão para agir pelos mesmos. Os processos de socialização
tornam a pessoa apta biograficamente, e mentalmente
disponível à participação. Analisar o ativismo, da perspec-
tiva de uma vida, nos leva a um quadro explicativo para
o primeiro plano. Em tal quadro, o ativismo mostra-se
uma fase na vida do indivíduo, a qual se tenta entender
pela perspectiva da história do indivíduo. Em vez de res-
ponder o que faz de diferente um participante desta ação
coletiva específica, em comparação a um não participan-
te, a questão a responder é como a participação nesta
ação coletiva específica encaixa-se na história deste indi-
víduo específico. Naturalmente, a atenção à perspectiva
de uma vida está voltada à participação duradoura – pois
são muito poucas as pessoas ativamente envolvidas em
um movimento social durante um longo período de suas

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 133


vidas – e às conseqüências biográficas da participação –
porque os exemplos das participações em ações coleti-
vas deixam seus traços no decorrer da vida do indivíduo.
Ao mesmo tempo, a participação durante a vida orienta
a nossa pesquisa sobre o desengajamento, porque, mais
cedo ou mais tarde, os participantes abandonarão o mo-
vimento ou reduzirão o tempo de participação.

Contingência, continuidade
biográfica e conversão

Na tentativa de compreender a ação recíproca en-


tre socialização, mobilização e o contexto político e social,
propus a utilização dos conceitos de contingência, conti-
nuidade biográfica e conversão.
Contingência diz respeito à convergência na his-
tória de vida de uma pessoa do potencial de participar
de um movimento social, como foi desenvolvido com o
passar do tempo, e um evento que transformou aquele
potencial em uma participação real. Continuidade bio-
gráfica e Conversão são dois conceitos que qualificam
ainda mais a contingência. A continuidade biográfica
descreve uma história de vida pela qual a participação
surge como o resultado lógico da socialização política
da pessoa durante a juventude. A conversão, por outro
lado, descreve a história de vida por meio da qual a
participação implica na mudança de opinião da pessoa.
Em sua dissertação, Silke Roth (1997) propõe o conceito
de continuidade biográfica para endereçar como a adesão
e a participação em movimentos estão relacionadas à

134 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


participação social e política desde cedo. A continuidade
biográfica refere-se às circunstâncias em que a adesão
e a participação em movimentos são a conseqüência
lógica de uma socialização política anterior. Cientistas
políticos estudaram extensamente a socialização política
reafirmaram a conclusão de que a participação política
de adultos é resultante da socialização política. (Beck e
Jennings, 1982; Smith, 1999; Damico, Conway e Damico,
2000; Krampen, 2000) Basicamente, eles concluíram
que pessoas que desde cedo são politicamente ativas
continuam a sê-lo na vida adulta. Isso é também o
que a literatura sobre as conseqüências biográficas
da participação em movimentos nos diz. (Goldstone e
McAdam, 2001) Além disso, Passy (2001) enfatiza o papel
da inserção em redes sociais na socialização política. A
conversão, por outro lado, relaciona-se àquelas situações
em que a adesão e a participação em movimentos implica
num rompimento com o passado. Eventos críticos devem
ter cumprido um papel crítico em ambas as situações. No
contexto da continuidade biográfica, o evento significa
um último empurrão ou puxão na direção que a pessoa já
estava seguindo, ao passo que, no contexto da conversão,
o evento significa uma experiência que marca uma
mudança de mentalidade. Obviamente, tais conversões
não surgem do nada. Elas estão enraizadas em uma
insatisfação crescente com a vida como ela é. O evento
crítico é o último empurrão na direção da mudança. Teske
(1995) descreve o exemplo de um jornalista que acabou
na frente do portão de uma fábrica de armas nucleares,
pois a sua experiência com a resposta supressiva das
autoridades àquelas manifestações transformaram-
no em um ativista. A história desse jornalista deixou
claro que, se por um lado não foi nenhum acidente o

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 135


fato de ele acabar em frente àquele portão, por outro
lado, se a manifestação não tivesse se transformado
dramaticamente, como de fato se transformou, ela não
teria tido o impacto que teve em sua vida.
Como ilustração, apresentarei um material que
contém histórias de vida de ativistas de extrema direita e
que foi elaborado a partir de entrevistas que realizamos.
Dois padrões de mobilização emergiram dessas entrevistas.
O primeiro padrão envolveu entrevistados que não eram
muito interessados em política no passado, mas que explica-
ram como se envolveram com a extrema direita. Eles talvez
possam ser melhor descritos como pessoas politicamente
deslocadas, que encontraram um novo lar político. Eles já
não podiam se identificar com os partidos em que votaram
ou sentiram que os políticos ou o governo não estavam
abordando os reais problemas da sociedade. Em relação ao
seu meio parental, nenhuma imagem clara emergiu. Alguns
possuem base social-democrata e outros conservadora. O
segundo padrão envolveu entrevistados que explicaram que
sempre foram interessados em política, alguns desde mui-
to cedo. Curiosamente, todos afirmaram que sempre foram
politicamente de direita. Todos os entrevistados, menos um,
eram de um meio social conservador; o indivíduo restante
era de um meio social-democrata. Parece haver um padrão
de geração aqui: os antigos entrevistados eram de uma ge-
ração mais velha e se envolveram em política mais tarde em
suas vidas. Obviamente, trata-se daqueles para quem o ati-
vismo de direita é uma questão de conversão. Os entrevis-
tados mais recentes eram de uma geração mais nova e sem-
pre foram atraídos pela política da extrema direita. Eles pa-
recem constituir algum tipo de “nova direita” em reação aos
novos movimentos sociais dos anos oitenta. (ver também:
Minkenberg, 1998) A história de vida desse grupo pode ser
descrita em termos de continuidade biográfica, que é, no
mínimo, a maneira como fazem por si próprios.

136 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


Participação sustentada, comprometimento
e desengajamento

Participação sustentada é algo surpreendente-


mente ausente da literatura sobre movimentos sociais.
Surpreendentemente, porque são esses participantes de
longa data que mantêm o movimento andando. Kriesi e
Van Praag (1988) fazem a distinção entre: a.) simpatizan-
tes – pessoas que são simpáticos às causas do movimen-
to, mas que, na maior parte do tempo, fazem muito pou-
co; ocasionalmente são mobilizados para alguma forma
moderada de apoio (assinando petições ou para alguma
doação); b.) apoiadores ativos – pessoas que são mobili-
zadas mais regularmente; c.) ativistas centrais, que man-
têm o movimento em marcha diariamente. No decorrer
do tempo, um movimento se expande ou se contrai por
conta de os apoiadores ativos e ocasionalmente os sim-
patizantes serem mobilizados e desmobilizados. São os
ativistas centrais que são os responsáveis por essa flutua-
ção. Um movimento tem um número limitado de ativistas
centrais. Por exemplo, 5-10% dos membros do sindicato
dos trabalhadores da Holanda são ativistas centrais (Klan-
dermans e Visser, 1995; Nandram, 1995), enquanto o mo-
vimento pacifista holandês, em seu apogeu, contabilizou
aproximadamente 500 grupos centrais com 15-20 mem-
bros cada. (Oegema, 1993)
A verdadeira questão da participação sustentada
é o comprometimento. Em outro artigo, discuti extensa-
mente a manutenção e o declínio do comprometimento.
(Klandermans, 1997) O conceito de comprometimento
tem raízes nos campos da psicologia organizacional e da
psicologia social dos participantes de sindicatos. (Goslin-
No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 137
ga, 2002) Até o momento, a melhor conceituação conhe-
cida sobre comprometimento organizacional é a que foi
desenvolvida por Meyer e Allen. (Allen e Meyer, 1990,
1995; Meyer e Allen, 1991) Esses autores identificaram
três temas distintos na definição de comprometimento:
“comprometimento como um apego afetivo para com a
organização, comprometimento como um custo percebido
associado com deixar a organização e comprometimen-
to como uma obrigação para continuar na organização”.
(Meyer, Allen e Gellaty, 1993, p. 539) Eles referem-se a
essas três formas de comprometimento como afetivo, de
continuidade e comprometimento normativo. Meyer et alli
(1993) enfatizam que devemos distinguir cuidadosamente
os diferentes constituintes do comprometimento. De fato,
observamos que, no caso do movimento pacifista holan-
dês, níveis de comprometimento para com o movimento
nacional eram mais baixos do que o comprometimento de
um indivíduo para com o seu grupo central. (Klandermans,
1997, p. 94). Em outras palavras, no estudo de níveis de
comprometimento com movimentos, devemos sempre le-
vantar a questão sobre com o que, de fato, a pessoa está
comprometida: com o movimento, com a organização,
com um líder, com um grupo de ativistas ou com alguma
combinação desses fatores?
Mantendo o compromisso. O comprometimento
com o movimento não dura por si só. Ele deve ser mantido
por meio de interações com o movimento organizado, e
qualquer medida que faça essa interação mais gratificante
ajuda a manter o comprometimento. O envolvimento em
redes sociais cumpre um papel significativo na manuten-
ção do comprometimento. (Kitts, 2000) Downton e Wehr
(1991, 1997) discutem o mecanismo de interação social
que o movimento utiliza para manter o comprometimento.

138 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


Liderança, ideologia, organização, rituais e relações sociais
que compõem uma rede de amizade, cada um dos itens
contribuem para sustentar o comprometimento; o mais
efetivo, é claro, é uma combinação dos cinco fatores. Es-
ses autores mostram como os persistentes – chamados por
eles de participantes de longa duração – continuamente
cultivam as oportunidades pessoais de estarem envolvidos
ativamente, respondendo a projetos que outros criaram
ou criando os seus próprios. A exploração completa des-
sa estrutura de oportunidades pessoais é fator-chave na
formação e na manutenção do comprometimento; outros
fatores são: criação de uma identidade ativista, ligação
com a ideologia de um grupo pacifista, gerenciamento do
comprometimento, manutenção da crença de que a ação
pacifista é algo urgente, integração da ação pacifista na
vida cotidiana, ganho de apoio de pessoas significantes,
desenvolvimento de estratégias que evitem o esgotamen-
to; apesar de incentivos seletivos raramente serem razões
suficientes para a participação em um movimento, eles au-
mentam o comprometimento.
A despeito de seus esforços, e com a possível exce-
ção de alguns sectos religiosos e organizações clandestinas,
é incomum para um movimento organizado ser capaz de
impedir os participantes de deixarem a organização se eles
estiverem determinados a fazê-lo. A rotatividade de apoia-
dores é, assim, parte integrante da vida de todo movimento.
É quase impossível estimar a taxa de rotatividade dos movi-
mentos, pois em geral eles não realizam a gestão da adesão
de membros. Entretanto, muitos movimentos organizados a
realizam. Na Holanda, entre organizações como os sindica-
tos trabalhistas, a Anistia Internacional e o Green Peace, a
taxa de rotatividade de 10% ou mais não é incomum.

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 139


Desengajamento. O que faz as pessoas deserta-
rem? Gratificação insuficiente, combinada com a ausência
de comprometimento, parece ser a resposta. Por exemplo,
mais de 70% dos trabalhadores que deixaram seus sindica-
tos fizeram isso porque estavam insatisfeitos, frustrados ou
sentiam que não eram bem tratados por essas instituições.
(van den Putte, 1995) Mas o descontentamento não é con-
dição suficiente. Obviamente, o comprometimento com o
movimento deve também decair. Isso desperta, claramen-
te, a questão sobre o que causa a gratificação insuficiente e
por que o comprometimento decai. Questões que estamos
apenas começando a formular e que ainda estão longe de
serem respondidas.

A dinâmica da participação em movimentos

Quando um indivíduo participa de uma ação polí-


tica organizada por um movimento social organizado, este
é o resultado final de um processo, por vezes longo, de mo-
bilização. Mobilizações bem sucedidas gradualmente tra-
zem a demanda e a oferta consigo. Se proporções substan-
ciais da população são prejudicadas, e se os movimentos
organizados evocam ações coletivas para dar voz a essas
queixas, um movimento massivo de protesto deverá se
desenvolver. Uma contabilidade acerca da dinâmica psico-
-social da participação em movimentos necessariamente
engloba uma discussão sobre a formação da queixa (o lado
da demanda da participação), o repertório de ações e ca-
racterísticas do movimento organizado (o lado da oferta de
participação) e da mobilização como o processo que une a
demanda e a oferta.

140 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


Mobilização

Mobilização é um processo complicado, que pode


ser dividido em vários passos, conceitualmente distintos.
Klandermans (1984) foi o primeiro autor a dividir tal pro-
cesso em mobilização-consenso e mobilização-ação. Mo-
bilização-consenso refere-se à disseminação das visões
do movimento organizado e mobilização-ação refere-se
à transformação daqueles que adotaram a visão do mo-
vimento dos participantes. Assim definida, a mobilização-
-ação é restringida pelos resultados da mobilização- con-
senso, como Klandermans (1997) demonstrou em seu pró-
prio trabalho. De fato, as tentativas de mobilização-ação
tendem a concentrar-se em pessoas com uma disposição
comportamental de participar, certamente como a simula-
ção computacional de Marwell e Oliver (1993) sugere. Uma
interessante e recente ilustração da importância estratégi-
ca da mobilização-consenso pode ser encontrada no estu-
do de Walgrave e Manssens (2000) sobre a Marcha Branca
em Bruxelas, em resposta ao fracasso do governo em lidar
com os seqüestros e assassinatos realizados por Dutroux.
O ultraje moral levou centenas de milhares de pessoas às
ruas de Bruxelas. Os autores demonstraram que a mídia de
massas cumpriu um papel crucial na mobilização do con-
senso sobre o assunto. A mobilização-consenso foi muito
mais elaborada por Snow e Benford e seus colegas em sua
abordagem do alinhamento de quadro [frame] para a mo-
bilização. (Para uma revisão crítica, ver: Benford 1997)
Klandermans e Oegema (1987) dividiram o pro-
cesso de mobilização-ação ainda mais, em quatro passos
separados. Cada passo aproxima mais a oferta e a deman-
da da ação política coletiva, até eventualmente levar um
No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 141
indivíduo a partir para o passo final e participar de uma
dessas ações. Como mobilização-ação construída a partir
dos resultados da mobilização-consenso, o primeiro passo
conta para esse resultado. Ele distingue o público em geral
entre aqueles que simpatizam com a causa e aqueles que
não simpatizam. Quanto mais bem sucedida a mobiliza-
ção-consenso for, maior será o grupo de simpatizantes que
um movimento organizado poderá extrair. Ter um grupo
grande de simpatizantes é de importância estratégica, por-
que, por uma série de motivos, muitos dos simpatizantes
não se transformam em participantes. O segundo passo é
igualmente óbvio e crucial; ele divide os simpatizantes en-
tre aqueles que têm sido alvos de tentativas de mobilização
e aqueles que não têm. Além disso, é também possível dis-
tinguir diferenças qualitativas e quantitativas na segmen-
tação. Pessoas podem ser alvo de mobilizações com maior
ou menor freqüência e de modos mais ou menos insisten-
tes. O terceiro passo diz respeito ao centro psico-social
do processo. Ele divide os simpatizantes que foram alvos
entre aqueles que estão motivados a participar em uma
dada ação e aqueles que não estão. Finalmente, o quar-
to passo diferencia as pessoas que estão motivadas entre
aquelas que acabam por efetivamente participar e aquelas
que não participam. Em sua pesquisa em uma mobiliza-
ção para uma manifestação pacífica, Klandermans e Oe-
gema (1987) constataram que três quartos da população
de uma pequena comunidade do sul de Amsterdã tinham
simpatia pela causa do movimento. Desses participantes,
três quartos foram de alguma maneira alvo de tentativas
de mobilização. Dos que foram alvos, um sexto estava mo-
tivado a participar da manifestação. E finalmente, dos mo-

142 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


tivados, um terço acabou participando. O resultado líqüi-
do desses diferentes passos é que é somente uma parcela
(normalmente pequena) do público em geral que participa
das ações coletivas. Com cada passo, um menor ou maior
número não participa. Quanto menor o número dos que
se abstêm de participar, melhor o encaixe entre demanda
e oferta. Isso pode ser ilustrado pelas seguintes questões
relacionadas aos passos subseqüentes: 1.) As causas do
movimento aderem às preocupações dos cidadãos? 2.) A
rede do movimento está ligada à rede dos indivíduos? 3.)
A atividade pela qual o movimento está se organizando é
atraente aos cidadãos? 4.) O movimento está apto a elimi-
nar qualquer barreira restante para o cidadão?
Psico-socialmente, a primeira e a terceira ques-
tões são as mais interessantes. Vou me aprofundar mais
nessas questões nas próximas duas seções. Não conheço
muitas pesquisas sobre a última questão. Obviamente, de-
vemos assumir que, nesse estágio, as barreiras interagem
com a força da motivação. Quanto mais forte a motivação
de um indivíduo, mais provável que ela supere as últimas
barreiras. Nossa própria pesquisa sugere que a rede de ami-
gos cumpre um papel importante a esse respeito. São seus
amigos que fazem você manter suas promessas. (Oegema
e Klandermans, 1994) A segunda questão é sobre redes.
Redes são de importância crucial no processo de recruta-
mento. São os condutores de todo o tipo de informação
que é processada durante as mobilizações. (Ohlemacher,
1992; Passy, 2001; Chwe, 1999) Há uma extensa literatura
sobre o papel das redes na mobilização de movimentos.
(para uma visão global, ver: Kitts, 2000)

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 143


Demanda e oferta na participação em
movimentos

As causas de um movimento e suas atividades


atraem os cidadãos? As respostas que têm sido dadas a
essa questão na literatura sobre movimentos sociais po-
dem ser distinguidas por meio de três razões fundamentais
pelas quais a participação em movimentos pode ser atrati-
va às pessoas: pessoas podem querer mudar as circunstân-
cias atuais, podem querer atuar como membros de seus
grupos ou podem querer dar significado ao seu mundo e
expressar suas visões e sentimentos. Sugiro que esses três
motivos, em conjunto, contam na maioria das demandas
por ações políticas coletivas na sociedade. Os movimentos
sociais podem suprir a necessidade de preencher essas de-
mandas, e quanto melhor fizerem isso, mais a participação
em movimentos se tornará uma experiência satisfatória.
Para rapidamente referenciar esses três tipos de transação
de demanda e oferta, utilizarei como atalhos: a instrumen-
talidade, a Identidade, e a ideologia. Instrumentalidade re-
fere-se à participação em movimentos como uma tentativa
de influenciar o ambiente social e político. Identidade re-
fere-se à participação em movimentos como uma manifes-
tação da identificação com um grupo. Ideologia refere-se à
participação em movimentos como uma busca por signifi-
cado e uma expressão das visões de um indivíduo. Diferen-
tes teorias são associadas a essas três perspectivas. (para
uma visão global, ver: Tarrow, 1998; Klandermans, 1997) A
instrumentalidade relaciona-se à mobilização de recursos
e às teorias do processo político dos movimentos sociais
e, no nível psicológico, com a teorias da escolha racional
e a teoria da expectativa-valor. A identidade relaciona-se
à abordagem sociológica que enfatiza o componente da
identidade coletiva da participação em movimentos sociais

144 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


e à teoria da identidade psico-social. A ideologia relaciona-
-se às abordagens na literatura sobre movimentos sociais
que tem por foco cultura, significado, narrativas, raciocínio
moral e emoções, e relaciona-se também à psicologia, com
as teorias de cognição social e emocional. Não estou suge-
rindo que esses sejam motivos mutuamente exclusivos ou
visões competitivas sobre a participação em movimentos,
embora, em alguns momentos do debate presente na lite-
ratura, essa posição pareça ter sido adotada. Por isso, sus-
tento que as abordagens que negligenciam qualquer um
desses três motivos possuem falhas fundamentais.
Desconheço qualquer estudo que tenha tentado
avaliar o peso relativo dos três motivos descritos acima
e seus efeitos sobre a participação. Simon e seus alunos
(Simon et alli, 1998) têm estudado a relativa influência da
identidade e da instrumentalidade, demonstrando que
ambos cumprem um papel independente na explicação
da participação. (ver também: Kelly e Breinlinger, 1996;
De Weerd, 1999; Stürmer, 2001). Em seu estudo sobre um
protesto de fazendeiros na Holanda, de Weerd (1999) de-
monstrou que sentimentos de injustiça, identidade e ativis-
mo – as três dimensões do quadro [frame] da ação coletiva
– contribuíram independentemente para explicar por que
os fazendeiros participaram dos protestos. Fora disso, esta-
ríamos especulando. Baseado nesses estudos, proporei ao
menos um modelo adicional. Se os três motivos forem uti-
lizados, a participação é mais provável de ocorrer do que
se somente um ou dois forem utilizados. Certamente, um
modelo adicional implica que os motivos deverão compen-
sar uns aos outros, talvez até o nível de, num caso específi-
co, um ou dois motivos serem irrelevantes. Para complicar
ainda mais, os três motivos poderão interagir. Por exem-
plo, uma forte identificação ou ideologia deverá alterar os
cálculos de custo-benefício. Analogamente, uma ideologia
No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 145
forte poderá reforçar os níveis de identificação. Essas são
questões espinhosas e carecem de resultados mais robus-
tos, provenientes de estudos empíricos.

O lado da demanda da ação


política coletiva

Marwell e Oliver (1993) observaram uma vez que,


em vista de mudanças significativas em seu ambiente, as
pessoas continuam a fazer o que estavam fazendo, ou seja,
nada. Essa observação sugere que a demanda por ações po-
líticas coletivas em uma dada sociedade é, normalmente,
baixa. Por outro lado, tem sido argumentado que a ação po-
lítica coletiva tornou-se mais comum nas últimas décadas.
(Meyer e Tarrow, 1998; Klandermans, 2001) Nesta seção,
aprofundarei mais esse assunto e discutirei o lado da de-
manda da instrumentalidade, da identidade e da ideologia.
Instrumentalidade. A demanda por mudança
começa com a insatisfação, seja ela a experiência da de-
sigualdade ilegítima, sentimentos de relativa privação,
sentimentos de injustiça, indignação moral sobre algum
estado de coisas ou uma queixa surgida repentinamente.
(Klandermans, 1997) Teorias psico-sociais sobre a quei-
xa, assim como teorias sobre relativa privação ou a teoria
da justiça social tentaram especificar como e por que as
queixas se desenvolvem. (para visões globais, ver: Hegt-
vedt e Markovsky, 1995; Tyler, Boeckmann, Smith e Huo,
1997; Tyler e Smith, 1998) A despeito do fato de que as
queixas são as raízes da ação política coletiva, elas não
apareceram de modo significativo na literatura sobre os

146 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


movimentos sociais até os anos 1970. A teoria da mobili-
zação de recursos e a teoria do processo político, as duas
abordagens que dominaram o campo nesse período, têm
tomado sempre como seu ponto de partida que as quei-
xas são ubíquas e a questão-chave na participação em
movimentos não é tanto o porquê de as pessoas se quei-
xarem, mas o porquê de pessoas queixosas participarem.
Entretanto, um foco no lado da demanda da participação
trará a queixa de volta ao centro do palco. (Neidhardt e
Rucht, 1993; Klandermans, Roef e Olivier, 2001b)
Nos anos 1970, reagindo às abordagens que ten-
diam a retratar a participação em movimentos como algo
irracional (Le Bon, 1960; Hoffer, 1951; Kornhauser, 1959),
acadêmicos dos movimentos sociais começaram a enfati-
zar a característica instrumental da participação em mo-
vimentos. A participação em movimentos não foi mais re-
tratada como um comportamento originado do ressenti-
mento de indivíduos isolados, como uma reação agressiva
à frustração ou como políticas da impaciência, mas como
políticas com outros significados. Foram especialmente
as abordagens da mobilização de recursos (McCarthy e
Zald, 1976; Obershall, 1973) e do processo político (Tilly,
1978; McAdam, 1982) que tomaram a racionalidade assu-
mida dos participantes dos movimentos como pontos de
partida. De acordo com esses autores, a participação em
movimentos é tão racional ou irracional quanto qualquer
outro comportamento. Participantes de movimentos são
pessoas que acreditam que podem mudar o ambiente po-
lítico em que vivem em seu próprio favor, e o paradigma
da instrumentalidade sustenta que seu comportamento é
controlado pela percepção de custos e benefícios da parti-
cipação. É tomado por certo que essas pessoas são queixo-
sas, mas não se trata tanto da queixa per se, mas da crença

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 147


que a situação pode ser mudada com custos aceitáveis, o
que faz com que eles participem.
De uma perspectiva instrumental, uma solução
tem que ser encontrada para o dilema da ação coletiva. Ol-
son (1965) argumentou que atores racionais não contribui-
rão na produção de um bem coletivo, a menos que incen-
tivos seletivos os persuadam a fazê-lo. O argumento de Ol-
son ajudou a explicar o porquê de freqüentemente as pes-
soas não participarem de movimentos sociais, apesar do
interesse que têm em que o movimento atinja suas metas.
Estudiosos dos movimentos argumentaram que as metas
normalmente são bens coletivos. Se a meta for atingida, as
pessoas desfrutarão dos benefícios, independentemente
de terem realizado o esforço de participar. Em vista de uma
meta cujo atingimento é incerto, mas cujos benefícios, se
materializados, poderão ser colhidos de qualquer forma,
atores racionais pegarão uma carona, explicando assim o
raciocínio de Oslon. Incentivos seletivos são, supostamen-
te, a solução do dilema da ação coletiva. Tais incentivos são
normalmente fatores-oferta. Assim, retornaremos a esse
tema quando discutirmos o lado da oferta da participação.
Entretanto, os estudiosos dos movimentos sociais
descobriram rapidamente que a realidade é mais comple-
xa do que sugeriu o raciocínio de Oslon. O problema com a
lógica de Oslon é que, na realidade, ela explica por que as
pessoas não participam, mas não explica satisfatoriamente
por que elas participam. Além disso, Oliver (1980) sustenta
que a solução de Olson, em que incentivos seletivos fazem
as pessoas participarem, é fundamentalmente falha, por
não oferecer uma resposta satisfatória à questão da ori-
gem dos recursos necessários para os incentivos seletivos.
Se deverão ser coletados dos cidadãos, o mesmo dilema
da ação coletiva surge novamente. Isso não quer dizer que

148 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


incentivos seletivos sejam irrelevantes, mas que, no final,
eles não resolvem o dilema da ação coletiva. Kim e Bear-
man (1997, p. 72) argumentaram que a falha dos modelos
de escolha racional para explicar a ação coletiva tem raízes
na suposição de que os interesses são fixos. Eles desen-
volveram um modelo muito mais complexo que flexibiliza
a suposição de interesses fixos e assume que a interação
redesenha os interesses. “Interesses são sensíveis à histó-
ria”, sustentam os autores; “os atores são independentes
e o ativismo é incrementado por meio do aumento do en-
volvimento nas redes dos ativistas”. A conclusão dos auto-
res é que o interesse e o envolvimento profundo nas redes
de relacionamento dos ativistas contam na ocorrência da
ação coletiva. Isso se relaciona a uma crítica recorrente-
mente realizada ao modelo de Olson, o qual supõe que os
indivíduos tomam suas decisões isoladamente, como se
não houvesse outras pessoas com as quais eles pudessem
se consultar, com as quais eles se sentissem solidários, e
em nome das quais eles mantivessem suas promessas.
Esse fato apontou para a significância da identidade coleti-
va como fator na participação em movimentos.
Identidade. Logo ficou claro que a instrumentalida-
de não era o único motivo da participação. Afinal de contas,
muitas das metas dos movimentos são alcançadas após uma
longa jornada, se forem alcançadas. Analogamente, quando
a questão é o benefício material, os custos freqüentemente
prevalecem sobre os benefícios. Aparentemente, há mais
em ser um participante de um movimento do que os custos
e benefícios percebidos. De fato, um destes motivos diz res-
peito a pertencer a um grupo valorizado.
Simon (1998, 1999) descreveu sucintamente a
identidade como um lugar na sociedade. As pessoas ocu-
pam diferentes lugares na sociedade. Elas são estudantes,

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 149


desempregados, donas de casa, jogadores de futebol, polí-
ticos, fazendeiros, entre outras coisas. Alguns desses luga-
res são ocupados por um número pequeno de pessoas. Os
membros de um time de futebol são um exemplo. Outros
abrangem um grande número de pessoas, como os euro-
peus. Alguns lugares são mutuamente exclusivos, como
feminino-masculino ou empregado-desempregado; alguns
são aninhados, como, por exemplo, franceses, holandeses
e alemães versus europeus; e outros são transversais, como
feminino e estudante. (Turner, 1999; Hornsey e Hogg, no
prelo). Todos esses diferentes papéis e posições que uma
pessoa ocupa formam sua identidade pessoal. Ao mesmo
tempo, todo o lugar que uma pessoa ocupa é compartilha-
do com outras pessoas. Eu não sou o único professor de
psicologia social, nem o único holandês, nem o único eu-
ropeu. Compartilho essas identidades com outras pessoas
– um fato que as torna identidades coletivas. Assim, uma
identidade coletiva é um lugar compartilhado com outras
pessoas. Isso implica que identidades pessoais são sem-
pre, ao mesmo tempo, identidades coletivas. A identidade
pessoal é geral, e refere-se a uma variedade de lugares na
sociedade, enquanto a identidade coletiva é especifica, e
refere-se a um local específico.
A maior parte do tempo, as identidades coleti-
vas permanecem latentes. A teoria da autocategorização
formula a hipótese de que, dependendo da circunstância
contextual, um indivíduo pode agir como uma pessoa úni-
ca, ou seja, mostrar sua identidade pessoal, ou, como um
membro de um grupo específico, mostrar uma das muitas
identidades coletivas que possui. (Turner, Hogg, Oakes, Rei-
cher e Wetherell, 1987; Turnes, 1999) Fatores contextuais
podem trazer a identidade pessoal ou coletiva à tona. Ob-
viamente, isso não é, freqüentemente, questão de escolha.

150 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


As circunstâncias podem forçar uma identidade coletiva à
consciência, quer as pessoas gostem ou não, como as his-
tórias da Iugoslávia e da África ilustraram dramaticamente.
Mas, também, em circunstâncias bem menos extremas a
identidade coletiva pode se tornar significativa. Considere,
por exemplo, o possível efeito do anúncio de que a insta-
lação de um incinerador de lixo está sendo planejada para
um local próximo de um bairro. Há chances de que, dentro
de bem pouco tempo, a identidade coletiva das pessoas
que vivem naquele bairro torne-se evidente.
A hipótese básica sobre a identidade coletiva e
a participação em movimentos é bastante simples: uma
identificação forte com um grupo torna mais provável a
participação em ações políticas do grupo. (Huddy, 2001;
para um tratamento abrangente do assunto, ver: Stryker,
Owen e White, 2000) A evidência empírica disponível su-
porta substancialmente essa suposição. Kelly e Breinlinger
(1996) notaram que a identificação entre um sindicato e
seus membros tornou mais provável a participação de seus
membros em ações industriais; enquanto a identificação
de gênero tornou a participação no movimento feminista
mais provável. Simon et alli (1998) e Stürmer (2001) ob-
servaram que a identificação com outros gays, em especial
com outros membros do movimento gay, reforçou o en-
volvimento com o movimento. Finalmente, Klandermans
e seus colegas (De Weerd e Klandermans, 1999; Klander-
mans, Sabucedo e Rodriguez, 2002) notaram que fazendei-
ros que se identificavam com outros fazendeiros tinham
maior probabilidade de se envolver em protestos de fa-
zendeiros do que aqueles que não se identificavam com
outros fazendeiros.
Ideologia. O terceiro motivo, querer expressar
as próprias visões, se refere ao mesmo tempo a um tema

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 151


duradouro na literatura sobre movimentos sociais e a um
de seus recentes desenvolvimentos. Nos estudos clássicos
sobre movimentos sociais, foi feita uma distinção entre
movimentos instrumentais ou expressivos (ver: Searles
e Williams, 1962; Gusfield, 1963) Quando isso foi feito,
movimentos instrumentais eram vistos como se tivessem
apoiando metas externas, por exemplo, a implementação
dos direitos civis. A participação em movimentos expressi-
vos, por outro lado, era uma meta por si só, por exemplo, a
expressão de fúria em resposta a uma injustiça vivenciada.
Estudiosos dos movimentos sentiam-se crescentemente
desconfortáveis com essa distinção, pois se pensava que a
maioria dos movimentos continha ambos os aspectos, ins-
trumentais e expressivos, e que a ênfase nos dois poderia
mudar com o tempo. Portanto, a distinção perdeu utiliza-
ção. Recentemente, entretanto, a idéia de que as pessoas
deveriam participar de movimentos para expressar suas
visões recebeu atenção mais uma vez. Dessa vez, de es-
tudiosos dos movimentos que estavam insatisfeitos com
a abordagem excessivamente estrutural da mobilização
de recursos e da teoria do processo político. Esses acadê-
micos deram ênfase em aspectos como as características
criativas e culturais dos movimentos sociais, narrativas,
emoções e indignação moral. (ver: Goodwin, Jasper e Pol-
letta, 2001) As pessoas estavam nervosas, desenvolviam
sentimentos de indignação moral sobre algum estado de
coisas ou alguma decisão governamental e queriam fazer
esse fato ser conhecido. Eles participam de um movimento
social não apenas para forçar uma mudança política, mas
também para ganhar dignidade em suas vidas através da
luta e da expressão moral.
Goodwin et alli (2001, p.13) argumentam que as
emoções são socialmente construídas, mas que “algumas

152 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


emoções são mais [socialmente] construídas que outras,
envolvendo mais processos cognitivos”. Em sua visão,
emoções que são relevantes politicamente são mais rele-
vantes na construção social no fim da escala. Para essas
emoções, fatores culturais e históricos cumprem um papel
importante na interpretação do estado de coisas pelo qual
elas foram geradas. Esses autores sustentam que emoções
são importantes no crescimento e no desdobramento dos
movimentos sociais e dos protestos políticos. Obviamente,
as emoções podem ser manipuladas. Ativistas trabalham
duro para criar ultraje moral, raiva e para fornecer um alvo
para o qual esses sentimentos possam ser dirigidos. Eles
devem tecer conjuntamente um pacote de atitudes morais,
cognitivas e emocionais. Também nas atividades contínuas
dos movimentos, as emoções cumprem um papel impor-
tante. (Jasper, 1997, 1998) Raiva e indignação são emoções
relacionadas com uma avaliação específica da situação. Ao
mesmo tempo, as pessoas intrigam-se por alguns aspectos
da realidade e tentam entender o que está acontecendo.
Elas podem procurar por outras pessoas com experiências
similares, e um movimento social deve prover um ambien-
te para a troca de experiências, para que contem suas his-
tórias e expressem seus sentimentos.

O lado da oferta da participação

As organizações de movimentos sociais são mais


ou menos bem sucedidas na satisfação da demanda por
participação política coletiva, e devemos assumir que os
movimentos que oferecem com sucesso aquilo que os par-

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 153


ticipantes em potencial demandam ganham mais apoio do
que movimentos que falham em sua oferta. Os movimen-
tos e seus organizadores podem ser comparados em ter-
mos de sua efetividade a esse respeito.
Instrumentalidade. A instrumentalidade pressu-
põe um movimento efetivo que seja capaz de fazer com
que se cumpram algumas das mudanças desejadas ou, ao
menos, mobilizar um apoio substancial. Fazer uma avalia-
ção objetiva do impacto de um movimento não é fácil (ver:
Giugni, McAdam e Tilly, 1999; Giugni, 1998), mas é claro
que os organizadores do movimento vão tentar transmitir
a imagem de uma força política robusta. Eles podem fazê-
-lo apontando para o impacto que tiveram no passado ou
para os aliados poderosos que possuem. É claro que eles
podem carecer disso tudo, mas se assim for, deverão ser
capazes de mostrar outros signos da força do movimen-
to. Um movimento pode influenciar um grande número de
pessoas, como nos casos de participação em manifesta-
ções, proximidade de pessoas destacadas da sociedade ou
grandes doações. Pode abranger organizações fortes com
lideres carismáticos fortes e respeitados, dentre outras
coisas. A instrumentalidade também implica a provisão de
alguns incentivos seletivos. Os incentivos seletivos por par-
ticipação dos quais o movimento tem condições de lançar
mão podem variar consideravelmente de uma organização
para outra. Tal variação depende dos recursos que a orga-
nização do movimento tem a suam disposição. (McCarthy e
Zald, 1976; Oliver, 1980). Surpreendentemente, pequenas
e sistemáticas comparações das características dos movi-
mentos, de suas organizações e campanhas com o foco no
lado da oferta da participação podem ser encontradas na
literatura. (ver: Klandermans, 1993). O sistema político e
o sistema de alianças e conflito nos quais as organizações

154 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


de movimentos estão envolvidas podem mostrar variação
considerável que influencie o lado da oferta da participa-
ção. De fato, Tilly (1978) cunhou os termos “repressão” e
“facilitação” distinguir os sistemas políticos que aumentam
ou diminuem os custos de participação. Ambientes polí-
ticos repressivos podem aumentar consideravelmente os
custos de participação. As pessoas podem vir a perder ami-
gos, arriscar seus empregos ou, de alguma forma, colocar
em risco suas fontes de renda, podem ser presas ou até
mesmo perder suas vidas.
Klandermans (1984, 1997) combinou esses fato-
res no seu modelo de participação em movimentos. O mo-
delo toma como ponto de partida que as metas dos movi-
mentos são bens públicos. Elas pertencem à família da ex-
pectativa-valor e ligam a oferta de ações políticas coletivas,
da forma como são percebidas pelos indivíduos, às suas
demandas. Fazendo isso, o modelo combina critérios da
teoria da escolha racional com critérios da teoria da ação
coletiva. O modelo faz uma distinção entre incentivos co-
letivos e seletivos. Em poucas palavras, ele sustenta que as
pessoas são motivadas pela possibilidade de apoiar a pro-
dução de um bem público atrativo – tal como ar limpo, paz
ou igualdade de direitos (incentivos coletivos), que serão
alcançados pela participação em meios de ação atrativos –
por exemplo, um comício no qual o grupo musical preferi-
do deles se apresente (incentivos seletivos). Os incentivos
coletivos são subdivididos entre o valor do bem público e
a expectativa de que ele será produzido. As expectativas
sobre o comportamento dos outros são elementos chave.
A teoria supõe um nível ótimo: se se espera muitos parti-
cipantes, a participação individual torna-se desnecessária;
se se espera poucos participantes, a participação individu-
al torna-se inútil. Incentivos coletivos percebidos somam-

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 155


-se à explicação, especialmente os assim chamados incen-
tivos sociais que, no modelo de Klandermans, consistem
na reação esperada de outras pessoas significativas se o
individuo decide participar. Desde a sua publicação, o mo-
delo encontrou suporte empírico convincente. (Brïet, Klan-
dermans e Kloon, 1987; Klandermans, 1984; Klandermans,
1993; Klandermans e Oegema, 1987; Kelly e Breinlinger,
1996; Simon et alli, 1998; Stümer, 2000)
Um importante elemento da oferta de participa-
ção é, assim, o provisionamento de informação sobre o
comportamento dos outros. A esse respeito, as redes so-
ciais são de importância estratégica porque é através de-
las que as pessoas são informadas sobre a intenção dos
outros. (Oegema e Klandermans, 1994; Kim e Bearman,
1997; Chwe, 1999; Passy, 2001) Conforme discutido, a im-
portância dessa informação difere dependendo do tipo de
participação. Baseando-se no argumento de que as pesso-
as têm diferentes limites, Rule (1988, 1989) argumentou
que, ao ver que cada vez mais pessoas tomam parte em
uma ação coletiva, esse fato, por si só, motiva um número
crescente de pessoas a se somar, porque seus limites indi-
viduais à participação foram ultrapassados. Em seu artigo
sobre o movimento estudantil chinês, Zhao (1998) dá um
exemplo notável desse mecanismo. Ele descreve como as
circunstâncias ecológicas que a maioria dos estudantes em
Beijing vivencia na mesma parte da cidade fez o sucesso do
movimento em termos de mobilização literalmente visível
nas ruas em frente aos dormitórios estudantis.
Identidade. Os movimentos oferecem a oportuni-
dade de se agir em nome de um grupo. Isso é o mais atra-
tivo, se as pessoas se identificam fortemente com seus gru-
pos. Quanto mais fazendeiros se identificarem com outros
fazendeiros, mais preparados estarão para tomarem parte

156 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


no protesto de fazendeiros (De Weerd e Klandermans, 1999;
Klandermans et alli, 2002). Quanto mais mulheres se iden-
tificarem com outras mulheres, mais preparadas estarão a
tomarem parte do movimento feminista (Kelly e Breinlinger,
1996). E quanto mais homossexuais se identificarem com
outros homossexuais, mais eles estarão preparados para to-
mar parte no movimento gay (Simon et alli, 1999; Stümer,
2000). Curiosamente, todos esses estudos mostram que a
identificação com o grupo mais exclusivo de participantes
do movimento é muito mais influente do que a identificação
com a categoria mais inclusiva. De fato, em adição à opor-
tunidade de agir em nome de um grupo, a participação em
uma ação política coletiva oferece ainda mais elementos
constituintes da identificação: a causa do movimento, as
pessoas no movimento, sua organização ou o grupo em que
o individuo está participando, o líder do movimento. Nem
todas essas fontes de identificação são sempre igualmente
atraentes. Os líderes do movimento podem ser mais ou me-
nos carismáticos ou, em algum grupo, podem ser mais ou
menos atraentes. Os movimentos e suas organizações po-
dem ser, e de fato freqüentemente são, controversos. Por
isso, tornar-se um participante da organização de um mo-
vimento não significa ocupar uma posição respeitada sobre
si mesmo. Dentro do quadro do movimento, certamente
isso é completamente diferente. Lá o militante tem o sta-
tus que a sociedade o nega. E, é claro, para um ativista, a
dinâmica intragrupo e extragrupo pode transformar a orga-
nização ou o grupo do movimento em um grupo muito mais
atrativo que qualquer outro “lá fora”, que está se opondo
ao movimento. Na realidade, não é incomum que militantes
refiram-se ao movimento como uma segunda família, um
substituto para vida associativa e social, que a sociedade já
não oferece. (Tristan, 1987; Orfali, 1990) O movimento não

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 157


apenas fornece fontes de identificação, como também ofe-
rece todo tipo de oportunidade para desfrutar e celebrar a
identidade coletiva: marchas, rituais, canções, encontros,
signos, símbolos e códigos comuns. (para uma visão global,
ver: Stryker et alli, 2000)
Um agravante quando falamos do lado da oferta
de participação é o fato de que as pessoas têm múltiplas
identidades, enquanto movimentos enfatizam uma iden-
tidade coletiva, e, portanto, por definição, referem-se a
um lugar único na sociedade. Isso pode implicar em leal-
dades conflitantes como Oegema e Klandermans (1994)
demonstraram a respeito do movimento pacifista holan-
dês. A campanha contra mísseis de cruzeiro aproximou
muitos cidadãos que simpatizavam com o movimento, mas
que eram filiados ao Partido Democrata Cristão; a posição
de oposição do partido colocou o movimento sob dupla
pressão. Os movimentos organizados são mais ou menos
bem sucedidos em lidar com múltiplas identidades. Sha-
ron Kurtz (2002) descreve como auxiliares de escritório da
Universidade de Columbia lutaram e conseguiram reconci-
liar identidades de gênero, étnicas e de classe. Karem Be-
ckwith (1998), por outro lado, explica como as mulheres
na greve de Pittston Coal foram impedidas da possibilidade
de atuar em favor de sua identidade de gênero. Na lite-
ratura dos movimentos sociais tem se dado pouca aten-
ção à questão da múltipla identidade; no entanto, pode-se
presumir que cada movimento, de alguma forma, terá de
lidar com a questão e, dependendo de como ela for trata-
da, o movimento será ou menos atrativo para as pessoas.
Gerhards e Rucht (1992), por exemplo, descrevem como
os organizadores de duas manifestações em Berlim foram
bem sucedidos em tornar possível a várias pessoas identi-
ficarem-se com as metas das manifestações. Observações

158 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


similares podem ser encontradas nos primeiros estudos
sobre os movimentos antiglobalização. (Smith, 2001)
Há evidências de que os processos de identida-
de tem tanto efeitos diretos indiretos na participação em
protestos. (Stürmer, 2000) Efeito indireto, quando a iden-
tidade coletiva influencia a razão instrumental, a ponto de
tornar menos atrativo que se pegue uma carona. O estudo
de Hirsch (1990) sobre o boicote de Columbia é um bom
exemplo de como a solidariedade com um grupo, confor-
me ocorrido nas escadarias da administração da Univer-
sidade de Columbia, torna difícil para os participantes se
absterem. De fato, a identidade coletiva parece ser uma
forma de superar o dilema social formado na lógica ins-
trumental sobre a participação em movimentos, (ver tam-
bém: Klandermans, 2000) Altos níveis de identificação com
o grupo aumentam os custos de deserção e os benefícios
da cooperação. Em outras palavras, a identidade coletiva
tem impacto no caminho instrumental para a participação
em protestos. Efeito direto, porque a identidade coletiva
cria um atalho à participação. As pessoas participam nem
tanto por causa de ganhos associados, mas porque identi-
ficam-se com outros participantes.
Ideologia. Os movimentos sociais cumprem um
papel significativo na difusão de idéias e valores. (Eyerman
e Jamison, 1992) Rochon (1998, p. 31) faz a distinção entre
“comunidades críticas”, nas quais novas idéias e novos va-
lores são desenvolvidos, e “movimentos sociais” que estão
interessados em ganhar aceitação social e conquistar polí-
ticas por razão de suas idéias e seus valores. “Nas mãos dos
líderes dos movimentos, as idéias de comunidades críticas
tornam-se quadros [frames] ideológicos”, de acordo com
Rochon, que continua a argumentando que movimentos
sociais não são simplesmente extensões das comunidades

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 159


críticas. Apesar de tudo, nem todas as idéias desenvolvidas
nas comunidades críticas são igualmente adequadas para
motivar a ação coletiva. Organizações de movimentos so-
ciais, então, são portadoras de significados. Por meio de
processos tais como uma mobilização-consenso (Klander-
mans, 1984, 1992), enquadramento (Snow et alli, 1986) ou
diálogo (Steinberg, 1999), elas procuram disseminar sua
definição da situação para o público em geral. O estudo
de Gerhards e Rucht sobre panfletos produzidos por vá-
rios grupos e organizações envolvidas nos protestos con-
tra o FMI e o Banco Mundial em Berlim é um excelente
exemplo a esse respeito. Esses autores mostram como as
ligações são construídas entre os quadros [frames] ideoló-
gicos dos organizadores das manifestações e aqueles das
organizações participantes, de modo a criar uma definição
compartilhada da situação. Tais definições da situação tem
sido rotuladas “quadros [frames] de ação coletiva”. (Gam-
son, 1992; Klandermans, 1997) Quadros [frames] de ação
coletiva podem ser definidos em termos de injustiça – ou
seja, alguma definição sobre o que está errado no mundo
–, identidade – ou seja, alguma definição de quem é afeta-
do e quem é responsável – e ativismo – algumas crenças na
possibilidade de mudar a sociedade. Devemos assumir que
pessoas que se juntam ao movimento vêm para comparti-
lhar alguma parte do quadro [frame] de ação do movimen-
to e que no processo de compartilhamento de significado,
é dado ao seu mundo.
Os movimentos sociais não inventam idéias do
nada, mas as constroem a partir de uma herança ideoló-
gica, à medida que relacionam suas reivindicações a te-
mas e valores mais amplos da sociedade. Fazendo isso,
eles se relacionam aos debates societais, que têm uma
história própria, normalmente muito mais longa do que

160 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


a própria história do movimento. Gamson (1992), por
exemplo, faz referência aos “temas” e “contratemas” que,
em sua visão, existem em todas as sociedades. Um desses
pares de temas e contratemas por ele mencionado são a
“autodependência” versus a “reciprocidade”, ou seja, a
crença que indivíduos devem tomar conta de si mesmos
versus a crença de que a sociedade é responsável pelos
seus membros menos afortunados. Klandermans e Gos-
linga (1996) discutem como, na Holanda, essas duas cren-
ças tornaram-se os ícones que galvanizaram os debates
e estimularam os protestos sobre pensões por invalidez.
Enquanto “autodependência” tornou-se o tema daqueles
que defendiam alterações no sistema de pagamento de
pensões por invalidez, “reciprocidade” era o tema daque-
les que defendiam o sistema existente. Outro exemplo é o
que Tarrow (1998) chama de “quadro [frames] dos direi-
tos”: direitos humanos, direitos civis, direitos das mulhe-
res, direito dos animais e assim por diante. Em outras pa-
lavras, quadros [frames] de ação coletiva que relacionam
os objetivos dos movimentos com algum dos tópicos fun-
damentais do quadro [frame] dos direitos. Por décadas, o
marxismo permaneceu, para os movimentos do passado,
uma herança ideológica, tanto em termos positivos, com
a reivindicação do marxismo pelos próprios movimentos,
quanto negativos, com o distanciamento dele. Por uma
veia similar, o fascismo e o nazismo formam a herança
ideológica com a qual a extrema direita deve chegar a um
acordo, identificando-se com ele ou mantendo-o à dis-
tância. Algumas destas idéias do passado são mais úteis
do que outras. Por exemplo, Kitshelt (1995) argumentou
que os partidos da nova direita radical que se identificam
demais com o nazismo ou com o fascismo estão condena-
dos a fracassar. (ver também: Ignazi e Ysmal, 1992)

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 161


Não é somente o componente cognitivo da ideo-
logia que os movimentos sociais conduzem. As emoções,
ou seja, o componente afetivo da ideologia, são igualmen-
te importantes. Afinal de contas, as pessoas estão nervo-
sas, moralmente ultrajadas, e os movimentos organizados
fornecem a oportunidade de expressar e comunicar esses
sentimentos. A atenção acadêmica ao papel das emoções
no reino da participação em movimentos está apenas
em sua infância. Em um volume editado, Goodwin et allli
(2001) apresentaram um trabalho conjunto sobre o as-
sunto. Obviamente, os movimentos diferem a respeito de
como lidam com emoções, sentimentos ou paixão, tanto
no sentido da paixão que impulsiona a participação, quan-
to em termos das emoções e do afeto que se dão dentro
do movimento. Quanto melhor fizerem isso, mais compro-
metidas com o movimento estarão as pessoas; mas, se a
organização falhar, isso pode ser motivo para arruinar o
movimento, como demonstra o estudo de Goodwin (1997)
sobre a rebelião de Huk. O fracasso do movimento em lidar
com as relações afetivas e sexuais – levadas a cabo entre
seus membros e entre seus membros e pessoas de fora –
acabou por debilitá-lo.

Conclusões

A participação em movimentos sociais não é so-


mente uma questão de pessoas que são levadas a agir por
algum estado psicológico interno (o lado da demanda da
participação), nem é uma questão de movimentos organi-
zados que puxam as pessoas para a ação (o lado da oferta

162 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


da participação). Demanda, oferta e mobilização contam
nas instâncias de participação. A razão pela qual freqüen-
temente nenhuma ação coletiva acontece, a despeito de
um descontentamento muito difundido, é que não há mo-
vimento organizado viável para articular alguma ação. Ao
mesmo tempo, quando existente, um movimento organi-
zado não vai muito longe se não há pessoas preocupadas
com os assuntos que a organização tenta chamar a atenção.
Finalmente, sem campanhas efetivas de mobilização, a ofer-
ta e a demanda podem nunca se encontrar. Compreender
o lado da oferta da participação envolve teorias científicas
da sociologia e da política sobre o desenvolvimento e a di-
nâmica dos movimentos sociais; compreender o lado da
demanda requer modelos da psicologia social e da psicolo-
gia política. Assim como na economia, existe uma intrigante
ação recíproca entre a demanda e a oferta. Por vezes, uma
ação atraente que acontece no momento certo proporciona
um enorme comparecimento das pessoas; ou seja, a oferta
reforça a demanda. Às vezes um grande descontentamento
dá origem a um movimento forte, e a demanda desencadeia
a oferta. Mas, certamente, a maioria do tempo a demanda
e a oferta reforçam uma à outra. A mobilização é o proces-
so que faz as duas se encontrarem. Teorias da persuasão e
análises das redes são relevantes nesse campo.
Diferentes motivações podem estar em jogo no
intercâmbio entre um movimento e seus participantes. A
instrumentalidade, a identidade e a ideologia foram propos-
tas como possíveis motivos que contribuem para a motiva-
ção do indivíduo para participar. Sugeri que os três podem
compensar uns aos outros. A participação pode não ser
imediatamente efetiva em provocar mudanças. Participan-
tes entendem isso e não esperam que o governo desista ao
primeiro sinal de disputa. Por outro lado, pode bastar para

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 163


muitos participantes terem a oportunidade de encontrar
pessoas com mentes semelhantes às delas, e poderem, as-
sim, expressar suas opiniões. A ação política coletiva não
diz respeito apenas à efetividade, mas também à paixão
política. Isso não significa dizer que a efetividade pode se
tornar irrelevante no conjunto. Obviamente, mais cedo ou
mais tarde, algo terá de mudar. Se nunca nada acontecer,
um movimento de mudança desmoronará, desaparecerá ou
se transformará em um clube ou organização de auto-ajuda.

164 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


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* Tradução: Babel Hajjar

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 173


A Psicologia Política da
crise do movimento sindical
brasileiro dos anos 1990
Uma análise da consciência
política num momento de
desmobilização

Salvador A. M. Sandoval1

1  Professor Titular e líder do Núcleo de Psicologia Política e Movimentos


Sociais (1986) do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil. Foi co-fundador
da Associação Brasileira de Psicologia Política e co-editor da Revista
Psicologia Política (2001-2007).
Introdução

Há um grande volume de estudos e propostas te-


óricas para analisar a participação das pessoas nos movi-
mentos sociais e sindicais, as quais partem, em grande me-
dida, de leituras posteriores ao acontecimento de eventos
e de mobilizações coletivas. Assim, essas análises a poste-
riori do surgimento das mobilizações costumam atribuir as
motivações dos participantes a duas explicações.
Primeiro, muitos autores atribuem aos partici-
pantes apenas as motivações expressas, seja nas deman-
das elencadas pelas organizações ou nos elementos con-
tidos nos discursos de suas lideranças. (Sandoval, 1989)
Uma segunda abordagem, ao analisar a predisposição de
participar em ações coletivas de movimentos sociais, é
aquela que se baseia no conceito de “frames” ou enqua-
dramentos (entendidos como marcos interpretativos), uma
noção imprecisa de um estado mental semelhante à no-
ção de representação social ou de um quadro mental que
explica este ou aquele comportamento. (Goffman, 1986)
A literatura de origem estadunidense vem utilizando o
conceito de Goffman de enquadramentos interpretativos,
sendo que nela encontramos uma diversidade de rótulos
atribuídos por cada autor aos frames, que movimentam a
participação dos indivíduos. Esses rótulos para os marcos
interpretativos variam conforme a natureza do movimen-
to social em questão, a percepção de cada pesquisador e
os enunciados de reivindicações e demandas; rótulos que
estão pouco integrados teoricamente com qualquer enfo-
que psicopolítico usado na atualidade para compreender a
visão de mundo dos indivíduos e as mudanças nessas per-
cepções sobre a participação.

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 177


Analistas de frames ou enquadramentos (Gam-
son, 1992; Klandermans, 1997; Benford e Snow, 2000)
apenas atribuem significados aos rótulos relacionados à
natureza do movimento social em análise e não a alguma
concepção de um modelo básico do pensamento do self,
que seja aplicável à compreensão do processo de cons-
cientização das pessoas, como proposto nos enfoques que
partem das contribuições de Paulo Freire e Ignacio Martin-
-Baró. Ainda que essas abordagens para explicar o engaja-
mento em ações coletivas pareçam apresentar explicações
congruentes, elas logo revelam suas limitações intrínsecas,
quando são postas à prova nas análises para decifrar os
motivos da desmobilização ou, mais ainda, para explicar a
falta de mobilização coletiva frente aos abusos ou carên-
cias de grandes segmentos da população.
O contexto de desmobilização ou de ausência de
participação coletiva constitui um desafio teórico-analí-
tico para essas abordagens convencionais de análise de
participação. O fenômeno da desmobilização representa
um comportamento contrário aos discursos de lideranças
(ou seria contrário às expectativas que contêm os discur-
sos das lideranças) ou que se contrapõem às propostas de
reinvindicação. Assim, com a ausência da ação coletiva, a
desmobilização torna-se um fenômeno mais comum no
mundo da política ao qual é dada pouca importância nos
estudos dos movimentos sociais. As abordagens usadas
para explicar a participação são insuficientes para oferecer
um modelo analítico para a compreensão dos indivíduos
que desistem ou deixam de se envolver em ações coletivas.
O Modelo da Consciência Política, originalmente
introduzido num artigo publicado no ano de 2000 na re-
vista Psicologia Politica, foi desenvolvido a partir do exa-
me cuidadoso das contribuições de diversos autores e

178 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


correntes teóricas que, em algum momento, deram foco
à problemática da formação do pensamento e da visão de
mundo de indivíduos em sua interação com a realidade
social. Optamos pelo conceito de “consciência” para no-
mear esse pensamento social do individuo por entender
que, tradicionalmente, na literatura de movimentos sociais
e nos enfoques de Paulo Freire e da psicologia social la-
tino-americana de Ignacio Martin-Baró, a noção de cons-
ciência é o constructo conceitual usado para nomear esse
pensar social e traz para nosso enfoque o lugar central da
“conscientização” como o processo pelo qual os indivíduos
alteram suas consciências frente aos acontecimentos das
realidades vividas por eles. (Ansara, 2008)
Nessa perspectiva, consciência e conscientização
recuperam um passado perdido da psicologia social, que
tem suas raízes tanto na tradição interacionista iniciada
por George Herbert Mead e a Escola de Chicago, quan-
to nos trabalhos de sociólogos e ativistas dos movimen-
tos sociais, desde o inicio da tradição marxista do século
XIX. (Silva, 2001, 2002) Assim, optamos pelo conceito de
consciência por entender que esse pensar dos indivíduos
corresponde aos olhares de realidades das quais eles são
atores passivos ou ativos.
Optamos por formular um modelo psicopolítico
do pensar das pessoas com a finalidade de oferecer um
instrumento conceitual para instrumentalizar a análise da
consciência ou das consciências das pessoas que agem po-
liticamente; ao mesmo tempo, queremos propor um ins-
trumento conceitual que também ofereça elementos so-
bre esses olhares e que possa subsidiar propostas de inter-
venções para a promoção de processos de conscientização
nos contextos de organização populares. Portanto, a esco-
lha do conceito de consciência também tem como objetivo

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 179


denominar esse pensar em termos conceitualmente fáceis
de serem compreendidos por outros profissionais e ativis-
tas envolvidos no campo das ações coletivas, evitando, as-
sim, os paroquialismos terminológicos, típicos dos adeptos
das correntes teóricas da psicologia. Temos o intuito de
prover um modelo ou constructo analítico interdisciplinar
para o estudo da consciência política como um fenômeno
dos movimentos sociais, que emergem numa realidade so-
cial que em sua natureza integrada e interativa exige um
enfoque interdisciplinar.
Desde a publicação da primeira versão desse tex-
to na revista Psicologia Política (Sandoval, 2001), no qual
apresentamos pela primeira vez o Modelo da Consciência
Política, já foram realizadas muitas pesquisas que o utiliza-
ram para a análise da consciência política de participantes
de atividades políticas. Esses estudos vêm demonstrando
a consistência e a utilidade de nosso modelo para ordenar
analiticamente os conteúdos do pensamento das pessoas
no estudo de determinantes psicopolíticos da participação
política. Alguns exemplos de estudos que utilizaram nosso
modelo e que, de alguma forma, aportaram ao nosso pro-
cesso de reflexão sobre ele foram os estudos de Alessan-
dro Soares da Silva (2001, 2002, 2003, 2006, 2008), Betânia
Diniz Gonçalves (2008), Edlene Santos Oliveira (2011), Gi-
seli Paim Costa (2008), Guilherme Borges da Costa (2012),
Jair Reck (2005), José Ferdinando Ramos Ferreira (2011),
Lúcia Azevedo (2012), Márcia Prezotti Palassi (2004, 2011),
Maria Judith Gomes  (2002), Nelson da Fonseca (2004) e
Soraia Ansara (2000, 2008).
Mas é importante observar que se, por um lado,
os estudos sobre participação política privilegiaram o
exame de casos de participantes engajados de alguma
maneira em movimentos sociais, o que pode facilitar a

180 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


análise dos conteúdos da consciência política relativos à
participação e levar pesquisadores a acreditar que seus
referenciais teóricos para analise de consciência são ade-
quados, por outro, o grande desafio é analisar a consciên-
cia política em contextos de desmobilização ou ausência
de participação. Nesses casos de redução de participa-
ção faz-se necessário pensar em um modelo analítico da
consciência que seja capaz de investigar dimensões psi-
copolíticas que predispõem as pessoas a não participar,
e, conseqüentemente, que permita pensar as dimensões
que também levariam à participação. Dessa maneira, o
modelo apresentado neste trabalho pretende atender as
exigências de investigar a consciência política tanto em
situações de engajamento participativo quanto em con-
textos de ausência ou diminuição de participação.

Crise econômica, greves e mobilização dos


trabalhadores no Brasil dos anos 1990

Em face das ponderações feitas na introdução, o


presente trabalho relata a aplicação do Modelo da Cons-
ciência Política ao caso da desmobilização do movimento
operário no período das mudanças neoliberais em São
Paulo, como ilustração de pesquisa feita entre trabalhado-
res de um grande banco público em processo de privatiza-
ção durante o governo de Fernando Henrique Cardoso na
década de 1990.
A recessão econômica e os processos de privati-
zação das empresas públicas produziram um impacto des-
mobilizador entre trabalhadores, e muito especificamente

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 181


dentro o movimento sindical, como veremos a seguir. Por
esse motivo, entendemos que a aplicação do Modelo da
Consciência Política possibilita uma melhor compreensão
das bases psicopolíticas que determinaram, em parte, a des-
mobilização de grandes segmentos da classe trabalhadora.
No final da década de 1980, o movimento sindi-
cal brasileiro chegava ao seu ápice quanto à capacidade de
mobilização; a força grevista era 10 vezes maior do que no
início da década. Sem dúvida, pode-se confirmar, no final da
década de 80, que o movimento sindical brasileiro, especial-
mente aquele representado pela Central Única dos Traba-
lhadores (CUT), tinha alcançado um nível de desenvolvimen-
to histórico capaz de liderar ações de greve em diferentes
setores profissionais, assim como comandar greves gerais
nacionais. Do lado institucional, a CUT representou a con-
solidação progressiva de uma organização nacional, de uma
liderança trabalhista previamente fragmentada, reunindo
89% dos sindicatos de empregados do governo, 51% dos sin-
dicatos dos trabalhadores de empresas privadas nacionais e
56% dos sindicatos de empresas multinacionais.
Conforme ilustrado no Gráfico 1, o nível de ativi-
dade de greve em 1990 refletia as tendências da década
anterior. No primeiro ano da década de 1990, o trabalho
organizado liderou 1.952 greves separadas, com uma mé-
dia de 4.654 grevistas por evento. Durante toda essa déca-
da, a trajetória do trabalho foi contrária a dos anos 1980.
Ao focalizar o desempenho grevista como uma
medida quantitativa da capacidade do trabalho de mobi-
lizar, constata-se que os anos 1990 podem ser divididos
em três fases distintas, representando padrões de mobi-
lização trabalhista.
Segundo no Gráfico 1, a Fase 1 abrange os anos
de 1990 a 1993, quando o trabalhador estava lutando
182 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)
contra os efeitos da hiperinflação. Esses anos foram mar-
cados por severa instabilidade econômica devido à espi-
ral hiper-inflacionária e a resposta do trabalho era dire-
tamente contra a corrosão dos salários devido aos 25% a
30% mensais de inflação. Houve uma queda significativa
no número de ações grevistas, de 1.952, em 1990, para
732 (eventos) em 1993, e um leve crescimento entre 1993
e 1994. Embora tenha havido uma queda significativa nas
ações grevistas, o número médio de grevistas alcançou
um recorde. Em 1993, o número médio de grevistas foi de
7.095 por greve. Isso significa que, enquanto a hiperinfla-
ção drenava o sangue das pessoas, um número crescente
de trabalhadores aderia às ações grevistas. Apesar de se
poder ver nessa primeira fase uma flutuação no número
médio de grevistas, é importante notar que, a despeito
da flutuação, os grevistas representaram um crescente
número de participantes.

Gráfico 1: Número de greves e média de grevistas, Brasil, 1990-1999

Source: Strike data 1990-1999, DIEESE tabulations until october


1999; strike data 1989, Salvador A.M. Sandoval. Labor Unrest and
Social Change in Brasil, (Westview Press, 1993, Table 7.5, p.170.

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 183


A única exceção foi em 1992 quando ambos, gre-
ves e número médio de grevistas, provavelmente decres-
ceram porque a participação das greves foi substituída pe-
las mobilizações políticas relacionadas à crise que levou ao
impeachment do presidente Fernando Collor de Mello. Na
medida em que sindicatos, centrais sindicais, organizações
estudantis, políticos, Igreja e líderes econômicos se mobili-
zaram em favor do impeachment do presidente, a ativida-
de grevista da classe trabalhadora decresceu, tanto em ter-
mos do número de eventos grevistas, quanto em relação
ao número médio de grevistas. Isso não era inesperado, na
medida em que o comportamento grevista geralmente ar-
refece quando temas políticos nacionais alcançam pontos
de mobilização nacional.
A Fase 2 abrange os anos de 1994, 1995, 1996 e
os anos imediatamente após o programa de estabilização
monetária do Plano Real. A estabilização sob o Plano Real
provaria ser um fator fundamental no desmonte da capaci-
dade de mobilização do trabalho a partir daquela época. O
Gráfico 1 indica que a atividade grevista, em termos do nú-
mero de greves, aumentou levemente em relação ao pe-
ríodo anterior (Fase 1), mas o número médio de grevistas
diminuiu rapidamente, alcançando o menor nível desde o
final da década de 1970. Desta feita, a relevância da Fase 2
só pode ser compreendida em relação à Fase 1 e à Fase 3.
Em geral, a Fase 2 reflete as dificuldades que o movimento
sindical tinha, especialmente a CUT, em lidar com as novas
condições sócio-econômicas criadas como conseqüência
da estabilização econômica.
Os dados da Fase 3 descrevem a atividade grevis-
ta em um período de recessão econômica crescente, devi-
do às políticas monetárias do governo Cardoso, quando a
atividade grevista continuou a declinar. Nem é necessário

184 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


dizer que as causas desse declínio são, em parte, resultan-
tes da recessão econômica sobre a disposição dos traba-
lhadores de desafiar os empregadores em um período de
desemprego crescente e incerteza econômica, mas, como
discutiremos no decorrer desse texto, o declínio na mo-
bilização sindical também resultou do desmonte da base
trabalhadora da CUT, como conseqüência da estabilização
e da subseqüente neoliberalização da economia brasileira.

A mudança no perfil das reivindicações


das greves

Considerando os anos entre 1994 e 1999 – ou, o


período de estabilização da economia –, houve um declínio
na atividade grevista devido às mudanças nas condições da
economia evidenciadas na mudança no perfil das reivindi-
cações grevistas em relação às três fases.
Ações de greve na primeira Fase (1990-1993) de-
fendiam reivindicações predominantemente proativas em
sua natureza, focando principalmente a questão dos salá-
rios. Após a estabilização econômica, em 1994, as reivindi-
cações grevistas sofreram importantes mudanças, tornan-
do as fases 2 e 3 claramente diferentes. Conforme mostra
o Gráfico 2 , entre 1994 e 1997 (Fase 2), as reivindicações
grevistas proativas iniciam um declínio gradual, enquanto
reivindicações defensivas crescem significativamente.
Ao lado de um declínio das ações grevistas, a mu-
dança de reivindicações proativas para defensivas marca
a Fase 2 como um período de transição de uma fase em
que a hiper-inflação dominou as reivindicações trabalhis-

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 185


tas, até um período de estabilidade econômica, em que os
empregadores, ao se ajustarem aos efeitos da economia
de baixa inflação, se voltaram contra os trabalhadores para
baixar os custos e manter as margens de lucro. Nessas con-
dições, trabalhadores em diferentes situações se reuniram
para resistir à diminuição de seus benefícios trabalhistas
promovida pelos empregadores.

Gráfico 2: Percentual de greves com demandas proativas e


defensivas, Brasil, 1994-1999

Fonte: Adaptado de dados em “5 anos do Plano Real”, Boletim


DIEESE, Separata Julho 1999, Grafico 31, p. 11.

Isso é exemplificado ao analisar reivindicações es-


pecíficas feitas por ações grevistas nesta época. Na Fase 2,
a pressão por salário decresceu em quase 40% entre 1994
e 1996, enquanto as reivindicações para que os emprega-
dores se comprometessem com a contratação cresceram
de 18% para 44%. Durante esse período, a pressão para a
segurança no emprego permaneceu no nível de 10%.
É na Fase 3 que se encontra a maior mudança no
perfil das reivindicações grevistas. Começando em 1997,
na medida em que as ações grevistas e a participação
dos trabalhadores diminuíam, as reivindicações grevistas
186 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)
refletem as novas condições sócio-econômicas das
políticas governamentais neoliberais. A partir de 1997,
as reivindicações defensivas passaram a dominar
amplamente as reivindicações dos trabalhadores,
enquanto as reivindicações proativas foram se tornando
progressivamente menos importantes.
Um olhar mais atento às reivindicações grevistas
específicas desta fase demonstra que pressões por salários
mais altos desempenham papel menos importante, caindo
para 25% em 1998, e 28% em 1999. Por outro lado, rei-
vindicações reativas como compromisso de contratação e
segurança no emprego se tornam predominantes entre os
temas levantados nas greves.
As pressões por compromisso de contratação
constituem 50% das reivindicações e o mais interessante
é o fato de que a segurança no emprego tem um aumento
importante de 15%, em 1997, para quase 30%, em 1999.
A estabilização não só estabeleceu a baixa inflação, mas
também criou as condições para mudanças fundamentais
nas estruturas básicas da economia.
Por que, então, nos anos 1990, com o movimen-
to sindicalista altamente organizado sob o comando da
CUT, ele foi menos eficaz na sua capacidade de mobilizar
os trabalhadores contra os efeitos das políticas neolibe-
rais e da globalização? Enquanto o Plano Real de 1994
colocava a hiperinflação sob controle, a economia bra-
sileira já mostrava sinais de grandes mudanças em suas
estruturas. Certamente, o impacto de uma economia em
recessão, como nos anos 1997-1999, poderia explicar o
grande declínio na atividade grevista; entretanto, esse
declínio começou no princípio da década, após os muito
bem sucedidos anos de 1980, no que se refere à militân-
cia trabalhista e a organização dos trabalhadores.

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 187


Nesse texto, argumentamos que as mudanças
na economia e nas estruturas sociais que começaram em
1990 contribuíram significativamente para o enfraqueci-
mento da base de filiados da CUT e provocaram sérios di-
lemas entre líderes sindicalistas, ao formularem posturas
sistemáticas do sindicato em relação aos efeitos negativos
da estabilização e do neoliberalismo.
Olhando a trajetória das atividades grevistas dos
anos 1980, os dados sobre as greves mostram que algumas
poucas categorias profissionais surgem como os pilares da
militância trabalhista: são os metalúrgicos, especialmente
da indústria automobilística e do aço, os bancários e os fun-
cionários públicos, professores e trabalhadores da saúde.
Ao examinar a evolução do emprego entre 1989
e 1999 para essas categorias ocupacionais, nota-se que
somente os funcionários públicos não sofreram mudan-
ças significativas no emprego ao longo da década. Tanto
os metalúrgicos quanto os empregados das montadoras
de automóveis, assim como os bancários, viram as opor-
tunidades de emprego cair significativamente, em espe-
cial quando comparadas às taxas de emprego industrial e
no setor de serviços.

Crise nas bases sociais da CUT: o caso dos


metalúrgicos

Ao longo da década de 1980, os metalúrgicos do


ABC, região metropolitana de São Paulo, demonstraram
sua determinação e disposição para a luta, ao participa-
rem de grandes mobilizações e fornecerem à CUT a força

188 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


necessária para consolidar e liderar o movimento sindical
nacional. Ainda em 1990, as oportunidades de emprego no
setor declinaram. Na Fase 1, o emprego caiu menos severa-
mente, de 95% para 78%. Após 1994, contudo, o trabalho
no setor continuou a declinar ao longo da Fase 2, indicado
no Gráfico 1 sobre as greves na época.
Entre 1997 e 1999, o emprego para trabalhadores
do setor automobilístico tinha alcançado um nível histórico
de aproximadamente 58%, tendo perdido desde 1990 um
pouco menos da metade dos cargos no setor. Sem dúvidas,
a perda de empregos no setor pode ser atribuída a fato-
res relacionados às mudanças nas bases tecnológicas de
produção e aos efeitos da recessão imposta pelo governo
Cardoso, a fim de garantir a estabilidade monetária e sua
re-eleição. Mas os sindicatos dos metalúrgicos enfrenta-
ram outros desafios, nos quais tiveram pouco sucesso.
Com a estabilização da inflação no Plano Real, os
investimentos estrangeiros cresceram mais uma vez, mui-
tas manufaturas automotivas e metalúrgicas procuraram
lugares fora das regiões metropolitanas industriais tradi-
cionais de São Paulo, Belo Horizonte e Rio de Janeiro, para
construir novas fábricas e unidades de montagem em ou-
tras regiões do país.
Conseqüentemente, as cidades que tinham sido
o berço e a cidadela do novo sindicalismo, neste momento
enfrentaram desemprego crescente, não somente devido às
mudanças tecnológicas e à recessão, mas também – um ou-
tro fator tão importante quanto esse –, devido à transferên-
cia do investimento industrial para outras regiões do país.
Como as autoridades das cidades e Estados me-
nos industrializados usaram incentivos fiscais diretos para
atrair os novos investimentos industriais, os antigos cen-

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 189


tros industriais sofreram um processo gradual de desindus-
trialização; foi o caso dos centros automotivos e metalúrgi-
cos de São Paulo e Belo Horizonte.
Num estudo desse período, que tomou em conta
a evolução do emprego industrial entre grandes e peque-
nas cidades, os autores assinalaram a migração no número
de empregos, que foram das cidades maiores para as me-
nores, mas também uma mudança no volume de salários,
que acompanhou essas mudanças. Em 1979, grandes ci-
dades respondiam por 70% dos empregos. Em 1998, pe-
quenas cidades conseguiram atrair 52.6% dos empregos e
grandes cidades ficaram com apenas 47.4%.
Entre 1991 e 1998, a cidade de São Paulo perdeu
474 indústrias metalúrgicas, que se mudaram para o in-
terior do Estado ou para algum outro Estado. Isso repre-
sentou uma perda de mais de 25.000 empregos somente
nesse setor. Enquanto em 1993 as indústrias metalúrgicas
empregaram 32.6% da força de trabalho na cidade, em
1996, essa força estava reduzida a somente 21%. E os salá-
rios médios estavam em torno de R$ 1.200,00, enquanto,
no interior, os salários médios nas indústrias metalúrgicas
estavam em torno de R$ 840,00.
Esse declínio do emprego industrial nas grandes
cidades reflete-se também nessa mudança dos salários das
capitais para o interior. Em 1970, grandes cidades respon-
deram por 82.9% dos salários pagos no setor industrial, e
as pequenas cidades por somente 17.1%. Em 1998, houve
uma mudança notável nas grandes cidades, cujos salários
caíram para 64.3% e as pequenas cidades aumentaram sua
parte para 35.7%, o que significou dobrar sua fatia nos sa-
lários industriais tomando em conta os últimos 30 anos.
A recolocação das indústrias pré-existentes e a
instalação de novas indústrias em outras regiões distan-

190 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


tes das áreas industriais tradicionais não somente criou
problemas imediatos de desemprego e deslocamento
de seus trabalhadores para os sindicatos locais, como
também, em nível nacional, levou a CUT a enfrentar in-
teresses sindicais competitivos. Por um lado, os sindica-
tos principais das antigas regiões industriais enfrentaram
evasão de investimentos, enquanto que, por outro lado,
esses novos parques industriais, com seus sindicatos mais
fracos, menos experimentados e com suas populações
trabalhadoras, constituíam lobbies fortes contra a conti-
nuidade da concentração industrial no triângulo São Pau-
lo-Belo Horizonte-Rio de Janeiro.
O fato de muitas populações locais, governos mu-
nicipais e estaduais mobilizarem seus recursos por meio de
incentivos fiscais, isenção de taxas, empréstimos públicos
com juros baixos etc., a fim de atrair indústrias para longe
dos centros industriais tradicionais, colocou a CUT numa po-
sição delicada entre sua base sindicalista tradicional e os sin-
dicatos dessas cidades recentemente industrializadas, fora
das áreas metropolitanas. Esse dilema fez com que a CUT
fosse menos capaz de formular uma posição coerente e con-
vincente com respeito àquela forma de expansão industrial.
A saída de capital industrial das grandes áreas me-
tropolitanas comprometeu, na época, a capacidade dos sin-
dicatos dos metalúrgicos de responder às múltiplas forças
que a estabilização e o neoliberalismo trouxeram para seus
membros. Ao enfrentar um mercado de trabalho que se
encolhia e a desindustrialização em áreas tradicionalmen-
te fortes, os sindicatos dos metalúrgicos se confrontaram
com outro desafio: a privatização da indústria brasileira do
aço, na medida em que os sindicatos dos trabalhadores
siderúrgicos criaram outro braço militante do movimento
sindical em relação aos anos 1980.

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 191


Começando com a mal sucedida presidência de
Fernando Collor de Mello, passando por Itamar Franco e
continuando com a presidência mais determinada de Car-
doso, as elites políticas dominantes assumiram o compro-
misso de privatizar indústrias e bancos sob o controle do
governo. Em termos de militância trabalhadora, os setores
mais relevantes nessas condições eram os trabalhadores
da indústria do aço e os bancos estatais.
Os debates dentro da CUT sobre a privatização
trouxeram à baila o dilema político dos sindicalistas pro-
gressistas em relação à situação das empresas estatais:
por um lado, essas empresas eram economicamente defi-
citárias devido ao excessivo apadrinhamento político que
resultou em má administração, práticas de empreguismo
incentivadas por interesses político-partidários e falta de
competitividade no mercado; por outro lado, elas repre-
sentavam um setor estratégico para a economia nacional.
Ao longo dos debates, ficou claro que a liderança
da CUT e seus apoiadores políticos, embora contrários às
privatizações, estavam despreparados para oferecer alter-
nativas viáveis para as distorções que afligiam as empresas
estatais. Estava claro, também, que os líderes sindicais lo-
cais e a maioria dos trabalhadores do aço eram mais favo-
ráveis à privatização, vendo-a como a única forma de cor-
rigir essas distorções e eliminar o apadrinhamento político
em contratações e na politica das empresas. A cada leilão
da indústria do aço, líderes sindicalistas locais e seus tra-
balhadores confrontavam a CUT e os estudantes nas ruas
protestavam a favor ou contra a privatização. A cada leilão,
os sindicalistas locais votavam a favor do desligamento da
CUT, embora permanecessem sindicatos independentes,
em vez de se juntarem à confederação do trabalho mais

192 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


conservadora, a Força Sindical. Entre 1991 e 1997, dez in-
dústrias do aço foram privatizadas, trazendo quase 6 bi-
lhões de dólares para o tesouro nacional.
A perda sofrida pela CUT da maioria dos empre-
gados do aço, somada com os problemas crescentes dos
sindicatos dos metalúrgicos e a maioria da indústria mais
antiga, significou que um tradicional reduto da militância
trabalhadora tinha sido seriamente atingido.

Crise nas bases sociais da CUT: o caso dos


bancários

Assim como os metalúrgicos, os bancários tam-


bém enfrentaram mudanças que debilitaram a capaci-
dade da liderança sindical mobilizar seus trabalhadores.
Em primeiro lugar, os bancários enfrentaram desemprego
maciço após a estabilização econômica. As pressões so-
bre o sistema bancário, como resultado da hiperinflação,
tornou necessário aos bancos fornecer serviços a seus
clientes em uma escala maciça, assim como garantir que
as transações financeiras fossem conduzidas tão rapida-
mente quanto possível, dado que as taxas de desvalori-
zação da moeda eram muito altas por razão da inflação.
Assim, todos os bancos, até o Plano Real em 1994, manti-
veram altos contingentes de funcionários nas funções de
caixa de banco e processamento, para garantir transações
rápidas visando enfrentar a desvalorização monetária de-
corrente da inflação muito alta.
Entre 1990 e 1994 (Fase 1), o emprego no setor ban-
cário já mostrava um forte declínio de 33%, entre 1990 e 1994.

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 193


Certamente, o volume de empregos perdidos nes-
se período deve-se à crescente informatização do sistema
bancário. Em 1994, os bancos já tinham estabelecido sua
infraestrutura para uma expansão computadorizada. No-
tou-se uma crescente tendência, tanto com o aumento
dos caixas eletrônicos, instalados durante a Fase 1, que
chegaram a dobrar, quanto com o aumento dramático de
transações automáticas no período. Na medida em que os
bancos automatizaram seus sistemas, o emprego de traba-
lhadores foi decrescendo. Após 1994, sob uma economia
estabilizada, a tendência à automação dos bancos cresceu.
As transações passaram a ser feitas, crescentemente, por
meios automatizados e as instituições financeiras foram
incorporando uma outra facilidade, além do sistema das
caixas eletrônicos: os serviços bancários “online”.
Isso se reflete nas greves da Fase 2 e da Fase 3,
com o claro declínio do emprego bancário, que alcança,
em 1999, quase 50% do que era em 1990. Não é necessá-
rio dizer que a demissão em massa de bancários ao longo
da década enfraqueceu severamente a capacidade dos sin-
dicatos de mobilizar os trabalhadores, visto que suas bases
se tornaram menos predispostas a arriscar seus empregos
em paralisações grevistas.
Além disso, os sindicatos foram lentos em perce-
ber que a informatização do sistema bancário durante os
anos de hiperinflação tinha sido um prelúdio da automa-
ção posterior, uma vez que a estabilidade econômica tinha
ocorrido. No momento em que esses efeitos da estabili-
zação foram reconhecidos pelas lideranças sindicais como
um perigo claro, os bancos já tinham se estruturado dentro
de um dos sistemas bancários mais sofisticados do mundo.
Além dos choques decorrentes das mudanças tec-
nológicas no sistema bancário, os sindicatos se confronta-

194 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


ram também com os dilemas da privatização dos bancos
estatais. Como os empregados dos bancos estatais haviam
sido uma coluna dorsal da militância trabalhadora, os sin-
dicatos dos bancários foram muito pressionados para man-
ter sua influência sobre os empregados, na medida em que
os bancos públicos foram sendo vendidos para empresas
privadas e que as relações de trabalho tradicionais nesses
bancos foram se modificando drasticamente.
Ao longo da década, mais de 90% dos bancos es-
tatais foram privatizados e, conseqüentemente, isso cons-
tituiu um enorme golpe na capacidade de mobilização dos
sindicatos. Diferente dos metalúrgicos, os bancários das ins-
tituições estatais, em conjunto com seus líderes sindicais,
resistiram fortemente à privatização, mas sem sucesso.
Outro fator que teve impacto na capacidade de
mobilização dos sindicatos dos bancários foi uma série de
crises financeiras que atingiu um número grande de bancos
nacionais após o fim da hiperinflação. O fechamento des-
sas importantes instituições financeiras, juntamente com
a entrada no mercado brasileiro de bancos estrangeiros,
fortaleceu a tendência de grande concentração do sistema
bancário, na medida em que os novos bancos estrangeiros
compraram tanto bancos estatais quanto particulares. A
concentração da indústria tinha fortalecido os banqueiros
em relação à mais vulnerável base trabalhadora, deixando
os líderes sindicais desorganizados e sem objetivos claros.
Em princípio foram essas mudanças que se refle-
tiram no pronunciado declínio, ao longo da década, das
oportunidades de emprego no setor bancário. Confronta-
dos com uma multiplicidade de temas resultantes da gran-
de reestruturação do setor bancário, os sindicatos traba-
lhistas foram incapazes de formular estratégias políticas
coerentes para defender os interesses de seus trabalhado-

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 195


res, tanto em relação à segurança no emprego, quanto em
relação aos efeitos das inovações tecnológicas. Como re-
sultado, os líderes dos bancários, embora continuem a ter
um grande papel na política sindical nacional e regional,
são menos bem sucedidos na mobilização de sua categoria
e têm regularmente enfrentado o fracasso nas mãos das
autoridades governamentais e dos empregadores.

Crise nas bases sociais da CUT: o caso dos


funcionários públicos

Dos grupos profissionais pertencentes à CUT que


demonstraram maior militância na propensão para a gre-
ve, os funcionários públicos se sobressaem, como aqueles
que tiveram, nos anos 1980, os mais altos índices de greve
no país. Crescendo em organização e militância ao longo
da década, em 1988 os funcionários públicos foram res-
ponsáveis por quase a metade das greves. Em 1989, em
termos de horas perdidas por homem, trabalhadores mo-
bilizados e freqüência de greve, os funcionários públicos
ultrapassaram o setor privado em atividades de greve em
quase 15 vezes. (Sandoval, 1993, pp. 164-169)
Na esfera sindical, os funcionários públicos adqui-
riram uma posição central dentro da CUT, ocupando cargos
na diretoria regional e nacional, freqüentemente despro-
porcionais a seus números em força de trabalho ou mesmo
de base sindical, tomando em conta os afiliados aos sindi-
catos da CUT. Em 1995, dos 25 membros do comitê nacio-
nal da CUT, 18 eram representantes dos sindicatos do setor
público e somente sete do setor privado. No mesmo ano,

196 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


em vários comitês estaduais, representantes sindicais do
setor público garantiram uma proporção importante dos
cargos. (Nogueira, 1999, pp. 59-66) Dentro do sindicalismo
dos funcionários públicos, algumas categorias profissionais
se sobressaíram em sua militância e influência nas políticas
sindicais: trabalhadores da educação, da saúde e empre-
gados do governo nas empresas públicas, especialmente
bancários, metalúrgicos e trabalhadores do petróleo.
Ao analisar os efeitos das mudanças dos anos
1990, nota-se que os trabalhadores do serviço público não
estavam imunes aos efeitos econômicos do período poste-
rior ao Plano Real.
Primeiro, um segmento dos sindicatos dos funcio-
nários públicos, bancários e trabalhadores metalúrgicos,
foi severamente prejudicado em sua capacidade de exer-
cer pressão coletiva, por razão do impacto da privatização
dos bancos públicos e das empresas estatais do aço.
Segundo, os funcionários públicos foram muito
atingidos pela crise fiscal do Estado. Na medida em que a
estabilização trouxe as conseqüências do déficit nos gastos
públicos, as autoridades foram forçadas a limitar gastos,
especialmente em termos de aumentos de salários para
seus empregados. Desde 1994, os governos federal, esta-
dual ou municipal não tiveram condições de dar aumentos
salariais. Embora isso tenha causado considerável descon-
tentamento entre os funcionários públicos, demonstra-
ções freqüentes da crise fiscal têm levado os funcionários
públicos a uma menor predisposição de fazer reivindica-
ções proativas. Numa total inversão às altas taxas de gre-
ve dos anos 1980, nessa década os funcionários públicos
se mantiveram fora dos movimentos grevistas, predomi-
nando entre a mobilização coletiva as greves de protesto
contra o fracasso dos governos estaduais ou municipais em

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 197


cumprir suas obrigações mensais de pagamento de folha
ou de protesto contra a deterioração crítica das condições
de trabalho, especialmente nas áreas de educação e saú-
de. Somente alguns poucos setores privilegiados, como o
sindicato dos metroviários de São Paulo, realizaram lutas
por aumentos salariais.
Um terceiro fator que contribuiu para a desmo-
bilização dos funcionários públicos foi o efeito da des-
centralização de alguns serviços públicos básicos, como
saúde pública, educação básica e serviço social. Entre os
principais pontos da agenda política do presidente Car-
doso estava a descentralização dos governos federal e
estaduais para os governos municipais dessas três áreas
de serviço. Na medida em que a política de municipaliza-
ção foi implementada, obrigando as autoridades locais a
assumirem mais a administração direta desses serviços,
os sindicatos enfrentaram o difícil desafio de se reestru-
turar para agir na cidade local, embora eles estivessem
organizados para agir nos níveis estaduais ou nacionais.
Os sindicatos da educação, da saúde e do serviço social
não estavam preparados para administrar os efeitos da
mudança do local de tomada de decisões, que se transfe-
riu das secretarias estaduais ou ministério federal para as
autoridades municipais. Tanto a lógica de organização e
recrutamento quanto as estratégias de mobilização eram
claramente diferentes; disso dependia o fato da luta ser
contra uma autoridade estadual, federal, ou contra uma
multiplicidade de autoridades municipais. A dispersão da
tomada de decisão governamental decorrente da descen-
tralização significou, para os sindicatos e suas lideranças,
a imposição do desafio de uma reestruturação efetiva de
seus sindicatos para se adaptarem à nova geografia da
distribuição de poder na administração pública.

198 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


Historicamente, os sindicatos dos funcionários pú-
blicos tiveram menos sucesso na organização e na mobili-
zação dos trabalhadores municipais, em comparação aos
empregados estaduais e federais. Nos anos 1980, os funcio-
nários municipais estavam menos propensos às greves, se
considerarmos o menor número de ações e os níveis mais
baixos de participação desses trabalhadores e da duração
do movimento, em comparação com as greves dos funcio-
nários estaduais ou federais. (Sandoval, 1993, pp. 167-169)
Finalmente, os sindicatos de funcionários públicos
tiveram que enfrentar uma crescente adversidade na opi-
nião pública, incluindo os trabalhadores do setor privado,
que consideravam os funcionários públicos uma categoria
privilegiada de trabalhadores. Uma pesquisa de 1995 em
São Paulo indicou que 66.4% dos entrevistados sentiam
que eram total ou parcialmente atingidos pelas greves do
setor público. Ao mesmo tempo, 84.3% achavam que os
funcionários públicos eram trabalhadores privilegiados,
embora 63.7% dos entrevistados sentissem que o objetivo
real das greves dos funcionários públicos tinha motivação
política. No entanto, constatou-se que 79.3% dos entrevis-
tados acreditavam que os funcionários públicos dos servi-
ços essenciais tinham o direito de fazer greve por motivos
econômicos, enquanto 56.3% eram contrários às greves
políticas nesses setores.
Assim, confrontados com a falta de apoio entre o
público em geral, incluindo os trabalhadores da iniciativa
privada, os vários tipos de protestos que os sindicatos de
funcionários públicos organizaram nesse período foram con-
duzidos sem qualquer apoio significativo da base trabalha-
dora do setor privado. Bem ao contrario; embora os sindica-
tos dos serviços públicos ocupem um número significativo
de cargos nos altos escalões da CUT, eles foram incapazes
de mobilizar significativo apoio coletivo entre sindicatos de
trabalhadores do setor privado.
No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 199
Mudanças na conscientização política dos
trabalhadores

Sob a luz dos efeitos combinados das mudanças


econômicas causadas pelo Plano Real, a globalização e os
ataques orquestrados pelo governo sobre as conquistas da
classe trabalhadora, uma das conseqüências foi solapar os
sentimentos de conscientização da classe trabalhadora,
tão laboriosamente construídos nos anos 1980.
As mudanças que ocorreram na consciência polí-
tica dos trabalhadores foram fundamentais para compre-
ender os aspectos sócio-psicológicos da desmobilização do
trabalhador nos anos 1990. A fim de examinar essas mu-
danças na conscientização dos trabalhadores resultantes
da neoliberalização da sociedade brasileira, escolhemos
trabalhar com o Modelo de Consciência Política, ilustrado
na Figura 1. Esse Modelo de Consciência Política represen-
ta as várias dimensões sócio-psicológicas, que constituem a
consciência política do indivíduo acerca da sociedade e de
si mesmo como um membro da sociedade, e conseqüente-
mente, representa uma aproximação a sua disposição para
a agir. Por consciência política entendemos um conjunto
de dimensões sócio-psicológicas inter-relacionadas de sig-
nificados e informações, que permite aos indivíduos tomar
decisões para a melhor agir dentro de contextos políticos e
situações específicas dadas.

200 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


Figura 1: Modelo de Consciência Política

Fonte: Salvador A. M. Sandoval. “The Crisis of Brazilian


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Conforme ilustrado na Figura 1, nosso Modelo


de Consciência Política é um construto multidimensio-
nal que consiste de sete dimensões analiticamente dis-
tintas, as quais, juntas formam o conjunto de represen-
tações que configuram a predisposição de envolvimento
de uma pessoa em sua sociedade como um ator político.
As sete dimensões são: identidade coletiva; crenças e
expectativas societárias; sentimentos de interesses co-
letivos e seus adversários; eficácia política; sentimentos
de injustiça; vontade para agir coletivamente; propósi-
tos persuasivos de ação.
Um exame do conteúdo dessas dimensões ofere-
ce insights sobre como as mudanças nas estruturas sociais
e nas relações sociais afetam as predisposições das pesso-
as para agir em seus próprios interesses.

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 201


Identidade coletiva

A primeira dimensão consiste nos sentimentos


de uma pessoa de pertinência ou identificação com um ou
mais grupos sociais e categorias sociais. Decidimos cha-
mar essa dimensão de sentimento de identidade coletiva.
Vários autores têm salientado a importância dos processos
de identificação com grupo como uma sustentação ao
incentivo de participar politicamente. (Hogg e Abrams,
1990; Jenkins, 1996; Melucci, 1996; Tajfel, 1989; Gamson
1992) Desde os anos 1950, a pesquisa em Psicologia
Política estabeleceu a importância da identificação
partidária para explicar o comportamento de votar e, no
caso do Brasil, a extensa pesquisa conduzida por Leôncio
Camino mostrou que, mesmo em sistemas partidários
menos estáveis como no Brasil, a identificação partidária
continua a desempenhar um papel importante na
determinação do comportamento eleitoral. (Camino, 1995,
1998; Gouveia, 1997) Na área da teoria do movimento
social, os estudiosos têm gradualmente compreendido
que os processos de identificação grupal também
desempenham um papel importante na determinação
da participação do movimento social. (Stryker, Owens
e White, 2000; Hardin, 1995) Enquanto sociólogos que
estudam os movimentos sociais têm reconhecido uma
necessidade de algum componente sócio-psicológico na
interpretação da participação da ação coletiva, muitos
continuam a trabalhar com modelos rudimentares de
consciência política, perdendo a riqueza analítica que
a pesquisa sócio-psicológica revelou. Prevalecem na
literatura dos movimentos sociais dos Estados Unidos e da
Europa, com raríssimas exceções, o uso convencional da
noção de identidade como um termo “para tudo”, desde

202 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


sentimentos de pertinência até persuasões ideológicas no
nível individual e o uso indiscriminado da identidade como
um atributo coletivo de um movimento social.
Assim, no uso indiscriminado do termo identida-
de por esses estudiosos, as especificidades do sentimento
de pertinência perdem seu poder analítico, na medida em
que ele se torna virtualmente sinônimo tanto da represen-
tação coletiva que os participantes fazem do movimento,
quanto da imagem pública que os líderes do movimento
deliberadamente forjam com propósitos de visibilidade.
Conseqüentemente, esse mau uso do termo identidade
tem causado uma perda, não somente da contribuição teó-
rica e analítica do conceito, mas também tem servido para
esconder as diferenças e a importância das inter-relações
entre as identificações dos indivíduos com atores coletivos
na dinâmica do espaço político, seja dos movimentos so-
ciais ou outros contextos de participação política, por meio
das representações coletivas que os grupos constroem so-
bre movimentos e as imagens públicas de um movimento
social feito por seus líderes.
Por essa razão, escolhemos compreender a iden-
tidade coletiva no sentido mais restrito da dimensão da
consciência política, que se refere à forma como os indi-
víduos estabelecem uma identificação psicológica de inte-
resses e sentimentos de solidariedade e pertinência para
com grupos específicos que constituem os atores coletivos
no cenário político.

Crenças, valores e expectativas societais

Outra dimensão em nosso Modelo de Consciên-


cia Política consiste das crenças, valores e expectativas que

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 203


uma pessoa desenvolve com respeito à sua sociedade e
que expressam mais explicitamente as noções de ideologia
política na visão de mundo do indivíduo. Essas avaliações
societárias podem ser compreendidas como representa-
ções sociais sobre a natureza, a estrutura, as práticas e as
finalidades das relações sociais que constituem a socieda-
de na qual se vive. Elas variam desde os significados que
as pessoas dão para a estrutura social e as instituições, até
sua inserção nelas, em termos de relações políticas entre as
categorias sociais e as intenções das pessoas que incluem
aquelas categorias sociais. Embora essas representações
sobre a sociedade sejam concebidas individualmente, elas
são o produto das interações e experiências que os indiví-
duos têm com os vários grupos, instituições e contextos ao
“viver numa sociedade”. Uma grande conseqüência de vi-
ver em uma sociedade é o desenvolvimento de sentimen-
tos de pertinência e não pertinência, inclusão e exclusão
das categorias sociais e dos grupos que contribuem para a
estruturação da vida social.

Interesses coletivos e adversários antagônicos

Uma terceira dimensão da consciência política


consiste dos sentimentos individuais, referindo-se a como
os interesses simbólicos e materiais de uma pessoa são vis-
tos como opostos aos interesses de outros grupos, e em
que medida os interesses antagônicos levam à concepção
da existência de adversários coletivos na sociedade. Uma
chave para a consciência política que apóia a ação coletiva
é o sentimento de uma relação adversária entre si mesmo
e outro grupo ou categoria social. Sem a noção de um ad-

204 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


versário visível é impossível mobilizar indivíduos em ações
coletivas e coordenadas contra um objetivo específico, seja
ele um indivíduo, um grupo ou uma instituição.

Eficácia política

Bastante relacionada a esse elemento adversário


é a quarta dimensão da consciência política, que é o sen-
timento do indivíduo de eficácia política. Por eficácia polí-
tica entendemos os sentimentos de uma pessoa sobre sua
capacidade de intervir numa situação política. A teoria da
atribuição (Hewstone,1989) nos ensina que as pessoas po-
dem localizar sua interpretação de causalidade e as causas
de coisas que acontecem com elas em um de três locais:
eventos podem ser o resultado de forças transcendentais
como tendências históricas, desastres naturais, ou mesmo
intervenção divina. Para indivíduos que localizam causali-
dade social nesses tipos de forças, o sentimento de eficá-
cia é geralmente baixo, na medida em que eles acreditam
que há pouco a ganhar com suas ações, em face de forças
naturais transcendentes. Com freqüência esses tipos de in-
terpretação de causalidade levam às reações conformistas
e submissas às situações de conflito social.
Outro locus de causalidade social pode ser o pró-
prio indivíduo. Nesse caso, a pessoa acredita que a cau-
salidade social é o resultado da própria capacidade e de-
terminação de lidar com uma situação específica. Assim,
as pessoas procuram soluções individuais para situações
sociais. Nos casos de conflito social, localizando causalida-
de nas ações ou capacidades do indivíduo, pessoas procu-
ram abordagens isoladas para soluções ou recursos para
autopunição pela perda das habilidades ou da visão para
lidar com o conflito social.
No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 205
Uma terceira interpretação da causalidade social
pode ser a que localiza forças causais nas ações de outros
indivíduos e/ou grupos. Essa crença de que situações de so-
frimento são o resultado das ações de certos indivíduos e/
ou grupos permite às pessoas acreditarem, também, que
suas ações, se tomadas individual ou coletivamente, terão
um efeito na mudança de sua situação. Isso ocorre na medi-
da em que essa forma de colocar a causalidade permite às
pessoas sentirem que podem realmente realizar mudanças
com ações suas contrárias aos responsáveis pela situação de
sofrimento. É essa terceira interpretação de causalidade que
contribui para que indivíduos se sintam capazes de se torna-
rem atores determinados a mudar suas vidas.

Sentimentos de justiça e injustiça

Uma quinta dimensão de nosso Modelo de Cons-


ciência Política são os sentimentos de justiça e injustiça
da pessoa. Estamos nos referindo à maneira que um indi-
víduo vê qualquer arranjo social em termos do que esse
arranjo representa no nível de reciprocidade social entre
os atores, que o indivíduo consideraria como justo. Jus-
tiça social é a expressão do sentimento de reciprocidade
entre obrigações e recompensas. (Moore, 1978) Sempre
que os indivíduos acreditam que o equilíbrio nas relações
recíprocas se virou contra eles, compreendem essa rup-
tura na reciprocidade em termos de injustiça. O que cons-
titui uma relação equilibrada de reciprocidade e como os
indivíduos tornam-se conscientizados de que a reciproci-
dade pode ter sido violada, são, sem dúvidas, processos
sócio-históricos complexos. Certamente, grande parte
dos critérios para medir as noções de reciprocidade e,
conseqüentemente, os sentimentos de injustiça, é histó-
rica e contextualmente determinada. Entretanto, esses

206 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


sentimentos de que a reciprocidade, de alguma maneira,
deixou de existir ou foi violada, e que isso constitui uma
situação injusta, estão presente no descontentamento
coletivo e nas manifestações subseqüentes de protesto.
Atualmente, é lugar comum observar que todos os mo-
vimentos sociais são prova contra um estado injusto de
dada situação. Conseqüentemente, ao olhar para o que
as pessoas dizem sobre sua participação nos movimentos
sociais, sempre se encontram embutidas em suas repre-
sentações, referências às noções de injustiça como uma
maneira de legitimar suas queixas e culpar os adversários.

Vontade de agir coletivamente

A sexta dimensão de consciência política é a von-


tade de agir coletivamente, que se refere a uma dimensão
mais instrumental da predisposição do individuo para assu-
mir um conjunto de ações coletivas como uma maneira de
procurar reparar as injustiças cometidas contra ele. (Klan-
dermans,1992) Essa dimensão focaliza os três aspectos de
situações que condicionam a participação coletiva: refere-se
aos custos e benefícios atribuídos às lealdades e laços inter-
pessoais que são afetados pela participação ou não partici-
pação no movimento; um segundo refere-se aos ganhos ou
perdas de benefícios materiais percebidos como resultado
de envolvimento no movimento social; o terceiro refere-se
aos riscos físicos percebidos no engajamento em ações co-
letivas, dadas a situação especifica; por fim, a avaliação do
individuo da capacidade da organização do movimento para
implementar as ações coletivas propostas.
Enquanto esta dimensão, assim como a dimensão
seguinte, é uma noção bastante modificada da teoria da
escolha racional e da contribuição desses teóricos aos de-
bates sobre os fatores determinantes da participação co-

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 207


letiva (Olson,1965), é inegável que pessoas, ao decidirem,
individual ou coletivamente, participar de ações coletivas,
fazem escolhas informadas e significativas que influenciam
sua participação e seu compromisso nessa ação no movi-
mento social. Compreendemos que essas escolhas são in-
formadas e se tornam significativas para os indivíduos por
meio de: seus sentimentos de eficácia política, suas per-
cepções de interesses próprios e os adversários que eles
enfrentam e, finalmente, seus sentimentos de justiça/in-
justiça. Juntas, essas dimensões contribuem para a tomada
de decisão do indivíduo, que estamos denominando aqui
escolhas informadas e significativas, na avaliação da orga-
nização do movimento social, de seus objetivos e estraté-
gias, e daquilo que é percebido como forma relevante de
ação coletiva dentro de certos limites situacionais.

Ação e objetivos do movimento social

Essa ultima dimensão refere-se ao grau em que


os participantes percebem uma correspondência entre os
objetivos do movimento social, suas estratégias de ação e
seus sentimentos de injustiça, seus interesses e sentimentos
de eficácia política. Colocada de maneira simples, essa di-
mensão focaliza a medida em que os participantes sentem
que os objetivos e propostas do movimento social e sua li-
derança combinam com seus próprios interesses materiais
e simbólicos, dirigem sua busca por justiça contra o adversá-
rio percebido e constatam que as ações coletivas propostas
estão dentro do objetivo de seus próprios sentimentos de
eficácia política num dado momento. A complexa tarefa de
combinar os objetivos e as estratégias do movimento com
as aspirações e capacidades percebidas dos seguidores do
movimento tem colocado, freqüentemente, sérios desafios,
tanto para os líderes quanto para as bases, no caso do movi-

208 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


mento sindical. Essa dimensão, em conjunto com as outras
dimensões da consciência política, afeta as percepções das
características da organização do movimento para construir
uma predisposição psicopolítica para agir coletivamente.
Olhando para o caso do movimento sindical da
década de 1990, marcado pelos processos de grandes
mudanças estruturais na sociedade brasileira, resultado
de políticas neoliberais promovidas tanto pelo governo
quanto pelo setor privado, o impacto no movimento sin-
dical foi evidente, conforme indicado na discussão acima
realizada sobre os fatores de desmobilização dos traba-
lhadores. De uma perspectiva político-psicológica, o neo-
liberalismo produziu uma mudança significativa na cons-
ciência política da classe trabalhadora. Usando o Mode-
lo de Consciência Política apresentado acima, podemos
analisar quão profundo foi esse impacto sobre a visão dos
trabalhadores, assim como ilustrado na Figura 2 abaixo.

Figura 2: Conscientização política induzida pelos processos de


neoliberalização e globalização

Após os anos 1980, quando o movimento sindical


foi bem sucedido ao forjar uma forte identidade coletiva da

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 209


classe trabalhadora, refletida em crescentes ações grevistas
no final dos anos 1990, constata-se que a identidade cole-
tiva dos trabalhadores foi fragmentada de várias maneiras.
Primeiro, mudanças no processo de produção permitiram
que os empregadores e o governo induzissem uma diferen-
ciação na identidade, ao enfatizar as diferenças e vantagens
entre os trabalhadores em termos de suas qualificações de
habilidade e educação. Além disso, enquanto novos inves-
timentos transitavam dos centros industriais de São Paulo/
ABC, Belo Horizonte e Rio de Janeiro para novos parques
industriais, a diferenciação de identidade também ocorreu
dentro das próprias categorias ocupacionais, quando tra-
balhadores de uma região se opuseram aos trabalhadores
de outras, por razão da destinação de novas unidades in-
dustriais. Da mesma forma, enquanto as indústrias tercei-
rizavam algumas fases do processo de produção, as identi-
dades dos trabalhadores foram, novamente, diferenciadas,
na medida em que um grupo ocupacional confronta outro
grupo ocupacional, por exemplo, quando trabalhadores au-
tônomos competem contra o trabalhador industrial empre-
gado. Além disso, ao longo da década, a identidade coletiva
dos trabalhadores foi fragmentada, na medida em que os
trabalhadores do setor privado gradualmente consideraram
os funcionários públicos economicamente privilegiados e,
muitas vezes, não merecedores das garantias que o Estado
empregador oferecia para alguns deles.
Ainda outra forma de fragmentação da identidade
e dos interesses coletivos da classe trabalhadora foi a cres-
cente diferenciação realizada entre o trabalhador afortu-
nado, que foi poupado da perda do emprego, em oposição
a muitos outros que foram colocados fora do mercado de
trabalho pelas mudanças na economia e/ou pela inovação
tecnológica. Desde que o sindicato tradicionalmente con-

210 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


siderava os desempregados fora do raio de suas preocu-
pações, essa dicotomia foi minando os sentimentos mais
consistentes de uma identidade e de interesse coletivos
de classe, estabelecendo uma consciência fragmentada
individualista. Finalmente, a identidade coletiva dos traba-
lhadores também sofreu com o conflito entre facções po-
líticas dentro do movimento sindical, tanto em termos da
competição entre as duas centrais trabalhistas nacionais, a
CUT e a Força Sindical, quanto com os conflitos entre fac-
ções ideológicas dentro dessas organizações nacionais.
Conseqüentemente, de uma perspectiva de identi-
dade coletiva, constata-se que há amplos motivos para acre-
ditar que os sentimentos dos trabalhadores de pertinência
à uma única categoria social têm enfraquecido ultimamen-
te. Ao mesmo tempo, trabalhadores alteraram suas crenças
e expectativas sobre a sociedade e as relações sociais, en-
quanto governos, negócios e meios de comunicação de mas-
sa enfatizaram a promessa de estabilidade econômica e o
potencial para crescimento, se os brasileiros se adaptassem
às pressões da nova realidade econômica. Assim, os traba-
lhadores gravitaram para um nível de crenças e expectativas
mais individualizado, enquanto deixavam para um segundo
plano suas crenças mais coletivas, que predominaram numa
consciência de classe de tempos anteriores.
Enquanto fragmentos de identidade coletiva e
crenças societárias, os trabalhadores tornaram-se mais
individualistas; da mesma forma, os sentimentos dos tra-
balhadores sobre interesses coletivos tornaram-se mais
ambíguos e incertos. Em vez de ver seus interesses como
coletivos e contrapostos aos dos empregadores e do go-
verno, durante essa década, a complexidade dos desafios
da classe trabalhadora e a inabilidade dos sindicatos em
responder a esses desafios criaram a percepção de que os

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 211


interesses dos trabalhadores se tornavam mais vagos, fa-
vorecendo uma visão multifacetada. Isso se dá na medida
em que trabalhadores desafiam os empregadores mas,
paradoxalmente, também se opõem a outros trabalhado-
res, que passam a ser percebidos como competidores, por
razão das diferenças em qualificação, campo ocupacio-
nal, interesses regionais ou oportunidades de emprego.
Com a ruptura no consenso sobre os interesses dos tra-
balhadores – como nos casos das queixas dirigidas contra
um adversário homogêneo, os capitalistas e seus aliados
governamentais –, tornou-se difícil para os trabalhadores
dirigirem seu descontentamento contra um objetivo bem
definido, como ocorreu nos anos 1980. Isso se acentuou
posteriormente, na medida em que, tanto os emprega-
dores quanto o governo, se isentaram de qualquer res-
ponsabilidade e colocaram as forças históricas externas
de globalização e as exigências do neoliberalismo como
a causa das dificuldades dos trabalhadores. Atribuíram,
assim, a causa das dificuldades econômicas vividas pelos
trabalhadores a fatores transcendentais.
Ao fazer isso, muitos trabalhadores passaram a
acreditar que o locus de causalidade para as conseqüências
da reestruturação econômica encontrava-se naquelas ondas
internacionais de neoliberalismo e globalização e, portanto,
transcendiam sua capacidade de resistir coletivamente ao
que era aparentemente inevitável. Por tudo isso, os senti-
mentos de eficácia política desses trabalhadores foram aba-
lados, na medida em que eles acreditaram que o neolibera-
lismo e a globalização eram processos históricos inevitáveis
e/ou que sua situação difícil era resultado de seu próprio fra-
casso em preparar-se paras as pressões dos novos tempos,
não tendo se aproveitado das raras oportunidades educa-
cionais em anos anteriores. Em todo caso, os trabalhadores

212 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


passaram a atribuir as causas das dificuldades e incertezas
desse momento aos remotos processos globalização, vistos
como algo além de seu próprio controle.
Isso levou aos sentimentos de sofrimento (De-
jours,1999) e descontentamento, sem um sentimento de
injustiça claramente definido. Negadas as certezas de re-
lações de classe que as experiências dos anos 1980 lhes
deram, induzidos a tolerar a injustiça e a separar interes-
ses sociais e econômicos da adversidade política, naquele
momento histórico os trabalhadores brasileiros acharam
que os parâmetros de solidariedade não eram claros, que
as opções por resistência coletiva eram aparentemente
ineficientes e que os movimentos sociais e as organiza-
ções sindicais que prepararam suas lideranças e estraté-
gias no passado eram agora inadequados e, com freqüên-
cia, apresentavam-se em estado de desordem. Ao mesmo
tempo, os trabalhadores tacitamente aceitaram as inter-
pretações de que o atual estado de coisas era resultado
de forças “históricas ou globais” que os transcendiam. Na
ausência de propostas de alternativas de ações coletivas
eficazes, os trabalhadores optaram por procurar soluções
individuais e/ou grupais para se protegerem das ameaças
da mudança econômica. Enquanto as soluções sindicais
de curto prazo abriam caminho para um ataque violen-
to das estratégias capitalistas, vigorosas e deliberadas na
abertura de mercados e nas investidas para enfraquecer
os sindicatos e reduzir as suas conquistas, encontrava-se
uma passividade surpreendente numa classe trabalha-
dora que, poucos anos atrás, prometia se tornar o mo-
vimento sindical mais moderno da América Latina. Essa
passividade coletiva, somada à aparente falta de alterna-
tivas coletivas, refletiu as mudanças profundas na consci-
ência política dos trabalhadores brasileiros.

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 213


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*  Este trabalho é uma versão revisada e expandida do artigo “The Crisis


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Psicologia Política, vol. 1, nº 1, 2001, pp. 173-195. Tradução de Lucia
Maria Rangel Azevedo. Revisão de Alessandro Soares da Silva.
No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 217
Políticas Públicas no enfoque da
Psicologia Política

Telma R. de Paula Souza1

1  Professora Doutora da Universidade Metodista de Piracicaba e co-


fundadora da Associação Brasileira de Psicologia Política.
Sem entrarmos em questões epistemológicas,
destacamos a Psicologia Política enquanto um posiciona-
mento ético-político voltado para construção da história
humana na dimensão humano-genérica.2 (Heller, 1972)
Nessa perspectiva axiológica, entendemos como Psicologia
Política os estudos e práticas que buscam compreender os
fatores subjetivos da história, o que abre um leque de en-
quadres teóricos que julgamos necessário para a apreen-
são dos fenômenos engendrados nos campos relacionais
entre os indivíduos na realidade em que estão lançados.
Tratando-se de campos relacionais em que se delineiam
diferentes posições sociais entre os indivíduos ─ posições
socialmente hierarquizadas ─, a subjetividade da história
constitui-se através de um campo de tensão entre os indi-
víduos e grupos, geralmente regulado por instituições que
reprimem os antagonismos sociais em troca de uma pro-
messa de coexistência pacífica entre as partes em conflito.
Na regulação define-se a política institucionalizada, consi-
derando-se qualquer esfera da atividade humana, que não
abarca, pelo contrário tenta anular, o político definido nas
relações antagonistas. Tal anulação do político é realizada
por meio de uma subjetivação definida por lugares/posi-
ções de poder instituídos, consolidados nas formas de pro-
dução e controle dos recursos essenciais à manutenção do
ordenamento social.

2  Segundo Heller (p. 21-22): “Para o homem de uma dada época,


o humano-genérico é sempre representado pela comunidade
‘através’ da qual passa o percurso, a história da humanidade (e isso
mesmo no caso em que o destino dessa integração concreta seja a
catástrofe). Todo homem sempre teve uma relação consciente com
essa comunidade; nela se formou sua ‘consciência de nós’, além de
configurar-se também sua ‘consciência do Eu’. Nela explicitou-se a
teleologia do humano-genérico, cuja colocação jamais se orienta para
o ‘Eu’, mas sempre para o ‘nós’.”
No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 221
Assim considerada, a subjetividade histórica ─
que implica no movimento de tensão entre subjetividades
que resulta nas objetivações sociais ─ tanto é reificada, nas
ações de regulação, como é a expressão de carecimentos
que forçam os indivíduos a entrarem em relação uns com
os outros. A Psicologia Política, neste sentido, está volta-
da para a compreensão dos processos de reificação e das
ações coletivas que afirmam e/ou negam tal processo e
seus produtos. Para a construção dessa compreensão, ne-
cessariamente, a Psicologia Política situa-se na fronteira
dos saberes disciplinares, buscando articular tais saberes
sem a preocupação de construir uma síntese, buscando
configurar o campo de tensão para o planejamento de
ações estratégicas que facilitem o movimento histórico na
dimensão humano-genérica. Cabe destacar que a Psico-
logia Política também pode servir à construção da legiti-
mação de instituições reguladoras, especialmente quando
considera como dada a estrutura de poderes e busca en-
tender o ajustamento ou desvio dos indivíduos em relação
à esta estrutura para favorecer o ajustamento ou corrigir
os desvios. Sendo assim, a Psicologia Política tanto tem um
papel analítico das políticas públicas como de intervenção
para a construção, afirmação (legitimação) ou negação
(antagonismo) dessas políticas.
Teoricamente, as políticas públicas são compreen-
didas como as ações implementadas pelo Estado, enquanto
instituição reguladora da organização social, e nesse sentido
são abrangentes, pois referem-se a todas as esferas cons-
tituintes da organização social. Nesse ensaio, focaremos as
políticas sociais públicas, ou seja, aquelas que determinam o
padrão de proteção social dos indivíduos, no caso brasileiro,
aquelas abarcadas pela seguridade social, que, em última
instância, visam diminuir as desigualdades sociais estrutu-

222 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


rais produzidas pelo desenvolvimento socioeconômico ca-
pitalista. São políticas redistributivas que, desde sua origem
no século XIX, visam anular conflitos que podem surgir fren-
te uma distribuição econômica injusta que favorece relações
de poder-submissão com base em identidades coletivas pré-
-definidas na hierarquização social.
Na atual engenharia institucional do Estado brasi-
leiro, inaugurado pós Constituição de 1988, as políticas so-
ciais públicas, continuam representando uma redistribuição
de benefícios necessária para a manutenção da desigualda-
de distributiva, entretanto trazem a novidade da possibilida-
de da sociedade, de forma organizada e institucionalizada,
poder participar da definição dos benefícios e do como de-
vem ser redistribuídos. Nesse novo desenho institucional, o
poder do Estado passa a ser reconfigurado na perspectiva
democrática e a participação social ocorre no pleito eleitoral
(indireta), na escolha dos representantes no Poder Executivo
e no Legislativo, como pode ocorrer por meio dos inúmeros
órgãos consultivos e deliberativos que, em tese, implicariam
na distribuição de poder na esfera pública (participação se-
mi-direta). A constituição desses Espaços Públicos, que têm
a atribuição de formular e monitorar as políticas públicas,
tem sido uma experiência inovadora, mas repleta de contra-
dições, visto que ainda não representam uma real partilha
de poder entre Estado-sociedade.
A sociedade civil, em tais espaços, representa par-
te dos grupos de interesse da sociedade, fragmentados em
referenciais identitários singular-particulares, que nego-
ciam benefícios sociais dentro dos limites de compatibili-
dade do sistema de controle da produção de recursos so-
ciais fundamentais. (Melucci, 1991) A participação desses
grupos, portanto, não garante a materialização dos prin-
cípios universais que devem orientar uma política pública

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 223


justa, que também é impedida pela lógica administrativa
do Estado, centrada no Poder Executivo, em que pesem as
normatizações jurídico-legais erigidas contra essa centrali-
dade. Nesse sentido, a ideia de controle social e a estrutu-
ra político-administrativa do Estado parece-nos serem ei-
xos fulcrais para uma análise das políticas sociais públicas
na perspectiva de uma Psicologia Política comprometida
com as objetivações em-si-para-si da dimensão humano-
-genérica que deveria orientar o espaço público.
O controle social não se efetiva sem a partilha do
poder e essa não ocorre na centralização administrativa
que ainda permanece na estrutura do Estado brasileiro
─ expressa no clientelismo e paternalismo entre governo
e população ─, em que pese sua reestruturação na refor-
ma pós-constitucional. São vários fatores que impedem a
partilha do poder, tanto relacionados à fragilidade da so-
ciedade civil, historicamente “servil”, como relacionados
à formação da elite brasileira, alicerçada em uma ideolo-
gia conservadora que se manteve preservada no desenho
de nossa democracia ainda fortemente liberal, posto que
centrada nos indivíduos. Estes são tomados como repre-
sentantes de coletivos que não existem, necessariamen-
te, enquanto identidades coletivas (construídas nas rela-
ções nas quais os indivíduos se reconhecem e sentem-se
reconhecidos como uma coletividade, a partir de uma es-
colha de pertencimento social)
A Psicologia Política pode contribuir para “des-
naturalizar” essa ideologia conservadora e, com isso, con-
tribuir para a efetivação de uma gestão democrática das
politicas sociais, que favoreça uma cultura participativa, o
que é um requisito para se romper com os limites da com-
patibilidade do sistema atual, o que não tem ocorrido. A
gestão democrática atual, em que pese a retórica discursi-

224 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


va participacionista, mantém a lógica dominação-submis-
são característica da história sociopolítica brasileira. Nessa
lógica, a participação é uma ferramenta da gestão, o que
define uma democracia gerencial.

A democracia gerencial se constitui a partir de


uma combinação dos elementos próprios aos
modelos de democracia elitista e participativa.
Por um lado, tal como o modelo da democracia
participativa, a democracia gerencial interpreta
os fatos sociais modernos ─ a complexidade, a
pluralidade e a desigualdade ─ não como im-
pedimento à participação (como no modelo
democrático elitista) e, sim, como condição ob-
jetiva que impõe a ampliação e efetivação (do
diálogo) entre governo e sociedade, em espaços
institucionalizados. Corroborando a tese dos te-
óricos da acepção participativa da democracia,
a democracia gerencial defende que a partici-
pação não é apenas desejável, ela é defendida
como imprescindível para o sucesso das políti-
cas. Há, nesse sentido, repito, uma extraordiná-
ria convergência entre o modelo democrático
participativo e a democracia gerencial.
Por outro lado, vemos as diferenças de respos-
tas quando interrogamos acerca da adequação
dos princípios estruturantes da concepção de
espaço público, tal como tematizado no mode-
lo da democracia participativa, às expectativas
que informam a prática participativa no âmbi-
to da democracia gerencial. Se tomamos essa
questão como norte, veremos que os princípios
que informam o diálogo entre públicos e insti-
tuições no “modelo” gerencial sugerem a con-
formação de uma estrutura de comunicação e
interação, cujo elemento central está na nega-
ção da dimensão política do esforço dialógico ─

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 225


nesse ponto é que afirmo a influência do mode-
lo democrático elitista sobre a estruturação da
democracia gerencial. (Tatagiba, 2006, p. 143)

Nessa perspectiva analítica, que acompanhamos


plenamente, os espaços públicos destinados ao diálo-
go entre poder público e sociedade civil para a formula-
ção das políticas sociais públicas, como as conferências e
os conselhos, buscam garantir a governabilidade pública
transferindo responsabilidades do Estado-governo para
organizações sociais. Os consensos negociados nesses es-
paços são tangenciados pelos limites dos recursos públicos
destinados ao financiamento das políticas sociais públicas.
Além disso, tais acordos nem sempre são respeitados na
burocracia gerencial do Estado, o que tem definido a cen-
tralidade do Poder Executivo sob o aval dos Poderes Legis-
lativo e do Judiciário.
Muitas vezes, em nome de supostos “interesses
públicos”, mantêm-se estruturas e gestões estatais vertica-
lizadas e autoritárias, que servem para garantir interesses
corporativos, para a privatização de recursos orçamentá-
rios e para a concessão de benefícios políticos restritos a
determinados grupos e indivíduos.
Tatagiba (2006) identifica, na pesquisa que reali-
zou acerca da do Projeto Rede Criança em Vitória/ES, as
fragilidades para a consolidação de uma democracia par-
ticipativa no Brasil. A autora aponta problemas na articu-
lação entre Sociedade Civil e Sociedade Política na qual as
duas esferas têm revelado seus limites. Na Sociedade civil,
especialmente os grupos organizados nos bairros onde re-
side a população de baixa renda, como as associações de
moradores, Tatagiba identifica um forte traço conservador
na relação desses grupos com o Estado, fundamentalmen-

226 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


te em função da histórica relação assistencialista do Estado
brasileiro com as populações excluídas pela produção ca-
pitalista, relação essa baseada na tutela e cooptação, que
mantém uma cultura política tradicional.

A participação, inserida nesse circuito de trocas


clientelistas, torna-se mais uma dádiva que se
oferece e que é ─ para os politicamente empo-
brecidos (Bohman,1996) ─ impossível de ser re-
cusada, mas, ao mesmo tempo, impossível tam-
bém de ser exercida com autonomia. Participar,
aceitar o “convite”, parece ser, nesse contexto,
uma retribuição necessária com vistas a manter
a aliança e, ao mesmo tempo, aumentar o cacife
para trocas futuras. (Tatagiba, 2006, p. 173)

As organizações não governamentais também são


reféns do Estado em função dos interesses financeiros. Para
tentar assegurar financiamento de projetos, tais organiza-
ções ─ usadas pelo Estado para a terceirização de suas fun-
ções redistributivas ─ se calam e participam acriticamente
de Espaços Públicos. A relação entre essas organizações,
dado o limite orçamentário para a área social, é permeado
pela concorrência, pois disputam os recursos que assegu-
ram os projetos e os empregos nessas organizações.
Na Sociedade Política, focada no Estado, em que
pese a hegemonia do ideário participacionista, os imperativos
administrativos impõem uma democracia, como apontamos
acima referenciado em Tatagiba, gerencial, na qual a parti-
cipação é uma ferramenta da gestão pública para a eficácia
das políticas, principalmente na área social. Nesse sentido, a
pluralidade dos atores é exaltada, esperando que a diferença
possa produzir inovações na execução das políticas que con-
duziriam à soluções criativas para os problemas sociais.

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 227


[...] esse processo de articulação resulta mais
de um processo de agregação das diferenças do
que propriamente de um processo de diálogo
e partilha de significados, a partir do confronto
entre valores, representações e interesses. [...]
O que está em jogo não é a definição comparti-
lhada do que deverá ser considerado interesse
público, mas a disposição de cada ator “realizar
a sua parte”, “oferecer a sua contribuição”, dis-
ponibilizar seu tempo e criatividade para “reunir
esforços” visando à solução de um problema,
que só pode ser resolvido “com a contribuição
solidária de todos”. (Tatagiba, 2006, p. 144)

Para a autora: “O que se busca, como horizonte de


expectativas, não é a “partilha do poder de governar”, mas
a dissolução desse poder na gerência eficiente.” (idem, p.
145) Nesse sentido, existe uma tendência à instrumentali-
zação das práticas participativas, o que ocorre, na análise
de Tatagiba e nas observações que temos realizado na ci-
dade de Piracicaba/SP, na ênfase nas redes3 como estraté-
gia de gestão das políticas de saúde e da assistência social.

Na mobilização para a ação conjunta, no lugar dos


princípios éticos comuns, o eixo que estrutura a
articulação é o reconhecimento de uma situação

3  Observamos que a estratégia de redes institucionais pode ser uma


experiência inovadora na gestão das políticas públicas, fortemente
fragmentadas, e até pode permitir a experiência de uma democracia
participativa, mas não tem sido esse sentido que temos observado
nas situações concretas. No caso da cidade de Piracicaba, inúmeras
tentativas de constituição de rede socioassistencial foram realizadas
sem sucesso, especialmente quando o Estado não pode ser o
protagonista da articulação entre os atores envolvidos nas políticas
para infância e juventude. Não aprofundaremos essa questão nesse
texto, mas entendemos que é urgente a problematização dos sentidos
das redes institucionais.
228 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)
problemática, que pode ser o número de meninos
e meninas em situação de rua, os índices de crimi-
nalidade, a poluição ambiental etc. Ou seja, o mo-
tor da ação não é o pertencimento a um mesmo
campo ético-político, mas a intenção de resolver
uma situação prática, que todos entendem só ser
possível de ser resolvida com a participação de to-
dos os que são por ela, direta ou indiretamente,
atingidos. (Tatagiba, 2006, p. 147)

No modelo gerencial de Estado, as política públi-


cas são resultado de um consenso forjado pelo agir ins-
trumental, como temos discutido em nossos estudos, que
ignora ou neutraliza qualquer discurso antagonista, assim
despolitizando os espaços de articulação das diferenças.
Como discute Tatagiba, em função das questões
identificadas em seu estudo, a relação do Estado com a So-
ciedade Civil é fortemente permeada pela desconfiança de
ambas as partes, visto a interação entre essas esferas ser
historicamente assimétrica.
Entendemos que, embora os Espaços Públicos
que nossa democracia constituiu ainda não representem
uma inclusão universal dos grupos sociais, podem repre-
sentar um avanço no acesso a alguns benefícios para parte
dos excluídos economicamente, em que pese esse acesso
não garantir a autonomia desses sujeitos e sua objetiva-
ção humano-genérica. É evidente que o acesso a recursos
para sobrevivência é fundamental para que os indivíduos,
garantida sua sobrevivência, possam se voltar para outras
questões; mas se a garantia da sobrevivência for uma con-
cessão de uma política social assistencialista, a apatia será
mantida, assim como a dependência dos indivíduos de um
sistema ainda paternalista.
Entendemos que, no contexto de uma democra-
cia participativa radical, a construção das políticas públicas

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 229


deve tomar a participação social na perspectiva axiológica
que indicamos acima, deve assumir um posicionamento éti-
co-político com a abertura democrática e deve realizar cons-
tante análise acerca da real dimensão dessa abertura, o que
implica em uma agenda de pesquisas e ações que inclua:

• o respeito aos direitos humanos nas políticas


públicas;
• o equilíbrio de poderes;
• a visibilidade e o controle dos processos de to-
madas de decisão;
• o grau de representatividade dos mecanismos
eleitorais;
• a qualidade dos filtros que regulam o acesso
ao sistema político e o grau de elasticidade das
regras do jogo;
• os limites postos às ações do Executivo e dos
aparatos repressivos;
• a liberdade e as formas de organização política
e de associação;
• o grau do controle sobre as informações.
Esses são aspectos indicativos do grau de aber-
tura democrática, discutidos por Melucci (1994), que
orientam os estudos que temos realizado no Brasil nos
últimos anos, problematizando as possibilidades de uma
democracia participativa por meio dos canais instituciona-
lizados de participação, que têm sido identificados como
Espaços Públicos. Tais espaços têm se configurando em
uma arena de disputa de interesses de diversos grupos

230 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


sociais que reivindicam inclusão social, entendida mais
como possibilidade de acesso a recursos materiais e não
à produção e controle desses recursos. Os que participam
desses espaços são reconhecidos como “porta-voz” dos
excluídos, interlocutores válidos, pertencendo ou não aos
grupos excluídos que não chegam até os Espaços Públi-
cos. Quando chegam nessa arena política formal ficam em
posições marginais, caso não se apropriem dos discursos
instituídos por meio desses espaços, que compõem as ba-
lizas norteadoras das deliberações acerca das políticas so-
ciais. Assim, por não representarem a polifonia dos excluí-
dos e sim as concessões políticas para uma inclusão social,
no acesso a benefícios redistributivos, os Espaços Públicos
para as deliberações acerca das políticas sociais públicas
mais representam um leilão que tem como moeda de tro-
ca o ajustamento dos indivíduos pertencentes aos grupos
dos excluídos às políticas econômicas. Essas necessitam
da ordem social como garantia dos investimentos finan-
ceiros que regulam as economias capitalistas desde o final
do século XIX e que assumiram posição hegemônica prin-
cipalmente pós Segunda Guerra Mundial.
Nesse sentido, a representação é um dos proble-
mas que temos que enfrentar para construirmos uma de-
mocracia que seja realmente participativa, o que tem sido
discutido por diversos pensadores.

A consolidação de propostas participativas re-


presenta a potencialização e a ampliação de
práticas comunitárias, através do estabeleci-
mento e ativação de um conjunto de mecanis-
mos institucionais que reconheçam direitos efe-
tivamente exercitáveis e estimulem estratégias
de envolvimento e co-responsabilização. Nesse
No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 231
sentido, um dos maiores desafios de uma pro-
posta participativa ampliada é o de garantir a de-
finição de critérios de representação, de forma
a impedir tanto a sua manipulação por grupos
guiados por interesses particularizados, como
a possibilidade da sua instrumentalização pela
administração pública. (Jacobi, 2002, p. 447)

As ciências políticas reconhecem os déficits de re-


presentatividade das instituições democráticas e buscam
explorar possibilidades de reforma da democracia para
construir maior capacidade de controle social sobre as de-
cisões políticas e a sua implementação, sem contudo en-
frentar com profundidade o debate da representação, vis-
to que a centralidade do debate recai sobre uma ideia de
“participação” e a uma compreensão da “sociedade civil”
altamente estilizada e capaz de unificar uma miríade de
atores societários diversos dentro de uma lógica comum.
Na perspectiva que apontamos acima, de uma
Psicologia Política comprometida eticamente com a sub-
jetivação/objetivação humano-genérica, destacamos sua
atuação no campo das inovações democráticas que po-
dem ampliam a participação social, contudo sem garantir
a representatividade dessa participação e nem que essa
interfira plenamente nas decisões e na implementação
das mesmas. A ampliação da participação, definindo nossa
Democracia Participativa, é um investimento em diversos
atores societários, ajustados jurídico-normativamente nos
critérios de representatividade, que não garantem a repre-
sentação das demandas da sociedade e nem garantem a
implementação das decisões forjadas nos Espaços Públi-
cos, visto que a última palavra cabe aos representantes po-
líticos eleitos no processo da Democracia Liberal.
Como discutem Lavelle, Houtzager e Castello:

232 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


[...] as inovações institucionais participativas e
sua regulamentação instituíram princípios e fun-
ções concorrentes de representação política, sus-
citando conflitos quando – como acontece com
frequência e largueza – as propostas dos conse-
lhos são modificadas pelos poderes executivo e
legislativo. Nos conflitos entre representantes,
ou seja, entre conselheiros e legisladores, ambas
as partes contam com legitimidade própria, ema-
nada ora das urnas, ora dos processos de escolha
– inclusive eleições – definidos pelas respectivas
leis de criação dos conselhos. (Lavelle, Houtzager
e Castello, 2006, p. 82)

A questão da representatividade, nesse enqua-


dre analítico, se daria pelo compromisso de representar
o representado, ao que Burke (1942 [1774] apud Lavel-
le, Houtzager e Castello, 2006) denomina de “represen-
tação virtual”, ou seja, o sentimento ou compromisso de
representar alguém.

A presunção de representar alguém, é claro,


não equivale à sua efetiva representação; no
entanto, o comprometimento com os interes-
ses representados é um componente vital da
representação, irredutível a dispositivos institu-
cionais. Embora a dimensão subjetiva da repre-
sentação tenha sido sistematicamente desvalo-
rizada no campo das teorias da democracia [...],
as regras e desenhos institucionais tornam-se
impotentes quando os representantes não são
animados ou comovidos por um “sentimento de
representação”. [...] De modo mais preciso, se a
representação é irredutível à mera representa-
ção presuntiva, a representatividade não pode
prescindir do compromisso de representar. (La-
velle, Houtzager e Castello, 2006, p. 89)

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 233


Nesse sentido, aprofundando o debate em torno
dessa ideia de representação virtual, validando a repre-
sentatividade possível no compromisso de representar,
problematizamos se a Psicologia Política, assumindo a re-
ferência humano-genérica, poderia ter na elaboração, mo-
nitoramento e avaliação das políticas públicas um papel
representativo, enquanto uma práxis que transcenda sua
capacidade de produção de análises, mas que possa, com
base nos conhecimentos produzidos pelas ciências sociais
como um todo, assumir a representação de indivíduos e
grupos humanos que ainda não têm a menor chance de
serem ouvidos; ou só ouvidos quando produzem barulho,
manifesto nas diversas formas de violência, sempre enten-
didas como apolíticas4, visto não dialogarem com as insti-
tuições socialmente legitimadas para a ordenação social.
Neste sentido, os atos violentos, no contexto das exclu-
sões, têm um sentido político na negação da participação
política dos excluídos. Como discute Santos,

As exclusões produzidas, tanto pelo pós-con-


tratualismo como pelo pré-contratualismo são
radicais e inelutáveis, e a tal ponto que os que
as sofrem, apesar de formalmente cidadãos,
são de facto excluídos da sociedade civil e lan-
çados num estado de natureza. Na sociedade
pós-moderna do fim do século, o estado de
natureza é a ansiedade permanente em re-
lação ao presente e ao futuro, o desgoverno
iminente das expectativas, o caos permanente
nos actos mais simples de sobrevivência ou de
convivência. (Santos, 1998, p. 25)

4  Que expressam a impossibilidade política daqueles que não são


representados e, portanto, são excluídos não só socioeconomicamente,
mas também politicamente da vida social.
234 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)
Mas a Psicologia Política teria competência para as-
sumir um compromisso de representar esses excluídos? Não
seria essa uma pretensão que encobre uma ideologia que
desconsidera a capacidade dos “excluídos” definirem seu
destino, mesmo que esse destino seja a inclusão econômico-
-social dentro dos limites de compatibilidade de um sistema
excludente?5 E mais, assumir uma representatividade presu-
mida, buscando-se representar os interesses dos excluídos,
não seria aceitar as regras do jogo democrático que mantém
a centralidade do Estado encobrindo o declínio de seu papel
regulador? Sendo assim, a Psicologia não estaria assumindo
o papel de legitimação desse poder despolitizador?
Finalizando essa breve discussão, ainda proble-
matizamos a efetividade das deliberações, que tem sido
objeto de análise de cientistas brasileiros e estrangeiros,
como assevera Avritzer:

Dois são os motivos principais pelos quais a


questão da efetividade tem atraído a atenção
desses pesquisadores: o primeiro deles é uma
crescente associação entre participação e políti-
cas públicas, bastante específicas do caso brasi-
leiro. As formas de participação no Brasil demo-
crático foram se disseminando em áreas como
saúde, assistência social e políticas urbanas e as
formas de deliberação foram sendo crescente-
mente relacionadas às decisões em relação a es-
tas políticas. Neste sentido, a capacidade destas
deliberações de se tornarem efetivas adquiriu
centralidade entre os pesquisadores da área de
participação. Em segundo lugar, passou a haver
uma preocupação de caráter mais teórico em

5  Se sim, tal inclusão não teria uma capacidade de romper a


compatibilidade do sistema na lógica discutida por Boaventura de
Sousa Santos quando discute a implosão democrática?
No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 235
relação ao tema da deliberação. A maior parte
da bibliografia internacional sobre o assunto
passou a estar preocupada com as característi-
cas da democracia deliberativa e aí também se
disseminou uma preocupação com a efetivida-
de da deliberação. (Avritzer, 2011, p. 13)

Sem entrar na análise que estes estudos produzi-


ram e pautando-nos nas observações que temos realizado
participando desses Espaços Públicos (Conselho Munici-
pal dos Direitos da Criança e do Adolescente de Piracica-
ba, Conselho Municipal de Saúde de Piracicaba e diversas
conferências temáticas em todos os níveis da federação),
sem a chancela da representação, observamos, numa
perspectiva pessimista, que são Espaços Públicos que não
garantem a democracia participativa e nem são efetivas as
deliberações para a ampliação ao acesso de recursos redis-
tributivos, o que define as políticas sociais públicas como
insuficientemente compensatórias. Grande parte das
ações desses espaços responde ao controle burocrático
dos recursos para redistribuição e, enquanto isso ocorre,
um homem espanca seu filho, de apenas quatro anos até
a morte, um usuário do SUS morre sem socorro numa fila
de um serviço público de saúde, outro, por determinação
da justiça, é internado compulsoriamente em uma Comu-
nidade Terapêutica e ainda outro, empresário bem suce-
dido, recebe gratuitamente, do Sistema de Saúde Público,
medicamento de alto custo. Esses casos não são exceções
e os representantes do pode público e da sociedade civil
ignoram essa realidade e não entendem porque muitos
“representantes” da Sociedade Civil não comparecem às
reuniões, exigência mínima da participação, e, se compare-
cem, mantêm-se calados ou reproduzem o discurso instru-
mental que têm caracterizado os Espaços Públicos.
236 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)
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do Projeto Rede Criança em Vitória/ES”. In: DAGNINO, E. OLVERA, A.
J. e PANFICHI, A. (orgs). A Disputa pela Construção Democrática na
América Latina. São Paulo: Paz e Terra; Campinas, SP: Unicamp, 2006.

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 237


Consciência, participação política
e serviço público entre
agentes de apoio da Prefeitura
Municipal de São Paulo, Brasil

Alessandro Soares da Silva1


Inácio Ferreira Júnior2

1  Editor da Revista Psicologia Política (2008-2015), líder do Grupo


de Estudos e Pesquisas em Psicologia Política, Políticas Públicas e
Multiculturalismo - GEPSIPOLIM - e docente no Programa de Pós-
Graduação em Psicologia Social do Instituto de Psicologia e da
graduação em Gestão de Políticas Públicas da Escola de Artes, Ciências
e Humanidades da Universidade de São Paulo, Brasil.
2  Graduado em Gestão de Políticas Públicas pela Escola de Artes,
Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo, Brasil.
Atualmente é técnico do Departamento Intersindical de Estatísticas e
Estudos Socioeconômicos.
Introdução

Para discutirmos consciência e participação políti-


ca a partir de um caso particular, os dos Agentes de Apoio
(AA) da Prefeitura Municipal de São Paulo (PMSP), Brasil, é
necessário que recordemos como se deu a criação do Sin-
dicato dos Servidores Municipais de São Paulo (SINDSEP),
em 1987. Muitos foram os fatores políticos que influencia-
ram a participação (ou não) desses/as trabalhadores/as
em ações coletivas. Foi nos anos 1980, mesmo com as res-
trições e a repressão governamental que marcaram esse
período pré-redemocratização, que houve uma enorme
mobilização política dos/as trabalhadores/as da Prefeitura
Municipal de São Paulo, culminando na luta pelo direito
associativo até ali inexistente. Em 1987, várias associações
de trabalhadores/as espalhadas pelas secretarias da pre-
feitura unem-se para formar o movimento pró-sindicato e
decretam uma importante greve (vitoriosa), com a partici-
pação de cerca de 80% dos/as trabalhadores/as. Contudo,
o movimento trabalhista dos servidores públicos do muni-
cípio de São Paulo só obteve o direto à organização sindical
a partir da promulgação da Constituição em 1988, período
em que o movimento sindical viveu um momento de for-
talecimento da mobilização social (1980-90), em função da
instabilidade econômica do período e dos grandes movi-
mentos pela redemocratização. Esses elementos fortalece-
ram as campanhas salariais organizadas pelos sindicatos,
garantindo ainda uma forte participação dos trabalhadores
nas ações coletivas deflagradas e os manteve mobilizados.
Como aponta Laraña (2004), a percepção do risco
é um elemento agregador e que promove a participação so-
cial. No caso da ação sindical, fazia-se evidente: a ação sin-

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 241


dical garantia que a corrosão salarial fosse menor – no caso,
a defasagem salarial ocasionada pela inflação – e que o im-
pacto do desemprego causado pela reestruturação produti-
va fosse mais brando. Essa realidade era percebida em sua
complexidade por uma ampla parcela dos trabalhadores,
sobretudo por aqueles com menor grau de instrução e que
exerciam atividades consideradas de menor complexidade e
com menor remuneração (Sandoval, 2001). Em 1989, com
o SINDSEP já regulamentado e reconhecido, as mobiliza-
ções políticas continuaram, mesmo sob a administração da
ex-prefeita Luiza Erundina (PT). Nesse período, a base mo-
bilizada pelo sindicato junto ao pessoal de nível básico era
pequena e possuía baixa participação. Essa constante nos
mobilizou a estudarmos os porquês de os/as AA não par-
ticiparem das ações coletivas em prol da melhoria de sua
qualidade de vida e de condições de trabalho, a partir do
modelo da consciência política de Salvador Sandoval (2001).

Agentes de Apoio e a Reforma


Administrativa na Prefeitura Paulistana

Em janeiro de 1995 inicia-se, no Conselho de Re-


forma do Estado, as discussões sobre o Plano Diretor da
Reforma do Estado proposto pelo então Ministro da Admi-
nistração Federal e Reforma do Estado, Luiz Carlos Bresser-
-Pereira (1999), que culminaria na reforma constitucional
de 1998. Esta redefiniu as funções e papéis do Estado e
reestruturou os serviços públicos, afetando a gestão de re-
cursos humanos do setor público. A necessidade de se re-
desenhar o Estado se impôs no Brasil após a crise fiscal dos

242 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


anos 1980 e 1990. Segundo a concepção de Bresser-Perei-
ra, esse quadro exigia uma renovação estrutural para que
o Estado pudesse desempenhar suas funções e promover
o desenvolvimento econômico e social.
Nesse sentido, o plano tinha como prioridade re-
duzir a interferência do Estado na economia e na socieda-
de, de modo a que fosse possível ao Estado dedicar-se so-
mente, com maior eficiência e eficácia, à governabilidade
das funções legislativas, executivas e judiciárias e à execu-
ção das políticas públicas. (Cheibub, 2000) Para equacio-
nar a crise fiscal dos anos 1980 e 1990 que configuraram
o esgotamento do modelo nacional-desenvolvimentista,
o Estado precisava de um novo desenho que superasse a
inércia da administração pública burocrática e os signos
culturais do patrimonialismo e do clientelismo. Assim, em
sintonia com as reformas em curso na Europa e Estados
Unidos, o modelo brasileiro privilegiou as dimensões eco-
nômico-financeira e institucional-administrativa (Paula,
2004), por meio de uma particular ênfase no modelo ge-
rencial que adapta formas de gestão da iniciativa privada
ao setor público. De acordo com Bresser-Pereira (2000),
esse modelo visava fortalecer a administração com a pro-
fissionalização das carreiras públicas e com a dotação de
maior liberdade gerencial aos gestores, transformando a
racionalidade burocrática. Definiu-se, portanto, os papéis
do Estado a partir de áreas de atuação estatal consideradas
de suma importância regulatória: áreas de atuação consi-
deradas exclusivas do Estado e áreas de menor importân-
cia sócio-político-econômicas, que poderiam ser transferi-
das à gestão privada. O Estado encarregou-se de controlar,
promover e regular as atividades que foram consideradas
não exclusivas, sendo a gestão destas realizada pelo tercei-
ro setor, pelo capital privado e pelo mercado. O resultado

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 243


da reforma administrativa, ou reforma gerencial, foi o re-
desenho das atribuições do Estado brasileiro em atividades
exclusivas e não exclusivas. As atividades englobam o Nú-
cleo Estratégico, que corresponde aos poderes Executivo,
Legislativo, Judiciário e ao Ministério Público. Nesse setor
buscou-se estruturar as carreiras públicas consideradas tí-
picas de Estado, as quais lograram alto status hierárquico,
material e decisório. É no núcleo estratégico do governo
que as leis e as políticas públicas são definidas e seu cum-
primento é preconizado.
Em que pese toda a discussão que emergiu com a
reforma do Estado ou sobre os limites da reforma realizada,
o principal aspecto que nos interessa diz respeito ao impac-
to de tal medida nas relações de trabalho e na vida dos tra-
balhadores do setor público, pois nos permitirá aprofundar
nossa compreensão da consciência e a participação política
dos AA da PMSP e dos motivos psico-sociais e psicopolíti-
cos que podem levar à alienação destes/as trabalhadores/as
dos processos políticos que determinam suas condições de
trabalho e de qualidade de vida. Em certa medida, as ques-
tões relativas à reforma do Estado implicam na objetivação
de elementos que influenciam e interferem na construção
dessa consciência por parte desse grupo social.
Em setembro de 2003, sob a gestão da ex-prefei-
ta Marta Suplicy (PT), é instituído o cargo de AA na PMSP.
Após um longo processo de negociação com os sindicatos,
foi acordado que os sindicatos que compunham o Siste-
ma de Negociação Permanente (SINP) protocolariam um
documento com a assinatura dos representantes dos sin-
dicatos. O SINP foi uma criação da gestão do governo da
ex-prefeita Marta Suplicy, que propunha institucionalizar
a negociação coletiva na PMSP, visto que as relações de
trabalho no setor público não reconhecem o direito à ne-

244 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


gociação coletiva, data-base ou dissídio coletivo, apesar da
possibilidade de organização sindical.
Mas a discussão sobre a responsabilidade pelo
equacionamento dos conflitos trabalhistas no setor público
foi retomada com o envio pelo então presidente Lula (PT)
ao Congresso Nacional da regulamentação da resolução
152 da OIT, que reconhece o direito à negociação coleti-
va dos servidores públicos. Dessa forma, a criação do SINP
foi um avanço importante no reconhecimento dos direitos
trabalhistas dos 180 mil trabalhadores que têm como em-
pregador a PMSP. Essa experiência pioneira foi reproduzida
em diversas outras esferas de governo, inclusive no gover-
no federal. Ela foi importante por abrir um espaço de par-
ticipação no governo e gerar novos momentos de debate
e participação na vida sindical. No município de São Paulo
existem mais de 31 sindicatos representantes dos diversos
segmentos do funcionalismo público. O SINDSEP sentou à
mesa de negociação com a prefeitura junto a outros sete
sindicatos. As discussões e negociações eram, na maioria
das vezes, capitaneadas pelo SINDSEP, que lograva maior
representatividade e respeito junto à gestão municipal,
pois sua representação não se limitava a algumas catego-
rias específicas. A partir de observações empíricas e dos
relatos dos dirigentes sindicais do SINDSEP, observamos
que quando havia temas importantes a serem discutidos e
negociados, o SINDSEP era o principal ator a ser consulta-
do pela administração pública paulistana.
Assim foi no caso da formulação da lei 13.652 de
25/09/2003, que criou o cargo de Agente de Apoio (AA),
aglutinando 34 cargos de nível básico (trabalhadores com
escolaridade formal até o ensino fundamental). Nesse
processo estava o SINDSEP. Essa transformação de cargos
ficou conhecida como “cargo largo”, ou cargo multidiscipli-

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 245


nar e multifuncional. Com a instituição do cargo de Agente
de Apoio, dá-se início à reforma administra no município
de São Paulo, que, embora se diferencie da reforma ocor-
rida no governo federal com o Plano Diretor da Reforma
do Estado, segue os mesmos fundamentos e premissas, ou
seja: parte do pressuposto de que é necessário profissio-
nalizar as carreiras públicas com a instituição de mecanis-
mos oriundos da iniciativa privada, afim de que o Estado
efetue seus gastos em folha de pagamento com maior efi-
ciência e eficácia. Entende-se como eficiência a situação
em que a instituição alcança a maior quantidade de resul-
tados possíveis ao menor custo e como eficácia a medida
de quão próximo dos objetivos determinada ação ficou.
Com a instituição do “cargo largo”, a gestão de recursos
humanos da PMSP introduz o mecanismo da flexibilização
e da gestão por competências, há muito utilizado no setor
privado. Com esse mecanismo, a gestão de recursos huma-
nos almejou obter uma série de benefícios gerenciais, tais
como maior flexibilidade nas funções e maior agilidade na
administração dos recursos humanos; resolução dos pro-
blemas de desvio de função na prefeitura; aproveitamen-
to de mão-de-obra de funções extintas em outras áreas;
maior flexibilidade no processo de concurso público; pos-
sibilidade ao trabalhador de trabalhos em áreas diversas,
aproveitando suas capacidades e formações para além das
obrigatórias no ato do concurso.
Essa reforma, entretanto, beneficiou apenas a
gestão pública municipal, pois os impactos oriundos dessa
aglutinação de cargos criou uma série de consequências in-
desejadas aos/as trabalhadores/as, visto que gerou, entre
outros males, a descaracterização de profissões e de cargos/
funções concursadas. No que tange aos aspectos negativos
que o cargo largo apresenta, a questão da identidade pro-

246 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


fissional parece representar uma significativa desvantagem
ao profissional. Ao submeter o profissional a um cargo que
o obriga a desempenhar outras funções que não aquelas
específicas da profissão que escolheu, se qualificou e estru-
turou sua identidade profissional, isso descaracteriza a pro-
fissão à qual pertence, podendo fragmentar sua identidade,
gerando, inclusive, sofrimento. O cargo largo faz com que o
profissional não se reconheça mais como membro da pro-
fissão a qual pertencia, caracterizando a sensação de perda
de identidade. Ademais, com a instituição do cargo largo,
o profissional muitas vezes se vê obrigado a desempenhar
funções para as quais não está qualificado e/ou que não cor-
responde às suas expectativas profissionais.
Infelizmente, o decreto nº 45.869, de 5/05/2005,
que regulamenta o aproveitamento dos integrantes da
carreira dos servidores de nível básico em qualquer das
atividades estabelecidas para o cargo de Agente de Apoio,
foi publicado sem nenhuma reunião ou discussão com os
representantes dos trabalhadores. No decreto, todas as re-
ferências à possibilidade de remanejamento/realocação fi-
cam exclusivamente por conta da administração, de modo
que a vontade do trabalhador não é, em momento algum,
respeitada ou ao menos levada em consideração. Além dis-
so, as regras definidas não deixam claro como funcionará
o remanejamento anual: se ocorrerá por listas, por trocas
entre órgãos, por seleção ou de maneira arbitrária. A única
garantia que o trabalhador teria neste processo, conquista-
da a duras penas pelo sindicato, é o direito à capacitação,
definido na legislação que criou a carreira dos AA. Mas ela
foi suprimida com o advento, nesse decreto, dos casos de
“urgência/excepcionalidade”, que permite à administração
remanejar o trabalhador para outras funções, inclusive
para aquelas que exigem algum tipo de preparo ou espe-

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 247


cialização, sendo que, nessas situações, a capacitação se
daria em “serviço” (aprenda fazendo).
Essa situação gerou um clima de insegurança en-
tre os aproximados 19.672 AA, pois, a qualquer momento,
esses trabalhadores poderiam ser remanejados para de-
sempenhar qualquer função, dentre aquelas previstas para
o cargo, em qualquer região do município. Alguns relatos
dos AA nos seminários, assembléias e reuniões do SIND-
SEP evidenciam a falta de critérios para a realocação. Um
exemplo desta situação é o caso de um motorista, que por
muitos anos constituiu sua identidade e sua profissão, e
que se viu obrigado a desempenhar a função de portei-
ro para substituir outro profissional que desempenhava a
função. Esse tipo de situação passou a ser cotidiano, de
modo que, ao beneficiar a administração com a flexibiliza-
ção dos cargos, gerou uma série de frustrações nos traba-
lhadores, os quais sofreram com a falta de critérios para
seu remanejamento. Embora o decreto determine que o
remanejamento se daria por meio de uma solicitação pró-
pria, direcionado às unidades competentes que avaliaria a
possibilidade de utilização dos recursos humanos, a prática
diz que esse critério é negligenciado pelos gestores imedia-
tos, que muitas vezes perseguem e punem os profissionais
que se negam a desempenhar outra função.
Com a nova formatação do papel do Estado, a par-
tir da reforma administrativa do governo federal, inicia-se
um processo de terceirização do setor público. As ativida-
des que não exigem o exercício do poder do Estado, mas
que devem ser obrigatoriamente subsidiadas e fomenta-
das por ele, tiveram a produção de bens e serviços trans-
feridas ao terceiro setor. Esta terceirização foi chamada de
publicização: uma parceria entre o Estado e a sociedade
civil organizada. Segundo essa concepção, a publicização

248 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


se distingue da terceirização, pois as entidades do terceiro
setor são parceiras, ao passo que as empresas privadas são
contratadas. Em janeiro de 2006, sob a gestão do ex-pre-
feito José Serra (PSDB), passa a vigorar a Lei nº 14.132, que
dispõe sobre a qualificação de entidades sem fins lucrati-
vos como organizações sociais. Essa lei é a concretização
da reforma administrativa ocorrida no governo federal há
quase uma década e que se expande para outras esferas e
níveis de governo. Como os AA da PMSP estão alocados em
atividades que são consideradas não exclusivas do Estado,
esses trabalhadores estão sendo diariamente expostos a
remanejamentos e realocações em decorrência da publici-
zação dos setores nos quais estavam alocados.
Independentemente das críticas que recaem so-
bre o termo “publicização” e os conceitos subjacentes a
ele, neste trabalho, chamaremos esse processo apenas de
terceirização. Como os AA estão alocados em áreas do Es-
tado que sofrem tanto a terceirização como a publicização
– que, embora jurídica, burocrática e administrativamente
tenha aspectos distintos –, o fator que nos interessa neste
trabalho são os efeitos que esse processo gera no trabalha-
dor em suas relações de trabalho, independente da forma
jurídica e da finalidade da entidade contratada para a rea-
lização da atividade transferida do Estado; os efeitos para
os trabalhadores são indistintos. A terceirização é uma es-
tratégia de gestão caracterizada pelo repasse de um servi-
ço ou produção de um determinado bem ou serviço para
outras empresas ou entidades/instituições externas, por
meio de assinatura de contratos entre as partes. Os prin-
cípios da terceirização primam pela substituição da gestão
de pessoas pela gerência de contratos, de modo que os
benefícios da terceirização são a divisão dos riscos do ne-
gócio com outras empresas, a redução de custos totais e a

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 249


conversão de custos fixos em custos variáveis. Entretanto,
a terceirização no setor público revela alguns problemas,
pois a máquina pública carece, em muitos aspectos, de ins-
trumentos de gerenciamento necessários para o controle
eficiente dos contratos. Sem isso, abrem-se as portas para
a corrupção, dada a existência da transferência de recursos
públicos e a ineficiência no controle administrativo. A redu-
ção de custos e o aumento da eficiência podem não ser ne-
cessariamente alcançados. Do ponto de vista das relações
de trabalho, verificam-se a perda em salários e benefícios e
o enfraquecimento da organização dos trabalhadores.
A terceirização prejudica os trabalhadores de três
maneiras. As duas primeiras são decorrência direta da ter-
ceirização. A primeira é o remanejamento constante de
um setor recém terceirizado a outro, ainda pertencente à
PMSP, muitas vezes em unidades distintas e dispersas ge-
ograficamente, criando um clima de incerteza quanto ao
futuro e a impossibilidade de estabelecimento de relações
sociais duradouras e de planejamento de suas vidas. A se-
gunda é a dificuldade de adaptação de trabalho em setores
recém terceirizados, seja pela convivência com uma chefia
estranha à administração municipal, ou pelo trabalho lado
a lado com trabalhadores que muitas vezes são remune-
rados com padrões de vencimentos inferiores e em quan-
tidade muito menor que a necessária para o exercício da
função; isso acaba sobrecarregando ambos, trabalhadores
terceirizados e servidores públicos, acarretando no baixo
nível de rendimento e qualidade do trabalho. A terceira
maneira é a ausência de concursos públicos, que configu-
ra a não reposição de trabalhadores que se aposentam ou
por algum motivo saem do serviço público, sobrecarre-
gando aqueles que permanecem. Essa estratégia de não
contratação de servidores públicos é levada a cabo para

250 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


que, ao atingir um número mínimo de trabalhadores no
setor, este seja terceirizado, e os trabalhadores restantes
remanejados. Esses são alguns dos impactos negativos que
a terceirização vem causando no cotidiano dos trabalhado-
res de nível básico da PMSP.
Embora a terceirização possa trazer benefícios à
gestão, dependendo da forma como ela for realizada, ela
pode gerar transtornos para a instituição e, sobretudo,
para os trabalhadores. Somente por meio de um processo
de discussão e de negociação, que leve em consideração
a situação dos trabalhadores, é possível encontrar um ca-
minho seguro e justo para essa prática administrativa. To-
davia, as reformas consideradas “top down” são realizadas
sem nenhum critério de justiça social, pois visam apenas
resultados imediatos, eficiência e eficácia, muitas vezes em
detrimento da efetividade, entendida como a real mudan-
ça da situação inicial. Essa situação somente seria reversí-
vel se os trabalhadores afetados por tal prática utilizassem
de seu poder: a força das ações coletivas. (Palassi, 2006;
Macedo, 2009) Todavia, mesmo nesse contexto de precari-
zação de seu trabalho, os AA se alienam das ações coletivas
propostas pelo sindicato, de modo que sua voz não se faz
ouvir nas instâncias decisórias, e o resultado de tais deci-
sões, cada vez mais, contribui para a desqualificação e a
precarização de seu trabalho. Há um sentimento generali-
zado que se materializa na pergunta: Para que participar se
o que dizemos não ecoa, é apenas um ruído? Qual sentido
da palavra como elemento de equivalência e reconheci-
mento? (Rancière, 1996)

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 251


Consciência e participação política
entre os Agentes de Apoio

Ações coletivas desenvolveram-se por meio da vi-


sibilização, na esfera política, de demandas por reconheci-
mento de equidade e de direitos sociais, quando a relação
de subordinação mostrou seu caráter opressivo e o anta-
gonismo social. (Laraña, 1999) Destarte, o questionamento
acerca das relações hierárquicas mediante a realização de
ações coletivas só foi possível com a nova dinâmica social
do século XIX, que permitiu aos indivíduos reconhecerem
a historicidade das relações assimétricas respaldadas num
discurso naturalizador das posições sociais, desenvolvendo,
dessa forma, um processo de constituição de interesses co-
letivos, que evoluíram para a dimensão das identidades co-
letivas e possibilitaram a formação dos movimentos sociais.
Se, por um lado, a sociologia buscou entender o processo no
qual as ações coletivas visam disputar politicamente os es-
paços de significação do real, possibilitando que os sujeitos
reconheçam as relações de desigualdade e hierarquia que
foram construídas socialmente ao longo da história, por ou-
tro, a formação das identidades coletivas que possibilitam a
mobilização social para as ações coletivas foram objeto de
estudo da psicologia política. Esta buscou compreender são
os elementos que contribuem para a conscientização polí-
tica no campo individual, para que o sujeito reconheça os
elementos externos que influenciam e determinam as situa-
ções de desigualdades às quais ele está submetido.
Para Silva (2001, 2008), a consciência política se
produz na relação entre as esferas individual e coletiva.
Para que essa consciência política se configure como ele-
mento propiciador de uma ação coletiva para a luta pela
252 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)
equiparação dos direitos, é necessária a construção de uma
consciência política coletiva, que escapa da esfera indivi-
dual e se viabiliza na identificação política do grupo. Para o
autor, a consciência política não se refere e não se limita a
um conjunto de elementos que culminam nas ações cole-
tivas, mas estas são um momento da consciência política.
Ele aponta também para a necessidade de se entender os
motivos que levam as pessoas a participarem das ações co-
letivas. Para isso, faz-se necessário entender como estas
geram um sentimento de pertença e despertam a cons-
ciência política. (Sandoval, 1994; Silva, 2008) A participa-
ção revela um caráter pedagógico, uma aprendizagem, na
qual o próprio antagonismo pode ser percebido, por seu
caráter pedagógico, como uma forma de reconhecimento
de relações inconciliáveis. Participar é reconhecer-se na
coletividade. Participar não deve ser entendido como a
perda do indivíduo na massa, mas como o sentimento de
fazer parte; a participação no grupo é um elemento impor-
tante na produção da consciência coletiva, que se dá pelo
comprometimento com o público, com o bem-comum.
Entende-se, assim, o processo de participação
em ações coletivas como um elemento constitutivo da
consciência política, pois o próprio processo de participa-
ção contribui para o aprimoramento de uma consciência
fragmentada, ingênua. (Sandoval, 1994, 2001; Silva, 2001,
2011) Nesse processo, a estrutura do movimento social sob
o qual a ação coletiva é financiada e proporcionada colabo-
ra para a construção de uma consciência política coletiva,
de uma consciência política de classe. No modelo de San-
doval, “a relação entre o eu e a sociedade articula aspectos
micro e macro-sociais para compreender os processos e
dinâmicas de interação grupal envolvidos nas ações cole-
tivas”. (Silva, 2001, p. 95). Nessa perspectiva, a consciência

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 253


política é construída a partir dos elementos oriundos da
vida cotidiana, sendo mediada por instituições como famí-
lia, escola, igreja e os próprios movimentos sociais, além
do importante papel da mídia na construção de significa-
dos. A construção da consciência política é mediada pelos
processos de dominação, e sua transformação se orques-
tra por meio da interpretação e reinterpretação simbólica
das relações sociais e culturais. Dessa forma, o comporta-
mento consciente do sujeito se esboça pelo seu significado
do real e do simbólico, produzido e mediado pelo social de
modo que a não participação consciente é constituída por
essa trama psicopolítica, ou seja, os significados esboça-
dos pelo seu conhecimento social interferem na decisão de
participar, de modo que a formação da consciência política
se manifesta na reinterpretação desses significados.
A partir de um conjunto de elementos teóricos,
Sandoval constrói um modelo de estudos da consciência
política que busca entender a realidade concreta na qual o
sujeito está inserido, pois é ela que influencia a consciên-
cia política de um indivíduo particular, sendo as decisões e
escolhas realizadas por este indivíduo as questões centrais
na sua conscientização. Dessa forma, cada escolha e deci-
são revelam as possibilidades de análise das relações entre
cada elemento apontado, isso porque “a consciência po-
lítica não é uma mera escala aleatória de elementos, mas
antes organizada em modalidades de percepção da reali-
dade social as quais são passíveis de análise sistemática”.
(Sandoval, 1994, p. 61). Os termos participação e consciên-
cia política estão intimamente conectados e não devem ser
tratados isoladamente, de modo que o próprio conteúdo
que cada um deles expressa refere-se ao processo decisó-
rio de cada sujeito frente à possibilidade de participar e
permanecer participando em fenômenos coletivos. (San-

254 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


doval, 2001; Silva, 2001) Falar de consciência e participa-
ção política implica em uma conceituação semântica que
configura o quadro das oportunidades políticas nas quais
o sujeito se vê inserido. A análise conceitual que nos inte-
ressa diz respeito a uma possível inter-relação entre eles e
que se manifesta em um processo de produção social do
sujeito político e na superação das fronteiras que fragmen-
tam esse sujeito. (Prado, 2002)
De acordo com Prado (2002), o processo de mo-
bilização social para ações coletivas necessita que a per-
cepção individual de mobilidade social seja transformada
na idéia de mudança social. A mobilidade e a mudança so-
cial estão baseadas em pressupostos contrários, em que a
mobilidade social se respalda na noção de que é possível
se locomover entre os lugares societais, uma vez que se
acredita que existe uma flexibilidade e permeabilidade no
sistema, em que esse livre movimento depende de fatores
individuais, tais como: sorte, mérito, trabalho, talento, etc.
Por outro lado, a idéia de mudança social se respalda na
impossibilidade de um livre movimento entre as posições
societais, em que o movimento deve estar associado a um
processo articulado com o grupo de pertença e assumir ser
membro do grupo é o que permite o deslocamento grupal.
(Prado, 2002) A possibilidade de constituição de consciên-
cias política passa por identidades, estrutura de crenças,
interesses, valores e significados, a qual se concretiza de
modo mais estável, somente após a delimitação de fron-
teiras a partir da passagem das relações de subordinação
para as relações de opressão, de sorte que essas fronteiras
se colocam como impeditivos e/ou possibilidades na con-
quista de equivalência de direitos. Esse reconhecimento
configura-se por meio da antagonização das relações so-
ciais, quando é percebida a relação opressiva do outro, ou

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 255


do eles, que impede o gozo de direitos pelo nós ou pelo
eu. A consciência dessa relação antagônica e opressiva im-
prime ao indivíduo um comportamento político mediado
pelas oportunidades políticas que se lhe apresentam. (San-
doval, 2001, Silva, 2001)
Neste artigo, utilizaremos as sete dimensões do
modelo de Sandoval (2001) para analisarmos os discursos
de 5 AA entrevistados em novembro 2010 visando enten-
der o que pode levar à sua alienação dos processos políti-
cos que determinam suas condições de vida e de trabalho.
É possível verificar que os AA reconhecem a relação de
opressão e antagonismo que configuram a relação capital
vs. trabalho, sobretudo quando se encontram fragiliza-
dos pelas ações dos detentores do capital. Para além das
questões individuais, os entrevistados se reconhecem e se
identificam enquanto grupo, e sempre que se referem aos
demais, os identificam como “os AA”, incluindo-se neste
grupo. Curiosamente, ainda que tenham construído um
sentimento de pertença grupal, eles não verbalizam essa
pertença com o termo nós, mas sim com os. Esse fato pode
ser significativo se observamos que estamos tratando de
uma carreira surgida em 2003, há apenas 9 anos. Não se
assumir como um nós, mas como um os, revela a fragili-
dade dessa identidade grupal que ainda encontra-se em
construção. Vale notar que nessa categoria existem origi-
nariamente apenas 413 AA filiados ao sindicato. O questio-
namento que se faz agora acerca da participação política
desses indivíduos diz respeito à expectativa de sucesso que
as ações coletivas do sindicato proporcionarão ao grupo e
ao indivíduo, em que as possibilidades de sucesso e a mo-
bilização de recursos para tal empreitada são colocadas em
dúvida por eles.

256 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


Identidade coletiva

A identidade coletiva é uma importante dimensão


que nos revela como os trabalhadores se identificam com
seus pares e constroem certa solidariedade entre eles. Ela
gera um sentimento de pertença e reconhecimento, de re-
ciprocidade, nas suas relações de trabalho. Nos discursos
dos AA entrevistados, verificamos que eles são sensíveis à
situação de seus colegas. Esse é o caso de Rita que, se pu-
desse decidir sobre as condições de trabalho e qualidade
de vida dos servidores públicos, agiria em acordo com as
necessidades das suas companheiras de trabalho. Para ela,
mesmo estando descontentes, elas não deixam de fazer o
trabalho para não prejudicar outrem:

O que que eu faria? Primeiro eu ia tentar ver,


né, o lado das meninas. Porque eu acho que
ninguém está contente, entendeu? Mas tam-
bém isso não significa que ninguém maltrate
ninguém aqui, mas eu sei que nós não estamos
satisfeitas. [...] Às vezes falta funcionário e a
gente faz o serviço da gente e um pouco mais,
entendeu? Não é por isso que a gente deixa de
fazer, mas tinha que ter um incentivo.

Notamos que, mesmo com as questões que preju-


dicam e desmotivam a realização do trabalho, Rita sempre
se refere a um nós, um sujeito coletivo. Essa é a expressão
de um sentimento de pertença grupal que se identifica e
que age coletivamente. Tal percepção é reforçada por Ma-
ria, que se dispõe a participar das atividades do sindicato;
as pessoas que trabalham com ela não vão todas juntas,
pois elas não chegam a parar o trabalho e se revezam sem-
pre que há atividades no sindicato os AA, a fim de que o
trabalho não pare:

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 257


É porque não dá para ir todo mundo, sabe?
Porque não dá para parar, né? Porque aqui
também tem poucas pessoas que trabalham.
E o pessoal gosta de ir, agora a gente tem dois
representantes, eu e mais uma menina, quando
ela não vai eu vou.

Observamos, entretanto, que esse sentimento de


solidariedade se dá entre servidores em geral e não neces-
sariamente entre AA. A situação aparece na relação entre
chefia e subalternos, quando o assunto é a participação sin-
dical – isso quando a chefia é exercida por servidor público
concursado, que exerce função comissionada – e entre as
relações entre trabalhadores de cargos e níveis de escolari-
dade diferentes. No caso de Maria, não há problemas com
a chefia para participar das ações do sindicato, pois “ela não
acha ruim, ela gosta que a gente vai. Ela também é sindica-
lizada, é concursada da prefeitura então ela também é do
sindicato”. Mas embora percebamos que esse sentimento
de pertença grupal expresse uma identidade coletiva entre
esses trabalhadores, notamos também que as relações não
são equânimes e igualitárias, pois há uma forte cultura de
hierarquia que permeia as relações entre eles, dentro da
qual apenas as relações de solidariedade e companheiris-
mo podem se estabelecer, mas desde que todos saibam seu
lugar dentro do quadro de funcionários. Essa é uma relação
contraditória, pois não percebemos que os AA demonstrem
uma identidade entre seus pares do mesmo cargo, mas se
sintam parte de um grupo maior, que abrange todos os tra-
balhadores da PMSP. Ainda assim, os servidores públicos,
nessas relações, estão quase sempre em lugares sociais mais
baixos e de menor reconhecimento social. Entendemos, por
isso, que existe uma frágil identidade entre os AA, que pode
ser explicada pela curta existência desse cargo, o qual está
258 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)
inserido em uma carreira com um histórico contraditório e
prejudicial ao trabalhador e que, em razão da multifuncio-
nalidade, fragmenta a sua identidade profissional. Talvez a
resistência em aceitar o cargo e as situações subjacentes a
ele seja expressa tanto na falta de identidade com a carreira
quanto com seus pares.
As entrevistas também mostram a existência de
indiferença e antipatia em relação aos trabalhadores ter-
ceirizados, que desempenham as mesmas tarefas e fun-
ções que os AA. Eles são vistos como não pertencentes
ao grupo por não serem funcionários públicos. Assim, a
identidade coletiva se dá com os servidores públicos e
não entre trabalhadores que desempenham funções se-
melhantes. Os trabalhadores terceirizados são estranhos
aos AA, têm um caráter que os diferenciam e os põem em
risco. Ana diz achar péssimo o processo de terceirização
e é indiferente ao fato de haver quem tem vínculo empre-
gatício com empresas terceirizadas:  “Ai, para mim, que
aqui tem a menina que faz a limpeza aqui, que é o único
terceirizado que nós temos aqui, né? Para mim é indife-
rente.” João, por outro lado, deixa claro que os terceiriza-
dos são um outro, que poderia ser dispensado pela PMSP,
a qual deveria investir os recursos que aplica na contra-
tação dos terceirizados nos concursados: “eles podiam
pegar este salário que ia para pagar para eles da tercei-
rização, e eles podiam melhorar o salário do funcionário
público.” Essa identificação mais forte com os servidores
públicos em geral e não tão fortemente com a categoria
dos AA acaba fragilizando as ações coletivas, pois, mes-
mo dentro do quadro do funcionalismo, existe uma série
de agrupamentos políticos que se articulam em torno do
cargo e do nível de escolaridade. As divisões e subcate-
gorias fragmentam a identidade coletiva dos servidores

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 259


públicos, pois os trabalhadores acabam se ocupando ape-
nas com suas questões e problemas específicos. No caso
dos AA, essa fragmentação é ainda mais nociva, pois a
negação pelo cargo e a fragilidade da identidade coleti-
va em relação aos companheiros de mesmo cargo podem
ser desmobilizadoras e enfraquecerem as ações coletivas.

Crenças e valores societais

Contribuindo para esse quadro de desmobili-


zação social existe certa convergência entre as crenças
e os valores societais em relação ao sindicato. Quando
questionados sobre como avaliam as ações do sindicato
ou sobre o que esperam do sindicato que os represen-
ta, existe quase uma unanimidade sobre as suas ações.
A crença que fora construída sobre a corrupção e a frau-
de da diretoria dos sindicatos na negociação coletiva se
apresenta também nessa categoria profissional. Mesmo
diante de um sindicato que não recebe imposto sindical
e que vive das contribuições de seus filiados, existe uma
crença muito forte (presente em todos os discursos) de
que a direção do sindicato vende a negociação coletiva,
ou seja, fecha um acordo dentro dos interesses do em-
pregador em troca de benefícios pessoais aos membros
da direção do sindicato. Rita afirma categoricamente que
os diretores do sindicato são corruptos:

Porque ai, sindicaliza, porque não sei o que, por-


que o sindicato é bom e o sindicato faz, mas na
verdade o sindicato não faz nada para os fun-
cionários. Porque eu acho assim, que eles luta,
luta, ai chega alguém lá e fala assim: olha se
você parar de lutar eu dou tanto, ai eles ficam

260 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


quietinhos, entendeu? A minha opinião, então
eu não sou sindicalizada. A gente percebe muita
coisa, tem muita coisa errada. E eu acho assim
que não adianta. Tudo bem, é 15, 20 reais, mais
eu não vou ficar dando dinheiro para alguém
que não faz nada pela categoria. O pessoal luta,
luta e luta porque quer aumento, ai eu não sei o
que acontece, porque alguém deve oferecer al-
guma grana, e daí o sindicato não faz nada. Que
já aconteceu, no final do ano passado, era para
a gente ter um abono de 300 reais, e eu não sei
o que aconteceu, e esse abono só saiu para o
pessoal da câmara municipal, sindicato não se
falou mais no assunto.

Essa crença que se generalizou em torno dos cha-


mados sindicatos “pelegos”, aqueles que pertenciam (no
sentido de propriedade) aos interventores colocados du-
rante o Estado Novo e também durante o regime militar
e que tinham a atribuição de descaracterizar a atividade
sindical de luta e de conquista de direitos transformando o
sindicato em uma entidade que fornecesse assistência aos
seus associados. Esse sentimento de ineficácia política das
ações sindicais contribui ainda mais para uma sensação
de desconfiança e descrédito das suas ações. Crê-se que
o sindicato é uma entidade autônoma, algo que está para
além do trabalhador, o qual não se vê como parte do sin-
dicato, mas como alguém que deveria ser tutelado por ele.
Crê-se que o sindicato é um espaço de manipulação e de
corrupção. Desconfia-se das ações coletivas realizadas por
ele. É significativa a visão de Rita sobre o sindicato: “eles
dizem que é para ajudar os funcionários, que é para lutar
por coisas melhores, mais na verdade não é nada disso”.
Esse eles também está no discurso de Ana sobre o que o
papel do sindicato: “Eu não sei porque eu não sou sindi-
No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 261
calizada, entendeu? Então eu não sei o que acontece. Eles
fala, fala, e a gente não vê nada, sabe? Eu não acredito
mais, eu não gosto nem que fale perto de mim, ai não fala.”
Essa percepção do sindicato como uma instituição autôno-
ma, dissociada dos trabalhadores, também é verificada no
discurso de João:

Não, eu sei que... tem, tem, só que infelizmente


como o sindicato é medroso, que teria que bri-
gar pelo aumento, e nós estamos brigando por-
que já tem quase 20 anos que não tem aumento
e o SINDSEP tá brigando por isso mas não está
conseguindo nada.

No discurso de João existe um nós muito frágil,


pois mesmo participando das ações coletivas ele não se
reconhece como parte do sindicato; o sindicato aparece
como um ator que representa os seus interesses, um lu-
gar em que ele vai para apoiar as reivindicações, até por-
que as conquistas o beneficiariam. Não se percebe um
sentimento de pertença ao grupo, a uma classe social.
Até mesmo Maria, que é representante sindical de unida-
de, percebe o sindicato como uma instituição dissociada
dos trabalhadores, apesar de ponderar que o sindicato só
conquista efetivamente suas reivindicações com a mobili-
zação dos trabalhadores:

Porque o sindicato eu acho que faz muito assim:


pega uma parte, esquece a outra, sabe? Não é
aquela luta, assim muito boa. E também, os fun-
cionários não é muito assim, de luta. Então tem
as duas partes. Porque as vezes sozinho eles
não faz muita coisa também, né? Se a gente não
participa muito. Você quer uma coisa para você,
então aquela categoria vai, ai a outra categoria,

262 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


por exemplo, o pessoal da escola, quer uma coi-
sa vai e conquista, ai o agente de apoio fica de
lado. O agente de apoio quer uma coisa, mas já
é mais fraco, já quase não vai, não participa.

As crenças em relação ao que deveria ser (e não é)


a atividade sindical é um elemento importante de desmo-
bilização e parece ser um elemento de desmobilização para
as ações coletivas. Ainda assim, os entrevistados, mesmo
expressando essas crenças, mostram alguma aproximação
com o sindicato, em algum momento, como uma expecta-
tiva política. Essa aparente contradição entre as crenças e
valores que desqualificam a ação sindical, a participação e
a busca por alguma solução para as suas questões dentro
da atividade sindical revela um traço importante da consci-
ência política: a vontade de agir coletivamente, conforme
será analisado abaixo. Deve-se ressaltar, entretanto, que
percebemos que esses trabalhadores incorporaram peri-
gosamente os valores dominantes, sobretudo a idéia de
que existe sempre alguém disposto a tutelá-los, alguém
que é mais instruído, mais preparado. Essa é uma situação
que parece ser reforçada pelo cargo que ocupam dentro
de uma estrutura altamente hierarquizada, em que o lu-
gar social que lhes toca tem pouca significação social. A
incorporação desse lugar social pelos AA tem como efeito
um sentimento de que eles não têm condições de serem
sujeitos da própria ação e precisam de um outro que os
tutele e os diga como e quando agir. No caso da ação sin-
dical, isso revela que a desmobilização para as ações co-
letivas se respalda no sentimento de que este outro por
não ser um bom tutor não merece a sua confiança. Seria
preciso superar essas crenças e valores societais por meio
da conscientização para que esses sujeitos percebam que

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 263


podem superar seu desconhecimento das questões mais
técnico-administrativas e que podem ser sujeitos de sua
história e de sua ação.

Identificação de adversários e interesses antagônicos

Identificação de adversários e interesses anta-


gônicos é a dimensão que revela como os entrevistados
percebem o campo político e seus atores. Nesse sentido,
os servidores não sentem que os governantes têm inte-
resses divergentes dos seus. Esse sentimento é peculiar
dos trabalhadores do serviço público, pois os trabalhado-
res da iniciativa privada sabem e sentem que um eventual
aumento no seu poder aquisitivo tem impacto direto no
lucro da empresa, que pode ser diminuído ou repassado
ao preço dos produtos. No setor público, não parece que
haja a percepção de que uma eventual melhoria na remu-
neração dos servidores significaria menor quantidade de
recursos para o custeio de outras políticas públicas ou au-
mento da carga tributária. Parece que, no imaginário dos
servidores, a sensação de que a melhoria de sua qualida-
de de vida não se choca com o interesse dos governantes
como se chocaria com os interesses da iniciativa privada.
Essa sensação pode influenciar a disposição do servidor
de lutar pelos seus direitos, pois pode não enxergar no
governante alguém que disputa os recursos, como os pa-
trões na iniciativa privada.
Não é claro para eles que existe interesse do gover-
nante em aumentar as receitas para a execução das políticas
públicas, tendo em vista seu compromisso com a população,
seus valores ideológicos e, sobretudo, seu interesse em rea-
lizar políticas públicas que deixem uma marca de seriedade,

264 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


compromisso e eficácia pessoal e de seu partido em vista
de seus interesses político-eleitorais. Não obstante, os AA
entrevistados mostraram uma grande expectativa de que os
governantes, que eles consideram ser responsáveis por suas
condições e vida e de trabalho, sejam generosos e façam
algo que melhore suas vidas. Segundo João:

O Kassab que é o prefeito, o vice lá que é a Alda.


Eles podiam pegar e falar assim: vamos pegar
o salário dos terceirizados e vamos melhorar os
salários dos funcionários. Que é o que não acon-
tece, né? Eles preferem pegar quem vem de fora
do que aumentar o nosso salário.

Essa afirmação de que o prefeito, se quisesse, po-


deria utilizar os recursos gastos com esses trabalhadores e
aumentar a remuneração dos funcionários públicos, não
identifica que os interesses do governante é diminuir os
custos com pessoal, quando contrata empresas terceiriza-
das, e que a economia realizada se reverteria a outras po-
líticas públicas. Não se percebem os interesses divergentes
dos seus, mas apenas a expressão de uma vontade. Além
disso, a identificação do adversário muitas vezes mostra-se
bastante ingênua, como no discurso de Ana, para quem a
mudança está não mão da pessoa do prefeito: “é o prefeito,
é ele que paga o meu salário. É ele que devia ter dó da gen-
te e fazer alguma coisa, né?”. Existe, mais uma vez, a neces-
sidade de que outrem faça algo por ele, como se isso de-
pendesse exclusivamente de um sentimento de bondade e
compaixão, sentimentos que apontam em sentido oposto à
vontade de lutar e conquistar. Alguns entrevistados desco-
nhecem um elemento básico de sua vida profissional: seu
vínculo empregatício. Embora no cotidiano do trabalhador
não gere grandes implicações na sua vida, toda a estrutu-

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 265


ra legal de direitos e deveres dos trabalhadores do setor
público depende do seu vínculo empregatício. Muitos ini-
ciaram antes da constituição de 1988 e não eram efetivos.
Sem a realização de concursos públicos, seus contratos fo-
ram sendo prorrogados e sua situação temporária passou a
ser permanente. Esses trabalhadores começaram uma luta
junto ao sindicato para conquistar a estabilidade no em-
prego, a qual foi alcançada na gestão de Marta Suplicy. Tal
conquista estendeu-se a todos os admitidos não estáveis.
Nesse caso, o desconhecimento do vinculo empregatício,
tão importante para a garantia de seus direitos, a definição
de suas remunerações, o regime de aposentadoria, entre
outras questões, mostra como o sindicato está distante e
acaba figurando como um adversário dos interesses dos
servidores. A conquista da estabilidade via sindicato não
está presente na memória política desses trabalhadores.
Essa situação, de desconhecimento dos próprios direitos,
bem como das normas e regras próprias do serviço públi-
co, contribuem para que muitos dos problemas vividos por
esses trabalhadores não tenham um motivo aparentemen-
te visível. Não havendo a identificação das raízes de alguns
problemas, tampouco se identificará culpados pela situa-
ção, ou seja, não se percebe claramente um adversário ou
interesses que sejam antagônicos aos seus.

Sentimento de eficácia política

O sentimento de ineficácia política parece-nos


ser um dos principais motivos de desmobilização política
dessa categoria. Existe uma forte descrença em relação à
atuação do sindicato, muitas vezes chegando ao descrédito
e à desconfiança. Nas entrevistas é visível o sentimento de

266 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


baixa eficácia das ações patrocinadas pelo sindicato como
o principal elemento desmobilizador. Os AA têm a expec-
tativa de que as ações coletivas conquistem as reivindica-
ções, mas é fortemente presente nos discursos a sensação
de frustração em relação à atuação sindical. Nos discursos
analisados existe um sentimento de que as reivindicações
poderiam ser conquistadas caso houvesse grandes mobili-
zações, mas a contribuição do sindicato não ajudaria nisso.
Ana sintetiza esse sentimento quando diz:

Não, eu acho que a ação quem faz são os servi-


dores, entendeu? Que vai lá, que briga, porque
se não for os servidores, eles não conseguem
nada, senão era só eles irem lá e conseguirem,
né?A gente não precisava sair daqui e ir para
lá, tomando sol, tomando chuva, apanhando,
como eu já vi, você entendeu, lá na câmara o
pessoal apanhar. Eu acho que não precisava dis-
so, eu acho que não, porque se eles fossem for-
te mesmo, a gente conseguiria. [...] Porque os
cara não é bobo, eles vêm todo mundo unido,
eles não são bobo, político não é bobo, bobo é
nós que vota neles, ele não são bobo. Quando
ele viu todo mundo unido e não ia sai dali en-
quanto não saísse alguma coisa, ai eles fizeram.
Por isso que eu acho que o sindicato para mim
não resolve nada. Eu to cansada de vai lá, vai lá,
vai lá e eles não resolvem nada. Agora quando o
funcionário vai, ai sim resolve.

Existe uma enorme assimetria de informações en-


tre o sindicato, a prefeitura e os próprios trabalhadores. A
desinformação e a manipulação da realidade pareceu-nos
ser um fator decisivo no sentimento de (in)eficácia política
desses trabalhadores. As regras e critérios que definem as
relações de trabalho, as formas de remuneração, as possi-
No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 267
bilidades de carreira, as condições de trabalho entre outras
questões estão definidas em legislações variadas e ampla-
mente dispersas, variando desde a constituição federal até
aos decretos municipais. A hierarquia entre as normas, as
possibilidades de mudança e governabilidade de interven-
ção do sindicato e dos trabalhadores, além da própria inte-
ligibilidade da norma, das regras e dos critérios nelas cons-
tantes, estão fora do repertório de conhecimento desses
trabalhadores. Essa complexidade toda gera uma enorme
ausência e distorção das informações, sendo completamen-
te incompreensível para o trabalhador o universo de discus-
sões dentro do qual o sindicato está inserido. Exemplo disso
é o cargo largo, pois a adesão a ele implicava mudanças na
remuneração dos trabalhadores. A esse respeito Rita diz:

Eu fui lesada, porque eu ganhei uma ação na


prefeitura... a época do Pitta e do Maluf, que não
vem ao caso, mas ai eu ganhei um processo, e ai
eu fui e quando eu fiz esta reestruturação, meu
salário era X, e ao invés dele ser Y, ele voltou, ele
diminuiu, ele não aumentou. E outra coisa, eles
falaram, na época, que se estivesse a reestru-
turação, mesmo aqueles que teriam ganhado
as ações, não iriam sair prejudicados, e foram.
Eu fui prejudicada, tem gente que o salário era
para estar mil e duzentos reais e na verdade ta
quinhentos reais. Isso, a prefeitura falou que os
funcionários não iam ser prejudicados e nós fo-
mos. Eu fui, porque teve gente que não assinou
esta reestruturação e que depois ganhou o pro-
cesso e o salário foi para quase mil e quinhentos
reais, agente de apoio, e quem aderiu e teve a
ação ganha, foi para quinhentos reais. Você não
acha que foi prejudicado? Com certeza, imagi-
na. [...] o sindicato, já que ele é a favor do fun-
cionário, o que eles deveriam ter feito? Ter avi-

268 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


sado: olha, vocês não assinem o plano de cargos
e carreiras, porque para vocês não vai ser bom,
principalmente para quem tem ação ganha na
prefeitura, ta ta ti ta ta ta. E ninguém avisou ab-
solutamente nada. Vieram meninas aqui falar,
muito tempo depois, ai apareceu o pessoal do
sindicato aqui e a gente conversou, ai eles não
sabem o que conversar. Eles não têm uma coisa
certa: olha faz isso isso isso que vai funcionar.
Não, eles não falam.

Diante desse quadro, prevalece como verdadeira


uma versão da história que muitas vezes é criada (com viés
político ou não) e difundida entre os espaços de conversa
e discussões informais. Além disso, a percepção real sobre
os efeitos da remuneração sobre o seu poder de compra,
bem como a qualidade de vida no trabalho e o reconhe-
cimento social do mesmo acabam sendo balizadores das
ações políticas (coletivas ou não) que foram mobilizadas
dentro do universo sindical. Há uma série de considerações
que deslegitimam a ação sindical e que podem explicar os
motivos do fracasso das ações coletivas. Entre elas está
uma série de acusações ao sindicato, um sentimento de
que alguém ou alguma entidade, que não ele mesmo, é
responsável pela sua situação. Não há o reconhecimento
de que sua decisão individual de participar, aderir (ou não),
implica no resultado da ação ou de que sua participação
está condicionada pelo respaldo que outrem dará ou não
a si. Ana tem a sensação de que o SINDSEP não garante
que a adesão às ações coletivas não implicará em sanções
de caráter individual. Para ela, outros sindicatos oferecem
esta garantia e isso motiva:

Os professor, por isso que eu falo, porque têm o


sindicato atrás. Os funcionários não param por
que, porque têm medo de exoneração, de parar

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 269


e depois sobrar para eles, você entendeu? O sin-
dicato não vai segurar a bronca para o funcioná-
rio. Fecha tudo isso aqui, ai chega na secretaria
lá e exonera quem não foi trabalhar, o sindicato
vai lá limpar a gente? Vai nada, ele não vai ter
força. A gente vai para a rua, tem a menina aqui
que ela foi exonerada uma vez, e o sindicato fez
alguma coisa? Não, ela teve que correr atrás de
político para ela poder voltar.

Se por um lado essa sensação deriva de uma ne-


cessidade de segurança em relação às possíveis represálias
à sua participação em uma ação coletiva, por outro apare-
ce com muito mais força uma sensação de passividade e
ineficiência de sua própria ação, enquanto sujeito da histó-
ria, enquanto sujeito que pode interferir nesse processo e
alterar essa situação.

Sentimento de justiça e injustiça

Ao se buscar referencias sobre os sentimentos de


justiça ou injustiça, encontrou-se a expressão daquilo que
tem sido o efeito de sucessivas ações de precarização do
trabalho na vida desses trabalhadores. Embora existam per-
cepções gerais acerca da situação precária em que se encon-
tram os servidores públicos, os entrevistados expressaram
uma série de reclamações acerca das condições de trabalho,
sendo preponderante as reclamações relativas à remunera-
ção. Existe uma sensação geral de que a remuneração do
servidor público, e do agente de apoio, especificamente,
está muito aquém do que seria necessário para a satisfa-
ção de suas necessidades. A principal injustiça sentida pelos
AA é, de fato, o plano carreira que criou o cargo largo. Rita

270 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


expressa este sentimento a partir de uma situação em que
ela se sentiu lesada, se sentiu enganada pela prefeitura: “E
outra coisa, eles falaram, na época, que se estivesse a rees-
truturação, mesmo aqueles que teriam ganhado as ações,
não iriam sair prejudicados, e foram. Eu fui prejudicada [...],
a prefeitura falou que os funcionários não iam ser prejudi-
cados e nós fomos. Eu fui [...]”. Ana, embora não tenha sido
prejudica pela reestruturação da carreira, em relação a essa
questão específica das ações que foram movidas pelos ser-
vidores públicos contra a prefeitura nos anos 1990, por ra-
zão da não observação da lei salarial, percebe que muitos de
seus pares AA foram prejudicados e se solidariza:

Igual aqui, tem gente que ganhou ação, né? Ai,


quer dizer não vem incorporado. O certo era vir
incorporado lá em cima, mas não vem incorpo-
rado, mas não vem, vem separado. Ai se você se
aposentar você não leva aquilo, você perde, sen-
do que é um direito que você adquiriu. Como que
você perde quando você se aposentar? Você en-
tendeu? Só disso daí a gente já perdeu, e quem
ganhar a ação agora, não vai levar, ninguém leva,
vai ficar, e é um direito da gente, né?

Além dessa percepção de injustiça em relação à


reestruturação na carreira, em todos os discursos analisa-
dos há expressão de um sentimento de injustiça, quando
os entrevistados expressam suas queixas em relação às
suas condições de vida e de trabalho, como Rita, que fala
tanto da remuneração em si, quanto da forma como os
AA são tratados:

Ah, porque o nosso salário caiu, a gente não


consegue mais aumento, a gente não conse-
gue mais nada, a gente só consegue exigência,

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 271


sabe? A gente não consegue mais nada. O nosso
salário ta assim, um salário de fome. Agente de
apoio faz tudo. A gente faz de um tudo, e con-
tinua mesma coisa. O agente de apoio, a gente
nunca foi valorizado, tipo biblioteca, quem tinha
que atender, são os ATAS, e quem atende agora?
É o agente de apoio, você pode ir em todas as
bibliotecas, quem atende ali é agente de apoio.
ATA fica ali dentro da salinha ali, você entendeu?

Notamos que a partir desse sentimento de in-


justiça, a não ocorrência e perspectiva de uma mudança
nesta situação, pela via política e coletiva, e tampouco em
função de uma melhoria da gestão que partisse da própria
prefeitura, reforça as manifestações de busca por alternati-
vas individuais. Ana afirma que esse sentimento de injusti-
ça é tão grande que a sua vontade é sair da prefeitura, uma
expressão que ressoa, segundo ela, por todos os AA:

Ah, eu não vejo futuro, não vejo possibilidade


nenhuma, estou tão desgostosa com a prefei-
tura, sabe? Eu quero ver, que eu estou estu-
dando que nem uma louca que ano que vem
eu quero prestar concurso, quero sair fora,
sabe? Mas tem muito funcionário que já está
velho, a maioria é assim: ai já vou aposentar. E
vai deixando para lá, sabe? Vai deixando para
lá, as cobranças cada dia é mais, entendeu,
eles exigem um montão de coisas, mas não te
dá uma estrutura para você.

Por fim, embora haja um sentimento de injustiça


em relação à situação específica vivida pelos AA, não se
percebe que esses trabalhadores achem injusta a situação
e condição de trabalho que a sociedade capitalista e a or-
ganização do trabalho nessa sociedade proporciona. Isso
272 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)
nos leva a pensar que, a despeito de sua situação de tra-
balho específica, não existe na consciência política desses
trabalhadores a percepção de que a sociedade se organiza
em função de processos históricos e políticos, moldados e
reproduzidos pela ação dos atores sociais presentes nessa
sociedade. O trabalho assalariado, a venda da força de tra-
balho e as relações subjacentes a ele parecem ser natura-
lizados. Um bom exemplo encontramos na fala de Maria:

Trabalhar menos, ter um salário melhor, uma


qualidade de vida melhor. Não, eu acho que
trabalhar menos não, porque a gente trabalha
oito horas, que é o que a maioria das pessoas
trabalham, né? Eu acho que o tempo até que ta
bom para trabalhar, eu acho que o que tem que
trabalhar mesmo é salário.

Essa negação é importante para refletirmos so-


bre como as concepções hegemônicas do mundo estão
presentes na consciência dos trabalhadores, pois mesmo
sentindo injustas uma série de questões relacionadas ao
trabalho na sociedade capitalista, os trabalhadores não se
sentem no direito de questionar essas questões, que pa-
recem estar para além de qualquer vontade humana. No
caso dos AA, essa reflexão reforça a nossa percepção de
que eles não se sentem no direito de questionar a reali-
dade e que se a organização do trabalho e da vida hoje é
assim é porque assim é que deve ser.

Metas da ação coletiva

Do ponto de vista da percepção dos trabalhado-


res acerca das metas da ação coletiva, não existem grandes
expectativas ou frustrações, pois precede a essa questão a

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 273


sensação de eficácia política. Os entrevistados buscam uma
alternativa individual para a mobilidade social, seja fazendo
cursos, prestando outros concursos ou até mesmo na possi-
bilidade de abandonar o serviço público. João e Rita estão se
preparando para realizar um novo concurso público; Maria
e Ana aguardam pela aposentadoria. Maria já poderia ter se
aposentado, mas espera que haja evolução funcional para
se aposentar com uma remuneração melhor.
Alguns entrevistados constatam que seus com-
panheiros de trabalho já estão próximos à aposentadoria
e que por não vislumbrarem mais a construção de uma
outra forma de vida a partir da atividade profissional, não
aderem às ações coletivas. O fato de haver muitos servi-
dores em idade próxima à aposentadoria torna as ações
coletivas e suas metas menos atrativas aos trabalhadores,
que já não têm grandes expectativas em relação à mu-
dança de condições de vida. Ressaltamos que essa falta
de perspectivas em relação à carreira profissional parece
ser bastante importante para a não adesão às ações co-
letivas patrocinadas pelo sindicato, pois as dificuldades
e os problemas enfrentados por essa categoria são tão
amplos, que uma luta que resolva questões pontuais e
específicas já não atraem à participação. Talvez apenas
uma grande reivindicação, que mude estruturalmente
as relações de trabalho, ou que tenha impactos diretos
e imediatos em suas economias lhes poderia ser atrati-
vo. Parece haver uma relação direta entre as metas da
ação coletiva e sua desmobilização política. Além disso, o
próprio sentimento de ineficácia política, quaisquer que
sejam as metas da ação, contribui para desmobilizá-los.
Nenhum dos entrevistados demonstrou algum tipo de
empolgação ou motivação em participar das atividades
patrocinadas pelo sindicato em função daquilo que ele

274 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


propunha. Isso nos mostra que o sindicato parece estar
enfrentando aquilo que concerne ao estabelecimento de
metas que se mostrem capazes de mobilizar seus filiados.
A situação é justamente a inversa; mesmo as
questões pontuais e especificas, de menor complexida-
de política e com maiores chances de serem conquista-
das não estão sendo conquistadas. Essas conquistas não
acontecem pelo próprio fato da categoria estar desmo-
bilizada, situação reforçada por não se sentirem atraídos
pela metas da ação coletiva, e na medida em que as rei-
vindicações não vão sendo conquistadas, se amplia a sen-
sação de ineficácia política.

Vontade de agir coletivamente

Em todas as entrevistas há uma vontade de parti-


cipar de um movimento que seja vigoroso e consiga atingir
os resultados esperados, mas também há uma preocupa-
ção com a baixa adesão de seus pares no sindicato; isso foi
apontado como um dos principais motivos para a ineficácia
de suas ações. Exceto Maria, todos os demais culpam o sin-
dicato pelo ceticismo dos funcionários públicos e também
o responsabilizaram pela baixa capacidade de articulação
entre os trabalhadores. Isso parece reforçar a idéia de que
o sindicato, visto como esse outro, não tem cumprido o
papel de um bom tutor. Tentando buscar paralelos com ou-
tros sindicatos, Rita expressa o sentimento geral dos AA:

Eu to cansada de vai lá, vai lá, vai lá e eles não


resolvem nada. Agora quando o funcionário vai,
ai sim resolve. O único que eu vejo que resol-
ve alguma coisa é o sindicato da educação, a
APEOESP. Eu acho aquele sindicato ali super dez,

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 275


entendeu? Tanto que o pessoal, os professores
confiam no sindicato. Eu acho que para dar cer-
to tem que confiar, porque quando você não
confia, não dá certo. E eles confiam por quê?
Porque eles confiam no sindicato, o sindicato é
forte, né, as pessoas que dirigem o sindicato são
fortes. Eu acho assim, eles falam, vamos parar,
os professores confiam por que de parar, por-
que sabem que atrás deles tem um sindicato
bom que vai segurar a bronca. Aqui a gente sabe
que se o sindicato mandar parar a gente não vai
parar, por que? Porque a gente sabe que é capaz
da gente ser exonerado e o sindicato não fazer
nada. Eles podem até fazer, mas não vai conse-
guir. Não vai conseguir, você entendeu, eles che-
gam lá no prefeito e o Kassab vai falar assim, ai é
esse sindicato aí, então deixa para lá.

Apesar disso, não sabemos se o paralelo com ou-


tro sindicato expressa um anseio de se aderir a um mo-
vimento respaldado tanto nas conquistas quanto nos
instrumentos de defesa em eventuais ônus que individu-
almente esses trabalhadores poderiam sofrer, ou se isso
é um subterfúgio dos entrevistados para justificar a não
participação. Porém, é fato a identificação de uma relação
de classe em que o conflito exposto esteja prejudicando
a sua condição de vida. Embora haja adversários identifi-
cáveis, a vontade de agir coletivamente frente a eles em
busca de um objetivo, seja ele qual for, é frágil. As metas da
ação coletiva não influenciam diretamente na participação
política desses trabalhadores, que acaba sendo mitigada
pelos meios que eles identificam para a participação nes-
sas ações. A ação sindical acaba sendo vista com ressalvas
e desconfiança, mas não é possível identificar que exista
uma vontade de agir coletivamente, embora possamos

276 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


identificar com mais clareza uma disposição política. Isso
pode ser explicado, talvez, pela idéia de mobilidade social
presente em seus discursos, pois claro está que buscam
uma alternativa individual para a mudança social. A von-
tade de agir coletivamente identificada nessas entrevistas
revela a disposição não de lutar por um objetivo comum,
que beneficie a um grupo, mas de aderir a um movimento
somente na medida em que ele seja capaz de resolver seus
problemas e questões individuais.

Considerações finais

Em certa medida, a expressiva participação dos


trabalhadores da PMSP ocorreu em torno da possibilidade,
ilusória, de aumento monetário quando das mobilizações
para as campanhas salariais da década de 1990. Mas a par-
tir da estabilização econômica em meados da década de
1990, os índices inflacionários foram reduzidos, e os rea-
justes salariais acompanharam essa redução; a questão sa-
larial muitas vezes não se fez visível, da mesma forma que
nos tempos de alta inflacionária. O movimento sindical tem
sentido o peso dessa mudança na hora de mobilizar essa
categoria. Mas a reforma administrativa também é um fa-
tor agravador da mobilização dos AA. No âmbito da análise
da consciência política verifica-se, portanto, um sentimen-
to de ineficácia política em relação ao sindicato e de fragili-
dade identitária em relação ao pertencimento ao sindicato
por parte desses trabalhadores. A conscientização política
esboça-se por meio da educação e da formação política,
tendo um papel fundamental no processo de mobilização

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 277


para as ações coletivas. Certamente, a capacidade de mo-
bilização é central para um sindicato, mas quando ela não
se verifica, mais central é a atitude de auto-análise que ele
deve ter acerca de suas práticas. E esse parece ser o caso
no que tange às relações do sindicato com os AA.
Recursos materiais, simbólicos e econômicos re-
queridos para o processo de conscientização política exis-
tem em abundância, mas nos parece que não estão sendo
utilizados de maneira adequada ou efetiva pelo sindicato,
de modo que os resultados ainda são insuficientes ante a
realidade sócio-econômica desses trabalhadores. Por es-
tarem alocados em setores considerados não estratégicos
pelo Estado, as áreas de manutenção, limpeza, serviços
gerais, zeladoria, segurança, etc., são trabalhos que estão
sendo gradualmente transferidas à gestão da iniciativa pri-
vada, sob a forma de terceiro setor. Não obstante, verifi-
ca-se que o quadro de lotação de pessoal encontra-se in-
completo devido à ausência de contratações, em contraste
ao grande número de trabalhadores que se aposentam.
Os cargos “abertos” pelas aposentadorias são preenchidos
pelas terceirizações, revelando uma situação precária de
excesso de trabalho e convivência entre trabalhadores da
iniciativa privada e servidores públicos. Muitos AA denun-
ciam o descompromisso das empresas contratadas com a
qualidade do serviço prestado para o cidadão, bem como
a incapacidade dos gestores em administrar os quadros de
pessoal, alienando-se da responsabilidade sobre os servi-
ços prestados pelos terceiros.
Além do processo de terceirização, verifica-se ou-
tro elemento oriundo das reformas administrativas impe-
tradas no município de São Paulo: a criação do chamado
“cargo largo”, que foi instituído sob a argumentação de que
é possível manipular o quadro de pessoal de acordo com

278 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


os interesses da administração, possibilitando aos gestores
racionalizarem a administração pública, fornecendo um
melhor serviço ao cidadão. A questão que se coloca não
é contrária a tais objetivos, mas sim a forma como os indi-
víduos são tratados. Esses sujeitos, ao serem aglutinados
na mesma função, perderam a identidade profissional que
nutriam enquanto trabalhadores, bem como o status so-
cial que possuíam. Esse processo criou um profundo des-
contentamento entre eles.
Todos esses fatores estão fortemente presentes
na consciência desses indivíduos; os discursos dos AA
sempre apontam no sentido de que estão sendo prejudi-
cados por esses elementos e, apesar de reconhecerem a
impossibilidade de mobilidade social dentro desse qua-
dro, ou seja, cerceamento do sistema, ainda assim alguns
deles buscam alternativas individuais para a satisfação de
suas necessidades. Dessa forma, verificamos que mesmo
tendo ciência de sua situação e a consciência política ne-
cessária para mobilização social para as ações coletivas,
os AA se mantêm alienados dos processos políticos or-
ganizados pelo sindicato. Essa situação esboça a necessi-
dade de um trabalho de educação política que evidencie
não apenas os elementos que prejudicam sua qualidade
de vida e sua condição de trabalho, que eles conhecem
de maneira fragmentada, mas os caminhos pelos quais
existe a possibilidade de mudança social por meio da
produção social de sujeitos politicamente conscientes.
A relação entre mobilidade e mudança social nos pare-
ce ser um traço importante na adesão dos trabalhadores
às ações coletivas. Uma vez que as ações promovidas ou
patrocinadas pelo sindicato não têm surtido os efeitos es-
perados pelos AA, os quais não conseguem melhorar sua
condição de vida, esses indivíduos buscam as alternativas
mais viáveis para a satisfação de suas necessidades, qua-
se todas de caráter individual.
No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 279
Nesse sentido, as manifestações de desconfiança
em relação à atividade sindical evidencia que as ações rea-
lizadas, bem como seus desdobramentos, não estão sendo
plenamente compreendidas pelos trabalhadores. Uma vez
que as oportunidades políticas de participação nas ações
coletivas se mostram ineficazes e infrutíferas a esses traba-
lhadores, eles buscam as alternativas possíveis, como ou-
tra atividade profissional por meio da realização de concur-
so público ou a expectativa de que a situação melhore, por
algum motivo. Em consonância a isso, o fato desses tra-
balhadores ocuparem lugares sociais estigmatizados, criou
neles a sensação de que não têm condições de avaliar a
sua própria vida e dizer como ela deveria ser melhorada. A
falta de formação em sentido geral, de entendimento dos
processos históricos e políticos, reforçam essa percepção.
Ocupar esse lugar social torna esses trabalhadores reféns
das instituições e dos atores sociais que dizem o que eles
devem ou não fazer, o que eles merecem ou não. A difi-
culdade em dar significados às dimensões técnicas dessas
discussões e contra-argumentar nesses termos fragiliza
a sua própria percepção a respeito da sua capacidade de
decidir sobre a sua própria vida. Caberia ao sindicato po-
litizar a discussão e colocar o debate em um nível de sig-
nificação do real para que esses trabalhadores pudessem
se apropriar das discussões e ressignificar suas ações, mas
percebemos que o sindicato não tem conseguido dar essas
respostas aos trabalhadores. A desinformação e a dificul-
dade de entendimento a respeito dos temas de discussões
evidenciam a situação.
Seria importante refletir sobe o lugar que o sindi-
calismo está ocupando na atualidade, uma vez que a sua
institucionalização e burocratização transformou-o em
uma figura isolada do universo dos trabalhadores e não

280 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


um ator social do qual eles fazem parte. Os discursos que
se referem ao sindicato como um eles são importantes
para pensarmos em quanto o sindicato tem se afastado
de suas bases. Percebemos que os diretores do sindicato
têm um conhecimento mais aprimorado sobre as questões
políticas nas quais estão envolvidos, mas essa consciência
política acumulada pelos anos de experiência sindical e
participação política não chega aos trabalhadores de modo
geral. Isso nos leva a questionar se o afastamento dos
trabalhadores da estrutura sindical não deriva de serem
convidados apenas para debates pontuais e com pouca
possibilidade de decisão ou reflexão sobre a situação.
Essa situação, que não é peculiar ao mundo sindi-
cal, nos leva a questionar se os modelos de representação
política não estão enfraquecendo a participação e a cons-
cientização política. No caso específico analisado nesta pes-
quisa, entendemos que o afastamento dos trabalhadores
das ações coletivas e a busca por alternativas individuais
não se dão por uma decisão unilateral dos indivíduos, mas
por uma relação dialética de busca por alternativas à sua
situação e o desencontro com as oportunidades de parti-
cipação. Desencontro que é reforçado pela transformação
da entidade sindical em uma estrutura burocrática e isola-
da das vontades e anseios dos trabalhadores. Mesmo os
indivíduos que buscam participar das atividades sindicais
não compreendem a forma como as decisões são toma-
das, nem o conteúdo das decisões, sejam elas tomadas pe-
los seus adversários, seja pela entidade que os representa.
Parece-nos salutar reforçar que um grande desa-
fio para o movimento sindical de um modo geral, e para o
sindicato dos servidores municipais de São Paulo especifi-
camente, será encontrar mecanismos de participação que
possibilitem que os trabalhadores compreendam todos os

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 281


processos políticos e reflitam sobre as formas de se me-
lhorar as suas qualidades de vida. Os AA têm a consciência
política fragmentada em função de sua desinformação e
falta de conhecimento e essa situação é retroalimentada
pela estratificação social a que foram relegados, tornando-
-os suscetíveis a manipulações políticas e valores societais
que reproduzem sua situação de submissão.

282 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


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284 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


A primavera “invernal” brasileira:
uma esfera pública
radical em disputa

Dennis de Oliveira1

1  Pesquisadr do Grupo de Estudos e Pesquisas em Psicologia Política,


Políticas Públicas e Multiculturalismo - GEPSIPOLIM - e Professor
Associado da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São
Paulo, Brasil.
Introdução

“Aqui não é para a gente ir”, disse uma jovem apa-


rentando pouco mais de 20 anos; “é passeata de partido,
do PSTU, vamos voltar para a Rebouças”. Ouviu-se esta fala
que foi repercutida por outros vários na quarta manifesta-
ção contra as tarifas na segunda-feira, dia 17/06/2013, em
São Paulo. Naquele momento, um grupo de manifestan-
tes descia a alça da ponte Eusébio Matoso para a Marginal
Pinheiros, em São Paulo, já interditada pela PM, com um
grupo de jovens portando uma faixa do PSTU.2
Houve, naquele momento, uma confusão com
pessoas indo para um lado e para outro, mas que, devido
ao grande número de pessoas na rua, não significou uma
dispersão. Um rapaz, também aparentando pouco mais
de 20 anos, reclamou: “que confusão, uma hora vai para
um lado e depois para outro...”. Sem carros de som, as in-
formações eram passadas de um para outro, irradiando-
-se por meio de “redes”, assim como as próprias palavras
de ordem cantadas.
Essa foi uma das experiências vivenciadas pelo
autor deste texto na série de manifestações populares
realizadas em várias cidades do Brasil nos meses de ju-
nho e julho de 2013 contra o aumento das tarifas do
transporte público e que, posteriormente, foram incor-
porando outras bandeiras.
O que chamou a atenção nessas manifestações:
primeiro, um sentimento de rejeição às organizações par-
tidárias que, em certo momento, beirou atitudes autoritá-
rias de impedir que os militantes de partidos sequer pu-
2  Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado, agremiação de
esquerda de linha trotskista.
No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 287
dessem levantar suas bandeiras; segundo, a forma de orga-
nização baseada na circulação de informação por meio da
irradiação, sem um “comando central”; e terceiro, a grande
presença de jovens na faixa dos vinte e poucos anos.
As características singulares dessas manifesta-
ções, bem como os seus desdobramentos políticos – den-
tre os quais o mais importante foi a vitória conquistada
com a redução no preço das tarifas dos transportes públi-
cos, causando um enorme desgaste para os ocupantes das
prefeituras municipais de capitais e governadores de Esta-
dos – apontam para algumas inferências sobre as perspec-
tivas políticas do país. Importante ressaltar que o que se
pode apontar são inferências, tendências ou perspectivas,
mas não é possível chegar a conclusões fechadas apenas a
partir dessa experiência.

Rejeição aos partidos ou rejeição à política?

Os meios de comunicação hegemônicos deram


destaque às atitudes de manifestantes contra as bandei-
ras de partidos. Isso efetivamente ocorreu e, inclusive, foi
de certa forma reforçado pelo discurso das lideranças do
Movimento Passe Livre3, de que a organização é suprapar-
tidária, mas não apolítica.

3  O Movimento Passe Livre (MPL) é um coletivo de jovens, na sua


maioria estudantes universitários, que se organizaram em 2003
em defesa da instituição da tarifa zero no transporte público e pela
implementação de uma política pública de mobilidade urbana nas
cidades. Foi a organização que chamou as primeiras manifestações em
junho.
288 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)
A rejeição aos partidos políticos não é novidade
em movimentos com a grande presença de jovens. No
movimento estudantil, nos anos 1980, esse discurso tam-
bém estava presente: “contra as tendências políticas (era
assim que eram chamadas as organizações políticas então
clandestinas, que atuavam no movimento estudantil) que
dominam o movimento” era o programa de certas chapas
que disputavam a direção de CAs e DCEs. No movimen-
to anti-racista, esse discurso era (e ainda é) realizado por
militantes de algumas ONGs, sob o argumento de que os
partidos de esquerda não discutiam a questão racial e, por-
tanto, não tinham nada a contribuir com a luta contra o ra-
cismo. Esse discurso também esteve presente entre vários
estudantes durante o movimento de ocupação da reitoria
da USP, em outubro e novembro de 2011 (que, depois, so-
freu desocupação violenta por parte da PM).
É preciso entender um pouco mais o motivo dessa
rejeição, antes de condená-la in limine. É evidente que há
oportunistas de direita que se aproveitam disso para dis-
seminar um sentimento de despolitização que serve como
arma para manter a dominação. Zygmunt Bauman (2007)
fala da separação e do iminente divórcio entre o poder e a
política, com o primeiro cada vez mais se deslocando para
a esfera do privado (das grandes corporações do capital).
Esvaziar a política significa consolidar esse processo de pri-
vatização do poder, de grande interesse para as classes do-
minantes na atual conjuntura do capitalismo global.
Porém, nem todo o sentido de rejeição aos parti-
dos pode ser considerado como “despolitização”. Partici-
par de uma manifestação contra o aumento das tarifas é
um ato político. Chamou a atenção nessas manifestações
que, apesar da pluralidade de vozes e interesses presen-
tes, a palavra de ordem que unificava era a redução das

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 289


tarifas – apenas as palavras de ordem e slogans que se
referiam a esse tema unificavam os manifestantes. As de-
mais reivindicações – como “contra a corrupção”, “fora
Dilma”, “menos impostos” – eram periféricas. Ganharam
certa repercussão, sem dúvida, mas não conseguiram ser
o centro das mobilizações.
O coletivo que puxou as manifestações – o Mo-
vimento Passe Livre – se organizou em torno de uma pro-
posta que foi apresentada (pasmem!) pelo próprio Partido
dos Trabalhadores (PT) durante a gestão de Luiza Erundina
na cidade de São Paulo (1988-1992) – a proposta do Tarifa
Zero, elaborada pelo então secretário municipal de trans-
portes, o engenheiro Lúcio Gregori. A proposta tinha como
pressuposto a idéia de que o transporte coletivo é um ser-
viço público que deveria ser oferecido a todo o cidadão,
independente da sua capacidade ou não de pagar.
Disso saem duas questões importantes de nature-
za política. A primeira é que a gestão do transporte coletivo
deve ser do Poder Público e não do capital, e, segundo, que
os custos desse serviço devem ser repartidos entre toda a
sociedade, no princípio socializante dos impostos – paga
mais quem ganha mais. Na proposta de Gregori, que foi
derrotada e duramente criticada pela mídia hegemônica e
pelas elites paulistanas, isso viria com a adoção do IPTU
progressivo, imposto repudiado pelas classes dominantes
brasileiras eivadas do espírito patrimonialista, porque é
um dos poucos que taxa a propriedade e/ou o patrimônio.
Essa discussão, derrotada na época, foi produto
de uma experiência de governo de esquerda em São Paulo.
Governo que tentou implementar o método Paulo Freire
no sistema de educação de adultos, dirigido pelo próprio
Paulo Freire; que inverteu as prioridades do orçamento
municipal, direcionando a maior parte dos gastos para as

290 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


áreas sociais; que instituiu as coordenadorias de direitos
de negros e mulheres na administração pública e que ban-
cou eventos importantes de movimentos sociais, como o
I Encontro Nacional de Entidades Negras (1991) e apoiou
a greve geral das centrais sindicais em 1990 (que motivou
processos contra a então prefeita, que hoje responde a
ação de improbidade administrativa no Tribunal de Contas
e chegou até a ter seu apartamento penhorado).
Em outras palavras, o Movimento Passe Livre res-
gatou uma proposta construída no bojo de uma experiência
administrativa que buscava a redefinição de Poder Público.
E, ao traduzir essa proposta política em uma bandeira –
“não ao aumento das passagens” –, canalizou um sentimen-
to político reprimido que levou as multidões às ruas. Isso
não pode ser chamado de “atitude despolitizada”.
E por que mobilizou? Por que efetivamente há
um sentimento de revolta com a forma com que as ci-
dades estão sendo pensadas. As eleições municipais rea-
lizadas em 2012 foram absurdamente despolitizadas. Os
partidos políticos, com repercussões nos meios de comu-
nicação hegemônicos, as trataram como mais uma joga-
da no xadrez das articulações políticas visando a eleição
presidencial de 2014.
Enquanto isso, o aumento do consumo, o incenti-
vo ao transporte individual – impulsionado pela desonera-
ção de impostos da indústria automobilística e a facilitação
do crediário, que possibilitaram a expansão do consumo
de automóveis –, a transformação dos espaços urbanos
em fronteiras para reinversão do grande capital, estimu-
lada pelos financiamentos de bancos públicos; tudo isso,
englobado na agenda da política desenvolvimentista do
governo federal, trouxe dores de cabeça imensas aos mo-
radores das grandes metrópoles.

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 291


O trânsito, que era um problema tipicamente pau-
listano, passou a incomodar também moradores de Salva-
dor, Recife, Belo Horizonte e até Manaus (um morador de
lá lembrou certa vez: “imagina o que é ficar preso no trân-
sito, dentro de um carro, em uma cidade cuja temperatura
sempre está acima de 30 e chega a 40 graus?”).
Não se trata aqui de simplesmente bradar contra
o aumento do consumo de bens duráveis por parte das
classes subalternas, o que cheira a um elitismo – o con-
sumismo só é problema quando o pobre passa também
a consumir –, mas, efetivamente, é preciso que o Poder
Público tenha propostas de como gerenciar isso. E aí não
há como deixar tudo nas mãos “invisíveis” do mercado; é
preciso que essas questões sejam trazidas para a política.
E esse debate político não aconteceu no período eleitoral
municipal do ano passado.
O debate eleitoral entre os candidatos à prefeitu-
ra de São Paulo no segundo turno, por exemplo, ficou no
“quem cuida melhor dos pobres”, dando margem a discur-
sos populistas e demagógicos. Em um debate em 2012 or-
ganizado pelo Núcleo Aparecida Jerônima do “Movimento
Consulta Popular” constatou-se que o PT deixou de lado a
idéia de classe social (de partido da classe trabalhadora)
para ser um partido que “cuida dos pobres”.
Isso tem um significado de cunho político e ideoló-
gico: deixando de lado a idéia de “conflito de classes”, que
apontaria para a noção de que o Estado (como instituição)
tem uma configuração voltada para manter determinada or-
dem social e, por tabela, a hegemonia de uma classe social,
perde-se a idéia de que a participação no governo deve se
orientar no sentido de reconfiguração desse Estado.
Do conflito ideológico que esta postura aponta
tem-se o conflito da “eficiência da gestão”. Dizer que “cui-

292 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


da melhor dos pobres” significa defender que o problema
da pobreza é produto da competência gerencial, ou ain-
da, de uma maior “sensibilidade” para com o problema. A
sensibilidade com a pobreza é um capital político que está
presente no ex-presidente da República Lula, mas não no
PT como partido, que passou a fazer o discurso da “compe-
tência com a questão social”, principalmente aproveitando
o prestígio adquirido com os vários prêmios internacionais
que o ex-presidente Lula ganhou por razão das políticas so-
ciais de seu governo.
Essa ação do PT e de seus aliados mais à esquerda
possibilitou trazer a questão social para o centro da agenda
do debate político, colocando em xeque, em certa medi-
da, a agenda neoliberal mais radical das privatizações e do
Estado mínimo, encarnada pelos partidos mais conserva-
dores PSDB e DEM que, cada vez mais, caminham para a
extrema direita do fundamentalismo e do moralismo. Po-
rém, ao transfigurar a questão social para a competência
gerencial, deixando de lado a dimensão estrutural, a ação
política do PT centrou-se na busca do sucesso eleitoral e da
governabilidade dos seus eleitos.
Ora, o PT simbolizou durante muito tempo o
“novo” na política. Foi o partido que elegeu o primeiro
operário presidente do Brasil, a primeira mulher presiden-
ta do Brasil, a primeira mulher e nordestina a dirigir a gran-
de cidade de São Paulo, a indicar o primeiro negro para o
Supremo Tribunal Federal que hoje o preside, a elaborar as
principais políticas sociais, a reunir a maioria dos intelectu-
ais progressistas, a dar contribuição efetiva para a recons-
trução dos movimentos sociais no Brasil no pós-ditadura.
Quando este “novo” na política se dissolve no jogo
da realpolitik da maquina do Estado brasileiro, marcado e
percebido pela sociedade por uma estrutura de manuten-

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 293


ção de privilégios da tradição patrimonialista da socieda-
de brasileira, gera a desilusão com a política exercida por
meio da mediação partidária.
Por isso, a aversão aos partidos por parte de grande
parte dos manifestantes tem explicações que não podem ser
apenas e tão somente explicadas pela ação conservadora.

A política na era da informação

O jornalista Renato Rovai, em um interessante ar-


tigo na revista alternativa Fórum, defende a idéia de que
as manifestações contra o aumento das tarifas expressam
uma nova forma de fazer política na chamada “era da in-
formação”. Diz ele:

Há alguns anos venho conversando sobre redes


com diferentes grupos. E, entre outras coisas,
tenho afirmado que estamos vivendo numa mu-
dança de era. Estamos passando da Era Indus-
trial para a Era Informacional. Isso tem levado a
grandes transformações na economia, na cultu-
ra e também na política. Quando migramos da
sociedade agrícola para a industrial, isso já ocor-
reu. Foram grandes as transformações e enor-
mes as resistências. Houve quem preferisse des-
truir as máquinas do que tentar entender suas
possibilidades e potencialidades. Hoje a mesma
coisa está ocorrendo. A sociedade em redes
não permite respostas analógicas. E os partidos
e movimentos tradicionais de esquerda ainda
resistem em entender esse novo processo. Não
entenderam que na sociedade em redes uma
das grandes crises se dá em relação às organi-
294 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)
zações intermediárias. A indústria cultural foi
uma das primeiras a ser afetadas por esse fenô-
meno. As gravadoras de música, por exemplo,
tentaram resistir a ele com a criminalização do
que chamavam de pirataria. Tiveram que mu-
dar a estratégia e perderam muito espaço. Na
indústria da informação está ocorrendo o mes-
mo. Boa parte dos grandes grupos desse setor
está ruindo porque decidiu enfrentar as mudan-
ças e não buscar se adaptar a elas. Na política,
os partidos são as organizações intermediárias.
São as gravadoras da indústria da música. E as
pessoas que estão nas ruas não querem ser re-
presentadas por eles. Querem se representar. É
uma crise da democracia representativa, para a
qual ainda não se tem respostas nem soluções.
E para ser franco, poucas pistas. (Rovai, 2013)

O desencanto com as formas tradicionais de me-


diação política tem a ver com as mudanças de estratégia
dos partidos de esquerda, em especial do PT, que repre-
sentava o “novo na política”. Mas ele foi canalizado para
uma ação política chamada por Rovai de “rede”.
O importante aqui é não confundir; essa ação po-
lítica singular não é produto das tecnologias, mas se apro-
pria e se potencializa com as tecnologias. O desencanto
aconteceu pari-passu com a construção de novas formas
de mediação, que também resgatam modelos organizati-
vos existentes nas classes subalternas.
O antropólogo William Foote Whyte (2005)
cunhou o conceito de “sociedade de esquina” para explicar
os fenômenos organizativos percebidos por ele nos estu-
dos sobre a periferia metropolitana nos anos pós-depres-
são econômica nos EUA. A idéia de sociedade de esquina
sintetiza as práticas de redes realizadas pelos moradores

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 295


de bairros periféricos, em que os encontros aparentemen-
te “informais” se transformam em momentos de trocas de
informação e organização que possibilitam que eventos
complexos como festas, campanhas beneficentes e mu-
tirões sejam organizados por pessoas com pouco tempo
disponível e submetidas a brutais processos de exploração.
Assim, ao contrário do que a primeira impressão pode pas-
sar, as periferias têm uma lógica organizativa que, inclusi-
ve, é a principal responsável pela sobrevivência e resistên-
cia aos mecanismos de opressão.
Essa experiência é mais forte na América Latina,
principalmente porque, por aqui, os mecanismos de opres-
são são muito mais violentos e eivados de idéias racistas e
machistas. Percebe-se, então, as práticas de ações em rede
em organizações tradicionais dos povos afrodescendentes
e indígenas, e também entre as mulheres de periferia. Não
é a toa que os principais protagonistas das ações coletivas
nas periferias brasileiras são mulheres negras, justamen-
te a pessoa que sofre os três mecanismos opressivos da
sociedade brasileira, de classe, de raça e de gênero. Essas
mulheres negras não estão a frente das organizações só-
cio-políticas tradicionais, que têm maior visibilidade no
espaço público, como sindicatos, entidades estudantis ou
partidos políticos, mas, na periferia, nada acontece sem
sua presença e protagonismo.
A capacidade de trânsito entre órgãos públicos,
organizações religiosas, criminosas, associativas e pesso-
as com laços familiares diretos, indiretos ou afetivos faz
das mulheres negras os “nós” principais dessas redes de
articulação na periferia. O fundamento dessa situação é a
oralidade e a transitoriedade como elementos das culturas
populares brasileiras. Bem diferente da funcionalidade da
narrativa, e, portanto, distante do ordenamento discursivo
de que fala Foucault (2010), e da linearidade.
296 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)
Essas experiências são transpassadas para outros,
inclusive, por gerações, e a força dessa forma de organiza-
ção pode ser demonstrada pela presença de expressões da
cultura negra como o samba, a capoeira e as religiões de
matriz africana pelo Brasil afora, a despeito do histórico de
brutal opressão. Presença, inclusive, que se globaliza, a pon-
to de a capoeira ser um dos principais, senão o principal,
disseminadores da língua portuguesa brasileira no mundo.
Há, portanto, uma experiência de rede na cultura
organizativa brasileira que foi apropriada por outros seg-
mentos sociais, principalmente com o advento das tecno-
logias da informação e comunicação. O Brasil tem, assim,
uma situação singular de confluência de tecnologias de
rede e também de cultura organizativa de rede. Por isso,
por aqui, a ação política na era da informação em nada
se assemelha a um mero “desencanto” ou apenas a uma
“explosão de insatisfação”, como ocorreu em alguns países
europeus, embora isso possa estar presente no sentimen-
to e no pensamento de alguns.
No caso brasileiro, a potencialização da cultura or-
ganizativa de rede, já existente nas experiências dos contex-
tos periféricos pela disseminação das tecnologias da infor-
mação e comunicação, trouxe essa experiência para outros
segmentos sociais, em particular a juventude da classe mé-
dia. Uma das características principais dessa potencialização
foi o aumento da velocidade da circulação da informação.
Além do aumento da velocidade da informação,
as tecnologias da informação e comunicação dessacrali-
zam os processos tradicionais de produção midiática. Em
outras palavras, a possibilidade de qualquer um ser produ-
tor de informação e de manusear as tecnologias midiáticas
(como produção e disseminação de vídeos e imagens uti-
lizando dispositivos portáteis e a rede para a sua dissemi-

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 297


nação) coloca em xeque a hegemonia da indústria midiáti-
ca legitimada pela “aura” da competência de manejo dos
dispositivos tecnológicos midiáticos. Não é mais necessária
uma indústria sofisticada; indivíduos ou pequenos grupos
também possuem condições para tanto.
Pode-se fazer uma analogia com o período histó-
rico de formação da esfera pública burguesa, descrito por
Hobsbawn da seguinte forma:

A cultura foi o verdadeiro palco do processo de


educação das novas elites culturais e cívicas mas
terras da monarquia aristocrática. Era, no sen-
tido literal e não apenas no sentido dado por
Habermas, uma esfera pública mesmo que ain-
da não fosse, como nos países burgueses, uma
esfera pública constitucionalmente reconheci-
da, mas ainda assim era efetiva, simplesmente
porque, como se viu, ela enfraqueceu de dentro
para fora a autoridade de governantes e de di-
reitos de nascença sem confrontá-los politica-
mente. (Hobsbawm, 2013, p. 56)

A analogia a esse momento descrito pelo pensa-


dor britânico é que ele aponta que o enfraquecimento das
antigas elites deu-se pela circulação de informações nos
espaços culturais, criando uma “autonomia” dos segmen-
tos emergentes. Naquele momento, os espaços culturais
foram o embrião da nova esfera pública burguesa que nas-
cia. Nos momentos atuais, a informação que circula em
maior quantidade e em maior velocidade, e que possibilita
que todos potencialmente possam ser protagonistas, re-
duz o poder e prestígio de instituições mediadoras clássi-
cas da sociedade liberal, como os partidos, as organizações
de representação social e a própria mídia hegemônica.

298 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


É o embrião de uma nova esfera pública que se
manifesta, que tem na idéia de “auto-representação” um
dos seus marcos mais significativos. Por ser um embrião de
uma nova esfera pública, não se trata de um movimento
social orgânico em direção a determinada proposta,
mas de um espaço em disputa. O sentimento de auto-
representação que, em uma primeira apreensão, pode
indicar um sentimento anarquista, na atual conjuntura em
que as organizações partidárias tradicionais conservadoras
enfrentam uma crise, é também apropriada pela direita
e extrema-direita, que se aproveita para criminalizar as
organizações políticas de esquerda. Sintomático é ver
discursos da própria mídia hegemônica favoráveis a esse
comportamento e até ocupantes de cargos de governos
mais conservadores, como o governo estadual de São
Paulo, fazerem críticas ao “sistema de representação
política” – uma atitude no mínimo incoerente, por ser ele
participante desse sistema. (Cf. Portella, 2013)

Participantes das manifestações: filhos da


democracia (neo)liberal

Os meios de comunicação de massa destacaram


o fato de que a esmagadora maioria dos participantes era
jovem e também estreante nesse tipo de atividade políti-
ca. Em média, os participantes das manifestações de junho
tinham pouco mais de 20 anos. São, portanto, membros
de uma geração do período mais longevo de vigência da
democracia no Brasil. Bem ao contrário dos militantes mais
experientes e dirigentes dos partidos políticos, vários dos

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 299


quais ocupam cargos governamentais e vieram de uma ge-
ração que viveu sob a ditadura militar e participou da de-
mocratização do país.
Um dado importante desse período recente da
democratização brasileira é que a construção das institui-
ções democráticas e da esfera pública ocorre no mesmo
momento conjuntural da avalanche conservadora do ne-
oliberalismo. A democracia foi se construindo no mesmo
momento em que se disseminavam as idéias de Estado mí-
nimo, de fim dos sistemas de proteção social, de precariza-
ção do trabalho, de transnacionalização da economia e de
apelo da ideologia do consumismo. Por isso, a percepção
de democracia nessa geração é perpassada pelas tentati-
vas freqüentes de eclipsar a idéia de cidadania pela de con-
sumidor, de individualismo exacerbado e de sentimentos
de intolerância e discriminação freqüentes. Além disso, a
avalanche ideológica conservadora colocou em xeque os
projetos políticos utópicos. É uma geração que oscila entre
“causas” fluídas e “coisas” sólidas e, portanto, sedutoras.
Na conjuntura atual da sociedade capitalista, os
sistemas de poder se deslocam para a esfera privada das
corporações transnacionais. Porém, as estruturas políticas
continuam se mantendo na órbita nacional e local, e vão
lutando ingloriamente com o poder crescente do capital
transnacional. Na maior parte das vezes, se adaptam. É por
isso que os embates políticos são pressionados a se mante-
rem na esfera da chamada “pequena política” ou realpolitik.
A agenda hegemônica da realpolitik limita-se a as-
pectos morais e de eficiência da gestão. Não é a toa que os
meios de comunicação batem no martelo de que o proble-
ma da área social no Brasil não é a falta de recursos, mas
uma melhor eficiência na sua gestão. Assim, há uma tema-
tização da política no aspecto da moralidade que, inclusive,

300 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


despolitiza até mesmo o problema da corrupção, que não
é tratado como produto de uma relação promíscua entre o
capital e o Estado, mas apenas no pretenso caráter do ocu-
pante do cargo público. Basta ver a tônica da grande maioria
das reportagens “investigativas” (ou seriam denunciativas)
do jornalismo hegemônico. Há interdição de temas como o
peso da dívida pública no orçamento, a pressão que existe
do capital rentista sobre o Conselho de Política Monetária
(Copom) e o Banco Central, responsáveis pela política mo-
netária do país, entre outras coisas, que se referem às rela-
ções privilegiadas do capital com o Poder Público.
Daí que essa formação de um círculo fechado e
privado de relações entre o capital e os aparelhos institu-
cionais afasta a presença do cidadão da política. No limite,
essa presença coloca-se na perspectiva clientelista – apoio
a esse ou outro, na medida em que atenda necessidades
individuais. Por isso, não há uma definição ideológica mais
precisa da maior parte dessa geração de novos ativistas.
Entretanto, essa forma de articulação do Estado
brasileiro não é novidade e nem algo apenas dos tempos
atuais. Desde a sua formação, a república brasileira mais
se assemelha a uma res privada. As marcas do patrimo-
nialismo na política brasileira são evidentes. Desde sua
formação, o Estado republicano brasileiro estrutura-se na
perspectiva de manutenção de privilégios patrimoniais das
classes dominantes e de administrar as tensões sociais por
meio de políticas públicas pequenas ou parciais.
Isso ocorre a ponto de bandeiras que são moder-
nizações capitalistas, como a reforma agrária (na perspec-
tiva que ela democratiza a propriedade e não a abole e,
ainda mais, pode dar uma maior eficiência produtiva ao
setor primário da economia) virarem caso de polícia. A ide-
ologia do patrimonialismo manifesta-se ainda pela resis-

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 301


tência de segmentos da classe dominante e mesmo clas-
ses médias em admitir, por exemplo, direitos trabalhistas
para empregadas domésticas, ações afirmativas para afro-
descendentes, democratização do acesso à universidade
pública, políticas de redistribuição de renda e, principal-
mente, taxação sobre a propriedade e patrimônio (vejam
a resistência contra o IPTU, um dos poucos impostos que
incidem sobre o patrimônio).
O patrimonialismo se exerce pela manutenção
de privilégios; por isso, é um princípio que limita a demo-
cratização apenas à manutenção dos mecanismos formais
(eleições, funcionamento regular do parlamento e outras
instituições, etc). Democratizar o acesso a determinados
bens de consumo, por exemplo, cria reações dos segmen-
tos privilegiados. O patrimônio deixa de ser um valor, à
medida que ele perde a sua distinção de quem o possui.
Essa é a natureza da crítica conservadora aos governos do
PT e aliados nos últimos anos. Não obstante tais governos
tenham garantido lucros extraordinários às classes domi-
nantes, inclusive ao capital rentista (basta ver os resultados
dos balanços financeiros dos principais bancos brasileiros
privados), a medida que, por meio de políticas sociais, foi
possibilitando o acesso de novos segmentos sociais a de-
terminados bens e serviços, como universidades, viagens
aéreas, bens de consumo duráveis, entre outros, eles dei-
xaram de ser objetos de distinção social.
Porém, há um outro dado importante. Essa nova
geração de manifestantes se forma em um contexto que
alguns pensadores chamam de “Era da Informação”. É um
período marcado pela onipresença de dispositivos e pla-
taformas informativas que se transformaram na principal
base do novo modelo de produção capitalista. Um modelo
que se organiza por meio de redes produtivas globais, cuja
302 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)
centralidade está na gestão. Os novos monopólios não são
estruturas produtivas sólidas e centralizadas, mas institui-
ções gerenciadoras de fluxos produtivos que fluem por di-
versos pontos do planeta.
Isso traz como conseqüência uma alteração pro-
funda na morfologia da classe trabalhadora, que se frag-
menta espacialmente e se diversifica nas funções. Além
da precarização que ocorre em determinados momentos,
com impactos fortes nos direitos trabalhistas, há uma difi-
culdade de visualização e percepção como classe.
O pensamento marxista aponta que os homens
nas suas relações com outros homens estabelecem formas
concretas de produção e são produtos disso. As formas
de produção contemporâneas dificultam que os sujeitos
se vejam como partes de uma classe social colocada em
determinado lugar do modo de produção. A fragmentação
dificulta esse pertencimento a uma coletividade de classe.
Esse é um dado da realidade.
Um outro dado da realidade é que esse modo de
produção centrado nos dispositivos e plataformas de infor-
mação consolida-se pela disseminação desses dispositivos.
Em outras palavras, o acesso às plataformas de rede infor-
mativa cada vez mais alcança um número maior de pesso-
as e, por conta disso, há uma dessacralização dos sistemas
tradicionais de informação – a indústria midiática.
Há mudanças significativas no comportamento
dos cidadãos diante da indústria da mídia, explicitada pela
queda vertiginosa das tiragens dos periódicos impressos e
mesmo a queda da audiência dos programas de televisão.
Mais que isso, há a percepção da possibilidade de se cons-
truir outros fluxos informativos. Formam-se o que Dow-
ning (2010) chama de “audiências ativas”.

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 303


Essa geração da fragmentação do trabalho e das
percepções identitárias é também a geração da era da in-
formação. Sitiados por conta desses processos societários
mais recentes, esses sujeitos encontram nessas platafor-
mas mecanismos para se expressarem e construírem pos-
sibilidades de sociabilidades.
Por isso, as falas que circulam nesses dispositivos
informacionais têm um caráter fortemente assertivo, são
fragmentárias, expressam certo tom de angústia e são não
lineares. Dificilmente poderiam se articular dentro das or-
ganizações políticas clássicas que são organizadas com base
em um projeto, isto é, uma perspectiva teleológica de socie-
dade e a definição de rumos. As tais estratégia e tática, como
os velhos partidos comunistas denominavam tais ações.

Uma esfera em disputa radical

A fragmentação de valores e expressivos pode ser


observada na estética das manifestações. Em matéria pu-
blicada no caderno Ilustrada do jornal Folha de São Paulo,
os jornalistas relataram o seguinte:

O caldeirão cultural que alimenta os protestos


mistura política e publicidade, heróis da Mar-
vel, Maio de 68 e poesia concreta. E a surrada
máscara de “V de vingança”. [...] Manifestantes
nas ruas se apropriaram do slogan de uma mar-
ca de uísque (o gigante acordou) e do jingle do
anúncio de e carro (vem para rua, vem). [...] Uns
trabalhos chegam a emular as vanguardas sovi-
éticas. [...] Outros revisitam a estética do cons-

304 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)


trutivismo paulista com versos diagramados
segundo a lógica espacial da poesia concreta.
(Verneck e Marti, 2013, p. E-1)

Essa bricolage expressa uma estética típica desses


momentos de disseminação informativa imensa, que ocor-
re pari passu a um retrocesso das estruturas tradicionais
da sociedade liberal, inclusive o seu contraponto marxista,
que é a luta de classes. Conforme afirmam vários pensa-
dores da pós-modernidade, é uma colagem de símbolos
do passado que são descontextualizados historicamente e,
portanto, são fetichizados – são o que são porque são e
não porque representam determinada coisa.
Tal fragmentação estética observa-se também no
campo discursivo. O caráter assertivo não se assenta em
uma lógica argumentativa, mas nos modos incisivos de ex-
pressão, que podem descambar para atitudes autoritárias e
violentas, da negação do outro. A produção desses grupos
reflete uma atitude de audiência ativa e, portanto, de mídia
radical, segundo os conceitos de John Downing (2010).
A sociedade brasileira é marcada pela violência
porque transforma as diferenças em hierarquias. Essas di-
ferenças são produto da sociedade de classes brasileira – o
poder se manifesta por atitudes de opressão violenta dos
subalternos e, mais que isso, na disseminação da idéia de
que tudo o que é diferente não tem o status de humano,
podendo, portanto, ser objeto de violência. É isso que ex-
plica determinados comportamentos violentos de institui-
ções, como a polícia, ou ainda de grupos.
Essa cultura da violência permanece e se expressa
também na lógica discursiva das redes. Não há um debate
de opiniões, mas “bate bocas”. Os discursos fragmentados
das redes sociais favorece esse tipo de comportamento.

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 305


Os dispositivos informacionais incorporam e encorpam es-
ses comportamentos discursivos, que se transfiguram em
atitudes autoritárias como as ações agressivas contra mi-
litantes de partidos políticos nas passeatas ou mesmo de
movimentos sociais organizados.
Essas audiências ativas estão na perspectiva do
que James Scott (apud Downing, 2010) chama de repertó-
rios de resistência. Esse conceito de Scott é um ajuste de
contas com o de hegemonia e contra-hegemonia do pen-
samento gramsciano e tem como base a existência de uma
dimensão que Scott chama de infrapolítica.

A infrapolítica, diz Scott, expressa os níveis reais e


privados de resistência e raiva, relativos não só a
exploração econômica que as pessoas enfrentam
mas também aos padrões de humilhações pes-
soais que a caracterizam. (Downing, 2010, p. 51)

Downing afirma que as percepções gramscianas


e de James Scott contribuem para a formação do que ele
chama de uma “cultura alternativa radical”, que se coloca
contra as “múltiplas formas de opressão”. Essa ação múlti-
pla, não focalizada e não linear, encaixa-se perfeitamente
nas perspectivas societárias contemporâneas.
Entretanto, as audiências ativas das quais fala
Downing (2010, pp. 135-144) não necessariamente ex-
pressam uma mídia radical emancipadora ou de esquerda.
Existe o que ele chama de “mídia radical repressora”, que
utiliza os mesmos procedimentos da mídia radical (expres-
são das audiências ativas e a cooptação dos repertórios de
resistência) para expor projetos de ultradireita.
Assim, os desencantos e desavenças com os siste-
mas representativos brasileiros tanto podem ser expressos
em uma perspectiva de esquerda – produtos de uma re-
306 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)
flexão que aponte que essa crise de representatividade é
produto de um Estado patrimonialista – como de extrema
direita – problema de ordem moral ou “falência da demo-
cracia” como sistema.
O que temos, então, é a formação de uma esfera
pública radical ou alternativa, marcada por essas carac-
terísticas éticas ou estéticas de mídias radicais, que ainda
está em disputa. Existe uma certa resistência entre os “aco-
modados” com a velha política em entender esse processo
ou até temer esta disputa radicalizada. Em relação a isso,
cito uma passagem do Downing.

Para aqueles que, politicamente, se situam no


centro, equiparar a mídia radical de extrema
esquerda com a da ultradireita constitui um
equilíbrio político rápido e fácil para eles mes-
mos e, em princípio, nada mais do que ficar em
cima do muro, arrotando a superioridade au-
tomática e barata de evitar os dois extremos
e ,dessa forma, qualquer engajamento político
ou o risco de defender uma mudança constru-
tiva. (Downing, 2010, p. 136)

No interstício das disciplinaridades: a psicologia política 307


Referências Bibliográficas

BAUMAN, Z. Tempos Líquidos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.

DOWNING, J. Mídia Radical. São Paulo: Senac, 2010.

FOUCAULT, M. A Ordem do Discurso. São Paulo: Loyola, 2010.

HOBSBAWN, E. Tempos Fraturados. São Paulo: Cia. das Letras, 2013.

PORTELLA, José Luis. “Manifestações: a falência da representação”. In:


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In: Blog do Rovai, Revista Fórum, 2013. [http://revistaforum.com.br/
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VERNECK, Paulo; MARTI, Silas. “#Olho da Rua”. In: Folha de São Paulo,
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WHYTE, W. F. Sociedade de Esquina. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

308 Alessandro Soares da Silva & Felipe Corrêa (Orgs.)

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