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JUNHO DE2015
JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES

Curitiba: UNIANDRADE, 2015.

Publicação anual
ISSN: 2446-9270

1. Linguística, Letras e Artes – Anais


I. Centro Universitário Campos de Andrade – UNIANDRADE
– Programa de Pós-Graduação em Letras

Capa: Guenia Reichmann Lemos


Projeto gráfico e diagramação eletrônica: Brunilda Reichmann

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 2


comissão organizadora

Dra. Mail Marques de Azevedo (UNIANDRADE)


Coordenadora Geral

Dra. Flávia Azevedo (UTFPR)


Dra. Célia Arns de Miranda (UFPR)
Vice-Coordenadoras

comissão local

Dra. Anna Stegh Camati (UNIANDRADE)


Dra. Brunilda T. Reichmann (UNIANDRADE)
Dr. Edson Ribeiro da Silva (UNIANDRADE)
Dra. Liana de Camargo Leão (UFPR)
Dr. Luiz Roberto Zanotti (UNIANDRADE)
Dra. Marcia Regina Becker (UTFPR)
Dr. Otto Leopoldo Winck (UNIANDRADE)
Dr. Paulo Eduardo de Oliveira (UNIANDRADE)
Dr. Paulo Henrique Sandrini (UNIANDRADE)
Ma. Paulo Roberto Pellissari (FACEL)
Dra. Regina Helena Urias Cabreira (UTFPR)
Dra. Sigrid Renaux (UNIANDRADE)
Dra. Verônica Daniel Kobs (UNIANDRADE)
Ma. Solange Viaro Padilha (FACULDADES SANTA CRUZ)

comissão da abei

Camila Franco Batista (PG-USP/ ABEI) Coordenadora


Dra. Munira H. Mutran (Presidente Honorária da ABE)
Dra. Laura Zuntini de Izarra (Presidente da ABEI)
Dra. Rosalie Haddad (Vice-Presidente da ABEI)

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 3


sumário

10 CONSEQUÊNCIA TRÁGICA DO AMOR NÃO CONSUMADO EM “UM


CASO TRISTE”, DE JAMES JOYCE
Autora: Alessandra Pilati Ribeiro (UNIANDRADE)
Orientadora: Profa. Dra. Brunilda Reichmann (UNIANDRADE)

23 ASPECTOS HISTÓRICOS E SOCIOCULTURAIS EM DANÇANDO


EM LÚNASSA
Autores: Aline Benato Soares (UTFPR-PB)
Cibele Filus Marchese (UTFPR-PB)
Danielle Franco Brunismann (UTFPR-PB)
Saionara de Araújo Weiss (UTFPR-PB)
Orientadora: Profa. Dra. Gisele Giandoni Wolkoff (UTFPR-PB)

35 INDIVÍDUO E CULTURA NO ROMANCE FINNEGANS WAKE DE


JAMES JOYCE
Autora: Ana Caroline Ferreira Costa (UFPR)

52 NUANCES DA VIOLÊNCIA: UMA COMPARAÇÃO ENTRE MARINA


CARR E INÊS PEDROSA
Autores: Ana Clara de Lena Costa Andrade (FARESC)
Alysson William Rodrigues Ribeiro (FARESC)
Orientadora: Profa. Dra. Solange Viaro Padilha (FARESC)

64 CRÍTICA À DUPLICIDADE DA MORAL VITORIANA EM


A IMPORTÂNCIA DE SER PRUDENTE
Autor: Profa. Dra. Anna Stegh Camati (UNIANDRADE)

73 A DOR COMO DOMINANTE ARTÍSTICO NO CONTO “A MORTE DA


VACA”
Autora: Assiria Maria Linhares Masetti (UNIANDRADE)
Orientadora: Profa. Dra. Sigrid Renaux (UNIANDRADE)

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 4


84 EM NOME DO PAI: A TRANSPOSIÇÃO DE AMONGST WOMEN PARA
AS TELAS
Autora: Beatriz Cristina Godoy (UEM)
Orientadora: Prof. Dr. Márcio Roberto do Prado (UEM)

101 DIÁSPORA DA ALMA: A ARQUITETURA DO TEXTO E A


ARQUEOLOGIA DO SER EM O ENCONTRO, DE ANNE ENRIGHT, E UMA
MARGEM DISTANTE, DE CARYL PHILLIPS
Autora: Profa. Dra. Brunilda T. Reichmann (UNIANDRADE)

113 ENCADEAMENTO DE CONTOS DE KATHERINE MANSFIELD


COMO BILDUNGSROMAN DE SUAS PERSONAGENS FEMININAS
Autor: Camilla Damian Mizerkowski (UFPR)

129 A GRANDE FOME, O TIGRE CELTA E O TRAUMA CULTURAL EM


STAR OF THE SEA, DE JOSEPH O’CONNOR
Autora: Camila Franco Batista (USP)
Orientadora: Laura Patricia Zuntini de Izarra (USP)

141 A PALAVRA E A IMAGEM: A EXPANSÃO DO SENTIDO NO LIVRO


ONDE VIVEM OS MONSTROS
Autora: Caroline A. S. Fernandes (UFPR)
Orientadora: Profa. Dra. Célia Arns de Miranda (UFPR)

157 O AMOR NÃO CONSUMADO NO CONTO “OS MORTOS” E O RPG


Autor: Cristian Abreu de Quevedo (UNIANDRADE)
Orientadora: Profa. Dra. Brunilda Reichmann (UNIANDRADE)

166 BERNARD SHAW E O MITO DE PIGMALEÃO ÀS AVESSAS


Autora: Daniele Soares Carneiro (UNIANDRADE)
Orientadora: Profa. Dra. Anna Stegh Camati (UNIANDRADE)

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182 GIACOMO JOYCE E POMES PENYEACH: POSSIBILIDADES DE
RECEPÇÃO TEXTUAL E DE DEPREENSÃO DE UMA ESTÉTICA JOYCEANA
Autor: Prof. Dr. Edson Ribeiro da Silva (UNIANDRADE)

202 INTERFACES DA ESCRITA FICCIONAL DE HILDA HILST


Autora: Eliza Pratavieira (UNIANDRADE)
Orientadora: Profa. Dra. Anna Stegh Camati (UNIANDRADE)

220 PREÂMBULO A UM RETRATO DO ARTISTA QUANDO JOVEM NO


CONTO “ARÁBIA”, DE JAMES JOYCE
Autora: Elizane de Oliveira Santos (UNIANDRADE)
Orientadora: Profa. Dra. Mail Marques de Azevedo (UNIANDRADE)

234 SHAKESPEARE NO CINEMA: O FANTASMA NO HAMLET DE


SHAKESPEARE E DE ALMEREYDA
Autora: Fernanda Korovsky Moura (UFSC)
Orientadora: Profa. Dra. Márcia Regina Becker (UTFPR)

245 MOBY DICK – UM MERGULHO NA INTERMIDIALIDADE


Autor: Gleyce Cruz da Silva Gomes (UFPR)
Orientador: Profa. Dra. Célia Arns de Miranda (UFPR)

260 IBSEN E A HISTÓRIA: UMA REVOLUÇÃO NA MENTE


Autora: Helena Carnieri Staehler (UFPR)
Orientadora: Profa. Dra. Célia Arns de Miranda (UFPR)

276 A HORA E A VEZ DE “UMA TOLA BORBOLETA”


Autor: José Francisco Coelho (UNIANDRADE)
Orientadora: Profa. Dra. Sigrid Renaux (UNIANDRADE)

285 EDNA O´BRIEN E SUA NARRATIVA A LUZ DA NOITE – NOTAS DE


UM DUPLO EXÍLIO, O REAL E O FICCIONAL
Autora: Prof. Larissa Degasperi Bonacin (UNIANDRADE)

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296 AMORES (NÃO) CONSUMADOS NO FILME OS VIVOS E OS MORTOS,
DE JOHN HUSTON
Autora: Lindamar de Fátima Galiotto (UNIANDRADE)
Orientadora: Profa. Dra. Brunilda Reichmann (UNIANDRADE)

307 A DUALIDADE E O EXISTENCIALISMO NO CONTO “OS


MORTOS”,DE JAMES JOYCE
Autores: Luiz Fernando Warumby (UNIANDRADE)
Maria da Consolação Soranço Buzelin (UNIANDRADE)
Orientador: Prof. Dr. Paulo Eduardo de Oliveira (UNIANDRADE)

321 O DIÁRIO DO AMAZONAS DE ROGER CASEMENT


Autora: Mail Marques de Azevedo (UNIANDRADE)

336 A PARÓDIA SATÍRICA EM CONTOS DE MACHADO DE ASSIS E


JAMES JOYCE
Autor: Márcio Pereira Ribeiro (UNIANDRADE)
Orientadora: Profa. Dra. Anna Stegh Camati (UNIANDRADE)

348 HENRY JAMES E OSCAR WILDE: EXPOENTES DA


HISTORIOGRAFIA RETRATADOS POR THE MASTER, DE COLM TÓIBIN
Autor: Maria Aparecida Borges Leal (UFPR)
Orientador: Profa. Dra. Célia Arns de Miranda (UFPR)

366 O MITO DA AMÉRICA NO CINEMA ITALIANO CONTEMPORÂNEO:


GIUSEPPE TORNATORE x EMANUELE CRIALESE
Autora: Maria Célia Martirani Bernardi Fantin (UFPR)

380 W. B. YEATS E A IDENTIDADE IRLANDESA NO INÍCIO DO


SÉCULO XX
Autor: Patricia de Aquino (USP)
Orientadora: Profa. Dra. Laura P. Z. Izarra (USP)

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 7


392 SUBVERSÃO DA FÓRMULA DO ROMANCE DETETIVESCO EM
O CRIME DE LORDE ARTHUR SAVILE
Autor: Prof. Paulo Roberto Pellissari (FACEL)

405 FICÇÃO E HISTÓRIA: ENCONTROS, DESENCONTROS E NOVOS


CAPÍTULOS PARA NARRAR
Autor: Phelipe de Lima Cerdeira (UFPR)
Orientador: Prof. Dr. Rodrigo Vasconcelos Machado (UFPR)

422 O MITO DE TRISTÃO E ISOLDA COMO INTERTEXTO E TEMA DE


REFLEXÃO SOBRE O CINEMA, O TEATRO E A TV
Autor: Prila Leliza Calado (UNIANDRADE)
Orientador: Profa. Dra. Anna Stegh Camati (UNIANDRADE)

441 ASPECTOS CULTURAIS E POLÍTICOS NA TRADUÇÃO


INTERMIDIÁTICA BRIDE AND PREJUDICE, DE GURINDER CHADHA
Autor: Priscila M. M. G. Kinoshita (UNIANDRADE)

458 AS PRÁTICAS SUBVERSIVAS DE GÊNERO: UMA ANÁLISE QUEER


DO FILME BREAKFAST ON PLUTO
Autor: Rafael Alves de Almeida (UTFPR)
Orientadora: Profa. Dra. Gisele Giandoni Wolkoff (UTFPR)

470 O RETRATO DE DORIAN GRAY NA MONTAGEM DE MACBETH


(2012) POR GABRIEL VILLELA
Autora: Rebeca Pinheiro Queluz (UFPR)
Orientadora: Profa. Dra. Célia Arns de Miranda (UFPR)

483 A LUZ DO FAROL: EXPOSIÇÃO DAS FERIDAS FAMILIARES


Autora: Rejane de Souza Ferreira (UFT)

499 O AMOR NÃO CONSUMADO EM “EVELINE”, DE JAMES JOYCE


Autora: Selmi Machado (UNIANDRADE)
Orientadora: Prof. Dra. Brunilda Reichmann (UNIANDRADE)

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510 O ESPAÇO COMO ELEMENTO DOMINANTE NO CONTO
“O PRIMEIRO VOO” DE LIAM O’FLAHERTY
Autor: Sérgio Luís Borges (UNIANDRADE)
Orientadora: Profa. Dra. Sigrid Renaux (UNIANDRADE)

519 ROGER CASEMENT SOB O OLHAR POLIÉDRICO DE VARGAS


LLOSA EM EL SUEÑO DEL CELTA
Autora: Profa. Dra. Sigrid Renaux (UNIANDRADE)

538 FACES DA VIOLÊNCIA NA FICÇÃO IRLANDESA CONTEMPORÂNEA


Autora: Profa. Solange Viaro Padilha (Faculdades Santa Cruz)

557 “A SUMMONS TO ALL MY FOOLISH BLOOD”: THE DEPICTION OF


SEX AND SEXUALITY IN DUBLINERS, BY JAMES JOYCE
Autor: Thiago Moreira Marques (UTFPR)
Orientador: Profa. Dra. Jaqueline Bohn Donada (UTFPR)

568 VAMPIROS E ZUMBIS: O APOCALIPSE DO SÉCULO XXI


Autora: Profa. Dra. Verônica Daniel Kobs (UNIANDRADE e FAE)

581 O MITO DE CU CHULAINN E SUA REPRESENTAÇÃO NA


CULTURA JAPONESA
Autor: Vinicius Keller Rodrigues (FARESC)
Orientador: Profa. Dra. Solange Viaro Padilha (FARESC)

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CONSEQUÊNCIA TRÁGICA DO AMOR NÃO CONSUMADO
EM “UM CASO TRISTE”, DE JAMES JOYCE

Autora: Alessandra Pilati Ribeiro (UNIANDRADE)


Orientadora: Profa. Dra. Brunilda Reichmann (UNIANDRADE)

RESUMO: Este trabalho tem como objetivo analisar técnicas narrativas


utilizadas por James Joyce em “Um caso triste” (1914), e observar as
fases do luto apresentadas por Kübler-Ross e Kessler, em 1992,
vivenciadas pelo protagonista ao saber da morte da mulher pela qual
se interessara no passado. O narrador, extra e heterodiegético, conta
a história do Mr. Duffy, um asceta solitário e perfeccionista, que leva
uma vida sistemática. Ele se torna aparentemente mais sociável quando
conhece Mrs. Sínico, pela qual sente certo encantamento. Porém,
diante de uma manifestação efusiva dela, afasta-se, temendo o seu
descontrole. Passados alguns anos, lê num jornal que ela, embriagada,
teve um triste fim. As emoções pelas quais passa, ao saber do ocorrido,
correspondem às fases do luto trabalhadas por Kübler-Ross e Kessler
e demonstram que qualquer processo classificatório acaba sendo
personalizado pela própria vida ou pela narrativa.
PALAVRAS-CHAVE: “Um caso triste”. Fases do luto. Vida sistemática.

Introdução
James Joyce é considerado um dos escritores de língua
inglesa mais influentes do século XX. Ficou conhecido por sua
principal obra, Ulysses, um romance que revolucionou a narrativa
ficcional nas primeiras décadas do século passado. Sua primeira
publicação, Dublinenses, é uma coletânea de quinze contos sobre
a cidade de Dublin e a vida de seus habitantes. Trata-se de um
olhar sui generis sobre a sociedade dublinense, que o escritor
considerava “paralisada” frente ao desenvolvimento intelectual
e social do continente. O conto “Um caso triste”, que será abordado
neste trabalho, concluído em maio de 1905, narra a história do

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Mr. Duffy, um asceta solitário, perfeccionista, que leva uma vida
sistemática. O protagonista torna-se aparentemente mais
sociável quando conhece, em um concerto, Mrs. Sínico, pela qual
sente certo encantamento. Porém, diante de uma manifestação
efusiva dela, afasta-se, temendo o seu descontrole. Passados
quatro anos anos, lê num jornal que ela, embriagada, teve um
triste fim.
A voz narrativa, extra e heterodiegética, utiliza-se de uma
onisciência seletiva para adentrar os pensamento e sentimentos
do personagem principal. Como vemos em Fieldman (2007),
quando o autor utiliza a onisciência: “A história vem diretamente,
através da mente das personagens, das impressões que os fatos
e as pessoas deixam nela...”. No início do conto, o minimalismo
do cenário relatado já define, de certa forma, características do
Mr. Duffy. A casa do protagonista revela suas poucas necessidades
além de isolamento e solidão: “Morava numa casa velha e sombria
e das janelas avistava o alambique desativado ou mais adiante o
rio de pouca profundidade em cujas margens foi construída Dublin”
(JOYCE, 2012, p. 100). A casa em si não possui carpete, nem
quadros nas paredes; o quarto tem uma cama com cabeceira de
ferro na cor preta, colchão com lençóis brancos e uma colcha
vermelha e preta no pé da cama, no lado oposto da cama fica a
lareira com somente uma lamparina. Características como essas,
revelam sobriedade e reclusão; as cores vermelha e preta podem
conotar um sentido de amor resguardado e pressupõe que Mr.
Duffy possa ter passado por alguma decepção amorosa. A disposição
da cor branca dos lençóis em contraste com a cabeceira preta
levam imaginar uma falta de perspectiva existencial.
Na estante de livros, organizada de baixo para cima de
acordo com o tamanho dos livros, estava, no canto mais baixo à
esquerda, um exemplar de William Wordsworth, poeta romântico
inglês que publicou, juntamente com Samuel Taylor Coleridge,

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em 1798, The Lyrical Ballads. No canto oposto da estante, na parte
direita de cima, um exemplar de Maynoot Catechism, uma obra
religiosa que fala sobre questões da criação, vida e morte. Foi
revisada em 1892 por William Walsh, arcebispo de Dublin, mas
nunca publicada.
Essas duas obras mostram a dimensão cultural do Mr.
Duffy, revelando possivelmente um interesse metafísico e
romântico ao mesmo tempo, onde questões religiosas
provavelmente tenham algum cunho acético. Mais tarde quando
rompe o relacionamento platônico com Mrs. Sinico, essa estante
comportará mais dois volumes: Assim Falava Zaratustra e A gaia
ciência, de Nietzche.

Narrador e narrativa
O narrador usa a terceira pessoa e mantem-se fora da
diegese, é portanto um narrador extra e heterodiegético. Por outro
lado, se o narrador fosse um personagem da diegese, seria um
narrador homodiegético.

O narrador intradiegético e o narrador extradiegético podem


contar a própria história ou a história de outrem. O narrador
heterodiegético conta a história de outra personagem (não a
história dele próprio); o narrador que conta a própria história
ou, de algum modo, participa na narrativa é chamado narrador
homodiegético. O grau de participação de narradores
homodiegéticos (quer extradiegético quer intradiegético) pode
variar muito. Ás vezes o narrador tem um papel principal e
narra sua própria narrativa (é um narrador autodiegético).
(GENETTE, citado em BONNICI e ZOLIN, 2005, p. 118)

Nos três primeiros contos do livro Dublinenses: “As irmãs”,


“Um encontro” e “Arábia”, a voz narrativa é infantil, e o narrador
é homodiegético e autodiegético. A partir do quarto conto “Eveline”,
o narrador passa a ser extradiegético e heterodiegético,

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igualmente no conto “Um caso triste” que é o décimo primeiro do
volume. Portanto, as características de Mr. Duffy é retratada por
um narrador extra e heterodiegático, segundo Genette. A
personalidade do protagonista parece ser de uma pessoa que vive
a certa distância do corpo, realizando análises furtivas de si
mesmo em terceira pessoa e redigindo uma autobiografia concisa.
Trabalha de caixa em uma agência bancária, tem os horários
cronometrados diariamente. Janta sempre no mesmo local, na
George Street, sente-se a salvo da juventude dourada de Dublin.
A narrativa mostra como o personagem prefere locais reservados,
a fim de evitar mudanças bruscas ou imprevistos. Logo após jantar,
possui o costume de sentar-se ao piano ou caminhar pelos
arredores da cidade, hábito que leva a mostrar também que Mr.
Duffy é um ser solitário, que gosta de observar pessoas e
acontecimentos, mantendo certa distância; sente extrema
insegurança com o que possa vir a acontecer. Seu único
entretenimento é ir a concertos e óperas, gosta de ouvir Mozart.
Não possuí amigos, e seus parentes mal entravam em contato,
salvo em caso de óbito na família.
No conto, o narrador relata que Mr. Duffy “chegava a
pensar que em determinadas circunstâncias e desequilíbrio seria
capaz de roubar o banco onde trabalhava, mas, como tais
circunstâncias nunca se apresentavam, sua vida se desenrolava
serenamente” (JOYCE, 2012, p. 102-103). Certo dia, em um
concerto quase deserto, uma mulher inicia uma conversa,
mencionando como deveria ser desagradável ter poucas pessoas
presentes para apreciar a música. Notou que a mulher, Mrs.
Sinico, estava acompanhada de uma jovem, possivelmente sua
filha, porém a narrativa relata que “enquanto conversavam ele
se esforçou no sentido de gravá-la [a mãe] permanentemente na
memória” (JOYCE, 2012, p. 103). Porém, rapidamente Mr. Duffy
se recompunha a fim de não perder a compostura. A partir desse
momento, surge o interesse do protagonista pela mulher que

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estabelece uma conversa com ele, mulher de olhos azuis
resolutos, inteligente, rosto oval e traços marcantes. Surgiu um
segundo encontro, onde rapidamente, à chegada dela, ele
procurou ver se estava acompanhada, demonstrando que
necessitava de espaço para adquirir mais intimidade e sentia
um crescente interesse por ela. Entre o primeiro encontro e o
segundo, Mrs. Sinico deve ter ocupado os pensamentos do Mr.
Duffy, pois era algo único em sua vida rotineira. Como diz Piaget:

Deve-se observar, em primeiro lugar, que equilíbrio não é


característica extrínseca ou acrescentada, mas propriedade
intrínseca e constitutiva da vida orgânica e mental. Uma pedra,
em relação ao seu ambiente, pode se achar em estados de
equilíbrio estável, instável ou indiferente, nada disso alterando
sua natureza. (PIAGET, 1980 p. 88)

Mrs. Sinico por sua vez, era uma mulher casada, com uma
filha adulta. Seu marido era capitão da marinha e fazia a rota de
navegação Dublin – Holanda. Ao analisar a situação, observa-se
que é uma relação fadada a complicações: um casamento de 22
anos, e um marido distante que não dá importância nem
demonstra afeto pela esposa.
Para Mr. Duffy, um homem que não enfrenta muitos
desafios, talvez a situação criasse apenas mais um paradoxo.
Devido sua personalidade, existem fortes chances que ele não
desestabilizaria uma relação existente. Porém, essa nova
perspectiva, que bate às portas de Mr. Duffy, faz com que ele seja
tomado por novos anseios, a fim de ter o prazer da companhia de
Mrs. Sinico.
Os dois gostavam de fazer caminhadas noturnas, com a
privacidade necessária que estavam procurando, só que essas
também lhes traziam perturbações, pois estavam organizando suas
caminhadas às escondidas. Assim Mr. Duffy faz com que Mrs.

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Sinico o convide para ir a sua casa. O marido, que está na maior
parte do tempo viajando, acredita que o Sr, Duffy está interessado
na filha e encoraja a presença dele em sua casa.
Com o estreitamento da relação entre Mr. Duffy e Mrs.
Sinico, ele começa a expor as suas ideias, confiar seus
pensamentos e segredos, o que mais tarde lhe causará certo
constrangimento. Confia a ela também que participava de
reuniões do Partido Comunista Irlandês, que se sentia um homem
singular no meio dos operários. Achava que a causa era nobre,
porém, que estavam desiludidos politicamente; seus debates eram
sempre acalorados em um sótão mal iluminado. Era como se Mr.
Duffy começasse a confiar a Mrs. Sinico suas atividades e seus
interesses, como se sentisse necessidade de se abrir com ela.
Uma relação começa com revelações, e era isso que estavam
fazendo.
Algum tempo depois, o protagonista, como conta o narrador,
teve um despertar desse aparente amor platônico. “As conversas
terminaram quando certa noite, demonstrando um ardor fora do
comum, Mrs. Sinico tomou-lhe a mão apaixonadamente e apertou-
a contra o rosto” (JOYCE, 2012, p. 104). Mr. Duffy, se espanta e se
afasta de dela.
Depois de uma semana, ocorre o rompimento das relações
entre os dois, em uma padaria próxima ao portão do parque, onde
costumavam se encontrar e passear juntos. Andaram pelo menos
umas três horas pelo parque, no frio do outono dublinense,
demonstrando certa dificuldade em se afastar um do outro. Porém,
Mr. Duffy rompe a amizade, e antes que Mrs. Sinico dissesse algo
diante de tanto nervosismo que demonstrava, resolve fugir e evitar
uma crise. Dias mais tarde, ele recebe, em sua casa, todas seus
pertences que estavam com a ela.
Durante os dois primeiros meses que se seguiram ao
rompimento, pode-se verificar a percepção de Mr. Duffy em relação
à ruptura do vínculo em uma frase que está em meio a suas

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anotações dentro da sua escrivaninha: “O amor entre homem e
homem é impossível, porque não há relações sexuais. A amizade
entre homem e mulher é impossível, porque pressupõe relações
sexuais”. Neste momento, podemos dizer que ele, de certa forma,
tem consciência da impossibilidade de consumar seu desejo.
Fica claro que existia um vínculo forte entre as duas
personagens do conto. O narrador relata como eles se apegaram
e como acontece o rompimento dos laços afetivos entre os dois.
Na parte restante do conto, o narrador demonstrará as fases pelas
quais Mr. Duffy passará com a perda de Mrs. Sinico, quatro anos
depois. Neste período que se segue ao rompimento das relações
afetivas entre as personagens principais do conto, Mr. Duffy sofre
ainda mais devido à perda de seu pai, permanece longe dos
recitais; o sócio minoritário do banco se aposenta, e ele próprio
não havia mudado significativamente. Continua jantando no
mesmo local e depois lê as notícias no jornal local, até que é
surpreendido por uma notícia. É a notícia da morte trágica de
Mrs. Sinico. Ele perde a fome imediatamente, fica chocado. Pega
o jornal e o coloca no bolso, paga a conta e sai caminhando
rapidamente, marcando o ritmo acelerado com as batidas da
bengala na calçada. Fica ofegante, para em frente ao portão do
parque onde costumavam se encontrar. Descansa por um
momento e segue para casa onde lê a notícia cuidadosamente.
Não consegue ficar por muito tempo sozinho e sai novamente,
atônito, em busca de ar. Ficara perplexo com o que havia
acontecido, não queria que sua relação com ela se consumasse,
porém não queria um final trágico daqueles. Era uma espécie de
amor recolhido que jamais pôde ser retirado do peito devido à
situação que os envolvia.
Na notícia dizia que Mrs. Sinico estava atravessando os
trilhos do trem por volta das 22 horas, hábito que era comumente
praticado por ela, o que levava a crer também que ela tinha certo
conhecimento do que estava fazendo, que acarreta mais hipóteses

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do que tenha sido um mero um acidente. Tinha 43 anos de idade,
22 anos de casamento e, nas últimas noites, estava saindo
sempre para comprar bebida alcoólica. Sua filha tinha tentado
levar a mãe para a liga contra o alcoolismo, sem resultado. O
relato do jornal irrita o protagonista sobremaneira, como mostra
o trecho: a “narrativa da morte da mulher deixou-o revoltado e
deixou-o igualmente revoltado o fato de haver revelado a ela coisas
que para ele eram sagradas” (JOYCE, 2012, p. 107). Condenava
Mrs. Sinico pelos seus vícios e pelo modo de vida que levara,
desgraçando-o também. Possivelmente a morte de Mrs. Sinico
tenha sido ocasionada pelo desespero e angústia que vivenciara
ao ser abandonada. Como escrevem Ligeiro e Barros:

A angústia experimentada pela mulher não está referida à perda


real do objeto, mas à perda do amor por parte do objeto (Freud,
[1926] 1969). Ampliando esta afirmação, Ligeiro e Barros (2008)
enfatizam que o medo de ser abandonada pelo parceiro e perder
seu amor é uma invariável na vida psíquica feminina. Para as
autoras, enquanto o homem está submetido à função fálica,
nela encontrando um apoio para atravessar os momentos de
angústia, a mulher experimenta uma espécie de dissolução de
si, perdendo as fronteiras do seu ser. Diante de um não saber
sobre a própria feminilidade, a mulher tentará fazer suplência
a essa falta por meio do amor e buscará exclusividade no desejo
de um homem. Assim sendo, o amor, sobretudo a perda do
amor, é por ela sentida como uma devastação. Ela se perde ao
perder o amor do homem. (LEVY e GOMES, 2015)

Mr. Duffy, ao caminhar, tem a impressão que, por um


momento, a mão dela tocava a sua, mas logo as lembranças se
dispersaram e caminha até um bar. Lá havia seis operários
embriagados, cuspindo no chão e passando um pó de serragem
para camuflar a sujeira. “Mr. Duffy sentou-se numa banqueta e
ficou olhando em direção ao grupo, sem enxergá-los nem ouvi-

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los” (JOYCE, 2015, p. 104). Não estava processando, tomou a
primeira dose rapidamente, o garçom parecia dormir debruçado
no balcão. Ainda vemos que, “demorou um tempo mais, tomou
sua segunda dose enquanto ouvia o barulho estridente do bonde
de longe” (JOYCE, 2012, p. 108).

As cinco fases do luto


As fases do luto, descritas por Kübler-Ross e Kessler (1992),
são classificadas como negação, raiva, barganha, depressão e
aceitação. A psicóloga Carine Eleutério sugere, em seu site, como
essas fases caracterizam o desenrolar do conto “Um caso triste”:
“Ocorre luto em qualquer situação ou fato relevante que chegue
a um determinado fim, principalmente quando temos sentimentos
intensos arraigados ao fato” (ELEUTÉRIO, 2011). A fase que o
personagem encara primeiro é negação e raiva, e posteriormente
depressão, negociação e aceitação.

Certa noite estava prestes a pôr uma garfada de carne seca e


repolho na boca quando deteve a mão. Os olhos fixaram-se em
um parágrafo no jornal vespertino apoiado contra a moringa
d’água. Devolveu o bocado de comida ao prato e leu o parágrafo
com atenção. Ao chegar em casa subiu direto até o quarto e,
depois de pegar o jornal do bolso, leu o parágrafo mais uma vez
na luz evanescente da janela. (JOYCE, 2012, p. 106-107)

Existe então, um momento de recusa dos fatos e de


irritabilidade, onde há uma negação do acontecido, em que o
personagem arruma um jeito de não entrar em contato com a
realidade que o acomete, buscando também não falar do assunto.

Mr. Duffy ergueu os olhos e lançou um olhar para a rua,


em direção ao triste panorama do entardecer. Que fim! Toda a
narrativa daquela morte o repugnava, e repugnava-o pensar que

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 18


em outra época havia feito revelações sobre tudo o que considerava
sagrado para aquela mulher. (JOYCE, 2012, p. 108-109)
Dessa forma, o protagonista não sente raiva, mas, culpa
e revolta. Como ela poderia ter morrido se ele havia trocado
confidências com ela.

Enquanto ficava lá sentado, revivendo a vida ao lado dela e


evocando alternadamente as duas imagens que agora a
concebia, percebeu que ela havia morrido, que havia deixado
de existir. Tentou imaginar o que mais poderia ter feito. Não
poderia ter levado adiante aquela comédia de engodos. Não
poderia ter vivido abertamente com ela. Fez então o que lhe
pareceu melhor. Que culpa poderia ter? (JOYCE, 2012, p. 110)

Durante a fase de barganha, devido a sua personalidade


forte, Mr. Duffy ainda age com certo rigor, durante um passeio no
parque como descreve o narrador. O bar é um refúgio, porém as
lembranças sempre voltam ao Mr. Duffy, o que faz com que passe
ao quarto estágio, o da depressão. Ele se isola em seu mundo
interior, entregue à melancolia, sentindo-se impotente perante
a situação que vive. No conto, o narrador relata que Mr. Duffy se
dá conta que Mrs. Sinico está morta, e “apenas ficou uma
lembrança, logo é acometido pela ideia de que será que se
lembrarão de mim após minha morte?”. (JOYCE, 2012, p. 109).
Sai do bar, vai diretamente ao parque onde se encontravam, seu
pensamento era tão forte em relação a Mrs. Sinico que a ouvia
falar aos seus ouvidos e novamente sentia o toque de suas mãos.
O narrador relata que o personagem, “pensou por que a mulher
negara a vida, porque optou pela morte” (JOYCE, 2012, p. 109).
Percebe-se aqui que a hipótese de suicídio da Mrs. Sinico passa
pela cabeça do Mr. Duffy, descartando a hipótese de acidente.
Estava moralmente despedaçado. Olhava da parte alta da cidade
para as luzes convidativas.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 19


Na sequência, observa-se que Mr. Duffy “Olhou pela
encosta da colina e, ao pé da ladeira, à sombra do muro do parque,
viu figuras humanas deitadas. Aquelas cenas de amor furtivas
levaram-no ao desespero” (JOYCE, 2012, p. 109). Mr. Duffy fica
transtornado, emoções vêm à tona, reforçando ainda mais a ideia
de depreciação de si mesmo. Alguém o tinha amado e ele lhe
negou a oportunidade de ser feliz, e além de tudo a tinha
condenado a uma vida de ignomínia e a uma morte vergonhosa.
Pensou, logicamente, que as pessoas que observava não estavam
contentes com sua presença importuna, estava fora da festa da
vida como mostra o narrador, que relata como Mr. Duffy observava
o trem “como um verme com a cabeça flamejante retorcendo-se
na escuridão, obstinado, prosseguindo a duras pernas” (JOYCE,
2012, p. 109). Uma analogia em relação à personalidade e a vida
do protagonista. Mr. Duffy fica ali parado, observando o trem
enquanto pensa no rumo de sua vida. O trem logo se vai, mas
ainda ouvia o nome de Mrs. Sinico em forma de apito que soava
distante. Vemos que o protagonista “começou a duvidar do que
lhe dizia a memória. Parou embaixo de uma árvore e esperou
que o ritmo cessasse” (JOYCE, 2015, p. 109). Não havia mais nada.
Silêncio total, Mr. Duffy sentia-se sozinho novamente.
Dessa maneira, pode-se ver que o personagem passa pela
última fase do luto de Kübler-Ross e Kessler (1992), onde já não
há mais tanto negação nem desespero, consegue enxergar no
meio da turbulência uma saída, consegue organizar sua realidade,
está preparado, de certa forma, para lidar com a perda. Percebe-
se que a personalidade forte e marcante do Mr. Duffy, junto com
as características que lhe foram atribuídas, é que dá suporte para
que ele supere a perda rapidamente.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 20


Considerações finais
Observa-se assim a focalização utilizada James Joyce no
conto “Um caso triste”, onde se revela uma onisciência seletiva
por parte do narrador heterodiegético, para que o leitor seja capaz
de perscrutar o funcionamento da mente do protagonista, fazendo
com que o método narrativo exponha as várias nuances da
maneira de pensar de Mr. Duffy. São inseridas as fases do luto de
Kübler-Ross e Kessler, de modo que o leitor realize a leitura
observando as qualidades que a obra tem a oferecer, como por
exemplo, a perspectiva do personagem principal e a riqueza de
detalhes, enriquecendo as características pessoais de Mr. Duffy
no desenrolar do conto. E além disso, o conto serve de base para
desenvolver, em tom reflexivo, as subjetividades da vida, as
oportunidades que são apresentadas, perdidas e jamais
resgatadas.

Referências

BONNICI, T.; ZOLIN, L. O. Abordagens históricas e tendências


contemporâneas. Teoria Literária, Maringá, 2005.

ELEUTÉRIO, C. Os cinco estágios do luto de Kübler-Ross. Disponível


em: www.psicologiadostress.com. Acesso em: 15 jun. 2015.

FREUD, S. Inibições, sintomas e angústia. V. XX. Rio de Janeiro:


Imago, , 1926/1969.

JOYCE, J. Dublinenses. Tradução de José Roberto O’Shea. São


Paulo: Hedra, 2012. 208 p.

KÜBLER-ROSS, E. Sobre a morte e morrer. São Paulo: Martins


Fontes, 1992.

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LEITE, L. C. M. O foco narrativo (ou A polêmica em torno da ilusão).
São Paulo: Ática, 1995. Série Principios.

LEVY, L.; GOMES, I. C. Os desatinos da paixão. Disponível em:


http://www.psicopatologiafundamental.org/uploads/files/
posteres_iv_congresso/mesas_iv_congresso/mr09-lidia-levy-e-
isabel-cristina-gomes.pdf. Acesso em: 25 mar. 2015..

PIAGET, J. Seis estudos de psicologia. Trad. Maria Alice Magalhães


D’Amorim e Paulo Sergio Lima Silva. 24. ed. [S.l.]: Forense
Universitária, 1896-1980.

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ASPECTOS HISTÓRICOS E SOCIOCULTURAIS
EM DANÇANDO EM LÚNASSA

Autores: Aline Benato Soares (UTFPR-PB)


Cibele Filus Marchese (UTFPR-PB)
Danielle Franco Brunismann (UTFPR-PB)
Saionara de Araújo Weiss (UTFPR-PB)
Orientadora: Profa. Dra. Gisele Giandoni
Wolkoff (UTFPR-PB)

RESUMO: O presente trabalho objetiva analisar os aspectos históricos


e socioculturais presentes na obra Dançando em Lúnassa, do dramaturgo
Brian Friel. A peça representa os efeitos socioculturais da inserção da
Modernidade, na Irlanda. A análise do estudo foca na família Mundy,
no seu potencial metafórico, pois se trata de uma família que tenta
manter as aparências conservadoras apesar de todas as rupturas
evidenciadas pelos novos tempos. Assim, esta família desconstrói o
modelo familiar, com cinco irmãs solteiras, uma delas com um filho
gerado fora do casamento, e um irmão padre católico que se converte
ao paganismo. A obra evidencia a ruptura cultural na sociedade
irlandesa, dados os avanços modernos no cerne do país. Em
contrapartida, a busca por identidade nacional, ao aludir ao Festival
de Lúnassa, Friel retoma a cultura celta e destaca a tentativa de
preservação do catolicismo em meio à proliferação pagã.
PALAVRAS CHAVE: Aspectos históricos; aspectos socioculturais; teatro
irlandês.

Brian Patrick O’Friel nasceu em 1929, na Irlanda e a


estreia de Dancing at Lughnasa ocorreu em 1990 no Abbey Theatre
em Dublin. Posteriormente no ano de 1994 foi lançada a versão
para o cinema da peça Dancing at Lughnasa e 2004 estreou a
produção brasileira da Cia Ludens, sob direção de Domingos Nunez
e em 2014 a peça foi reencenada pela mesma companhia.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 23


Uma das características em evidência nas obras do
dramaturgo irlandês Brian Friel é o resgate histórico da Irlanda,
realizado através da representação dos mitos e dos rituais, a fim
de preservar e perpetuar a história na constituição do país. Na
obra Dançando em Lúnassa os mitos estão presentes no Festival
ao deus Lugh e em toda a mítica que dele emana e contagia a
família Mundy. Os rituais modificados no contexto familiar com a
introdução da modernização simbolizam o processo ritualístico
vivenciado pela Irlanda. Tendo por fonte de reafirmação do dito
tem-se:

[...] Friel retrabalha mitos e rituais a fim de refazer e atualizar


o drama enquanto um ritual em si mesmo, cuja razão de ser é
permitir a significação e reorganização da vida individual e social
no mundo moderno industrial, no caso específico, a vida na
Irlanda contemporânea. [...] (CAPUCHINHO, 2012, p. 14-15)

Sob esse aspecto, devemos nos ater a duas épocas


diferentes, que estão presentes na obra - primeiramente a época
em que Michael narra suas memórias, 1960, depois o período em
que viveu o que está sendo narrado, 1936. Quando a personagem
vive com a mãe e as tias, que sofrem pela chegada da
industrialização no país.
Em 1960 alguns dos aspectos negativos que os irlandeses
vivenciaram, foram as grandes taxas de mortalidade infantil e de
adultos por doenças e desnutrição, o que demonstra a fragilidade
econômica do país. Embora a Irlanda fosse um estado
independente, ainda mantinha conflitos econômicos com a
Inglaterra, constatados através dos problemas relatados
historicamente, como a pobreza na zona rural e a falta de emprego
na zona urbana.

Dancing at Lughnasa se passa na mente do narrador em seu


momento presente (início dos anos 1960) em um espaço

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 24


desconhecido, entretanto o que vemos é o tempo passado nos
arredores da fictícia Ballybeg, em agosto e setembro de 1936.
As memórias indicam o clima de desestabilização de proporções
mundiais que se insinuava através da música e aparecia até
mesmo nas brincadeiras entre as irmãs. Tratava-se do período
logo após o fim da segunda guerra ítalo-abissínia, durante o
início da guerra civil espanhola e no período entre as guerras
mundiais. (CAPUCHINHO, 2012, p. 133)

A Irlanda, na década de 1960, sofre com a busca de


identidade. Em sua história, destacam-se fatos sóciohistóricos
como a invasão dos povos bárbaros, os quais trouxeram a cultura
celta e toda a mítica que envolveu culturalmente a formação do
país. Por intermédio de São Patrício ocorreu a inserção do
Cristianismo. Além disso, no reinado de Henrique VIII foi instituído
como religião oficial da Inglaterra o Anglicismo e a Irlanda, ao
sofrer o processo de colonização, recebeu forte influência religiosa.
Houve resistência religiosa por parte do povo irlandês, o
qual ansiava pela permanência da religião católica. Na obra
Dançando em Lúnassa a resistência à mudança religiosa é
simbolizada, na obra, através da personagem Kate, que se mantêm
firme em suas convicções em relação ao Festival de Lúnassa, ao
comportamento de Gerry, e à utilização do rádio e aos efeitos que
este causa. A obra apresenta de forma metafórica a evolução da
história política e social da Irlanda.
Segundo Domingos Nunez, a obra Dançando em Lúnassa
organiza-se em três características principais: oralidade, conflito
de transição e atuação física. A oralidade é um dos elementos
fundamentais da Dramaturgia Irlandesa. Na peça essa
característica evidencia-se na presença de um narrador-
testemunha, Michael o qual é um intermédio entre o passado e o
futuro. O conflito da transição está relacionado à disparidade entre
o tradicional/rural e o moderno/urbano. Ainda podemos ressaltar
que:

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 25


[…] fragmentary reflection of old traditions lost over time. Their
contemporaneity breaks down binary dichotomies and shows
the interaction between past and present, tradition and
modernity, paganism and Christianity, supernaturalism and
rationality, etc., though not without conflicts, which to some
extent helps restore the Irish folk tradition to modern Irish
society. (HE, 2014, p. 98.)

[...] reflexão fragmentária de antigas tradições perdidas ao longo


do tempo. Sua contemporaneidade quebra dicotomias binárias
e mostra a interação entre passado e presente, tradição e
modernidade, paganismo e cristianismo, sobrenatural e
racionalidade, etc., embora não sem conflitos, que em certa
medida ajuda a restaurar a tradição folclórica irlandesa para a
sociedade irlandesa moderna. (HE, 2014, p. 98, tradução nossa)

Com a chegada da modernidade na cidade de Ballybeg, o


tradicional que se apresenta basicamente na zona rural (local
onde a família Mundy vive) tem seu espaço tomado para aquilo
que é moderno representado pela zona urbana.
Esse conflito é representado na obra através das irmãs
Agnes e Rose que exercem como ofício o tricô, entretanto, elas
trabalham em casa e isso não lhes dá estabilidade. O trecho: “Tem
uma nova fábrica que foi inaugurada na cidade de Donegal. Eles
fazem luvas na máquina mais rapidamente lá, e muito barato.
As pessoas para quem a Vera fornecia agora compram as luvas
diretamente da fábrica”. (FRIEL, 2013, p. 102) refere-se ao
momento em que marca a chegada de uma fábrica na cidade, a
qual é a responsável por deixar as irmãs sem renda.
Por fim, encontra-se a atuação física que na peça Dançando
em Lúnassa está diretamente relacionada à movimentação das
personagens, que resulta na dança alegre das irmãs
demonstrando a vivacidade restante entre elas e ao mesmo tempo
as lembranças de uma época passada em que eram jovens e não

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 26


viviam em meio a diversas mudanças. No excerto a seguir
identifica-se a presença dessa característica:

E quando me recordo de como a cozinha pulsava com o ritmo


da música dançante irlandesa que chegava até nós vinda de
Athlone e de como minha mãe e suas irmãs, repentinamente,
davam-se as mãos e começavam a dançar por toda casa – e
como elas riam e gritavam! Pareciam colegiais excitadas. (FRIEL,
2013, p. 27)

Essas características são retratadas pelas personagens


que basicamente são as cinco irmãs solteiras, Kate, Meggie,
Agnes, Rose e Chris. Somente a mais velha trabalha fora de casa.
Além delas, há o padre Jack que foi a África trabalhar como
missionário, a fim de converter o povo africano ao Catolicismo,
Michael que é o filho de Chris com Gerry, fruto de um
relacionamento sem a constituição do casamento.
Existem aspectos retratados pelo autor, que se
evidenciaram na construção sociohistórica da Irlanda, o
conservadorismo apresentado pela personagem da irmã mais
velha Kate. Apresentamos uma fala de Kate a qual se queixa a
irmã Maggie como forma de expressar a pressão que vive e a
ingratidão que sente por parte da família:

Você trabalha duro em seu emprego. Tenta manter a família


unida. Cumpre suas obrigações o melhor que pode... porque
acredita em responsabilidades, deveres e manutenção da ordem.
Então de repente, de repente percebe que rachaduras estão
surgindo por toda parte; que você está perdendo o controle;
que tudo é tão frágil que não consegue mais se sustentar por
muito tempo. Tudo está prestes a desmoronar, Maggie. (FRIEL,
2013, p. 75)

Após esse desabafo, Maggie tenta reverter a situação


falando a Kate que está enganada, que tudo está sob controle,

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 27


mas na verdade as duas sabem da situação pela a qual a família,
e toda sociedade irlandesa está passando. Observando outro
personagem, deparamo-nos com Michael que conta os fatos na
peça de acordo com a sua memória. Ele filtra os acontecimentos,
conforme a experiência pessoal. “Quando eu paro para pensar
naquele verão de 1936” (FRIEL, 2013, p. 25).
Além de ser o narrador da peça, Michael é caracterizado
como aquele que iniciou a desconstrução de uma família
tradicional, pois seus pais não são casados e o geraram fora de
uma relação matrimonial.

Michael foi a primeira ruptura da família com uma norma social


ao nascer fora do casamento. Acrescentamos que Michael
também fora o primeiro elemento masculino que perturbara a
coesão familiar e a aceitação da família de cinco mulheres
solteiras que valorizava o casamento e os filhos de acordo com
a moral cristã. Michael reconhece sua parcela na
desestabilização da família. (PINE, 2000 apud CAPUCHINHO,
2012, p. 131)

É nesse sentido que Michael apresenta-se como a figura


que tenta retornar ao passado no intuito de reestruturar aquilo
que segundo ele foi destruído em parte por sua própria culpa. “[...]O
narrador Michael relembra e mostra o conflito e a ruptura vividos
em sua infância em uma tentativa de restauração e reconciliação
com seu passado”(CAPUCHINHO, 2012, p. 124). Michael procura
reconciliar-se consigo mesmo, pois, não aceita sua história, a
constituição familiar na qual nasceu e nem os rumos que
obtiveram. Compreende-se que julga seu nascimento como fator
decisivo a desestrutura em que vive, sendo ele o único com dever
e possibilidade de remissão pela família.
A família Mundy é a simbolização da Irlanda de 1936. Fato
de grande impacto na constituição cultural e econômica irlandesa
é a modernização, a qual é retratada na obra com a inserção do

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 28


rádio no cotidiano familiar. Na peça Dançando em Lúnassa, na
edição de 2013, versão traduzida por Domingos Nunez, ele
considera que: “[...] As irmãs Mundy adquirem seu primeiro
aparelho de rádio em 1936. A chegada dele representa uma
intromissão de elementos modernos em um universo rural até
então desprovido de máquinas” (NUNES, 2013, p.07). Intromissão
que causa a desestrutura familiar. Quando o rádio é ligado toda a
casa da família Mundy se agita e fazendo com que os personagens
percam a compostura tradicional.
Quando esse objeto, o rádio, passa a compor o cotidiano
das irmãs, elas sofrem com um impacto maior: a inserção das
fábricas, o que afeta as atividades econômicas das irmãs Agnes e
Rose, como nos mostra o trecho a seguir:

Michael – Na noite seguinte Vera McLaughlin veio e explicou a


Agnes e Rose que não poderia mais comprar suas luvas feitas
à mão. Muitas tricoteiras que trabalhavam em casa para ela já
estavam empregadas na nova fábrica e ela aconselhou Agnes e
Rose a se candidatarem imediatamente. A Revolução Industrial
tinha finalmente chegado a Ballybeg. (FRIEL, 2013, p. 111)

As irmãs foram aconselhadas a se candidatarem às vagas


de emprego na fábrica, mas elas não aceitam essa transformação
e então se mudam para Londres, na tentativa de reiniciarem
suas vidas. Mas, no fim, percebe-se que elas não conseguem
estabilidade financeira e acabam morrendo, sem ter a
oportunidade de voltar às suas origens. A irmã mais nova, Chris,
vai trabalhar na fábrica, mas é descrita a sua infelicidade pelo
resto da vida. No prefácio da obra Domingos Nunez ressalta que:

[...] Além disso, o rádio contribuiu para introduzir ideias


externas e ideais novos em áreas anteriormente isoladas. [...]
Kate, a guardiã dos preceitos católicos e da moralidade pública,
rejeita essa música incitadora de danças pagãs por enxergar

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 29


nos estilos “estrangeiros” uma ameaça ao nacionalismo e à
religião irlandeses [...] (FRIEL, 2013, p. 08)

Outra vertente a ser analisada é a figura de padre Jack, o


único irmão das irmãs Mundy, e ao ser ordenado sacerdote é
enviado para a Uganda, na África, para uma missão de
catequização. Contudo, ao conviver com a cultura e com o povo
africano, padre Jack acaba por se converter ao paganismo, não
sendo mais propício a trabalhar como como colonizador. Deste
modo é providenciado o seu retorno à Irlanda. Para padre Jack a
cultura irlandesa já não o pertence mais, já havia se apropriado
da cultura pagã na qual estava inserido. Assim, sofre com o exílio
em ser retirado de sua cultura apropriada, com a qual teve contato
na África, e inserido novamente na cultura da qual se
desapropriou. Segundo Capuchinho:

[...] No entanto, essa “casa” revelou-se um lugar que ele não


reconhecia e com o qual não sentia relação de pertencimento,
posto que guardasse apenas vaga lembrança dos costumes do
lugar, de seus moradores e até mesmo de suas irmãs. Jack
sonhava em voltar para Uganda, pois fora arrancado de seu
povo de escolha tal qual um criminoso estrangeiro extraditado.
(CAPUCHINHO, 2012, p. 156)

Deste modo, padre Jack não consegue retornar à sua


cultura de origem, não se recorda do vocabulário, das pessoas,
das concepções culturais. Exemplificando com excerto da obra de
Friel, “Jack – Se alguém procurar por mim, vou estar lá embaixo,
na encosta do rio pelo resto do... (Sua voz enfraquece e ele olha em
volta. Então se dá conta de onde está. Ele sorri.) Desculpem-me...
minha cabeça estava... É a Kate?” (FRIEL, 2013, p.79).
Aproximadamente um ano após o seu retorno, padre Jack
vem a falecer, fato que se considera resultado de um desgosto e
dificuldade de viver sem estar inserido em sua cultura apropriada,

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 30


configurando-se assim um exílio cultural. Segundo Capuchinho
(2012, p.19.) [...] Também Christopher Murray assinala que em
Friel o “exílio é sintoma de um deslocamento insuportável; é em
si mesmo um estado de espírito” (1999 p. xiii). Constata-se que
psicologicamente o padre Jack não consegue superar o
deslocamento cultural sofrido e rende-se à liberdade
proporcionada pela morte.
Na obra Dançando em Lúnassa, presenciamos
características da Irlanda pré e pós-influência moderna, as
inovações, por meio das músicas do rádio, da nova identidade do
padre Jack e dos relatos sobre o Festival de Lúnassa e as
consequências vividas após tais eventos. E, de acordo com Chu
He (2014), os relatos do Festival de Lúnassa são resgatado da
memória da personagem de Michael, e imitado por ele e pelas
outras personagens de forma desajeitada, tendo em vista todas
as dicotomias que ocorre na peça de Friel, e que, de uma forma
ou de outra, as personagens são submetidas.
Podemos elencar diversas rupturas que ocorrem na obra,
como a geração de um filho fora do matrimônio, cinco irmãs
solteiras, o irmão mais velho, o qual foi ordenado padre católico e
em uma missão se converte ao paganismo, a introdução da fábrica
e por consequência a perda de espaço de comercialização que
leva duas irmãs Mundy a fugirem de casa em busca de trabalho
em Londres. Essas rupturas representam a história da Irlanda e
suas transformações culturais e econômicas. Deste modo,
observa-se que:

For three, or perhaps four centuries, Irish Literature has lived


in the shadow of of political and economic breakdowns of
distressing frequency. It has lived between two languages and
two cultures, it has competed with antiquarian and historical
research, with political theory and clerical polemics in its
attempt to identify the existence of a cultural community in
which the possibilities of freedom might be won. In the twenties

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 31


century in particular, these experiences, and the habituation
of the Irish mind and sensibility to them, have given the
literature of the country a prominence never know before.
(DEANE, 1994, p. 248)

Por três, ou talvez quatro séculos, a literatura irlandesa tem


vivido na sombra de falhas políticas e econômicas de frequência
angustiante. Viveu entre duas línguas e duas culturas,
competiu com a pesquisa histórica, com a teoria política e
polêmicas clericais em sua tentativa para identificar a
existência de uma comunidade cultural em que a possibilidade
de liberdade pode ser conquistada. No século vinte, em
especial, estas experiências, bem como a habituação da mente
e sensibilidade para eles, ter dado a literatura do país uma
proeminência nunca vista antes. (DEANE, 1994, p. 248, tradução
nossa)

Ressalta-se a ideia de que Friel volta à atenção para


possíveis problemas vindos através do progresso e do
desenvolvimento econômico. Além disso, aborda a preservação e
propagação da cultura e da identidade irlandesas, destacando
elementos fundamentais da identidade cultural, como o
paganismo, o catolicismo o qual enfrentou resistência ao
anglicismo, imposto durante o período de colonização pela
Inglaterra.
Além disso, pode-se dizer que Brian Friel utiliza da
personagem Michael para demonstrar com maior impacto as
rupturas históricas, a introdução da modernidade e as
consequências:

E embora eu fosse uma criança de apenas sete anos naquela


época, eu já tinha, eu sei, esse sentimento de inquietação
dentro de mim, já tinha consciência daquele abismo gigantesco
que separava o que parecia ser do que realmente era. Já
percebia as coisas se modificando muito rapidamente diante

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 32


dos meus olhos, e se transformando no que não deveria ser.
(FRIEL, 2013, p. 27)

Através do relato de Michael, podemos observar que


mesmo ele, tendo sete anos, consegue perceber as mudanças
que estavam ocorrendo na família e na sociedade.
Por meio da análise da peça Dançando em Lúnassa
encontramos muitos aspectos sóciohistóricos da Irlanda
representados na obra. O paganismo, que se toma por rito irlandês,
é representado pelo Festival de Lúnassa, realizado em homenagem
ao deus céltico Lúgh. A resistência da religião católica, ao sofrer
pressão com a colonização da Inglaterra, que tinha por religião
oficial o Anglicismo, e demonstrou resistência às mudanças, é
identificada por Kate, irmã mais velha das irmãs Mundy, a qual é
conservada, mantendo suas convicções religiosas com o intuito
de preservar a estrutura de sua família
O interesse particular do autor pelo choque cultural da
sociedade irlandesa ao se deparar com o mundo industrial e as
inovações tecnológicas, evidencia-se nesta obra através do
detalhamento da relação das irmãs com o rádio no decorrer da
peça. Podemos observar os lamentos e os infortúnios que a
modernidade trouxe a esta comunidade, de forma que o autor nos
leva a compreender o poder das memórias e do amor, mas em
contrapartida é notório que muitos personagens procuram
“adaptar-se” a modernidade, mesmo não acreditando que ela seja
algo bom.
A narrativa de Friel nos mostra a realidade de uma
comunidade, que é relatada como foco de análise da transição
moderna, e que de certa forma desencadeia a trama com
revelações instigantes e esclarecedoras, sua narrativa também
traz a contradição de casa e exílio, bem como mudança cultural e
a questão da adaptação social. O exílio cultural sofrido por padre
Jack retransmite, pela peça, o exílio cultural qual o povo irlandês

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 33


vivenciou a ruptura entre culturas no processo de constituição
da história.
Por fim, as atitudes do narrador são o que evidencia a
transição entre os dois tempos que nos deparamos na peça.
Isoladamente podemos analisar o momento de produção em que
a obra foi escrita, bem como a forte ligação entre a vida do autor
e a vida de Michael, que sinaliza o drama e faz com que a obra
ressoe como a história da própria família de Brian Friel. Em
contrapartida, o contexto em que a obra foi produzida assinala
outra vertente, a de que Friel aponta todas as disparidades sociais
enfrentadas pela família Mundy e que sob nossa análise são um
espelho da sociedade irlandesa.

Referências

CAPUCHINHO, Adriana C. Liminaridade, sacríficio e reciprocidade:


uma abordagem do ritual em três peças de Brian Friel. Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo. São Paulo, 2012.

DEANE, Seamus. A Short History of Irish Literature. Notre Dame,


Indiana: University of Notre Dame Press, 1994.

FRIEL, Brian. Dançando em Lúnassa. Beatriz Kopschitz Bastos,


organização; Domingos Nunez, tradução e apresentação. São
Paulo. Hedra, 2003.

HE, Chu. Non Modern Culture in Brian Friel’s Plays. Disponível em:
< http://www.abei.org.br/images/ABEIJournal16Internet,pdf>
Acesso em: 22 mai. 2015.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 34


INDIVÍDUO E CULTURA NO ROMANCE FINNEGANS WAKE
DE JAMES JOYCE

Autora: Ana Caroline Ferreira Costa (UFPR)

RESUMO: A discussão sobre a construção simbólica no romance


Finnegans Wake (1939), de James Joyce, nunca está dissociada da sua
noção de construção simbólica social. Então, ao longo dos anos, sempre
foi muito importante para seus críticos entender a razão de um livro
tão aberto às mediações do leitor trabalhar com tantas repetições de
referências e estruturas narrativas a ponto de podermos ligar todos os
episódios por inúmeras semelhanças, pois reside aí seu entendimento
de identidade – do indivíduo e das culturas. O Wake nos expõe
semelhanças inquestionáveis entre narrativas das mais diversas
culturas gerando duas correntes de pensamento: a que vê nisso a
revelação de características universais da humanidade e a que busca
demonstrar que ele está justamente condenando qualquer padronização.
Aqui, defendemos que o livro provém certos pontos de apoio porque
relativiza a possibilidade de superação de padrões e que,
paradoxalmente, é assim que se torna verdadeiramente instável e
mutante.
PALAVRAS-CHAVE: identidade. Padronização. Instabilidade.

Afirmar qualquer aspecto do Finnegans Wake (1939) é


sempre conflituoso. O último trabalho de James Joyce (1882-1941)
permite muitas definições paradoxais e é sempre necessário
explicar excessivamente de que ponto de vista se toma um adjetivo
para ele. O caso é de todo exclusivo e a ausência de parâmetros
na história da literatura para o que o autor realizou nesta obra
nos força a buscar nela mesma os padrões que nos guiarão por
sua leitura.
Poder-se-ia dizer que isto se deve ao livro intencionar algo
diverso do raciocínio lógico. A obra foi constituída para ser um
sonho, ou talvez um conjunto de sonhos. Suas instabilidades

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linguísticas e seu amontoamento de referências pretendem
reconstituir a natureza onírica. Como define Joyce, um “estado
noturno, lunar. Isto é o que eu quero transmitir: o que acontece
num sonho, durante um sonho. Não o que resta depois, na
memória. Depois, nada resta” (JOYCE apud BISHOP, 1986, p. 8
[todas as traduções deste trabalho são minhas]). A ordem que o
Wake deseja respeitar, portanto, é a do inconsciente, mantendo-
se distante das necessidades de causa e efeito que têm a
consciência. O sono produz um mundo livre, onde as informações
se recombinam sem descanso, não permitindo que sua realidade
se estabeleça em uma forma.
O sonho wakeano talvez não seja de apenas um indivíduo,
pois a história de toda a humanidade aparece nas inúmeras
referências trazidas no decorrer da obra. Como define Seamus
Deane, “Este é um sonho comum, um sonho da família humana,
com a ‘história do mundo’ como sua memória” (DEANE in JOYCE,
1992, p. XI). O que temos é, então, uma tentativa de se colocar
tudo, absolutamente todo o conhecimento sobre a existência,
convivendo sem nenhum tipo de hierarquia. A ordenação não
segue as lógicas da cronologia ou das localizações, nem sequer a
das classificações que distinguem os objetos entre si.
A busca wakeana é pela retirada das leis que regem a
forma como uma história é contada: as convenções de linguagem,
tempo, cenário e roteiro. A obra toma como base o inglês, mas
deforma-o. Funde suas palavras entre si, bem como com outras
86 línguas (GALINDO, 2010, p. 42). Os signos convivem de forma
sincrônica, comunicando simultaneamente diferentes níveis de
narrativa. A obra constrói, assim, um modo de significação dado
pelo jogo, pela descoberta por parte do leitor de possibilidades de
combinações entre os vocábulos. É preciso que nós construamos
as relações entre os signos notando possíveis associações entre
eles.

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O estudioso wakeano John Bishop (1993) ressalta que é
por associação aleatória que se costuma lembrar um sonho: a
última parte primeiro, a primeira parte no meio, e assim por
diante, fora da sequência. E nos pergunta: quem garante que não
é assim que os sonhos são formados? Que esta não é exatamente
a ordem na qual as imagens apareceram durante a noite? Que os
sonhos não são impressões informuladas, “talvez ocultando uma
estrutura secreta a posteriori para fazer com que aquilo tenha
um sentido lógico” (BISHOP, 1993, p. 9). Para Bishop, é deste modo
que o Wake nos convida a lê-lo. Sua forma é desordenada, porém
nos induz a juntar uma parte de um lugar com outra de outro e,
por fim, recorrendo a nossa memória, preencher os vãos entre
elas (BISHOP, 1993, p. 306). Logo, o sentido wakeano se faz para
nós quando o organizamos, ainda que o texto em si não seja
expresso assim.
Não apenas estamos sempre resgatando o que já foi lido
para entender sua relação com o que vem agora, mas o Wake
parece não cessar de resgatar este passado por nós. Independente
da ordem em que as narrativas são absorvidas, percebem-se
referências de elementos de umas nas outras, como também a
repetição de algumas estruturas das histórias, de modo que
podemos ligar todos os episódios por inúmeras semelhanças. Cada
reprodução revela sempre alterações em comparação com as
outras, impedindo-nos de compreendê-las como iguais, mas
levando os estudiosos a uma reflexão sobre a existência ou
ausência de padrões na narrativa da obra.
Nessa reflexão, situa-se a grande divergência entre os
críticos, pois a discussão sobre a construção simbólica no
Finnegans Wake nunca está dissociada da sua noção de construção
simbólica social. Acredito que o tema da uniformização apareça
na obra através de sua constante e intensa investigação de
nossas origens. Ainda que tenhamos histórias únicas que nos
formam como indivíduos, muito interessa ao Wake compreender

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 37


um passado que nos é comum, pois ele é determinante para a
construção até mesmo do que seja a individualidade. E é em
decorrência da busca por este caminho percorrido que nos
deparamos com a forte influência dos mitos na formação das
sociedades e, consequentemente, do ser. Assim, as reproduções
de analogias aparecem no livro também traçando paralelos entre
mitologias das mais diversas culturas, como se as narrativas
wakeanas repetissem algo delas.
Portanto, no confronto entre identidade e modelo, os
críticos acabam por discutir também a influência dos mitos na
construção da personalidade e da percepção sobre o mundo. Isso
porque o próprio Finnegans Wake parece nos colocar no lugar desta
reflexão, nos mostrando que ele mesmo se constitui com base
nos mitos ao mesmo tempo em que nos é estranho como mitologia,
já que fugaz à promoção de crenças e à estratificação de modos
de pensar. Este é talvez o tema mais delicado das análises
wakeanas, pois sempre traz consigo o perigo de reafirmar
pensamentos que as ciências humanas estão, há muito, tentando
superar, como a defesa cartesiana do ego íntegro e da capacidade
humana de conhecer o mundo e a si mesmo. Por esse ponto de
vista, os mitos poderiam representar uma simbologia completa
dos impulsos e da experiência individual (como se ela fosse
padrão). Mas, de partida, os críticos em geral assumem o projeto
wakeano como o da busca pela expansão de nossas noções, então
obviamente nenhum deles admite essa visão como sendo a da
obra. Todavia, o romance não cessa de nos apresentar associações
entre mitologias de épocas e culturas diversas, o que lega a cada
estudioso o dever de considerar corajosamente a essencial
participação delas na sua construção e de tentar compreender o
que isso revela sobre seu pensamento.
Então, o tema da uniformização gera duas correntes de
pensamento: de um lado, estão os que defendem que o livro nos
revela semelhanças inquestionáveis entre narrativas das mais

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 38


diversas culturas nos mostrando, assim, as características
universais da espécie humana (um dos títulos que mais
disseminaram a ideia é A Skeleton Key to Finnegans Wake (1944)
de Joseph Campbell e Henry Morton Robinson); do outro, aqueles
que repudiam qualquer ideia de universalidade e buscam
demonstrar que o Wake está justamente condenando tais tipos
de pensamento ao expô-los. É desta forma que a reflexão sobre
padrões se torna, de maneira geral entre os estudiosos wakeanos,
uma discussão sobre identidade.

O movimento de leitura
Para falar sobre minha compreensão sobre a relação
wakeana com os mitos e sua visão sobre identidade, gostaria de
apresentar primeiro como entendo o movimento de leitura do
Finnegans Wake. Isso porque forma e conteúdo estão intimamente
ligados na obra e creio que o modo como nos relacionamos com
ela foi arquitetado por Joyce para ser análogo a como, tanto como
indivíduos quanto como sociedades, relacionamos-nos com o
entorno, com tudo que nos chega como informação das mais
diversas formas. Nossa percepção é guiada por um jogo contínuo
entre a tentativa de estabilizar compreensões, própria da
racionalidade, e a aleatoriedade caótica do inconsciente, sempre
utilizando vários tipos de lógica para conduzir uma leitura.
O principal recurso wakeano para se aproximar de tal
instabilidade é a modificação que o livro faz da língua, criando
uma linguagem sem regras definidas, que trabalha através da
sugestão de sentidos diversos. O movimento de interpretação do
Wake se diferencia daquele comum à leitura de outros livros pela
impossibilidade de ser ter uma base para a qual retornar. Se,
desde o início, nunca partimos de códigos já definidamente
compartilhados, regrados pelas línguas, como é comum em outras
obras, partimos já de uma interpretação do que está escrito. A
falta de limites básicos para a leitura define um processo

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permanentemente ilimitado, pois podemos sempre mudar de
opinião sobre o que está sendo dito no texto.
A pós-estruturalista Margot Norris (1974) defende que se,
ao longo do livro, recebemos muitas versões de narrativas com
similaridades inequívocas, é para que qualquer substantivo, objeto
ou mesmo ego se torne um grande campo de referências cruzadas,
nenhuma delas se estabelecendo como guia para a nossa
compreensão ou como qualquer verdade (1974, p. 5). Ela lembra
que personagens trocam de função narrativa (1974, p. 120), muita
‘interferência’ é acrescentada ao sentido (1974, p. 126) e nos
deparamos com partes desconexas de referências conhecidas
(1974, p. 131), de modo que o regramento, ou a fixação de conexões
para a formação de códigos, dá lugar ao jogo livre de associação
entre semântica e sintaxe (1974, p. 130). Lidamos com
recombinações de pedaços, com a junção de fragmentos, prontos
a nos deixar incertos de qualquer relação captada.
Porém, ainda que a construção seja caótica, conseguimos
construir limites para avançarmos na interpretação. Eles são
dados pelas repetições, pelo reforço de sugestões ou suposições. O
reconhecimento de elementos, através de suas reaparições, vai
nos autorizando a fazer construções sobre o mundo wakeano.
Vamos acumulando dados sobre ele, ainda que sejam dados de
formatos múltiplos (como, por exemplo, o entendimento de que
duas ou mais ações estão se desenvolvendo simultaneamente
num episódio). Por isso, Finn Fordham (2007), ainda que defenda
que o romance é sim preparado para nos desviar de uma
interpretação unívoca, tenta demonstrar ao longo de seus estudos
que o aprofundamento do texto, a investigação exaustiva de todas
as suas referências, possa resultar em um processo conclusivo,
no qual é possível delimitar o que diz o texto wakeano. O que pode
nos inclinar a concordar com Fordham é que se não existem
limitações de interpretação durante toda a obra, existem ao
menos, fortes indícios delas. Ao se escolher suas próprias conexões

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ou graus de aproximação, pode-se acabar por perceber o quanto
elas estão preparadas pelo livro: quando investigamos, vemos
nossas interpretações sendo constantemente reafirmadas de
modo que fica difícil acreditar que sejam contestáveis. É por esta
razão que o estudioso defende que as leituras wakeanas têm uma
liberdade limitada aquilo que a obra está mais obviamente
induzindo. Conforme Fordham, não há necessidade de se
multiplicar ou inventar mais ambiguidades para evitar o sentido
banal (2007, p. 31). O autor cita Joyce: “o pensamento é sempre
simples” (JOYCE apud FORDHAM, 2007, p. 32).
No entanto, ainda que a formulação de interpretações
sempre se coloque em relação com aquilo que já foi compreendido,
por isso voltaremos para os lugares pelos quais passamos, acredito
que nunca se retorna exatamente para o mesmo local, mas para
algo que já se transformou, já evoluiu, pois já foi acrescido de
outras variantes. Como numa espiral, retornamos, mas para um
ponto que já é outro. Isso porque os signos vão sempre se
estabelecendo na sua relação com os outros, semelhantes, porém
diferentes. Assim, quando novos aparecem, com novos dados, isso
modifica também a compreensão que já havia sido estabilizada
de um signo anterior. Continuamente, reconhecemos novas
associações baseadas nas antigas, mas também estranhamos
as antigas baseadas nas novas. De forma que permaneçamos
ligados a tudo que já foi apreendido para que consigamos avançar,
mas também, simultaneamente, destruamos algo dessa
apreensão, renovando o olhar sob certo estranhamento.
Acredito que, não apenas a obra é arquitetada para que
nos relacionemos com ela deste modo, como ela mesma apresenta
este processo como a maneira como o indivíduo organiza sua
apreensão. Na minha visão, Joyce apresenta este mesmo
movimento não só como da formação da percepção que cada
indivíduo tem sobre si e sobre o entorno, mas também a de cada
cultura e o conjunto de mitos que a cerca (sejam eles de caráter

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religioso, linguístico, histórico ou científico). Para constituir um
livro com tudo isso, o autor não apenas desenvolveu um
mecanismo que mantivesse funcionando a estabilidade e a
instabilidade na leitura da imensidão de referências que a obra
oferece, como também os transformou em dois personagens
centrais do Wake: o feminino e o masculino. Deles, se fragmentam
todos os outros em variadas e indefinidas gradações das
características destes dois: a instabilidade (o feminino) e a
estabilidade (o masculino).

A formação da identidade
O modo com que as figuras wakeanas se apresentam é
bastante complexo, mas para demonstração da ideia sobre
identidade aqui defendida, é possível delimitar algumas formas.
Por exemplo, a personagem masculina é frequentemente referida
pela sigla HCE. Sugere-se ao longo da obra que este homem
cometeu algum pecado não muito claro. Já a personagem
feminina pode ser identificada pela sigla ALP. Ela é representante
da tentadora da queda de HCE, a Eva que o induz a pecar, mas é
também símbolo do criador, aquele que conta as histórias e,
portanto, que produz novos HCEs (uma analogia com a
maternidade).
Notemos que, desde o início, é difícil falar das figuras
wakeanas sem que se traga imagens míticas para ilustrar seus
papéis. Para falar destas duas personagens, apoiar-me-ei em
Norris, que faz uma leitura de ambas baseada nos conceitos de
formação do mito de Levis-Strauss. Conforme a estudiosa, no
Finnegans Wake como um todo, o gênero masculino tem a
necessidade de reafirmar a estabilidade de sua identidade. Norris
(1974) toma como exemplo um trecho do primeiro capítulo, no
qual entramos em um museu e ouvimos uma explicação sobre a
Batalha de Waterloo. A autora nos lembra de que, na narrativa,
os dois oponentes riem da masculinidade um do outro, um reflexo

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de um desejo muito potente de dominação. O embate pode ser
observado como guerra entre irmãos, como disputa entre pai e
filho, ou mesmo como um embate do self de um mesmo homem.
De qualquer destas formas, a tentativa de se sobrepor ao outro é
a de apagar algo em si que é visto como outro, como estranho. Os
opostos brigam pelo controle porque, se o ser é formado por
contradições, isso significa assumir autocontrole, ter uma
identidade coerente na qual um dos polos subjugou o outro e
mostrou-se o dominante, o verdadeiro (NORRIS, 1974, p. 49). Por
esta razão, para Norris, qualquer oposição masculina no Wake
pode tanto representar uma luta entre as contradições da mesma
figura, como um embate entre homens diferentes (NORRIS, 1974,
p. 51). O que interessa para os participantes é que no fim haja
coerência, que o diferente seja eliminado e uma verdade maior
seja estabelecida. O homem, quando confrontando com o espelho,
com o seu oposto que é ele mesmo, é levado a rejeitar este outro.
Norris afirma que a narrativa edipiana demonstra bem
essas relações porque atos privados têm consequências públicas,
crimes pessoais viram crimes cívicos, o parricídio é também um
regicídio e as questões entre cunhados acabam virando uma
guerra civil. Ela explica que Freud coloca este mito na teoria de
que instintos infantis permanecem no adulto, de que as relações
familiares se expressam coletivamente na condução das nações
e de que revoluções coloniais podem ser análogas ao desejo de
parricídio (NORRIS, 1974, p. 43).
Segundo a estudiosa (1974), uma parte da função de ALP,
a mulher, é provocar a infração, o pecado. Redimir o homem dele
é a outra. Na função de sedutora, ela é o próprio motivo da queda.
Porém, como praticante do resgate, seu papel oposto, nunca está
neste momento. Ela aparece depois, vem para unir os fragmentos
pós-destruição gerados por todas as catástrofes masculinas. Após
a batalha de Waterloo, é a primeira vez que esta sua função
aparece, ao menos de maneira mais indicativa. A mulher recolhe

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o que sobrou entre os corpos e coloca tudo em seu saco. Aqui ela
é reconciliadora. Até o fim do primeiro livro, já saberemos que
ALP distribui à população presentes tirados de seu saco para que,
agradando a todos, reconquiste a boa imagem que já não fazem
de seu marido decaído, pecador. Atos contrários caracterizam a
redenção que ela realiza: ela encontra e doa; junta e dispersa
(NORRIS, 1974, p. 64). Ao contrário do homem, ela está em
harmonia com sua composição de oposições.
Norris afirma que se ALP junta o material que é resto das
batalhas – das contradições e combates dos homens – e os
redistribui a todos é porque há uma interdependência entre
criação e destruição (NORRIS, 1974, p. 67). O que é muito
importante ressaltar para a reflexão que aqui desenvolvo é que,
conforme Norris, este tipo de construção é próprio da formação
dos mitos em todas as sociedades, algo que Lévi-Strauss nomeia
bricolage. A estudiosa explica que se trata de usar pedaços de
materiais heterogêneos sem dar atenção a suas funções
específicas ou originais. As referências são aplicadas ao texto
sem que suas individualidades sejam importantes (NORRIS, 1974,
p. 130). Joyce libera materiais de seus antigos contextos para
justapô-los livremente e permite que eles assumam novas e
inesperadas combinações uns com os outros. Como ALP nos
escombros da guerra, o autor faz uso dos restos mortos,
fossilizados, de nossas ficções para reconstruir, de forma aleatória,
novas narrativas. Cito a autora:

A distribuição de ALP é um ato de comunicação e troca, em vez


de um ato de reconstrução ou de projetar. Ela seleciona pedaços
de entulho aleatoriamente; a natureza de seus presentes é
arbitrária, e seu modo de distribuição, indiscriminado. Sua
generosidade não respeita hierarquias, posições sociais, ordens
ou distinções. (NORRIS, 1974, p. 68)

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O Finnegans Wake, portanto, inspira-se nos modos de
construção dos mitos, mas não trata de construir novas propostas
de mitos, novos conceitos de humanidade, e sim de reunir nossas
imagens estáticas e reformular, aleatoriamente (o que quer dizer
‘sem hierarquias’), novas combinações delas, novas formulações
da realidade. Este é o processo da obra e também o processo que
rege a criação dos mitos pelas sociedades: eles se transformam e
se renovam. Podemos acrescentar que a diferença é que na versão
joyceana desta reconstrução, não há uma forma definida para a
nova versão, uma imagem total dela. Há insinuações de
recombinações de nossas referências de modo a legar ao leitor a
decisão do quê e do quanto se passa em cada parte do texto. Isso
porque o Wake é um livro feminino.
Depois de apresentada esta ideia de Norris, é preciso dizer
que a própria autora, antes de comunicá-la, afirma que o texto
wakeano é um auto-conhecimento labiríntico para desmantelar
os mitos. Para a estudiosa, é pelas ambiguidades narrativas ou
pelos atos falhos que as personagens do Wake expõem a mentira
que essas identidades míticas são, e revelam assim o que elas
têm de autêntico: pura culpa, resultado de um sentimento do
indivíduo de falta correspondência ao modelo (1974, p. 80).
Percebamos que, neste momento, a autora fala do aspecto
masculino da mitologia, aquele mais presente em nossas
concepções do que seja o mito. Isso nos leva de volta à questão
que de início coloquei sobre a presença dos mitos no Wake gerar
uma desconfiança. Quando são acusados de uniformizar a
humanidade, há sempre por trás um entendimento de que eles
são algo estático. Norris demonstra bem que HCE representa o
lado autoritário de uma coletividade que precisa garantir a
estabilidade das identidades formadas, que não quer deixar que
elas se destruam para dar lugar a outras; que não aceita que,
como os sonhos, elas são efêmeras. Ele é a sociedade patriarcal,
responsável pela nossa visão de que mitos são sagrados e,

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portanto, devem ser conservados. Já ALP é aquela que não sente
necessidade de dominar e nem de poupar ou guardar. Símbolo da
formação natural das mitologias e da evolução inevitável das
línguas e das sociedades, ela doa, vende e troca. Ela aceita a
mudança e, assim, constrói o presente com lixo do passado, com
aquilo que já não tem mais serventia; utiliza-se de fragmentos
sem se atentar a suas funções originais, já que essas
envelheceram e morreram.
Portanto, acredito que a grande acusação wakeana, a
denúncia que o livro faz, não é contra os mitos, mas contra a
sociedade patriarcal e sua necessidade de controle, que gera o
pensamento de que é preciso dominar a maneira como as pessoas
percebem o mundo. Norris (1974) destaca que a queda, no Wake,
é a falta de autenticidade, a prisão a um modelo. A redenção não
vem do perdão, mas da reconstituição de uma integridade, que
está na transformação. Assim, a personagem feminina realiza
um salvamento, e não a salvação (NORRIS, 1974, p. 65). Trata-se
de uma aceitação da naturalidade da mudança, ou seja, da
naturalidade da queda, seja ela de modelos sociais inteiros, ou
de constituições de um mesmo indivíduo.
Fordham compartilha com Norris a visão de que o
Finnegans Wake ataca os mitos. Defende que o excesso dos
detalhes e alusões wakeanos são uma forma de “disputa filosófica
sobre a natureza da identidade no mundo”, na qual Joyce busca
mostrar como as identidades são forçosamente naturalizadas,
minimizando suas individualidades através do hábito social de
universalização, proveniente dos mitos (2007, p. 36). O responsável
pelo mito da universalidade humana, conforme Fordham, é o
humanismo (2007, p. 224). Semelhante a Norris, o autor defende
que a queda de HCE acontece porque o personagem quer ser um
‘todo o mundo’, porque crê que pode ser tudo para todos os homens,
totalizado, um provedor do conhecimento do mundo e de si mesmo
– “sonho que o humanismo adota em busca de apresentar um

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reflexo de si para si como humanidade, e, então, operar
cientificamente neste homem ‘coletivo’” (FORDHAM, 2007, p. 242).
O Finnegans Wake quer desmantelar a ideia de que precisamos
de heróis (o que quer dizer “modelos”) e expressa um mundo
anárquico, do anti-fundamentalismo e anti-essencialismo.
Através de sua intensa sobreposição de analogias, então, a obra
pode realizar o ideal de colocar o efêmero sobre o universal, o
múltiplo sobre o uno (FORDHAM, 2007, p. 225).
Mas, como citamos anteriormente, Fordham considera
que se pode conhecer tudo sobre o Finnegans Wake. Como então
poderia dizer que a obra quer justo acabar com a crença de que se
pode conhecer a tudo? Ainda que a favor de uma pluralidade, não
seria Fordham um ‘totalizador’ do livro? O motivo pelo qual trago o
autor para esta discussão é justamente para exemplificar algo
que o romance parece provocar em todos os críticos: uma tendência
à contradição. O mesmo pode ser visto em Norris, que fala em
desmantelar identidades míticas, mas apresenta características
bem claras de quem é HCE e de quem é ALP. O masculino e o
feminino estão presentes de forma bastante estáveis em seu
discurso, mesmo que ela procure demonstrar também o quanto
eles se multiplicam em identidades cruzadas e pouco
delimitáveis. Isso nos demonstra o quanto o livro, apesar de
caótico, está sempre nos mostrando certas estabilidades, alguns
tipos de ponto de apoio para avançarmos na leitura, o que faz com
que os críticos não possam evitar notar ou mesmo buscar o que
podemos chamar de ‘aspectos masculinos’ da obra.
Da mesma forma, mesmo os estudiosos que defendem a
universalidade da expressões wakeanas, também falam de seus
aspectos ‘femininos’. É o que podemos perceber em Campbell, por
exemplo, que ao lado de Robinson no livro A Skeleton Key to
Finnegans Wake, foi um dos grandes responsáveis por disseminar
a visão de que o Wake reproduz padrões míticos porque eles

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 47


correspondem a padrões da própria humanidade. Nesse livro, é
dito:

Nessas produções anônimas do espírito humano, formadas por


muitas mãos e mentes, há de se encontrar um surpreendente
padrão-base de personagens e temas arquetípicos. Estes são
os personagens e os temas do Finnegans Wake. Eles são as
forças da alma humana. Falam por si mesmos com a autoridade
de uma presença atemporal e destemida, que sobreviveu a todo
tipo de desilusão e vida mortificada, abarca cada variedade dos
vícios e virtudes humanos e fez parte de toda cruzada – aliás,
de ambos os lados de toda cruzada. (CAMPBELL e ROBINSON,
2005, p. 359-60)

Mas no livro Mythic Worlds, Modern Words, publicado


apenas por Campbell, o autor nos diz que o Wake todo é baseado
em um processo: quanto mais as coisas mudam, mais continuam
as mesmas (2004, p. 198). A própria mudança contínua é
reconhecida como aquilo que há de mais essencial à humanidade.
Portanto, podemos perceber que autores diversos, com
diferentes aproximações da obra, acabam percebendo no Wake a
mudança naquilo que permanece, bem como a permanência
naquilo que muda. Isto porque o romance coloca isto em questão,
e o faz tanto em suas narrativas quanto formalmente. A ilustração
do movimento de eterna mudança pelas próprias histórias
wakeanas mostra que a obra pode abarcar simbologias, aos moldes
dos (e, por vezes, inspiradas nos) mitos antigos – inclusive fazendo
uso de suas imagens. Podemos chamar este tipo de representação
de estável. No entanto, também de forma mítica, as narrativas do
livro falam de sua própria desestabilização, de sua reserva de
estranho. Conforme esclarece Norris (1974), elas são auto-
reflexivas, tratam de uma experiência que promovem pela forma.
O que pretendo chamar a atenção aqui é que, através de dois
símbolos estáveis, o feminino e o masculino, o Finnegans Wake

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 48


nos lembra que se constitui de incertezas, mas também da
continua delimitação de fronteiras para a sua leitura, sem o qual
não é possível avançar. Desta relação de retroalimentação, vem
a dificuldade de delimitar o quanto é possível apreender da obra,
o que, por sua vez, espelha nosso processo de apreensão do próprio
mundo.

Conclusões
A base que o Wake nos tira com sua língua sem códigos
definidos nunca nos dá clareza plena do que estamos conseguindo
estabilizar, nunca nos permite ‘confirmar’ certos acúmulos de
compreensão sobre ela. Ainda assim, quanto mais estudamos a
obra, mais sabemos (saberes esses sempre prontos a se alterarem).
De modo que nunca temos uma noção de totalidade – não apenas
da obra, mas do que nós mesmos conhecemos dela. Num livro
sobre a humanidade e tudo que a envolve, essa estrutura é uma
analogia ao quanto sabemos de nós e de onde viemos. Nós somos,
como indivíduos e como sociedades, um grande borrão para nós
mesmos – repleto de informações, cheio de conclusões possíveis,
mas ainda assim um grande borrão.
O que quero ressaltar aqui é que é preciso que notemos,
neste projeto artístico, a multiplicação de possibilidades de leitura
da obra não vem apenas do excesso de estranhamento, mas
também da abundância de reconhecimento, e que é isso que
desestrutura qualquer localização da origem do sentido. A pura
desestabilização poderia ser bem mais identificável, mas o Wake
não é só feminino, ele se dá num jogo com a masculinidade. Creio
que Joyce atordoa-nos com a duplicidade de estados que criou
porque era essencial que o fizesse. Do modo contrário,
permaneceríamos na lógica da verdade, do absoluto, da afirmação
de uma ideia que pode ser provada como a verdadeira. Deste, ele
acaba por ser verdadeira instável e não-identificável.

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Portanto, se muitos críticos notam o Finnegans Wake
revelando semelhanças inquestionáveis entre narrativas das
mais diversas culturas, é porque ele também o faz, mostrando
assim que, no meio do caos da existência, são primeiramente as
semelhanças, os padrões, que nos permitem ler, identificar,
reconhecer, produzir sentido. Tanto como indivíduos, tanto como
sociedades, a tentativa de erigir algo sólido faz parte de nossos
processos, como fará que isso se desintegre depois.
Nossa caminhada pelo Wake é semelhante a uma busca
por auto-conhecimento: vamos caminhando sem estar certos
sobre o quanto estamos conseguindo mudar nossas percepção em
relação aos nossos ancestrais, já que não podemos estar certos
se o que tomamos como passado não é apenas uma percepção
presente sobre ele; vamos caminhando sem saber o quanto a mais
sabemos sobre nós mesmos hoje, já que em vez de um acúmulo
podemos estar apenas observado outra possibilidade, um resultado
da tão natural mudança; e vamos caminhando com algumas
mudanças que para nós são claras, mas que na verdade podem
apenas ser ilusões de mudança, já que não sabemos mesmo. No
entanto, vamos caminhando, vamos conhecendo, vamos
produzindo sentido e saberes e formulando identidades. Como ALP,
trocamos: não cessamos nunca de apreender o entorno e devolver
a ele alguma organização, obscura e fragmentada que seja; algum
sentido, ainda que provisório.

Referências

BISHOP, John. Joyce’s Book of The Dark: Finnegans Wake.


Madison: The University of Wisconsin Press, 1993.

CAMPBELL, Joseph & ROBINSON, Henry Morton. A Skeleton Key


to Finnegans Wake. Novato: New World Library, 2005.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 50


CAMPBELL, Joseph. Mythic Worlds, Modern Words: On the art of
James Joyce. Novato: New World Library, 2004.

FORDHAM, Finn. Lots of Fun at Finnegans Wake. Oxford: Oxford


University Press, 2007.

GALINDO, Caetano. Sobre a possibilidade de que o Finnegans


Wake, de James Joyce, represente uma espécie de síntese
literária em moldes bakhtinianos. Bakhtiniana, São Paulo, v. 1,
n. 4, p. 38-49, 2010.

DEANE, Seamus. Introduction. In: JOYCE, James. Finnegans Wake.


Londres: Penguin, 1992.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 51


NUANCES DA VIOLÊNCIA: UMA COMPARAÇÃO ENTRE
MARINA CARR E INÊS PEDROSA

Autores: Ana Clara de Lena Costa Andrade (FARESC)


Alysson William Rodrigues Ribeiro (FARESC)
Orientadora: Profa. Dra. Solange Viaro Padilha (FARESC)

RESUMO: Tomando como base as inter-relações entre autores, gêneros


e textos, o artigo tem por escopo traçar as similitudes e diferenças
que perpassam os contos “Crie uma sereia só para você”, da escritora
irlandesa Marina Carr, e o conto “A cabeleireira”, de autoria da
portuguesa Inês Pedrosa. Partindo das teorias postuladas por Tzvetan
Todorov, Mikahil Bakhtin, Walter Benjamin e outros expoentes da teoria
literária e da aproximação entre os textos, os principais temas
abordados serão as múltiplas vozes e gêneros que permeiam o discurso
e o diálogo com seus pares, assim como a violência em suas múltiplas
facetas, o lugar social das mulheres e crianças e seus reflexos na
literatura, e consequentemente as ponderações e críticas de ambas as
produções acerca dos valores prezados pela sociedade e sobre a
natureza humana.
PALAVRAS-CHAVE: Violência. Literatura Inglesa. Literatura
Portuguesa. Análise Comparativa.

A literatura contemporânea está permeada de obras que


abordam o desvelamento da violência. Os estudos literários, cada
vez mais, voltam-se para a necessidade de dar voz e representação
aos inúmeros grupos até então socialmente oprimidos ou
ignorados. Dessa forma, este trabalho tem por finalidade analisar,
traçando paralelos entre as obras, de que forma a violência é
abordada nos textos Crie uma sereia só para você, de autoria de
Marina Carr, e A cabeleireira, de Inês Pedrosa.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 52


Da questão da violência
Sempre tomada como tema polêmico e de difícil discussão,
violência é um termo que nos remete a situações de agressividade
e conflito, fatos que geram desconforto ao leitor pacífico quando
da leitura de obras aqui analisadas.
Para que a análise prossiga em suas facetas mais
particulares, é importante aclararmos o conceito de violência.
De acordo com a definição dada pelo dicionário Aurélio, ela é o
“ato violento e constrangimento físico ou moral; uso da força;
coação” (HOLANDA, 2004, p. 2065). Valmir de Souza, por sua vez,
na obra Os sentidos da violência na literatura, a define como

uma ação que simplesmente não considera a outra pessoa, ou


melhor, a considera como uma coisa, numa relação em que o
outro não fala e se torna um objeto. Ela não precisa ser
necessariamente de ordem física, também se manifesta em
seu aspecto psicológico, ou simbólico, em suas formas sutis e
quase imperceptíveis. (SOUZA, 2007, p. 47)

Intrinsecamente ligada à história da humanidade desde os


seus primórdios, a violência é, em síntese, a ação que almeja
aniquilar o outro, desconsiderando-o. Mais comumente notada
em seu aspecto físico, a violência também se dá nos âmbitos
psicológico e simbólico.
Muitos escritores têm demonstrado, atualmente, o fascínio
que o tema instaura no imaginário popular. Nas obras analisadas,
os mais diversos conflitos presentes nas relações humanas são
abordados de maneira concisa, direta e feroz, mesmo que
recobertos de lirismo e simplicidade, especialmente no conto de
Marina Carr.
Para a compreensão da recorrência do assunto na
literatura contemporânea, não podemos nos dissociar da noção
de que a violência se apresenta em múltiplas facetas, cada uma

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 53


delas originada em um contexto ou situação particular. Sendo
um conceito extremamente abrangente, é contraditória sua
banalização na psique coletiva, uma vez que em certos aspectos
culturais a violência é permitida e até mesmo justificada, sendo
tratada veladamente para a manutenção dos limites e convenções
sociais.
Não tendo, pois, um significado único e estanque, é
fundamental aclarar que a violência deve ser entendida em suas
multifacetadas nuances históricas e sociais. Nas palavras de
Wievorka (1997), ela “não é a mesma de um período ao outro”. Se
tratarmos do assunto por meio de um viés analítico, devemos
citar Yves-Alain Michaud quando postula que “uma ação direta
ou indireta, concentrada ou distribuída, destinada a prejudicar
uma pessoa ou a destruí-la, seja em sua integridade física ou
psíquica, seja em suas posses, seja em suas participações
simbólicas”. (MICHAUD, tradução de L. Garcia, 1973, p.5).
A partir da noção de que, à luz de uma análise imediatista,
a violência é uma ação que implica a dicotomia agressor/vítima,
é nessa relação que são mensurados os danos físicos, morais e
psicológicos impostos ao agredido. Velho e Alvito postulam que
este é “o modo mais agudo de revelar o total desrespeito e
desconsideração pelo outro, implicando não só o uso da força física,
mas a possibilidade ou ameaça de usá-la” (1996, p.10). Por isso, é
imprescindível o entendimento de que toda prática que envolve
violência está permeada pela subjetividade que motiva tais ações.
Ressalte-se que a violência é um fenômeno complexo,
podendo ser gerada por medo, insegurança, raiva ou até mesmo
angústia. Ela possui uma gama de aspectos que podem gerar
conflitos das mais diversas ordens e profundidades. Para Faleiros,

A não aceitação do conflito e dos mecanismos para enfrentá-lo


provoca a violência, pois o conflito assume uma feição direta
sem mediação e passa a ter como solução a força física, a

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 54


necessidade de eliminar o outro na expectativa da eliminação
do conflito; sendo assim, ocorre a violência como a substituição
da mediação do conflito, pela negação do outro. (1998 apud
FERNANDES et all, 2006, p. 228)

Outro viés afirma que a violência é intrínseca à natureza


humana, fazendo parte da constituição sociocultural da
humanidade. Entretanto, analisar esse fenômeno por meio dessa
ótica traz consigo o perigo de banalizar e tornar naturais suas
manifestações concretas e cotidianas. As dimensões das relações
humanas trazem consigo contextualizações de poder e dominação
que, historicamente, sempre foram impostas pelo uso violência.
Partindo, portanto, do pressuposto de que a Literatura é a
área do conhecimento humano que permite a expressão das mais
diversas vozes e discursos, passemos à análise dos contos e de
como a violência se apresenta em cada um deles.

“Crie uma sereia só para você”


Marina Carr narra a história de uma família irlandesa
pertencente ao clã dos Connemaras. As relações entre os membros
dessa família são conturbadas e todos se tratam com bastante
frieza. Os problemas familiares iniciam-se com o avô, que
abandonou a avó Blaize há trinta anos e nunca mais voltou. Esse
pode ser o motivo que explica a demência que a senhora apresenta
em sua idade avançada.
Os pais da criança, por sua vez, são ausentes e realizam
com incompetência seus papéis como pais. O pai está sempre
fora de casa, por causa de suas viagens, e a mãe trata seus filhos
com frieza na maior parte das ocasiões mostradas no conto. A
violência física é recorrente no contato da mãe com as crianças.
Até mesmo quando demonstra carinho, é de uma forma agressiva.
Isso pode ser visto na ocasião em que a mãe dorme abraçada com

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 55


a criança com tanta força que quase sufoca a mesma, como
exposto no trecho:

Algumas noites a mãe da criança apertava-a tanto junto a si


que não podia respirar. A criança ficava quente e pegajosa
quando sua mãe sussurrava embaixo do acolchoado sobre
“aquele filho da mãe” e “depois de tudo que eu fiz por ele” e “é
assim que ele me paga”. A criança tentava colocar a mão fora
das cobertas para pegar um pouco de ar fresco e a mãe da criança
a agarrava e a puxava de volta ao escorregadio calor da cama.
“Meu amorzinho”, murmurava a mãe da criança enquanto a
criança jazia lá banhada em suor, com a face úmida da mãe em
seu pescoço. A criança abafava um grito. (CARR, 2006, p. 2)

O pai é quem demonstra ter mais amor pelos filhos, pois


ele dá atenção e até brinca com eles. Porém isso sempre dura
pouco, pois quando o pai sai, a mãe desconta nos filhos a carência
e ódio por ter sido deixada. Ironicamente, a demonstração de
violência da mãe expõe sua covardia e fraqueza, pois ela não
consegue aceitar o fracasso de seu casamento e externaliza sua
raiva nas crianças indefesas, como pode ser acompanhado no
parágrafo a seguir:

O pai da criança foi embora de novo, no meio da noite, desta


vez. A mãe da criança quebrou a porta de vidro com a cabeça do
irmão da criança. A criança contou sua respiração, aguda e
superficial. O irmão olhava para ela enquanto a mãe da criança
o segurava para o médico limpar o ferimento. (CARR, 2006, p. 4)

As punições sofridas pela criança a levam a conjecturar


sobre possibilidades que a livrassem de sua realidade, podendo
ser encaradas como seu desejo de libertação. A partir do anúncio
de um jornal que prometia a possibilidade da criação de “sereias
de estimação”, a criança almeja tal objeto como fonte de

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 56


emancipação, como uma catarse que expurgasse dela todas as
agressões sofridas. Para a criança, a sereia e todo o mundo de
fantasias a ela relacionado representam a felicidade que não está
ao seu alcance. Seu desejo pode ser expresso no trecho abaixo:

A criança comia os doces que eram do irmão doente, e a mãe a


mandava para a sala preta e vermelha. A criança esperava.
Depois do que parecia ser uma eternidade, a mãe da criança
aparecia na porta com um cabide de madeira. (...) Depois,
deitada no sofá com vergões tão grandes como cenouras nas
suas pernas, a criança dormia e sonhava com um homem com
um forcado que vivia no fundo do mar. – Quanto tempo? –
sussurrava a criança. (CARR, 2006, p. 3)

Abandonada pelo marido e desiludida com o futuro, a mãe


comete suicídio, afogando-se no “lago dos palácios”. Após esse
episódio, as relações entre o pai e os filhos distanciam-se ainda
mais, e dá-se a entender que a “criança” protagonista do conto
passa por um período de aceitação e conformidade, quando
mencionado que “a criança dorme por vinte anos” (CARR, 2006,
p.6). No entanto, quando lemos que ela usou por todo esse tempo
a aliança de casamento de sua mãe, depreende-se que ela nunca
se libertou completamente das amarras psicológicas que também
a levaram ao suicídio inferido no fim do conto. Nesse ponto pode
ser feita a leitura de que a sereia é o “guia” da passagem da vida
para a morte, a partir da leitura do último parágrafo do conto:

A criança está numa piscina. Parece que ela nunca vai alcançar
o fundo, então o alcança. Uma porta de forte se abre com um
rangido, um reluzir de barbatanas douradas, a sereia aparece.
– Até que enfim, você veio finalmente – diz a criança. A sereia
sorri, aquele sorriso de anos atrás na mesa de fórmica azul. A
criança se prepara para a descida nas águas. O rabo da sereia
ilumina o caminho. (CARR, 2006 p. 6)

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 57


No final do conto, é possível chegar à conclusão de que a
sereia, que esporadicamente é mencionada, era como um porto
seguro o qual a criança almejava alcançar. Essa sereia
simbolizaria uma amiga e traria o afeto e a companhia de que a
criança sempre careceu.

A cabeleireira
Construído em primeira pessoa, o que acrescenta grande
carga de verossimilhança ao conto, A cabeleireira apresenta a
narrativa das memórias de uma mulher que teve uma vida de
repressão sexual e moral por parte de sua família durante a
infância, e pelo marido, na idade adulta. Ela conta sua história
para a companheira de cela enquanto corta seus cabelos. No fim
do conto, depreendemos que a protagonista está presa por ter
assassinado seu marido.
Tendo sido criada em um lar tradicional, a protagonista
sofre nas mãos de um pai machista, uma mãe que a reprimia por
sua condição submissa de mulher e também de um tio, que desde
cedo abusa sexualmente dela, obrigando-a ao silêncio.
Depois de adulta, casa-se com um homem poderoso e
influente, ícone da televisão portuguesa e símbolo de integridade
e honestidade. Entretanto, a vida matrimonial era permeada pela
humilhação, pelas traições e pela violência psicológica que o
marido infligia a ela. Como uma tentativa desesperada de
encontrar consolo, a protagonista almeja se tornar mãe. Tal desejo
fica expresso no trecho em que ela diz:

(...) decidi ter uma criança. Não foi para o prender. Foi para não
ter medo de o perder. Para fazer nascer um amor absoluto,
imune a traições. Comecei a sonhar com o sorriso do meu
bebê, com os seus abraços. Seríamos tudo um para o outro.
(...) Mas de repente parecia-me que o poder de gerar um novo
ser era uma força feminina que devia ser exercida. (PEDROSA,
2007, p. 47)

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Até mesmo esse desejo lhe foi negado. Desde que descobriu
sobre a gravidez da esposa, o marido insistiu para que a gestação
fosse interrompida. Por fim, em um momento de raiva, ele agride
fisicamente a mulher. A violência sofrida é de tal forma brutal
que faz com que a protagonista sofra um aborto. A cena é descrita
de forma crua e feroz, como podemos ler abaixo:

Aos cinco meses de gravidez tornara-se tão visível que ele não
aguentou. Atirou-me ao chão e desatou aos pontapés nessa
barriga que o afrontava. Tentei proteger o meu filho, mas não
fui capaz. Desmaiei. É só isso que até hoje não me perdoo: não
ter sido capaz de me fechar em concha sobre o meu bebê, não
ter sido capaz de evitar a sua morte. Deixei-o ir. (PEDROSA,
2007, p. 49)

O conto termina com a narrativa do assassinato do marido


pela protagonista, em uma última tentativa de se libertar da
violência e do sofrimento que a oprimiram durante toda a vida.
Podemos analisar tal fato ao lermos o seguinte trecho:

Uma vez disseram-me que numa existência anterior eu fui


queimada como bruxa pela inquisição, e que é daí que me vem
este mal-estar com o mundo e a minha incapacidade de reação.
É como se nada valesse realmente a pena, como se as labaredas
da morte rodeassem a minha vida inteira. Naquela noite, de
repente e por uma única vez, eu achei que tinha de lutar contra
essas labaredas. O meu sentido de justiça ergueu-se e foi mais
forte do que a aceitação da dor, a delicadeza a que eu estava
habituada. Foi uma raiva que me deu. (...) Lembro-me de sentir
o sangue todo do meu corpo a correr furiosamente para o meu
cérebro, e uma coragem estranha, uma vontade de ação
imperiosa a tomar conta de mim. (...) Eu nunca fui pessoa de
fazer as coisas com intenção ou maldade. Nem nunca menti,
nem tentei fugir, nada disso. Nunca fui uma pessoa revoltada,
sempre me ensinaram que a ira não leva a lado nenhum.
(PEDROSA, 2007, p.5)

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 59


Tratando essencialmente do sentimento de vingança, um
tema comum e cotidiano, o conto seria bastante comum não fosse
pela engenhosidade de sua escrita. Se analisarmos os elementos
recorrentes e indicadores do rumo que o conto tomará em sua
conclusão, podemos citar a técnica conhecida como foreshadowing,
que é empregada por artistas para prenunciar padrões de
desenlace e que Inês Pedrosa utiliza com maestria.
No âmbito psicológico, a protagonista é uma personagem
extremamente complexa. Ao analisarmos a psique da
protagonista, vemos o quão paradoxal é o fato de que a mesma
pessoa que teve uma vida permeada por tantos momentos de
sofrimento consiga narrá-los com tanta calma e frieza.

Das relações entre as obras


Uma comparação entre as duas obras mostra pontos
semelhantes entre as realidades das personagens de cada texto.
A violência é recorrente na vida das duas protagonistas. Ao passo
que a narradora de A cabeleireira é atormentada pela violência
verbal, que a oprime, representada na infância pela autoridade
do pai machista e do tio que abusa sexualmente dela, e na idade
adulta pelo marido que a humilha, a criança do conto de Carr
sofre por causa do caos do ethos em que está inserida. Nela são
presentes marcas emocionais oriundas de uma criação
desestruturada e de castigos físicos.
É interessante destacar a construção das personagens que
protagonizam as narrativas. Ambos os contos possuem
personagens principais que não são em nenhum momento
nomeadas ou lhe são atribuídas outras marcas que as distingam
como seres com individualidade e particularidades. Possivelmente
tenha sido proposital a escolha das autoras para mostrar o
distanciamento e o desprezo das famílias e da sociedade em geral,
já que aqui tratamos de duas classes de indivíduos sempre
subestimadas: as mulheres e as crianças.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 60


Outro ponto em que as histórias convergem é o simbolismo
dado ao tratamento da morte. Nas duas narrativas há a recorrência
da água, mais especificamente dos lagos, como elementos
representativos da morte. No conto de Marina Carr, a mãe das
crianças comete suicídio afogando-se deliberadamente em um
lago nos arredores de onde moravam. No conto de Inês Pedrosa, a
protagonista sonha com “um lago azul escuro no meio das
montanhas (...) em que meu pai nadava, afastando-se de mim”
(PEDROSA, 2007, p.3). Logo após o episódio, ela recebe a notícia
do falecimento de seu pai.
Destaquemos também o modo como cada narrativa é
concluída. A protagonista de A cabeleireira mata seu marido usando
a tesoura que usava para embrulhar os presentes de Natal. Para
ela, esse foi um ato catártico, libertador, que a tirou do “estupor”
em que tinha vivido até então. Por sua vez, o conto de Marina
Carr sugere que a criança tenha cometido suicídio ao chegar à
idade adulta, indicando, ao contrário da narradora do conto de
Pedrosa, que as marcas psicológicas deixadas pela infância não
foram superadas.
Por fim, citemos que ambas as histórias tratam de questões
e sentimentos extremamente complexos e cheios de simbolismo.
Entretanto, a leitura das obras é de fácil entendimento e de rápida
assimilação por parte do leitor, já que a problemática de ambas é
externada por meio de uma linguagem fluida e simples.

Considerações finais
O distanciamento e a desumanização sofrida pelas
protagonistas das obras analisadas nos mostram que para
compreender como se origina a violência é necessário considerar
as relações familiares, as dimensões culturais, as relações de
poder e todas as nuances das interações humanas. Consideremos

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 61


também que a interpretação do fenômeno é deveras complexa,
pois nunca podemos identificar uma única origem ou somente
um ângulo para abordar tal questão.
Independentemente dos recursos estéticos empregados
pelas autoras, do contexto cultural no qual se inserem e da forma
pela qual o assunto é abordado, ambas as produções citam e
problematizam a intolerância humana. Os contos são formas de
investigar e tratar a natureza do ser humano, em especial os
limites do caráter, da moral e da ética que regem a consciência
da humanidade. Quando a violência é denunciada pelo discurso
e pelo lugar social do sujeito vítima da brutalidade, as
possibilidades de impactar o leitor são ainda maiores.
Sendo a Literatura o espaço ficcional em que é permitida a
expressão de todas as questões que não são admitidas na realidade
social, fica clara a importância da leitura de textos como os
analisados no presente artigo para a sensibilização e a
conscientização das problemáticas por eles abordadas, e que, por
sua vez, são uma representação verossímil da realidade. Nas
palavras de Mitry, “a literatura nos faz sentir o mundo de modo
abstrato, por meio de palavras e figuras do discurso” (2002, apud
CURADO, 2007, p. 4-5). Entretanto, esse sentimento abstrato é
fruto de elementos objetivos e palpáveis.
Conclui-se, portanto, que ambos os textos foram elaborados
para retratar pessoas que vivem sob a sombra da humilhação, do
descaso e do desengano em relação à vida e ao futuro. Tais
indivíduos, muitas vezes, como representado nos contos, tentam
apartar-se das realidades que os oprimem, mas sem sucesso. Marx
afirma que “os homens fazem a história, mas apenas sob as
condições que lhes são dadas” (apud Hall, 2006, p. 34). Sendo assim,
vemos que a existência em tais condições gera várias
consequências na consciência humana, e que a mais destrutiva
delas é, sem dúvida, a violência.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 62


Referências

CARR, Marina. Crie uma sereia só para você. In: MUTRAN,


Munira Hamud (Org.) O mundo e suas criaturas: uma antologia do
Conto Irlandês. São Paulo: Humanitas, 2006. p. 29-39.

CURADO, Maria Eugênia. Literatura e cinema: adaptação, tradução,


diálogo, correspondência ou transformação?, Goiás, v. 1, nº 9, Jan/
Dez 2007.

FERNANDES, S.; NITSCHKE, R.; ARARUNA R. Violência na cultura


contemporânea: o quotidiano familial. Revista Mineira de
Enfermagem, Belo Horizonte: v.10, p. 226-232, jul/set 2006.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad.


Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. 11. ed. Rio de
Janeiro: DP&A, 2006.

HOLANDA, Aurélio Buarque de. Novo Dicionário Aurélio da Língua


Portuguesa.MICHAUD, Yves-Alain. La violence. Tradução de L.
Garcia, Paris: PUF, 1973.

PEDROSA, Inês. Fica comigo essa noite. São Paulo: Planeta do Brasil,
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SOUZA, Valmir de. Violência e resistência na literatura


brasileira. In: ____. Os sentidos da violência na literatura. São Paulo:
LCTE, 2007.

VELHO, Gilberto; ALVITO, Marcos. Cidadania e violência. Rio de


Janeiro: FGV, 1996.

WIEVIORKA, Michel. O novo paradigma da violência. In: Tempo


social. São Paulo: USP, 1997.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 63


CRÍTICA À DUPLICIDADE DA MORAL VITORIANA EM
A IMPORTÂNCIA DE SER PRUDENTE

Autor: Anna Stegh Camati (UNIANDRADE)

RESUMO: Em seus escritos, ao parodiar as convenções literárias


formulaicas associadas aos gêneros românticos, tais como a literatura
sentimental de massa, o romance epistolar e o melodrama, Oscar Wilde
(1854-1900) ataca e expõe ao ridículo a duplicidade da moral vitoriana.
O grande apelo popular do melodrama levou o dramaturgo a incorporar,
com o intuito de subverter, as fórmulas do gênero em A importância de
ser Prudente (1895). No presente trabalho, pretende-se analisar a
subversão de dois recursos básicos do melodrama – o jogo das
identidades e as coincidências providenciais – à luz de considerações
críticas de Linda Hutcheon sobre a utilização da paródia com fins
satíricos. Objetiva-se mostrar como Wilde vira os estereótipos de
cabeça para baixo, decompõe o maniqueísmo e representa os clichês
com distanciamento crítico.
PALAVRAS-CHAVE: Oscar Wilde. A importância de ser Prudente. Subversão
do melodrama. Paródia. Sátira.

Introdução
Na segunda metade do século XIX, a estética do drama
romântico, que havia se consolidado em uma fórmula dramática
amplamente difundida sob o rótulo de peça bem-feita (pièce bien-
faite, em francês; e well-made play, em inglês), aperfeiçoada no
início do século por Eugène Scribe, Victorien Sardou e Alexander
Dumas Père e Fils, exauriu-se. O drama burguês e o melodrama,
que haviam abraçado os parâmetros dessa fórmula de sucesso,
repleta de exagêros e sentimentalismos, também entraram em
um processo de estagnação e degeneração.
Hoje, entende-se por melodrama uma modalidade de teatro
comercial de fórmulas gastas e exauridas, reduzidas a clichês,

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 64


com motivos mercadológicos bem claros, uma vez que o público
médio sente-se confortável ao ver peças que têm um ideário
familiar e referências de fácil identificação. Apesar de ser alvo
de ataques da crítica especializada, o melodrama sobrevive em
diversos segmentos midiáticos, revelando-se um gênero resistente
e indestrutível.

Perspectivas teóricas sobre o melodrama e a subversão do


gênero
Os melodramas da segunda metade do século XIX eram
estritamente convencionais, seguindo uma série de artifícios que
objetivavam divertir e dar prazer, servindo de válvula de escape
para a plateia, e não exigindo nenhum esforço de reflexão por
parte do espectador. Em Aventura, mistério e romance, John Cawelti
(1976, p. 08-20) argumenta que todas as fórmulas literárias
(melodrama, romance sentimental de massa, romance western,
estórias de detetive ou thrillers) são sempre orientadas para algum
tipo de escapismo e previsíveis em seu final, na maioria das vezes
apresentando o que se convencionou chamar de justiça poética
ou fantasia moral, isto é, os bons são recompensados e os maus
recebem seu justo castigo.
Assim, o enredo do melodrama geralmente seguia um
padrão maniqueísta, ou seja, o embate entre o bem e o mal era
representado por meio das figuras do herói e do vilão, com o triunfo
final da virtude e a punição do vício. Após uma série de obstáculos
e tribulações, o vilão era derrotado e os amantes ficavam juntos
em um final feliz. Apesar de que quase sempre a trajetória do
herói parecia fadada ao fracasso, vítima dos ardis do vilão, após
uma série de reviravoltas, ele superava todas as dificuldades e
triunfava. Para tornar estes reveses plausíveis, o enredo era
construído em torno de um segredo, que era revelado em um
momento crítico chamado scène à faire ou cena do
reconhecimento, em que todos os mistérios eram revelados e

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 65


todos os fios condutores da ação eram desembaraçados,
geralmente à maneira deus-ex-machina, com direito a arroubos
catárticos, punições exemplares e desfecho redentor para lavar a
alma do espectador. Recursos dramáticos, tais como falsas
identidades, coincidências providenciais, falsas mortes,
ressurreições, falsos testemunhos ou testamentos, cartas
incriminadoras, falsas ou anônimas, salvamentos miraculosos,
mal entendidos, documentos perdidos e encontrados, falsos
rumores e equívocos de toda espécie forneciam a evidência
necessária para o desembaraço da complicação e para a resolução
da questão das identidades. Um dos passatempos favoritos da
plateia era adivinhar quem é quem.
A fórmula de sucesso do melodrama foi apropriada no século
XX por dramaturgos de diversos países, e o gênero continua a
prosperar na cultura de massa até os nossos dias. A consciência
do grande apelo dessa fórmula motivou Oscar Wilde, Henrik Ibsen
e Bernard Shaw, dentre outros, a fazerem uso dela para, em
seguida, subvertê-la.
Oscar Wilde (1854-1900), por exemplo, entendeu que para
alcançar sucesso de público e crítica, ele teria de incorporar a
fórmula que pretendia demolir. Através do recurso da paródia,
ele zomba das convenções dramáticas exauridas, virando os
estereótipos de cabeça para baixo. Ele decompõe o maniqueísmo
do gênero, representando os clichês do melodrama com
distanciamento crítico. Ao mesmo tempo, ataca e expõe ao ridículo
os valores obsoletos da sociedade burguesa de seu tempo,
utilizando a paródia com fins satíricos.
Assim como Shakespeare, Bernard Shaw e Tom Stoppard,
Wilde é um mestre da língua inglesa, utilizando uma diversidade
de recursos estilísticos como: understatement (humor
subentendido), wit, ironia, sátira, paródia, travestimento, paradoxo
e linguagem epigramática (inversão de clichês). Antes de ser
envolvido num dos maiores escândalos da Inglaterra vitoriana,

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 66


era um dos artistas mais aplaudidos e polêmicos de seu tempo. A
burguesia ia ao teatro para assistir a suas peças e ria de sua
própria estrutura de valores que, apesar de ultrapassada,
continuava a ser cultuada.

A paródia satírica em A importância de ser Prudente (1895),


de Oscar Wilde
Em A importância de ser Prudente (1895), Oscar Wilde parodia
diversos discursos, estilos e convenções de gêneros formulaicos,
tais como o romance sentimental de massa, o romance epistolar
e, principalmente, o melodrama para satirizar a moral hipócrita
vitoriana.
Linda Hutcheon (1989) vê a representação paródica como
uma síntese bi-textual em que os elementos apropriados
adquirem uma nova função. O distanciamento crítico, que se
instala nesse processo, atua como um mecanismo de tomada de
consciência, impedindo a aceitação de pontos de vista estreitos
(p. 131). A crítica canadense considera a paródia uma arte
sofisticada “nas exigências que faz aos seus praticantes e
intérpretes. O codificador e, depois, o descodificador, têm de
efetuar uma sobreposição estrutural de textos que incorpore o
antigo no novo” (HUTCHEON, 1989, p. 50).
O conceito moderno de paródia de Linda Hutcheon reveste-
se de grande importância para a análise da obra de Wilde. Por ser
uma modalidade de jogo que permite ao dramaturgo brincar com
o acervo literário, a paródia constitui-se em um dos recursos de
construtividade preferidos de Wilde que vira formas e estilos
dramáticos convencionais de cabeça para baixo para chamar
atenção à problemática da inadequação dessas convenções para
representar a realidade. O autor visa, ainda empregar a paródia
como instrumento para atingir fins satíricos, objetivando
ridicularizar os vícios e hipocrisias da sociedade vitoriana.

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O enredo da peça A importância de ser Prudente (1895) é
estruturado a partir de dois recursos básicos do melodrama – o
jogo das identidades e as coincidências providenciais – que são
responsáveis pelo acionamento da tradicional fórmula da peça
bem-feita, aperfeiçoada por Scribe e seus seguidores. Através de
recursos paródicos, Wilde ataca o conservadorismo e as ideias
ultrapassadas que esse tipo de drama veicula.
Como já foi dito anteriormente, no cerne da fórmula da
peça bem-feita há uma espécie de enredo mecânico, caracterizado
por situações plausíveis, porém improváveis, e por uma série de
artifícios que sempre seguem o mesmo padrão. O enredo
geralmente é articulado em torno de um segredo, que é conhecido
(ou não) pelos espectadores, porém é sempre ignorado pelo herói
ou pela heroína até o momento em que o mesmo é
convenientemente revelado em um momento crítico na famosa
cena do reconhecimento ou scène à faire, cujo objetivo é fazer
convergir todos os fios narrativos em direção ao final feliz. Nesse
sentido, as chamadas coincidências providenciais são
indispensáveis para promover a evidência necessária que conduz
ao esclarecimento das identidades.
Em A importância de ser Prudente, o motivo da criança
abandonada acrescenta complexidade ao enredo do jogo das
identidades. João, que mora no campo e havia sido abandonado
(ou melhor, esquecido dentro de uma mala na Victoria Station),
foi adotado pelo senhor Worthing e, depois de adulto, ficou
encarregado de cuidar de uma jovem chamada Cecily que está
sob sua tutela. Ele inventa um irmão devasso chamado Prudente
(que desperta o interesse de Cecily) para justificar suas escapadas
a Londres, onde ele assume o nome de Prudente e corteja
Gwendolen, prima de seu amigo Algenon Moncrieff. Da mesma
maneira, Algernon cria uma personagem inválida chamada
Bunbury para poder fugir do tédio dos compromissos sociais da
cidade e passar alguns dias no campo. Quando a farsa de João é

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descoberta por Algernon, o primeiro encena a farsa da morte de
seu irmão para evitar complicações, ao mesmo tempo em que
Algernon decide assumir a identidade e o nome de Prudente para
conhecer Cecily e eles se apaixonam.
Nesse sentido, Wilde brinca com as convenções do
romance sentimental de massa: as declarações de amor das
heroínas seguem modelos da literatura sentimental da época:
ambas sonham encontrar um homem chamado Prudente. Ambas
se apaixonam perdidamente por seus amados, mesmo antes de
conhecê-los. Gwendolen diz que seu ideal foi sempre amar alguém
que se chamasse Prudente, e Cecília chega ao extremo de forjar
um romance com Prudente, o suposto irmão de João, do qual ela
fica noiva e desmancha o noivado bem antes de conhecê-lo, como
comprovam as anotações em seu diário.
Percebe-se que o intuito de Wilde é ridicularizar o motivo
das barreiras insuperáveis que constituem impedimentos à
realização dos sonhos das heroínas. O problema maior vai girar
em torno das identidades confusas, visto que ambas, Gwendolen
e Cecily, são fascinadas pelo nome Prudente.
Por meio da paródia do romance epistolar, Wilde também
introduz em sua peça uma critica à moral castradora vitoriana: o
diário é transformado em instrumento de auto-ilusão consciente
– as jovens heroínas derivam para a ficção para se libertarem do
conflito proveniente das limitações que sofrem por parte do real.
A impostação de sentimentos derivados da arte é uma fantasia
compensatória de uma realidade frustrante, sem graça e sem
emoções. Os modelos de conduta amorosa que percebem em sua
volta são extremamente frustrantes.
Lady Bracknell, a mãe de Gwendolen e tia de Algernon,
não aprova o namoro de sua filha com o Sr. Worthing por ele ser
adotado e por ter identidade duvidosa (visto que, como já foi dito,
foi encontrado dentro de uma mala). Após o famoso interrogatório,
ela deixa claro a sua posição em relação ao jovem quando diz:

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“Então o senhor pensa que eu e Lord Bracknell vamos consentir
que nossa única filha – uma menina educada com todo carinho e
cuidado – acabe casando-se com uma peça de bagagem numa
estação ferroviária?” (WILDE, 1998, p. 40).
A paródia das coincidências providenciais funciona como
um elemento deus-ex-machina para resolver a questão das
identidades na peça. As falsas identidades são desmascaradas
quando Gwendolen e Cecily descobrem a farsa de João e Algernon
que haviam assumido nome e identidade fictícias para seduzi-
las. E a identidade duvidosa de João/Prudente é esclarecida após
a confissão de Miss Prism na scène à faire ou cena do
reconhecimento. Nesta cena, Lady Bracknell reconhece Miss
Prism (no passado a babá do bebê de sua irmã e agora preceptora
de Cecily) que desaparecera com seu sobrinho há muito tempo
atrás. Pressionada em um interrogatório, Miss Prism confessa
que esqueceu o bebê numa mala de mão na Victoria Station:

O caso passou-se da seguinte maneira: na manhã daquele dia,


dia que ficou para sempre gravado em minha memória, preparei-
me como de costume para levar o menino a passeio no carrinho.
Eu levava também comigo uma mala de mão, bastante velha e
espaçosa, na qual tencionava guardar os originais manuscritos
de uma obra de ficção que eu tinha escrito nas horas vagas.
Num momento de imperdoável distração, troquei os conteúdos:
pus o manuscrito no carro e o bebê na mala. (WILDE, 1998, p.
90)

O bebê na mala em questão é João, cujo verdadeiro nome


coincidentemente é Prudente e, pasmem os incrédulos, ele é
irmão legítimo de Algernon, o que para Lady Bracknell é um motivo
mais do que suficiente para torná-lo elegível para sua filha
Gwendolen. Assim, no final da peça, todas as barreiras
insuperáveis são vencidas e os pares românticos têm permissão
para se casar. Através da incongruência e do exagêro, Wilde

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ironiza o tradicional recurso deus-ex-machina que possibilitava a
convergência de todos os elementos e propiciava o
encaminhamento de um final feliz.
Os detalhes do enredo da peça e os recursos literários
empregados imediatamente nos remetem à paródia dos gêneros
românticos exauridos. A ironia de Wilde se dobra sobre o
sentimentalismo exagerado desse tipo de literatura e às ideias
ultrapassadas que veicula. É importante salientar, no entanto,
que Wilde subverte os elementos tradicionais das formulas
literárias e vira os estereótipos de cabeça para baixo com o intuito
de estabelecer uma completa inversão de valores. Em detrimento
à tese dos elementos parodiados ele propõe uma antítese cômica
que torna ridícula as situações e as personagens, lançando, assim,
uma luz extremamente esclarecedora sobre a sociedade de seu
tempo, denunciando as ideologias e os costumes vigentes.

Considerações finais
Em A importância de ser Prudente, a paródia e a sátira
interagem de uma maneira complexa e extremamente eficiente.
Ao utilizar a paródia com fins satíricos, o dramaturgo denuncia a
moral dupla da era vitoriana que, sob a máscara da
respeitabilidade, escondia sua face hipócrita.
Ao flagrar a podridão que jazia por trás da fachada polida
da estrutura social, Wilde expõe ao ridículo o sistema fechado de
classes sociais na Inglaterra, os ócios da nobreza e a falsidade da
sociedade em geral, que estava sempre preocupada em manter
as aparências
Uma outra função da paródia na peça de Wilde é mostrar o
estado decadente em que se encontrava o teatro inglês à época.
Após o período áureo do teatro elisabetano-jaimesco, e um breve
florescimento do teatro na época da restauração, seguiu-se a
franca decadência das formas dramáticas até a metade do século
XIX.

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Referências

CAWELTI, John G. Adventure, Mystery and Romance. Chicago: The


University of Chicago Press, 1976.

HUTCHEON, Linda. Uma teoria da paródia: ensinamentos das


formas de arte do século XX. Trad. Tereza Louro Pérez. Lisboa:
Edições 70, 1989.

WILDE, Oscar. A importância de ser Prudente. Trad. Guilherme de


Almeida. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.

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A DOR COMO DOMINANTE ARTÍSTICO NO CONTO
“A MORTE DA VACA”

Autora: Assiria Maria Linhares Masetti (Uniandrade)


Orientadora: Profa. Dra. Sigrid Renaux (Uniandrade)

RESUMO: Este trabalho tem como objetivo analisar o conto “A morte


da vaca”, de Liam O’Flaherty, publicado na coletânea O mundo e suas
criaturas: uma antologia do conto irlandês, organizada por Munira H.
Mutran. Procurar-se-á demonstrar, com base no conceito de
Dominante, como a dor – tanto física quanto psicológica – é o elemento
que se sobressai e organiza os demais componentes da narrativa.
Assim, serão investigados, igualmente, aspectos da construção da
personagem e da motivação utilizada para caracterizá-la, tais como a
humanização da vaca – em contraposição ao comportamento dos seres
humanos –, a perda do filhote e a obstinação na busca por ele,
mostrados durante o trajeto que percorre, até se precipitar “rochedo
abaixo”. Para tanto, lançaremos mão de conceitos teóricos de Roman
Jakobson e Boris Tomachevski.
PALAVRAS-CHAVE: Dor. Narrativa. Dominante. Humanização.

Oh, pedaço de mim


Oh, metade afastada de mim
(...)
Oh, pedaço de mim
Oh, metade exilada de mim
(...)
Oh, pedaço de mim
Oh, metade arrancada de mim
(...)
Oh, pedaço de mim
Oh, metade amputada de mim
(...)
Oh, pedaço de mim
Oh, metade adorada de mim
(...)
(Chico Buarque)

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Introdução
Desde sempre, o homem viveu muito perto dos animais,
tanto dos que domesticava quanto dos que caçava – ou dos que o
caçavam. Assim, parece natural que os animais estivessem
representados de forma marcante nas histórias contadas pelo
homem – desde as fábulas, presentes em diversas culturas da
Antiguidade, até histórias contemporâneas. Inúmeros foram os
autores que deles se utilizaram para desenvolver temas os mais
variados nos mais diferentes gêneros, como as já citadas fábulas,
contos maravilhosos, peças de teatro, poemas e outros.
Não foram poucos os autores irlandeses que escreveram
a respeito das relações entre o homem e os bichos, uma vez que
“a formação e a situação geográfica da Irlanda favoreceram um
contato intenso entre as pessoas, a natureza e os animais,
resultando dessa aproximação diversas manifestações artísticas
e literárias” (MUTRAN, 2006, p. 284).
Liam O’Flaherty, autor do conto a ser analisado, por sua
vez, nasceu em Inishmore, uma das Ilhas de Aran, um arquipélago
situado a oeste da Irlanda, na Baía de Galway, onde se vivia de
pesca, plantação e criação de animais. Tendo crescido e vivido
seus primeiros anos de juventude nesse meio, em contato direto
com a natureza, O’Flaherty se serviu dessa experiência como
matéria-prima para a construção de muitos de seus trabalhos,
em que as relações entre homens e animais são retratadas: em
alguns, com um olhar favorável, “mas, na maior parte deles, sua
visão do ser humano em relação aos animais é pessimista”
(MUTRAN, 2006, p.288), pois aquele é mostrado como insensível
e até cruel, enquanto estes são humanizados.

A fábula
Fábula é o conjunto de acontecimentos, fatos ou episódios
ligados entre si que nos são narrados no decorrer de uma obra.
Segundo Boris Tomachevski, “a fábula aparece como o conjunto

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dos motivos em sua sucessão cronológica e de causa e efeito”
(TOMACHEVSHI, 1976, p. 174). No conto “A morte da vaca”, cujo
título já antecipa o destino da personagem, temos a seguinte
sucessão de acontecimentos: Uma vaca dá à luz um bezerro morto.
Estão presentes um camponês, sua esposa e alguns homens. A
vaca geme de dor e lambe o bezerro. Em seguida, afasta-se,
resfolegando ruidosamente. Os homens, então, se encarregam
de retirar o bezerro do local e o arrastam ao longo do campo,
cruzando cercas, até chegarem à beira de um penhasco, de onde
o atiram em direção ao mar. Em seguida, voltam e, após obrigarem
a vaca a ingerir uma bebida quente, todos se retiram do local,
com exceção do camponês, que fica à espera de que a placenta
caia, para enterrá-la. Logo mais, ele também se vai, deixando a
vaca com sua dor. Esta, ao perceber que o bezerro não se encontra
mais a seu lado, passa a procurá-lo, farejando o chão, tropeçando
e mugindo, para chamá-lo. Começa, então, a seguir a trilha por
onde o haviam arrastado, derrubando todos os obstáculos que
encontra, até que chega à beira do precipício. De lá ela o vê,
estendido sobre as rochas. Depois de diversas tentativas para
descer pela encosta, sem sucesso, precipita-se rochedo abaixo ao
ver o corpo do filho ser arrebatado por uma onda do mar.

A trama
Diferente da fábula, “a trama é um conceito que
corresponde ao modo como a história narrada é organizada sob a
forma de texto, ou seja, ela é a própria construção do texto
narrativo” (FRANCO JUNIOR, 2005, p.36). Em “A morte da vaca”,
essa organização – a arquitetura – é construída de forma linear,
com os acontecimentos encadeados em ordem cronológica: o
bezerro nasce morto, é jogado no abismo, a vaca dá por sua falta,
percorre um trajeto com obstáculos até encontrá-lo e, finalmente,
joga-se no penhasco para se reunir a ele. Para situar esses
acontecimentos, o autor escolheu uma pequena propriedade rural,

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circunscrita por cercas de pedra, em local limitado por rochedos,
próximo ao mar.
No início do conto, um narrador onisciente nos informa
que uma vaca dá à luz um bezerro morto: “O bezerro nasceu morto.
Veio de ré, primeiro a cauda. Quando o corpo vermelho caiu no
capim, estava morto” (p. 103). Em seguida, ele nos dá conta do
grande sofrimento da vaca, em razão do parto difícil que acabara
de enfrentar: “A vaca gemia, enlouquecida pela dor do parto” (p.
103). Logo depois, mostra-nos uma personagem com
características humanas, ao narrar que a mãe lambe
“ternamente” o corpo do bezerro.
Para o desenvolvimento das ações necessárias à
construção da trama, concorrem, além da vaca – a protagonista –
, personagens como o camponês – dono da vaca –, sua esposa e,
ainda, alguns homens, cujo número não é determinado e que
são definidos apenas pelos verbos na terceira pessoa do plural:
“os homens sacudiam a cabeça, em silêncio”; “levaram” a vaca
para longe”. (p. 103). Neste texto, como em outros de O’Flaherty,
constata-se a inversão de papéis entre homens e animais.
Enquanto a vaca é caracterizada como mãe amorosa a qual luta
para recuperar o filho que lhe tiram, os seres humanos agem de
forma rude, grosseira e impiedosa: “Agarraram o bezerro e o
arrastaram pelas patas (...)”. “De lá o atiraram em direção ao
mar”, como que descartando algo inútil, que não tem mais
serventia. Com o intuito de dar à vaca uma bebida para que se
recuperasse do parto, agarraram-na “rudemente” e “derramaram-
lhe a bebida garganta abaixo (...)” (p. 104). Além disso, percebe-se
que a vaca é tratada como mera propriedade, enquanto o bezerro
é visto como uma expectativa de ganho frustrada, não como seres
dignos de cuidados e atenção. Os cuidados são aqueles meramente
suficientes para manter os animais em condições de produzir.
Isso pode ser constatado no comportamento do camponês, quando,
após todos voltarem para casa, fica esperando a placenta cair,

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enterra-a e, em seguida, apanha “um punhado de terra escura” e
faz “o sinal da cruz no lombo da vaca” (p. 104). Temos aí dois
signos: “A terra é um símbolo de fecundidade e regeneração”
(CHEVALIER, 2015, p. 879) e o sinal da cruz é um gesto cristão. Ao
juntar os dois, como num ritual supersticioso, o camponês parece
estar realizando uma simpatia para afastar o azar e permitir que
a vaca volte a dar cria e produza filhotes vivos.
A esposa do camponês é a única personagem humana que
tem uma fala e é também a única que demonstra compaixão e
solidariedade com o sofrimento da vaca. Ao constatar a morte do
bezerro, ela diz: “– É a vontade de Deus”, mostrando sua
resignação e impotência diante do fato consumado. E afaga a
cabeça da vaca, com uma lágrima nos olhos, “pois também era
mãe” (p. 103).
A partir do quinto parágrafo, podemos dizer que começa a
segunda parte do conto. Nessa parte, ocorre o que Tomachevski
chama de nó. “Para colocar em ação a fábula, introduzimos
motivos dinâmicos que destroem o equilíbrio da situação inicial”
(TOMACHEVSKI, 1976, p. 178). O nó – ou complicação – se dá com
a constatação da ausência do bezerro, a sensação da perda do
filhote pela vaca. A ansiedade provocada pela percepção de que
seu bezerro não está ali é que desencadeia as ações que a levam
a percorrer o trajeto que a conduzirá à beira do precipício de onde
foi jogado o filhote. Se, na primeira parte, após o parto dolorido,
ela “gemia”, “resfolegava ruidosamente” e “ficou encostada na
cerca até diminuir a dor”, ou seja, tinha atitudes de certa
passividade, à espera de que a dor e o cansaço resultante do esforço
durante o parto passassem, nesse momento ela começa a tomar
iniciativas:

De repente, virou-se e abaixou e sacudiu a cabeça. Deu uma


corrida curta, os músculos das pernas rangendo como botas
novas. Parou de novo, nada vendo a seu redor no campo.

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Começou, então, a mover-se desnorteada, passando a cabeça
por cima da cerca aqui e acolá, mugindo. Seu chamado não
obteve resposta. Sua fúria aumentava cada vez mais à medida
que o sentimento de perda se impunha à sua consciência. Os
olhos tornaram-se rubros nas órbitas e ferozes como os de um
touro. Começou a farejar o chão, meio correndo, meio
caminhando, tropeçando desajeitada entre os tufos de grama.
(p. 104)

A partir desse momento, a personagem passa a se mostrar


em toda a sua grandeza: um ser que não se curva diante das
dificuldades que se lhe opõem, que luta obstinadamente, que
supera obstáculos, que age impulsionada pela vontade de atingir
um fim. “Caracterizar um personagem é um procedimento que o
faz reconhecível. (...) Encontramos, por vezes, uma caracterização
indireta: o caráter parte dos atos, da conduta do herói”
(TOMACHEVSKI, 1976, p. 193). No conto, essa caracterização é
construída, em grande medida, pelos adjetivos e advérbios
utilizados pelo autor, os quais enfatizam o sentido dos verbos que
descrevem as ações da heroína na busca de seu objetivo:
“pressionou o corpanzil contra a cerca”/ “pressionou com mais
força”/ “moveu-se ainda mais rápido”/ “levantando a cabeça a
cada passo”/ “mugindo – um mugido longo e plangente que
terminava num crescendo feroz”/ Subiu numa corrida”/
Estremeceu e desviou-se num solavanco ao ver o mar”/” Avançou,
então, vagarosa e trêmula”/ “mugindo desvairada”. (Ênfase
acrescentada.)
Após atravessar os dois campos, derrubando duas cercas
de pedra que impediam sua passagem, ela chega ao alto do cume.
Ali, a trilha do bezerro termina. Não havia mais o que farejar
nem trajeto para percorrer, apenas “a garrulice lúgubre das aves
marinhas”. Ela tenta, ainda, farejar o ar, “incerta”, mas só
consegue sentir o cheiro do mar. Retrocede e torna a subir. Então,
olha para baixo e vê o corpo do filho sobre as rochas lá embaixo.

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Solta um grito de alegria! Esse grito, mais um traço da
humanização da vaca, é o momento crucial para ela, pois
encontrara seu filhote. Procura um jeito de descer para reunir-
se a ele. Porém, embora tente de várias maneiras, não há como
descer, “apenas uma queda abrupta de trinta metros de rochedo
e seu bezerro nas rochas lá embaixo” (p. 106).
Nesse ponto, a narração está atingindo o clímax, prestes
a chegar ao desenlace, pois “a tensão chega a seu ponto
culminante antes do desfecho” (TOMACHEVSKI, 1976, p. 178). A
vaca fita o bezerro parecendo pensar em como resolver o impasse.
Muge, chamando-o. Não obtém resposta. Vê a água subindo com
a maré, aproximando-se dele. Muge novamente. As ondas
avançam, mais e mais. Ela muge mais uma vez, em desespero.
“E então uma onda enorme elevou-se a grande altura e,
arrebatando o bezerro na crista, arrancou-o das rochas. E a vaca,
soltando um bramido, precipitou-se abruptamente rochedo
abaixo” (p. 106). Nessa última frase, ao utilizar bramido, que
significa “rugido de fera” ou “grito colérico” (HOUAISS, 2001, p.
503) e abruptamente, que tem o sentido de “de modo inesperado
e repentino” (Idem, p. 29), o narrador nos dá conta de que a mãe,
para defender seu filhote da onda que o arrebata, age como uma
fera, quer dizer, animal que não se intimida diante de perigos, e
de forma inesperada, repentina, sem medir as consequências
nem avaliar o risco que estaria correndo. Quanto ao atirar-se no
abismo, indo fatalmente ao encontro da morte, podemos refletir
a respeito do simbolismo de morte, como “o aspecto perecível e
destrutível da existência” e, ainda, algo que “tem um valor
psicológico: ela liberta das forças negativas e regressivas (...)”
(CHEVALIER, 2015, p. 621), isto é, a morte teria o sentido de uma
libertação, ainda que de forma extrema. Se aliarmos essa
simbologia à de abismo, entendido como “a integração suprema
na união mística” (Idem, p. 5), podemos concluir que, ao pôr termo
a seu trajeto cheio de provações e obstáculos, além de libertar-se

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de seu sofrimento, ela finalmente completa sua busca pela
benesse suprema, que é o encontro, a comunhão com o filho.

A dor como dominante artístico


Há, em toda narração, um tema que organiza, que enfeixa
os motivos em um todo integrado. Segundo Roman Jakobson, o
dominante é “o centro de enfoque de um trabalho artístico: ele
regula, determina e transforma os outros componentes. O
dominante garante a integridade da estrutura” (JAKOBSON,1983,
p. 485). Em “A morte da vaca”, esse elemento que organiza e
subordina todos os demais – o dominante – é a dor da protagonista.
No princípio, a dor física; em seguida, durante todo o trajeto, até a
morte da personagem, a dor psicológica. No início da narração,
somos informados de que um bezerro nasceu morto. Mas ele não
apenas nasceu morto. O narrador nos diz que “veio de ré”. Essa
expressão, utilizada já na primeira linha do texto, sugere que o
parto não ocorreu naturalmente, teve que ser ajudado pelos
humanos, dado que a cria não se encontrava na posição correta.
Esse fator foi determinante para que a vaca gemesse,
“enlouquecida pela dor”. É por estar “dominada pela dor” que ela
se afasta do bezerro e permanece de cabeça baixa, “resfolegando
ruidosamente”. Esse afastar-se é que permite que os humanos o
levem dali, arrastando-o pelos campos até atirá-lo em direção ao
mar. Para que ela se recupere, oferecem-lhe uma mistura de
aveia, que ela recusa, mas acaba sendo obrigada a engolir. Sua
dor física continua enquanto ela espera a expulsão da placenta.
Em seguida, o camponês faz o sinal da cruz com terra em seu
lombo e se retira. Após a saída do camponês, ela, “durante muito
tempo”, fica encostada na cerca, “até diminuir a dor”.
De repente, ela se dá conta da ausência do bezerro. Muge,
para chamá-lo, mas não obtém resposta. Então, à medida que o
sentimento de perda se impõe à sua consciência, ela se enfurece,
ficando com os olhos rubros nas órbitas, como os de um touro;

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começa a farejar o chão; volta ao lugar onde havia dado à luz;
fareja o lugar onde o bezerro estivera e começa a seguir a trilha
por onde o haviam arrastado. É a dor psicológica que a impulsiona,
que a faz agir. A angústia provocada pela perda de seu filhote faz
com que ela esqueça completamente a dor do parto e todas as
dores provocadas pela derrubada das cercas, que a machucam,
cortam seu corpo e fazem-na sangrar:

Encostou o focinho no chão e começou a seguir a trilha por


onde haviam arrastado o bezerro até a cerca. (...) E então, numa
reação obtusa, pressionou o corpanzil contra a cerca. As pedras
cortavam-lhe o peito, mas ela pressionou com mais força e a
cerca caiu diante dela. Passou aos tropeções pela abertura onde
cortou a coxa esquerda, próximo ao úbere. Sem ligar para a
dor, continuou em frente, farejando a trilha e bufando. (...) Na
segunda cerca parou novamente. De novo pressionou o corpo
contra a cerca, que, de novo, caiu diante dela. Ao atravessar a
abertura, ficou entalada e, na luta para se libertar, cortou os
dois lados ao longo dos flancos. O sangue escorreu em linhas
tortas, descolorindo a mancha branca no flanco esquerdo. (p.
105)

A procura pelo filhote continua, apesar dos sofrimentos já


mencionados, até que ela chegue ao final do trajeto: a beira do
abismo. Lá, ela avança, “vagarosa e trêmula, palmo a palmo” (p.
105). A dor física não é mais mencionada, mas sua ansiedade
persiste. Continua farejando o ar, geme, estica o pescoço e, então,
vê o filho. Mas não há como alcançá-lo. Entre eles, novo obstáculo:
trinta metros de rochedo. Em seu desespero, fita o bezerro “durante
longo tempo, aparvalhada, sem mover um músculo sequer” (p.
106). Então muge, chamando-o, mas ele não se move. A maré
está subindo, então ela muge novamente, para avisá-lo. Quando
as ondas avançam, formando um torvelinho ao redor do corpo,
ela, desesperada, muge ainda uma vez, inutilmente. Até que –

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dor suprema – uma onda arrebata o corpo de seu filho, vai levá-
lo, separá-lo para sempre dela. Não pode haver sofrimento maior.
Ela, então, não hesita: atira-se no abismo para unir-se a ele.

Conclusão
A presente análise procurou mostrar, com base em alguns
pressupostos de Boris Tomachevski, como foi construída a trama
no conto “A morte da vaca”, dando destaque à humanização do
animal, protagonista do conto, em contraposição à arquitetura
das personagens humanas, as quais são desumanizadas. Foram
abordados aspectos da caracterização da personagem, como sua
obstinação, capacidade de tomar iniciativas e decidir, com a
finalidade de atingir seus objetivos. Além disso, examinou-se
como e em que medida a dor da personagem foi utilizada como o
elemento que se destacou em relação aos demais componentes
da trama, atuando como o dominante artístico, um conceito de
Roman Jakobson. Ficou demonstrado, ainda, que, ao completar a
jornada que a conduziu ao objeto amado, a personagem finalmente
se libertou do sofrimento e se completou na união com sua
“metade adorada”.

Referências

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EM NOME DO PAI: A TRANSPOSIÇÃO DE AMONGST WOMEN
PARA AS TELAS

Autor: Beatriz Cristina Godoy (UEM)


Orientador: Márcio Roberto do Prado (UEM)

RESUMO: O objetivo do presente trabalho é analisar a minissérie


televisiva Amongst Women (1998), produzida pela BBC Northern Ireland
e RTÉ, que se baseia no romance homônimo do autor irlândes John
McGahern (1990). Para auxiliar a pesquisa da transposição da obra
romanesca para o meio televisivo em formato de minissérie foram
utilizados os estudos sobre adaptação de Linda Hutcheon (2011) e os
escritos sobre narrativa televisiva de Kristin Thompson (2003) e Ben
Brady (1994). O principal objetivo ao se analisar esta adaptação é
verificar de que maneira a transmutação de mídias acarreta uma
acomodação de conteúdos que vai além de uma simples cópia e como a
reescritura reflete o momento social que a Irlanda atravessa à época
de sua realização, momento social esse tão distinto daquele no qual o
romance foi escrito.
PALAVRAS-CHAVE: Adaptação. Romance. Televisão. Minissérie

As adaptações não são uma atividade nova no meio


cultural. Shakespeare já adaptava suas peças para o palco no
século XVI, assim como os antigos gregos encenavam seus mitos
e contos de fada eram coreografados em produções de dança.
Entretanto, o surgimento de novas mídias fez com que a palavra
adaptação se tornasse multifacetada e, conseguintemente, de
difícil definição. Linda Hutcheon (2011) esclarece que o termo
pode ser usado atualmente para se referir a três aspectos bastante
distintos: um produto formal, um processo de criação e um
processo de recepção. A análise de uma obra adaptada enquanto
um produto exige que levemos em consideração os modos de
engajamento, contar, mostrar e interagir, e ainda, a nova forma
(mídia) escolhida para a reescritura do texto fonte. Como um

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 84


termo globalizante, a adaptação engolfa inúmeras possibilidades
de transposição, o modo de engajamento pode ser mantido - de
uma poesia para um romance - ou modificado - de um romance
para um filme - acarretando também uma mudança de mídia.
Entretanto, nos engajamos de diferentes modos com diferentes
mídias, assim também “cada modo [...] tem sua própria
especificidade, se não sua própria essência” (HUTCHEON, 2011,
p. 49).
O presente artigo se propõe a analisar de que maneira a
transmutação midiática do romance Amongst Women para o
formato de minissérie televisiva acarretou uma acomodação de
conteúdos. Em virtude do romance Amongst Women e de outros
livros referenciais não terem sido traduzidos para o português,
as traduções de trechos citados dessas obras são de
responsabilidade da autora desse artigo.

Adaptando romances para a televisão


A maior e mais óbvia diferença entre um romance e um
programa de televisão é que enquanto um romance conta uma
história, a televisão mostra. O romance permite que o leitor
imagine sem pressa os cenários e os personagens e as vozes que
emanam através desses personagens. É uma suposição inegável
que cada leitor, ao ler um livro, escreve sua própria história;
entretanto, todos os espectadores assistem à mesma narrativa
audiovisual. É possível que cada espectador assista uma versão
própria do programa, prestando maior atenção a diferentes
características, mas as imagens são as mesmas e previamente
arranjadas e enquadradas de acordo com a vontade do diretor.
Uma narrativa audiovisual “vai além da imaginação do
telespectador: a não faz de conta, ela se presume real” (BRADY,
1994, p.7).
De um livro espera-se que desperte a imaginação
enquanto o leitor alterna períodos de imersão no romance e de

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 85


volta à realidade, uma narrativa audiovisual deve parecer real,
como espiar pela janela o desenrolar das vidas dos personagens
durante duas ou três horas. O telespectador precisa acreditar, ao
menos enquanto durar o programa, que aquelas pessoas são reais,
têm vidas e problemas reais, do contrário, a ilusão não funciona.
De acordo com Brady (1994) essa suspensão da incredulidade atrair
o espectador em dois níveis: o cognitivo (pensamento) e
inconsciente (sentimento) de forma que ao mesmo tem em que
sei que estou sendo enganado, aceito a luta dos personagens como
minha. Hutcheon (2011) explica que

o contar exige do público um trabalho conceitual; o mostrar


solicita suas habilidades decodificadoras perceptivas. No
primeiro, imaginamos e visualizamos um mundo a partir das
marcas pretas nas páginas brancas enquanto lemos; no
segundo; nossa imaginação é apropriada enquanto percebemos,
e então damos significado a um mundo de imagens, sons e
palavras vistas e ouvidas no palco ou na tela. (HUTCHEON,
2011, p. 178)

Quando os adaptadores escolhem uma obra para adaptar


devem levar em consideração que a audiência precisa têm algum
tipo de ligação com a história. É preciso que haja personagens
viáveis, enfrentando conflitos com os quais a maioria das pessoas
possa de identificar, para que o público então aceite participar
dessa jornada ao lado dessas pessoas até que resolvam seus
conflitos, com sucesso ou não, e estejam prontos para seguir em
frente. Para Brady (1994) “o grau de sucesso de uma encenação
dependerá amplamente da riqueza desse significado” (BRADY,
1994, p.10). Além do mais, o autor postula que quanto mais próximo
da realidade o problema do personagem estiver, mais os
telespectadores estarão dispostos a se reder e aceitar a narrativa.
Para que a transição de um romance para uma narrativa
audiovisual seja eficaz, existem diversos aspectos que devem ser

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 86


considerados, sendo o tema central um dos mais relevantes e o
qual “deve sempre contribuir para a progressão da história”
(HUTCHEON, 2011, p.11). A definição do tema central permite
que muitos dos temas periféricos, aqueles que não são vitais para
a compreensão da trama central, sejam eliminados e uma
consistência possa ser estabelecida através da narrativa. São os
adaptadores quem fazem a escolha de qual tema deve sobressair-
se aos demais, é somente preciso ser cauteloso para não se
desviar muito dos temas contidos no romance. É aceitável que o
tema se foque no aspecto romântico de uma história de guerra
desde que esse aspecto realmente faça parte da história fonte;
entretanto, é desaconselhável adicionar um tema a uma história
no qual ele não exista previamente.
Outro aspecto que deve ser considerado pelos adaptadores
é resistir à tentação de encaixar todas as nuances de um romance
em uma narrativa audiovisual, resultando em um desfile de
personagens e situações de nenhuma ou pouca importância para
a trama central sendo contada. A alternativa de se trabalhar com
menos informações, ainda que possa ser considerada, uma perda
de conteúdo, “é simplesmente uma redução no escopo: modifica-
se a extensão, eliminando detalhes e alguns comentários” (PEARY
e SHATZKIN apud HUTCHEON, 2011, p.66). A máxima ‘menos é
mais’ funciona perfeitamente para o enriquecimento das
narrativas visuais. Ainda outro aspecto que pode influenciar
negativamente a trama é a resolução precipitada do conflito
principal. Uma vez que o conflito principal é resolvido há pouco
mais com o que se trabalhar em termos de narrativa, o que
significa que mesmo as narrativas audiovisuais podem se apoiar
em enredos periféricos. A história deve apresentar um enredo
principal e outros periféricos que serão resolvidos um após o outro,
culminando na resolução do conflito principal criando assim uma
cadeia de eventos que “gira em torno das decisões que o

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 87


protagonista é forçado a tomar para que lide com as alternativas
que lhes são apresentadas” (BRADY, 1994, p.25).
A escolha de quais personagens manter também representa
um elemento essencial para uma adaptação bem sucedida. É com
eles que o telespectador precisa se identificar - se não
diretamente ao menos ao ponto no nível de empatia - ou seja,
mesmo que seja impossível para alguém se colocar no lugar de
um personagem ele precisa se envolver o suficiente na história
para se importar com o destino do protagonista. Quanto mais
complexo o personagem, mais possivelmente o público o aceitará
e “é o personagem do protagonista – a singularidade de seus
valores – que determina a direção do enredo” (BRADY, 1994, p.37).

Aspectos gerais da obra e momento histórico


Amongst Women é uma minissérie em quatro episódios produzida
em conjunto pela BBC Northern Ireland e pela Radio Telefís Éireann
(RTÉ) - o principal canal de televisão e uma empresa semi-estatal
da República da Irlanda. Adaptada do romance homônimo de John
McGahern, a obra foi escrita por Adrian Hodges - escritor e produtor
indicado ao Oscar por trabalhos anteriores - e dirigida por Tom
Cairns. A minissérie, levada ao ar em 1998, recebeu diversos
prêmios, entre eles o BAFTA de Melhor Série Dramática. O
personagem principal, Michael Moran, foi interpretado pelo ator
Tony Doyle, um artista de renome e conhecido do público por
vários trabalhos prévios em seriados populares de TV, e sua
participação na minissérie lhe rendeu o prêmio da Academia
Irlandesa de Filme e Televisão (IFTA – Irish Film and Television
Academy).
A decisão de se adaptar a obra para a televisão pode ser vista a
partir de dois pontos de vistas distintos, mas complementares.
Primeiro, levando-se em consideração o fato de John McGahern
ser um dos principais autores modernos da literatura irlandesa
e Amongst Women - apesar do pouco tempo entre o lançamento e a

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 88


adaptação - ter rapidamente se tornado a obra mais conhecida do
autor. Segundo, o fato do romance fazer parte da lista de possíveis
obras recomendadas para o Leaving Certificate Examination, a prova
realizada para a conclusão do ensino médio nas escolas
irlandesas. Consequentemente, a adaptação do romance permitiu
não somente levar a obra mais relevante do autor a um público,
mas para um público cujo interesse extrapolava o mero
entretenimento. Entretanto, engana-se quem acredita que a
minissérie substitui a leitura do romance. No processo de
adaptação muitas das escolhas dos criadores, ao destacar e diluir
diferentes elementos da obra fonte, acabaram por criar uma nova
obra.
Apesar de apenas oito anos separarem o lançamento do romance
e a realização da minissérie, as obras foram produzidas em
realidades sociais bastante distintas. O livro foi lançado em 1990,
o ano que marcava o final da década de 1980, aquela que havia
sido um dos piores períodos do século XX para a sociedade
irlandesa, “a extrema pobreza do passado, da qual a Irlanda parecia
ter escapado nas décadas de 1960 e 70, é algo que pode ter
rapidamente voltado no final dos anos 1980” (BROWN, 2004, p.
353). O passado de pobreza e fome parecia mais uma vez assombrar
o povo que durante as últimas duas décadas havia experimentado
uma situação mais segura. Segundo Brown (2004) escândalos
sexuais na igreja católica e a corrupção no governo marcaram a
década de 1980 como um período difícil para os irlandeses. Foi
nesse cenário negativo que McGahern escreveu e lançou seu
romance. Carregado de conteúdo político e religioso, a história de
Moran, apesar de particular, pode ser vista como um
questionamento da história irlandesa do século XX, de como as
decisões e ações dos indivíduos os trouxeram até o momento
presente. Diante de um presente incerto, o autor volta seu olhar
para o passado.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 89


Contudo, em 1998, a época da realização da minissérie, a
realidade na Irlanda havia se transformado sensivelmente e o
Tigre Celta era agora um país em crescimento, mergulhado em
otimismo e com seu olhar fixo no futuro. Em meados da década
de 1990, o país passou de um dos mais pobres para um dos mais
ricos da Europa e “uma sensação de sucesso, nacional e
internacionalmente, deu ao país uma confiança de que seus
problemas podiam ser superados. Um fatalismo inveterado sobre
o papel da nação no mundo foi substituído por um espírito de
empreendedorismo e expectativa” (BROWN, 2004, p.386). Brown
(2004) acredita que, pela primeira vez na História, os irlandeses
se permitiram um distanciamento de seu passado de fome e luta
para se concentrarem em um futuro de riquezas e estabilidade.
O cenário nacional de euforia e esperança em que o romance
Amongst Women foi adaptado para a televisão acarretou a mudança
do tema central, estabelecendo assim a diferença mais
significativa entre o romance e a minissérie. No romance o tema
central repousa dobre o passado de luta da personagem principal
e como esse período influenciou diretamente a maneira com que
o pai se relaciona com os filhos, transferindo a opressão sofrida
pelos irlandeses a época do colonialismo para sua relação com a
própria família. Ainda outro tema vital para a trama do romance
é a maneira com que a com que o pai ocupa um lugar central na
vida dos filhos. Essa centralização se faz presente inclusive na
estrutura da narrativa na maneira com que o narrador altera a
focalização da história em cada personagem consecutivamente
de maneira que diferentes partes são contadas através da relação
do pai com a esposa ou um dos filhos.
Contudo, os conflitos armados e seus desdobramentos, que sempre
foram temas centrais para a cultura irlandesa, não foram
definidos como os temas centrais da adaptação televisiva. Em
uma palestra intitulada “Desenvolvimentos, debates e discórdias
na Crítica Literária Irlandesa”, o professor Shaun Richards (2011)

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proferiu a necessidade dos estudiosos irlandeses superarem os
debates sobre o passado e trazerem as discussões acadêmicas
para assuntos mais atuais como a questão da imigração e a
dinâmica entre as famílias disfuncionais.
Esse panorama apresentado pelo palestrante torna possível
compreender porque os realizadores da minissérie elegeram as
relações familiares, e não os conflitos ou o posicionamento político
de Moran, como tema central. Focalizou-se especialmente o
distanciamento do filho mais velho do pai autoritário e as relações
entre irmãos. Ainda assim, a participação do pai nos conflitos
armados continua presente na trama do seriado como um simples
pano de fundo e não carregam nenhum significado essencial, ao
contrário do que acontece no romance. Ademais, uma maior
ênfase é dada às personagens dos filhos em oposição à do pai.

Tema central e enredos paralelos


Uma das principais consequências acarretada pela
mudança do tema central foi o reposicionamento das personagens,
principalmente a eliminação de James McQuaid. Ao retirar o peso
do passado de Moran, o personagem de McQuaid perde sua
relevância para a história. No romance, a visita de James
McQuaid e o diálogo subsequente servem para revelar o passado
de Moran como soldado do IRA e, no conflito entre as personagens,
estabelecer como as consequências desse passado formaram o
caráter de Moran. Na versão televisiva o personagem desaparece
por completo e o passado de Moran como soldado é mencionado
apenas em alguns momentos, como, por exemplo, no segundo
episódio, quando Moran e Rose em viagem até a praia passam
por um descampado que havia sido cenário de uma batalha da
qual Moran participou e ele, ao se lembrar, compartilha a memória
com Rose. Ela escuta atentamente e sugere “você devia aceitar a
pensão do IRA, você fez por merecer” (HODGES, 1998, ep.2, 18’51).
Sabe-se então que Rose tem conhecimento do passado de Moran

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 91


apesar do assunto nunca ter sido abordado diretamente na tela
até então, o que faz com que o tema da descolonização, enquanto
processo histórico, fique somente subentendido.
Na contramão, o personagem do filho mais velho, Luke,
está presente na adaptação desde a primeira cena. No romance,
a ausência de Luke é tão impactante que o torna, na realidade, o
mais presente dos personagens. Já na minissérie, o personagem
é uma presença tão constante quanto qualquer um dos seus
irmãos. O destaque reservado a Luke é mais uma das
consequências diretas da mudança do tema central, uma vez que
a relação entre Luke e o pai é a mais conflituosa e influencia
diretamente a relação do pai com os demais filhos. Com a
substituição de McQuaid por Luke, todas as questões abordadas
na minissérie ganham um espectro mais pessoal. No romance,
Luke está sempre presente nos pensamentos dos personagens,
mas é um assunto que deve ser evitado porque traz à tona a ira
do pai. Na minissérie, ele precisa se fazer presente porque é
através de suas ações que será estabelecido seu caráter, “em
outras palavras, os valores de um personagem são [...] compatíveis
com as ações que demonstram seu ponto de vista, temperamento
e disposição” (BRADY, 1994, p.36). A presença de Luke também é
essencial para estabelecer um embate entre a personalidade
contida e generosa dele e a crueldade velada do pai. Esse contraste
já é estabelecido desde a segunda cena do primeiro episódio
quando Moran bate em Luke com um pedaço de couro porque ele
fala um palavrão. Enquanto no romance o narrador se vale das
introspecções dos personagens para retificar a personalidade
violenta e egoísta de Moran, na adaptação é a forma violenta com
que o pai trata Luke e seus irmãos, suas ações, que funciona
como reafirmação.
Dá-se aqui uma inversão de focalização, se no romance a
maioria das interações se dava entre pai/filhos, na minissérie
elas são mescladas com um número equivalente de interações

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 92


entre irmãos. O resultado mais evidente dessa mudança é que
uma maior exposição dessas personagens faz com as diferenças
entre elas se tornem visíveis e inquestionáveis, possibilitando
enxergar essas personagens através de um novo olhar.
Aproximadamente oitenta por cento do romance se passa
em Great Meadow, a fazenda dos Moran. As exceções são
acontecimentos que se dão em Dublin, Londres e na praia.
Contudo, somente o primeiro capítulo da minissérie é
majoritariamente ambientado na fazenda, os demais capítulos,
ao terem os personagens dos filhos como centrais, dividem os
espaços entre a fazenda, a praia, Dublin e Londres mais
proporcionalmente. Ainda assim, a fazenda se sustenta como o
centro para o qual todos, com exceção de Luke, convergem.
Visualmente a ideia da fazenda como o centro é apoiada pela
edição de maneira que as cenas, sempre intercalam um
acontecimento que se deu na fazenda com algo filmado em outra
localidade, criando assim um movimento de constante retorno.
Toma-se o episódio três como exemplo desse movimento,
alternando as seguintes cenas: fazenda > cinema > fazenda >
Dublin > fazenda > ferry > fazenda > Londres > fazenda > Londres
> fazenda.
Um dos argumentos utilizados pelos críticos das adaptações
é que na maioria dos casos a transposição de um romance para a
mídia televisiva resulta em uma simplificação do enredo (BRADY,
1994). No caso de Amongst Women, os adaptadores optaram pelo
contrário ao mostrar paralelamente pontos de vista diferentes e
recriar cenas que no romance são apenas recontadas. A maioria
da informação sobre Luke no romance vem das menções feitas
nas cartas que os outros irmãos mandam ao pai, ou ainda das
histórias recontadas durantes as visitas na Great Meadow. Na
minissérie muitas dessas histórias “contadas” foram recriadas.
A escolha não apresenta um desafio particular para os
telespectadores já que “os filmes [...] e a televisão aumentaram

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 93


exponencialmente a exposição das pessoas às narrativas
encenadas [...] e muitos estão aptos a acompanhar histórias
relativamente complexas contadas com imagens em movimento”
(THOMPSON, 2003, p.79). O romance apresenta um enredo central
- a vida de Michael Moran - no qual os enredos paralelos - a vida
de sua esposa e filhos - se sustentam e se desenvolvem
consecutivamente; entretanto, ao transpor os enredos para a
televisão, os criadores optaram por contar as histórias
paralelamente. Outro efeito perceptível dessa escolha é o ritmo
acelerado que a minissérie adota, tão contrastante com o ritmo
do romance, e é esse ritmo acelerado tão característico da
televisão que garante que a narrativa televisiva seja mais
atraente para o público mais jovem.

Elementos da narrativa televisiva


Vários elementos característicos da mídia televisiva estão
presentes na obra adaptada, entre eles os cortes comerciais, as
recapitulações no início dos episódios e as dangling clauses.
Hutcheon (2011) problematiza que uma minissérie televisiva tem
à disposição mais tempo do que um filme, porém o tempo disponível
em cada episódio é exatamente calculado. Isso significa que, se
por um lado os adaptadores televisivos dispõem de um tempo maior
para contar sua história, a forma com que contam deve se encaixar
em blocos (slots) menores de tempo criando a necessidade de que
cada episódio seja individualmente elaborado.
A maneira com que cada episódio é explorado faz dos
seriados produtos únicos. Um episódio não pode ser somente uma
ponte entre conflitos pré-existentes e sua resolução, cada capítulo
deve trazer em si conteúdo suficiente para justificar sua
produção. A ausência dos comerciais poderia ser considerada uma
vantagem para alguns telespectadores, ainda que sua presença
se anuncie nos fade outs, pois permite que a história continue
ao menos até o final de cada episódio. Entretanto, para Elsaesser

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 94


(1994) essas interrupções características da TV “não somente
ajudam a manter o nível de atenção, mas [...] somente tempo
descontínuo e segmentado é um tempo que incide no significado,
criando esses efeitos de progressão chamada ‘casualidade’”
(ELSAESSER, 1994, p.144). As interrupções na narrativa se
assemelham às interrupções no dia-a-dia dos indivíduos e
permitem que a história sendo narrada também se aproxime mais
da realidade do espectador.
As recapitulações são um bom exemplo de uma das
características mais relevantes da narrativa mostrada em
contraste com a narrativa contada: a possibilidade de se absorver
um maior número de informação em um menor intervalo de
tempo. Por exemplo, em uma conversa entre várias pessoas,
quando narrada, precisa incluir além do diálogo em si, a descrição
das diferentes entonações de vozes e as possíveis reações de cada
personagem. Por mais que se ofereça a informação logo em
seguida, ela é sempre consecutiva, nunca concomitante.
Um exemplo é a cena em que as três filhas estão indo
embora depois de visitar o pai e perceber sua má condição de
saúde. A câmera enquadra as três meninas no carro e quando
Mona sugere que elas devem voltar mais vezes, Maggie tem uma
reação de cansaço enquanto Sheila reage com braveza. Seriam
necessários três movimentos diferentes para se narrar um
momento que a câmera consegue capturar simultaneamente. O
modo mostrar também permite a transmissão de sentido através
de imagens simbólicas. Quando Michael foge de casa porque não
quer mais ir para a escola, ao invés de deixar os livros para trás,
ele os leva junto somente pra atirá-los no rio para que sejam
carregados pela correnteza, deixando claro sua intenção de não
retornar aos estudos.
O modo mostrar também consegue causar impacto quando
o som ajuda a complementar uma cena. Nas cenas de violência
do pai contra os filhos o fato de que é possível se ouvir os choros e

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 95


os gritos faz com que a cena tenha um efeito imediato maior aos
engajar simultaneamente a visão e a audição. Essa união visual
e auditiva na busca de um “outro” sentido, ou de um sentido total
– aquele que só pode ser compreendido casando os dois modos de
expressão – faz da TV uma um meio de expressão multimodal.
Para Kress, o significado comunicado por um meio multimodal
vai além da soma de significados dos dois meios, não é apenas
uma adição de sentidos, mas sim um entrelaçamento, onde ambos
devem se fundir em um sentido maior porque “os sentidos vem
até nós juntos” (KRESS, 2003, p.211). O mesmo acontece com as
cenas em que Moran ataca seus familiares verbalmente, o tom
de voz elevado e o rosto enfurecido transmite uma mensagem mais
forte do que a descrição da cena, por mais detalhada que seja.
Ao mesmo tempo em que uma história mostrada se apoia
na junção de som e imagem para tornar uma história mais
expressiva, ela também limita a participação do telespectador na
composição dessa história ao oferecer os cenários e os
personagens prontos a partir da visão dos adaptadores. Aqui
novamente fica claro que diferentes mídias funcionam de
diferentes maneiras e atingem o público também de modos
distintos, enfraquecendo o argumento de que uma boa adaptação
é a mais próxima do texto fonte. Muito da criação da história que
ficaria por conta dos leitores no romance, é pré-escolhido para os
telespectadores pelos adaptadores, “no processo de adaptação, o
que fica indeterminado no imaginário mental do leitor é
preenchido na tradução para a imagem da tela” (COOK, 1994,
p.131)
Não só o som, mas a inserção de caracteres também pode
contribuir para a compreensão da narrativa. Na minissérie a
ambos os recursos são essenciais para estabelecer o período em
que a história se passa. O romance não apresenta datas
específicas, a única maneira de se datar a história é levando em
conta a participação de Moran na Guerra da Independência e

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 96


posteriormente na Guerra Civil e calcular imprecisamente as
datas dos acontecimentos. Porém, os criadores optaram por
estipular anos específicos no início da história, no caso outubro
de 1953, e quando uma passagem de tempo maior ocorre. O
principal motivo para a necessidade de se estabelecer uma data
específica parece residir no fato de que, para que a transposição
de modo seja bem sucedida, a encenação deve se aproximar o
máximo possível da realidade. Para tanto é necessária a escolha
das roupas, penteados, cenários, etc. que correspondam àquele
período histórico, de maneira que o conjunto apresente um
“retrato” da realidade.
A aparência dos personagens e os objetos que compõe o
cenário não servem somente para estabelecer uma data precisa,
mas também para marcar a passagem do tempo. Na minissérie
os penteados das mulheres, especialmente das três filhas, e suas
roupas ajudam a marcar a passagem do tempo. Por mais que a
seja improvável que os telespectadores mais jovens relacionem
um penteado ou item de vestuário à qualquer data específica, o
fato de que ambos, cabelos e roupas, adotam tons mais sérios
com no decorrer da história, auxilia na marcação temporal. Outro
recurso utilizado para marcar a passagem temporal foi a
substituição do ator que interpreta o papel do filho mais novo,
Michael. No primeiro episódio ele é interpretado por uma criança
de aproximadamente 12 anos que, a partir do segundo episódio, é
substituído por um jovem de aparentemente 16 anos que se
manterá até o final da história. O figurino serve ainda para
estabelecer a situação financeira das personagens, assim como
objetos como carros e móveis ajudam a compor as características
dos personagens.
O figurino de Moran é um exemplo de como uma simples
peça de roupa pode adicionar significado à uma história. Durante
toda a história todas as vezes que precisa se vestir formalmente,
Moran usa o mesmo terno marrom de risca de giz. Ele usa o terno

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 97


para ir à missa, ao baile, a seu próprio casamento e anos mais
tarde ao casamento da filha. A repetição do terno o torna um motivo
visual que pode simbolizar tanto a relutância do personagem em
se adaptar às mudanças quanto seu descaso pelas situações
sociais em geral. A deterioração do personagem também se dá
visualmente, com sua aparência se tornando cada vez mais
cansada, os cabelos grisalhos e o andar cada vez mais dependente
da bengala. Já no final da história, Moran parece ter desistido de
viver uma vida plena e se rendido a depressão, Rose e as filhas
comentam constantemente entre si sobre a situações que
culmina na cena em que ele sai de casa de pijamas e casaco,
andando sem rumo e com uma feição desamparada. A imagem
do homem, outrora tão poderoso, mancando de pijamas com o olhar
perdido indica a estado mental dilapidado em que o personagem
se encontra. Não há diálogo na cena, mas a deterioração da saúde
física e mental do chefe da casa fica clara.
A utilização de voice over, apesar de ser um recurso comum
no meio televisivo, em Amonst Women, se restringe a dois
momentos específicos, ainda que por razões distintas. Nas
recapitulações, a utilização de voice over permite que uma maior
quantidade de informação seja apresentada dentro de um menor
tempo. Entretanto, a escolha dessa técnica para compor as
algumas cenas em que as personagens escrevem e leem cartas
parece ter sido uma escolha estética. Devido ao período retratado
pela história as cartas são parte constante da narrativa e seu
conteúdo revelado através do diálogo entre as personagens, uma
vez que, “a principal função dos bons diálogos é transmitir clara e
sucintamente as informações que a audiência deve saber para
estar continuamente interessada na história” (BRADY, 1994,
p.56). Então, quando os adaptadores fazem a escolha consciente
de usar o voice over para comunicar o que está contido em uma
carta é sempre em momentos em que o ato de escrever vai além
do conteúdo.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 98


São duas as situações na minissérie em que essa
construção se faz presente. Primeiro quando Michael, depois de
fugir de casa, escreve para Nell que acaba de voltar para a
América. Mais do que contar como está Michael, os fatos estão
em segundo plano, ele expressa na carta suas ambições e seus
sonhos, em um diálogo que talvez seja mais com ele mesmo do
que com Nell. Michael não está lendo ou compondo a carta em
voz alta, mas sim permitindo o acesso a seus pensamentos mais
íntimos. Mais adiante na trama o mesmo recurso é utilizado
quando Moran escreve uma carta para Luke e a imagem que
começa com ele escrevendo é substituída pela de Luke lendo a
carta. É como se, de certa maneira as palavras viajassem no
espaço e no tempo, criando uma sensação poética, permitindo
que a entonação aproxime o telespectador dos pensamentos dos
personagens, e os personagens uns dos outros. Na última carta
que escreve à Luke, Moran escreve: “Da minha parte, perdoou
tudo que fez. Se escrever isso para ele, ao menos terei a impressão
de que a falta não será minha” (MCGAHERN, 1990, p.176). Os
últimos relatos que ficaram da relação de Moran e Luke foram
essas cartas, que se lidas fora de contexto, falam de uma relação
que nunca realmente existiu.

Referências

AMONGST WOMEN. Direção: Tom Cairns, Roteiro: Adrian Hodges.


Parallel Films, 1998. 2 DVDs (219 min).

BRADY, B. Principles of adaptation for film and television. Austin:


University of Texas Press, 1994.

BROWN, T. Ireland: a social and cultural history 1922-2002. London:


Harper Perennial, 2004.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 99


COOK, J. Television and Literature. In: ELSAESSER, T.; SIMONS,
J.; BRONK, L. (Ed) Writing for the medium: television in translation.
Amsterdam: Amsterdam University Press, 1994. p.131-136.

ELSAESSER, T. Literature after television: author, authority,


authenticity. In: ELSAESSER, T.; SIMONS, J.; BRONK, L. (Ed)
Writing for the medium: television in translation. Amsterdam:
Amsterdam University Press, 1994. p.137-148.

HUTCHEON, L. Uma teoria da adaptação. Trad. André Cechinel.


Florianópolis: Ed. Da UFSC, 2011.

KRESS, G. Literacy in the new media age. Oxon: Routledge, 2003.

MCGAHERN, J. Amongst Women. London: Faber and Faber, 1990.

THOMPSON, K. Storytelling in film and television. Cambridge:


Harvard University Press, 2003.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 100


DIÁSPORA DA ALMA: A ARQUITETURA DO TEXTO E A
ARQUEOLOGIA DO SER EM O ENCONTRO, DE ANNE
ENRIGHT, E UMA MARGEM DISTANTE,
DE CARYL PHILLIPS

Autora: Profa. Dra. Brunilda T. Reichmann (UNIANDRADE)

RESUMO: Este trabalho justapõe dois romances contemporâneos: O


encontro, da escritora irlandesa, Anne Enright, e Uma margem distante,
do escritor britânico afro-caribenho, Caryl Phillips. A justaposição das
duas obras pode ser bastante instigante, ao compararmos a
complexidade das personagens e os universos ficcionais anacrônicos,
caóticos e violentos. Os dois romances têm início in ultima res, a
lembrança do passado é nebulosa e nem sempre o leitor pode precisar
o momento da narrativa. O espaço em O encontro limita-se a Dublin e
Londres; Uma Margem distante, à uma pequena cidade da Inglaterra, a
África e à fuga deste país até a Inglaterra. A jornada interior, não menos
importante, é também a mais longa e complexa de todas. O desejo de
manter ou “criar” uma identidade centrada, voltar ao “lar paterno” ou
encontrar um lar, estabelecer-se num espaço/país acolhedor, torna-
se, na maioria das vezes, um grande e desastroso equívoco, uma jornada
para a nulidade ou para a morte.
PALAVRAS-CHAVE: (des)construção da narrativa. Dispersão do ser.

Considerações iniciais
Caryl Phillips, escritor britânico afro-caribenho, publica,
em 2003, o romance Uma margem distante [A Distant Shore], e Anne
Enright, escritora irlandesa, publica, em 2007, o romance O
encontro [The Gathering]. Enright, ganhadora de vários prêmios,
mora na Irlanda, seu país natal. Phillips mora na Inglaterra desde
os quatro meses de idade, mas nasceu no Caribe e é
afrodescendente. Portanto, apesar da distância entre a origem
dos dois escritores, Enright e Phillips “convivem” em espaços
relativamente próximos. A mobilidade internacional de Phillips,

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 101


no entanto, é o traço mais marcante de sua existência e de seus
escritos. A diáspora é uma realidade na sua vida e na sua obra,
considerando seus antecedentes africanos e seu nascimento no
Caribe. Em Enright, a diáspora ou a dispersão geográfica de um
povo não é o foco de seu romance, mas a protagonista de O encontro
vive na pele as consequências da não aceitação trágica de
personagens que abandonam seu país para encontrar abrigo na
“pátria-mãe”. Aliás, os dois romancistas criam personagens que
sofrem do mal pós-moderno do ser descentrado, fragmentado,
estrangeiro em sua própria terra, quando não sofrem as
consequências da fuga para sobrevivência. Essa característica
do ser pós-moderno, que definirei como o ser diaspórico ou que
sofre dispersão da alma, acaba por marcar profundamente a
escritura de ambos romancistas. Além disso, os dois romancistas
traduzem para a técnica narrativa essa dispersão, este
descentramento inevitável, esta condição humana do século XXI.

Há, porém, uma genuína oportunidade emancipadora na pós-


modernidade, a oportunidade de depor as armas, suspender as
escaramuças de fronteira para manter o estranho afastado [...].
Essa oportunidade não se acha na celebração da etnicidade
nascida de novo e na genuína ou inventada tradição tribal, mas
em levar à conclusão a obra do “desencaixe” da modernidade,
mediante a concentração no direito de escolher a identidade
de alguém como a única universalidade do cidadão e ser
humano. (BAUMAN, 1998, p. 46)

Objetivamos, portanto, neste trabalho, nos debruçar sobre


a diáspora anímica, por meio da técnica narrativa “dispersa” dos
dois romances, dispersão esta que intensifica a riqueza dos
romances, a participação do leitor e a construção do significado.
Os dois livros têm início em ultima res, mas há, em ambos, um
sequel assim que o assunto tratado no início é, de certa forma,
recobrado.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 102


Uma margem distante
Uma margem distante é dividido em cinco partes: as quatro
primeiras são narrativas intercaladas, com uma movimentação
intensa no tempo, e a última continua a narrativa da primeira
parte. No primeiro livro, Dorothy, em primeira pessoa, narra sua
própria história. Ela é uma professora de música, aposentada
prematuramente, por assédio moral. O início da sua narrativa
começa assim: “A Inglaterra mudou. Hoje é difícil dizer quem é
daqui e quem não é. Quem faz parte e quem é um estranho. É
perturbador, Não parece certo. Três meses atrás, no começo de
junho, mudei para cá, para este novo empreendimento imobiliário
de Stoneleigh” (PHYLLIPS, 2006, p. 7). Essa primeira parte tem
início com a mudança de Dorothy para um local próximo à casa
paterna, apesar de seus pais estarem mortos, e termina com o
assassinato de Solomon, amigo dela, africano que trabalhava como
guardião e motorista do empreendimento. Ela é atraída a ele pela
educação, polidez, limpeza, respeito pelos outros, qualidades de
Solomon que ela preza sobremaneira nos outros. Fica evidente,
durante esta parte, a culpa que Dorothy carrega por não ter dado
ouvidos à irmã que lhe conta dos abusos sexuais do pai e pelo
assassinato de Solomon por seus conterrâneos – um homem que
se importava apenas com sua vida e servir aos outros. Ainda nesta
parte, a protagonista tem consciência que possivelmente a
demência será sua condição futura, diante de tantos fatos
insustentáveis em sua vida. Na última parte, é no sanatório que
vamos encontrar novamente Dorothy em sua narrativa em
primeira pessoa, num sequel desta primeira parte.
Na segunda parte, a narrativa em terceira pessoa conta
a história de Gabriel, africano que entrou ilegalmente na
Inglaterra, membro da milícia africana, que foge de seu país, pois
sua família foi assassinada pelos próprios companheiros da
milícia. No início, Gabriel, personagem não mencionado na
primeira parte, está preso na Inglaterra acusado de estupro. Nesta

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 103


parte há um intenso ir e vir no tempo, entre a cadeia na Inglaterra
e sua vida na África, e relatos sobre a violência do próprio
personagem que mata seu ex-patrão para roubar o dinheiro que
necessita para fugir para a Inglaterra, sua “pátria-mãe”. Assim
como há violência e destempero no personagem, há momentos
de delicadeza e de cuidado com pessoas que o cercam ou que se
destacam do grupo de refugiados, como seu desvelo pela jovem
mãe e seu bebê que fazem parte do grupo que foge da África. Essas
atitudes são as sementes do Solomon que já encontramos na
primeira parte: homem cortês, educado, respeitador, responsável,
pois Gabriel diz ao motorista de caminhão que lhe dá carona, no
final desta parte, que seu nome é Solomon. Considerando as
muitas facetas da personalidade de Gabriel/Solomon, sua
maleabilidade identitária parece ser uma vantagem, se não
soubéssemos que no final de sua fuga da África, seu corpo será
encontrado numa vala da Inglaterra. Afirma Bauman: “[...] ter
uma identidade solidamente fundamentada e resistente a
interoscilações, tê-la ‘pela vida’ revela ser mais uma desvantagem
do que uma qualidade para aquelas pessoas que não controlam
suficientemente as circunstâncias de seu itinerário de vida”
(BAUMAN, 1998, p. 38). Essa afirmação pode ser aplicada à Dorothy
também, pois enquanto Gabriel/Solomon tem uma identidade
oscilante e maleável, Dorothy tem uma personalidade bem
fundamentada e resistente a oscilações e mudanças. Assim pode
o leitor interpretar Dorothy e Solomon até o final desta segunda
parte do romance – diferentes, mas com qualidades valorizadas
pelo outro.
Na terceira parte, o narrador anônimo relata, em terceira
pessoa, a história de Dorothy e seu longo casamento com Brian,
a separação (ele separa-se dela depois de 25 anos de casamento,
para casar-se com uma mulher mais jovem), relacionamentos
instáveis com outros homens: um amigo de seu ex-marido, um
comerciante indiano, um professor que começa a lecionar na

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 104


mesma escola onde ela trabalha e um relacionamento fraternal,
mas com possibilidades de transformar-se em um relacionamento
amoroso, com Solomon. Facetas inusitadas de Dorothy começam
a vir à tona, pois, nesta parte 3, ela é a personagem focalizada,
não a que narra sua história. Ela não suporta o rápido e crescente
descaso de seus companheiros, a mudança na maneira de se
vestir quando vão visitá-la; quer domesticá-los, fazer com que a
tratem com o mesmo desvelo com que a tratavam no início do
relacionamento; tenta fazer do comerciante um leitor e
apreciador de música clássica, vai até a banca de revistas que
ele possui e leva uma boneca de presente para sua filha recém-
nascida, encontra-se com a esposa que o proíbe de atendê-la na
banca; entra em contato com a esposa do jovem professor
substituto para interferir na relação deles, escreve inúmeras
cartas de amor e de frustração e as deixa no escaninho da escola.
Finalmente, Dorothy é “convidada” a se aposentar por “assédio
moral”. A inflexibilidade de sua personalidade não a ajuda a se
ajustar a nada que fuja de seus ideais de um relacionamento
com um “homem perfeito”, segundo seus padrões: educado,
amoroso, inteligente, bom leitor, asseado, atento, com boa
conversa, etc. Ao observar Solomon, ela vislumbra um possível
relacionamento com chances de perdurar. Mas, sabe que seus
pais desaprovariam sua escolha, caso estivessem vivos. Sua
conversa imaginária com eles no cemitério mostra claramente
como a lembrança das convicções materna e paterna está
presente em sua vida. Eles certamente não aceitariam Solomon
como um homem digno de ser companheiro de sua filha mais
velha, por ser negro.

“Eu não sou ingênua”, digo para mim mesma. Sussurro sob
minha respiração. Já fui pega nessa discussão no passado.
Para começar, minha mãe e meu pai, pois ambos não gostavam
de gente de cor. Papai considerava as pessoas de cor um desafio

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 105


à nossa identidade inglesa. [...] para ele, ser inglês era mais
importante do que ser britânico, significava não ser de cor.
(PHYLLIPS, 2006, p. 50)

O quarto livro, em primeira pessoa, resgata a história


sofrida de Gabriel/Solomon e de sua chegada à Inglaterra, depois
de ser inocentado da acusação de abuso sexual: o encontro com
Mike, que lhe dá carona, com os Andersons, que o acolhem. A
inesperada morte de Mike, e a ida dos Andersons para a Escócia
(não antes de terem encontrado um lugar onde Solomon pudesse
trabalhar, o condomínio de Stoneleigh), são fatos relatados pelo
personagem em primeira pessoa. A vida de Solomon muda
completamente na Inglaterra, mas a morte de Mike é o gatilho
para que o passado venha à tona novamente. Ele revela:

Recordava minha mãe jogada no chão de meu distante país,


com o sangue brotando de seus ferimentos. Recordava meu
pai e minha mãe recebendo tiros como animais. Meus sonhos
continham minha história. Noite e dia eu tentava não pensar
mais nessas coisas. Tentava não pensar mais nessas pessoas.
Eu queria deixar essas pessoas livres para que pudessem se
transformar na história de outro homem. Querida parar de
sonhar com elas à noite, ou pensar nelas durante o dia, mas
depois da morte de Mike, fiquei muito perturbado e não
conseguia escapar nem de mim, nem do meu país, nem da minha
família. (PHYLLIPS, 2006, p. 329)

Ficamos sabendo também do interesse de Solomon por Dorothy,


como uma mulher “que se dá respeito”, elegante, educada e
solitária. Ele deseja “resgatar” aquela mulher. Mas isso não será
possível, os skinheads do local se encarregam de abreviar a
existência de Solomon e impossibilitar qualquer tentativa de
aproximação entre os dois seres solitários.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 106


O quinto livro, o mais curto, como mencionamos
anteriormente, é um sequel da narrativa e da narração. Dorothy,
agora internada num hospício, relata, novamente em primeira
pessoa, o que segue depois da morte de Solomon, assunto do
primeiro livro. A forma com que o romance é apresentado, com
uma linha temporal quase caótica, com enredo nebuloso e
colocações instáveis, nos remete para a realidade de nossos dias,
na qual tudo parece “diluir-se no ar”. O próprio jorrar da narrativa,
ora para um lado, ora para outro, a busca do significado, revela,
mais uma vez, que a realidade/identidade do ser humano
contemporâneo é fluida, móvel, incerta, inesperada. Por outro lado,
é essa nebulosidade, incerteza, mobilidade, fluidez que talvez
impeça o desgaste da produção artística. Como afirma Bauman:

O significado da obra de arte pós-moderna, pode-se dizer, é


estimular o processo de elaboração do significado e defendê-lo
contra o perigo de, algum dia, se desgastar até uma parada;
alertar para a inerente polifonia do significado e para a
complexidade de toda a interpretação. (BAUMAN, 1998, p. 136)

O encontro
A estrutura de O encontro, de Anne Enright, segue também
esse padrão de desequilíbrio, de incerteza, de fluidez do romance
de Phyllips. O romance é dividido em 39 capítulos, tem como
gatilho a notícia do suicídio de Liam, irmão da protagonista-
escritora Veronica, que narra em primeira pessoa. A narrativa
tem início com o “presente” da diegese (1998), mas é intercalada
com narrativas conscientemente nebulosas e imaginárias dos
anos 1920 e lembranças mais nítidas dos anos 1960.
Estaríamos sendo simplistas se disséssemos, como disse
uma leitora irlandesa, que o romance é “sobre um típico funeral
de uma família irlandesa, apenas isso”, durante um grupo de
estudos irlandeses. A narrativa em primeira pessoa, os

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 107


sentimentos da protagonista, registrados por ela mesma, a
nebulosidade da realidade que se lhe apresenta e que se lhe
apresentou no passado, fazem do romance uma caótica jornada
interna em busca de significado. Desde o início, Veronica duvida
de suas próprias lembranças:

Eu gostaria de registrar o que aconteceu na casa de minha avó


no verão em que eu tinha oito ou nove anos, mas não tenho
certeza se realmente aconteceu. Tenho que testemunhar um
acontecimento incerto. Que eu sinto rugir dentro de mim, essa
coisa que pode nem ter acontecido, Não sei que nome dar a
isso. Acho que se pode chamar de crime da carne, mas a carne
há muito se desfez e não sei bem qual mágoa pode restar nos
ossos.
[...]
Há dias que não me lembro da minha mãe. Olho a fotografia
dela e ela me escapa. [...] E de todos os filhos, eu sou a que
mais pareço com a mãe dela, minha avó, Ada. Deve ser confuso.
[...] Se ela [a mãe] ao menos ficasse visível, penso. Então eu
poderia entrar em contato com ela e impor-lhe a verdade da
situação, a gravidade do que ela fez. Mas ela permanece
nebulosa, inatingível... (ENRIGHT, 2007, p. 7, 9, 11)

O suicídio de Liam na Inglaterra, o translado do corpo, as


viagens de Veronica, a incumbência de dar a notícia da morte do
irmão para a mãe doente, o casamento tribulado, o passado
atormentador, aquele passado no qual Liam foi abusado
sexualmente por um amigo da avó, são fatos e “lembranças” que
se alternam no início e se emaranham depois dos capítulos
iniciais do romance. Por exemplo, o capítulos 1, 3, 5 tem o presente
(1998) como foco, os capítulos 2 e 4 viajam no tempo para 1925; já
no capítulo 27, Veronica relata acontecimentos e sentimentos
que são vivenciados um mês depois da morte do irmão, mas no
capítulo 30, o corpo de Liam está sendo velado na sala da casa da
mãe. No capítulo 39, no sequel, a protagonista encontra-se no

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 108


aeroporto Gatwick, segundo maior aeroporto de Londres,
preparando-se para voltar para casa.

O saguão de entrada [do hotel] abriga o conteúdo humano de


um 747 cuja turbina falhou acima do Cazaquistão. É a segunda
noite que passam no solo do país errado; estão com as roupas
usadas, vão pensar num banho de banheira e aceitar um
chuveiro, mas ainda não, porque não tem nada limpo para vestir.
Vão examinar o guarda-roupa e o abajur da cabeceira, e depois
vão sentar na cama, deitar nela, ou levantar a colcha esticada
e se esfriar por debaixo: se bem que depois de algum tempo
nós vamos todos rolar, ou nos arrastar, ou despencar até o
esquecido frigobar e nos perguntar se vale a pena. A qualquer
preço.
Isso não é a Inglaterra. (ENRIGHT, 2007, p. 236, ênfase
acrescentada)

Parece que estamos ouvindo a voz de Dorothy no início de


em Uma margem distante. Neste caso, no entanto, os seres
humanos que esperam abrigo no hotel estão sendo observados
pela narradora, até que no final do parágrafo ela é um deles, pois
a narradora usa, então, a primeira pessoa do plural. Ela faz parte
do grupo dos que esperam (ou sofrem), devido à uma falha no avião
(ou na vida, incluindo, nesta, falhas de percepção e da memória).
O presente da narradora-protagonista oscila entre águas turvas
e turbulentas do passado e é matizado por intimations do futuro
Durante a narrativa de O encontro, durante a espera para
resgatar o corpo do irmão e enterrá-lo, não há linearidade, não
há ordem, não há organicidade como nas narrativas ficcionais
que antecedem a ficção na qual os conflitos interiores se impõem
à uma realidade empírica, também criada pelo autor/narrador. A
memória, constantemente evocada por Veronica, e pelos
personagens de Phyllips nas narrativas em primeira pessoa, pode
brotar, segundo Samuel Beckett, em seu ensaio Proust (2003), de

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 109


forma voluntária ou involuntária. A memória voluntária é “a
memória que não é memória, mas simples consulta ao índice
remissivo do Velho Testamento do indivíduo” (BECKETT, 2003, p.
31) e a memória involuntária que “é explosiva, ‘uma deflagração
total, imediata e deliciosa’ [r]estaura não somente o objeto passado,
mas também o Lázaro fascinado ou torturado por ele [...] e em seu
fulgor revela o que a falsa realidade da experiência não pôde e
jamais poderia revelar – o real” (BECKETT, 2003, p. 33). Em O
encontro, a construção da narrativa está vinculada a esses dois
tipos de memória apresentados por Beckett, a involuntária, que
é acionada pela notícia do suicídio de Liam, e a voluntária, na
busca consciente de Veronica ao folhear o álbum de família
imaginário e tentar resgatar o momento que causou o grande
trauma na vida do irmão. Ao tentar reconstituir o nebuloso
passado, realidade que a experiência não revelara, mas que agora
explode claro em sua mente, Veronica sente-se compelida a gritar
a verdade para sua mãe, mas, reconhecendo que talvez a própria
mãe tenha sido vítima do agressor do irmão, cala-se novamente,
como faziam todos os irmãos na casa paterna.
Como parte do processo de se lembrar voluntariamente,
Veronica passa noites em claro escrevendo outra narrativa sobre
a juventude de sua avó Ada, em especial sobre os acontecimentos
do longínquo ano de 1925, em que tenta (re)criar a situação na
qual Ada conhece Lambert Nugent e Charlie Spillane, casando-
se com este último: “Ela não se casou com Nugent, você [leitor]
vai ficar aliviado de saber. Casou com o amigo dele, Charlie
Spillane. [...] Mas ele nunca a deixou. Minha avó era o ato mais
imaginativo de Lamb Nugent” (ENRIGHT, 2008, p. 24). Esse triângulo
abre as portas da casa para Nugent, que passa a ser o “amigo da
família que estava lá o tempo todo” (ENRIGHT, 2008, p. 63).
O início do romance de Enright parece apontar para uma
narrativa onde o suicídio do irmão (presente) reaviva um passado
violento e nebuloso, que precisa ser rememorado e registrado,

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 110


com a obscuridade que lhe é peculiar, pela protagonista. “É assim
que vivo minha vida, desde que Liam morreu. Fico acordada a
noite inteira. Escrevo ou não escrevo. Ando pela casa” (ENRIGHT,
2007, p. 37). As citações das páginas 7, 9 e 11, de O encontro, já
demonstram essa consciente incapacidade de criar um passado
nítido, já que nada, além de três detalhes do suicídio, parece ser
nítido na vida dos irmãos Liam e Veronica:

Há fatos sobre a maneira como Liam morreu que eu preferiria


não ter sabido. Tanta coisa eu esqueci na vida e não consigo
esquecer esses pequenos detalhes. Esqueci... mas nunca vou
esquecer os três pequenos fatos que a boa gente de Brighton
me contou sobre o corpo que içaram do mar.
O primeiro foi que Liam estava usando um casaco curto amarelo
fluorescente, como aqueles usados por trabalhadores de estrada
de ferro e ciclistas.
O segundo é que estava com pedras nos bolsos.
O terceiro é que estava sem cueca debaixo do jeans, e sem
meias dentro dos sapatos de couro.
[...]
Eu sei, ao escrever essas três coisas: o casaco, as pedras e a
nudez do meu irmão por baixo da roupa, que elas exigem que
eu lide com fatos. É hora de pôr um fim nas histórias cambiantes
e a divagações. É hora de pôr um fim no romance e contar
apenas o que aconteceu na casa de Ada no ano em que eu
tinha oito e Liam quase nove anos. (ENRIGHT, 2007, p. 132,133)

Considerações finais
É uma determinação de pouca duração, pois, mesmo ao
relatar o que aconteceu na casa de Ada quando ela tinha oito e
Liam quase nove anos, a lembrança surge de uma percepção
totalmente irreal. Podemos acrescentar, portanto, que ela própria
convence o leitor da impossibilidade de tomá-la como uma
narradora confiável. Assim como nos narradores em primeira
pessoa de Phyllips, o que vemos é a impossibilidade de criar uma

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 111


narrativa com seres humanos centrados, sobre uma realidade
palpável, com roteiros definidos, alertando o leitor para a “inerente
polifonia do significado e para a complexidade de toda a
interpretação” da intrigante e instigante produção literária
contemporânea (BAUMAN, 1998, p. 136).

Referências

BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Trad. Mauro


Gama e Cláudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1998.

BECKETT, Samuel. Proust. Trad. Arthur Nestrovski. São Paulo:


Cosac & Naify, 2003.

ENRIGHT, Anne. O encontro. Trad. José Rubens Siqueira. Rio de


Janeiro: Objetiva, 2008.

PHYLLIPS, CARYL. Uma margem distante. Trad. Maria José Silveira.


Rio de Janeiro: Editora Record, 2006.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 112


ENCADEAMENTO DE CONTOS DE KATHERINE MANSFIELD
COMO BILDUNGSROMAN DE SUAS
PERSONAGENS FEMININAS

Autor: Camilla Damian Mizerkowski (UFPR)

RESUMO: O presente trabalho sugere o desenvolvimento de


um Bildungsroman das protagonistas femininas de Katherine Mansfield
nos contos A casa de bonecas, Uma festa no jardim e Seu primeiro baile, em
que se observa evidente gradação na passagem da infância para a
adolescência, e daí para uma relativa maturidade. Há evidências de
pontos de contato entre as protagonistas, como a aguçada sensibilidade
em relação ao mundo circundante, que as leva a uma maior consciência
de si, reforçando a hipótese de uma história continuada do processo
de iniciação da mulher. Restrinjo minha análise àqueles contos pois
são exemplos da New Zealand fiction de Mansfield, que têm como cenário
sua terra natal e como pano de fundo um sistema familiar muito
semelhante ao da própria autora.
PALAVRAS-CHAVE: Bildungsroman. Katherine Mansfield. Ficção curta.

Katherine Mansfield é possivelmente o nome mais


relevante na área da ficção curta em língua inglesa. Seus contos,
que datam do início do século XX, conquistaram o reconhecimento
gradual da crítica da época e continuam ainda hoje a interessar
estudiosos da literatura e a deleitar leitores comuns. O êxito de
Mansfield pode ser creditado ao seu agudo poder de observação e
à sensibilidade de conhecedora da alma humana, expressos em
mais de uma centena de contos e nos vários registros íntimos e
de crítica profissional que compõem sua obra. Na criação de
pequenos acontecimentos cotidianos, que já não correspondem à
fotografia exata da realidade, sentimentos, reações e emoções
transformam-se em uma experiência sensorial tanto para as
personagens como para os leitores. O resultado de tal trabalho

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 113


com o texto rendeu a Mansfield apreciação geral dos leitores e
críticas elogiosas por parte de profissionais da literatura.
Segundo Gillian Boddy (1988), biógrafa e crítica, alguns
estudiosos consideram Mansfield uma contadora de histórias (a
teller of tales), enquanto outros acreditam que seus contos são
apenas fragmentos de recordações. São também recorrentes
análises de seus contos a partir de paralelos com a vida da autora:
temas das histórias são verificáveis em sua biografia, assim como
personagens e cenários de muitos de seus contos coincidem com
membros de sua família e locais onde viveu ou que visitou. A
própria autora comenta:

I think the only way to live as a writer is to draw upon one’s


real, familiar life — to find the treasure … And the curious
thing is that if we describe this which seems to us so intensely
personal, other people take it to themselves and understand it
as if it were their own. (In: Boddy, 1988, p. 158)

Ao se propor descrever “a vida familiar e real” que é


“intensamente pessoal”, Mansfield aproxima sua obra do leitor, o
que confirma a hipótese levantada por estudiosos. Seus mais
famosos críticos e biógrafos, como Antony Alpers (1982), Vincent
O’Sullivan (1998), Clare Hanson (1987) e Gillian Boddy (1988)
concordam em que os eventos inspiradores de muitos de seus
contos são facilmente localizados em anotações de diário e cartas:
entre os mais famosos estão a viagem que fez à Alemanha com a
mãe, Annie Dyer, para submeter-se a um aborto, viagem que
deu origem aos contos que fazem parte da coletânea In a German
pension (1911), seu primeiro livro publicado. Outra viagem, desta
vez à França, com o fim de encontrar o amante e escritor Francis
Carco, originou o conto “An indiscreet journey” (1920). Carco
também inspirou o narrador de “Je ne parle pas français” (1917),
história bastante criticada por suas conotações sexuais.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 114


A nômade Mansfield garantiu em seus contos um retrato
inigualável tanto do povo europeu quanto do neozelandês. É
importante lembrar, contudo, que os estudos de sua obra não
devem se restringir à investigação da precisão de eventos, lugares
e personagens de suas narrativas, se correspondem ou não à
realidade da vida da autora. Atenção deve ser dada às
circunstâncias em que eventos, cenários e personagens foram
recriados e de que forma o processo se deu:

There have been few writers whose life and work seem so
inseparable, but there seems little point in debating whether
it was her experiences in New Zealand or in England which
had the greater influence on her work — she could not have
written as she did without the particular combination of both
those very different worlds, her own peculiar form of
“geographical schizophrenia”. (BODDY, 1988, p. 158)

A peculiar “esquizofrenia geográfica” de Mansfield garantiu


um julgamento do mundo e da sociedade — tanto da neozelandesa
quanto da inglesa — próprio de quem conhece profundamente o
funcionamento dos dois mundos, e sente-se capaz de retirar a
essência de ambos. Embora sofra o choque da Primeira Grande
Guerra — o período mais criativo de Mansfield foi de 1915 a 1923
— e as desilusões da tão sonhada carreira de escritora na
Inglaterra, Mansfield ainda se dedica a procurar tanto na Nova
Zelândia de sua infância — a que reinventa em sua imaginação
— quanto na Londres moderna e no restante da Europa devastada
pela guerra, o meio para veicular a Verdade e a Beleza que a
motivaram a escrever.
Apesar de o conceito de Verdade de Mansfield não ser
expresso diretamente em suas obras, é possível inferir que se
liga à ideia de compreender os significados abstratos de elementos
e eventos do cotidiano. A própria autora afirma que não pode falar

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 115


sobre os “desertos de vasta eternidade” diretamente, mas os
aborda por meio de um “menino comendo morangos”, ou “uma
mulher penteando os cabelos” (1996, p. 148). Deste modo, Mansfield
acredita que a Verdade está em observar o mundo com olhos
poéticos, e a partir desta observação ser capaz de refletir sobre
assuntos profundos e complexos, como a vida e seus processos.
Como afirma Hanson (1987), a obra da autora tem tanto função
estética quanto ética, e esta última é a de revelar a sua visão de
verdade por meio de seus textos.
Nota-se, portanto, uma concentração nos detalhes mínimos
da vida — como o desabrochar de uma flor — em forma de imagens
sugestivas, atribuindo-lhes significados elevados. Na brevidade
dos contos, Mansfield é capaz de exprimir anseios e descobertas,
na criação de seu mundo ficcional povoado de personagens
sensíveis em um contexto carregado de simbolismo. O trabalho
de Mansfield é dedicar-se a “intensify the so-called small things,
so that truly everything is significant.” (ALPERS, 1980, p. 81).
Esta preocupação da autora com o fazer literário e o papel
da literatura aparece principalmente em resenhas, ensaios
filosóficos para jornais literários da época e registros de caráter
íntimo, como cartas a diversas pessoas envolvidas no cenário
artístico de sua época — como Virginia Woolf, D. H. Lawrence,
John Galsworthy e Hugh Walpole. Além desses meios oficiais,
Mansfield também expressou suas opiniões em um extenso diário,
rico em anotações que revelam, a par de suas reflexões íntimas,
uma profunda preocupação com a literatura e sua execução. Na
soma destes registros encontramos um retrato de Mansfield como
crítica e como escritora e, acima de tudo, como artista. Os
registros não ficcionais, portanto, são imensamente valiosos não
somente por possibilitar um estudo biográfico da obra de Mansfield,
mas principalmente pelo insight que oferecem sobre a misteriosa
relação da autora com sua obra: a análise cuidadosa de passagens

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 116


tanto de diário, quanto de cartas, resenhas e ensaios permite
compreender a visão do mundo da artista e o seu processo criativo.

These notes and letters are particularly important for what


they reveal of K.M.’s artistic development. As a writer she
believed deeply in the importance of writing as an art, constantly
discussing and explaining her ideas about her own work and
others. (BODDY, 1988, p. 109)

O levantamento cuidadoso da não ficção de Mansfield,


centrado especificamente sobre seus comentários a respeito do
processo de criação literária, — o seu próprio e o de outros autores
— evidenciou a existência de pontos essenciais em sua
carpintaria artística, dentre estes a fonte de grande parte de suas
imagens e temática: a memória da infância e de sua terra natal.
O conjunto da ficção de Mansfield aborda, de fato, temas maiores
como o nascimento, a vida e a morte, que nas histórias sobre a
Nova Zelândia — para onde retorna “quando quer” — assumem
profundezas inefáveis na construção de cenário e personagens.
Sobre o fundo da paisagem de sua terra natal, Mansfield cria um
panorama humano que simboliza seus ideais de Pureza e Verdade,
hipótese reforçada pela recorrência de personagens em várias
de suas New Zealand Stories.
As histórias dedicadas à infância, na paisagem familiar
de Wellington e seus arredores, têm destaque indiscutível no
conjunto da ficção de Mansfield. Uma carta endereçada a Dorothy
Brett, de 11 de outubro de 1917, testemunha a importância que a
autora atribui a essa fonte de inspiração: “... tenho uma grande
paixão pela ilha onde nasci. (…) eu tentei levantar a névoa que
cobre o meu povo, deixar que ele pudesse ser visto, para depois
escondê-lo novamente.” (MANSFIELD, 1996, p. 80). Em 1922, cinco
anos mais tarde, Mansfield escreve em seu diário: “Não posso
dizer o quanto estou agradecida por ter nascido na Nova Zelândia,

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 117


por conhecer Wellington tão bem quanto conheço, e saber que
ela existe e que posso ir lá quando quiser.” (1996, p. 251-2). É
possível considerar estes comentários como um retomar da Nova
Zelândia como cenário e tema de seus contos, depois de um longo
período na Europa, marcado pelo trauma da guerra que atingiu
Katherine Mansfield no centro de suas afeições familiares, com
a morte do irmão mais novo, Leslie Beauchamp.
Depois destes acontecimentos conturbados, há
testemunho, principalmente em seu diário, da intenção de
retomar as memórias da terra natal como tema e ambientação
de sua narrativa. Ademais, o exame de cartas e ensaios filosóficos
aponta para a consciência de Mansfield de ter encontrado no
retorno às suas raízes a Pureza, a Verdade e a Beleza: “Beauty
triumphs over ugliness in Life. That’s what I feel, and that
marvelous triumph I long to express… Life is, all at one and the
same time, far more mysterious and far simpler than we know.”
(In: BODDY, 1988, p. 181). Nesta passagem, verifica-se o desejo
de aperfeiçoar a expressão literária para comunicar e fazer sentir
a beleza inerente da vida e o mistério de sua simplicidade.
Assim, a postura artística que assume depois da trágica
experiência dá origem a contos comoventes, como Prelude, The
doll’s house, The garden party e Her first ball, escritos durante um
período de produção intensa, que inclui seus melhores contos,
segundo a crítica. Mais do que simplesmente relatar as memórias
do país, Mansfield trabalha incessantemente para encontrar uma
forma de representação literária única, segundo o que se observa
em sua obra não ficcional. Cuidadosamente selecionados, os
eventos são dispostos sem explicações introdutórias, como em
flashes — “Its brevity was that of the flash, not of a condensed
narrative.” (ALPERS, 1980, p. 239) — o que posiciona o leitor bem
no centro dos acontecimentos. O exame da obra discursiva de
Mansfield estabelece um vínculo entre suas concepções sobre
prosa de ficção e seus contos, em particular aqueles ambientados

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 118


na Nova Zelândia, assunto de muitas de suas correspondências
e registros.
Deste modo, argumento que a fase mais sensível de
Mansfield, na qual se dedica a reviver suas lembranças, coincide
com a morte do irmão caçula, cuja perda traz grandes modificações
na sua visão de mundo. Isto é evidente na fala de Leila,
protagonista de Her fisrt ball, ao observar o carinho do primo, Laurie
Sheridan, com as irmãs. Ocorre-lhe o desejo da companhia de
um irmão: “Oh, how marvelous to have a brother! In her
excitement Leila felt that if there had been time, if it hadn’t been
impossible, she couldn’t have helped crying because she was an
only child and no brother had ever said ‘Twig?’ to her;” (1997, p.
166). Em The garden party Laura compartilha a experiência do
conhecimento da morte com um irmão querido que a compreende:
“‘It was simply marvellous. But, Laurie —’ She stopped, she looked
at her brother. ‘Isn’t life’, she stammered, ‘isn’t life —’ but what
life was she couldn’t explain. No matter. He quite understood.”
(1997, p. 257). É para o irmão Laurie que Laura abre o coração
angustiado pelo contato abrupto e inesperado com a morte.
Tendo em foco os aspectos até agora expostos, o recorte
para este artigo foi feito a partir de um crivo que considerou contos
que apresentam um encadeamento de temas sobre as famílias
Sheridan e Burnell (protagonistas de diversos contos da Nova
Zelândia), e que apresentam personagens recorrentes em
diferentes estágios de vida, como numa espécie de história de
iniciação. Quatro contos foram selecionados, pois apresentam
uma sequência narrativa de desenvolvimento cronológico das
protagonistas: Prelude, The doll’s house, The garden party e Her
first ball, cujos títulos preferi manter em inglês já que nem todos
possuem tradução para o português. Observa-se uma evidente
gradação no desenvolvimento das personagens — da infância, à
adolescência e à fase adulta — sendo possível catalogar os contos
selecionados de acordo com as diferentes fases da vida das

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 119


protagonistas, analisando o processo de seu amadurecimento: da
inocência da criança, passando por uma maior consciência do
mundo circundante, à relativa maturidade da adolescente e da
jovem.
O que se evidencia se considerarmos o conjunto maior
representado pelos quatro contos é o processo de amadurecimento
das qualidades de percepção de certas personagens. A Kezia de
sete anos em The doll’s house, que percebe a ansiedade das
pequenas Lil e Else em ver também a preciosa casinha de
bonecas, se transforma na Laura de The Garden party, colocada
em contato brusco com as realidades da vida e da morte entre os
mais pobres. Os reveses sofridos por Laura na preparação da festa
no jardim são revividos por Leila em Her first ball, de forma mais
condensada e talvez mais intensa, uma vez que a protagonista já
atingiu os dezoito anos e tem mais aptidão para compreender a
complexidade dos relacionamentos humanos. Há, portanto, uma
relação sequencial das narrativas.
Assim, dotadas de uma capacidade rara de apreensão da
beleza, — Kezia é a única entre as Burnell a perceber a perfeição
de uma lampadazinha na casa de bonecas; Laura é a “artista” da
família, Leila atenta para os menores detalhes do novo cenário
— as protagonistas fazem parte de uma única história de
amadurecimento espiritual. Isto justificaria a classificação dos
contos como um romance de iniciação, agrupados ao redor de um
mesmo tema, com uma protagonista única em processo de
desenvolvimento. A respeito das histórias de formação, Mordecai
Marcus (1976, p. 192) afirma que: “An initiation story may be
said to show its young protagonist experiencing a significant
change of knowledge about the world or himself, or a change of
character, or of both, and this change must point or lead him
towards an adult world.” Efetivamente, a sensibilidade para
questões relevantes do relacionamento humano faz de Kezia,
Laura e Leila facetas diversas de uma mesma personalidade, que

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 120


se torna mais consciente de si própria e do mundo exterior, como
uma única personagem feminina em um Bildungsroman no
conjunto dos contos analisados.
No caminho para o mundo adulto, traços humanos únicos
são revelados, o que define a “vida” das personagens da trama,
segundo Mansfield, característica importante para a sua
construção. Analisando as personagens secundárias de Night and
day, de Virginia Woolf, Mansfield defende seu ponto de vista:

... it is true that these characters are not in any high degree
important — but how much life have they? — we have the queer
sensation that once the author’s pen is removed from them
they have neither speech nor motion, and are not to be revived
again until she adds another stroke or two or writes another
sentence underneath. Were they shadowy or vague that would
be less apparent, but they are held within the circle of steady
light in which the author bathes her world, and in their case
the light seems to shine at them, but not through them.
(MANSFIELD, 1930, p. 109)

Sob o controle total da autora, as personagens de Woolf


são como marionetes; a luz que deveria brilhar através delas,
exaltando suas qualidades humanas, tampouco as ilumina quando
paira sobre elas. Sua intimidade fica à sombra, e elas não passam
de alegorias na narrativa.
Em suas personagens principais, geralmente femininas,
Mansfield explora traços mais humanos do que havia encontrado
na novela de Woolf. Os contos que analisamos voltam-se
principalmente para o aprofundamento da alma feminina: os
sentimentos e reações de uma personagem mulher que centraliza
o interesse da narrativa e passa por experiências modificadoras.
Os incidentes diários, que aparentemente não fornecem nenhum
elemento dramático, definem uma trajetória muito próxima
daquela de pessoas reais.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 121


O contexto sociocultural em que se movem suas
personagens é aquele em que a própria Mansfield viveu e
escreveu, mas sobre o qual impõe a sua visão de mundo. A
anotação datada de 1921 no seu diário confirma o seu propósito:

A realidade não pode se tornar o sonho, o ideal; é tarefa do


artista moer e rachar, tentar impor sua visão da vida sobre o
mundo real. A arte é uma tentativa de criar o seu próprio mundo
neste mundo. O que oferece temas ao artista é a diferença em
relação àquilo que aceitamos como realidade. Nós escolhemos
— trazemos para a luz — colocamos numa posição mais alta.
(1996, p. 241)

Sua literatura é, portanto, um recorte da realidade com o


fim de conduzir o leitor para a discussão de questões universais.
Para compreender as profundas mudanças em seu íntimo as
protagonistas prestam redobrada atenção às pequenas coisas que
ocorrem ao seu redor, e apreendem seu valor simbólico. Assim
como a própria autora, que se muda da Nova Zelândia para a
Inglaterra ainda adolescente e sofre as consequências do ajuste
decorrente, — entre elas a solidão e o estranhamento — suas
protagonistas se encontram em um isolamento nem sempre
físico, mas psicológico, que produz uma visão singular e exclusiva
do mundo, definidora do seu desenvolvimento espiritual.
Para fins de análise, categorizei os contos em ciclo da
infância e ciclo da adolescência, ou emcontos sobre a família
Burnell e Sheridan, como já dito. No ciclo da infância começo
minha análise pelo conto Prelude. Inicialmente, são três meninas
na família, mais uma gravidez apenas sugerida pelo narrador:
Linda Burnell não pode carregar as crianças ao colo e permanece
languidamente na cama, enquanto a mãe e a irmã se encarregam
da organização da casa e dos cuidados com as meninas. O período
de gestação é incômodo para Linda, mas para Stanley, seu marido,
representa a esperança do sonhado filho homem, que ele imagina

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 122


tomando seu lugar à mesa ao lado das filhas: “É ali que meu
menino deveria sentar” (2005, p. 123). O menino não aparece em
The doll’s house, mas o vemos em At the bay, conto intermediário.
Outras preocupações apenas esboçadas em Prelude
ressurgem em The doll’s house. A questão das classes sociais
sugerida pelos embates entre a grosseira tia Beryl e a empregada
da família, Alice (petulante e desrespeitosa), é o “prelúdio” à ação
cruel da tia em The doll’s house, quando expulsa as meninas
Kelvey, convidadas secretamente por Kezia para ver a casinha. A
falta de polidez da alegre Mrs. Samuel Josephs em Prelude é um
prenúncio do episódio que envolve Laura e os trabalhadores em
The garden party. Assim, a temática das relações entre classes é
retomada e retrabalhada, com diferentes nuances e significados.
O ciclo que convencionei denominar “ciclo da
adolescência” leva os temas do primeiro — percepções do próprio
eu, visão de mundo, relações familiares e diferenças entre classes
sociais — a um nível mais elevado de amadurecimento das
personagens. Espaço e ambiente se repetem: uma família de
classe média alta, em convivência próxima e distante com
membros das classes trabalhadoras. Laura, assim como Kezia,
uma artista incipiente, é a única da família pronta para uma
experiência que irá transformar a relação entre ela e as classes
mais baixas; os outros membros seguem reproduzindo os padrões
aceitos, sem qualquer indicação de mudança de atitude. A
atmosfera que resulta das relações entre elementos humanos
dentro e fora do núcleo familiar — uma família de três filhas e
um rapaz — poderia representar uma recriação da família Burnell,
pai e mãe, três filhas e um bebê provavelmente do sexo masculino.
Segundo Mansfield, as características que tornam esses
contos tão próximos entre si, além das que apontamos, é a sua
“qualidade emocional”, que a autora imprime a personagens e
temas. Acrescento que a atmosfera nostálgica dos contos reflete

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 123


os sentimentos da autora, assim como as protagonistas são ecos
de sua personalidade:

What do we mean when we speak of the atmosphere of a novel?


(…) At one time “emotional quality” seemed to cover it, but is
that adequate? May not a book have that and yet lack this
mysterious covering? Is it the impress of the author’s
personality upon his work — the impress of the writer’s passion
— more than that? Dear Heaven! There are moments when we
are inclined to take our poor puzzled mind upon our knee and
tell it: “It is something that happens to a book after it is written.
(...) For whatever else atmosphere may include, it is the element
in which a book lives in its own right. (1930, p. 289)

Como um elemento que faz com que a narrativa “adquira


vida própria”, a atmosfera familiar é trazida à imaginação do leitor
por meio de sentidos, como o cheiro de lavanda da avó, o calor da
cozinha, o grande jardim da casa e as brincadeiras das crianças.
Outra característica bastante marcante das personagens
femininas de Mansfield é a capacidade de incorporar máscaras
que possibilitem o seu convívio na comunidade e em família.
Middleton Murry fascinou-se pelas máscaras que Mansfield usava
socialmente, divertindo-se com as suas incessantes mutações.
Katherine se refere ao seu uso pelos escritores ao comentar um
poema de Emily Brontë em uma de suas cartas: “Uma das
principais razões para a insatisfação das pessoas com a poesia
moderna é que não se pode jamais ter certeza de que os poemas
têm algo a ver com a pessoa que os escreve. É tão cansativo, não
é? Nunca abandonar o baile de máscaras, nunca, nunca.”
(MANSFIELD, 1996, p. 133). Da mesma forma que a autora no
convívio social, suas personagens apropriam-se de máscaras que
de certa forma facilitam a sua adaptação ao mundo. Apesar de
sensíveis e profundamente incomodadas pela frieza emocional
dos outros personagens, as protagonistas devem, de algum modo,

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 124


procurar o seu espaço na comunidade à qual pertencem, da
mesma forma que Mansfield teve de se adaptar à vida europeia.
É possível dizer que, à semelhança da autora, suas personagens
interagem subjetivamente com o meio material e simbólico,
assumindo a identidade do objeto contemplado.
Em The doll’s house, por exemplo, vemos a menina Kezia
aproximar-se tanto da lampadazinha que, ao final do conto, a
simbologia do objeto — a luz da renovação — liga-se à própria
menina, que contraria a mãe ao se relacionar com pessoas de
classes sociais inferiores. A alegria de Kezia decorre de seu
encanto com a delicadeza de detalhes da casinha e não do desejo
de fazer sucesso na escola. Semelhante à própria Mansfield, que
percebe a essência do objeto e liga-se espiritualmente a ele, suas
personagens, como Kezia, têm a percepção de conceitos abstratos
em pequenos detalhes do cenário.
A análise das protagonistas de Prelude, The doll’s house,
The garden party e Her first ball a partir da possibilidade da
construção de uma história de iniciação da personagem feminina,
pautada nas afirmações de Mansfield sobre a prosa de ficção, é
possível graças às várias camadas interpretativas que os textos
sugerem. Esta análise abordou a situação da mulher na sociedade
neozelandesa, as diferenças sociais e, indiretamente, a renovação
daquele meio a partir do modo de ver e de pensar o mundo de
algumas personagens.

Referências

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ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 128


A GRANDE FOME, O TIGRE CELTA E O TRAUMA CULTURAL
EM STAR OF THE SEA, DE JOSEPH O’CONNOR

Autora: Camila Franco Batista (USP)


Orientadora: Laura Patricia Zuntini de Izarra (USP)

RESUMO: The Star of the Sea é um navio-caixão que transporta


irlandeses fugindo da Grande Fome do século XIX na Irlanda em direção
aos Estados Unidos. Durante o trajeto, muitos dos passageiros não
resistem a doenças e à fome e são atirados ao mar. Suas histórias são
registradas em forma de cartas, entrevistas e narrativas em primeira e
terceira pessoa no romance histórico Star of the Sea (2002), do escritor
irlandês Joseph O’Connor (1963-). A narrativa polifônica do romance
demonstra o impacto traumático da Grande Fome no inconsciente
coletivo irlandês, trauma este que persiste apesar do sucesso econômico
trazido pelo período do Tigre Celta (1994-2008). Com base no conceito
de “sociologia da negação” elaborado por Stanley Cohen (2001), esta
apresentação visa analisar como Star of the Sea revela a resistência da
arte irlandesa contemporânea em esquecer traumas coletivos.
PALAVRAS-CHAVE: Grande Fome Irlandesa. Tigre Celta. Trauma
cultural. Negação. Joseph O’Connor.

No século XIX, a Irlanda viveu um dos piores períodos de


sua história. Entre os anos 1845 e 1852, uma doença chamada
“ferrugem da batata” se espalhou pelas plantações irlandesas,
tornando a então principal fonte de alimento imprópria para o
consumo. Consequentemente, pequenos agricultores perderam
sua renda e não conseguiam pagar o aluguel aos donos das terras.
A fome fez com que milhares de irlandeses emigrassem ou
morressem: estima-se que 1 milhão de pessoas morreu e outro
milhão emigrou para países como os Estados Unidos, Canadá,
Argentina, Austrália, Nova Zelândia e Inglaterra. A tragédia
também significou um golpe na língua gaélica: grande parte da
população cujo idioma era irlandês morreu durante a Fome.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 129


Em 1997, um monumento em memória das vítimas do
desastre do século XIX foi inaugurado em Dublin. Estátuas de
pessoas raquíticas e vestidas de trapos estão dispostas em direção
ao mar, como se estivessem fugindo da fome. As estátuas
relembram os emigrantes famintos do século XIX que gastavam
suas últimas moedas em troca de viagens para outros países onde
talvez tivessem melhor sorte. O meio de transporte acessível à
maioria eram navios em péssimas condições de manutenção e
saneamento. Os chamados “navios-caixão” jogavam ao mar os
corpos dos que morriam de fome ou doença durante a viagem.
No entanto, o memorial da Grande Fome inaugurado nos
anos 90 em Dublin possui uma peculiaridade: em volta das
estátuas de pessoas famintas estão placas com nomes de ilustres
irlandeses contemporâneos, donos de fortunas e de grandes
empresas. Todos os que pagassem 1000 libras ou mais adquiriam
o direito de ter seu nome em uma placa do memorial, prestando
“homenagem à Grande Fome ao ter o nome de sua empresa
fundido em bronze [...] nas Docas da cidade de Dublin, um lugar
que muitos deixaram durante a era da fome” (SMURFIT apud
O’TOOLE, 2013). Para o crítico irlandês Fintan O’Toole, a venda
de placas em um memorial é a marca de uma sociedade que
vende até mesmo a memória de uma tragédia. Em suas palavras,

if people don’t know what is wrong with using images of human


disaster as billboards for the exaltation of personal and
corporate egos, nothing anyone can say will impart that
knowledge. All we can do is take note of where we are. We
exist now in a society where everything, even the sacred memory
of the dead, is for sale. Where there is nothing, even the
horrible extinction of a million destitute people, that cannot
be claimed by the powers that be. Where the power of art to
evoke and bring to mind the sufferings of the nameless millions
is ultimately at the service of those who are deemed, by virtue
of their money and their success, to be important. Where the

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 130


wretched of the Earth are not entitled even to their
wretchedness, but must surrender it in return for a few pounds
donated to charity (O’TOOLE 2013).

Segundo O’Toole, a Irlanda dos prósperos tempos do Tigre


Celta é um país que deseja decretar o fim da história e assumir o
fim do sofrimento. Em seu livro Ship of Fools (2009), uma análise
da queda do Tigre Celta após a crise econômica de 2008, o crítico
e comentarista político percebe na sociedade irlandesa o forte
desejo de esquecer os séculos de tragédia e, a partir de então,
almejar o desenvolvimento e a modernidade do futuro. Para o
autor,

the Irish boom coincided with not just one ‘end of history’ but
four. There was the general Western illusion that, after the
fall of the Berlin Wall, history was over and the American model
of free-market democracy would be established as the universal
norm. There was the complementary illusion that the historical
cycles of capitalism had been ended by the sheer brilliance of
the masters of the universe […]. And there was a specifically
Irish ‘end of history’. Two of the great continuities of Ireland
since the eighteenth century - mass emigration and political
violence – seemed, by the late 1990s, to be definitely over.
Together, these forces fed a feeling that the past had little
relevance to the new era and that it should be, quite literally,
obliterated”. (O’TOOLE, 2009, p. 175)

O impulso em direção ao esquecimento do passado – ou o


esquecimento seletivo – demonstra o que Stanley Cohen
caracteriza como “estado de negação”. Em seu livro States of
Denial: Knowing about Atrocities and Suffering, o sociólogo sul-
africano define a “sociologia da negação” como uma “reação
comum – talvez universal ou até mesmo ‘natural’ – de bloquear,
desligar ou reprimir” a memória de eventos traumáticos (COHEN,

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 131


2001, p. X, tradução minha). Ao negar que um fato histórico
aconteceu de fato ou afirmar que “não foi bem assim”, indivíduos
e sociedades inteiras agem como se não soubessem o que
aconteceu ou fingem que o evento não tem implicações sérias.
Cohen escreve que pessoas em estado de negação parecem
“apáticas, passivas ou indiferentes”, não reagindo em relação ao
trauma coletivo. Em seu estudo, Cohen mostra que estados de
negação podem ser verificados em vítimas, perpetradores e
testemunhas. Assim sendo, não significa que vítimas de traumas
não consigam lembrar do que aconteceu com elas. A negação dos
fatos pode servir como uma válvula de escape para não refletir
sobre traumas e não trabalhar sobre eles.
O Memorial da Fome em Dublin é um exemplo de negação
das implicações contemporâneas da Grande Fome do século XIX.
Ao inserir placas com nomes de cidadãos de sucesso, os
responsáveis pelo memorial deram um recado à sociedade sobre
como a Grande Fome deve ser lembrada: olhando para o passado
para celebrar o presente, pois durante o Tigre Celta a Irlanda não
mais sofria – era uma potência mundial.
Contudo, as artes constantemente oferecem resistência ao
esquecimento. Luke Gibbons (2002) demonstra como no Tigre
Celta a arte irlandesa resiste à ideia de prosperidade e retorna
constantemente ao passado para escavá-lo. No período entre 1994
e 2008, conhecido como o Tigre Celta, foram publicados diversos
romances e filmes históricos, contrastando com a representação
dos tempos irlandeses contemporâneos e obras que desejavam
não representar temas considerados tipicamente irlandeses, tais
como a família, a religião e a violência na Irlanda do Norte.
Durante o Tigre Celta, porém, vê-se filmes como Korea (1995) e
Michael Collins (1996), que tratam de temas históricos como a
emigração, o Levante de Páscoa de 1916 e a Guerra da
Independência (1919-1921). Na literatura, romances históricos
como A Star Called Henry (1999) de Roddy Doyle, A Long Long Way

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 132


(2005) de Sebastian Barry e o objeto desta apresentação, Star of
the Sea (2002) de Joseph O’Connor, demonstram a resistência da
arte irlandesa em esquecer ou ignorar a história.
Publicado em 2002, Star of the Sea é a 11ª publicação do
professor, escritor, crítico e dramaturgo dublinense Joseph
O’Connor (nascido em 1963). O romance histórico se passa no
ano de 1847, durante a Grande Fome, e o cenário principal é o
navio-caixão Star of the Sea, que transporta irlandeses e
passageiros de outras nacionalidades para Nova Iorque. O nome
do navio é irônico, pois a maior parte dos viajantes é composta
por irlandeses famintos e doentes que fogem da catástrofe
humanitária na Irlanda. Porém, o navio possui também uma
pequena primeira classe, formada por um senhor irlandês
chamado David Merridith, Lorde Kingscourt, (dono de terras em
Galway); sua família e a babá de seus filhos, Mary Duane; um
marajá e um jornalista americano, chamado Grantley Dixon. O
navio é comandado pelo inglês Josias Lockwood.
O livro se assemelha a um romance de viagens cujo
narrador principal, o jornalista Grantley Dixon, reúne diversos
registros relacionados à viagem e à Grande Fome na Irlanda. São
cartas, canções populares, gravuras e registros do capitão do navio,
além de recortes de jornais e narrativas em primeira pessoa.
Logo no primeiro capítulo, intitulado “The Monster”, o leitor é
apresentado ao tema que o narrador deseja tornar principal: um
assassino está a bordo do Star of the Sea e ele vai cometer mais
um crime. Dixon faz com que o leitor imagine que o monstro é o
irlandês Pius Mulvey, um irlandês baixinho e grotesco, autor de
muitas crueldades anteriores.
Aprofundando-nos na análise do romance, porém,
percebemos temas e conflitos mais complexos. Em todos os
capítulos vemos ilustrações feitas na época da Grande Fome,
desenhos que forçam o leitor a refletir sobre a catástrofe. Star of
the Sea nos relembra o que é frequentemente ignorado ou até

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 133


mesmo atenuado em narrativas revisionistas: a Irlanda foi um
país colonizado pela Inglaterra, que durante séculos implantou
medidas violentas contra professantes de religiões que não fossem
o anglicanismo e também a falantes da língua gaélica. Falar
irlandês implicava prisão e morte; se revoltar contra a ordem
vigente era assinar a própria sentença. Ao povo restava a música
e as baladas que registravam o sofrimento de maneira
aparentemente simples. É o que o narrador diz de Pius Mulvey:

Often it felt to Mulvey as if the songs were a secret language:


a means of saying things that could otherwise not be said in a
frightened and occupied country. At least they seamed a way of
convertly acknowleding that what was unsayable was important:
that it might be said more explicitly at another time.
(O’CONNOR, 2003[2002], p. 94)

A memória era mantida era mantida pela arte, e os


músicos eram como “analistas, cronicistas, biógrafos”
(O’CONNOR, 2003, p. 98) que resistiam ao esquecimento. Em
diversos períodos históricos, a arte tem papel crucial ao dar voz
aos que não podem falar ou àqueles em que a história não permite
se expressar. Joseph O’Connor está ciente de que poucos registros
da Grande Fome foram realizados na época; raramente o
sofrimento dos pobres comoveu alguém ao ponto deste registrar a
catástrofe humanitária. Para o crítico James Kincaid (2003), o
romance Star of the Sea,

is also an agonizing inquiry into the nature of abandonment


and the difficulty of finding anyone who will truly care about
the fate of others. How large does suffering have to loom before
we take notice? O’Connor suggests that we can tolerate
mountains of misery, sipping our coffee and reading our
newspapers as corpses pile up beneath the headlines.
(KINCAID 2003)

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 134


Essa ignorância seletiva é representada no romance pela
primeira classe, que, apesar de conhecer os problemas na Irlanda,
trata os pobres agricultores irlandeses e os passageiros da terceira
classe como gente “folgada” e “aproveitadora”, a quem não se pode
ser benevolente para não incentivar “ociosidade” e “dependência”
(O’CONNOR 2003, p. 15). Contudo, apesar da ignorância, todos
são forçados a encarar a tragédia: um cheiro terrível emana do
navio e não desaparece mesmo após diversas limpezas. O cheiro
não vem da terceira classe, a qual não tem acesso a higiene
diária; era “como se o próprio navio estivesse começando a
apodrecer”, diz o narrador (p. 153, tradução minha).
O cheiro que emana do navio Star of the Sea pode
representar a decadência humana dos pobres forçados a emigrar
e daqueles que foram cruéis com eles ou se recusaram a ajudá-
los. O jornalista Grantley Dixon assume a postura de denunciante
das atrocidades, forçando David Merridith a reconhecer sua
contribuição para a catástrofe. Porém, o jornalista é também
desmascarado com a revelação de que seu avô possuía escravos
em sua plantação nos Estados Unidos. Para a crítica Caroline
Moore (2003), Dixon “representa o impetuoso Mundo Novo, aqueles
americanos barulhentos e frequentemente hipócritas que
derrubam o Velho Mundo e seus aristocratas, mas que tem a
própria culpa para lidar na forma de escravidão e guerras
indígenas” (MOORE 2003, tradução minha).
No fim do capítulo XV, encontra-se uma citação do escritor
vitoriano Anthony Trollope (1815-1882), que escreveu o romance
Castle Richmond (1860), ambientado durante a Grande Fome.
Trollope visitou a Irlanda em diversas oportunidades durante a
Fome e desejou escrever sobre o que vira em suas visitas. No
entanto, Throllope descobriu que a audiência inglesa não queria
ler sobre a tragédia humanitária na Irlanda, e então criou uma
história de amor cujo cenário é a Irlanda da Grande Fome. Em
outra publicação, intitulada North America (1865), Trollope dá sua

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 135


opinião sobre as causas e consequências da Grande Fome. A
citação encontrada em Star of the Sea é um trecho da opinião de
Trollope em North America, onde escreve que “a fome da Irlanda
foi a punição por sua imprudência e ociosidade, mas deu a ela a
prosperidade e o progresso” (TROLLOPE apud O’CONNOR 2003, p.
151).
Segundo Trollope, a Fome foi causada pelo desinteresse
da classe agrária de se educar e de trabalhar, repassando às
classes baixas a responsabilidade de fazer suas terras darem
lucro. No entanto, a Fome é finalmente uma lição de
desenvolvimento: a classe ociosa irlandesa está em decadência
devido à crise e às mortes, e agora é o momento de mudar a
mentalidade (LANDOW. Web. 07/06/2015).
O pensamento de Trollope parece ecoar no Memorial da
Grande Fome em Dublin. Os nomes dos empresários nas placas
de bronze representam a “prosperidade e o progresso” previstos
pelo escritor inglês há dois séculos. O memorial não ignora
completamente a tragédia da Fome, mas deseja mudar o foco da
reflexão: não é o passado que precisa ser lembrado; os esforços
têm de ser direcionados para o futuro.
Terry Eagleton percebe a “reticência” em relação à Grande
Fome na Irlanda contemporânea à qual ele atribui uma razão
política. Para o crítico literário,

brooding on the one million dead and the one million who fled
the famine is hardly much in vogue in an Ireland keen to play
down its colonial past and flaunt its new-found modernity. With
Ireland and the UK now cheek by jowl in the EU, it is not exactly
politic to recall the bungled British relief effort, which sped a
good many of the dead to their graves. Or to recall that quite a
few eminent Britons, including a man in charge of the relief
project, regarded the famine as God’s way of punishing the
feckless Micks for their congenital indolence. Moving in his
usual mysterious way, the Almighty had chosen potato blight

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 136


as a means of converting Connemara peasants into Boston
politicians. (EAGLETON 2003)

Além disso, Eagleton salienta que relembrar a Fome hoje


na Irlanda é visto como alimento ao republicanismo militante
dos Troubles na Irlanda do Norte. Porém, há ainda outro motivo:
alguns irlandeses lucram com a memória seletiva da Fome.
A tentativa de selecionar o que pode ou não ser lembrado
é o que Stanley Cohen (2001) chama de “estado de negação”. A
Irlanda contemporânea ao Tigre Celta está ciente sobre a Grande
Fome e suas consequências, mas se recusa a refletir sobre o
trauma sofrido. Cohen demonstra que a negação ocorre quando
uma situação indesejável não é reconhecida, é ignorada ou
considerada normal. O discurso oficial da negação pode afirmar
que o trauma “não aconteceu”, “não foi violento” ou “não foi bem
assim” (COHEN, 2001, p. 51). A negação vai do micro ao macro: ao
se tornar popular, é difícil negar que o evento aconteceu, mas é
possível relativizar os efeitos. Dessa forma, Cohen descreve como
a negação reflete “estados pessoais e culturais no qual o
sofrimento não é reconhecido” (p. 52, tradução minha). As
implicações atuais são também ignoradas:

There is no exact line between denying the past and denying


the present. At what point does public knowledge of atrocities
and suffering become a matter of forgetting, memory, history,
and commemoration? [...] The media draw the clearest line:
the events disappear from “current news”. Wars end with an
official peace; famines are declared to be over. The distinction
may be banal, but denial talk about not noticing the present is
different from talk about not remembering the past. (COHEN
2001, p. 117)

Dessa forma, para Stanley Cohen os conceitos psicológicos


individuais podem ser transferidos para a cultura: uma sociedade

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 137


inteira pode esquecer, reprimir ou desassociar ao encobrir ou
reescrever a história. Isso tem implicações em nível pessoal: para
Cohen, um indivíduo pode considerar mais fácil “não saber sobre
isso” quando todos à sua volta afirmam não saber (COHEN p. 132-
33). Oficialmente, a negação ocorre na reinterpretação e na
transformação dos eventos em outra coisa. No caso irlandês, a
tragédia da Grande Fome, apesar de grave, é vista como um dos
fatores que tornou possível a existência de irlandeses de sucesso
e da Irlanda da era do Tigre Celta.
O narrador de Star of the Sea enfatiza que o silêncio passado
e contemporâneo tem motivação: os que morreram eram pobres,
analfabetos e descartáveis. A Irlanda de hoje não quer lembrar o
que já foi porque isso envolve pobreza e sofrimento que,
teoricamente e oficialmente, quase não existem mais. O narrador
questiona:

And yet could there be silence? What did silence mean? Could
you allow yourself to say nothing at all to such things? To remain
silent, in fact, was to say something powerful: that it never
happened: that these people did not matter. They were not
rich. They were not cultivated. They spoke no lines of elegant
dialogue; many, in fact, did not speak at all. They died very
quietly. They died in the dark. And the materials of fiction -
bequests of fortunes, grand tours in Italy, balls at the palace -
these people would not even know what those were. They had
paid their betters’ accounts with the sweat of their servitude
but that was the point where their purpose had ended. Their
lives, their courtships, their families, their struggles; even their
deaths, their terrible deaths - none of it mattered in even the
tiniest way. They deserved no place in printed pages, in finely
wrought novels intended for the civilized. They were simply not
worth saying anything about. (O’CONNOR, 2003, p. 130-1)

Ao fim da narrativa, Grantley Dixon reconhece que seu


romance de viagens não é sobre o “monstro” Pius Mulvey; este foi

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 138


apenas um pretexto para unir todas as narrativas sobre a Grande
Fome para um leitor que não queria ler sobre tragédias
humanitárias, mas é ávido por histórias de aventuras e mistérios.
Não há mistério sobre a Grande Fome: cerca de dois milhões de
pessoas morreram ou emigraram e estas continuam sem nome.
Star of the Sea é uma entre tantas demonstrações da
resistência da arte em esquecer a história. Se a Irlanda
contemporânea ao Tigre Celta quer silenciar sobre o trauma
passado para somente expressar narcisisticamente o seu sucesso,
a literatura demonstra o caminho oposto. Se somente os nomes
de pessoas ricas e famosas são dispostos em placas em um
memorial da Grande Fome, a arte dá nome, ao menos
ficcionalmente, àqueles que não tiveram direitos. Termino com
uma citação do epílogo do romance:

1847. Marx’s Poverty of Philosophy. Verdi’s Macbeth. Boole’s


Calculus of Deductive Reasoning. Emily Brontë’s Wuthering
Heights. Charlote Brontë’s Jane Eyre. Ralph Emerson’s Poems.
Engels’ Principles of Communism. Quarter of a million starved in
that year’s nowhere-land: nameless in the latitudes of hunger.
(O’CONNOR, 2003, p. 386)

Referências

BATISTA, C. F. Entrelaçando temporalidades: passado e presente


em A Star Called Henry, de Roddy Doyle. Dissertação de mestrado.
Universidade de São Paulo, 2015.

COHEN, S. States of Denial: Knowing about Atrocities and Suffering.


Malden: Blackwell, 2001.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 139


EAGLETON, T. “Another Country”. The Guardian. 25 janeiro 2003.
Disponível em: <http://www.theguardian.com/books/2003/jan/
25/featuresreviews.guardianreview12>. Acesso em 31/05/2015.

LANDOW, G. P. “Trollope’s analysis of the Irish Famine of 1846-


47". Web. Disponível em: <http://www.victorianweb.org/authors/
trollope/famine2.html>. Acesso em 07/06/2015.

KINCAID, J. “Keep Your Tired, Your Poor, Your Huddled Masses”.


The New York Times. 01 junho 2003. Disponível em: <http://
www.nytimes.com/2003/06/01/books/review/
01KINCAIT.html>. Acesso em 31 de maio de 2015.

MOORE, C. “Death below Decks”. The Telegraph. 05 junho 2003.


Disponível em: <http://www.telegraph.co.uk/culture/4729553/
Death-below-decks.html>. Acesso em 31/05/2015.

O’CONNOR, J. Star of the Sea. London: Vintage, 2003.

O’TOOLE, F. “Oct 16th, 1998: Turning the Famine into a corporate


celebration”. The Irish Times. 20 novembro 2013. Disponível em: <
http://www.irishtimes.com/opinion/oct-16th-1998-turning-the-
famine-into-a-corporate-celebration-1.1600212>. Acesso em 31/
05/2015.

__________. Ship of Fools: How Stupidity and Corruption Sank the


Celtic Tiger. London: Faber and Faber, 2009.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 140


A PALAVRA E A IMAGEM: A EXPANSÃO DO SENTIDO NO
LIVRO ONDE VIVEM OS MONSTROS

Autora: Caroline A. S. Fernandes (UFPR)


Orientadora: Célia Arns de Miranda (UFPR)

RESUMO: Esta pesquisa objetiva analisar o processo de comunicação


que se estabelece no livro infantil de Maurice Sendak, Onde vivem os
monstros. Pretende-se identificar como as ilustrações, através da
expansão que realizam, interferem sobre a diagramação e na estrutura
do livro e seu layout. Percebe-se também que nesse livro a construção
visual dos personagens permite leituras diversas quanto às referências
ao imaginário, ao mitológico e ao universo fantástico. Para enriquecer
o estudo dos personagens é necessário pensar a caracterização dos
mesmos e o título da obra, principalmente, em relação à tradução para
o português e os significados gerados a partir dela. É possível identificar
que no livro as imagens quando unidas ao texto, criam sentido não
apenas individualmente, mas como uma construção que expande o
sentido inicial da obra.
Palavras-chave: imagem. Literatura infantil. Monstros. Infância.

A literatura infantil é um universo rico para a análise da


interação que ocorre entre texto e imagem. Para este trabalho
utilizaremos o termo texto para referenciar as mensagens
linguísticas, que valem-se das palavras para comunicar dentro
do livro, e imagem para as mensagens visuais ou ilustrações,
que não utilizam palavras para sua representação. Tendo em vista
a análise da interação entre texto e imagem, concentraremos os
estudos sobre o livro infantil Onde vivem os monstros, de Maurice
Sendak, lançado originalmente em 1963, cuja tradução, realizada
por Heloisa Jahn, foi publicada no Brasil em 2009. Essa obra de
Sendak não é apenas um livro infantil mas é também um tipo
específico de livro infantil, o que chamamos de livro ilustrado.
Nesta proposta as imagens não atuam apenas como explicações/

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 141


ilustrações do texto, mas agem como mensagem individual e
mesmo independente em diversos momentos.
O livro Onde vivem os monstros propõe esta interação, onde
uma linguagem complementa a outra, surgindo assim novos
sentidos para a obra. O título Onde vivem os monstros referencia-
se à tradução de Heloisa Jahn, publicada no Brasil em 2009.
Falaremos posteriormente de questões relativas à tradução da
obra.
Quanto à aventura abordada no livro, Max, o menino
protagonista da obra de Sendak, está fazendo diversas travessuras
e acaba sendo repreendido pela mãe. Colocado de castigo, Max
começa a imaginar uma floresta dentro do seu quarto. Além da
floresta surge um oceano, por onde Max navega, até chegar à
uma ilha, onde seres grandiosos e, inicialmente assustadores,
vivem. Max torna-se rei deles, fazendo toda a bagunça que desejava
acompanhado dos animais enormes. Depois de brincar por um
longo tempo, Max sente falta de casa e da mãe e decide voltar,
apesar dos protestos dos monstros.
O livro foi traduzido para mais de 20 países. Maurice
Sendak trabalha como escritor e ilustrador nesta obra. Foi uma
publicação inovadora ao abordar o inconsciente infantil, como
afirma Sophie Van der Linden (2011). Inicialmente o livro sofreu
críticas relacionada a sua abordagem, como o próprio Sendak
declara em uma entrevista “Só críticas negativas… Aí, dois anos
depois, descobriram que nas bibliotecas as crianças estavam
loucas por ele!” (SENDAK apud BRESSANE).
Após situar a obra podemos começar a discorrer a respeito
dos elementos que a transformaram em uma referência como
livro ilustrado, focando não apenas no diálogo presente entre
palavras e imagens, mas como esta interação transforma a leitura
e o sentido do livro.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 142


Diálogo entre texto e imagem
Para discutir sobre o diálogo que ocorre no livro entre texto
e imagem é necessário reforçar que o livro aqui abordado se trata
de um livro ilustrado, que difere do livro com ilustrações. Como
afirma Linden (2011) livros ilustrados são “Obras em que a
imagem é espacialmente preponderante em relação ao texto [...]
A narrativa se faz de maneira articulada entre textos e imagens”
(LINDEN, 2011, p. 24). Ou, ainda de acordo com Linden, pode-se
definir o livro ilustrado da seguinte forma.

A ideia é que o livro ilustrado transcende a questão da


copresença por uma necessária interação entre texto e imagens,
que o sentido não é veiculado pela imagem e/ou pelo texto e,
sim, emerge a partir da mútua interação entre ambos. (LINDEN,
2011, p. 86)

Já no livro com ilustrações verificarmos as imagens como


um eco do texto, que apenas transportam a mesma mensagem
expressa pelas palavras para o signo da imagem. Essa aplicação
ainda ocorre em muitos livros. Em um livro ilustrado não existe
uma regra hierárquica onde prevalece o texto, ambos colaboram
para conduzir a história, cada qual comunicando algo,
complementando um ao outro ou mesmo gerando novos
significados individualmente. No caso do livro ilustrado,
especialmente na obra analisada, texto e imagem são livres de
competições, texto e imagem se intercomunicam, um contribui
para o outro, fugindo de redundâncias.
Existem muitas formas de interação entre texto e imagem.
Martine Joly (2003), ao tratar das diversas possibilidades,
menciona que um pode complementar o outro, numa ação de
revezamento ou mesmo interação. Como afirma Joly “A função
de revezamento, tal como definida por Barthes, é uma forma de
complementaridade entre a imagem e as palavras, a que consiste

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 143


em dizer o que a imagem dificilmente pode mostrar.” (JOLY, 2003,
p. 119, grifo da autora). Na obra de Sendak podemos verificar esta
complementariedade, onde texto e imagem se alternam,
expressando ideias individuais para criar um sentido mais amplo.
Antes de verificar os elementos que dialogam na obra de
Sendak é importante ressaltar que o desenvolvimento do livro
ilustrado avança com a inserção de texto e imagem em uma
mesma página, possibilitando pensar as relações entre as duas
linguagens, tal como enfatiza Linden (2011): “O desenvolvimento
dos procedimentos de impressão possibilita que obras reunindo
caracteres tipográficos e imagens na mesma página se
multipliquem.” (LINDEN, 2011, p. 13). É necessário pensar não
apenas o layout da página mas também a concepção estrutural do
livro e seu aspecto físico.

Ler o livro ilustrado é também apreciar o uso de um formato,


de enquadramentos, da relação entre capa e guardas com seu
conteúdo; é também associar representações, optar por uma
ordem de leitura no espaço da página, afinar a poesia do texto
com a poesia da imagem, apreciar os silêncios de uma em
relação à outra. (LINDEN, 2011, p.9)

Como afirma Linden (2011), o design do livro ilustrado é


muito importante para que seu objetivo seja realizado com
sucesso. Questões de diagramação são essenciais para que texto
e imagem tenham espaços adequados na obra. Da mesma forma
acontece no livro Onde vivem os monstros, onde a leitura é
direcionada para as imagens e esse suporte é fundamental para
a leitura.

Desde o primeiro livro ilustrado, o trabalho com o texto interage


com as imagens e o conjunto dos dispositivos formais dentro
de um formato quadrado, ao contrário da relação vigente na
ilustração, as mensagens visuais são primordiais, e as

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 144


mensagens linguísticas se adaptam às representações plásticas
de estilo gráfico inusitado. Do ponto de vista do conteúdo, o
humor, as narrativas minimalistas e a sutileza dos temas
abordados são trabalhados em função do suporte e da
materialidade do livro. (LINDEN, 2011, p. 19)

No livro Onde vivem os monstros pode-se verificar a escolha


por um formato próximo do quadrado, mais especificamente 22,5
cm de altura por 25, 3 cm de largura. Estas são características
que fazem parte das escolhas direcionadas à leitura das imagens
e compreensão da obra. Sendak cria um movimento dentro do
livro que proporciona o mergulho no imaginário do menino Max.
Este movimento utiliza as áreas em branco, ilustrações, margens
e movimento de leitura tendo em vista este objetivo. Ou seja, o
suporte, layout e diagramação atuam para esta jornada. Pode-se
notar este movimento na relação entre texto e imagem dentro do
livro e como seus espaços se transformam no decorrer dele. Na
página 7 verificamos o texto no centro da página vazia e na página
8 uma ilustração pequena de Max, também quase centralizado
na página. Na sequência do livro, a partir do momento que Max
começa a imaginar a floresta crescendo, a área destinada à
ilustração aumenta, em um movimento de expansão. Nas páginas
17 e 18 já verificamos a ilustração invadindo a página esquerda,
anteriormente destinada ao texto. Este processo continua, até o
texto ver-se comprimido e precisar “fugir” para o rodapé das
páginas, como ocorre nas páginas 20 e 22. Este mergulho dentro
da imaginação de Max aumenta conforme as imagens
transbordam do livro, até alcançar a página 26, onde não há mais
palavras. Nesse momento, atingimos profundamente o
inconsciente de Max, onde ele é rei e selvagem. Dentro da
fantasia de Max ele é puramente instinto.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 145


A fantasia pode ser definida como a representante psíquica do
instinto e expressa a realidade de sua fonte, interna e subjetiva,
embora esteja ligada à realidade objetiva (OLIVEIRA, 2007, p.
83).

Percebe-se que os recursos utilizados em todo o livro, como


cores, espaços em branco, disposição do texto, agem efetivamente
para conduzir o leitor para dentro do inconsciente do menino. O
design atua também como linguagem e comunicador dentro da
obra.

[...] tanto a cor quanto a forma e o tratamento ilustrativo


contribuem para a mensagem geral de uma publicação, e devem
também ser vistos como conteúdo. Do mesmo modo, o
tratamento tipográfico [...] acrescenta mensagens ao layout,
para além do que está literalmente expresso pela escrita em si
(SAMARA, 2011, p. 32).

Palavras e imagens atuam dentro do livro delimitando o


espaço da realidade e fantasia, respectivamente. Também atuam
juntas para guiar essa transição, do real para o imaginário. Pode-
se verificar que na medida em que o livro conduz para dentro do
inconsciente do menino Max, as palavras vão perdendo espaço,
sendo subjugadas pelas ilustrações que expandem-se. O
crescimento das imagens atua como veículo que conduz ao mundo
fantástico ou inconsciente, da mesma forma que as palavras
representam conexão com a realidade dentro do livro. Este
movimento ocorre como uma viagem ao local onde vivem os
monstros e seu regresso. Por esse motivo verificamos que quando
Max retorna para o seu quarto que é uma referência do real, as
palavras também retornam plenamente sendo que na última
página, não há mais ilustração, apenas uma única frase na página
em branco. Esse movimento, de mergulho e imersão na fantasia,
é realizado graças à interação de texto e imagem no decorrer do

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 146


livro, valendo-se do espaço físico desse suporte para expressar
plenamente esse processo.

Aspectos da tradução
Um aspecto importante para a leitura dos personagens no
livro envolve a questão da tradução linguística que ocorre da obra
original, concebida em inglês, para o português (Brasil). A
compreensão do livro sofre reinterpretações devido às
transformações que a tradução oferece. Verifica-se esta mudança
já no título da obra, essencialmente com relação à palavra monstro,
utilizada no português (Brasil), e a sua expressão correspondente
wild thing, utilizada no original em inglês.
O título do livro em inglês é Where the Wild Things Are, e
pode ser traduzida livremente como onde as coisas selvagens estão
ou vivem. Em Portugal o título foi traduzido como O sítio das coisas
selvagens. A tradução para o português (do Brasil), realizada
através da editora Cosac Naif pela tradutora Heloisa Jahn, traz o
título Onde vivem os monstros. O conflito apresenta-se entre a
expressão wild thing e monstros. Porém, mesmo parecendo muito
distintas, elas possuem proximidade, mesmo no dicionário.
Apresentar todos os significados deixaria a análise extensa, mas
podemos atentar para alguns dos termos mais relevantes desta
relação. No dicionário Webster a palavra wild apresenta suas
definições uncontrolled, unruly e barbaric. A expressão wild thing
não possui uma correspondência exata no português, que pode
ser usada sem gerar contestação, o que reflete um problema
linguístico quanto a tradução. As aproximações possíveis para a
tradução comportam a palavra selvagem. Em português (Brasil) a
palavra selvagem apresenta definições como “[...] grosseiro, rude
e bruto” (WEBSTER). Já ao verificarmos os sentidos atribuídos à
palavra monstro, diretamente no português, temos os seguintes
conceitos.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 147


Ser de conformação extravagante, imaginado pela mitologia.
Animal ou coisa de grandeza desmedida. Pessoa cruel,
desumana, perversa. Portento, prodígio, assombro. Monstros
compostos: os resultantes da fusão de dois ou mais tipos.
Monstros das florestas: animais ferozes que nelas habitam;
feras (MICHAELIS).

Assim, podemos notar a existência da condição de


selvagem dentro do significado da palavra monstro na proximidade
existente entre crueldade e brutalidade. Sendo possível identificar
a relação entre as expressões wild thing e monstro torna-se viável
a tradução empregada. Relacionar as expressões wild thing e
monstro permite verificar um abrandamento na primeira delas,
oferecendo leveza ao tratamento dos personagens do livro.
É de interesse desta análise verificar os demais
significados que a escolha tradutória implica para o livro. A
primeira vez que a expressão monstro, conforme a tradução já
citada, é usada no livro, faz referência ao comportamento rebelde
de Max diante da mãe (p. 9) e não aos seres da ilha. Sob esse
aspecto o comportamento de Max gera mais identificação com a
expressão “coisa selvagem” e suas relações com o mau
comportamento, do que diretamente com a expressão monstro,
utilizada na tradução. Evidencia-se o problema da aplicação do
termo monstro ao menino Max quando a palavra monstro é atribuída
à fala da mãe do menino. Segundo Tonia Leigh Wind (2011), para
Max o termo mais adequado seria selvagem:

Não que seja propriamente “errada” a escolha do uso da palavra


“monstro” para o título do livro, mas é algo que remete a uma
imagem mais medonha, mais feia, mais sinistra, e não capta o
elemento “selvagem” dos seres fora de controle na selva assim
como não atende ao fato de Max estar “wild” aprontando e estar
fora de controle (WIND, 2011, p.123).

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 148


Entretanto, vale aqui levantar outras reflexões sobre a
escolha da tradução. Quando Max ameaça devorar sua mãe, assim
como os monstros o ameaçam posteriormente, uma relação direta
ocorre entre eles, aproximando Max dos monstros, validando a
atribuição de monstro ao próprio garoto.
Referindo-se aos animais da ilha a expressão monstro
torna-se mais adequada, sem nenhum estranhamento, sendo,
na versão original, tanto Max como os seres da ilha evocados como
wild things. Neste sentido, a tradução apresenta-se adequada,
tanto na capa como na referência aos animais deste novo mundo.
Além dessa questão é relevante pensar as novas atribuições que
a palavra monstro pode receber na atualidade e nas novas leituras,
afastadas das ideias já citadas de Wind (2011), como “[...] mais
medonha, mais feia [...]” (WIND, 2011, p. 123). Para expandir a
compreensão do termo monstro, não apenas na tradução, mas nos
outros sentidos em que os personagens podem ser lidos como
monstros, é válido explorar qual o significado de monstro,
compreender as implicações desse termo no livro de Sendak,
assim como em outros universos. Conhecer melhor os monstros
possibilita conhecer melhor os personagens de Sendak e sua
construção na obra.

Sobre os monstros
O termo monstro, usado no título e no texto do livro, é o
centro da análise, não apenas com relação à tradução, mas
também quanto aos novos significados que o termo pode adquirir,
quando utilizado na linguagem verbal da obra assim como na
leitura realizada das imagens do livro. Verificar as
transformações que a expressão monstro, atribuída pela tradução,
oferece no livro não significa afirmar que o termo foi corretamente
empregado. A intenção é levantar e vislumbrar as leituras da
obra que podem ser adquiridas diante deste pressuposto.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 149


O emprego do termo monstro no título da obra traz, no
aspecto linguístico, um ganho quanto à sonoridade no português.
Mas, além desta questão a imagem presente na capa merece
uma interpretação quanto a sua relação com o título traduzido. A
capa não traz o personagem Max, afastando a referência do título
ao menino. Na capa visualizamos o título e um animal grande,
dormindo em uma margem enquanto um barco aproxima-se. Este
animal, caracterizado como wild thing, é chamado de monstro na
tradução, fazendo relação direta com o título Onde vivem os
monstros. Desta forma é possível interpretar a ilustração como
referência direta ao título, ao apresentar um lugar/espaço e quem
vive neste lugar, no caso o animal. Desta forma, a mensagem
identificada na imagem caracteriza o lugar onde os monstros vivem.
Este animal da capa merece também uma análise quanto
à sua concepção como imagem. Quando olhamos para os animais
presentes “dentro” da imaginação de Max, já que é para onde o
livro nos leva, podemos verificar elementos significativos na sua
composição. Retomando a questão de tradução, estes animais são
referenciados como wild things, que podemos chamar de “coisas
selvagens”. Buscando referências diretas para coisas selvagens
nos deparamos com animais da selva, não domesticados. Sob este
aspecto poderíamos esperar destes animais composições naturais,
como as que remetem à um leão ou rinoceronte, por exemplo.
Estes animais bem conhecidos são “coisas selvagens”. Também
é relevante refletirmos sobre o que significa um animal selvagem.
Segundo Anamaria Feijó (2005) “É interessante que se entenda
que a diferença entre um animal selvagem e um animal
domesticado é que o último foi um animal selvagem que passou
a ser tutelado pelo homem” (FEIJÓ, 2005, p.76). Diante dessa
reflexão qualquer animal não domesticado é um animal selvagem
e abrange todo tipo de animal, não limitando a um tipo de formas
extravagantes ou exótica, como os animais presentes no livro de
Sendak.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 150


Antes de qualquer descrição corporal deve-se
contextualizar os animais do livro. Eles existem dentro da floresta
imaginada por Max, ou seja, fazem parte do inconsciente do
menino. O inconsciente oferece liberdade para a criação de
qualquer tipo de animal, assim como carrega imagens simbólicas
presentes no imaginário da história da humanidade. Deste
imaginário histórico que todos carregam de alguma forma no
nosso inconsciente, como afirma Carl G. Jung (2008), fazem parte
os mitos e seres mitológicos diversos, “Como os instintos, os
esquemas de pensamentos coletivos da mente humana também
são inatos e herdados.” (JUNG, 2008, p. 104). Com este conceito
podemos partir para a análise visual dos animais do inconsciente
de Max.
Os animais da ilha têm grandes proporções, grandes olhos
amarelos, dentes pontudos, garras e chifres. Pode-se verificar que
alguns deles são formados da mistura de mais de um animal,
como pés humanos, cabeça de leão e pernas de dragão. Estas
características possuem forte relação com a constituição de
monstros da mitologia e mesmo com os conceitos atribuídos à
palavra monstro no dicionário. Quando consultamos a palavra
monstro, retomando citação a utilizada anteriormente, temos
referências a estes elementos.

Ser de conformação extravagante, imaginado pela mitologia.


Animal ou coisa de grandeza desmedida. Pessoa cruel,
desumana, perversa. Portento, prodígio, assombro. Monstros
compostos: os resultantes da fusão de dois ou mais tipos.
Monstros das florestas: animais ferozes que nelas habitam;
feras (MICHAELIS; ênfase acrescentada).

Os elementos destacados reforçam esta relação. O próprio


conceito de selvagem pode ser lido na descrição de monstro, no
trecho “[...] animais ferozes que nela habitam; feras.” (MICHAELIS).

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 151


A associação aos monstros compostos, resultado de fusão de mais
de um tipo, e a grandeza desmedida também estão presentes.

Os monstros, na linguagem da mitologia, eram seres de partes


ou proporções sobrenaturais, em via de regra encarados com
horror, como possuindo imensa força e ferocidade, que
empregavam para perseguir e prejudicar os homens. Alguns
deles, imaginava-se, combinavam os membros de diferentes
animais, como a Esfinge e a Quimera (BULFINCH, 2000 p. 150).

Outra palavra no trecho acima que se torna relevante para


conceber os seres criados pela imaginação de Max como monstros
é “[...] imaginado [...]” (MICHAELIS). Quando compreendemos os
monstros criados por Max como parte de seu inconsciente não
podemos deixar de ressaltar que monstros são frutos do
inconsciente em sua essência. Verificar a constituição de alguns
dos monstros da mitologia colabora para esta relação. Como as
Górgonas, definidas como “[...] mulheres monstruosas, com dentes
enormes como os do javali, garras de bronze e cabelos de
serpentes.” (BULFINCH, 2000, p.142) ou o “[...] Minotauro, monstro
com corpo de homem e cabeça de touro, forte e feroz [...]”
(BULFINCH, 2000, p.187). Pode-se perceber que há diversos
exemplos na mitologia e nas narrativas das grandes navegações.
No texto do livro ocorre outra referência à um elemento
monstruoso que é o ato de devorar.

e Max disse “OLHA QUE EU TE COMO!”


e acabou sendo mandado para cama sem comer nada (SENDAK,
2009, p. 9).

O ato de devorar aparece novamente na página 21, desta


vez relacionado aos dentes dos monstros e, algumas páginas
depois, quando os monstros pedem para Max não partir “Oh, por
favor, não vá embora...nós vamos comer você...gostamos tanto de

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 152


você!” (SENDAK, 2009, p. 35). O devorador aparece com frequência
na descrição de monstros mitológicos. O Minotauro, por exemplo,
devora donzelas em seu labirinto ((BULFINCH, 2000, p.187) e com
base neste comportamento poderíamos citar diversos outros
monstros. Por esse viés, podemos considerar que, visualmente,
os animais presentes na imaginação de Max podem ser nomeados
monstros, tanto na sua relação com o inconsciente presente na
obra como na sua representação física e comportamental.
Outra questão relevante para a leitura dos monstros é o
contexto da tradução realizada no Brasil, em 2009 por Heloisa
Jahn. O momento temporal e cultural em que foi traduzido pede
uma nova interpretação, não apenas devido ao momento no tempo,
mas também refletindo sua espacialidade, ao localizar,
fisicamente, a tradução no Brasil. Um exemplo deste aspecto pode
ser verificado ao levantarmos os títulos lançados em língua
portuguesa no país. No seu livro Gonçalo (2008) lista como títulos
nacionais de literatura infanto-juvenil mais de dez obras que
levam, originalmente, a palavra monstro no título, revelando a
familiaridade do nosso leitor com o termo, assim como sua
aplicação pelo mercado editorial.
Este é um dos elementos para prosseguir com a reflexão
do monstro no contexto da tradução. A interpretação do monstro
sofreu transformações nos últimos trinta anos, principalmente,
através do cinema. As releituras que foram realizadas, refletem
sobre o papel do monstro que, muitas vezes, não é apresentado
como um ser essencialmente maléfico.

Por décadas, o monstro encarnou frequentemente a figura do


mal que é derrotado por um cavaleiro ou herói que representa
o bem ou as virtudes. A evolução dos costumes e da própria
indústria do entretenimento acabaria por ampliar esse conceito
e lhe dar diferentes conotações, muitas delas distantes do
simples requisito da aparência visual para definir monstro
(GONÇALO, 2008, p. 20).

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 153


Uma nova reflexão sobre o que se conhece como monstro
foi realizada por Tod Browning, no filme Freaks (1932). Nesse filme
são apresentadas pessoas reais com deformidades variadas que
trabalham em um circo de horrores. Nesta proposta ocorre o
questionamento sobre a relação de maldade e feiura, e como o
ser humano belo pode agir de forma monstruosa interiormente,
contrapondo-se à ideia da imagem monstro. Gonçalo (2008) fala
das companhias de circo que apresentavam este tipo de
espetáculo, como a companhia de Barnum, que tinha “[...] várias
criaturas a quem tratava, diante do público, como monstros”
(GONÇALO, 2008, p. 30). Outra reflexão do aspecto humano no
monstro ocorre no filme Homem elefante, de David Lynch (1980),
que traz uma história verídica sobre um homem deformado que
vive como atração de circo.

Desde que Steven Spielberg aproximou três crianças de uma


apavorante criatura alienígena e mostrou à garotada que nem
tudo que é feio deve ser visto como algo mau, no filme ET – o
extraterrestre, em 1982, o cinema infantil nunca mais foi o
mesmo. [...] Se antes os monstros apavoravam a garotada, a
relação passou, aos poucos, a ser de observação e admiração
(GONÇALO, 2008, p. 222).

Neste contexto surgem obras como Shrek (2001), O estranho


mundo de Jack (1993) e Monstros S. A. (2001), invertendo,
completamente, a concepção tradicional do monstro para crianças,
tornando o monstro uma representação do diferente e lidando
com questões de aceitação do outro.

Ao contrário dos monstros tradicionais, esse não emerge para


destruir, assustar e matar, mas para lançar ao seu redor um
olhar profundamente triste, de reprovação e pena: como se a
monstruosidade deixasse ver, num momento de fraqueza, sua
humanidade pura. (NAZÁRIO, 1998, p. 14 apud SILVA, p. 232)

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 154


Percebe-se que existe um contexto novo e mais amigável
para receber os personagens de Sendak como monstros, sem os
antigos estereótipos associados ao medo na infância. Todas estas
reflexões nos auxiliam a pensar o livro de Sendak além do contexto
da imaginação de Max. Podemos identificar os novos sentidos e
interpretações que a relação entre texto e imagem possibilitam
na constituição da narrativa. O livro Onde vivem os monstros traz
monstros que povoam a imaginação infantil e que permanecem
na essência do imaginário de todos e na forma que vislumbramos
o inconsciente e fantasia do mundo infantil.

Referências

BRESSANE, Ronaldo. Seu monstro. Disponível em: http://


ronaldobressane.com/2009/10/26/seu-monstro/. Acesso em: 10
mar. 2015.

BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia: História de Deuses


e Heróis. 9ª ed. Trad. David Jardim Júnior. Rio de Janeiro: Ediouro,
2000.

GONÇALO, Junior. Enciclopédia dos monstros. São Paulo: Ediouro,


2008.

FEIJÓ, Anamaria; Utilização de animais na investigação e docência:


uma reflexão ética necessária. EDIPUCRS, 2005. Disponível em:
https://books.google.com.br. Acesso em: 15 mar. 2015.

FRIOLI, Gleice Lemos. ‘Onde vivem os monstros’... entre dissociações


e reparações. Disponível em: http://centropsicanalise.com.br/.
Acesso em: 20 mar. 2015

HUNT, Peter. Crítica, Teoria e Literatura Infantil. São Paulo: Cosac


Naify, 2010.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 155


IMDB. Disponível em: http://www.imdb.com/. Acesso em: 06 mai.
2015.

JOLY, Martine. Introdução à análise da imagem. São Paulo: Papirus


Editora, 2003.

JUNG, Carl G. O homem e seus símbolos. 2. ed. Trad. Maria Lúcia


Pinho. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 2008.

LINDEN, Sophie Van der. Para ler o livro ilustrado. São Paulo: Cosac
Naify, 2011.

MICHAELIS. Dicionário online Michaelis. Disponível em: http://


michaelis.uol.com.br/. Acesso em: 20 jan. 2015.

SAMARA, Timothy. Guia de design editoria: Manual prático para o


design de publicações. Porto Alegre: Bookman, 2011.

SENDAK, Maurice. Onde vivem os monstros. Trad. Heloísa Jahn.


São Paulo: Cosac Naif, 2009.

SENDAK, Maurice. Where the wild things are. Disponível em: http:/
/www.epubsearch.com/free-download/Where-The-Wild-Things-
Are.pdf Consultado em: 10 mai. 2015

SILVA, Verônica Guimarães Brandão da. Estética da


Monstruosidade: O imaginário e a teratogonia contemporânea.
Dissertação de Mestrado. UnB, Brasília, 2013.

WEBSTER. Dicionário online. Disponível em: www.webster-


dictionary.or. Consultado em: 10 mai. 2015.

WIND, Tonia Leigh; Mosaicos de culturas de leitura e desafios da


tradução na literatura infantil. Dissertação de Mestrado. PUC-Goiás,
Goiania, 2011.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 156


O AMOR NÃO CONSUMADO NO CONTO
“OS MORTOS” E O RPG

Autor: Cristian Abreu de Quevedo (UNIANDRADE)


Orientadora: Profa. Dra. Brunilda Reichmann (UNIANDRADE)

RESUMO: Este artigo faz uma leitura psicanalítica do conto “Os


mortos”, de James Joyce, por meio da interpretação dos processos
identificatórios do RPG (role playing game). Nesse jogo de fantasia, os
participantes vivenciam outras manifestações do “eu” na criação e
interpretação de um personagem. Robert Jauss, com seu texto “Estética
da recepção”, nos oferece o arcabouço conceitual para explorar a
literatura e o universo dos jogos, de forma a ressaltar a importância da
interação e o impacto da subjetividade nas obras de arte, bem como a
recuperação do juízo de valor sobre a mesma. Nosso objetivo é analisar
a dinâmica da interface entre o conto e o jogo de RPG de modo a
compreender os efeitos que essa dinâmica produz nos variados
elementos narrativos como: as relações entre personagens, as
construções de cenas, as ações empregadas pelos jogadores, como o
caso do amor. Para tanto, utilizaremos como metodologia principal o
dialogismo de Mikhail Bakhtin e os conceitos de fantasia e imaginação
de Sigmund Freud. Vale lembrar que este é um work in progress.
PALAVRAS-CHAVE: Literatura. RPG. James Joyce.

Introdução
O RPG ou Role Playing Game é um jogo de interpretação e
performance livres, que difere do teatro e de outros jogos, por não
ter um roteiro pronto a seguir. Aos iniciantes promove certa dose
de estranhamento. No presente trabalho, transcrevemos as
teorias dos autores em forma de diálogo e escolhemos a
interpretação para apresentá-lo. A formalidade da língua se deve
a ambientação que se passa em meados de 1940. Contaremos
com a presença de: James Joyce, Hannah Arendt e Sigmund

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 157


Freud. O RPG é jogado de forma livre, porém, o tempo aqui não
nos permitiria.
É fundamental deixar a imaginação fluir e embarcar
nessa aventura...

Dia 16 de Junho
No convite, um belíssimo cartão negro com letras douradas que
imitam a grafia cursiva, estava escrito:
“Temos o imenso prazer de te convidar para a inauguração da
Sapientae Libris que se dará às 19h do dia 16 de junho. É
imprescindível a leitura do conto ‘Os mortos’ de James Joyce, para o
debate de abertura. O manuscrito segue anexo ao convite”.
O convite foi suficiente para despertar o interesse de Hannah
Arendt pela Sapientae Libris. Passados quinze dias, Hannah se
levanta de sua poltrona de leitura e mesmo com frio, chama o
taxi para levá-la ao centro da cidade.
Ao chegar ao prédio mencionado no convite, ela acende o charuto
e espera pacientemente seu relógio de pulso marcar 18h55min.
Decide então, após alguns minutos, entrar no elevador e acionar
o botão que marca o 16º andar.
Caminha com postura impecável, revelando elegância e estilo
que nem a guerra e as marcas que permaneceram conseguiram
roubar. Olha para os lados, percebe que viera fumando e que não
existem lixeiras ou cinzeiros para depositar os restos mortais de
seu charuto. Sorri para si mesma. Sente o ímpeto de segurar o
colar de pérolas que repousa preguiçosamente sobre seu pescoço,
mas tem as mãos ocupadas, com o charuto e com a maleta de
couro preto, abarrotada de livros, que escolhera, demoradamente,
para o encontro da Sapientae Libris.
O prédio certamente tem mais de sessenta anos, calcula Hannah
Arendt em seus pensamentos. Conserva a fachada original e a
imponência que remete aos anos de sua infância há muito
perdidos.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 158


Ela para em frente à porta e bate apenas uma vez, aplicando certa
força. Segundos se passam, ela é aberta, vagarosamente, por um
distinto homem de pele clara, que usa um tapa olho no lado
esquerdo do rosto, e que fala de maneira perspicaz:
– Tive o mesmo problema senhora Arendt. Sem cinzeiros no
corredor. – Ao dizer isso, ele a convida para entrar com um simples
aceno de mão.
Hannah Arendt percebe o leve sotaque irlandês e seus olhos
percorrem, de imediato, o interior da grande biblioteca.
– Obrigada. - responde com voz firme, revelando sua origem alemã.
Ela adentra o recinto, como é de se esperar, por estar rodeada de
livros, se sente à vontade. Olha à sua direita, nota o cinzeiro em
cima do aparador dourado, imitação da época da renascença.
Rapidamente, deposita o resto do charuto no objeto feito de um
pequeno ônix oval.
– Desculpe, não nos conhecemos. Sou James Joyce. – fala de
maneira abrupta, segurando o casaco de lã negra de Hannah e
colocando-o no cabideiro de madeira de lei. – Ouvi falar de seu
livro “Eichmann em Jerusalém, um relato sobre a banalidade do
mal” e as controvérsias em torno dele. Muitos judeus não gostaram
de suas investigações acerca do nazismo bem como às suas
conclusões que a senhora chegou.
– Bem senhor Joyce, a compreensão é um processo interminável
“em constante mudança e variação, em que aprendemos a lidar
com nossa realidade, reconciliamo-nos com ela, isto é, tentamos
nos sentir em casa no mundo” (ARENDT, 1999, p.39). Esse fora o
meu sentimento ao compreender o caso Eichmann. – diz Hannah
Arendt.
– De fato. – James Joyce fecha a porta e semicerra os olhos. Reflete
por alguns instantes e fala como que expressando suas dúvidas.
– Talvez, por isso que meus livros remetem de maneira tão cíclica
o tema da Irlanda, meu país de origem.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 159


– Certamente meu caro amigo. – Responde um senhor de
avançada idade que caminha ao encontro dos dois.
Aproxima-se, o senhor de meia idade, trajado com um terno cinza-
claro, barba branca, aparada em torno de dois dedos, contrastando
com a careca quase completa, com ralos cabelos brancos.
-– Desde a sua malfadada estadia, no colégio interno jesuíta de
Belverede, pude perceber que tu fazes grande referência à
religiosidade e até mesmo a religião nos teus livros. Talvez, os
escritos remetam a ideia de que “um homem que está livre da
religião tem uma oportunidade melhor de viver uma vida mais
normal e completa” (FREUD, 1996, p. 55). – diz Freud.
Freud olha Hannah nos olhos, perscrutando seu espírito. Inclina
levemente a cabeça para ela e diz com voz séria e grave:
– Estamos já em ótima companhia James. Senhora Hannah, sou
Sigmund Freud.
– Essa será uma discussão por demais interessante! – Hannah
sente-se totalmente animada e o cumprimenta formalmente com
um aperto de mão.
James Joyce, vestindo terno preto e gravata listrada carmesim,
é o mais jovem dos três. Freud acomoda-se onde estava sentando.
Alguns papéis, lápis e bloco de notas são dispostos sobre a suntuosa
mesa oval em mogno, que coroa a visão magnífica do local.
Hannah senta-se lado dele. James Joyce senta-se em frente aos
dois. Olha para as cópias de seu livro Dublinenses, seus papéis
rabiscados e diz de forma descontraída:
– Norma, minha esposa, se visse essa bagunça, me condenaria à
danação eterna. – diz James Joyce espontaneamente. Freud e
Hannah sorriem de forma amena. – Wolfgand Iser e Jean-Paul
Sartre virão para o próximo encontro. Uma lástima não estarem
presentes na abertura. – Se levanta e fala em tom de anúncio. –
Para as devidas formalidades, declaro aberto o primeiro encontro
da Sapientae Libris!
– Deus salve os livros! – diz Freud com um sorriso irônico.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 160


– Que nossa “herança, que nos foi deixada sem um testamento”
(ARENDT, 1999, p.07), adquira sentido a partir de nosso
ajuizamento sobre o mundo. – fala Hannah em tom de discurso.
– Logo mais servirei um bom vinho, que será o verdadeiro mestre
em nossos encontros. E sem mais delongas, gostaria de saber
qual o parecer sobre o conto “Os mortos”? – fala James Joyce
sentando-se. – Ah, sim! O objetivo da Sapientae é debatermos as
mais variadas obras dos mais variados autores buscando, bem –
expressando dúvidas –, buscando algo em meio ao mar de letras
que nos forem sendo revelados.
Hannah segura o colar de pérolas, passando delicadamente as
mãos sobre ele como se o tempo ali não encontrasse morada.
Freud toma a palavra e diz:
– Por uma questão meramente elucidativa, dividi o conto em três
momentos, a saber: a recepção dos convidados, início da festa de
final de ano em que Gretta chega à casa das tias de Gabriel, seu
esposo; depois, a comemoração, com o discurso de Gabriel que,
em meio à festa, discute com Molly Ivors, contextualizando e
referindo-se ao processo de independência da Irlanda que, a meu
ver, o coloca em conflito com sua nacionalidade e sua língua
materna; e por último, o fim da festa, a conversa de Gretta e
Gabriel no hotel. Gostaria muito, caso concordem, começar
discutindo o que denominei: suspeita de um “amor não
consumado” presente no conto!
Hannah retira de sua maleta o manuscrito que lhe fora entregue
e que agora está repleto de anotações e coloca seus óculos. James
Joyce expressa curiosidade em seu semblante, afinal, discutir
seus escritos sempre lhe proporciona imenso prazer. Freud
continua:
– Resumirei o conto para chegar ao ponto em que me interessa:
O casal se dirige para o hotel onde passarão a noite. No trajeto,
Gabriel excitado pelo sucesso do discurso, pelas bebidas ou pela
proximidade em relação à esposa enxerga os “momentos de sua

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 161


vida íntima que irromperam como estrelas na memória” (JOYCE,
2012, p. 191). Porém, suas expectativas são logo frustradas quando,
ao chegar ao quarto de hotel, Gretta expressa um ar triste. Gabriel
questiona o porquê e Gretta diz estar pensando na canção The
Lass of Aughrim, que ouvira ao final da festa, a qual fazia se
lembrar de um jovem, uma paixão adolescente e que ele haveria
morrido por ela.
– Acredito que posso complementar sua ideia selecionando
algumas frases do texto como referência. Deixe-me ver... Ah,
encontrei! – James Joyce habilmente localiza a passagem que
está igualmente com o texto aberto em cima da mesa, lê em bom
tom e voz clara:

– Ele está morto – ela disse finalmente. – Morreu aos dezessete


anos de idade. Não é terrível morrer tão jovem assim?
– O que ele fazia na vida? – perguntou Gabriel, ainda com
ironia.
– Trabalhava no gasômetro – ela disse.(...)
Procurou manter o tom frio do interrogatório, mas quando
voltou a falar a voz soou humilde e inócua.
– Imagino que você esteve apaixonada por esse Michael Furey,
Gretta – ele disse.
– Fui feliz ao lado dele naquela época – ela disse.
Tinha a voz velada e triste. Gabriel, dando-se conta de que
seria inútil tentar levá-la na direção em que pretendera,
acariciou a mão dela e disse, igualmente triste:
– E ele morreu de quê, Gretta, tão jovem? Foi tuberculose?
– Acho que morreu por mim – ela respondeu (JOYCE, 1999, p.
195).

– O impacto da história que ela viveu, ou que poderia ter vivido se


revela de maneira latente ao escutar a canção. – fala Freud com
convicção. – Pois bem, posso dizer que o que estava reprimido no
inconsciente foi liberado e se tornou consciente naquele
momento, expressado pela voz “velada e triste”.

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– Já eu – diz Hannah Arendt canonicamente – encontro em Gretta
a expressão de uma mulher submetida aos ditames de seu tempo,
aos costumes e tradições, à mercê da “virilidade” de Gabriel que
se apresenta como tipicamente o “homem que possui a verdade”.
Mas, como disse Freud, vamos nos ater na história de Gretta.
Partilho da suspeita de Freud de um “amor não consumado”,
porém, acrescento que nem todos querem de fato consumar um
amor que ficou idealizado, nesse caso com a morte do rapaz. – Se
levanta, pega o cinzeiro, e acende outro charuto. Senta
novamente, e mira Joyce que está se deliciando com a discussão.
– Senhora Arendt, afirmar que nem todos gostariam de ter seu
“amor consumado” é demasiado genérico. Temos uma demanda
por amor que nasce ou é gerado desde o nascimento. Primeiro
sob os cuidados de nossa mãe que nos transmite seus afetos.
Relação essa que se manterá por toda a nossa vida, de forma
inconsciente, a repetimos em nossos relacionamentos buscando
por felicidade. Outra possibilidade de amar é o amor narcisista,
no qual procuramos alguém que é nossa imagem refletida ou
como nós gostaríamos de ser. Em todos os casos, ao nos
apaixonarmos idealizamos a pessoa amada e disso surge a
frustração, quando aos poucos vamos nos deparando de fato com
a pessoa por quem nos apaixonamos.
– Mas, é essa a questão! Em razão da idealização, Gretta, se tivesse
vivido ou “consumado” esse amor, não se lembraria dele de forma
tão profunda. Afinal, se o tivesse consumado, já não seria mais
idealizado. Teria se transformado em frustração, Sigmund.
– Esse é um bom argumento Hannah. Poderíamos então concluir
que Gretta, teve sua moção recalcada devido à morte prematura
do rapaz e que em um momento específico, ao escutar a música
The Lass of Aughrim na festa, seu inconsciente se manifestou na
forma de lembranças, tornando-se visível pelas lágrimas dela?
– O senhor fugiu de minha colocação senhor Freud – Hannah dá
uma boa tragada no charuto antes de continuar a falar. – Um

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 163


amor que “é consumado” deixa de ser idealizado e por isso perde
a força de ser um amor capaz de provocar essa explosão
avassaladora de sentimento, tornada visível pela torrente de
lágrimas de Gretta. Acredito que, se o amor tivesse sido
consumado, ela não teria sofrido esse pathos que gerou tamanha
tristeza. Afinal, segundo o senhor mesmo em suas obras, “as
fantasias também são as mais próximas preparações psíquicas
dos sintomas de sofrimento” (FREUD, 2014, p. 50). Ou seja: se ela
tivesse satisfeito essa fantasia, de ter uma vida feliz ao lado do
Michael Furey, não teríamos uma Gretta mergulhada em
recordações e devaneios que a abalaram de forma tão profunda.
James Joyce olha tanto para Sigmund Freud como para Hannah
Arendt e sente-se feliz pela escolha dos participantes da Sapientae.
Diz de forma alegre:
– Percebi que meu texto ao menos na parte discutida por nós
apresenta certo grau de profundidade poética e gera, como a arte,
uma impressão. Isso poderia soar óbvio não fosse a discussão a
que nos propomos. Tenho dito que “a única exigência que faço
aos meus leitores é que devem dedicar suas vidas á leitura de
minhas obras”. Afinal, de que outra maneira o texto se tornaria
de fato compreendido? – ele olha para a expressão séria de cada
um dos participantes e diz – Em nosso próximo encontro Jean-
Paul Sartre nos apresentará algo novo, um jogo chamado RPG! E
agora, que tal uma pausa para o vinho?

Referências

ARENDT, Hannah. A condição humana. Florense Universitária.


São Paulo: 2001.

_______. A dignidade da política. Companhia das Letras: São Paulo,


1999.

FREUD, Sigmund. Escritos sobre literatura. Hedra. São Paulo: 2014.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 164


________. O poeta e o fantasiar. In: Escritos sobre literatura. Hedra.
São Paulo: 2014.

________. Personagens psicopáticos no palco. In: Escritos sobre


literatura. Hedra. São Paulo: 2014.

________. Sobre o ensino da psicanálise nas universidades. In:


Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de
Sigmund Freud vol. XVII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral. São Paulo: Companhia


das Letras, 1998.

JAUSS, Robert. A História da Literatura como provocação à Ciência


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JOYCE, James. Dublinenses. Hedra. São Paulo: 2012.

_______. Entrevista com Max Eastman, em Haper’s Maganize


(1959) citado por Richard Ellmann.

D’AGORD, Marta Regina (org); RIBEIRO, Maria Dornelles de Araújo;


SILVEIRA, Carine Cezar. A identificação com a personagem no
role-playing game. Pulsional Revista e Psicanálise. Porto Alegre:
WEB. Ano XVI, julho 2013.

HABERMAS, Jürgen. Teoria do agir comunicativo: racionalidade


da ação e racionalização social. Vol 1. Tradução: Paulo Astor
Soethe. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2012.

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BERNARD SHAW E O MITO DE PIGMALEÃO ÀS AVESSAS

Autora: Daniele Soares Carneiro (UNIANDRADE)


Orientadora: Profa. Dra. Anna Stegh Camati (UNIANDRADE)

RESUMO: O presente estudo aborda as possibilidades de construção


de sentido a partir da ressignificação do mito de Pigmaleão, na peça
Pygmalion (1912) de Bernard Shaw, à luz das teorias sobre paródia e
adaptação de Linda Hutcheon (1989, 2013) e perspectivas teóricas sobre
transcendência textual de Gérard Genette (2010). Também serão
utilizados conceitos sobre arte de Pierre Bourdieu (1996) e alguns
paratextos e metatextos que acompanham o texto dramático de Shaw.
O artigo ressalta, ainda, a seriedade e firmeza de Bernard Shaw no
trato com a destinação de praticamente todas as suas obras, incluindo
adaptações para diferentes mídias e sua lucratividade, que para ele
não deveria vir em forma de dinheiro ou reconhecimento intelectual e
sim como mudança de comportamento de sua audiência.
PALAVRAS-CHAVE: Pigmaleão. Subversão. Paródia.

Introdução
O irlandês George Bernard Shaw (1856-1950), aos vinte
anos, partiu para a Inglaterra, local em que iniciou suas
atividades como crítico de música e de teatro, consagrando-se,
mais tarde, como escritor (SHAW, 2011). A prática dele no campo
do teatro era variada, incluindo: direção, dramaturgia, controle
de orçamento e divulgação (SHAW, 1971). A função de Shaw está
próxima à de um “dramaturgista” do contexto atual que, de acordo
com a descrição de Saadi (2013), trabalha com o delineamento do
projeto artístico do grupo e sua difusão, a escolha do repertório,
leitura e comentários de peças, tradução, criação, adaptação,
oferecimento do material de pesquisa à montagem,
acompanhamento dos ensaios, elaboração do programa do
espetáculo, debates com o público e registro dos feitos da trupe.

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Henrik Ibsen (1828-1906) foi uma grande influência no
ofício de Shaw. A técnica da “ação falada” inaugurada por Ibsen
foi largamente utilizada pelo dramaturgo irlandês. Em relação a
essa técnica, a argumentação é o núcleo de interesse da peça,
baseando-se na pregação, na retórica e na oralidade, no universo
forense em que a trama e os golpes são coadjuvantes. Sob outra
perspectiva, o que diferencia os dois autores é que Shaw escreve
comédias em lugar de tragédias, utilizando mecanismos
dramáticos cômicos – a ironia, a paródia, a sátira e o
travestimento, entre outros – para expor questões graves,
revelando um estilo seriocômico (SHAW, 1971).
Outra técnica bastante empregada por Shaw é a inversão
cômica, na qual enredos, mitos, temas ou estereótipos conhecidos
eram apresentados para depois serem parodiados e subvertidos,
geralmente com boa dose de ironia. Ele ridiculariza os valores
obsoletos da burguesia inglesa, pautada na nobreza vitoriana
repleta de preconceitos, de desigualdades e de divisões rígidas
entre as classes sociais. Assim, Shaw inicia uma nova era no
teatro inglês, a do teatro novo, ou do realismo, o qual engloba
assuntos contemporâneos e personagens que são como pessoas
comuns de sua época que lidam com situações corriqueiras.
Conforme o estudo de Marvin Carlson (1997, p. 230), Shaw criou
sua própria teoria do drama e sustentava a opinião de que as
questões morais a serem discutidas no palco tinham de ser
inseridas num mundo familiar análogo ao do público em si a fim
de despertar o interesse de todos. Dessa forma, a natureza mais
essencial do teatro desenvolvido por Shaw é a do utilitarismo
didático, trazendo entretenimento e instrução aos espectadores.
Ainda, a inversão de expectativa era central no escopo
de sua inventividade, por meio da qual princípios ultrapassados
eram colocados de modo que, com o desenrolar da ação, não
satisfaziam as expectativas da audiência. Iam na direção
contrária ao senso comum.

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Enfim, mais uma característica importante das criações
de Shaw é a ideia do vitalismo, proveniente da filosofia de Henry
Bergson (1859-1941). A aplicação de tal conceito será
exemplificada mais adiante, na abordagem da subversão do mito
de Pigmaleão.

A subversão do mito de Pigmaleão na peça de Shaw


O conjunto da obra de Bernard Shaw levou o autor a tornar-
se o merecido ganhador do Prêmio Nobel de Literatura concedido
pela Academia Sueca em 1926. Shaw, a princípio, não aceitou
receber o prêmio, em razão de suas crenças as quais o faziam
repudiar aclamações de seu trabalho, pois seu objetivo era atingir
o público e incitar mudanças de comportamento por intermédio
da orientação social. Entre suas obras mais exaltadas está
Pygmalion, escrita em 1912 (SHAW, 1973).
Bernard Shaw toma como referência a antiga lenda grega
Pigmaleão para escrever sua peça Pygmalion. Há várias versões
da lenda, todas baseadas no texto mais antigo, escrito em latim,
pelo poeta Ovídio, que faz parte de sua obra Metamorfoses (8 d.C.,
Livro II, versos 243 a 297), em que recriou histórias da tradição
oral grega. Uma das traduções mais recentes para a língua
portuguesa encontra-se n’O livro de ouro da mitologia (a idade da
fábula): histórias de deuses e heróis (2006). Em resumo, é a história
de um homem (Pigmaleão) que, desiludido por suas relações com
as mulheres, não quer saber de casar-se e passa a viver sozinho.
Como era um excelente escultor, fez uma incrível estátua de
marfim reproduzindo as feições de uma jovem mais bela que
alguém de carne e osso. Esta obra parecia-lhe tão real que ele
tocava nela, oferecia-lhe presentes, vestindo-a com roupas e
acessórios (anéis, colares e brincos), passando a desejar
ardentemente que ela estivesse viva e pedindo aos deuses que
lhe dessem vida para que pudesse tomá-la como esposa. Vênus
escutou suas súplicas e atendeu ao seu pedido. Do amor do casal

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nasceu Pafos, nome de uma cidade erguida em homenagem a
Vênus (BULFINCH, 2006, p. 78-79).
De acordo com a terminologia introduzida por Gérard
Genette (2010), opera-se aqui a “transtextualidade” ou
“transcendência textual”, em que há relações explícitas entre
pelo menos dois textos, o hipotexto Pigmaleão (Ovídio, 8 d.C.) e o
hipertexto, a peça teatral Pygmalion (Shaw, 1912). O teórico
argumenta que “A arte de fazer o novo com o velho tem a vantagem
de produzir objetos mais complexos e mais saborosos do que
produtos ‘fabricados’: uma função nova se superpõe e se mistura
com uma estrutura antiga, e a dissonância dá sabor ao conjunto”
(GENETTE, 2010, p. 144).
Bernard Shaw, a partir daquele enredo, cria uma
personagem, o professor Higgins, um solteirão convicto, adepto
do celibato, tão habilidoso quanto Pigmaleão, mas no campo da
fonética. A protagonista feminina é Eliza Doolittle, uma pobre
moça que vendia flores na rua, a qual, no início da peça era
descrita como uma ratinha suja, mas que depois se transformou
em uma elegante jovem senhora.
O fator principal que engendrou a mudança em Eliza não
foi o poder divino ou simplesmente seu novo rico vestuário. A
educação que ela recebeu de Higgins foi a mola propulsora que a
levou a desenvolver mais autoconfiança, fluência na linguagem
e articulação de pensamento, mostrando-se bem mais sofisticada
e independente ao final da peça. Ela conseguiu, com seu talento,
passar por cima de toda a diferença cultural e econômica entre
ela e os mais abastados como o professor Higgins e seu colega
Pickering, invadindo o espaço deles, para melhorar sua
autoestima e condições de vida. Eliza também causou espanto
por sua independência e firmeza de caráter desde o começo da
ação. No início, ela vivia sozinha, sobrevivendo da venda de flores
que realizava nas ruas, tendo sido expulsa de casa por seu pai e
por sua madrasta, devido a que eles acreditavam que ela já estava

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crescida o bastante para sustentar-se por si mesma. No dia em
que Higgins desperta nela a possibilidade de ascensão através do
aprendizado da fala correta, nos mais altos padrões da sociedade
londrina e inglesa, ela não pensa duas vezes antes de dedicar-se
a esse propósito. Com os trocados a mais que recebeu de Higgins,
pega um táxi e vai em frente até conseguir que o professor a
ensine.
Nesse sentido, a lenda de Ovídio é subvertida e parodiada.
Toma-se aqui o seguinte conceito de paródia: “forma de imitação
caracterizada por uma inversão irónica, nem sempre às custas
do texto parodiado [...] repetição com distância crítica, que marca
a diferença em vez da semelhança” (HUTCHEON, 1989, p. 17).
Nessa apreciação há paralelismos com uma variação irônica que
é atributo de toda paródia, em que “a crítica não tem de estar
presente na forma de riso ridicularizador” (p. 18); ao contrário,
trata-se de uma “abordagem criativa/produtiva da tradição” (p.
19). Em Pygmalion não se desenvolve uma união romântica entre
a moça pobre e o famoso professor. Além do mais, o modo de ser
de Eliza não se assemelha à estátua, pois ela demonstrou sua
vitalidade desde o começo. A estátua é um objeto do desejo de
Pigmaleão, a quem foi concedida a dádiva de viver meramente
para satisfazer a vontade de seu criador, ser a esposa dele. Até
mesmo o tom de comédia que a peça apresenta, por seu
vocabulário e atitudes fora do comum, e o realismo das situações
distanciam-se totalmente do tom romântico e sobrenatural da
lenda.
No artigo “Pygmalion: o criador e a criação” citado abaixo
apresenta-se uma outra faceta muito interessante de alteração
do mito de Pigmaleão, considerando-se o professor Higgins como
a estátua:

A peça pode ser encarada como uma inversão do mito de


Pigmalião escrito por Ovídio, se tivermos em conta que Higgins

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tenta tornar uma criatura viva numa boneca, ou numa máquina,
acabando esta por se revoltar contra o abuso de poder do
professor e assegurar a sua própria independência. Neste
sentido, Higgins seria a «estátua» fria, distante, sem vestígios
de humanidade nem desejos carnais, a quem só uma figura
jovial como Liza conseguiria trazer à superfície um certo afecto.
(COELHO, 2015, não paginado)

Por outro lado, Higgins é um herói ao estilo de Shaw, que


carrega uma força vital – apesar dela não estar conectada a
questões sociais ou sensuais –, um representante da energia
ligada à evolução criativa (MCGOVERN, 2011, p. 50). O centro da
vida daquele professor era seu trabalho como foneticista, em que
não economizava esforços para avançar em seus projetos. Era
incapaz de demonstrar o afeto e a devoção que sentia por Eliza,
mesmo quando a admirava mais do que nunca. Não se preocupava
com os sentimentos ou o sofrimento dos outros, apenas com suas
próprias conquistas: “Uma vez por todas, põe na tua cabeça que
eu sigo meu caminho e faço o meu trabalho sem pensar um
minuto no que pode acontecer a você ou a mim. Não estou
intimidado pela moralidade da crasse mérdia, como seu pai e sua
madrasta” (SHAW, 2011, p. 147). Nas vezes em que tentava elogiar
alguém era para conseguir um favor em troca.
Dessa forma, a influência do vitalismo baseado na filosofia
de Henri Bergson permeia toda a peça.

A vitalidade constitutiva dos seres vivos origina-se do élan vital


cuja potência consiste, especialmente em criar, fazer surgir,
gerar. [...] assim como a memória pura tende a se atualizar
numa diversidade de idéias ou lembranças atuais, o élan vital
faz a conversão do ser contraído da duração em uma variedade
de formas vivas que são caracterizadas pela mudança contínua.
(SILVA, 2006, p. 3)

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No ato V Higgins fala sobre isso: “Olha aqui, eu fiz a
pergunta, eu dou a resposta: posso passar sem ninguém. Não
preciso de ninguém. Tenho uma alma própria; minha fagulha
particular do fogo divino” (SHAW, 2011, p. 145). Cada personagem
exerce essa potência vital de forma diferente, de maneira que os
conflitos oriundos da estigmatização na rígida divisão de classes
sociais britânica é o que principalmente os influencia para que
se sintam ou não autossuficientes e assim alcancem suas metas,
independentemente das situações adversas, mas em relação
direta com a educação que recebem. Além de Eliza e Higgins,
temos Alfred Doolittle, o pai dela, que vive intensamente a referida
estigmatização. Inicialmente, ele morava com uma mulher, mas
não era casado com ela, o que se considerava pecado mortal
naquela sociedade, sendo que todas as personagens que se
expressaram a respeito disso mantinham essa crença. Ele se
colocava como vítima da situação precária em que vivia, como
um pobre desfavorecido, sem ajuda do governo: “Si tem arguma
coisa qui a genti acha qui tem dereito a genti vai, põe a letra da
genti lá, mas êlis diz: ‘Qui é qui há? Tu é um poubre disfavurecido;
num merece. Sai da fila’” (SHAW, 2011, p. 66). Ele não se
preocupava com o destino de sua filha Eliza, apenas buscou contato
com ela para tentar conseguir algum dinheiro do professor
Higgins, a quem tentou vendê-la por cinquenta libras, mas acabou
por obter ainda menos do que isso em troca de afastar-se deles.
Quando o destino dele mudou em razão da herança milionária
que recebeu, ele continuou não querendo sua filha por perto,
devido a que se sentia infeliz com a nova vida, tendo que sustentar
financeiramente os parentes e outros que se acercavam dele
visando lucros. Qualquer cidadão comum da época pensaria que
muito dinheiro e um bom casamento fariam qualquer homem
feliz, todavia essas expectativas inverteram-se, pois não foi isso
que mostrou o Sr. Doolittle, contestando toda a hipocrisia social e
política da época. Ele, ao contrário dos protagonistas, não teve

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 172


aulas, educação, apenas ganhou muito dinheiro. Isso proporcionou
a ele conforto material, mas não trouxe realização emocional e
nem aumentou sua autoestima. No caso, seu contentamento
encontrava-se diminuído no último ato, assim como o de sua
esposa:”Num percisa tê medo mais – ela num diz mais parlavrão
nim discruti cum nimguém, coitada! Dispois qui fico reispeitáver
perdeu tuda a graça” (SHAW, 2011, p. 140). “É bom pruque ele
anda lá in baixo chorano us dia di aligria qui fôro simbora” (p.
141).
Na verdade, Doolittle comete o pecado de ser irresponsável,
pecado este considerado dentro da escala de julgamento do próprio
Shaw e que, por este motivo, é punido com um castigo comparado
ao de Don Juan de Il dissoluto punito (MCGOVERN, 2011, p. 75-76).
Na ópera Il dissoluto punito, ossia Il Don Giovanni (estreia em 1787),
Don Giovanni (ou Don Juan em francês, cuja referência é a peça
de Molière, Don Juan ou Le Festin de Pierre, uma tragicomédia de
1665) é um fanfarrão que seduz várias mulheres, entre criadas e
nobres, faz promessas a elas e depois as abandona. O desfecho é
que a estátua de um homem assassinado por Don Giovanni volta
para buscar vingança, mas o fanfarrão não acredita nela e nem
se arrepende de seus pecados. O resultado é sua descida ao inferno
(DON GIOVANNI, 2015). É interessante analisar que obras antigas
repetidamente convertem-se em modelos estéticos cuja
recomposição em forma de obra moderna, muitas vezes, tem como
objetivo satirizar ridiculamente hábitos contemporâneos
(HUTCHEON, 1989, p. 22).
Em Pygmalion, o estilo seriocômico da ópera é mantido,
porém o final é comicamente invertido, sem nenhum vestígio de
efeito sobrenatural. No ato final Doolittle estava “triste, mas
magnânimo” (SHAW, 2011, p. 142), vestido desajeitadamente
como um lord, pronto para casar-se, o que não era exatamente a
sua vontade, era mera formalidade, uma obrigação a fim de obter
mais respeitabilidade.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 173


Afinal, tanto o Sr. Doolittle quanto Higgins, Eliza e os outros
demonstram seu potencial, o élan vital próprio de todo ser vivo, o
qual gerou também mudanças contínuas. Esse princípio de
continuidade transformadora fica evidente ao final da ação na
peça de Shaw, quando o destino deles não é revelado, apenas um
leque de possibilidades, assim como ocorre na vida real, onde as
incertezas e mudanças não cessam.

As traduções de Pygmalion
A partir da escritura da peça teatral em 1912, houve várias
traduções em diversas línguas, representações em teatros e
também adaptações em outros formatos, como filmes e musicais.
“Siegfried Trebitsch [...] apostou suas fichas na tradução
daquelas peças [de Shaw] para o alemão [...] De fato, sua fama
chegou à Inglaterra via Alemanha [...] pois o Independent Theatre
londrino não teria sido capaz de fazer por esta fama” (MANN, 2011,
p. 143).
Após uma encenação em Viena (1913), utilizando-se a
tradução alemã, aconteceu, em 1914, a produção teatral de
Pygmalion em Londres, no His Majesty’s Theatre. O público a
recebeu como uma grande comédia, descrita no artigo “Why My
Fair Lady betrays Pygmalion” (BOSTRIDGE, 2014) como: “the
longest laugh in British theatrical history” [a mais longa
gargalhada da história do teatro britânico], pelo sotaque e uso de
termos esdrúxulos de Eliza, proveniente dos guetos de Londres, o
mesmo do pai dela (o Sr. Doolittle) e de outras personagens
secundárias e inclusive pelos modos “animalescos” dela, os quais
se chocavam enormemente com os do professor Higgins e com os
do coronel Pickering, amigo e companheiro de trabalho. McGovern
(2011, p. 87-89) expõe que Herbert Beerbohm Tree, o ator que fez
o papel de Higgins nessa peça de 1914, conforme a avaliação de
Bernard Shaw, parecia um Romeu na última cena, apesar de
todas as orientações de Shaw para que isto não acontecesse. Ele

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era um ator típico de finais felizes e por meio de suas
improvisações deu a entender que Eliza ficaria com Higgins, o
que a plateia aprovou.
Em 1916 foi lançada a primeira versão publicada em inglês
no formato de livro, em que, entre os diálogos, Shaw insere um
prefácio e um epílogo nos quais faz várias ponderações sobre a
lógica da história e das personagens. Dentre essas considerações,
ele afirma: “Eliza positivamente não acredita na velha e estúpida
tradição romântica de que todas as mulheres adoram ser
dominadas” (SHAW, 2011, p. 158). No epílogo também é colocada a
informação de que Eliza casa-se com Freddy, um apaixonado por
ela, que a respeitava e não tentava dominá-la e nem humilhá-la
como Higgins. Assim, o casal tem uma lua de mel paga pelo
coronel Pickering, logo após abrem uma loja de flores – que quase
vai à falência porque Eliza não sabia contar direito e nem escrever
corretamente e porque Freddy também não entendia nada de
administração – sendo que foram salvos diversas vezes por
Pickering, além da menção de que Eliza, a despeito de sua boa
convivência com Freddy e de seu marido a fazer muito feliz, tinha
fantasias com Higgins, de tê-lo em um lugar isolado de todos,
onde ele pudesse demonstrar o amor que sentia por ela. O que
Bernard Shaw esperava no desfecho da história era um destino
não tradicional, não tão feliz e muito menos romântico. McGovern
(2011, p. 3) afirma que a sequência explicativa de 1916 foi
publicada numa tentativa de Shaw de impedir que sucessivos
intérpretes dessem um tom romântico à relação entre Higgins e
Eliza.
Além disso, Pygmalion contém uma musicalidade sentida
no ritmo e entonação característicos dos discursos de cada
personagem, os quais só poderiam ser mostrados por completo
em uma performance no palco de um teatro ou no cinema, onde
tivéssemos o som de suas falas. Desse modo, reproduzir na escrita
todos aqueles diálogos cuja sonoridade ecoava na concepção do

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 175


autor não foi tarefa fácil para Shaw. Tanto é que já no início da
peça ele deixa o comentário: “Esta tentativa desesperada de
reproduzir essa linguagem, sem um alfabeto especial
correspondente, deve ser abandonada, porque é totalmente
ininteligível fora de Londres” (SHAW, 2011, p. 16).
Se a tarefa já foi árdua para Shaw, imagine para os que
traduziram a obra para outras línguas. Os tradutores estrangeiros,
além de lidar com a transposição da oralidade para a escrita,
tinham de lidar também com a transposição de uma cultura para
a outra, de um contexto para outro. Linda Hutcheon (2013), quando
discorre sobre a contextualização das adaptações, diz o seguinte:
“Não importa se contada, mostrada ou se com elementos
interativos, a história sempre ocorre num determinado tempo e
espaço social” (p. 194).
No caso das traduções brasileiras, pode-se fazer a
comparação das escolhas feitas por Miroel Silveira e Millôr
Fernandes. Miroel Silveira, em sua tradução publicada em Bernard
Shaw: Santa Joana e Pigmalião (1973), apresenta o título: Pigmalião:
comédia em cinco atos; Millôr Fernandes coloca: Pigmaleão: um
romance em cinco atos (2011). Silveira provavelmente levou em
consideração, além de sua própria interpretação, a recepção da
peça e dos filmes em outros países, onde ela foi classificada como
comédia. Millôr Fernandes prestou mais atenção ao título original
criado por Shaw, Pygmalion: a romance in five acts (o subtítulo só
não foi mantido na versão em inglês de 1939, conforme a tese de
McGovern, 2011, p. 47), em que a ironia da palavra “romance”
era proposital, pois Shaw revelava uma história antirromântica,
não convencional. Ainda sobre o título, Fernandes preferiu
“Pigmaleão”, sem importar-se com a aproximação à pronúncia do
inglês, que seria a escolha feita por Silveira, “Pigmalião”. Outra
grande diferença entre as duas traduções foi que Silveira transpôs
as cenas para o Rio de Janeiro, seguindo o mesmo padrão da
tradução francesa do casal Hamon, que, com a autorização de

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 176


Shaw, transferiu as ações para as margens do rio Sena (1973, p.
221). Fernandes manteve as cenas situadas em Londres. Já uma
terceira diversidade seria a troca de nomes das personagens. Na
versão de Silveira, Henry Higgins virou Henrique Mascarenhas;
o Sr. Doolittle era Alfredo Garapa; Freddy passou a ser José
Rivadávia e Eliza Doolittle transformou-se em Elisa Garapa,
enquanto que na versão de Millôr os nomes ingleses foram
mantidos.
“Os países e as mídias não são os únicos contextos que
devemos considerar. O tempo – muitas vezes curtos intervalos
de tempo – pode mudar o contexto, inclusive dentro de um mesmo
lugar e de uma mesma cultura” (HUTCHEON, 2013, p. 195). No
intervalo de algumas décadas, dentro da cultura brasileira,
tivemos duas interpretações bem distintas da mesma obra,
havendo escolhas importantes nas duas. A originalidade do
subtítulo concebido por Shaw e a caracterização típica do contexto
e do espaço londrino foram elementos deixados de lado por Miroel
Silveira. Já na tradução de Millôr Fernandes a aproximação ao
contexto brasileiro não foi empregada. Também houve grande
modificação nas duas versões no sentido de que a proposta de
Bernard Shaw era a de que não seria possível reproduzir um
dialeto típico das camadas desfavorecidas de Londres na forma
escrita; por isso desistiu de tal empreendimento. Porém, os dois
tradutores brasileiros tentaram manter os dialetos adaptados à
língua portuguesa, procurando harmonizá-los com a oralidade no
desenrolar de toda a peça.
A grande contribuição de Silveira seria por ele ter feito
com que o leitor brasileiro ficasse mais confortável em sua leitura
em razão de seu empenho em transportar a obra para a cultura
nacional. O mérito de Fernandes seria pelo desvelamento dos
costumes londrinos de forma o mais próximo possível, promovendo
a inserção de elementos novos na cultura do Brasil.

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Com o passar do tempo as traduções e adaptações de
Pygmalion fizeram da obra um grande sucesso tanto comercial
quanto de crítica e audiência.

Um empreendimento está tanto mais próximo do pólo


“comercial” quanto os produtos que oferece no mercado
correspondem mais direta ou mais completamente a uma
demanda preexistente, e em formas preestabelecidas. Por
conseguinte, a duração do ciclo de produção constitui sem
dúvida uma das melhores medidas da posição de um
empreendimento de produção cultural no campo (BOURDIEU,
1996, p. 163).

Novas produções a partir da peça de 1912 têm sido


realizadas há mais de um século, apoiadas naturalmente pela
certeza de êxito e lucratividade, colocando a obra sempre em
atividade no campo artístico.

Considerações finais
As questões apresentadas e a maneira pela qual foram
trabalhadas por Bernard Shaw em Pygmalion são marcadamente
surpreendentes para seu tempo. Na época do lançamento e
durante várias décadas mais tarde as concepções
antirromânticas não eram, em geral, aceitas. A tentativa de Shaw
no sentido de manter a carga total de realismo na obra, fugindo
do modelo tradicional do romance como gênero literário, e de não
promover a união entre Eliza e Higgins viu-se frustrada desde a
primeira encenação na Inglaterra até pelo menos a década de
1960, quando é lançado o filme My Fair Lady (1964), um musical
adaptado para as telas. Contudo, o sucesso e popularização da
obra ocupavam e ocupam um importante espaço no cenário
cultural de variadas épocas e locais.
A peça, construída a partir de mitos como o de Pigmaleão
e o de Don Juan, contestou também estereótipos – a moralidade

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 178


da classe média, o papel social da mulher, o matrimônio
tradicional, o amor entre pais e filhos, entre outros. Todos esses
mitos e estereótipos foram habilmente parodiados, revistos, e
adquiriram novos significados. Eles foram transportados para um
ambiente real onde não havia heróis, as pessoas se corrompiam,
o casamento não passava de obrigação formal, pais não tinham
boas relações com os filhos e a opressão e injustiças dirigidas
aos miseráveis, residentes das sarjetas de Londres, sem
educação, fazia com que vivessem quase sem esperança.
Porém, em meio a todos os obstáculos, surge a educação
como ferramenta-chave para a ascensão tanto financeira quanto
intelectual dos cidadãos, como no exemplo de Eliza. Bernard Shaw
acreditava realmente no trabalho dos professores e do
conhecimento, pois ele mesmo – conforme McGovern (2011, p.
42) – teve aulas com um voice teacher, que o ajudou a lapidar sua
pronúncia e deu dicas a ele de como arrumar o penteado. Além
disso, Shaw consultou vários livros de etiqueta a fim de portar-se
mais adequadamente. Ele próprio sofreu o preconceito inglês por
ser estrangeiro e não estar moldado aos padrões, revelando através
de Pygmalion a hipocrisia e as falhas que via naquela sociedade.

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GIACOMO JOYCE E POMES PENYEACH: POSSIBILIDADES DE
RECEPÇÃO TEXTUAL E DE DEPREENSÃO DE UMA
ESTÉTICA JOYCEANA

Autor: Prof. Dr. Edson Ribeiro da Silva (UNIANDRADE)

RESUMO: Obras que James Joyce não chegou a publicar ou desprezou


suscitam problemas quanto à recepção. Pode-se recorrer à
hermenêutica dos lugares-vazios, de Iser. Mas apreendê-las com vistas
a uma estética joyceana, por sua vez a aplicação de uma estética tomista
ao modo de se observar o real, é ação que revela uma dialética da
escritura. Não se constata a passagem de uma apreensão sensível do
real para que se chegue à compreensão de um ente em si mesmo,
condição tomista da verdade. O que se percebe é que o belo sensível
desperta o ensejo de uma elaboração estética intelectiva, e esta é a
verdade joyceana. O ente verdadeiro é a obra. Exemplos notáveis são a
autoficção Giacomo Joyce e o conjunto de poemas Pomes Penyeach, em
que o sensível serve como suporte para estados de paixão amorosa. A
paixão fracassa, mas o autor constata que só lhe resta escrever.
PALAVRAS-CHAVE: Recepção. Joyce. Estética. Iser.

A nova bibliografia joyceana e seus problemas de recepção


James Joyce publicou poucos títulos. As obras que o autor
considerava prontas e dignas de publicação quase sempre estavam
envolvidas em polêmicas. A censura a obras prontas, as quais
podem ser vistas como resultantes de longos esforços pela
definição de uma estética pessoal, parece ser uma extensão das
proibições pessoais que o autor se impunha. Textos incompletos,
obras salvas do fogo ou lacradas em arquivos pessoais, a
bibliografia de Joyce vem sendo aumentada por publicações de
natureza diversa. Interessam ao leitor aficionado, ao estudioso
da literatura ou do autor, mas nem sempre podem ser vistas como
trabalho pronto, que o autor, se vivo, aceitaria tornar público. Se
o leitor busca a leitura em seu aspecto de fruição de texto literário,

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 182


certamente esbarra na complexidade de textos que não foram
acabados, lacunares, de uma incompletude que não é parte de
uma estética deliberada, mas resultante da condição de rascunhos
ou textos abortados. Afinal, o leitor de Joyce reconhece, com uma
atenção incomum, o modo como o autor explicita a noção de
opacidade da linguagem literária, tantas vezes enfatizada por
Lefebve (2012).
Dentre as recentes publicações, obras como De santos e
sábios, conjunto de textos esparsos, como ensaios e crônicas, ou
Epifanias, apanhado de anotações das quais o autor faria uso em
obras posteriores, evidenciam a incompletude. Por sua vez, Finn’s
Hotel e Stephen herói são rascunhos de romances que depois vieram
completos à luz. O manuscrito do segundo foi, inclusive, salvo do
fogo pela mãe do escritor. O fato de o primeiro ostentar uma
chamada da editora, chamando o volume de “livro perdido de
James Joyce”, indica que há um leitor informado acerca dessas
obras. Este pode buscar nelas material para estudo. Nesse sentido,
não seria necessário problematizar a recepção desses textos como
leitura de obra literária. No entanto, entre tais edições recentes,
também existem as de obras que o autor deixou completas, e
chegou a publicar, como o volume de poemas Pomes penyeach,
traduzido como Pomas doiscontoscada, ou a novela Giacomo Joyce,
incluída na edição de Finn’s Hotel, texto ambíguo, pois foi terminado
mas não publicado, como se o autor o guardasse para uma edição
póstuma. Essas duas obras problematizam a recepção para o leitor
que sabe que são textos acabados.
A indicação da natureza do texto pode orientar modos de
recepção, ou até mesmo o tipo de envolvimento do leitor com a
obra. Fruição ou estudo? Ambos, para aquele leitor possuidor de
repertório? Mas, sobretudo, os modos de preenchimento daquilo
que Ingarden e Iser chamam de indeterminações e lugares-
vazios. No caso de obras como Pomes penyeach e Giacomo Joyce, o
acabamento dos textos aponta para leituras que evidenciem os

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 183


usos intencionais, estéticos, como acabados. Da mesma forma,
esses usos podem apontar para o desvelamento de uma estética,
indicada em ensaios do autor ou em fragmentos abandonados. As
ligações de Joyce com uma estética tomista acabam tendo nesses
dois textos exemplos de desenvolvimento. Afinal, se há uma
relação entre as concepções estéticas de Tomás de Aquino e o
estilo joyceano depreendido das obras principais, essas produções
menores podem servir como indicadoras. E também como
problematizadoras, ao evidenciarem modos como o autor
apreendeu e transformou algumas das noções principais do
filósofo.

Uma estética de indeterminações e lugares-vazios


As teorias sobre recepção de textos literários desenvolvidos
pela Escola de Constança evidenciam uma atenção que recai
tanto sobre as teorias da enunciação quanto sobre a
fenomenologia, com suas incursões pela consciência do leitor.
Assim, Wolfgang Iser busca constituir uma Teoria do Efeito
Estético para diferenciar este efeito daquele que ele próprio chama
de “efeito artístico”, ou seja, se o último é atribuição do autor
enquanto elabora sua obra, o primeiro cabe ao leitor enquanto a
apreende através da leitura. Um dos traços que especificam a
produção iseriana é a atenção dada às intenções do autor de
exercer alguma forma de controle sobre a recepção da obra. Ou
seja, a obra já contém as instruções sobre o modo como o leitor
deve recebê-la:

(...) o papel do leitor se define como estrutura do texto e como


estrutura do ato. Quanto à estrutura do texto, é de supor que
cada texto literário representa uma perspectiva do mundo criada
por seu autor. O texto, enquanto tal, não apresenta uma mera
cópia do mundo dado, mas constitui um mundo do material
que lhe é dado. (ISER, 1996, p. 73)

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 184


Essa estrutura, ou configuração, que Iser (1996) define
como “leitor implícito”, estabelece o esforço do autor por construir
um efeito artístico, orientações sobre o modo de recepção que,
quando colocadas sob a responsabilidade do leitor, resultam em
efeito estético, ou seja, o mundo do texto é apreendido a partir
das especificidades do mundo do leitor. As descrições que o teórico
faz do ato de leitura atentam para aqueles elementos que
constituem a estrutura do texto literário. Há uma atenção para a
consciência e os modos de apreensão. Portanto, Iser olha para a
fenomenologia como sendo uma exposição abrangente desses
modos. A consciência e suas possibilidades de apreender o real
também são motivo para que a fenomenologia explicite a leitura
como uma apreensão específica. Se o filósofo Edmund Husserl
ocupou-se com a apreensão do real de modo abrangente, o teórico
da literatura Roman Ingarden fez uso da fenomenologia para
diferenciar a apreensão do texto literário em sua especificidade.
A principal contribuição de Ingarden está em apontar as
limitações do texto literário, como tentativa de representação do
real. A composição de uma realidade específica esbarra na
impossibilidade de se enumerarem todos os elementos
necessários a uma apreensão satisfatória pelo leitor, que o texto
não consegue conter. O leitor acaba tendo que preencher as
indeterminações do texto, o que ele acaba por fazer a partir de
sua experiência como sujeito, o mundo do leitor. Os dados contidos
na sua consciência, na forma de esquemas aplicáveis às diversas
situações do real, acabam por completar aquilo que no texto está
indeterminado. O exemplo mais notório, tanto em Ingarden quanto
em Iser, refere-se ao conjunto de informações visuais necessárias
para que o leitor represente os cenários em que as ações se
passam. A imagem formada pelo leitor é a resultante das
instruções do autor preenchidas com dados da sua própria
consciência. Ou seja, ela é sua, e não do autor. Para Ingarden,
essas indeterminações são uma limitação do texto. E a

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 185


identificação do texto com a experiência pessoal do leitor é um
problema, não uma qualidade. É conhecida a crítica que o teórico
faz às atitudes do leitor:

De facto, não aprecia a obra de arte por causa de seus próprios


valores, de que ao assumir tal atitude nem sequer se apercebe
e que ficam até submersos sob a plenitude de sentimentos
subjectivos. Julga-a simplesmente “valiosa” porque ela é um
meio que lhe provoca vivências agradáveis. (INGARDEN, 1965,
p. 40-41)

A proximidade com o mundo do leitor seria, para Ingarden,


motivo para uma recepção agradável, mas sem chegar ao valor
estético. Para Iser, o fato de o texto não conter todas as
informações necessárias à apreensão, ou recepção, é uma
característica constitutiva, e cabe ao autor configurá-la de modo
a obter efeito estético. A ausência de informação, que ambos os
teóricos chamam de “lugar-vazio”, é vista por Iser com otimismo:
sem ela, a experiência de leitura seria frustrante. Completar o
texto é uma experiência que problematiza o mundo do leitor. Ou
seja: “Mas estar temporariamente isolado do mundo real não
significa que voltemos para ele com novas diretrizes. Ao contrário,
a irrealização pelo texto nos permite descobrir o próprio mundo
como uma realidade passível de observação” (ISER, 1999, p. 63). A
obrigação de completar o texto faz com que os elementos a ele
acrescentados sejam vistos através da opacidade da linguagem
literária. Observados e problematizados, a ampliação da
experiência de leitura faz com que ela não se reduza apenas aos
elementos cabíveis na configuração da obra. Estar ou não presente
no real é uma condição de interação do leitor com a obra: “A
imagem representada e o sujeito-leitor são indivisíveis” (ISER,
1999, p. 62). Uma recepção de obra literária torna-se satisfatória
quando o leitor percebe que a ele cabe completá-la. Os textos bem

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 186


escritos são os que evidenciam sua incompletude e o modo como
cada autor soube estruturá-los, no sentido da construção de
possibilidades de recepção, através do leitor implícito. Se não há
como se ter controle completo sobre a recepção, os limites desse
controle possível correspondem a uma evidenciação do modo como
cada texto se configura. A relação entre determinar e
indeterminar é, por natureza, aquilo que define o estilo de cada
obra. A estética iseriana é a resultante dessas escolhas feitas
durante a configuração e percebidas durante a recepção.

Problemas de uma estética joyceana a partir da estética tomista


É suficientemente conhecida a intenção de Joyce de
elaborar um realismo a partir da estética depreendida da obra de
Tomás de Aquino. Da mesma forma, é bastante conhecida as
tentativas, feitas por alguns estudiosos do escritor, de reduzir
essa estética a procedimentos epifânicos em uma condição que
virou clichê. A complexa estética tomista acaba se parecendo com
uma negação daquilo que a define: a racionalidade como forma
de se chegar à Verdade, condição para o Belo. O realismo tomista
faz da arte uma forma de atrelamento do Belo, do Bom e do
Verdadeiro, elementos que fazem com que a fruição estética não
seja um prazer puramente sensível e ganhe a condição de prazer
intelectível. Aquino fala sobre o Belo como sendo o que agrada
aos sentidos. Essa visão pode parecer uma limitação ao sensível.
No entanto, a arte precisa da razão. Esta é condição para que se
chegue à Verdade. Em Tomás de Aquino, a filiação da Beleza à
apreensão intelectível faz com que se reconheça o parentesco de
sua estética com noções aristotélicas, sobretudo a de
“reconhecimento”, a depreensão da Verdade que acaba por gerar
a catarse. Se esse reconhecimento, em Aristóteles, tem função
catártica e de elevação moral, em Aquino ele conduz ao
conhecimento do real como Verdade. Reconhecer a Verdade é
atribuição do intelecto. Assim, a ação de apreender o objeto belo,

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 187


pelos sentidos, é apenas uma etapa para que se reconheça por
que o mesmo foi tido como tal. Se foi percebido como possuidor de
Beleza, esta não estaria apenas em sua aparência, mas em algo
que só pode ser explicitado pela razão. Aquino estabelece três
princípios pelos quais a Beleza pode ser reconhecida: claridade,
proporção e ordem (TAZIN, 1943). Pela claridade, o ser se revela
em sua Verdade; pela proporção, percebe-se o encadeamento das
partes que o constituem, agrupados por importância; por ordem,
a harmonia que se estabelece entre as partes em sua
funcionalidade. O ser é belo, e essa Beleza já pode ser percebida
pelos sentidos; no entanto, compreender por que os sentidos
consideraram o objeto belo, já na sua apreensão, é tarefa da razão,
ao tomar como critérios os três elementos. Ou seja, é possível
ver em Tomás de Aquino um atrelamento dos sentidos a uma
intuição da Beleza. Intui-se que algo possua Beleza, mesmo que
ainda não se saiba por quê. O motivo final será sempre a
capacidade que o ser belo possui de revelar o real como verdadeiro.
Para Joyce, apenas essa semelhança não faria a Beleza
permanente.
Evidentemente, uma estética tomista foi perseguida pelo
Joyce jovem com resultados que nem sempre chegaram ao
ambicionado. Os originais destruídos dessa época exemplificam
essa situação. Textos que oscilam entre a preocupação com o
realismo do cotidiano e a criação de técnicas que, por sua vez,
atinjam a perenidade. O comentário seguinte, de Carpeaux,
aponta para a condição do desafio entre ser universal e partir do
cotidiano local: “a obra de Joyce seria produto de circunstâncias
muito particulares, de um regionalismo irlandês, se bem que
subversivo – e o que tem o mundo com isso?” (CARPEAUX, 2012,
p. 164). O regionalismo se universaliza porque Joyce tem
consciência de que arte é elaboração da linguagem, muito além
de ser reflexão sobre o mundo. Nesse sentido, o regionalismo
irlandês subverte a arte literária universal entendendo-a como

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 188


linguagem, técnica. A elaboração da linguagem literária, mesmo
que mimetize o fortuito, o cotidiano, é produto de uma reflexão
sobre procedimentos estéticos perenes. Suas produções eram um
exercício de ensaio e erro, e que até despertavam o sentimento
de frustação. É preciso que se reconheça que as obras “perdidas”
de Joyce eram anotações ou versões preliminares. Na verdade,
esses rascunhos resultaram em obras publicadas. O que se torna
problemático é o reconhecimento de uma estética tomista tal
como o autor apregoava em sua juventude e seus desdobramentos
posteriores.

O tomismo joyceano: realismo e epifania


Em De santos e sábios, há um conjunto de fragmentos que
Joyce escreveu entre 1903 e 1904 e que estão agrupados sob o
nome de “Estética”. A organização do texto dividiu-o em dois
cadernos: de Paris e de Pola, cidades em que foram compostos. O
caderno de Paris é essencialmente aristotélico. Nele, há
comentários sobre a natureza mais abrangente dos gêneros
literários e sobre a natureza da arte. É conclusiva neste sentido
a afirmação: “A arte é o modo como o homem dispõe para um fim
estético a matéria sensível ou inteligível” (JOYCE, 2012, p. 155).
A noção de “fim estético” faz com que sejam excluídas da arte
atividades que tenham uma finalidade prática, como a fotografia,
casas, roupas, móveis, e também a beleza que não seja produto
da intencionalidade e da ação do artista, como a das crianças. Ou
seja, a Beleza da arte não se reduz ao bonito. O caderno de Pola é
tomista. Frases de Tomás de Aquino encimam comentários,
encerrados com as indicações de data e local. Essas frases
nucleares do que seria uma estética tomista constituem um
percurso para o escritor conceber e escrever suas obras. No caso,
tratava-se da composição de Stephen Herói, rascunho para o Retrato
do artista quando jovem. Joyce está, no caderno, preocupado com

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 189


os conceitos de Bom, Belo e Verdadeiro. Assim, retoma e comenta
os conceitos tomistas:

Bonum est in quod tendit appetitus. Santo Tomás de Aquino.


O bem é aquilo para o qual tende o desejo: o bem é o
desejável. O verdadeiro e o belo são as ordens mais
persistentes do desejável. A verdade é desejada pelo apetite
intelectual, que se sacia com as relações mais satisfatórias do
inteligível; a beleza é desejada pelo apetite estético, que se
sacia com as relações mais satisfatórias do sensível. (JOYCE,
2012, p. 156)

Não há como isolar as formas do desejo. É a possibilidade


de o apetite intelectual e o apetite estético se aglutinarem que
gera a semelhança da arte com a Verdade. Afinal, o apetite
intelectual leva ao Verdadeiro, através da razão; e o apetite
estético leva ao Belo. Mas de que forma? Não se trata,
evidentemente, apenas da contemplação sensível. Joyce fala das
“relações mais satisfatórias do sensível”, que remetem aos três
requisitos da Beleza tomista: claridade, proporção e ordem. Se
esses elementos podem ser intuídos através da apreensão
sensível, só podem ser detectados através da intelecção. Ou seja:

Ora, o ato de apreensão estética envolve pelo menos duas


atividades, a atividade de cognição, ou percepção simples, e a
atividade de recognição, ou reconhecimento. (...) No que diz
respeito àquela parte do ato de apreensão chamada atividade
de apreensão simples, não há objeto sensível que não possa
ser considerado belo até certo ponto. (...) Em relação à segunda
parte do ato de apreensão, chamada atividade de
reconhecimento, ou recognição, pode-se acrescentar que não
há atividade de percepção simples que não seja acompanhada,
em certo grau, pela atividade de reconhecimento. (JOYCE, 2012,
p. 156-157)

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 190


As duas partes do ato de apreensão da arte se
complementam, essencialmente: a cognição produz uma
sensação de belo, de que o objeto apreendido é agradável; a
recognição refere-se ao reconhecimento da semelhança com a
Verdade, atividade do intelecto, posterior à apreensão sensível.
Se todo objeto apreendido pode, até certo ponto, ser considerado
belo, resta precisar o que faz com que o objeto artístico se
diferencie dos demais. Trata-se, sem dúvida, de transcender o
“certo ponto” e estabelecer a permanência do prazer na apreensão.
Ou seja, já se está em uma terceira parte da apreensão, a
satisfação:

Em sua forma mais completa, no entanto, o ato de apreensão


envolve três atividades, a terceira sendo a da satisfação. (...)
Na filosofia estética prática, os epítetos “belo” e “feio” são
usados principalmente em função dessa terceira atividade, ou
seja, se referem à natureza, ao grau e à duração da satisfação
resultante da apreensão de qualquer objeto sensível. (JOYCE,
2012, p. 257-258)

O Belo, assim, é resultante da passagem pelas três


atividades de apreensão. Se mesmo os objetos não artísticos são
considerados belos porque passam pelas três, a arte faz disso um
requisito imprescindível. A duração da satisfação, que precisa se
repetir, no mínimo, três vezes, é condição para o Belo artístico.
Aqui, é preciso retomar as condições estabelecidas por Joyce no
caderno de Paris: a natureza desse Belo é a finalidade estética, e
não qualquer outra; o grau está, evidentemente, na elaboração
sobre a matéria, a técnica; e a duração dessa satisfação não pode
ficar restrita a um único momento da apreensão, pois precisa
dos três.
Tem-se um percurso para se reconhecer uma estética
joyceana. A admissão das obras como prontas e sua publicação

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 191


certamente indicam a satisfação do autor com os resultados
obtidos. Joyce está pensando em permanência da obra e em arte
como elaboração daquele Verdadeiro que pode ser reconhecido.
Por isso, o realismo de suas obras. Parecer-se com o real
apreensível na cognição é um meio de assegurar o
reconhecimento; no entanto, este poderia constituir um “até certo
ponto” para a satisfação. O real reconhecido como Verdadeiro não
é a única condição para a duração da satisfação. Esta dura devido
ao trabalho de elaboração da matéria que constitui a obra de arte.
A beleza está nessa elaboração, que também deve ser reconhecida,
através da opacidade da linguagem literária. A técnica produz
opacidade. Pode parecer estranho, pois a estética tomista fala
em claridade. Em Joyce, a claridade parece se referir ao seu
realismo, ao regionalismo de que fala Carpeaux; mas a
universalidade de sua obra está na satisfação proporcionada pela
elaboração da matéria constitutiva da arte literária. E já se falou
que o reconhecimento dessa elaboração faz com que se atente
para a opacidade da linguagem literária. Não se está diante de
uma aporia, mas de algo que remete a uma outra forma de
reconhecimento: o do trabalho do artista como parte da obra. Ou
seja, o grau de elaboração é requisito para a duração da satisfação.
Essa possibilidade de aporia é evidente quando se reduz a
estética joyceana à epifania no senso-comum. Afinal, estudos a
respeito da epifania em Joyce e em outros autores atrelados a
essa possibilidade de apreensão estética a limitam ao que o autor
irlandês chama de “cognição”, sem chegar às demais etapas da
apreensão do Belo. Atitude recorrente é considerar epifânicos os
procedimentos estéticos em que Joyce está, evidentemente,
preocupado também com a recognição e com a satisfação. E reduzir
a estética joycana à intuição do belo que ocorre durante a cognição.
Por isso, o escritor faria uso de cenas do cotidiano, de imagens
corriqueiras, que não possuiriam o caráter de belo como bonito.
A epifania acabaria gerando um realismo como que por acaso.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 192


Na verdade, essa perspectiva não se detecta dos
procedimentos que Joyce indica nos seus cadernos de estética.
Sua epifania, como intuição da beleza permanente, ocorre nos
fragmentos coletados no livro Epifanias. Anotações que o autor
coletava e que, muitas vezes, seriam incorporadas em trechos
de suas obras prontas. No entanto, as epifanias precisam ser
aprovadas pela condição da duração do agradável na apreensão.
Se reduzidas ao momento de cognição, não chegam à condição de
beleza que supera o “até certo ponto” do bonito. É preciso também
não esquecer que Joyce afirma que “não há atividade de percepção
simples que não seja acompanhada, em certo grau, pela atividade
de reconhecimento”, ou seja, a intuição pura do belo, no ato da
apreensão sensível, pode ser uma quimera, pois ela já pode conter
a atividade de reconhecimento da Beleza. No entanto, isso ocorre
“até certo grau”, o que não garante que apreensões epifânicas
refiram-se sempre ao Belo que permanece; pode-se estar apenas
diante daquela possibilidade que todo objeto oferece de ser
percebido como belo. E que não interessa à estética joyceana.

Uma estética do epifânico como parte da apreensão e do uso


do lugar-vazio como evidência de opacidade
Ao se pensar no epifânico como etapa, que pode ou não
ser incorporada pela obra pronta, pode ser mais fácil depreender
os procedimentos indicados nos cadernos de anotações sobre
estética naquelas obras que Joyce vinha elaborando na época.
Ou que ainda estão na confluência desses ideais com achados
estéticos que indicam a maturidade do escritor. Em relação ao
primeiro caso, o conjunto de poemas Pomes penyeach, ou Pomas
doiscontoscada, é uma evidente demonstração. No segundo,
Giacomo Joyce pode ser visto como exemplar.
Quando Joyce elaborava seus poemas, ainda havia a
expectativa de o autor abrigar um poeta. E a obra parece um ensaio
breve, uma testagem de seus ideais estéticos, enquanto se

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 193


elaborava um romance que passou por mais de uma versão. O
livro exemplifica o regionalismo irlandês ao adotar a dúzia de
treze, tradição nas padarias do país, como estrutura para um
conjunto de doze poemas curtos, que admitem um décimo-terceiro.
Na verdade, o livro foi composto nas cidades do continente europeu
recorrentes nas datações joyceanas: Paris, Zurique, Trieste. A
preocupação em localizar e datar cada poema é a mesma que se
detecta nos textos da época, como os agrupados em De santos e
sábios. A leitura desses poemas revela um Joyce mais lírico que
realista, mais próximo do impressionismo que das associações
inconscientes expressionistas. Algo que percorre os treze poemas.
Veja-se um dos primeiros:

WATCHING THE NEEDLEBOATS AT SAN BABBA

I heard their young hearts crying


Loveward above the glancing oar
And heard the prairie grasses sighing:
No more, return no more!

O hearts, O sighing grasses,


Vainly your loveblown bannerets mourn!
No more will the wild wind that passes
Return, no more return. (JOYCE, 2015, p. 6)

Está-se diante de uma apreensão sensível, já indicada no


título. A referência aos sons ancora o poema na apreensível. E
em seguida existe uma reflexão, como que originada nas
impressões provocadas por esses sons e imagens implícitas no
título. A simples imagem poderia conter o Belo, se a apreensão
pudesse ficar restrita à cognição. Joyce quer o reconhecimento.
E quer a sensação de satisfação provocada pela opacidade de sua
linguagem. Aqui, uma linguagem que se parece ainda ao já-feito;
a preocupação com a originalidade é restrita a poucos recursos.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 194


Há um trabalho de acoplamento de palavras, que pode ser
entendido como criação de termos novos, mas também como
utilização de uma possibilidade que a língua inglesa não estranha.
O fato é que, acopladas, as palavras passam a representar a
opacidade de que fala Lefebve. O texto é para ser visto. E, ao mesmo
tempo, o autor faz uso da aliteração no penúltimo verso, recurso
simples, diante da complexidade técnica das obras da maturidade.
O uso dos lugares-vazios pode ser percebido logo no título:
há a indicação de uma cena, com local e imagem definidos. No
entanto, o restante do poema não retoma essas indicações. Elas
funcionam como o estabelecimento de um esquema, para usar a
terminologia de Iser, da situação. Estabelecido o esquema, não é
necessário que o texto o reitere; a economia do poema abordará a
percepção sensível para expor as sensações atreladas a ela.
A apreensão sensível como etapa de cognição parece
evidente na quase totalidade dos poemas:

ALONE

The moon’s greygolden meshes make


All night a veil,
The shorelamps in the sleeping lake
Laburnum tendrils trail.

The sly reeds whisper to the night


A name – her name –
And all my soul is a delight,
A swoon of shame. (JOYCE, 2015, p. 22)

Constata-se um processo de apreensão sensível, aqui, de


imagens. A visão poderia indicar, de imediato, que se trata da
apreensão do Belo. A atitude epifânica, aqui, já contém o grau de
reconhecimento que a cognição pode conter. E Joyce adota
processos que tornam sua linguagem opaca. A apreensão da

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 195


imagem, sensível, ganha a condição de perenidade da sensação
do agradável, através da elaboração da linguagem, matéria da
arte, mais que a mímesis. Da imagem, passa-se ao estado de
ânimo do eu-lírico, aquela sensação de delícias mas também de
vergonha. Os poemas indicam um processo que parte da cognição
e chega ao reconhecimento, e que fixa a sensação de agradável
pela elaboração, o trabalho do artista, altamente detectável. Não
se contentam com aquela sensação de Beleza que se restringe à
apreensão, ainda uma intuição de que no objeto pode havê-la.
Aqui, é evidente que o epifânico transcendeu a intuição e o
puramente sensível e passou pelas três etapas. Há epifania, no
sentido comum, quando se atenta para o fortuito das imagens e
da cena. No sentido de uma estética joyceana, existem as etapas
de apreensão, não menos que três.
A novela Giacomo Joyce possui essa condição de texto curto,
feito enquanto um romance era elaborado. No caso, foi
contemporânea de Ulisses. Trata-se, portanto, de um momento
em que o autor pode ser encontrado já maduro. O texto não foi
publicado pelo autor; o modo como foi guardado, entre originais,
em uma pasta fechada, evidencia a intenção de preservá-la, talvez
até para uma publicação póstuma. Afinal, a novela narra a paixão
frustrada de Joyce por uma aluna para quem ensinava inglês. O
texto evidencia marcas de autoficcionalidade:

Gogarty veio ontem para ser apresentado. O Ulysses é o motivo.


Símbolo da consciência intelectual... A Irlanda então? E o
marido? Andando pelo corredor de chinelinhos ou jogando
xadrez sozinho. Por que nos deixam aqui? A cabeleireira aqui
se entendia ainda há pouco, apertando minha cabeça entre as
bolas ossudas dos joelhos... Símbolo intelectual da minha raça.
Ouviu? A escuridão precipitou-se. Escuta! (JOYCE, 2014, p. 151)

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 196


E acaba por assumir um aspecto confessional. A indicação
do nome do romance em elaboração, com a expectativa de
consagração, faz desse eu-narrador o próprio autor. Trata-se,
assim, de novela? O texto ainda é ficcional? Joyce preferiu não
se submeter a esse julgamento, sobretudo não ao julgamento
moral de um adultério virtual. Seu desejo pela aluna não consegue
ser refreado:

Coleia rumo a mim pelo saguão amarrotado. Não posso


me mover nem falar. Chegada coleante de carne nascida nos
astros. Adultério de sabedoria. Não. Irei. Vou.
– Jim, amor! –
Macios lábios chupantes me beijam a axila esquerda:
um beijo coleante em miríades de veias. Ardo! Desmonto como
folha em chamas! De minha axila direita salta um dente
chamejante. Uma serpente estrelada me beijou: fria serpente
da noite. Estou perdido!
– Nora! – (JOYCE, 2014, p. 151-152)

O escritor narra uma cena de desejo frustrado. E não tem


pudor ao usar o nome da própria esposa como a causa dessa
frustração. O texto certamente agradava ao escritor em termos
de resultados estéticos, tanto que o preservou. No entanto, o
julgamento de sua confissão ficou para depois de sua morte.
A obra está pronta. Não se trata de um plano abortado. E
Joyce escreve um texto diferente daquilo que publicava. Na
estrutura, na temática intimista, que foge ao regional ou ao real
como reconhecimento de um lugar. O processo aqui é de
composição de uma obra fragmentária, feita de trechos curtos,
que não podem ser chamados de capítulos. O Joyce sinfônico dos
romances e até dos contos publicados adota a indeterminação
para falar de si. O texto compõe-se de lugares-vazios, evidenciados
nas frases curtas e nos trechos soltos, que muitas vezes dão a
impressão de não terminado. Só que Joyce está recorrendo a esses

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 197


esquemas compartilhados entre o mundo do texto e o mundo do
leitor porque sabe que tais espaços serão preenchidos na recepção.
Afinal, trata-se de uma história de amor banal entre um homem
casado e uma moça, que acaba não ultrapassando os limites do
desejo. O leitor sabe que tipo de informação preencheria esses
lugares-vazios, dentro de um repertório vasto de histórias de amor.
Mais que isso, Joyce espera de seu leitor a compreensão sobre
quem ele seja e sobre detalhes da sua biografia, o que confirma o
leitor implícito iseriano. Há uma intenção de controlar a recepção,
e de ansiar por um leitor com repertório. O trecho abaixo é
exemplar dessa condição:

Juventude tem seu fim: o fim está aqui. Jamais será. Você
sabe muito bem. E aí? Escreva a respeito, diabo, escreva! O
que mais você sabe fazer?
“Por quê?”
“Porque senão eu não vou poder te ver.”
Um deslizar – espaço – eras – folhagem de estrelas – e
um paraíso minguante – imobilidade – e mais profunda a
imobilidade – imobilidade da aniquilação – e a voz dela. (JOYCE,
2014, p. 153)

O trecho é um exemplo notável dessa condição de confissão


que almeja um leitor preparado por outras leituras do autor. Como
diz Carpeaux (2012, p. 164-165): “O sexo seria a ‘idée fixe’ do aluno
foragido dos jesuítas de Dublin, que conseguiu transformar as
doutrinas da psicanálise em sonho fantástico.” Por isso, o leitor
implícito ansiado por Joyce é aquele que sabe disso. E que
reconheça na confissão de só saber escrever a única possibilidade
de ainda “ver” a paixão fracassada. O uso de espaços e a
alternância de adentramento de parágrafos evidenciam, de novo,
um autor preocupado com a linguagem opaca que desnude o
trabalho do artista. O parágrafo feito de expressões soltas indica o
uso consciente das indeterminações, de lugares-vazios, mesmo

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 198


que na forma de ideias, para o leitor preencher. Os travessões
servem para indicar a condição dessas expressões como afastadas,
separadas, precisando que os esquemas do leitor preencham tais
espaços.
Joyce se aproxima do ideal iseriano da indeterminação
como possibilidade de inserção do leitor no texto e de construção
do prazer estético. Na visão de Iser, o escritor faria um uso estético
dessas informações escondidas, e que possibilitaria o prazer, a
satisfação estética. Na estética joyceana, trata-se da elaboração
da Beleza através da intencionalidade de criar uma obra
elaborada. Essa intenção estética faz da apreensão a destinação
da obra. Para tanto, é preciso que o autor faça previsões de como
essa apreensão, ou recepção, ocorre. Ou seja, a estética joycena
evidencia o leitor implícito iseriano.

Considerações finais
Os problemas gerados pela publicação de obras de caráter
diverso de James Joyce não se esgotam nessa tentativa de indicar
algumas características da estética do autor. Essas características
não esgotam todas as formulações estéticas do autor. As suas
descobertas sobre as possiblidades de elaboração e de recepção
do texto literário são muito complexas. Portanto, a limitação a
duas obras, dentre as publicadas recentemente, se justifica.
Trata-se de exemplificar algo dentro da estética que o autor
procurou elaborar, e que passou por etapas diversas. O escritor,
em Giacomo Joyce, evidencia uma maturidade e uma originalidade
que não podem ser constatadas em Pomes penyeach, texto da
juventude. No entanto, é nessa juventude que Joyce procura, de
um modo bem sistematizado, criar uma estética pessoal. A sua
formação católica o leva a retomar Aristóteles e Tomás de Aquino,
como autores preocupados com uma formulação da Beleza que
também abarque a Verdade e o Bem. Percebe-se que a estética
joyceana faz das três partes da apreensão da obra literária um

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 199


requisito para que se reconheça a mesma como fonte de satisfação,
ou prazer estético. A obra literária precisa, sim, ser percebida
como elaboração de sua matéria constitutiva, a linguagem, mais
do que como cópia do real. Nisso reside a satisfação estética. Iser
diria o efeito estético, como resultante da apreensão da obra. Se,
nas obras iniciais, uma utilização de processos epifânicos, a
serem avaliados pelas três atividades de apreensão, parece uma
preocupação recorrente, na maturidade o escritor faz uso elevado
de recursos que evidenciam seu trabalho sobre a linguagem e
sobre as possibilidades de recepção da obra, como o uso de
indeterminações e lugares-vazios. Ele quer a permanência da
satisfação quando da recepção.

Referências bibliográficas

CARPEAUX, O. M. O modernismo por Carpeaux (História da literatura


ocidental Vol. 9). São Paulo: Leya, 2012.

INGARDEN, R. A obra de arte literária. 3ª ed., Trad. de Albin E.


Beau, Maria da Conceição Puga e João F. Barrento. Lisboa/
Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 1965.

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JOYCE, J. De santos e sábios. Tradução de André Cechinel et al.


São Paulo: Iluminuras, 2012.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 200


______. “Giácomo Joyce.” In: Finn’s Hotel. Tradução de Caetano W.
Galindo. 1ª ed., São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

______. Pomas doiscontoscada (Pomes penyeach). Tradução de Eclair


Antônio Almeida Filho e Josina Nunes Magalhães Rocinsvalle.
São Paulo: Lumme Editor, 2015.

LEFEBVE, M.-J. Estrutura do discurso da poesia e da narrativa.


Tradução de José Carlos Seabra Pereira. Coimbra (Portugal):
Livraria Almedina, 1980.

TAUZIN, F. S. Bergson e São Tomaz: o conflito entre a intuição e a


inteligência. Rio de Janeiro: Desclée, de Brouwer & Cia, 1943.

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INTERFACES DA ESCRITA FICCIONAL DE HILDA HILST

Autora: Eliza Pratavieira (Uniandrade)


Orientadora: Profa. Dra. Anna Stegh Camati (Uniandrade)

RESUMO: Este ensaio se configura a partir de questões que envolvem


o trabalho ficcional de Hilda Hilst. A primeira questão está relacionada
aos aspectos compositivos, onde abordo o cânone como matéria da
produção ficcional e aponto as relações que a escrita de Hilst estabelece
com a tradição moderna. Para tanto, destaco os pontos de contato
entre a escrita hilstiana e a produção de James Joyce e Samuel Beckett,
a partir de procedimentos: O fluxo de consciência, o uso do tempo, a
carga paródica, a transformação na figura do herói aproxima Hilst de
James Joyce, enquanto a presença constante do nonsense, a
impossibilidade de narrar e a estrutura dialógica da narrativa, aproxima
Hilst de Samuel Beckett. Em seguida, trabalho o uso paródico de
elementos simbólicos e místicos no universo ficcional da autora. Para
tanto, apresento uma leitura das narrativas “O unicórnio” e “Lázaro”,
a partir da apropriação e deslocamento semântico dos mitos.
PALAVRAS-CHAVE: Composição. Tradição irlandesa. Metatextualidade.
Paródia.

Introdução
O estilo ficcional de Hilda Hilst é marcado por intensidade,
liberdade e exuberância – características que lhe conferem o
estatuto de escritora hermética durante grande parte de sua
trajetória. Esse estatuto afasta a sua escrita das escolas literárias
dominantes na cena brasileira da segunda metade do século XX.
As peculiaridades de estilo, os temas polêmicos, o afastamento
dos grandes centros culturais do país e a quase inexistência de
um mercado editorial sedimentado no Brasil dos anos 70,
dificultam a ampla distribuição de seu trabalho e,
consequentemente, o acesso do público. A literatura de Hilst
permanece pouco conhecida (apesar do reconhecimento crítico),

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até o início dos anos 2000, quando a Editora Globo dá início ao
processo de publicação (e distribuição) das obras completas. Hoje,
onze anos após a morte da autora, o trabalho é acessado, citado,
analisado, exposto, decomposto, referenciado, traduzido,
transposto, transcriado – situações que indicam um forte
reposicionamento de sua escrita no cânone brasileiro nesse início
de século.
Nos textos de ficção, temos sinais de diversas naturezas
que indicam que a substância da criação de Hilst é o próprio ato
de escrever literatura, e os desdobramentos desse ato. Temos
registro, em toda a produção ficcional, de personagens-escritores,
sempre em conflito com o sistema produtivo. Nos textos ficcionais,
há passagens que abordam as relações íntimas do autor com a
sua pesquisa, bem como os entraves do mercado editorial, as
diversas rusgas com a crítica e a ausência de diálogo com o público.
Isso está marcado no texto em alguns momentos de modo direto
e literal, e em outros de modo metafórico ou formal.
Alcir Pécora diz, em entrevista ao Itaú Cultural1, que as
principais metáforas de Hilst (Deus, Amor e Morte) tem suas bases
calcadas no próprio processo da criação literária. Em suas
experiências formais, Hilst constrói possíveis ressignificações do
que é a literatura. Trata-se de uma escrita que, através de sua
composição, procura pensar a literatura, embaçando os limites
entre produção poética e crítica. Blanchot trabalha com uma
questão que parece central na produção ficcional da autora:

Certamente continuam a publicar-se, em todos os países e


todas as línguas, livros dos quais alguns são considerados obras
de crítica ou reflexão, enquanto outros recebem o título de
romance e outros se dizem poemas. É provável que tais
designações perdurem, assim como ainda haverá livros muito
tempo depois de que o conceito de livro estiver esgotado. Não
obstante, é preciso, de início, fazer a seguinte observação: desde
Mallarmé (para reduzir este último a um nome e este nome a

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 203


uma referência), o que tendeu a tornar estéreis essas distinções
é que, através delas e mais importante do que elas, veio a luz
a experiência de alguma coisa que continuamos a denominar
“literatura”, mas com uma seriedade renovada e, ainda por cima,
entre aspas. Ensaios, romances, poemas, davam a impressão
de estar ali, de terem sido escritos simplesmente para permitir
que o trabalho da literatura (então considerada uma potência
singular ou uma posição de soberania) se realizasse e, por
intermédio desse trabalho fosse formulada a questão: “O que
é literatura?” Questão extremamente premente, aliás,
historicamente premente [...], mas que escamoteava e ainda
escamoteia uma tradição secular de esteticismo. (BLANCHOT,
2001, p. 7)

Assim podemos compreender que o trabalho de Hilst


acontece num território de diluição de fronteiras: trata-se de uma
experiência estética no campo ficcional, que se propõe, através
de seus procedimentos e do uso de suas referências, questionar
conceitos sobre o que é a literatura, tarefa tradicionalmente
vinculada a crítica. Trata-se de uma tendência da modernidade,
como aponta Hutcheon (1985, p. 11): “As formas de arte tem
mostrado cada vez mais que desconfiam da crítica exterior, ao
ponto de procurarem incorporar o comentário crítico dentro de
suas próprias estruturas, numa espécie de autolegitimação que
curto-circuita o dialogo crítico normal”.
Na escrita ficcional de Hilst, os contatos com a crítica não
se limitam às referências ligadas ao próprio processo de criação,
mas atinge os temas, as figuras e as formas compositivas de que
a autora lança mão para compor seu trabalho. Suas experiências
promovem diálogos profundos com a tradição literária, e isso é
feito a partir de diversos níveis de relação entre textos: citações,
hibridismos, apropriações, paródias, pastiches, entre outras.
Trata-se, de uma composição por fragmentos, estrutura que em
outros trabalhos, chamei de caleidoscópica – ou uma escrita

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 204


constituída a partir de uma ampla reciclagem cultural, que se
origina de pesquisas que abarcam diversas referências da tradição
literária ocidental.

Diálogos com a tradição irlandesa moderna


Neste trabalho destacaremos as relações que Hilst
estabelece com a tradição irlandesa moderna, a partir do diálogo
com James Joyce e Samuel Beckett. De Joyce, Hilst se aproxima
a partir da experiência com o fluxo de consciência, o uso não
linear do tempo, a apropriação paródica de diversas fontes,
enquanto de Samuel Beckett, a autora se aproxima a partir da
presença constante do nonsense, do narrar impossível e da
estrutura dialógica/ aproximação com o drama.
Um dos procedimentos mais importantes na composição de
Ulisses (1922), é a radicalização do fluxo de consciência, técnica
em que o autor aproxima o leitor dos pensamentos do personagem
narrador. Em Ulisses, temos a descrição das impressões de um
homem comum, em um determinado tempo/espaço. A
radicalização do fluxo de consciência em James Joyce apresenta
uma experiência de tradução da percepção/pensamento/memória
em linguagem escrita:

Para o leitor, é como usar fones de ouvido plugados diretamente


ao cérebro de outra pessoa e monitorar essa gravação
interminável de impressões, reflexões, questionamentos,
memórias e fantasias do sujeito à medida que sensações físicas
ou associações de ideias os motivam. (LODGE, 2011, p. 56)

A radicalização do fluxo de consciência traz a narrativa uma


estrutura fragmentária. Assim, tempo, referências e
acontecimentos não podem mais ser expressos de um modo linear.
O uso radical do fluxo de consciência implica na constituição de

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outros modos de compor a narrativa, como aponta Tânia Pellegrini
em seu ensaio sobre o Realismo:

O monólogo interior e/ou fluxo da consciência, a estilização, a


abstração, a fragmentação, a colagem, a montagem, aquisições
estilísticas desse momento (modernidade)2, são quase o ponto
final do percurso empreendido pela mimesis, e correspondem
a um conceito de realidade totalmente modificado, que inclui,
como concretas, reais e representáveis, as profundas tensões
e ambivalências da consciência humana. (PELLEGRINI, 2007,
p.146)

James Joyce e Hilda Hilst se afastam do épico heroico e


buscam na narrativa, meios de expressar a experiência
psicológica do sujeito. Temos, na produção dos dois escritores, a
apropriação paródica de referências da tradição e a reapresentação
destas referências a partir de um outro ponto de vista:

Joyce não escreveu todo o Ulisses como um fluxo de consciência.


Após levar o realismo psicológico ao limite, passou a adotar,
nos capítulos mais avançados do romance, vários tipos de
estilização, pastiche, paródia. Ulisses é um épico psicológico,
mas também linguístico. (LODGE, 2011 p. 59)

O diálogo com Samuel Beckett se dá a partir de outros meios.


Hilst usa um fragmento de Molloy como epígrafe de Fluxo Floema.
Assim a autora anuncia o seu ponto de partida, já que Fluxo Floema
é a sua primeira experiência no campo ficcional. É importante
marcar que o livro foi publicado em 1970, logo após a breve e
intensa experiência da autora no campo da dramaturgia, que
aconteceu nos anos de 1968 e 1969. Embora a escrita para teatro
não seja retomada, um forte traço dramatúrgico marca presença
em toda a produção ficcional da autora. Não por acaso, é que a
escrita ficcional de Hilda Hilst é levada aos palcos e com mais

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 206


frequência do que a própria escrita de teatro. Samuel Beckett
também dilui as fronteiras entre ficção, teatro e outras artes em
seus escritos.
Nos textos de Beckett e Hilst, a experiência de aproximação
entre escrita e teatro, ganham forma a partir do diálogo, elemento
fortemente utilizado pelos dois escritores. Além da estrutura
dialógica, há outros pontos de contato: a ideia de esgotamento da
forma narrativa se faz presente nas duas escrituras – isso é
marcado no texto pelo narrar impossível, resultante da ideia de
esgotamento dos modelos narrativos tradicionais, que são de modo
geral, calcados no realismo – a negação do realismo acontece
aqui pela presença do absurdo. Ambos apontam a insuficiência
da linguagem, ou a impossibilidade de expressão daquilo que se
percebe a partir da escrita, e trabalham a partir de um estilo
conciso e subversivo.

Apropriações, rebaixamentos, inversões: Metatextualidade e


paródia em Hilda Hilst
Destacaremos aqui, o caráter metatextual da escrita de
Hilst bem como as relações que ela estabelece, a partir de sua
escrita com a tradição literária e cultural do ocidente. Gérard
Genette, em Introduction à l’architexte (1979), cria uma
sistematização para as diversas formas de relação entre textos,
que vão da intertextualidade à metatextualidade. Na introdução
de Palimpsestos, o autor retoma essa tipologia, apresentando duas
definições para cada relação. A metatextualidade é definida da
seguinte maneira:

[...] metatextualidade, é a relação, chamada mais correntemente


de “comentário”, que une um texto a outro texto do qual ele
fala, sem necessariamente cita-lo, (convocá-lo), até mesmo,
em último caso, sem nomeá-lo […]. É por excelência, a relação
crítica. Naturalmente estudou-se muito (meta-metatexto)

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certos metatextos críticos, e a história da crítica como gênero,
mas não estou certo de que se tenha considerado com toda a
atenção que merece o fato em si e o estatuto da relação
metatextual. Isso deveria acontecer. (GENETTE, 2006, p. 11)

Linda Hutcheon na introdução de Uma teoria da paródia,


chama a atenção para a presençada metatextualidade em diversos
discursos da modernidade/contemporaneidade. Da publicidade à
arte, da arte à filosofia, atingindo até mesmo os discursos
científicos, de modo que a autorreferencialidade parece ser, uma
característica do pensamento/expressão do nosso tempo:

O mundo moderno parece fascinado pela capacidade que os


nossos sistemas humanos têm para se referir a si mesmos
num processo incessante de reflexividade. […] Até o
conhecimento científico parece hoje em dia caracterizar-se pela
inevitável presença no seu interior de alguma forma de discurso
sobre os próprios princípios que os validam. A omnipresença
deste nível metadiscursivo levou alguns observadores a
postular um conceito geral de execução que serviria para explicar
o carácter auto-reflexivo de todas as formas culturais [...].
(HUTCHEON, 1985, p. 12)

Neste contexto, a paródia se estabelece como recurso


importante para criação diálogos com a tradição, que neste
contexto funciona como retorno, valorização ou questionamento
das próprias origens. Genette nos dá uma definição do que pode
ser a paródia, enquanto Hutcheon observa os meios em que ela
se manifesta na produção moderna/contemporânea:

A palavra paródia é correntemente o lugar de uma grande


confusão, porque usamos para designar ora a deformação lúdica,
ora a transposição burlesca de um texto, ora a imitação satírica
de um estilo. A principal razão desta confusão está
evidentemente na convergência funcional dessas três fórmulas,

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 208


que produzem em todos os casos, um efeito cômico, geralmente
às custas do texto ou do estilo “parodiado”. (GENETTE, 2006,
p. 19)

Desde Pound e Elliot até os artistas da performance


contemporâneos e aos arquitectos pós-modernos, a
intertextualidade e a autorepresentação foram dominando a
atenção crítica. Com esse centro de interesse, surgiu uma
estética do processo, da actividade dinâmica da percepção,
interpretação e produção de obras de arte […]. Muitas épocas
compeliram o título de “Idade de Paródia”. Por certo que o
entusiasmo demonstrado no século XIX por uma paródia
específica e ocasional aos poemas e novelas do romantismo
tardio forneceu uma fonte de opinião contemporânea sobre um
movimento literário importante (Priestman, 1980). A mescla
de elogio e censura faz de tal paródia um ato crítico de
reavaliação e acomodação. (HUTCHEON, 1985, p. 12)

A metatextualidade e a paródia são recursos fortemente


utilizados na ficção de Hilda Hilst. Essas relações serão
evidenciadas a partir da leitura crítica de dois textos que compõe
a primeira publicação ficcional da autora, Fluxo-Floema.
Utilizaremos para essa leitura, “Lázaro” e “O unicórnio” – escritos
paródicos que se apropriam de símbolos místicos/religiosos da
cultura ocidental e o transformam de modo ambivalente: ao
mesmo tempo em que rebaixam e invertem o sentido positivo do
símbolo, reiteram a sua potência. O desejo e a busca pelo místico,
nas figuras que compõe as narrativas em questão, são ao mesmo
tempo território de existência e ruína destes personagens.

Morte, Ressurreição e Delírio em “Lázaro”


Em “Lázaro”, Hilst dá voz ao personagem que retorna da
morte e que narra essa experiência em primeira pessoa, através
do fluxo de consciência, em uma perspectiva psicológica. Lázaro
é organizado a partir de três momentos que chamarei de Morte,

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 209


Ressurreição e Delírio. A narrativa acontece por meio do fluxo de
consciência e dos diálogos que Lázaro estabelece com seus
interlocutores. A variação de tempo é expressa a partir do
deslocamento – quando se altera o espaço, o tempo também se
altera, porém, as marcas textuais estão sempre ligadas ao
presente. A narrativa existe no gerúndio: tudo está sempre
acontecendo.
Em Morte, o personagem encontra-se e em diálogo com
Rouah, criatura grotesca, que se apresenta como um duplo do
Cristo. Lázaro tem consciência de que está morto, observa e
descreve todo o ritual do sepultamento, e quando se vê na cripta,
separado do mundo conhecido, sente o abandono de Deus e se
enche de medo:

[…] Algumas vozes dentro de mim tentam confundir-me: mas


tu eras amigo de Jesus, Aquele Homem Jesus, Aquele homem
Eu Mesmo, Aquele Homem o Outro, Aquele Homem Rouah.
Parado. Pousado. E ao redor dele um espaço indescritível.
Chegamos. Tenho mêdo. Um pequeno Vestíbulo. Depois a rocha.
Dentro da rocha, um lugar para o meu corpo. Olho pela última
vez a claridade da minha aldeia. Queria tanto ficar neste chão
inundado de sol, queria até... ser um animal se não fosse
possível ser eu mesmo, queria me agarrar à túnica das
mulheres feito uma criancinha, olho para o sul, para o norte,
para todos os lados, ah, Bendito, tudo em mim não quer morrer!
Agora sei que estou prêso a esse todo que sou, aspiro, duas,
três golfadas distendem o meu peito, seguro os ombros de Marta
e grito: Marta, Marta, ainda não estou pronto para ficar na
treva, ainda tenho tanto amor, ainda tenho mãos para trabalhar
a terra, toca-me, vê como essa carne é viva, olha-me Marta, eu
que sou tão você, olha-me eu que amo a tua força, os teus pés
colados a terra, a tua lucidez. É inútil. O meu corpo for
depositado no seu lugar. Estou acima dêle, a uma pequena
distância. Pairo sobre ele. Os meus amigos recuam. Olham-
me em silêncio. Inútil tentar qualquer gesto. Não me vêem.
Grito três vezes: Marta! Marta! Marta! Não me ouve. Rolam a

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 210


pedra. Fecham a entrada. Tudo está terminado. (HILST, 1970,
p. 92)

Rouah funciona como agente desestabilizador desta


primeira parte da narrativa. Tem a intenção de iniciar Lázaro na
experiência da morte. Rouah ri dos medos e das orações de Lázaro
e planta a decomposição em seu corpo: “Então ouve: tudo o que
Rouah cria do invisível, é filho de Rouah. No teu ventre ele colocou
o primogênito. Depois teu peito é que servirá de alimento para o
segundo. E tua cabeça será leito e leite para o terceiro” (HILST,
1970, p. 94). Lázaro, inconformado com a morte, resiste a Rouah
até o momento da ressurreição.

[…] Tu estás preparado Lázaro? É teu este corpo? Há alguns


anos que lutas com ele, não é? Apressa-te. Chegou a hora. E
de repente vejo Rouah: tôsco, os olhos acesos, o andar
vacilante, as pernas curtas, parecia cego, apesar dos olhos
acesos, as mãos compridas, afiadas, glabras, eram absurdas
aquelas mãos naquele corpo, todo ele era absurdo, inexistente,
nauseante. Rouah me vê. Agarro-me na pedra. Estou num canto.
De costas, Rouah estende as mãos e acaricia minhas nádegas.
Sai, maldito, sai. Rouah senta-se. Abre as pernas. Seu sexo é
peludo e volumoso. Coça-se, estrebucha, sem que eu saiba o
por quê. Abre a boca amarela e diz com voz tranqüila: Lázaro,
acostuma-te comigo, já sabes meu nome, e eu também sei o
teu, como vês. Um enorme silêncio. Um silêncio feito do escuro
das vísceras. Um silêncio de dentro do olho. Resolvo caminhar
colado a pedra, afastar-me. (HILST, 1970, p. 93)

A relação com Rouah se interrompe no momento da


Ressurreição. Quando Lázaro volta, a narrativa entra em um
segundo momento. O diálogo com Rouah é substituído por outras
vozes que podem ser sintetizados na figura do “outro”. Essa figura
do “outro” está ligada as relações estabelecidas na vida cotidiana/
prosaica – essa figura carrega, em suas intervenções,

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 211


sentimentos como o ciúme, a inveja, o complexo de inferioridade.
Os diálogos da segunda parte da narrativa tratam de reconstruir
a partir de fragmentos a experiência de Lázaro e a sua relação
com o Cristo – além de revelar todo o espanto, maldade e violência
com que sua experiência foi recebida pelos “outros”.

Lázaro tem uma ótima aparência, achas meu Senhor? Êle não
responde, apenas olha-me e sorri. Há uma certa impaciência
no rosto de alguns. Estão mudos, mas parecem dizer: porque
Êsse homem não fala? Por que fica misterioso de repente e
apenas olha Lázaro? Não somos todos seus amigos? Será que
é preciso morrer para que eu nos ressuscite, e depois nos ame?
Êle será realmente aquilo que desejamos? Sim, êles pensam
assim como estou lhes dizendo. (HILST, 1970, p. 101)

Nesta segunda parte do texto, Lázaro também se coloca a


narrar a perseguição/morte de Cristo. Vê e descreve o olhar e as
atitudes de Judas, vive e procura narrar a experiência do Cristo,
e sente de que a continuação de sua própria existência é um dos
motivos desta perseguição.
Por fim, no Delírio, que podemos considerar a terceira parte
da narrativa, Lázaro vive uma espécie de viagem temporal. O
personagem tem acesso ao grupo de monges, que vivem em um
tempo diverso. Tratam-se dos últimos monges da Terra,
perseguidos por acreditarem ainda no Cristo. Esses monges
negam as crenças para não serem mortos. Estão isolados e vivem
o fim de uma luta perdida.
O fluxo de consciência, o uso do tempo, a carga paródica, a
transformação na figura do herói aproxima sua escrita a
experiência de James Joyce, enquanto a presença constante do
nonsense, a impossibilidade de narrar e a estrutura dialógica da
narrativa, aproxima a sua escrita a experiência de Samuel
Beckett.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 212


A Lázaro é concedida a experiência de conhecer um outro
fim, ou a morte da fé. Neste outro fim, a tão esperada salvação
não acontece. Acorda de volta a seu tempo, vê a irmã Marta, e
termina a narrativa aterrado pela sua visão. Hilst inverte a fé
inerente dos personagens do texto-fonte, através da exposição dos
medos, das angústias, e dos conflitos internos e humanos de seus
personagens. Lázaro não consegue dar vazão a experiência
mística num mundo de desamor, descrença, incompreensão e
violência – e no fim, é esvaziada qualquer possibilidade de
salvação. A experiência do Lázaro de Hilst é em vão. Se na
narrativa bíblica A salvação de Lázaro a substância são questões
como o amor, a fé e a vida eterna, o “Lázaro” de Hilst funciona
como pretexto para o esvaziamento do sentido positivo do texto
fonte, já que acontece a partir da inversão do símbolo místico.

Pessoa, Escritora, Criança e Unicórnio em “O unicórnio”


Em “O unicórnio”, o texto se estrutura a partir da proliferação
de vozes narrativas que chamaremos de Pessoa, Escritora,
Criança e Unicórnio. Essas vozes se revezam no desenrolar do
texto e conjuntamente nos dão a dimensão complexa da
experiência de Hilst. Assim como em “Lázaro”, cada voz se
desenvolve a partir do fluxo de consciência e do diálogo com uma
série de interlocutores.
Quando a Pessoa se coloca, temos a expressão de uma série
de conflitos relacionais vividos por esta voz. Ela está em diálogo
com dois amigos – uma irmã e um irmão gêmeos e homossexuais,
que vivem, durante certo tempo, junto com essa narradora e seu
companheiro, numa chácara. No decorrer dos diálogos uma série
de conflitos relacionais se revelam, a pessoa é traída pelos irmãos,
(e esse elemento tem peso em sua transformação em unicórnio).
A transformação afasta seu companheiro. Pessoa perde seu
território de sobrevivência, seus interlocutores e sua forma
humana. A transmutação física altera forma e tom da narrativa.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 213


No início, a Pessoa divide o espaço da página com a Escritora.
Esta voz executa rasgos metalinguísticos na “história” que é
contada pela Pessoa. O papel da Escritora é revelar questões
ligadas ao processo de composição da escrita. Essa voz evidencia
o fracasso no ato de narrar, dialoga com a tradição literária através
da apropriação e do rebaixamento de referências, faz a reflexão
crítica do ato de escrever, enquanto este ainda está acontecendo.
É uma voz irônica e crítica – executa algo semelhante as quebras
de ilusão do teatro brechtiano.
A voz da Criança marca um momento de regressão temporal,
onde são mostrados os primeiros anos da infância, a experiência
com o pai-louco, os anos no internato, os primeiros contatos com
o universo místico e a descoberta da sexualidade e do corpo erótico.
Quando a experiência de regressão termina, Unicórnio passa a
ser a voz narrativa dominante, que se ocupa em narrar a
metamorfose, a banalização da experiência mística, e as
consequências de sua transformação: abandono, incomunicabilidade
e morte.
Neste texto, Hilst recupera a imagem ancestral do animal
místico, presente no imaginário humano desde de a pré-história.
Na caverna de Lascaux temos O Painel do Unicórnio composto pelas
imagens de cavalos e bois. Entre eles, temos uma grande e
enigmática figura de um quadrúpede com um longo traço retilíneo
dos possíveis sentidos está ligado a fertilidade e a afirmação da
vida. No Dicionário de Símbolos, de Chevalier e Gheerbrant, temos
diversos sentidos para o unicórnio, e um deles está associado à
cultura cristã, mais especificamente ao episódio da concepção
de Cristo, citado diretamente no desenrolar da narrativa de Hilst:

El unicornio, con su cuerno único en medio de la frente,


simboliza también la flecha espiritual, el rayo solar, la espada
de Dios, la revelación divina, la penetración de lo divino en la
criatura. Representa en la iconografía cristiana la Virgen

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 214


fecundada por el Espíritu Santo. Este cuerno único puede
simbolizar una etapa en la vía de la diferenciación: de la creación
biológica (sexualidad) al desarro1o psíquico (unidad ase-xual)
y a la sublimación sexual. Este cuerno único se ha comparado
a una verga frontal, a un falo psíquico (VIRI, 202); es el símbolo
de la fecundación espiritual. También es al mismo tiempo el
símbolo de la virginidad física. Los alquimistas ven en el
unicornio una imagen del hermafrodita; parece un contrasentido:
en lugar de reunir la doble sexualidad, el unicornio la
transciende. Se convirtió en la edad media en símbolo de la
encamación del Verbo de Dios en el seno de la virgen Maria.
(CHEVALIER; GHEERBRANT, 1986, p. 1038)

Trata-se de um símbolo ambivalente, que tem relações com


elementos como a pureza e a bondade, assim como possui sentidos
ligados a profanação, a sensualidade, a iniciação sexual, e o
êxtase:

[…] Na aula de religião: irmã, o que quer dizer virgem no parto,


antes do parto e depois do parto? O que é virgem? O que é
parto? O que é antes e depois de tudo isso? Isso é para decorar,
decore e pronto. Sou disciplinada, magrinha, uso tranças, tenho
muita vontade de ver Jesus no Sacrário. Termino a tarefa antes
de todo mundo e peço licença para rezar na capela. Fixo os
olhos no sacrário. Os olhos doem. Quero ser santa, quero morrer
por amor a Jesus, quero que me castigem se eu fizer coisas
erradas, quero conseguir a salvação da minha alma […]. (HILST,
1970, p. 152)

Com correspondência a experiências como a de Teresa


d’Avila – a Criança evoca a ambivalência de sua experiência
mística. O corpo tem presença fundamental na escrita de Hilst.
O corpo é múltiplo: sagrado, obsceno, erótico, performativo. O corpo
parece ser um território de passagem, e em “O unicórnio”, os

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 215


elementos de distanciamento entre as vozes narrativas e “os
outros” é exatamente a transfiguração corpórea.

A hora da visita acabou, dou as balas para Josete, Josete é


grande, sabe jogar bola ao cêsto, está no terceiro ginásio, acho
que ela é a menina mais bonita do colégio. As outras dizem
que ela tem os pés muito grandes, mas eu acho que ela é toda
linda. À noite tenho um sonho: eu e Josete de mãos dadas no
meio da floresta. De repente ela me abraça e o meu corpinho
estremece de prazer, é mais ou menos assim quando mamãe
me abraça, mas ainda mais gostoso. Depois fico sozinha olho
ao redor, e vejo que estou dentro de uma caixa de vidro. Encolho-
me num canto e nos meus braços começam a crescer pêlos
escuros. Sou uma aranha […]. Agora estou muito compenetrada
e ao mesmo tempo tenho mêdo: Jesus vai encontrar tudo em
ordem dentro de mim? (HILST, 1970, p. 154)

A ideia de metamorfose pode ser tratada como mais uma


referência cultural. A transformação da personagem nos leva as
Metamorfoses de Ovídio, poema narrativo latino. O poema de Ovídio
narra a transfiguração de deuses e homens em todo tipo de coisa:
animal, vegetal e mineral. As Metamorfoses são uma das fontes
que nos dá acesso a boa parte da mitologia greco-romana.
Inclusive a “massa informe e sem lucidez”, expressão utilizada
para se referir a Deus no desfecho de “Lázaro”, é uma citação
direta de Ovídio em seu poema sobre Caos – deus da confusão de
elementos, que dão origem ao universo.
Na modernidade, temos a Metamorfose de Kafka, onde Hilst
parece resgatar elementos para a composição de sua narrativa.
Assim como Gregor Samsa transformado em barata, o Unicórnio
de Hilst é percebido pelo outro de modo repugnante após a sua
transformação, e tem um fim semelhante ao herói kafkiano:
incomunicabilidade, abandono e morte.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 216


Assim como em “Lázaro”, os símbolos positivos da cultura
humana caem em profanação. A criatura mística que na tradição
simboliza a pureza é compreendida pelo mundo como seu inverso.
A transformação mística é tratada como doença:

Paro de falar, comprimo o peito com os braços feridos e logo


tenho um sobressalto porque ouço um ruído sinistro […] uma
voz límpida dizendo com doçura: a sarna de coelho é uma afecção
da pele, produzida por parasitas acarianos da família sarcóptide.
É enfermidade contagiosa e os coelhos que apresentarem a
sarna em estado muito adiantado devem ser sacrificados.
(HILST, 1970, p. 140)

A dimensão mística da experiência da metamorfose não é


reconhecida pelo mundo, que não demora em isolar a criatura. A
transformação é compreendida como sintoma de doenças como a
lepra e a sarna (referências igualmente místicas, símbolos do
castigo divino). No olhar “dos outros” a transfiguração é sinal de
sujeira, contaminação, castigo. A metamorfose tira do personagem
todo o aspecto de humanidade. Ele não pode ser comunicar, vive
isolado e exposto. A animalização só não atinge a consciência –
onde a criatura é abundantemente humana. Nesse aspecto o
personagem está muito próximo a Gregor Samsa.
Assim como em “Lázaro”, a narrativa é toda estruturada a
partir do fluxo de consciência e do diálogo com os interlocutores
de cada momento. Os sentidos positivos dos símbolos apropriados
são invertidos por meio da paródia e do rebaixamento. Em “O
unicórnio”, temos também a experiência da autoficção, que será
repetida diversas vezes na produção posterior de Hilda Hilst. “O
unicórnio” é semente dos personagens mais marcantes da
escritora. A voz da Criança se aproxima de Lori Lamby,
protagonista do Caderno Rosa.... A voz da Pessoa e do Unicórnio
se aproximam de Hillé, a Senhora D.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 217


Nas primeiras narrativas de sua produção ficcional, que
foram publicadas vinte anos após o início da carreira literária,
direcionam a produção dos próximos trinta anos de trabalho de
Hilda Hilst. A leitura crítica das primeiras ficções é fundamental
para a compreensão de seu projeto literário.

Considerações finais
Neste ensaio procuramos evidenciar interfaces da escrita
ficcional de Hilda Hilst a partir dos diálogos que a escritora
estabelece do campo formal, compositivo e temático com diversas
referências da cultura ocidental. Na Forma/Composição, Hilst
se apropria de procedimentos utilizados pela tradição moderna
irlandesa: O fluxo de consciência, o uso do tempo, a carga paródica,
a transformação na figura do herói aproxima sua escrita a
experiência de James Joyce, enquanto a presença constante do
nonsense, a impossibilidade de narrar e a estrutura dialógica da
narrativa, aproxima a sua escrita a experiência de Samuel
Beckett.
Durante a leitura das narrativas, vimos que a composição
caleidoscópica de Hilst envolve apropriações de fontes de diversos
tempos/espaços. Em “Lázaro” e “O unicórnio” temos a apropriação
paródica de dois símbolos da cultura religiosa/mística ocidental.
Nestes textos temos ainda as referências à tradição clássica com
as Metamorfoses de Ovídio e a referência a Franz Kafka, no enredo
de “O unicórnio”.
A Paródia parece ser, na escrita ficcional de Hilst, um dos
principais procedimentos compositivos. A partir da união de
fragmentos e da afirmação/inversão de sentidos dos textos-fontes,
a escritora pensa o papel da literatura na modernidade, bem como
a sua forma de produção e circulação. A escrita de Hilda Hilst se
constitui num território de diluição das fronteiras: está entre a
criação e a crítica, entre a ficção e a teoria. Parece questionar, a
partir da literatura, as fronteiras entre arte e pensamento,

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 218


afirmando assim o campo da criação como um território legítimo
de exercício do pensamento.

Notas
1
Entrevista de Alcir Pécora, concedida ao Itaú Cultural, por conta da
exposição dos arquivos da autora, Ocupação Hilda Hilst, que aconteceu
em março/abril na sede do Itaú Cultural em São Paulo. Esta entrevista,
e outras podem ser acessadas via youtube.com.
2
O parêntese é meu.

Referências

BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita. São Paulo: Escuta, 2001.

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Diccionario de los


Simbolos. Barcelona: Herder S.A, 1986.

GENETTE, Gerard. Palimpsestos. Belo Horizonte: Faculdade de


Letras da UFMG, 2006.

HILST, Hilda. Fluxo. Floema. São Paulo: Perspectiva, 1970.

HUTCHEON, Linda. Uma teoria da paródia. Rio de Janeiro: Edições


70, 1985.

LODGE, David. A arte de ficção. Porto Alegre: L&PM, 2011.

PELLEGRINI, Tânia. Realismo: Postura e método. Letras de Hoje.


Porto Alegre, v. 42, n. 4, dezembro 2007.

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PREÂMBULO A UM RETRATO DO ARTISTA QUANDO JOVEM
NO CONTO “ARÁBIA”, DE JAMES JOYCE

Autora: Elizane de Oliveira Santos (UNIANDRADE)


Orientadora: Profa. Dra. Mail Marques de Azevedo (UNIANDRADE)

RESUMO: A construção do personagem Stephen Dedalus, iniciada nos


manuscritos do romance autobiográfico Stephen herói, precede de muito
a publicação de Retrato do artista quando jovem (1914) e Ulisses (1922).
Da mesma forma, observa-se nos personagens dos contos da infância
de Dublinenses, particularmente em “Arábia”, a sugestão do perfil
psicológico e emocional do herói joyciano, desenvolvido nas obras
subsequentes. Este trabalho se propõe a analisar em “Arábia”, por
meio do contraste entre imagens de luz e sombra, indícios desse perfil
na relação do personagem com o ambiente físico e social da comunidade
em que vive. A análise da técnica narrativa em primeira pessoa, feita a
partir da consciência do protagonista, o menino anônimo, revela: o
despertar do amor e da sexualidade; a defesa da individualidade; a
revolta contra a indiferença da família e, finalmente, a epifania
reveladora que o faz consciente de sua insignificância.
PALAVRAS-CHAVE: O herói joyciano. Dublinenses. Retrato do artista
quando jovem.

Introdução
Dublinenses, a primeira obra em prosa publicada por Joyce,
em 1914, é uma coletânea de quinze contos ambientados na
cidade de Dublin. Escritos a partir de 1904, os contos enfocam
diversos aspectos da vida da cidade e de seus habitantes, que
poderiam representar o coração de qualquer cidade do mundo,
segundo afirmativa do próprio autor.
Observa-se nas personagens das três primeiras
narrativas, que retratam a infância, particularmente no menino
anônimo de “Arábia”, a sugestão do perfil psicológico e emocional

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 220


do herói joyciano, Stephen Dedalus, cuja construção é iniciada
nos manuscritos do romance autobiográfico Stephen herói. A
caracterização do narrador-protagonista de “Arábia”, assim como
as razões de seus conflitos íntimos – relações familiares
conturbadas, a presença marcante e dominadora da Igreja Católica
e o despertar da sexualidade –, constituem um preâmbulo à
caracterização da personagem principal de Retrato do artista
quando jovem, Stephen Dedalus, incluída também, posteriormente,
na trama de Ulisses. Em seu comentário à edição de 2003, da
Civilizaçao brasileira, na segunda contra capa, de Dublinenses,
Ênio Silveira põe em destaque o caráter prefacial dos contos:
“Dublinenses, microcosmo e painel, é a porta de acesso por que
se penetrará no universo joyciano, universo de luz e sombra, de
calor humano e de fria, quase insuportável lucidez”.
Assim, este trabalho se propõe, inicialmente, a analisar
em “Arábia” indícios do perfil do herói, na relação da personagem
com o ambiente físico e social da comunidade em que vive, por
meio do contraste entre imagens de luz e sombra. A análise de
técnica narrativa em primeira pessoa, feita a partir da
consciência do menino anônimo, revela os conflitos íntimos que
angustiam o protagonista: paralelamente ao despertar do amor e
da sexualidade, a percepção gradual da natureza falível e
arbitrária dos que estão imbuídos de autoridade, seja na família,
na escola ou na Igreja, e, finalmente, a epifania reveladora que o
faz consciente de si mesmo. São atitudes e concepções do próprio
James Joyce, que as atribui à sua criatura. Diz José Roberto
O´Shea, na apresentação de sua tradução de Stephen herói:

Em Stephen Herói Joyce narra, topicalizando a figura do “herói”


Stephen Dedalus, seu próprio conflito com a Igreja e a família,
sua atitude crítica perante o nacionalismo irlandês, sua
incursão na sexualidade e sua defesa da individualidade e da
arte. (O´SHEA, 2012, p. 8)

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 221


Traços de Stephen Dedalus, a personagem de inspiração
autobiográfica, podem ser vislumbrados já no protagonista-
narrador de “Arábia”. Na análise de imagens e do foco narrativo
do conto serão destacados aspectos correspondentes em Retrato
do artista quando jovem.

O herói joyciano: encantamento e desencanto


A ação sucinta do conto pode ser resumida em poucas
palavras: a história de um menino pobre, que vive com os tios em
um bairro miserável de Dublin, e que se apaixona por uma
mocinha, designada apenas como a irmã de Mangan. O amor o
faz sofrer a ponto de torná-lo incapaz de desviar os pensamentos
da amada, mesmo em lugares e situações nada românticas.
Finalmente, a menina, a quem adorava de longe, toma a iniciativa
de lhe dirigir a palavra. Profundamente encabulado, o menino, a
princípio, não sabe o que responder. É a mocinha que conduz o
diálogo para o grande acontecimento na cidade: o bazar Arábia. O
menino apaixonado promete trazer-lhe uma lembrança, se for ao
bazar. A partir dessa noite, loucas e intermináveis fantasias
consomem seus pensamentos.

À noite, no quarto, durante o dia, na aula, sua imagem


interpunha-se entre meus olhos e a página que me esforçava
em ler. No silêncio em que minha alma vagava luxuriosamente,
as sílabas da palavra Arábia atiravam-me num encanto oriental.
(JOYCE, 2003, p. 32)

O conto é narrado em primeira pessoa pelo narrador-


personagem que começa descrevendo a rua North Richmond, uma
rua sem saída, muito tranquila, bloqueada em uma das
extremidades por uma casa desabitada. Na rua silenciosa, ecoam
os gritos dos meninos que brincam até se esbrasearem, para fugir
ao vento gélido. As imagens sensoriais contrastantes, auditivas

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 222


% rua silenciosa, gritos que ecoam % e tácteis % esbrasearem,
vento gélido %, não apenas descrevem locais concretos, mas
sugerem sentimentos e emoções a eles associados.
Quando os meninos saem para brincar, as casas já estão
mergulhadas na sombra e as vielas, por trás das casas, escuras e
lamacentas. Divertem-se provocando os rudes moradores dos
barracos, aventurando-se até os portões “de jardins escuros e
gotejantes que soltavam odores das borralheiras” (JOYCE, 2013,
p.26). A alternância de luz e sombra, de frio e quente, de cegueira
e visão, presentes no conto, estabelece correspondências
temáticas que ligam partes da narrativa e lhe conferem coesão.
O céu de um violeta cambiante e a pálida luz das lanternas
nos postes é insuficiente para quebrar a escuridão que, por um
lado, é benéfica porque os protege da vigilância dos mais velhos,
do tio virando a esquina, ou da irmã de Mangan, que o chama
para o chá. A imagem da criatura amada, porém, está envolta em
luz:

(...) dirigíamo-nos à escada da casa de Mangan, no alto da qual


ela nos esperava. A silhueta do seu corpo recortava-se na luz
da porta entreaberta. (...) e eu ficava junto à balaustrada
contemplando-a. O vestido rodava quando ela movia o corpo e
a macia trança de seu cabelo saltava de um ombro para outro.
(JOYCE, 2003, p. 30)

Associado à imagem da beleza, o símbolo da água é motivo


recorrente em “Arábia”, bem como em Retrato e nos livros
subsequentes, tanto em aspectos agradáveis como revoltantes.
Em contraposição aos quintais úmidos e odorosos, o menino
apaixonado tem uma explosão de amor, quando olha através de
uma janela quebrada, em uma noite chuvosa:

Certa noite, fui à sala dos fundos onde o padre havia morrido.
Era uma noite chuvosa e eu ouvia a chuva bater contra a terra,

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 223


as finas e incessantes agulhas de água tamborilando nos
canteiros encharcados. Bem longe, brilhava uma luz ou janela
iluminada. Agradava-me enxergar tão pouco. Os meus sentidos
todos pareciam embotar-se e, a ponto de desfalecer, apertei as
mãos até meus braços começarem a tremer, murmurando: “Ó
amor! Ó amor!” (JOYCE, 2003, p. 31)

Aos seis anos e meio, no Colégio de Conglowes. Stephen


Dedalus é empurrado para dentro de uma valeta de água fria e
visguenta, “Tinha sido maldade de Wells empurrá-lo na valeta
(...). Como estava fria e visguenta a água! Um garoto vira uma
vez uma ratazana cair dentro da escuma” (JOYCE, 1984, p.5). O
motivo se repete no livro desde que o pequenino Stephen molha
a cama – “no começo fica quentinho, depois vai esfriando” %,
passando pelo episódio da valeta e várias referências
desagradáveis a água de lavagem e de esgoto até à epifania que
ocorre no final do capitulo quatro, em que a moça que caminha à
beira do mar parece ao jovem, incerto quanto ao caminho a
seguir, transformar-se “em uma estranha e linda ave marinha”.
(...) “ – Deus do céu! – exclamou a alma de Stephen, numa
explosão de alegria profana” (p. 175).

A imagem dela entrara na sua alma para sempre, e palavra


alguma tinha quebrado o silêncio sagrado do seu arroubo. Os
olhos dela o tinham chamado e a sua alma saltara a tal apelo.
Viver, errar, cair, triunfar, recriar a vida para além da vida! Um
anjo selvagem lhe tinha aparecido, o anjo da mocidade e da
beleza mortal, um mensageiro das cortes esplêndidas da vida,
para escancarar diante dele, num instante de deslumbramento,
os portões de todo todos os caminhos do erro e da glória. Seguir,
seguir, sempre para diante, para diante! (JOYCE, 1984, p. 175)

O arroubo da revelação do amor para o menino anônimo e


do chamamento da vida para Stephen Dedalus substitui nos dois

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 224


personagens o sagrado pelo profano. Sozinho no quarto onde o
padre morrera, o menino ouve a chuva tambolirando nos canteiros,
mas enxerga pouco. Agrada-lhe não enxergar o jardim do
sacerdote, mas divisar bem longe uma luz ou janela iluminada.
Stephen Dedalus está só em seu silêncio sagrado, de onde o
arrebata um anjo selvagem, mensageiro não das cortes celestes,
mas das cortes esplêndidas da vida; não da imortalidade, mas da
mocidade e da beleza mortal.
Perdido em seu mundo encantado, o menino, em “Arábia”,
imagina conduzir incólume seu cálice, na realidade os pacotes
que carrega através de uma multidão de inimigos. A referência a
O´Donovan Rossa, herói revolucionário irlandês, e aos problemas
do país, compõe o viés político do tripé pátria-igreja-família
No mundo de ambos mesclam-se o ideal imaginário e a
realidade da miséria circundante, humana e econômica. O
menino em “Arábia” convive:

(...) com os bêbados e as mulheres que pechinchavam, em meio


às imprecações dos trabalhadores, aos gritos dos garotos que
montavam guarda às barricas cheias de cabeças de porco e à
voz fanhosa dos cantores de rua, que interpretavam uma canção
popular sobre O´Donovan Rossa ou uma balada a respeito dos
problemas do país. (JOYCE, 2003, p.30-31)

Stephen Dedalus criança, de volta a casa para as férias


de natal, assiste aterrorizado à discussão acalorada entre Dante,
a tia que defende a Igreja católica, e o Sr. Dedalus e seu convidado,
Sr. Casey, partidários do líder protestante, Stuart Parnell. A
pressão dos conflitos sobre o lar, a Igreja e o país transformam a
cena familiar, que prenunciava a paz e a alegria do natal, em um
caos de amargura.
Crueldade e violência não fazem parte da caracterização
da figura paterna nos dois textos. O tio anônimo e o Sr. Dedalus

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pecam pela indiferença e falta de percepção das necessidades
emocionais dos meninos sob sua guarda. O texto de Retrato não
culpa o Sr. Dedalus por sua decadência financeira lenta, mas
inexorável, que a personagem atribui a supostos inimigos. Coloca
em evidência, porém, seu esnobismo, pretensão e desprezo pela
gentalha. Em uma viagem a Cork, onde o Sr. Dedalus vai vender
uma propriedade, a personagem é revelada por inteiro, por
intermédio da consciência de Stephen, jovem adolescente.
Stephen envergonha-se das atitudes do pai: alguém que faz
referências sentimentais ao passado; um bêbado irresponsável
que fala demais, deixa-se lisonjear facilmente, demonstra por
vezes jovialidade excessiva irreprimível e é cheio de si: “Stephen
observava os três copos serem erguidos do balcão à medida que
seu pai e seus dois camaradas bebiam (...). Um abismo de felicidade
ou de temperamento separava-o deles” (JOYCE, 1984, p.93-94).
Stephen sente-se completamente afastado do pai e,
consequentemente, da própria família. Parece-lhe ser filho e
irmão adotivo. “A sua infância estava morta ou perdida; e, com
ela, a sua alma, já agora incapaz de alegrias simples. Ele estava
sendo impelido rumo à vida como o disco estéril da lua” (JOYCE,
1984, p. 94). No conto “Arábia”, a figura paterna representada pelo
tio provedor provoca grande angústia no menino-personagem pela
longa espera no dia combinado para ir ao bazar.
Paulo Vizioli, em James Joyce e sua obra literária, afirma
que o escritor vinculava a imagem do pai, John Stanislaus Joyce,
com a Nação:
(...) otimista incurável, dono de um senso de humor irreverente
e de uma língua ferina, amante da música, mas alcóolatra e
irresponsável, dilapidou todos os bens deixados por seus pais
em Cork. (...) Não obstante ter herdado todas as caraterísticas
do temperamento paterno, James Joyce se julgava diferente
do genitor, julgando-se dotado da coragem que faltava a este
em sua rebeldia perante a sociedade e suas convenções. Por

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conseguinte, já na adolescência, passou a desprezar o pai,
vendo-o como o irlandês típico, jactancioso mas inoperante,
capaz até mesmo de aviltar-se para obter um trago. (VIZIOLI,
1991, p.16-17)

Vizioli acrescenta, porém, que na vida real Joyce nutria


certa simpatia pelo pai % seu tratamento da figura paterna, nos
livros, é implacável % e admirava suas tiradas espirituosas,
muitas das quais aproveitou em suas obras. A imagem da mãe,
católica devota, por outro lado, está ligada à Igreja e aos frutos da
educação jesuítica: o gosto pela argumentação e pelos sistemas
elaborados de pensamento que Joyce viria a desenvolver.
Em “Arábia”, a associação do padre muito caridoso, antigo
morador da casa, com o quintal abandonado, põe em relevo os
traços negativos da imagem do sacerdote.

O jardim negligenciado atrás da casa tinha uma macieira e


arbustos tortos em meio aos quais encontrei a enferrujada bomba
de bicicleta do falecido morador. Ele tinha sido um padre muito
caridoso; no testamento, deixou todo o dinheiro para instituições
e todos os móveis da casa para a irmã. (JOYCE, 2013, p. 25)

Percebe-se uma visão deturpada do Jardim do Éden. A


descrição do jardim no original inglês % “contained a central
apple tree” % (JOYCE, 1992, p.33, ênfase acrescentada) está mais
de acordo com a versão bíblica, em Gênesis 2, 9: “e a árvore da
vida no meio do jardim”, o que favorece o reconhecimento da
imagem do paraíso após a queda. Como as bombas antiquadas
dispunham de um longo cano de borracha, cuja forma figura a
serpente traiçoeira, “o mais astuto de todos os animais dos
campos,” está completa a imagem.
Joyce viveu em constante conflito com o que chamava a
paralisia da Irlanda, “não fazia segredo de sua repulsa pelo torpor

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 227


intelectual em volta e a abjeta adesão à madre Igreja” (O’BRIEN,
1999, p. 21).
Ele cuspia na religião e no sentimento. Deprimiam-no e
causavam-lhe asco. Exatamente como seu país. Disse que
deixava o país pelo temor de sucumbir à doença nacional,
provincianismo, filosofia de botequim, trapaça, vazio e uma
verborreia que reservava os sentimentos para Deus e os
mortos. (O’BRIEN, 1999, p. 25)

No conto, a irmã de Mangan é menos que perfeita. Ela


estava esplêndida, mas há detalhes discordantes: uma ponta da
anágua aparecendo e o ficar de conversa ao cair da noite no portão
não se coadunam com os rígidos padrões morais impostos pela Igreja.
Enquanto falava ela girava uma pulseira de prata que usava no
pulso (...). Ela segurava uma das barras, inclinando a cabeça. A
luz do lampião do outro lado da rua revelava a curva nívea do
pescoço, iluminava os cabelos que ali repousavam e, descendo,
iluminava os dedos agarrados ao corrimão. Escorregava pelo
lado do vestido e revelava a ponta branca da anágua, visíveis
naquele momento de descontração. (JOYCE, 2003, p. 39)

A pulseira de prata da menina contém uma referência


implícita às trinta moedas de prata pagas a Judas, que não
suportou o remorso e enforcou-se. Já a associação entre tranças,
cordas e o enforcamento de Judas é explicita: “...as suaves cordas
do cabelo balançavam de um lado para outro” (JOYCE, 2013, p.26,
ênfase acrescentada).
Mas, finalmente chega o dia tão esperado:
Na manhã de sábado lembrei a meu tio que desejava ir à
quermesse. Ele atarefava-se junto ao porta-chapéus,
procurando a escova, e respondeu rispidamente: % Já sei,
menino, já sei. (...) Senti que o mau humor imperava na casa e
fui desanimado para a escola. Fazia um frio implacável e meu
coração já se mostrava receoso. (JOYCE, 2003, p 32)

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Os pressentimentos do menino se concretizam. Depois de
uma espera interminável, começa a andar pela sala com os punhos
cerrados. Às nove horas, a chave gira na fechadura e ele ouve o
tio resmungar e o porta-chapéus balançar ao peso de seu casaco,
sinais que ele sabia interpretar. O jantar já está a meio, quando
o menino se encoraja a pedir o dinheiro. O homem, que
certamente se demorara em algum bar, havia esquecido, mas
limita-se a gracejar: “ – As pessoas estão todas na cama a essa
hora, disse” (JOYCE, 2013, p 29). Em semelhança com o Sr. Dedalus,
que adorava exibir-se no canto, o tio começa a recitar o poema “O
adeus do árabe a seu corcel”, certamente lembrado pela referência
a Arábia, para uma plateia de uma pessoa só, a tia do menino.
O deslocamento de trem até o local da quermesse é
insuportavelmente lento: “Depois de um atraso insuportável o
trem afastou-se lentamente da estação. Avançou em meio a casas
em ruínas e atravessou o rio cintilante” (JOYCE, 2013, p 30). E à
chegada, o “imenso edifício, ostentando o mágico nome”, está
parcialmente às escuras e quase todas as barracas fechadas.
Sentindo-se perdido, o menino recorda com dificuldade o motivo
que o trouxera àquele local. O lugar estava parecido com uma
igreja, no final da missa. O único som que ouve é o tilintar de
moedas caindo em uma bandeja vindo da barraca em que dois
homens contam a féria do dia. Esta menção sugere novamente a
religião no conto. A realidade cruel afasta a fantasia e os impulsos
amorosos do cavaleiro andante, que busca conquistar um troféu
para a jovem amada.
A epifania do narrador-personagem se dá neste momento,
quando se vê diante da percepção da sua própria insignificância.
É um momento de revelação negativa, sente-se pequeno, era
apenas um menino com algumas moedinhas no bolso. Percebe a
traição da fantasia que o acompanha. Ele sente raiva da vida; da

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 229


pobreza - aquelas moedinhas no bolso não poderiam comprar algo
que estivesse a altura da sua amada -; da opressão dos mais fortes,
onde a figura da moça da loja, que é inglesa e trata-o com desprezo,
se faz escancaradamente; sente raiva da realidade cruel, de ter
criado e vivido uma fantasia.
Stephen Dedalus, em O retrato, quando vê a jovem entrando
no mar também tem um momento esplendoroso de epifania que
o faz refletir intensamente sobre a beleza dos seres humanos e
da natureza, como inspiração do trabalho do artista, capaz de
transformar magicamente a realidade em arte:

Uma rapariga apareceu diante dele no meio da correnteza;


sozinha e quieta, comtemplando o mar. Era como se
magicamente tivesse sido transformada na semelhança mesma
duma estranha e linda ave marinha. (...) O peito era de um
pássaro, macio e leve, tão leve e macio quanto um pombo de
penas negras. (...) calmamente, afastou os olhos dele e os
abaixou para a correnteza, graciosamente enrugando a água
com o pé, para lá e para cá. O primeiro ruído leve da água assim
agitada graciosamente quebrou o silêncio; um ruído vagaroso,
leve, sussurrante, leve como os sinos do sono; para lá e para
cá, para lá e para cá; um leve rubor tremulava em suas faces. –
Deus do céu! – exclamou a alma de Stephen, numa explosão
de alegria profana. (JOYCE, 1984, p. 174)

A visão naquele momento era que um anjo selvagem lhe


tinha aparecido “para escancarar diante dele, num instante de
deslumbramento, os portões de todos os caminhos do erro e da
glória. Seguir, seguir, sempre para a diante, para adiante” (JOYCE,
1984, p. 175). Devia viver, errar, acertar, cair, levantar, recriar a
vida! Voar como um pássaro para fugir da paralisia que o
assombrava e alcançar os alvos mais altos e longínquos que
pudesse.

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Conclusão
O tempo da ação propriamente dita, em “Arábia”, estende-
se da resolução da personagem de trazer do bazar, de nome
exótico, um presente para a mulher amada, até o desencanto
final, e a revelação de que vivia uma mentira. O espaço de tempo
compreendido certamente não excede alguns dias. Na análise de
imagens e do foco narrativo do conto, o preâmbulo destaca
aspectos correspondentes em Retrato do artista quando jovem.
Como romance autobiográfico, por outro lado, o Retrato do
artista quando jovem narra a história do desenvolvimento de uma
única personagem da infância até a maturidade o que deve cobrir
no mínimo uns vinte anos. No processo de crescimento, a criança
tem de enfrentar o impacto das diferentes forças ativas no mundo
em que vive sobre sua individualidade. Assim, a criança está
sujeita às pressões da família, da Igreja e do próprio país, forças
que tentam moldá-la de acordo com certos princípios. Em “Arábia”,
o menino faz comentários curtos, mas significativos a respeito
do tio que chega em casa, atrasado e resmungando. O menino
sabe que o tio está bêbado. Isso é dito explicitamente em Retrato,
onde Stephen Dedalus se desencanta do pai. Mas em “Arábia”, o
desencanto é apenas sugerido.
Indícios do perfil do herói, na relação da personagem com
o ambiente físico e social, se mostram por meio do contraste entre
imagens de luz e sombra, onde, na análise da técnica narrativa
em “Arábia” (sempre vendo as coisas pelos olhos da personagem)
revelam um ambiente estático, gélido, úmido e odoroso que os
remetem a sentimentos e emoções refletidas, então, na relação
da personagem com o ambiente físico e social da comunidade em
que vive.
Joyce não fazia segredo de sua repulsa pela paralisia
intelectual de seus conterrâneos e pela madre Igreja. Segundo
Edna O’Brien, Joyce “reconhecia que a família era um ninho do
qual devia voar, mas também sabia que aquelas criaturas

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 231


encalhadas e aprisionadas(...) constituía o potente material de
suas obras futuras” (O’BRIEN, 1999, p.18). Embora tivesse rompido
com a igreja Católica quando ainda adolescente, em outro sentido
jamais a deixou, “a doutrinação pela mãe e pelos padres fora
demasiado intensa” (p.21).
Apesar de tudo, a obra de Joyce é toda voltada para a Irlanda
e para o simbolismo religioso, como se viu na análise de Arábia e
paralelos estabelecidos com Retrato do artista quando jovem.
Em que pese a diferença do tempo da ação, a análise da
personagem central do conto, o menino anônimo, e do romance,
Stephen Dedalus, com base em imagens sensoriais contrastivas,
mostrou-se instrumento apropriado para desvelar os traços que
caracterizam o herói joyciano. Aparentemente diversa, também,
é a técnica narrativa de Joyce, nas duas obras: um narrador-
personagem que relata experiências em primeira pessoa e o
narrador não identificado de o Retrato, que narra em terceira
pessoa os acontecimentos da vida do herói. Em qualquer dos casos,
porém, Joyce apresenta as coisas como percebidas pelos olhos e
pela mente do próprio herói, ao invés de utilizar-se da
apresentação impessoal e desinteressada.

Referências

JOYCE, J. Dubliners. Hertfordshire: Wordsworth Classicis, 1992.

_____. Dublinenses. 8. Ed. Trad. Hamilton Trevisan. Rio de Janeiro:


Civilização Brasileira, 2003.

_____. Dublinenses. Trad. Guilherme da Silva Braga. Porto Alegre:


L&PM, 2013.

_____. Retrato do artista quando jovem. 2. Ed. Trad. José Geraldo


Vieira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984.

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_____. Stephen Herói. Trad. José Roberto O’Shea. São Paulo: Hedra,
2012.

O’BRIEN, E. James Joyce. Trad. Marcos Santarrita. Rio de Janeiro:


Textos & Formas Ltda, 1999.

O’SHEA, J. R. Apresentação. In: JOYCE, J. Stephen Herói. Trad.


José Roberto O’Shea. São Paulo: Hedra, 2012. p. 7-13.

VIZIOLI, P. James Joyce e sua obra literária. São Paulo: EPU, 1991.

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SHAKESPEARE NO CINEMA: O FANTASMA NO HAMLET
DE SHAKESPEARE E DE ALMEREYDA

Autora: Fernanda Korovsky Moura (UFSC)


Orientadora: Profa. Dra. Márcia Regina Becker (UTFPR)

RESUMO: De acordo com Robert Stam (2005), adaptações


cinematográficas são interpretações do texto literário em uma mídia
diferente, o cinema. Portanto, cada diretor oferece novas possibilidades
de traduzir o texto escrito para a tela do cinema, proporcionando-lhe
uma nova leitura, influenciada pela situação sociocultural do momento
em que o filme se insere. As obras de William Shakespeare estão entre
as que receberam mais adaptações cinematográficas. Hamlet já teve
mais de uma dezena de versões nas últimas décadas, desde filmes
mudos a releituras contemporâneas. Um deles foi lançado em 2000,
dirigido por Michael Almereyda, e transporta a trama shakespeariana
para a cidade de Nova York no século XXI. O presente trabalho se
propõe a analisar o personagem do fantasma do pai de Hamlet na peça
de 1600 e como ele foi retratado no filme de Almereyda, discutindo as
consequências e os efeitos que ela provoca.
PALAVRAS-CHAVE: William Shakespeare. Hamlet. Michael Almereyda.
Fantasma. Adaptações cinematográficas.

Durante o primeiro semestre de 2013, uma das disciplinas


optativas da grade curricular do curso de Letras da Universidade
Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) chamou a atenção dos
alunos a tal ponto que a sala de aula não comportou o número de
interessados, houve lista de espera. Tal disciplina foi
“Shakespeare no Cinema”, ministrada pela Profa. Dra. Márcia
Regina Becker. O entusiasmo dos alunos é compreensível, eu
mesma acordei cedo no dia do registro da matrícula para não
arriscar o meu lugar na turma. William Shakespeare é um dos,
senão o, grandes nomes da literatura mundial e todo aluno de
Letras, principalmente os apaixonados por literatura, têm

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interesse em conhecer melhor o seu legado. E que maneira mais
atraente do que através do cinema? Assim une-se o útil ao
agradável.
O presente artigo é, portanto, fruto das discussões que
ocorreram durante as aulas desta disciplina. As duas peças
estudadas neste semestre, além de suas diversas adaptações
cinematográficas, foram Hamlet (1600) e Romeu e Julieta (1595-
6). Ater-me-ei aqui, no entanto, a Hamlet, com base no trabalho
realizado para a disciplina mencionada em conjunto com a aluna
Amanda Arruda Venci. Mais especificamente, focarei na relação
entre as representações do personagem do fantasma do Rei na
peça de Shakespeare e na adaptação ao cinema feita pelo diretor
Michael Almereyda em 2000. Almereyda foi, também, responsável
por outros filmes marcantes como Twister (1990), Nadja (1994) e
A maldição da múmia (1998). Além de Hamlet (2000), Almereyda
adaptou para o cinema a peça Cymbeline de Shakespeare em 2014.
O filme aqui em análise foi lançado no Brasil sob o título Hamlet:
vingança e tragédia, com Ethan Hawke no papel do príncipe Hamlet,
Sam Shepard como o fantasma, Julia Stiles como Ofélia e Bill
Murray no papel de Polônio.

Fantasmas em Shakespeare
Eventos sobrenaturais são ocorrências comuns nas peças
shakespearianas. Na realidade, o sobrenatural permeava todo o
pensamento popular no período elisabetano, quando Shakespeare
escrevia. Em seu livro Ghosts in Shakespeare (2010), L. W. Rogers
analisa os episódios sobrenaturais em seis peças de Shakespeare:
Hamlet, Macbeth, Ricardo III, Júlio César, Tróilo e Créssida e O conto
do inverno. Rogers (2010, p. 4) propõe ao leitor a questão sobre
qual seria a intenção de Shakespeare ao inserir fantasmas e
fadas em suas peças. Seria um artifício dramático e artístico ou
seria uma interpretação válida e condizente com a época das
verdades da natureza?

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Rogers escreveu em 1949. Hoje, no início do século XXI e
após a emergência das teorias pós-estruturalistas, sabe-se que a
intenção do autor pouco importa. Assim que o texto é publicado -
ou encenado -, ele se desassocia do autor e passa a ter vida própria.
Como Roland Barthes já escrevia no final da década de 1960, “a
escritura é a destruição de toda voz, de toda origem” (2004, p. 57).
Contudo, os escritos de Rogers ainda são válidos, principalmente
no que tange seus estudos sobre a presença do sobrenatural nos
textos de Shakespeare, além das questões de intenção e autoria.
Em sua análise de Hamlet, Rogers não duvida da
consciência do príncipe dinamarquês de que existe uma
existência após a morte corporal. Portanto, não seria a dúvida
desta existência que o atormenta, mas, sim, as condições desta
existência. Como seria a vida após a morte? De fato, se
analisarmos a seguinte passagem, parte do célebre solilóquio de
Hamlet, o argumento de Rogers se torna plausível:

[...]
HAMLET Podendo, ele próprio, encontrar seu repouso
Com um simples punhal? Quem agüentaria fardos,
Gemendo e suando numa vida servil,
Senão porque o terror de alguma coisa após a morte -
O país não descoberto, de cujos confins
Jamais voltou nenhum viajante - nos confunde a vontade,
Nos faz preferir e suportar os males que já temos,
A fugirmos pra outros que desconhecemos? (SHAKESPEARE,
2005, 3.1.63)

A morte, para Hamlet, é um país não descoberto, é algo


desconhecido, por isso temeroso. Se ele já conhecesse as
condições do além-vida, se pudesse contar com os relatos de
viajantes que de lá regressaram, ele certamente deixaria essa
vida para seguir a sua viagem. Hamlet, por conseguinte, vê a
vida como uma jornada. Em nenhum momento ele duvida da

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existência de algo além da vida corpórea, por isso a sua rápida
aquiescência da história contada por seus três amigos, Marcelo,
Bernardo e Horácio, que disseram ter visto o fantasma de seu
pai. Ao contrário de Horácio, que é mais relutante em aceitar a
narração da aparição do fantasma.
Na segunda cena do Ato 1, ao receber de Horácio o relato
de que a aparição de fato surgira e que ele reconhecera o seu pai,
Hamlet apenas pergunta onde tal evento acontecera e se eles
não haviam falado com o fantasma. Hamlet não descrê a história,
apenas diz que ela lhe perturba. Na noite seguinte, Hamlet fica
de prontidão ao soar da meia-noite e vê com seus próprios olhos o
fantasma de seu pai. Rogers argumenta que o fantasma não
poderia ser fruto da mente perturbada e criativa de Hamlet, porque
ele não foi o primeiro a descobri-lo (2010, p. 12). Além disso, Rogers
afirma ser a aparição sobrenatural um retorno literal do pai de
Hamlet à terra dos vivos, já que Hamlet não foi o único a vê-lo
(mesmo que haja uma ocasião na peça em que o fantasma não é
visto por sua mãe, Gertrudes, que será discutida mais adiante
neste artigo). Além dele mesmo, Bernardo, Marcelo e o sensato
Horácio são testemunhas do evento sobrenatural (2010, p. 15).
O fantasma é peça intrínseca da trama de Hamlet. Sem
tal personagem, Hamlet não teria desenvolvido a suspeita do
assassinato de seu pai por seu tio e, por isso, não elaboraria um
plano de vingança. As representações desse personagem-chave
na peça de Shakespeare e na adaptação cinematográfica de
Michael Almereyda serão analisadas a seguir.

O Hamlet de Almereyda
Em primeiro lugar, é necessário discutir a adaptação
cinematográfica do texto literário ou dramático em um contexto
pós-estruturalista. Sob essa perspectiva, o filme não é visto como
uma mera transposição do texto literário para as telas do cinema
- mesmo porque tal feito seria impossível, já que o texto literário

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e o filme são mídias diferentes -, mas, sim, como uma
interpretação do texto. Tal posicionamento teórico confere mais
liberdade ao diretor cinematográfico, que trabalha o texto literário
de modo a buscar uma das possíveis formas de adaptá-lo
(modificando-o, atualizando-o e adequando-o) para o cinema.
Robert Stam (2005) desmistifica a visão preconceituosa
da adaptação cinematográfica que, para muitos, ainda é
considerada uma agressão ao texto literário, uma violação, uma
traição, entre outras palavras pejorativas. Além disso, ele
questiona o status de superioridade normalmente atribuído à
literatura em relação ao cinema (STAM, 2005, p. 3-4). Na verdade,
não se pode atestar que uma mídia é superior à outra; elas são
distintas e, por isso, oferecem possibilidades e desafios diferentes.
Ao invés da adaptação cinematográfica como infidelidade,
Stam sugere o termo intertextualidade. Ele propõe diversas
analogias para uma nova perspectiva da adaptação
cinematográfica: um modelo Pigmaleão, em que o filme traz o
texto literário à vida; um modelo ventríloquo, cujo filme dá voz às
personagens mudas dos livros; um modelo alquímico, em que o
diretor de cinema transforma as impurezas do romance em puro
ouro; ou um modelo possessivo, no qual o corpo da adaptação fílmica
é possuído pelo orixá do texto literário (STAM, 2005, p. 24).
Analogias à parte, fica claro que a adaptação cinematográfica de
um texto literário ou dramático é uma interpretação proposta pelo
diretor - uma de várias possíveis, é importante frisar -, que tem a
liberdade de transformá-lo de modo a usufruir das possibilidades
que o filme oferece e que não é possível na literatura, como efeitos
especiais, trilha sonora, atuação, entre outros. Da mesma
maneira que o filme deve compensar por elementos só possíveis
na literatura, como o fluxo de consciência e a leitura do que se
passa dentro da mente de determinado personagem.
As peças de Shakespeare já foram adaptadas para o
cinema diversas vezes e de diversas maneiras. De uma certa

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 238


forma, o público já está saturado de produções similares de um
mesmo texto; é preciso que haja inovação e renovação. Desta
maneira, Michael Almereyda utilizou de sua liberdade para
adaptar o texto de Hamlet e trouxe a história para a cidade de
Nova York nos anos 2000. Hamlet é um estudante de cinema e
seu tio, Cláudio, ao invés de ser Rei da Dinamarca, é o CEO da
Denmark Corporations, proprietário de um grande império
empresarial. No entanto, apesar de o enredo ser transportado para
o início do século XXI, a linguagem original da peça é mantida.
Anacrônico? De fato, mas certamente confere ao filme um estilo
próprio.
A primeira aparição do fantasma acontece de formas
similares na peça e no filme, mas através de meios diferentes.
Na peça, os primeiros a verem o fantasma do rei são Marcelo e
Bernardo, que estavam de guarda no castelo. Os dois contam a
história fantástica a Horácio, que hesita em acreditar. Quando
ele vê o fantasma por conta própria na noite seguinte, Horácio
acaba por ceder. Hamlet é avisado por este sobre a aparição do
fantasma do seu pai e resolve confrontá-lo. Na versão de
Almereyda, os que vêem o fantasma por primeiro são Horácio e
Marcela, sua namorada. Almereyda muda o sexo do personagem
shakespeariano Marcelo; talvez uma maneira de compensar a
falta de personagens femininos no texto original. Horácio e
Marcela estão dentro de um hotel e o curioso é que eles avistam
o fantasma através de uma câmera de segurança. Almereyda faz
recorrente referência à tecnologia nesta adaptação de Hamlet;
um contraponto entre a Inglaterra seiscentista e a moderna Nova
York do ano 2000.
O guarda em serviço no hotel, que faz o papel de Bernardo,
faz uma ligação para o quarto onde Hamlet está dormindo para
avisá-lo da aparição no vídeo. No entanto, Hamlet não chega a
atender o telefone, ele próprio vê a imagem de seu pai na varanda
e lhe diz as mesmas falas encontradas na peça de Shakespeare:

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 239


HAMLET Anjos e mensageiros de Deus, defendei-nos!
Sejas tu um espírito sagrado ou duende maléfico;
Circundado de auras celestes ou das chamas do inferno;
[...] Tu te apresentas de forma tão estranha
Que eu vou te falar (SHAKESPEARE, 2005, 1.4.28)

O fantasma está vestido de terno e gravata, muito sério, e


tem a mesma aparência de quando vivo. Tal conexão do mundo
espiritual com o mundo físico, segundo Rogers, é uma forma de
ilustrar que a morte corporal não altera o homem; ele permanece
o mesmo mental e moralmente (2010, p. 19). Hamlet convida o
espectro para entrar e têm o mesmo diálogo que se encontra na
peça, salvo alguns cortes devido à extensão da cena, no qual seu
pai lhe explica que foi assassinado por seu próprio irmão e pede
por vingança antes de desaparecer do quarto.
A segunda aparição do fantasma na peça de Shakespeare
acontece nos aposentos de Gertrudes. Hamlet e sua mãe haviam
discutido, pois Hamlet lhe culpava o romance incestuoso tão súbito
à morte de seu pai. Gertrudes grita por socorro e Hamlet, em
uma crise perturbadora, mata Polônio, que se escondia atrás de
uma tapeçaria. Nesta cena, o fantasma retorna para relembrar
Hamlet de seu dever:

FANTASMA Não esqueça; esta visita


É para aguçar tua resolução já quase cega.
Mas olha, o espanto domina tua mãe.
Coloca-te entre ela e sua alma em conflito;
Nos corpos frágeis a imaginação trabalha com mais força.
Fala com ela, Hamlet. (SHAKESPEARE, 2005, 3.4.87-88)

O curioso é que neste instante, que Hamlet fica a


contemplar a figura do fantasma, sua mãe não o vê. A rainha
indaga: “Ai, o que é que você tem, / Fixando assim seus olhos no
vazio, / E conversando com o incorpóreo?” (SHAKESPEARE, 2005.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 240


3.4.88). Como exposto anteriormente, a veracidade do fantasma
é inquestionável já que ele havia sido primeiro visto por Bernardo
e Marcelo e, além deles, o racional Horácio e Hamlet o enxergaram
com os próprios olhos. Como, então, explicar a “cegueira” da
rainha? Rogers afirma que há muitos estudos que consideram
esta cena como uma comprovação de que a aparição do fantasma
era somente fruto da mente perturbada de Hamlet. Rogers, porém,
nega tal asserção, pois as visitas anteriores do fantasma são
comprovadamente reais. A possível explicação dada pelo autor é
que a rainha, provavelmente, não era sensitiva o bastante para
captar a presença sobrenatural (2010, p. 17). Ao meu ver, tal
explicação não é suficiente. As primeiras aparições do fantasma,
de fato, são comprovadas por quatro testemunhas. No entanto, a
aparição do fantasma na cena com Gertrudes pode ser indício do
início da loucura que domina Hamlet nas cenas finais da peça,
que o levam, inclusive, a matar Polônio. Ao que parece, nesta
cena em particular, o fantasma é, realmente, produto da
imaginação de Hamlet.
Na versão de Almereyda, Gertrudes conversa com Polônio
em seu quarto de hotel quando Hamlet chega. Polônio não se
esconde atrás de uma tapeçaria, mas dentro do armário. Hamlet
e sua mãe têm o mesmo diálogo da peça original e, quando
Gertrudes grita por socorro, Hamlet acaba matando Polônio com
um tiro de revólver que atravessa a porta do armário e o atinge
bem no olho direito. Durante a crise de nervos de Hamlet, o
fantasma de seu pai aparece, sentado em uma poltrona perto da
cama, com os cotovelos sobre os joelhos e um olhar preocupado.
Gertrudes mostra a mesma incredulidade ao observar seu filho
fitando e falando ao vazio. Enquanto os dois continuam o diálogo,
o fantasma permanece a observá-los até o corte para a cena
seguinte.
Na peça de Shakespeare não há outras aparições do
espectro do pai de Hamlet. O filme de Almereyda, no entanto, traz

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 241


mais duas participações do fantasma, quase trinta minutos após
a cena no quarto de Gertrudes. Hamlet e Horácio voltam do enterro
de Ofélia e encontram Marcela dormindo em seu quarto. Ao pé da
cama da garota, está o fantasma, sentado em uma poltrona, com
uma das mãos no rosto e um semblante preocupado e cansado.
Diferentemente de suas outras aparições, desta vez o fantasma
está transparente, quase desaparecendo de vista. Assim que
Hamlet e Horácio entram no quarto, o fantasma desaparece
totalmente antes que os dois pudessem notá-lo. Esta presença do
fantasma dissolvendo-se pode ser equivalente ao esquecimento
de Hamlet de seu propósito de vingança, tão conturbado estava
com a morte de Ofélia. No entanto, logo em seguida, quando
Hamlet e Horácio estão conversando sobre a aposta feita por
Cláudio sobre o embate entre Hamlet e Laertes, o fantasma volta
a aparecer em cores vibrantes, próximo à porta da cozinha. Neste
momento, Hamlet lembra-se de seu propósito e vê no combate
contra Laertes uma oportunidade para concretizar a sua vingança
contra o tio. Horácio quer dissuadi-lo do combate, mas Hamlet
rejeita:

HAMLET Em absoluto, desafio os augúrios. Existe uma


previdência especial até na queda de um pássaro. Se é agora,
não vai ser depois; se não for depois, será agora; se não for
agora, será a qualquer hora. Estar preparado é tudo. Se ninguém
é dono de nada do que deixa, que importa a hora de deixá-lo?
Seja lá o que for! (SHAKESPEARE, 2005, 5.2.133)

Ao proferir estas palavras, Hamlet olha para o fantasma


do seu pai, como se para confirmar-lhe que aquele seria o
momento da vingança. O fantasma parece satisfeito. Assim
termina o papel crucial do fantasma na adaptação de Almereyda,
que leva Hamlet a cometer os atos da cena final da peça, que
resulta em tantas mortes.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 242


Conclusão
Mesmo aparecendo de formas distintas na peça de
Shakespeare e na adaptação cinematográfica de Almereyda, o
fantasma é papel determinante no desenrolar da trama de Hamlet.
É ele que inflama e conduz toda a sede de vingança em Hamlet,
que acaba em tragédia.
O diretor Michael Almereyda traz a história clássica de
Hamlet para o século XXI, momento em que as crenças no
sobrenatural já foram sobrepujadas pelo conhecimento científico.
Por isso, Almereyda mescla a aparição do fantasma com aparatos
tecnológicos, como a câmera de segurança no hotel, mais
condizentes com a realidade do contexto em que a trama se
insere.
O filme de Almereyda é um ótimo exemplo da teoria de
Robert Stam sobre adaptação cinematográfica como transformação
e intertextualidade. A partir do texto de Shakespeare, Almereyda
o traz de volta à vida aproximadamente quatrocentos anos depois,
adaptando-o para o cenário do século XXI e oferecendo aos
espectadores uma nova leitura da peça shakespeariana.
Com relação à indagação de Rogers sobre o propósito de
Shakespeare ao inserir eventos sobrenaturais em suas peças,
tal mistério não desvendaremos nunca - e tampouco nos importa.
Porém, o que é definitivo é que, como Rogers aponta, os elementos
do oculto permeiam as obras de Shakespeare de modo a nos
relembrar de que há uma grande diferença entre a verdadeira
natureza das coisas e o que nossos olhos mundanos imaginam
ver (2010, p. 20). Afinal de contas, assim como Hamlet confidencia
a Horácio: “Há mais coisas no céu e na terra, Horácio, / Do que
sonha a tua filosofia” (SHAKESPEARE, 2005, 1.5.36).

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 243


Referências

ALMEREYDA, Michael. Hamlet. [Filme-vídeo]. USA: Double A films,


2000. DVD: 112 min. Son., color.

BARTHES, R. A morte do autor. In: O rumor da língua. São Paulo:


Martins Fontes, 2004. p. 57-64.

ROGERS, L. W. Ghosts in Shakespeare. Whitefish: Kessinger Legacy


Reprints, 2010.

SHAKESPEARE, William. Hamlet. Tradução de Millôr Fernandes.


Porto Alegre: L&PM Pocket, 2005.

STAM, Robert. The Theory and Practice of Adaptation. In: Literature


and Film: A Guide to the Theory and Practice of Film Adaptation.
Oxford: Blackwell Publishing, 2005.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 244


MOBY DICK – UM MERGULHO NA INTERMIDIALIDADE

Autora: Gleyce Cruz da Silva Gomes (UFPR)


Orientadora: Profa. Dra. Célia Arns de Miranda (UFPR)

RESUMO: Esta pesquisa analisa o entrelaçamento entre a literatura e


as artes visuais na obra Moby Dick, do escritor Herman Melville e busca
revelar a força imagética apresentada em três capítulos assim descritos
pelo autor: “Mistificações pictóricas da baleia”, “Representações menos
errôneas de baleias; descrições fiéis de cenas baleeiras” e “Baleias
pintadas; baleias esculpidas em madeira, em osso, em pedra e em
pranchas de ferro; baleias nas montanhas e nas estrelas”. O escritor,
através de seu narrador Ismael, ressalta a importância – aos olhos de
um baleeiro – da análise das diversas representações da baleia. Tendo
em vista a fundamentação teórica desta pesquisa, utilizo os conceitos
propostos por Claus Clüver e de Liliane Louvel para descrição pictural
e a aplicação dos dispositivos que identificam o iconotexto. A autora
define iconotexto como uma zona onde o texto sonha com a imagem, o
que expressa um significado muito poroso para o texto de Melville.
PALAVRAS-CHAVE: Moby Dick. Intermidialidade. Iconotexto.

Introdução

“Enquanto ainda nos restar algo por fazer, então nada fizemos.”
(MELVILLE, 2009, p. 83)

Diante da leitura de Moby Dick, em dois volumes impressos


em belíssimo papel amarelado com capa de tecido azul profundo;
ocorre um estado de deriva e de vislumbre pela conjunção do texto
com a imagem. Uma espécie de visualidade labiríntica está
presentificada nas personagens dessa aventura marítima a bordo
do navio Pequod, por onde todos nele embarcados, sofrem da
vertigem provocada pelos avistamentos da baleia – ou muitas

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 245


vezes chamada de leviatã pelo capitão Ahab – em alto mar: “Ele
tem seu navio e toda a tripulação tal como seu próprio corpo,
restituído e redimensionado para enfrentar – num corpo a corpo
– o gigantesco monstro marinho. Tal como uma extensão da
embarcação, Ahab finca sua perna postiça (feita de marfim de
baleia) como um mastro no convés. E seu corpo segue fixamente
obstinado rumo à sua presa.” (GOMES, 2012, p. 111).
A escrita de Herman Melville parece se assemelhar a
uma filigrana, uma artesania em filamentos de metal precioso,
que criam rebuscados e delicados ornamentos ricos em detalhes.
O texto vai se desvelando em uma atmosfera de manuscrito, de
documento antigo ou de um pergaminho que atravessou o tempo
para convidar o leitor – ou explorador – a descobrir através das
suas minuciosas descrições um mapa poético singular. Seu
mapeamento maleável nos leva por indícios de paisagens, em
aproximações com geografias distantes e sob influência de mares
abissais. As personagens nos permitem entrever as modulações
poéticas do autor, que nesta narrativa se revela como o grande
poema épico norte-americano, segundo Heitor Ferraz:

Sua narrativa exuberante e de fôlego desliza sobre a superfície


de vários modos de escrita: o do relato de viajante, puro e
simples; passando pela crônica de costumes, quando ele
descreve deliciosamente uma cidade como New Bedford ou
Nantucket, ou apenas a vida em uma pousada; o do texto
científico, com a sua classificação dos tipos de baleia; do
filosófico, quando entra na alma humana para tentar perceber
o que há de estranho no homem, de incongruente ou irracional;
ou mesmo do lírico, quando a voz retorna para o coração de
Ismael, o protagonista desse grande livro. (FERRAZ, H. In:
MELVILLE, 2010, p. 428)

Um estudo etimológico serve de introdução à obra, onde o


autor nos prepara didaticamente por uma breve apresentação do

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 246


étimo – vocábulo que origina outro – da palavra whale (baleia em
português) em diversas línguas como em grego, latim e em
islandês. O curioso título “Etimologia (fornecida a uma escola
secundária por um bedel tuberculoso já falecido)” evoca o tempo
passado de um inspetor escolar “já falecido” sendo observado por
um narrador desconhecido:

Vejo-o agora – de paletó, coração, corpo e cérebro coçados.


Estava continuamente espanando seus velhos dicionários e
gramáticas por intermédio de um lenço singular, irrisoriamente
enfeitado com as alegres bandeiras de todas as nações
conhecidas no mundo. Gostava de espanar suas velhas
gramáticas; isto de algum modo o fazia lembrar-se vagamente
de que era mortal. (MELVILLE, 2010, p. 15)

A seguir, na parte intitulada “Fragmentos (fornecidos


pelo sub-bibliotecário de um sub-bibliotecário)” contém dezessete
páginas que trazem citações sobre o tema: baleias. Retiradas de
“qualquer livro que fosse, sagrado ou profano” – da Bíblia, de jornais
e de obras literárias como Hamlet de Shakespeare ou Twice-told
tales de Nathaniel Hawthorne, a quem Moby Dick é dedicado –
por um subalterno de um subalterno de bibliotecário. (MELVILLE,
2010, p. 17). Em “Fragmentos (...)”, o narrador se dirige ao leitor
recomendando-o a não tomar como absolutamente autênticas,
como um “evangelho cetológico”, muitas das referências lá
apresentadas:

No tocante aos escritores antigos em geral, e também aos


poetas que aqui aparecem, estes fragmentos são apenas
valiosos ou interessantes porque proporcionam uma visão de
relance, a olho de pássaro, daquilo que fora dito de modo
promíscuo – dito, fantasiado e decantado acerca do Leviatã por
inúmeras nações e gerações, inclusive a nossa. (MELVILLE,
2010, p. 17)

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É interessante como a narrativa de Moby Dick desde o seu
início aponta para atravessamentos textuais diversos, desde a
dedicatória de Melville a Hawthorne – “Em sinal de minha
admiração por seu gênio”– até as referências aos poetas,
dicionários, gramáticas, bibliotecas, etimologia, livros de
literatura, além de relatos de viagem.

Intertextos
Ciência, geografia, história e literatura, são alguns dos
campos dos intertextos que constroem uma escrita precisa e
organizada. Essa organização compartimentada dos capítulos: 32
“Cetologia”, 42 “A brancura da cachalote”, 60 “A linha”, 74 “A
cabeça da cachalote; análise comparativa”, se assemelha a
ordenação por meio de arquivos. Porém Melville afirma o contrário
em uma carta a Hawthorne: “Entretanto, considerando-se tudo,
não posso escrever de outra maneira. Desse modo, o produto é
uma bagunça final, e todos os meus livros são malfeitos.”
(MELVILLE, 2009, p. 72)
As inúmeras citações de documentos de naturezas
diversas e, em especial, as de caráter imagético, e que trataremos
adiante, parecem suscitar uma averiguação de veracidade, ou
pelo menos, algum rastro com o mundo não ficcional ao livro. De
onde viriam tais fontes e o como seria o acesso do autor a elas
em meados do século XIX, tais intertextos acrescentam um fio
investigativo ao leitor descontente com o papel de mero receptor.
Dentro desse contexto Claus Clüver afirma:

Quando o interesse científico foi transferido do autor – que


Roland Barthes declarou morto, em relação a determinados
textos, e que Michel Foucault reduziu a funções autorais –
para o leitor, que avançou até mesmo com certo direito para o
posto de realizador do texto, a intertextualidade se complicou
ainda mais, pois surgiram os “pós-textos”, sem falar dos
“paratextos”, os quais passaram frequentemente a ter uma

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 248


influência considerável sobre a construção textual por parte
do leitor. Entre esses paratextos se encontraram também textos
não-verbais, como, por exemplo, imagens de capa e ilustrações.
Foi decisivo para uma parte das exigências que se associam
hoje aos Estudos Interartes o reconhecimento recente de que
a intertextualidade sempre significa também intermidialidade
– pelo menos em um dos sentidos que o conceito abrange.
(CLÜVER, 2006, p. 14)

A semiótica apresenta um conceito estendido para a


palavra texto, amplificando-o para diversas mídias, podendo ser
um texto verbal, texto pictórico ou texto fílmico para citar alguns.
“Questões de intertextualidade podem fazer de textos literários
objetos propícios a estudos interartes – o que não vale apenas
para textos literários ou simplesmente verbais.” (CLÜVER, 1997,
p. 40). Mesmo havendo uma certa tendência em privilegiar o texto
verbal, porosidades ocorrem, como no caso da obra de Melville
com os intertextos picturais.
Intermidialidade é um termo recente mas que se fez
necessário para tratar de correspondências e comunicações entre
manifestações artísticas em todas as épocas e culturas. Irina
Rajewsky (2012, p. 22-27) apresenta as três “subcategorias” da
concepção literária de intermidialidade, que seriam a
“combinação de mídias”, as “referências intermídiaticas” e a
“transposição midiática”. Como exemplo da “combinação de
mídias”, teremos a presença do texto verbal aplicado como título
de uma imagem, na segunda subcategoria “referências
intermídiaticas” ocorrem quando o texto de uma mídia apenas
cita ou evoca textos específicos de uma outra mídia, quando um
filme faz referência a um pintor. Na terceira subcategoria
“transposição intermídiática” teremos os processos de adaptação
ou recriação de um romance literário para uma encenação teatral
por exemplo.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 249


A existência de textos literários que se referem a textos
pictóricos, sejam a pinturas ou fotografias, dentre outras artes,
permitem um diálogo entre as “artes irmãs” (poesia e pintura
em sua origem) como as denomina Liliane Louvel em seus
estudos sobre o iconotexto. Nesse parentesco entre as artes que
ocupam o suporte bidimensional e da proximidade que solicita o
olhar e a manualidade em ambas, traço e pincelada conjugam os
mesmos gestos da escrita. (LOUVEL, 2006, p. 191).
O olhar do personagem-narrador Ismael, em seu
testemunho de sobrevivente – “E só eu escapei para vos dar a
notícia” (MELVILLE, 2010, p. 406, v. 2.) – destaca-se já no capítulo
1 “Miragem”. Ele apresenta-se como o personagem que detém o
dom do olhar privilegiado, “Ainda mais: eis aqui um artista. Deseja
pintar o recanto mais encantador, mais ensombrado e mais
tranqüilo e que mais faça sonhar, em toda a paisagem do vale do
Saco”. (MELVILLE, 2010, p. 37). Ismael aponta-nos seu olhar que
transfigura o lugar do sonho na narrativa, o lugar onde a imagem
visual é convocada, e não apenas ilustra ou serve de inspiração.
(LOUVEL, 2006, p. 218). Um jogo curioso de descrições e análises
comparativas entre as diversas representações de baleias se
inicia a partir do capítulo 55, “Mistificações pictóricas da baleia”,
continua nos capítulos 56 e 57. O narrador-personagem enumera
diversas referências de imagens catalogadas em estudos sobre
baleias, citando-as – não de forma sistematizada – mas
apresentando informações sobre autor, título da obra, datas, local
e técnica.
Seria problemático segundo Liliane Louvel, que a
manifestação pictural esteja fora do texto, baseando-se em
informações biográficas ou psicológicas. Um exemplo que a autora
aponta é quando Marianna Torgovnick baseia-se na biografia de
Cézanne apontando uma suposta influência em D. H. Lawrence,
mas nada no texto comprovaria essa ligação. Basear-se em
biografias e aspectos psicológicos dos autores, seria usar critérios

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 250


subjetivos e não-textuais, tal como uma aproximação aleatória
(LOUVEL, 2006, p. 198). Para a validação de um iconotexto é
necessário que haja marcadores de picturalidade e estes se
relacionem à imagem, nos termos da pintura – usando a palavra
picture no sentido polissêmico – da fotografia, ou de quadro. A autora
menciona que a presença dos marcadores picturais abrem mais
ou menos o texto à imagem pictural em seu desejo de ser imagem,
entretanto, sem jamais o atingir. (LOUVEL, 2012, p. 49).
Ismael menciona na abertura do capítulo 55, “Mistificações
pictóricas da baleia”, um ímpeto de artista: “Dentro em pouco
pintarei aqui para vós – tanto quanto é possível com a palavra, já
que não conto com a tela – a forma mais ou menos aproximada
com que a baleia se apresenta aos olhos do baleeiro, nos
momentos em que, retida em sua integridade pela amarra do
bote, se encontra por completo ao seu alcance.” (MELVILLE, p.
391, v. I). Neste momento do texto identificamos já uma abertura,
um “operador de visão” segundo Louvel (2012), a presença de uma
tela pictórica pronta para ser narrada por seu pretenso pintor.
Muitas das representações consideradas equivocadas pelo
narrador são analisadas por um viés crítico e com uma certa dose
de ironia. Ismael apresenta uma análise das representações
pictóricas consideradas mistificações, imagens ilusórias e
enganosas de baleias em épocas remotas, “As esculturas hindus,
egípcias e gregas constituem talvez o ponto de partida de todas
essas mistificações pictóricas.” (MELVILLE, 2010, p. 391). Ele
também inclui no rol dessas representações pictóricas as
publicações do século XIX quando menciona que “Na edição
londrina abreviada, de 1807, encontram-se lâminas representando
a pretensa ‘baleia’ e um ‘narval’.” (MELVILLE, 2010, p. 394). Até
mesmo as representações feitas a partir de estudos científicos
parecem ser anedóticas aos olhos da personagem, que considera
“puramente imaginárias”, quando, por exemplo, ele faz referência
a uma ilustração da baleia cachalote feita pelo naturalista

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 251


Frederico Cuvier (CUVIER,1836, p. 286). Ele comenta que vai
“fechar com chave de ouro todo esse acervo de disparates” e
conclui sua avaliação dizendo que “não é realmente cachalote, e
sim uma abóbora.” (MELVILLE, 2010, p. 394-395).
Ao final do capítulo 55, Ismael conclui que o leviatã é dentre
as inúmeras criaturas do mundo a que desafiará sempre as
possibilidades do homem. Um dos desafios é que tal como um
elefante pode ser observado de corpo inteiro, uma baleia habitando
o universo submerso dos mares impossibilitaria tal análise. A
baleia quando abatida e retida numa rede, traria consigo uma
certa deformidade, impossibilitando uma representação fidedigna.
A avaliação dos graus de exatidão considerados não atingem a
verdadeira conformação da baleia, pois toda a “majestade e
grandeza” do animal só poderia ser comprovada na
“incomensurabilidade dos mares, enquanto flutua (...)”. Sendo
assim, o único olhar privilegiado para a personagem é o do baleeiro
e sem deixar de envolver todos os seus riscos, até o da fatalidade,
sendo mais indicado refrear qualquer curiosidade acerca do
leviatã. (MELVILLE, 2010, p. 395-396).

Intermidialidade
Neste momento da narrativa, ocorre um impasse entre
visão e representação, desde o olhar da personagem para a
realidade que o cerca e de como esta seria representada a seu
contento. Em busca de uma origem, do olhar primevo do autor,
percebemos em Moby Dick percebemos diversas camadas de
conhecimento, de pesquisas e da vivência de Melville como
marinheiro quando teve contato com a imagens nas suas fontes
documentais e a o relato crítico das representações narradas por
Ismael. Claus Clüver aponta uma definição própria para écfrase
– uma das subcategorias de “referências intermídiaticas” de
Rajewsky (2012, p. 25-27) –, como a “representação verbal de um
texto real ou fictício composto num sistema sígnico não-verbal.”

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 252


(CLÜVER, 2007, p. 18). Em seu romance e especialmente nos
capítulos 55, 56 e 57, Melville insere as descrições de imagens,
sejam ilustrações, pinturas, desenhos e objetos, como forma de
convidar o leitor a percorrer o texto buscando correspondências,
lendo-o como uma espécie de “tradução do texto visual.” (CLÜVER,
2006, p. 111).
O capítulo 56, “Representações menos errôneas de baleias;
descrições fiéis de cenas baleeiras”, é iniciado com comentários
de Ismael sobre as mistificações ou representações infiéis e
grotescas citando alguns exemplos. Seguem-se a partir dessa
parte as descrições das representações consideradas fiéis de cenas
que retratam caçadas e capturas às baleias, sendo as pinturas
de ação francesas. Já os ingleses e americanos seriam os
detentores dos melhores esboços, provavelmente, por possuírem
a prática das caçadas. A fidelidade apontada por Ismael parece
trazer como elemento determinante a ação e o realismo,
associados à dinâmica da própria vida.

Os franceses são excelentes nas pinturas de ação.


Contemplemos e comparemos os seus quadros com os de todos
os outros pintores europeus. Onde se poderá encontrar maior
plenitude de vida palpitante e de dinamismo [grifo meu] do
que nessa triunfante galeria de Versalhes?.” (MELVILLE, 2010,
p. 400)

Liliane Louvel (2012) classifica como tendo um alto grau


de saturação pictural, os textos que se apresentam como quadros
vivos que são descritos pelo narrador voluntariamente e não
dependem do leitor para fazer essa associação.
A utilização de léxico especializado com termos específicos
das artes visuais na descrição de um objeto – gravura, desenho,
entalhe, esboço – atua no texto “Como uma inserção, a de um
objeto espacial, uma inclusão do espaço no tempo, no fluxo da

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 253


narração.” (LOUVEL, 2012, p. 63). Quando os dois sistemas de
representação coexistem, o texto torna-se híbrido pela aparições
da imagem e “conduz além” (méta-phore) da literalidade. O escritor
precisa buscar a melhor forma de construção para o iconotexto,
desde a “obra visual de partida” para o “texto de chegada” por meio
da linguagem. Trata-se da presença do “medium estranho no
medium suporte” e da forma como ocorre essa tradução (não literal)
mas sim metafórica. Deslizando de um código semiológico a outro,
provoca uma transposição segundo Cluver, ou ainda uma
translação segundo Louvel. (LOUVEL, 2006, p. 195-196).
No capítulo 57, “Baleias pintadas; baleias esculpidas em
madeira, em osso, em pedra, e em pranchas de ferro; baleias nas
montanhas e nas estrelas”, são analisadas as representações
feitas pelas mãos de marinheiros e de artesãos, numa
aproximação direta com o artesanato. Há uma contextualização
do universo cotidiano cercado de materiais utilizados pelos
baleeiros:

Em toda a extremidade do Pacífico, bem como em Nantucket,


New Bedford e Sag Harbor, é comum encontrar elegantes
desenhos de baleias e cenas baleeiras cinzeladas pelos próprios
caçadores em dentes de cachalote, ou em espartilhos de
senhoras feitos de barbatanas e em outras inúmeras e
pequenas invenções que elaboram primorosamente com o
material bruto durante as suas horas de lazer, no oceano.
Alguns possuem pequenas caixas contendo instrumentos que
lembram os de dentista, especialmente destinados à confecção
dessas bagatelas, ainda que em geral sirvam-se apenas das
suas navalhas, o instrumento quase onipotente imprescindível
a todo marinheiro, e com o qual podem fabricar tudo o que lhes
dita a fantasia. (MELVILLE, 2010, p. 403-404)

Dentro deste capítulo, Melville narra a cena de um


encontro entre Ismael e um “mendigo estropiado” nas docas de

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 254


Tower-Hill, e este carrega “diante de si um cartaz pintado
representando o trágico acontecimento que causou a perda da
sua perna”. Ismael narra então como é a conformação da pintura
que representa os botes envolvidos na caça da baleia, e num deles
está uma figura que se presume ser do mendigo a sua frente.
Apesar dessa exibição pública, o homem e sua história são vistos
com incredibilidade, embora eles recebam de Ismael um veredicto
de autenticidade quando ele diz: “Essas três baleias são tão
autênticas como as que mais o sejam, dentre as que foram
pintadas em Wapping (...). (MELVILLE, 2010, p. 403). Ainda nesta
cena podemos detectar um “efeito de enquadramento” por meio
das duas narrativas que se interpolam - uma criada pelo encontro
do mendigo com Ismael e a outra pela presença do mendigo como
personagem na pintura. A pintura do cartaz é apresentada como
uma micro-narrativa dentro da grande narrativa do capítulo ou
do livro. (LOUVEL, 2006, p. 210).
Um dos moduladores picturais presentes no capítulo 57, a
“vista pitoresca”, remete ao gênero da pintura panorâmica do
século XVIII, as vedutas. Louvel (2012, p. 52-53) menciona que
“Suscetíveis de serem pintadas” estas cenas de lugares são como
“evocadores” de vestígios da memória, das impressões subjetivas
e da contemplação. A natureza representada pelas regiões
montanhosas – no trecho a seguir – é comparada a um anfiteatro,
e de onde o espectador/ viajante poderia vislumbrar formas
semelhantes as de baleias, privilégio do olhar atento e capaz de
encontrar a intersecção exata na paisagem onde elas se
escondem. Tal precisão da visão/ imaginação/ vislumbre, mais
uma vez é comparada aos olhos treinados de um baleeiro.
Além disso, nas regiões montanhosas onde o viajante se
encontra continuamente rodeado por alturas em forma de
anfiteatro, pode-se, ora aqui, ora ali, de algum ponto mais feliz
de observação, vislumbrar representações passageiras de
contornos de baleias, recortando-se ao longo de serranias

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 255


ondulantes. Mas para poder apreendê-las é preciso ser um
baleeiro genuíno, da mesma maneira que para tornar a encontrá-
las com segurança seria necessário tomar a intersecção exata
da latitude e longitude do primeiro ponto de observação. Acresce
que tão incertas e casuais são essas visões que seria muito
difícil tornar a descobrir o lugar preciso de sua observação.
(MELVILLE, 2010, p. 405).

Assim como o olhar do baleeiro, também as suas mãos


teriam a habilidade da criação e da fantasia – atributos de uma
alma selvagem que Ismael admite ter –, criando as representações
mais puras, mais autênticas e legitimadas pelas humildes
ferramentas do seu trabalho. Ocorreria entre o “marinheiro
branco” e o “selvagem havaiano” uma prodigalidade nesse “estado
de selvageria” – advindo do afastamento do cristianismo – que os
aproximaria daquele “selvagem grego que fez o escudo de Aquiles”
e de “outro esplêndido selvagem alemão que foi Albert Dürer”.
(MELVILLE, 2010, p. 404).
A condição de iconotexto nos capítulos abordados se
consolida pelos atravessamentos de imagens icônicas de baleias
– citadas de fontes diversas – e pelas evocações de imagens
oníricas – das baleias nas montanhas, nas pedras e nos mapas
de constelações:

Quem me dera que, com uma âncora de fragata por brida e


feixezinhos de arpões por espora, eu pudesse montar nessa
baleia e lançar-me no mais alto do céu, a fim de verificar se
mais além do meu olhar mortal [grifo meu] existem realmente
esses céus fabulosos com as suas tendas inumeráveis!
(MELVILLE, 2010, 406)
Para Ismael, o olhar mortal não seria suficiente para
apreciar e avaliar as representações de baleias, seria preciso
olhar além delas, lançando-se aos vislumbres poéticos. É na
abertura do texto verbal emoldurando as visualidades que o

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 256


pensamento imagético de Melville emerge. Muitos elementos
picturais atravessam a narrativa e Ismael nos convoca à
observação, à representação e à transfiguração do que possa ser
Moby Dick.

Considerações finais
Nesta pesquisa continua premente a necessidade de
perscrutar – neste sentido mesmo de vasculhar com o olhar – os
mares descritos por Herman Melville. Por seus vestígios
imagéticos e atemporais, surgem detalhamentos de tecituras em
filamentos espraiados de narrativas infinitas, permitindo
inumeráveis possibilidades de leitura. As linhas baleeiras de
Ismael, as linhas da narrativa, alinhavam texto e imagem,
escrevem uma cartografia sensória – abissal – dos mares
existenciais em Moby Dick. Através da leitura com o auxílio dos
dispositivos conceituais será preciso transpor, ancorar e revolver
o que há no fundo do texto. A pulsação da obra literária se
intensifica nas camadas de sedimentos móveis dos intertextos,
da intermidialidade e no iconotexto que ampliam o horizonte de
leitura.
Enchamos os pulmões plenamente para o último
mergulho, em apnéia, sem qualquer aparato covarde de respiração
submarina, suspensos no nada. Somente um leitor que “se lance
como baleeiro” fará da caçada ao texto indomável um desejo de
busca e sujeito aos perigos da derrota, pode comprovar que tudo
apenas começou.

Referências

CLÜVER, C. Estudos interartes: conceitos, termos, objetivos.


Literatura e Sociedade. Departamento de teoria literária e

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IBSEN E A HISTÓRIA: UMA REVOLUÇÃO NA MENTE

Autora: Helena Carnieri Staehler (UFPR)


Orientadora: Profa. Dra. Célia Arns de Miranda (UFPR)

RESUMO: Henrik Ibsen começa a escrever suas peças no momento em


que a Europa passa pelas convulsões revolucionárias de 1848. Somente
anos mais tarde, porém, ele perceberia a influência do clima político
de sua juventude em seu pensamento posterior. Entre os temas vitais
para o autor está a defesa da liberdade individual, pré-requisito para a
revolução da mente humana conforme a enxergava. Alimentado por
essas ideias, ele inicia na metade de sua carreira seu “ciclo de 12
peças” (1877-1899), no qual insere uma nova técnica dramatúrgica que
revela mais e mais a interioridade de seus personagens. São tramas
em que muito pouco acontece, mas fatos passados perturbadores são
desvelados. Este artigo irá analisar como essa inovação ensejou a
fundação do drama moderno, bem como a forma pela qual a hipocrisia
e as injustiças da sociedade compõem um pano de fundo para as
transformações pessoais por que passam as personagens de Ibsen,
tais como Nora (“Casa de bonecas”, em 1879), Karsten Bernick (“Pilares
da sociedade”, em 1877) e Dr. Stockmann (“Um inimigo do povo”, em
1882).
PALAVRAS-CHAVE: Henrik Ibsen, drama moderno, liberdade individual.

Introdução
A trajetória na escrita de Henrik Ibsen (1828-1906) passa
pelas transformações em termos de escola literária do século 19.
Tradicionalmente, se atribui ao autor norueguês fases que
começam com o romantismo nacionalista, passando por um
realismo com alguma influência do naturalismo, desembocando
numa escrita interiorizante, muitas vezes, com tintas simbolistas
e místicas.
Seu legado é composto por 25 peças de teatro, que o escritor
desejava fossem lidas numa continuidade, como se “cada peça

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pedisse a próxima”. Peter Szondi atribui a Ibsen a “instauração
da crise no drama” (2011), motivo pelo qual ele é comumente
considerado o precursor do teatro moderno, um autor que “liderou
uma revolta de ideias modernas” (BRADBURY, 1998, p.62). Sua
escrita serviu de precursora para nomes como James Joyce,
George Bernard Shaw e Arthur Miller. Ele próprio formou sua
tradição literária a partir da leitura de escritores setecentistas,
entre os quais Voltaire e Schiller, e, entre seus contemporâneos,
aprendeu a técnica dramatúrgica com o francês Scribe e com
seu concorrente norueguês Bjornstjerne Bjoernson (CARPEAUX,
sem data).
Tendo deixado uma marca legível na história da literatura,
a trajetória de Ibsen também foi marcada por um contexto
histórico de grandes transformações – ou tentativas de
transformação. Nascido em 1928, ele começa a escrever
seriamente aos 20 anos, ou seja, justamente no marcante 1848.
É o ano de convulsões revolucionárias por toda a Europa
conhecidas como “Primavera dos Povos” quando, por um período,
os ideais nacionalistas estiveram em alta e julgou-se poder mudar
governos e mentalidades conservadoras. “Novas nações foram
proclamadas, [houve] protestos pelo direito ao voto, desintegração
do status quo” (FJELDE in IBSEN, 1970).
Foram conflitos de caráter liberal, que não se restringiram
a uma única classe, havendo pleitos da burguesia enriquecida
por constituições que reduzissem privilégios aristocráticos, bem
como o combate de trabalhadores por melhores condições.
Violentas revoltas regionais também estouraram com caráter
étnico e nacionalista.
Essas iniciativas armadas, com destaque para o foco
revolucionário de Paris, foram reprimidas brutalmente no mesmo
ano, ensejando a ascensão de Napoleão III ao poder. Naquele
desfecho das revoltas de 1848, o movimento romântico, centrado
no indivíduo e caracterizado pelos exageros, nacionalismo

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 261


exacerbado, subjetividade e interiorização, via o fim de seus ideais
e utopias. O ano é comumente apontado como a “derrocada” do
romantismo, e muitos escritores partiram dali para desbravar
novas correntes realistas que incluíssem a denúncia que se fazia
premente naquele contexto.
Ainda que se referisse especificamente ao romance
histórico, é pertinente a assertiva de Fredric Jameson de que
aquela foi uma “tradição da qual os mestres do realismo histórico
se aproveitaram até o ponto de suas respectivas revoluções
descontínuas (1848 no Ocidente, 1917 para os russos) após o que
a forma entra em declínio e desintegração” (JAMESON, 2007).
Tornava-se contraditório exaltar heróis e nutrir sentimentos
idealizantes quando a força bruta neutralizava todo desejo de
mudança.
Entretanto, o que representou um divisor de águas para
muitos escritores, tornou-se para Ibsen um momento fervilhante
de ideias que marcou seu início criativo. Ao longo de 1848, o jovem
Ibsen recebia notícias de toda aquela movimentação
revolucionária em seu país, a Noruega, situado à margem da
Europa, e se condoía pelas vítimas e por suas causas. É um tempo
de reuniões estudantis, debates acalorados e defesa da união
entre os países escandinavos. Ibsen investe em poemas que dedica
aos revolucionários e charges satíricas que publica em jornais.
Apesar de seu país não ter sido tocado pela luta armada, sua veia
política precoce ardia, conforme relatam biógrafos e críticos como
o conde Mawriki Prozor (s.d.) e Rolf Fjelde (1970).
Para Ibsen, o movimento ascendente de ideais
humanitários e nacionalistas, seguido por sua queda livre rumo
à decepção, deixariam marcas em toda sua escrita, tornando-se
verdadeiramente um estopim até mesmo para que ele começasse
a escrever, e escrever teatro especificamente. Inicialmente, o
estilo conhecido por ele era o romântico, que irá contaminar sua
escrita, repleta de ideal político, conforme o próprio autor relata

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 262


no prefácio da segunda edição de sua primeira peça, Catilina
(1850), que busca na história romana um enredo de traições e
morte:

“Catilina, a peça com a qual comecei minha carreira literária,


foi escrita no inverno de 1848-49, ou seja, durante meu vigésimo
primeiro ano... Foram tempos extremamente agitados. A
Revolução de Fevereiro, as rebeliões na Hungria e outros
lugares, a guerra prusso-dinamarquesa pelo condado de
Schleswig – tudo isso contribuiu poderosa e pedagogicamente
com meu próprio desenvolvimento, por inconcluso que ele tenha
permanecido um longo tempo depois.” (IBSEN apud FJELDE,
1970, xiii. Tradução minha)

A partir dessa citação, Rolf Fjelde conclui que não só anos,


mas décadas se passaram até que Ibsen assimilasse “todas as
lições de 1848 para dentro de sua obra”, assim como ocorreu com
inúmeros outros homens e mulheres, artistas ou não, ao longo
do século 19. Com a visão privilegiada de quem analisa e escreve
um século depois dos fatos ocorridos, Rolf Fjelde, norte-americano
de origem norueguesa, percebe que os acontecimentos ligados à
revolução de 1848 provocaram uma “empolgação crescente ligada
ao desejo de maior liberdade e possibilidades de realização de
sonhos, seguida por uma fase de desencanto e um necessário
realismo”, não somente na carreira de Ibsen mas de muitos
outros autores.
Otto Maria Carpeaux (s.d.) considera Ibsen vanguardista
desde seus primórdios, ao contrário de parte da crítica que
despreza seus primeiros escritos, notadamente aqueles anteriores
a 1877, quando publica a primeira peça considerada realista
(Pilares da sociedade). Carpeaux não desfaz de seu romantismo,
antes enxerga mesmo na peça inicial Catilina temas recorrentes
na obra posterior, como o embate entre duas mulheres muito
diferentes. Na peça publicada em 1850, trata-se de Aurélia e Fúria,

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 263


que lutam pela alma do senador romano. Outros temas que se
vislumbram em sua fase romântica e que desabrocharão mais
tarde são a corrupção, a mediocridade e o ideal, a hereditariedade
dos pecados, o embate entre verdade e mentira, o combate aos
abusos e à hipocrisia. “Talvez Ibsen tenha sido o último
dramaturgo que exerceu esse papel de juiz duma sociedade”,
escreve Carpeaux (s.d., p.52).
Enquanto o momento histórico servia de catalizador para
a escrita de Ibsen, o autor aproveitava o pensamento de nomes
importantes da inteligência europeia da época. Para Karl Marx, o
desencanto dos românticos significou maior energia para
“derrubar um sistema que parecia tão perto de entrar em colapso”
(FJELDE, 1970, p. xiii), e sua obra fala disso. Outros pensadores
abraçam em sua obra um maior pessimismo devido à derrota dos
ideais, como Kierkegaard e Nietzsche. Ambos integraram as listas
de leitura de nosso autor, que era conhecido também pela
constância e avidez com que consultava os jornais diários.

Um idealista
Pode-se dizer que, durante quase duas décadas, Ibsen
manteve acesa a busca por um ideal nacional de grandeza – numa
época em que os teatros só repetiam comédias francesas e alemãs,
ele surge como um excêntrico, abordando temas que seus
conterrâneos, como o também dramaturgo Bjoernson, não
julgavam prioridade.
A primeira fase da escrita de Ibsen se volta para a
antiguidade escandinava, com incursões pelos reinados medievais
e os códigos de conduta viking. Destaca-se Os pretendentes da
coroa (1863), em que a personalidade e a conduta de dois líderes
que almejam o reinado é contraposta (MENEZES, 2006). A
supremacia da nação e seus rumos surge como ideal nacionalista,
bem como a tipificação dos dois personagens em conflito. Um
terceiro elemento é acrescido por um mago que detém as provas

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 264


de consanguinidade que poderiam colocar fim à guerra civil –
mas ele queima os papéis na hora de sua morte, para que o
combate persista, ao mesmo tempo em que encomenda missas
pela sua alma. Já em seus dramas históricos românticos estava
presente a ponta de sarcasmo e crítica que contaminariam
também o realismo de Ibsen.
A investida nacional do autor incluiu a defesa de um “matiz
dialetal norueguês” em meio à língua dinamarquesa falada pelo
estrato culto da Noruega no século 19. Em 1814, a Noruega passara
da influência dinamarquesa para a sueca, sendo que a
independência viria apenas em 1905. Uma vertente do
dinamarquês, o riksmaal, constituía a língua oficial do país
naquela época.
“Marginal” em seu país, localizado também à margem das
grandes fontes de literatura da época, é na década de 1860 que
Ibsen inicia um movimento radical de transformação, pessoal e
artística. A revolta política assume tons pessoais para Ibsen em
1862 quando ele esbraveja pelo apoio sueco-norueguês aos
dinamarqueses do condado de Schleswig, durante a segunda
guerra da localidade contra a invasão da Prússia. No primeiro
conflito, registrado no calor de 1848, Ibsen já solicitara de seu
governo o posicionamento pró-dinamarqueses, mas não fora
ouvido. O fato aparentemente o magoou muito.
Unindo essa questão pessoal com o desejo de conhecer o
mundo, acrescido ainda da revolta com o fracasso de suas peças
em território norueguês, Ibsen parte num autoexílio de 27 anos,
durante os quais vive entre Itália e Alemanha. A perda de ideais
ocorrida naquele contexto histórico iria influenciar Ibsen em suas
obras posteriores. Ele passa a imaginar uma nova era em que
cada pessoa será liberta. Ao mesmo tempo, sua escrita assume
um realismo pessimista em relação às capacidades das pessoas
– ele se definiria ateu no futuro (BRADBURY, 1998).

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 265


O exílio é também um momento de autodescoberta em
que, assim como Nora bateu a porta em “Casa de bonecas”, Ibsen
dá as costas a um contexto político e moral com o qual nunca
estivera confortável. Muito já se especulou sobre sua revolta
pessoal, nutrida desde a infância, quando seu pai, comerciante
de sucesso, faliu e a família passou por uma grande redução de
status. O filho Henrik interrompera os estudos para se tornar
aprendiz de farmacêutico na pequena cidade de Grimstad,
localidade onde o despertar de 1848 o encontrara sofrendo com a
opinião e rejeição alheias.
Mas, no início da década de 1860, o ideal nacionalista e de
defesa da pátria já não movia o coração de Ibsen. Desiludido após
tentativas de ação política – e do fracasso de seus escritos,
rejeitados como marginais – Ibsen desiste da idealização que
movera sua vida intelectual até ali.
Não é de se estranhar que um autor da margem europeia,
que em vários momentos manifestou seu sentimento em relação
a essa marginalidade pessoal e nacional vivenciadas num país
frio e muito conservador, tivesse interesse em respirar o calor do
Sul da Europa, nutrir-se da energia corrente no centro do mundo
da época.
Ele começa sua jornada por Roma, onde permanece por
quatro anos. Frequentando uma espécie de “clube de
estrangeiros” no qual rapidamente se torna personalidade de
destaque e impacto, nem sempre positivo (OLIVEIRA, sem data),
ele investe em personagens mais fortes e profundos, não
maniqueístas como foram os de Os pretendentes da coroa.
Tratam-se de Brand (1866) e Peer Gynt (1867). O primeiro
é um pastor idealista, dotado de moral extremada, que não se
detém em sua autoassumida missão de servir os menos
favorecidos nem mesmo quando a morte alcança membros de
sua família. O segundo, vagante e fugitivo, imune aos apelos da
ética, parte pelo mundo em busca de seu “verdadeiro eu”,

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vivenciando desventuras que incluem o encontro com trolls e a
viagem a outros continentes. A jornada de Peer Gynt rumo à
construção de si mesmo ilustra uma busca interior pessoal que o
autor nunca mais interromperia. A peça inaugura a transição de
Ibsen para a expressão de um sujeito moderno, que representa o
ser humano que já não se adapta ao seu entorno. São questões
relacionadas a uma transformação de mentalidades, anterior à
sistematização do conhecimento sobre Psicologia que seria
trazido por Freud com a publicação de A interpretação dos sonhos,
em 1899/1900. Na ausência de termos para nomear as forças do
inconsciente que Ibsen apenas intuía, ele lança mão de
metáforas e de figuras do folclore escandinavo e europeu
(MENEZES, 2006). São recursos que permitem o uso da intuição e
da imaginação, deixando de lado a tirania da razão.

Pilares da sociedade
A liberdade que Ibsen conquista em sua escrita é bastante
paulatina, e se constrói à custa da derrubada de “espectros”, ou
ideias mortas, que assombram o homem daquele momento de
transição, quando está em movimento a própria forma como as
pessoas pensam em si mesmas (MENEZES, 2006).
O resultado para a literatura de Ibsen é um estilo e visão
de mundo realistas, que o levam a examinar a incapacidade das
pessoas de se realizar – e a combater os motivos que as impedem
de alcançar tal realização. Nessa busca por respostas para o
fracasso humano, Ibsen abraça a crença no espírito de verdade e
de liberdade, proclamado por Lona Hessel em Pilares da sociedade.
Nessa obra, datada de 1877, a primeira a adotar um personagem
contemporâneo e não heroico, o cônsul Bernick aproveita
oportunidades para lucrar, ainda que precise omitir-se ou mesmo
mentir.
O autor situa a peça num momento de crescente
industrialização, e surge en passant a questão da emigração para

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 267


os EUA em busca de uma vida melhor. Surge novamente a ironia,
já que esse mentiroso é denominado um “pilar da sociedade”. A
atividade em que o protagonista burguês prospera é a indústria
naval. Anos depois de ter permitido que um parente assumisse
uma culpa que era sua, arruinando seu nome, ele é confrontado
por sua hipocrisia pela personagem Lona, por quem fora
apaixonado. Por meio do retorno dessa personagem e da análise
do passado que Lona incita é que ficamos sabendo de toda a trama
pregressa -– técnica analítica utilizada por Ibsen em toda sua
obra posterior.
No final da peça, Lona irá propiciar a redenção do
protagonista, que se arrepende de seus erros e pede perdão à
comunidade num discurso. Lona exclama com prazer: “Por fim
você se libertou de si mesmo!” O mote final do livro é que “todo
cidadão deveria poder viver numa casa de vidro”.
As ideias de liberdade e verdade germinam a partir daqui,
quando Ibsen muda sua visão de revolução, fazendo com que
considere limitado tudo o que recebera com entusiasmo em 1848.
Seu amadurecimento literário acontece também numa era de
grande movimentação intelectual. O período durante o qual Ibsen
redige suas peças mais conhecidas, no chamado “ciclo de 12
peças”, entre 1877 e 1899, é uma época em que, conforme Franco
Moretti, “sindicatos, partidos socialistas e o anarquismo estão
mudando a face da política europeia” (MORETTI, 2011). Apesar de
conter seu contexto sociopolítico, não é do conflito de classes que
Ibsen irá se nutrir, e sim de uma percepção cada vez mais aguçada
das hipocrisias internas à classe burguesa. Seu olhar perscrutador
irá começar com críticas a sua própria vida.
Nesta jornada pessoal, o autor busca como alicerces o
pensamento revolucionário de sua época. Lê filósofos como
Nietzsche e Kierkegaard (com quem o personagem de Brand fora
comparado), a partir de cuja obra forma suas convicções a respeito
da necessidade de cada um tomar responsabilidade por suas

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 268


escolhas, buscar emancipação e autonomia. A liberdade pessoal
surge como condição para que a pessoa faça escolhas verdadeiras,
uma bandeira que Ibsen empunhará.
Mas o autor percebe o quão longe sua sociedade está desse
individualismo liberal e “saudável”. Apesar de muita contestação
social e política, pouco havia de autoconhecimento. Nesse contexto
é que Ibsen escreve ao crítico dinamarquês George Brandes, em
1871: “As pessoas só querem revoluções específicas, nas questões
externas, na política etc. Mas isso é só um remendo. O que
realmente é necessário é uma revolução da mente humana”
(IBSEN, carta a Brandes, 1871 apud FJELDE, 1970, ix).
Apesar de o realismo ter como um de seus focos a denúncia
social, Ibsen denuncia, principalmente, a corrupção da própria
alma humana.

Ciclo de 12 peças
Já instalado na Alemanha, o autor produz as obras pelas
quais é mais conhecido, seja devido à crítica positiva ou negativa.
A fase é denominada por Tereza Menezes e muitos outros como
“drama realista”. São suas peças “de ideias”, ou “de tese”, que
abririam caminho para a escrita, por exemplo, de George Bernard
Shaw e Sartre (MORETTI, 2011). Otto Maria Carpeaux aponta a
forma como Ibsen revolucionou o conceito de “peça de tese”, por
meio da inclusão da forma caricaturada de seus personagens
idealistas, como o médico Stockmann, com quem Ibsen foi
erroneamente identificado (CARPEAUX, s.d., p.47). Ao apresentar
as peças-problema de estilo francês (como em Scribe) de forma
caricaturada, Ibsen estaria elevando seus trabalhos “acima delas”.
São essas peças que tratam de “problemas da época” que farão o
nome de Ibsen ser conhecido por toda a Europa, sobretudo pelo
escândalo causado por Casa de bonecas (1879) e Espectros (1881).
Apresentada no início da peça Casa de bonecas como uma
mulher infantilizada, que passara das mãos guardiãs do pai para

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 269


as do marido, Nora revela-se em seus três dias de angústia uma
profunda analista de seu entorno jurídico e moral. Ao ser
confrontada com uma fraude em que incorrera ingenuamente
para salvar a saúde do marido, ela passa a questionar a forma
como são feitas as leis, que não levam em conta a motivação
bem-intencionada. Enxerga dessa forma a hipocrisia de uma
sociedade que preza acima de tudo a honra aparente, não a honra
em si.
Casa de bonecas, título brilhante escolhidos por Ibsen, é
uma peça em que se mostra a voz do autor, que por várias ocasiões
falou contra as instituições estatais, afirmando odiar o Estado
(OLIVEIRA, sem data). No processo pelo qual passa, Nora representa
a mentalidade burguesa racional, que exige lógica e conforto na
vida privada (MORETTI, 2011). Com aparência realista, a obra
revela aos poucos um profundo conflito, não apenas externo,
referente ao desenrolar das ações da trama, mas também interno
à protagonista. O drama pessoal é desencadeado por causa do
conflito externo, fazendo com que ele assuma proporções maiores
– e tornando os temas “perecíveis” de Ibsen, questões que, décadas
depois, já estariam solucionadas.
A promissória com a qual Nora é chantageada, e que
comprovaria seu crime, é devolvida rasgada pelo chantagista
minutos depois de o marido Torvald Helmer descobrir aquilo que
a esposa, seu “esquilinho mimoso”, tentava esconder a todo custo.
Contudo, no curto entretempo, ele se enfurece e praticamente
rechaça a mulher, permitindo que ela fique em casa apenas para
manter as aparências, mas afastada da educação dos filhos. Assim
que recebe a promissória rasgada e percebe que o problema não
virá a público, Helmer respira aliviado e quer que tudo volte a ser
como era antes.
Nora, pasma, coloca seu traje mais simples e faz as malas.
Sentam-se então para o famoso discurso final, a primeira vez
que conversam verdadeiramente, nas palavras da protagonista.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 270


Em seu monólogo Nora diz não conhecer mais o marido e precisar
viver sozinha para poder conhecer a si mesma. O “milagre” de
que Nora fala em seu discurso, aquilo que ela mais desejava, que
seria seu casamento se tornar uma união verdadeira, não é
realizado. Porém, sua transformação pessoal ao longo da peça
representa a desejada “revolução da mente” pregada por Ibsen.
Consciente de que não poderia continuar com sua vida anterior,
Nora bate a porta da casa encerrando a peça, num desfecho radical
que, por muito tempo, seria recusado por diretores, atrizes e
plateias. O próprio autor chegou a escrever um final alternativo
para que a peça ao menos pudesse ser encenada. De qualquer
forma, o “olhar para si mesmo” de Nora e Bernick passa a dar o
tom da escrita de Ibsen, assim como o “dever para consigo mesma”
que ela percebe ser fundamental em sua existência.

Um inimigo do povo
O protagonista em cuja voz mais comumente se
identificam traços autorais de Ibsen é o doutor Stockman de Um
inimigo do povo, visto se tratar de uma peça-resposta às ferozes
críticas recebidas por Espectros. A peça causou revolta por abordar
o amor livre, a sífilis e até a eutanásia. Para o crítico Otto Maria
Carpeaux, porém, a identidade do médico idealista é a do
conterrâneo e concorrente de Ibsen, Bjoernson. Ibsen, por sua
vez, “já não acreditava na verdade absoluta [como faz o
personagem]. Com incrível coragem procedeu ao desmentido
integral de toda a sua obra anterior” (CARPEAUX, in IBSEN, s.d.,
p.47).
A mentira nesta peça, como em muitas na obra de Ibsen,
é a escolha descarada da sociedade: Stockman ergue-se como
voz solitária ao clamar pela verdade, quando descobre que os
esgotos envenenaram as fontes da estância de águas do local.
Para o personagem, é inconcebível que a população da cidade,
incluindo seu irmão, o prefeito, desconsiderem as evidências

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 271


científicas que atestam a contaminação das águas, preferindo
manter tudo como está, ou seja, sem afetar a estabilidade
econômica da estância turística.
No desenrolar da peça, o médico, devido a sua insistência
em proclamar a verdade indesejada, passa de “amigo do povo”,
título pelo qual é conhecido, a “inimigo do povo”. Mesmo sua mulher
fica contra ele. Não por acaso, a última linha da peça expressa:
“O homem mais forte do mundo é aquele que está mais só” (IBSEN,
1970, pág....Trad. minha).
Ibsen aborda na peça máscaras sociais em profusão, sem
poupar políticos, jornalistas “revolucionários”, professores. São
linhas de sarcasmo comedido, que talvez tenham servido de
trampolim naquela década para Oscar Wilde dar seu mergulho
no deboche das hipocrisias sociais em obras “disfarçadas de
realismo”. Da mesma forma, o ineditismo temático de Ibsen serve
de precursor para George Bernard Shaw, que “colocou na cabeça
fazer em inglês o que Henrik Ibsen estava fazendo em norueguês
desde 1875, ou seja, escrever peças tocando em assuntos que
envolviam a vida de um grande número de pessoas” (WARD in
SHAW, 1971).
Não abordaremos neste artigo as fases subsequentes em
que Ibsen, nutrido pelo aprendizado que o realismo lhe trouxera
e no qual ele introduzira sua própria transformação, faz um
mergulho aprofundado rumo à psique humana, servindo-se de
correntes como o neorromantismo simbolista.
As duas últimas décadas do século 19 veem o triunfo de
suas peças, quando Ibsen se torna um dos principais dramaturgos
europeus. O fato de haver tratado de questões bastante
relacionadas ao seu contexto, como a emancipação feminina, fez
com que encenadores o colocassem de escanteio por um período.
A crítica, de forma equivocada, de acordo com Carpeaux, prioriza
ora sua fase realista, ora a histórica, sem entender a unidade da
obra – unidade esta que o autor desejava comunicar, de forma

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 272


que uma peça “pedisse” a seguinte. “Cada peça nasce da anterior”,
avisa Malcolm Bradbury (1989). Conforme as palavras de
Carpeaux, “não é preciso reabilitá-lo. É apenas preciso
restabelecer o equilíbrio na apreciação dos valores permanentes
que ele nos legou”.

Técnica analítica
Como já foi mencionado, a técnica analítica de Ibsen foi
inovadora. Conforme Stella Adler, a inserção do elemento
argumentativo em suas peças criou toda uma nova forma de
drama (2002, p.30). Trata-se de um teatro em que a principal
ação ocorreu no passado, de forma que “a representação dramática
de Ibsen está exilada no passado e na interioridade” (SZONDI,
2011, p.44).
Essa ação dramática representa um foco de tensão na vida
dos personagens, que vão desvelando pouco a pouco esses
“espectros” uns aos outros, de forma que sua exposição faz parte
do próprio desenvolvimento da peça. Não é algo novo, se pensarmos
em Sófocles e a forma como Édipo vai conhecendo a profundidade
de sua tragédia ao longo dos diálogos. Mas Ibsen surge como
inovador ao aliar a técnica analítica, ou seja, o desvelamento
progressivo da tragédia, a um teatro realista – realista, ainda
que com características próprias.
A partir de seu aprendizado da “peça-bem-feita” aos moldes
do francês Scribe, Ibsen alia seus diálogos, em que nada parece
acontecer, ao ambiente doméstico burguês típico das peças de
teatro da época. O resultado era um incômodo na plateia, um
desconforto que tinha muito a ver com o clima entre os próprios
personagens. Mais do que conflito ou ação, seus personagens
enfrentavam dissonâncias, desajustes. Para piorar, não há heróis
ou vilões claros: em Ibsen, “no bom há algo de mau, e no mau há
algo de bom” (ADLER, 2002, p.27).

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 273


Peter Szondi insere Ibsen na primazia do “lento e
inexorável avanço do elemento épico no seio da forma dramática,
a qual, em princípio, o excluiria” (2001, p.14). Em oposição ao drama
absoluto, em que uma ação no presente ocorre entre dois sujeitos,
em Ibsen o teatro começa a apresentar a cisão entre sujeito e
objeto, falas que mais parecem solilóquios ou diálogos de surdos
(o que se manifestará mais claramente na obra de Anton
Tchékhov) e a presença de lirismo nas falas. A partir desses
recursos dramáticos e também dos finais não conclusivos (como
em Espectros ou Casa de bonecas), Ibsen é chamado de pai do
teatro moderno.
Dentro desse contexto, não só em sua última fase,
chamada simbolista, mas mesmo no período analisado neste
trabalho, que comumente é identificado com o realismo, percebe-
se que Ibsen mais insinua do que afirma, deixa questões abertas
para que o próprio espectador/leitor complete. É como se
“penetrasse nas frestas do realismo” (MENEZES, 2006, p. 67),
usando o subtexto de forma muito hábil, algo que fará declaradamente
a partir de A dama do mar (CARPEAUX, sem data, p. 48).
Sua escrita está em franco diálogo com a de Bernard Shaw
no que tange a crítica à hipocrisia; com a de James Joyce, no
embate com a tradição; e com a da fase inicial de Arthur Miller,
no desvelamento da ação situada no passado. Dessa forma podemos
dizer que seus herdeiros aprofundam sua preconizada “revolução
da mente” – que, no entanto, permanece uma utopia, o desejo de
um homem melhor.

Referências

ADLER, S. Stella Adler sobre Ibsen, Strindberg & Chekhov. Trad.


Sônia Coutinho. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 274


BRADBURY, M. O mundo moderno – Dez grandes escritores. Trad.
Paulo Henriques Britto. São Paulo: Cia. das Letras, 1998.

CARPEAUX, O. M. Ensaio sobre Henrik Ibsen. In: IBSEN, H. Seis


dramas – Parte 1. Trad. Vidal de Oliveira. São Paulo, Escala: sem
data.

FJELDE, R. Introduction. In: IBSEN, H. Four Major Plays. New York:


Signet Classics, 1970.

IBSEN, H. Four Major Plays. Nova York: Signet Classics, 1970.

JAMESON, F. O romance histórico ainda é possível? Novos Estudos


– Cebrap nº77. 2007.

MENEZES, T. Ibsen e o novo sujeito da modernidade. São Paulo:


Perspectiva, 2006.

MORETTI, F. A área cinzenta: Ibsen e o espírito do capitalismo. Trad.


Edu Teruki Otsuka. In Literatura e Sociedade nº 15. 2011.

OLIVEIRA, V. Alguns dados biográficos sobre Ibsen e ligeiros


comentários acerca de sua obra. In Seis dramas – Parte 1. Trad.
Vidal de Oliveira. São Paulo, Escala: sem data.

SZONDI, P. Teoria do drama moderno [1880-1950]. Trad. Luiz Sérgio


Repa. São Paulo: Cosac & Naify Edições, 2001.

WARD, A.C. General Introduction to the Works of Bernard Shaw. In


SHAW, G.B. Pygmalion. Londres: Longman Group, 1971.

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A HORA E A VEZ DE “UMA TOLA BORBOLETA”

Autor: José Francisco Coelho (Uniandrade)


Orientadora: Profa. Dra. Sigrid Renaux (Uniandrade)

RESUMO: O presente trabalho tem o objetivo de analisar o conto “A


tola borboleta”, de Liam O’Flaherty, publicado na coletânea O mundo e
suas criaturas: uma antologia do conto irlandês, organizada por Munira
H. Mutran. Com base em alguns pressupostos de Boris Tomachevski
(“Temática”, 1925), procura-se estudar a personagem, caracterizando-
a de forma indireta, ou seja, o caráter do herói é estabelecido a partir
de seus atos, da sua conduta. Considera-se a relação dessa personagem
com o espaço e o tempo e examina-se, ainda, a linguagem simbólica
empregada pelo autor no que se refere a quatro elementos – terra,
mar, sol, vento – para enfatizar a profunda relação estabelecida entre
o nascer e o morrer da borboleta: a metaforização da história do ser
humano.
PALAVRAS-CHAVE: Animização. Personagem. Tempo. Espaço.
Simbologia

Introdução
No princípio, um deus criou o céu e a terra. O dono do
mundo criou o Sol e ordenou a ele que fosse fonte de vida, de luz,
de calor, de nascimento. E o deus, decidindo que toda a sua criação
carregaria em si a ambiguidade, sabia que o astro, muitas vezes,
em vez de aquecer, poderia tudo secar. E criou o Vento como o
senhor da renovação e do impulso, mas o movimento do ar também
se transformaria em ilusão e engano. Esse ser todo-poderoso criou
a Terra como mãe, ponto de apoio e refúgio, e também como palco
de dramas, comédias e túmulo da mais alta de suas criações: o
que nascera para, irremediavelmente, morrer. E criou o mar,
seu maior mistério, sua mais perfeita imagem, sua semelhança.
E fez a borboleta, que uniria terra e céu, amiga do sol e inimiga

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 276


do vento, aquela que tentaria desvendar o mar e o que ele guarda
e esconde. O mar e a borboleta travariam, no palco do Criador, a
mais extraordinária das lutas: a luta pelo conhecimento e pela
sabedoria. E Deus deu, também e por fim, ao frágil humano uma
compensação: a palavra que faria surgir os escritores, os teóricos
e os estudantes.
Um desses teóricos, Bóris Tomachevski (1866 – 1939), e
em sua obra “Temática”, dedica-se ao estudo das personagens
das narrativas literárias – o herói – e afirma:

O personagem tem a função de um fio condutor e permite que


nos orientemos no acúmulo de motivos, de um meio auxiliar
destinado a classificar e ordenar os motivos particulares. Por
outro lado, existem procedimentos graças aos quais podemos
nos orientar entre a multidão de personagens e a complexidade
de suas relações. É preciso poder reconhecer um personagem;
por outro lado, ele deve mais ou menos fixar nossa atenção.
Caracterizar um personagem é um procedimento que o faz
reconhecível. Chama-se característica de um personagem o
sistema de motivos que lhe está indissoluvelmente ligado. Num
sentido mais restrito, entende-se por característica os motivos
que definem a psique da personagem, seu caráter.
(TOMACHEVSKI, 1976, p. 193)

Entre outras sugestões de análise das personagens,


Tomachevski sugere que:

a caracterização do herói pode ser direta, isto é, nós recebemos


uma informação sobre seu caráter através do autor, de outros
personagens ou de uma autodescrição (as confissões).
Encontramos por vezes uma caracterização indireta: o caráter
parte dos atos, da conduta do herói. (TOMACHEVSKI, 1976, p.
193)

A partir de tais considerações, este trabalho se propõe a


analisar o conto “A tola borboleta”, de Liam O’Flaherty, publicado

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 277


na coletânea O mundo e suas criaturas: uma antologia do conto
irlandês, organizada por Munira H. Mutran.
Liam O’Flaherty, romancista e contista irlandês, nasceu
em 1896 e faleceu em 1984. Publicou alguns romances como The
informer (1925), Famine (1937), Insurrection (1950), mas,
atualmente, é lembrado por seus contos. Como observa Munira
Mutran, “além de poucas narrativas urbanas, em que a cidade é
feia e em que desespero e corrupção predominam, dedicou-se
principalmente à cena rural, em várias modalidades da ficção
curta” (MUTRAN, 2006, p. 295). Na antologia citada, de todos os
autores, O’Flaherty foi o que mais escreveu sobre as relações do
homem com os animais.
A protagonista do conto é uma borboleta e a narrativa
acompanha a trajetória do inseto do nascimento à morte. Um
narrador onisciente humaniza uma borboleta e, a partir desse
recurso estilístico, verificam-se aspectos próprios da condição
humana Se a caracterização da personagem se faz a partir de
suas ações, buscou-se observar o emprego de verbos e de adjetivos
que possam explicitar o caráter desse herói. Examina-se,
igualmente, a linguagem simbólica empregada pelo autor no que
se refere a quatro elementos – terra, mar, sol, vento - para
enfatizar a profunda relação estabelecida entre o nascer e o morrer
da borboleta: a sua efêmera trajetória no mundo. Para a necessária
fundamentação desse último aspecto do trabalho, recorreu-se a
dois dicionários de símbolos: o de Juan-Eduardo Cirlot e o de Jean
Chevalier e Alain Gheerbrant.

A metamorfose da tola borboleta


Em um dia de sol muito quente, uma borboleta “despertou
para a vida e lentamente saiu da crisálida” (O’FLAHERTY, 2006,
p. 203). Ela experimenta a aventura de voar “no suporte invisível
do ar” (O’FLAHERTY, 2006, p. 204). A “criatura de Deus”
(O’FLAHERTY, 2006, p. 204) estava em um vale próximo do mar e,

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 278


em seu passeio, brincou com outras borboletas, visitou flores
vermelhas e se aproximou do mar. As águas a fascinaram e a
repeliram. Essa viagem exploratória, nas asas do vento,
enfraqueceu o animalzinho e, em certo momento, “o corpo tocou
a crista do mar. As asas vibraram uma vez ainda, e depois a água
do mar nelas infiltrou-se” (O’FLAHERTY, 2006, p. 206), matando a
borboleta.
Tem-se a borboleta como símbolo da ligeireza e da
inconstância, da beleza, da vaidade. Um outro aspecto do
simbolismo da borboleta “se fundamenta nas suas metamorfoses:
a crisálida é o ovo que contém a potencialidade do ser; a borboleta
que sai dele é um símbolo de ressurreição” (CHEVALIER &
GHEERBRANT, 2015, p. 138).
Assim, em um espaço imenso banhado de sol, a borboleta,
jovem e ingênua, vive a sua infância: o aprendizado e a alegria
dos primeiros voos:
Abandonou o galho. Penetrou gracilmente, sem esforço, sem
um único som, no suporte invisível do ar. Nem ruído, nem
sussurro de asas interrompeu o surpreendente silêncio de sua
existência. As asas abriram-se à brisa e bateram gracilmente
para cima e para baixo, em volteios elegantes, como se
estivessem tocando algum instrumento musical, batendo de
tecla em tecla, despreocupadamente. (O’FLAHERTY, 2006, p.
204)

Segundo Chevalier e Gheerbrant, o simbolismo do Sol é


bastante diversificado, mas, inicialmente, o astro é visto como
fonte da luz, do calor, da vida (2015, p. 935.) E sob o sol, a borboleta
desperta para a vida, quando sai da crisálida.

Levemente balançou-se ali por algum tempo, enquanto sol e


vento secavam-lhe o corpo. Do mar vieram raios de sol, trazendo
à borboleta um calorzinho agradável, perfumado pela brisa da
manhã, cujas carícias suaves bruniram o longo corpo do inseto,
fazendo com que as grandes asas, antes fechadas como um

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 279


leque, se abrissem. O calor do sol secou-lhe o corpo, aqueceu-
o, fê-lo intumescer e pulsar com a alegria da vida recém-criada.
(O’FLAHERTY, 2006, p.203)

O aprender a viver exige a convivência com o semelhante


e a borboleta brinca com outras borboletas. A borboleta faz contato
com pássaros, flores e “inúmeras formas de vida (que) povoavam
a grama” (O’FLAHERTY, 2006, p. 2004).
A animização da borboleta, desde o início da narrativa, fica
evidenciada no emprego de verbos, que mostram suas ações:
“Descansava de vez em quando ao calor radiante do sol. Brincava
com outras borboletas. Mais do que tudo gostava de voar, batendo
as asas, na imensidão do céu” (MUTRAN, 2006, p. 204).
Neste mundo edênico, toda a natureza adquire vida: as flores
vermelhas, em uma das quais a borboleta pousou, curvavam-se
“como crianças fazendo reverências” (O’FLAHERTY, 2006, p. 205).
E neste espaço da infância, surge o vento, inicialmente como
uma fresca brisa.
O simbolismo do vento apresenta vários aspectos. Devido à
agitação que o caracteriza, “é um símbolo de vaidade, de
instabilidade, de inconstância” (CHEVALIER e GHEERBRANT,
2015, 935). Em “A tola borboleta”, assim como o sol, o vento
acompanha o nascimento do animalzinho, apresentando-se como
fresca brisa. E a brisa é o veículo no qual a borboleta faz a sua
viagem inaugural e exploratória num mundo que o nascer lhe dá.
Nesta narrativa, entretanto, o vento assume também outra
simbologia: é ele, qual um sonho que se persegue, que vai conduzir
a borboleta até o mar. Em suas idas e vindas, ora guiando, ora
abandonando a borboleta, é um cúmplice do mar. O vento é a
ilusão, é o engano, é a quimera:
O vento excitou a borboleta, que voou em ziguezague para o
alto, lá para o alto do céu, e então se deixou levar, deliciando-
se com a pressão da brisa no corpo e nas asas. Logo voou para
o mar, deixando a terra para trás. Voou cada vez mais alto, e

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 280


mais, longe, batendo as asas suavemente e deslizando com o
generoso impulso das lufadas de vento, longas e constantes.
Deslizava, quase adormecendo com o prazer do movimento fácil
e rápido. E, então, em uma sucessão de movimentos bruscos e
elaborados, dirigiu-se para longe do alcance do vento, para a
terra, pensava. (O’FLAHERTY, 2006, p. 205)

A mocidade passou, o doce tempo de irresponsabilidade se


evapora e, para voltar à terra firme, a borboleta faz movimentos
bruscos. Ela tenta escapar da força do vento, que a conduz a um
destino ignorado, desconhecido e misterioso.
Nos últimos cinco parágrafos do texto, pouco mais de trinta
linhas, a narrativa de O’Flaherty muda de tom. Verbos (fugir,
enfraquecer, exaurir, tombar, por exemplo), adjetivos (aterrorizada,
estranho, repugnante, desconhecido, frenéticas, por exemplo) e
outras expressões que, no início do conto, denotavam leveza e
claridade são substituídos por palavras e locuções que prenunciam
o destino final do inseto.
A tolice da borboleta é ingenuidade e imprudência, e ela
confunde a terra com o mar, as ondas lhe parecem flores, a
imensidão das águas provoca-lhe temor. Ela sente repugnância,
experimenta estranheza diante do mar e sabe que precisa fugir
e se salvar:

Mas não havia terra lá embaixo. Em vez disso viu surpreendente


planície, cuja superfície se movia em inúmeras ondazinhas de
cristas prateadas pela luz do sol, e os flancos de profundo azul.
Viu também, aqui e ali, manchas escuras e verde-claro, e ainda
flocos diminutos de espuma cintilante. A borboleta pensou que
aquelas cintilantes coisas eram flores e precipitou-se em
direção a uma delas; no entanto, quando se aproximou, não
sentiu o aroma do néctar das flores, mas um cheiro forte e
pungente que lhe era desconhecido e repugnante. Foi então
que uma gota d’água, produzida pelo encontro de duas
ondazinhas, bateu em seu corpo. Fugiu depressa, aterrorizada.
Voou para bem longe do mar, voou novamente com o vento,

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 281


deixando levar com rapidez para longe daquele lugar estranho
e repugnante. (O’FLAHERTY, 2006, p. 205)

Agora o cheiro é repugnante, o lugar também é repulsivo e


estranho. Diante do mar e de sua imensidão, a borboleta
experimenta a atração e a repulsa. Ela busca a luz do sol, a claridade
e a liberdade, mas a terra, o chão firme, já desaparecera. O vento
a trouxera para junto do mar. De repente, o cúmplice do mar
abandona a borboleta e “com o cessar do vento uma grande
calmaria envolveu o mar e a imensidão do céu” (O’FLAHERTY,
2006, p. 206).
Tudo que é vivo cumpre o destino que o mar, soberano
absoluto, determinara desde o início do tempo. O sol se esconde,
ele só é protagonista no início da vida. O vento, senhor da ilusão,
já trouxera a “criatura de Deus” para junto de um deus maior.
Tudo que vive tudo que tem movimento, tudo que respira, tudo
que pulsa é do mar e será mar:

Mas, outra vez, a planície movediça com penetrante odor e


contínuo murmúrio afastou-a para longe e ela subiu, subiu
mais uma vez, aterrorizada. Mas desta vez não foi longe.
Enfraquecia. Sentiu-se cair de novo. Mais uma vez seu corpo,
tenso, roçou a superfície do mar. Subiu outra fez. Em uma série
de frenéticas piruetas, agitando-se sem cessar no ar morno,
exauriu as últimas reservas de força num louco bater das lindas
asas brancas. Então, apesar da feroz vibração das asas, caiu
pesadamente. As asas tombaram e pulsaram como tinham feito
ao nascer da crisálida. O corpo tocou a crista do mar. As asas
vibraram uma vez ainda, e depois a água do mar nelas infiltrou-
se como tinta e mata-borrão. (O’FLAHERTY, 2006, p. 2006)

A borboleta tem a sua hora e a sua vez. A borboleta cumpre


o seu destino, percorre uma jornada que se inicia com o sol e a
terra, com voos, flores e brincadeiras. Uma jornada obscuramente

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 282


testemunhada pelo vento. Uma jornada em direção ao mar, que
chama, impera, comanda e seduz. Não se foge dele: se a borboleta
se afasta, o mar a chama e ficam inúteis as lutas, o medo, a
força, o exaurir-se e as frenéticas piruetas. Pulsar é nascer e
pulsar é entregar-se ao mar. Há que se transformar em mar. Há
que ser mar, como cantava Cecília Meireles:

O alento heroico do mar tem seu polo secreto,


Que os homens sentem, seduzidos e medrosos. [...]
Tem seu reino de metamorfose, para experiência:
seu corpo é o seu próprio jogo,
e sua eternidade lúdica
não apenas gratuita: mas perfeita.
(CECÍLIA MEIRELES – Mar absoluto)

Conclusão
O conto de Liam O’Flaherty, “A tola borboleta”, ao estabelecer
um paralelo entre a vida humana e a do animal, explicita seu
tema: a jornada humana entre o nascimento e a morte. A
existência do animalzinho, “desde o instante em que desdobra as
asas úmidas para secá-las ao sol, passando pelas alegrias e
surpresas de sua breve vida até o momento fatal, reflete a
pungência e a brevidade da vida humana” (MUTRAN, 2006, p. 288).
Humaniza-se a borboleta e outros elementos da natureza, como o
vento, o sol, a terra, o mar.
Percebemos, portanto, como em “A tola borboleta”, o conflito
dramático reproduz a condição humana: a jornada do nascimento
à morte. As ações, o movimento constante, as alegrias, o
aprendizado e a pungência são marcados pela brevidade, pelo
efêmero do qual a borboleta é o símbolo mais adequado. Para tal
fim, Liam O’Flaherty apropria-se da linguagem simbólica, da
prosopopeia e traduz o humano. O humano de inconcebível
fragilidade, que se descobre num espaço sem fim. A grandiosidade

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 283


do espaço – a sólida terra, o alto céu, o mar infinito - ressalta e
amplia a finitude do tempo. O tempo que perturba e escraviza a
borboleta e a humanidade. O tempo é o mar. E o mar de Liam
O’Flaherty, - indecifrável mistério do depois - é o destino da
humanidade. A imensidão do mar é o contraponto da pequena
borboleta, da efemeridade do humano. O mar traga o humano e o
transforma em si mesmo. O mar é o espaço da mudança, um
espaço de metamorfose, como a própria borboleta.

Referências

BONNICI, T. & ZOLIN, L. O. Teoria literária: abordagens históricas


e contemporâneas. Maringá, EDUEM, 2005.

CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A. Dicionário de Símbolos. 27. ed.


Rio de Janeiro, José Olympio, 2015.

CIRLOT, J. E. Dicionário de símbolos. Tradução de Rubens Eduardo


Ferreira Frias. São Paulo, Centauro, 2005.

MEIRELES, C. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,


2001. V.1.

O’FLAHERTY, L. A tola borboleta. Tradução de Munira H. Mutran.


In: MUTRAN, M. O mundo e suas criaturas: uma antologia do conto
irlandês. São Paulo, Humanitas, 2006.

TOMACHEVSKI, B. Temática. In: EIKHENBAUM, B. et al. Teoria


da literatura: formalistas russos. Porto Alegre, Globo, 1976.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 284


EDNA O´BRIEN E SUA NARRATIVA A LUZ DA NOITE – NOTAS
DE UM DUPLO EXÍLIO, O REAL E O FICCIONAL

Autora: Prof. Larissa Degasperi Bonacin (UNIANDRADE)

RESUMO: O presente trabalho investiga as construções do real


encontradas na obra A luz da noite, da escritora irlandesa Edna O´Brien,
buscando evidenciar, através da análise crítica de sua escrita, a relação
entre o passado colonial e o presente neocolonial, bem como a questão
do nacional no país. A partir da intersecção entre história, memória e
ficção, buscar-se-á estabelecer uma discussão sobre as representações
de identidade, nação e exílio na referida obra da autora
supramencionada. Para tanto, será realizado um recorte na narrativa
e será considerada neste estudo a primeira parte do livro, mais
especificadamente o relato da protagonista sobre sua vida nos EUA,
estabelecendo um paralelo com a própria diáspora irlandesa nos Estados
Unidos da América. Como fundamentação teórica, pode ser citado, a
título de exemplificação, os ensinamentos de Stuart Hall em Identidade
cultural na pós-modernidade.
PALAVRAS-CHAVE: Identidade irlandesa. Exílio. Diáspora.

Edna O´Brien – uma nova voz para a Irlanda


Primeiramente, faz-se necessário um pequeno recorte da
própria história da Irlanda, terra natal de Edna O´Brien. Isto tudo
porque analisar a escritora é analisar também toda a história da
Irlanda. Deve-se realizar um breve mergulho nessa ilha repleta
de paradoxos para elucidar alguns pontos que posteriormente
serão abordados.
Atualmente a Irlanda encontra-se dividida em duas: ao
sul, temos a República da Irlanda, independente, formada por vinte
e seis condados; e ao nordeste, a Irlanda do Norte, pertencente
ainda ao Reino Unido e formada por seis condados.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 285


Essa cisão contribui para alterar noções de pertencimento
dos Irlandeses, bem como fragmentam, juntamente com as
diásporas e exílios, a identidade cultural dos Irlandeses, e de Edna
O´Brien, como via de consequência.
A Irlanda dividida não é uma realidade somente do século
XX e XXI. Desde o século V a Irlanda já era separada em cinco
províncias: Ulaid (Ulster), Midhe (Meath), Laigin (Leinster), Muma
(Munster) e Connacht. Desde então os Irlandeses buscam por uma
identidade, ou melhor dizendo, uma unidade em sua identidade.
Buscando essa caracterização de sua identidade, os Irlandeses
Medievais elegeram três fatores: utilização de um idioma comum,
no caso o gaélico, leis comuns, ou seja, Brehon laws e religião
única, no caso, a religião Católica.
Toda a história da Irlanda é permeada por invasões e
dominações, e a busca constante por uma unidade identitária, e
os três fatores acima mencionados sempre foram muito
valorizados pelos Irlandeses. Essa tentativa de buscar uma
identidade única e pura é comentada por Stuart Hall, quando
afirma que “(...) existem também fortes tentativas para se
reconstruírem identidades purificadas, para se restaurar a coesão,
o “fechamento” e a Tradição, frente ao hibridismo e à diversidade”
(HALL, 2006, p. 92).
Realizado essa pequena menção à uma das características
da História da Irlanda, pode-se retornar ao objeto desse estudo,
ou seja, a escritora Edna O´Brien e sua narrativa, A luz da noite.
Edna O´Brien nasceu em 15 de dezembro de 1930 em um pequeno
vilarejo rural Irlandês denominado Tuamgraney, condado de Clare,
região de Munster, no oeste da República da Irlanda. Um dado
importante a ser destacado era o fato da família de O´Brien não
valorizar a literatura, por considera-la subversiva, perigosa, que
levaria ao pecado. Como católicos fervorosos, admitiam que
somente a palavra de Deus poderia ser lida através da Bíblia.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 286


É uma das mais aclamadas escritoras irlandesas da
atualidade, mas o reconhecimento do seu trabalho se deu de
maneira tardia, infelizmente. No Brasil também ocorreu essa
valorização tardia, pois a escritora somente obteve
reconhecimento após sua participação na FLIP (Festival Literário
de Paraty) do ano de 2009.
Seus primeiros livros, escritos na década de 1960, a
trilogia The Country Girls, chegaram a ser queimados na Irlanda,
tudo isso porque narravam com detalhes as aventuras sexuais
de suas protagonistas e tal fato era considerado abusivo aos olhos
dos Católicos Irlandeses.
As multifaces de Edna O´Brien se verifica na sua
habilidade em não somente escrever romances, mas também
contos, poemas, peças teatrais, biografias (sobre James Joyce e
Lord Byron) e até livros infantis. Essas múltiplas facetas de O´Brien
pode ser considerada um reflexo de sua identidade híbrida, pois
será visto adiante que Edna O´Brien vive, desde a década de 50,
exilada em Londres.

A luz da noite: Uma outra narração da nação Irlandesa


Na ficção de O´Brien, principalmente em A luz da noite,
há um retorno ao passado e, consequentemente, às questões
históricas de seu país.
No centro da narrativa temos Dilly, mãe de Eleonora, que
é uma escritora que mora na Inglaterra. Dilly, que no início da
narrativa, fica presa à um leito de hospital, passa a relembrar
alguns fatos de sua trajetória de vida, dentre eles: seu
relacionamento com a mãe Bridget; com a filha Eleonora, a quem
devota amor incondicional, embora não concorde com algumas
de suas escolhas profissionais e afetivas; sua passagem pela
América quando trabalhou de doméstica.
A narrativa não aborda somente questões de
relacionamentos entre mãe e filha, como a princípio pode-se

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 287


inferir, mas igualmente a construção de uma identidade feminina
irlandesa. A narrativa retoma diversos fatos históricos e corrobora
diversas mulheres que passaram pelas mesmas angústias que a
protagonista.
Embora, a princípio, e analisando o próprio Prólogo do livro,
podemos inferir que realmente a abordagem se resume ao
relacionamento conturbado entre mãe e filha:

A fotografia deve ter sido tirada num domingo, e por alguma


razão especial – talvez a partida iminente da filha. Reina uma
quietude no ar. Pode-se sentir o abafamento, o sol batendo
nas copas das árvores sonolentas e sobre os campos indistintos,
estendendo-se morosamente até as montanhas de tonalidade
azulada. Mais tarde, com o tempo mais fresco e depois de já
terem entrado, os gritos dos frangos-d´água farão ecoar por
esses mesmos campos, sobre o lago e até as montanhas
envoltas na névoa azulada, um solitário canto de entardecer,
como o que as mães entoam à noite, e que parecem dizer que
é nossa culpa o fato de chorarmos tanto; a culpa é da
natureza, que primeiro nos preenche e depois nos esvazia.
(grifo nosso) (O´BRIEN, 2009, p. 09-10)

Da análise desse prólogo, podemos ver que a autora, de


maneira muito poética, constrói um verdadeiro sentido para a
vida, e principalmente para a vida das mães, que cuidam, enchem
de carinho e afeto seus filhos, para que, no futuro, os mesmos
alcancem seus próprios objetivos, suas próprias vidas: “a culpa é
da natureza, que primeiro nos preenche e depois nos esvazia”
(O´BRIEN, 2009, p. 10).
Entretanto, o romance envolve muitos outros temas
transversais. Dentre eles, o que será objeto desse artigo, é a
memória da protagonista da sua viagem à América, no início do
século XX.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 288


E ao viver um período nos Estados Unidos, como imigrante,
a protagonista era uma exilada e vivia uma diáspora Irlandesa
na América, como será analisado a seguir.

A diáspora irlandesa
Bonicci esclarece que “diáspora (do grego, dia = longe, e
speirein = espelhar) é o deslocamento livre ou forçado de populações
fora de seus país para novas regiões” (BONICCI, 2009, p. 277).
A história da Irlanda é permeada por movimentos
migratórios diversos. O historiador e jornalista Tim Pat Coogan,
em seu livro Wherever Green Is Worn - The History of Irish
Diaspora (Onde o Verde É Usado - A História da Imigração Irlandesa)
faz menção à existência de mais de 70 milhões de irlandeses
espalhados pelo mundo, enquanto no país a população não
ultrapassa 5 milhões. Ou seja, há muito mais Irlandeses
espalhados pelo mundo do que na própria Irlanda. A pesquisa
desenvolvida por Coogan aponta ainda a gênese das correntes
migratórias irlandesas o século XII, durante a invasão dos
normandos à ilha.
Entretanto, os maiores movimentos migratórios ocorreram
nos séculos XVIII e XIX na Irlanda devido à falta de alimentos. A
fome tornara-se parte integrante do cenário Irlandês e castigou
seus moradores por quatro vezes: de 1725 e 1729; de 1740 a 1741;
em 1836, 1837 e 1839; e, finalmente, de 1845 a 1849. País agrícola
e dependente da produção de batatas, foi dizimado pelo fungo
Phytophora infestans que arrasou as colheitas de batata, enquanto
as intempéries climáticas destruíram as de cereais. Na colheita
de 1845 a perda foi total, conhecida também como Irish Potato
Famine – 1845 (A fome da batata). Da crise agrícola decorreu a
crise econômica, com cenário de grande recessão e desemprego,
além, é claro da fome, que assolou o país e matou 1 milhão de
pessoas (vitimados pela falta de alimento, desnutrição e péssimas
condições sanitárias) e fez com que mais 1,5 milhão de irlandeses

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 289


emigrassem. Eram Irlandeses cansados, famintos e doentes que
precipitaram-se rumo aos Estados Unidos e Grã-Bretanha, e ainda
Canadá e Austrália, suscitando repulsas e preconceitos, em vez
de compaixão.
Das embarcações que atracavam no continente
americano, repletos de irlandeses desnutridos, registrava-se
perda de pelo menos ¼ da tripulação. Outros morriam na chegada
sem a oportunidade de vislumbrar dias melhores.
As viagens duravam semanas, em condições subumanas
de sobrevivência. O cenário e a angústia são descritos por O´Brien,
na voz da protagonista Dilly, de forma minuciosa:

Embaixo, onde estávamos encarcerados, os vapores eram


terríveis, vapores de cozinha, de gordura de cozinha e de óleo
das lâmpadas de parafina que tinham de ficar acesas o dia
inteiro. Um buraco, gente discutindo, brigando e de coração
partido. Algumas tinham trazido suas próprias provisões e
disputavam, ombro a ombro, um lugar no único fogão; a
cozinheira oponente manifestando-se com a língua, com uma
concha ou qualquer instrumento que tivesse à mão. Era o seu
fogão, seu domínio. A dieta básica para a maioria era composta
de biscoitos secos e sal marinho. Quase morri de sede. A sede
era o pior de tudo. Não parava de pensar nas nascentes lá de
casa, imaginava-me descendo o balde e depois subindo-o, já
cheio de água limpa que vinha da montanha, e bebendo-a,
bebendo uma jarra inteira naquele minuto. As pipas d´água
tinham acabado após o terceiro dia; tínhamos de usar água
salgada para o chá e tudo o mais. Atendentes vinham lá de
cima duas vezes por dia, xingando e gritando, diziam-nos para
limpar nossa sujeira, arrumar nossa bagunça e o conteúdo dos
urinóis, latas de lixo e panelas eram lançados sobre a amurada,
a água do mar manchada de cinza quilômetro após quilômetro,
as ondas engolindo aquilo, como as bocas dos milhões de peixes
que o mar abrigava (O´BRIEN, 2009, p. 50-51).

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 290


Nota-se, portanto, primeiramente as péssimas condições
da viagem. Nessas longas viagens, as mulheres eram constantes
alvos de assédios e abusos sexuais e eram obrigadas a ficarem
caladas por uma questão de sobrevivência. Os relatos de Dilly
incluem também uma companheira que tem um filho no navio,
fruto de abuso sexual, e acaba, inclusive, assassinando o bebê
em decorrência do distúrbio causado pela precariedade da viagem,
dos abusos, da fome, pressão psicológica vivida por essas
Irlandesas.
As humilhações e precariedade de sobrevivência inclusive
aumentaram em terras Norte-Americanas.

Irlandês-Americano: discriminação e subempregos


Entretanto, a vida de imigrantes irlandeses na América
não foi das mais fáceis, e, assim como acontece em outras
sociedades, a discriminação também permeou os primeiros anos
dos sobreviventes irlandeses nos Estados Unidos. A baixa
qualificação e a falta de recursos foram alguns dos agravantes
para a falta de inserção da comunidade irlandesa à nova pátria. E
muitos dos sobreviventes da fome se tornaram sobreviventes de
uma comunidade segregadora. O American Dream foi duro e penoso,
tal qual a fome que os Irlandeses deixaram para trás.
Ao chegarem em Nova Iorque, esses Irlandeses, incluindo
a protagonista Dilly, encontravam-se em um entre lugar, e a
sensação de não-pertencimento era evidente, como verificamos
nesse trecho onde é descrito a chegada em Ellis Island:
“Estávamos exilados de onde viemos e exilados, agora, uns dos
outros, a espera tão aflitiva quanto a jornada de navio” (O´BRIEN,
p. 57).
Alvo constante inclusive de humilhações, descrita em
detalhes por Dilly:

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 291


Na Ilha das Lágrimas fomos expostos a todo tipo de
humilhação: Tivemos as línguas apertadas, as pálpebras
levantadas com uma abotoadura, o coração auscultado, o cabelo
revistado à cata de piolhos... Depois fomos lavados com
mangueiras por senhoras estrangeiras que não tinham um
mínimo de delicadeza (O´BRIEN, 2009, p. 58).
O cenário era caótico: “Por todo lado havia lágrimas e
súplicas, pessoas orientadas para esperar, outras despachadas
para quartos próximos, (...)” (O´BRIEN, 2009, p. 58).
Felizmente, a América atravessava um período de grande
prosperidade, erguendo seus viadutos, canais e pontes. Como o
advento das grandes máquinas ainda não era uma realidade, os
braços fortes e o porte atlético dos homens fazendeiros irlandeses
acabaram garantindo a construção das vias americanas e
contribuindo para o progresso visível e notório daquela época.
Ocorre que, os irlandeses tinham que ser submetidos aos
subempregos, como pedreiros na construção civil e empregados
domésticos. E essa realidade não foi diferente para a protagonista.
Ela primeiramente trabalhou como empregada doméstica e
posteriormente como auxiliar de costureira. Cumpre ressaltar,
que ambas as atividades desenvolvidas em péssimas condições e
sempre alvo de humilhação: “A América era assim uma terra de
blefes e sonhos desfeito, e que eu teria sorte se arrumasse um
emprego como empregada numa casa grande. Eu seria serviçal,
uma espécie de canário doméstico” (O´BRIEN, 2009, p. 65).
E as condições não se alteram quando Dilly passa a ser
auxiliar de costureira: “Éramos umas trinta ou quarenta mulheres
num porão, o barulho constante das máquinas de costura o dia
inteiro, tudo muito ágil e profissional. Era quentíssimo no verão
por causa do vapor dos ferros de passar e porque nunca nos
deixavam abrir as janelas (...)” (O´BRIEN, 2009, p. 128).
Ficção e realidade se alternam na obra, pois a diáspora
Irlandesa realmente ocorreu, e eles realmente sofreram com as

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 292


péssimas condições que eram submetidos, humilhações diversas
e subempregos que deveriam aceitar para a própria sobrevivência.

O exílio ficcional e o autoexílio de Edna O´Brien


Como verificado no tópico anterior, todos aqueles
irlandeses que foram tentar uma nova vida na América, eram
exilados na nova terra e exilados uns dos outros. Várias vezes a
protagonista de A luz da noite demonstra esse sentimento de exílio,
como por exemplo na passagem onde Dilly, ainda trabalhando como
empregada doméstica comenta sobre uma festa realizada na casa
dos patrões, também Irlandeses: “A sala de jantar era uma
‘pequena Irlanda’, com grossas velas vermelhas assentadas em
nabos escavados; em cada lugar à mesa, uma harpa de vidro,
presente dos anfitriões. Vieram de uma fábrica na Itália”
(O´BRIEN, 2009, p. 97). E ao final dessa festa, o sentimento de
exílio e saudades da terra natal se agravava:

Ao final de uma rodada, Christy tirava da sanfona algumas notas


mais calmas, melancólicas e prolongadas que evocavam
detalhes de nossa terra, terra rochosa, campos, aquela
paisagem calcária, com a maldição de Cromwell: “Sem madeira
para enforcar um homem, sem água para afogar um homem,
sem terra para enterrar um homem”. (O´BRIEN, 2009, p. 130)

Tanto a protagonista do livro como a própria autora passam


pela experiência do exílio. A escritora deixou a Irlanda em 1959,
portanto, podemos afirmar que Edna O´Brien escreve sobre uma
Irlanda presente em sua memória, histórias vividas, contadas
ou imaginadas. Escreve sobre a história da Irlanda, mesmo que
fisicamente distante dela.
Como irlandesa exilada em Londres há mais de 50 anos,
Edna O´Brien reside em um entre lugar, já que é produto das
duas culturas: a natal, da sua infância e juventude; e a inglesa,

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 293


onde assumiu-se escritora, casou-se, teve filhos e vivencia seus
dias.
No entanto, a própria autora considera-se uma irlandesa
exilada na Inglaterra, na constante busca pela pátria perdida.
Temos, portanto, um duplo exílio, o real (da escritora) e ficcional
(da protagonista).
Essa questão ainda tem um duplo efeito quando trata-se
da Inglaterra. O ser Britânico, que até o século XIX era algo
absoluto e incontestável, e mais sentimento de coerência e
integralidade, passa a ser relativizado, “Num país que é agora
um repositório de culturas africanas e asiáticas, o sentimento
de ser britânico nunca mais pode ter a mesma velha confiança e
certeza” (HALL, 2006, p. 84). Atualmente, com o processo de
Globalização e Internacionalização das culturas, dificilmente
iremos encontrar uma cultura pura e única.

Referências

ABRANTES, Elisa Lima. O passado que não passa: Memória,


História e Exílio na ficção de Edna O´Brien. Tese de Doutorado.
Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2010.

BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lúcia Osana. Teoria Literária:


Abordagens Históricas e Tendências Contemporâneas. Maringá:
EDUEM, 2006.

FRANÇA, Avany. Referências de fonte eletrônica. Disponível em:


http://leiturasdahistoria.uol.com.br/ESLH/Edicoes/61/
artigo290377-1.asp. Acesso em: 01 jun. 2015.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de


Janeiro: DP&A, 2006.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 294


JOANNON, Pierre. Referências de fonte eletrônica. Disponível em:
http://www2.uol.com.br/historiaviva/reportagens/
a_grande_diaspora_irlandesa_imprimir.html. Acesso em: 01 jun.
2015.

O´BRIEN, Edna. A luz da noite. Rio de Janeiro: Record, 2009.

Referências de fonte eletrônica. Disponível em: http://www.curso-


objetivo.br/vestibular/roteiro_estudos/questao_irlanda.aspx.
Acesso em: 01 jun. 2015.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 295


AMORES (NÃO)CONSUMADOS NO FILME OS VIVOS E OS
MORTOS, DE JOHN HUSTON

Autora: Lindamar de Fátima Galiotto (UNIANDRADE)


Orientadora: Profa. Dra. Brunilda Reichmann (UNIANDRADE)

RESUMO: Este trabalho faz uma leitura da adaptação do conto “Os


mortos”, de James Joyce, pelo diretor John Huston (1987), intitulado
Os vivos e os mortos. Ancorando-se nos estudos sobre a teoria da
adaptação de Robert Stam e Linda Hutcheon, o objetivo é acompanhar
a câmera ao registrar o desempenho da atriz que interpreta Gretta em
relação à leitura do poema “Laços partidos” (uma adição do cineasta,
que fala sobre uma moça que se entregou ao homem amado e foi
abandonada), à canção que ela escuta ao descer as escadas e que a
remete ao primeiro amor, Michael Fury, que morreu “por ela”, e as
expectativas do marido diante do comportamento distanciado e
misterioso da esposa e do fato que estarão, dentro em pouco, apenas
os dois em um quarto de hotel. Falaremos, portanto, de três momentos
relacionados ao casal principal e ao amor (não) consumado no filme.
PALAVRAS-CHAVE: Dublinenses. Os mortos. Adaptação. Consumação.

Este artigo tem como objetivo analisar algumas


peculiaridades do amor (não) consumado no conto “Os mortos”, de
James Joyce, da coletânea Dublinenses, e na adaptação fílmica
Os vivos e os mortos, do diretor John Huston. Nosso recorte inclui
três momentos que incluem Gretta: a reação da personagem
quando o Sr. Grace faz a leitura do poema “Laços partidos”, que é
um acréscimo do diretor John Huston; a reação dela ao descer as
escadas na casa das tias Morkan e ouvir o Sr. Darcy cantar “A
garota de Aughrim” e a revelação de Gretta frente ás expectativas
de Gabriel, já no quarto do hotel.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 296


O filme Os vivos e os mortos foi concluído em 1987, pelo
diretor John Huston (1906-1987), figura atuante no mundo
cinematográfico, pois além de diretor, foi ator e roteirista. Como
diretor fez quarenta e cinco filmes, atuou como ator em quarenta
e um e escreveu trinta e seis roteiros.
Huston ganhou vários prêmios e indicações, entre elas

indicações ao Oscar, na categoria Melhor Diretor, por O tesouro


de Sierra Madre, em 1948; Segredo das joias, em 1950; Uma
aventura na África, em 1951; Moulin Rouge, em 1952; e A honra do
poderoso Prizzi, em 1985. Venceu em 1948 com o filme O tesouro
de Sierra Madre. Recebeu quatro indicações ao Oscar, na
categoria Melhor Roteiro, por Relíquia macabra, em 1941; O tesouro
de Sierra Madre, em 1948; Segredo das joias, em 1950; e Uma
aventura na África, em 1951. Foi contemplado em 1948 pelo O
tesouro de Sierra Madre. Recebeu uma indicação para o Oscar,
na categoria de Melhor Ator (coadjuvante/secundário), por sua
atuação em The Cardinal, em 1963. Ganhou dois prêmios com o
filme Os vivos e os mortos: no Independent Spirit Awards, na
categoria de Melhor Diretor; e o Prêmio Bodil de “Filmes Não-
Europeus”. (Disponível em: http://filmow.com/john-huston-
a4460/. Acesso em: 15 jul. 2015).

Anjelica Huston, filha de John Huston, é a atriz


protagonista do filme Os vivos e os mortos e “tem uma atuação
primorosa” e delicada. Huston dirigiu o filme doente e faleceu
antes da estreia. “Foi sua última ironia poética”, segundo o blog
de Azevedo (acesso em 15 jul. 2015).
Atualmente as adaptações estão em todos os lugares:
cinema, teatro, TV, romances, musicais, mas “cada mídia tem
sua própria especificidade, se não sua própria essência; cada
qual tem à sua disposição meios de expressão, uma mídia pode
contemplar elementos que outra não pode” (HUTCHEON, 2011, p.
49). Sabemos que “ contar uma história em palavras, seja
oralmente ou no papel, nunca é o mesmo que mostrá-la visual ou

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 297


auditivamente em quaisquer das mídias performativas
disponíveis” (HUTCHEON, 2011, p. 49), portanto os adaptadores
não têm obrigação de se manterem “fieis” aos textos originais
(como se tal fidelidade fosse possível).

As discussões mais recentes sobre as adaptações


cinematográficas de romances passaram de um discurso
moralista sobre fidelidade ou traição para um discurso menos
valorativo sobre intertextualidade. As adaptações localizam-
se, por definição, em meio ao contínuo turbilhão da
transformação intertextual, de textos gerando outros textos
em um processo infinito de reciclagem, transformação e
transmutação, sem um claro ponto de origem. (STAM, 2003, p.
234)

Robert Stam observa, porém, que a crítica tem sido


moralista quando se refere às adaptações e complementa que
alguns aludem que o cinema fez um desserviço à literatura,
acrescentando que termos como “infidelidade”, “traição”,
“deformação”, “violação”, “abastardamento”, “vulgarização” e
“profanação” crescem no debate sobre as adaptações, em
contrapartida não podemos esquecer que

Embora seja fácil imaginar um grande número de expressões


positivas para as adaptações, a retórica padrão comumente
lança mão de um discurso elegíaco de perda, lamentando o que
foi “perdido” na transição do romance ao filme, ao mesmo tempo
em que ignora o que foi “ganhado” (STAM, 2006, p. 2).

Há uma gama variada de discussões sobre adaptação,


enquanto uns criticam outros tecem elogios, o certo é que as
adaptações estão presentes em nosso cotidiano, pois

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 298


A adaptação é repetição, porém repetição sem replicação. E há
claramente várias intenções possíveis por trás do ato de
adaptar: o desejo de consumir e apagar a lembrança do texto
adaptado, ou de questioná-lo, é um motivo tão comum quanto
a vontade de prestar homenagem, copiando-o (HUTCHEON,
2011, p. 28).

Não podemos esquecer que a adaptação é “um processo


de criação, a adaptação sempre envolve tanto uma (re-
)interpretação quanto uma (re-) criação; dependendo da
perspectiva, isso pode ser chamado de apropriação ou
recuperação” (HUTCHEON, 2011, p. 29).
Focaremos a análise do filme Os vivos e os mortos em três
momentos em que o amor (não) é consumado: reação de Gretta
durante a leitura do poema “Laços partidos”, o comportamento de
Gretta quando desce as escadas da casa das tias Morkan e ouve a
canção “A garota de Aughrim” e, por último, a revelação de Gretta
e a reação de Gabriel no quarto do hotel.
Após os convidados ouvirem Mary Jane, sobrinha das tias
Morkan, tocar piano, o Sr. Grace é convidado a discursar, mas
acaba lendo o poema “Laços partidos” que foi traduzido do irlandês
por Lady Gregory. Esta personagem (Sr. Grace) não existe no conto
“Os mortos”, de Joyce, ele foi introduzido no roteiro do filme Os
vivos e os mortos. O poema trata de uma jovem que foi seduzida
pelo amado, pois ele prometeu “um navio de ouro” com “o mastro
de prata”, “luvas feitas de escama de peixe”, “túnica da melhor
seda da Irlanda” (promessas difíceis de serem cumpridas, na
percepção da própria moça). Mesmo sabendo da impossibilidade
do cumprimento das promessas, ela se entrega ao rapaz que, depois
de tê-la, a abandona. O poema “Laços partidos” diz o seguinte:

It is late last night the dog was speaking of you


The snipe was speaking of you in her deep marsh.
It is you are that lonely bird throughout the woods;

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 299


And that you may be without a mate until you find me.

You promised me and you said a lie to me,


That you would be before me where the sheep are flocked;
I gave a whistle and three hundred cries to you
And I found nothing there but a bleating lamb.

You promised me a thing that is hard for you,


A ship of gold under a silver mast,
Twelve towns and a market in all of them,
And a fine white court by the side of the sea.

You promised me a thing that is not possible,


That you would give me gloves of the skin of a fish;
That you would give me shoes of the skin of a bird,
And the suit of the dearest silk in Ireland.

(…)

My mother told me, not to be talking with you today


or tomorrow, or on the Sunday.
It was a bad time she took for telling me that,
It was shutting the door after the house was robbed.

(…)

You have taken the east from me, you have taken the west from me,
You have taken what is before me and what is behind me;
You have taken the moon, You have taken the sun from me,
And my fear is great that you have taken God from me.
(Disponível em: AZEVEDO, blog. Acesso em 17 jul. 2015)

As personagens do baile anual das irmãs Morkan, Julia e


Kate, ouvem silenciosamente a leitura do poema feita pelo Sr.
Grace, enquanto isso Huston vai construindo vagarosamente a
entrega de Gretta à nostalgia, Durante a leitura, ela permanece
com o olhar distante, entregue a divagações e é, pela primeira

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 300


vez, observada com cuidado pelo marido. Terminado o jantar, os
discursos e o baile, é hora dos convidados retornarem para suas
casas.
Gretta e Gabiel se despedem dos presentes para voltarem
ao hotel onde estão hospedados. Gretta desce as escadas e ouve o
Sr. D’arcy cantar “A garota de Aughrim”:

If you’ll be the lass of Aughrim


As I am taking you mean to be
Tell me the first token
That passed between you and me

O don’t you remember


That night on yon lean hill
When we both met together
Which I am sorry now to tell

The rain falls on my yellow locks


And the dew it wets my skin;
My babe lies cold within my arms;
Lord Gregory, let me in […]
(AZEVEDO, blog, acesso em 19 jul. 2015

Gabriel, no hall, vê Gretta descendo as escadas. No filme,


as vestes claras, um lenço branco na cabeça, atrás um vitral
colorido, no rosto uma expressão sonhadora, misteriosa, fugidia
complementam a cena, é como se estivéssemos presenciando
uma santa em seu altar. Todo esse conjunto de imagem e música
nos remete a uma cena completamente sublime e,
verdadeiramente, poética. A canção acaba e Gretta parece acordar
de um sonho, de um devaneio. E Gabriel:

volta-se para a esposa e fixa-se nela, atentamente, até o


término da canção quando Gretta acorda de seu devaneio e
desce os últimos degraus da escada. A expressão do ator não é

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 301


de desejo como descrito por Joyce, mas a de um homem
intrigado ao ver Gretta “ausente”, distanciada do mundo que a
cerca (REICHMANN. Disponível em: Acesso em 20 jul. 2015).

No conto “Os mortos”, de Joyce, Gabriel é descrito


observando Gretta desta forma:

Deteve-se ali na penumbra do hall, tentando identificar a canção


que a voz entoava e com o olhar fixo na mulher. Havia em sua
atitude graça e mistério como se ela fosse símbolo de algo.
Perguntou a si mesmo o que poderia simbolizar uma mulher
na penumbra, no topo de uma escada, ouvindo música ao longe.
Se fosse pintor ele a retrataria naquela pose (JOYCE, 2012, p.
186).

Como vemos, no filme a focalizada é Gretta e no conto,


Gabriel. O marido no conto “Os mortos”, em várias passagens,
demonstra desejo por sua esposa, como por exemplo quando estão
andando na rua procurando um coche para irem ao hotel:

Ela caminhava à frente dele tão leve e tão ereta que ele desejava
alcançá-la na surdina, agarrá-la pelos ombros e sussurrar-lhe
ao ouvido algo tolo e apaixonado. Parecia-lhe tão frágil que
tinha ímpetos de defendê-la de um perigo qualquer e então
ficar a sós com ela. Momentos da vida íntima dos dois
irromperam-lhe na memória como estrelas (JOYCE, 2012, p.
189).

Um pouco adiante outra passagem:

Uma onda de felicidade terna e ainda mais intensa emergiu do


coração dele e percorreu-lhe as artérias numa cálida torrente.
Como o brilho terno das estrelas, momentos da vida da vida
deles juntos, dos quais ninguém tinha e jamais teria
conhecimento, precipitavam-se e iluminavam-lhe a memória.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 302


[...] Ansiava por ficar a sós com ela. Quando todos estivessem
no quarto do hotel, então estariam a sós. Ele pronunciaria seu
nome à meia-voz (JOYCE, 2012, p. 189).

Em frente ao hotel:

Naquele momento ele tinha se sentido orgulhoso e feliz, feliz


por tê-la para si, orgulhoso de sua postura graciosa e digna.
Mas agora, após tantas memórias agradáveis, o primeiro toque
do corpo dela, musical e exótico e perfumado, despertou nele
um desejo ardente. Protegido pelo silêncio dela pressionou-
lhe o braço contra seu corpo; e, em frente à porta do hotel, ele
teve a sensação de que haviam escapado de suas próprias
obrigações, escapado do lar e dos amigos e fugido juntos com
corações exultantes para uma nova aventura (JOYCE, 2012, p.
190).

Subindo os degraus do hotel:

Os dois seguiram-no em silêncio, com passos suaves sobre o


espesso tapete que cobria os degraus. Ela subia logo atrás do
porteiro, de cabeça baixa, com os ombros delicados caídos como
se suportassem um peso, e com a saia firmemente segura. Ele
desejava abraçá-la na altura dos quadris e suspendê-la no ar,
pois seus braços tremiam de desejo de tocá-la e somente
cravando as unhas na palma da mão pôde ele conter o impulso
de arrebatá-la (JOYCE, 2012, p. 190-1).

No filme, o desejo de Gabriel é menos perceptível, mas


podemos considerar o beijo dado na mão de Gretta, no coche, como
um convite à intimidade. Já no quarto do hotel, Gabriel passa a
mão no cabelo e afaga os ombros de Gretta carinhosamente e
pergunta o que ela está sentindo. Gretta não se encontra na
mesma sintonia do marido e conta que está pensando na música
“A garota de Aughrim”, porque a faz lembrar de um jovem, Michael

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 303


Furey, que ela conheceu na adolescência. Michael costumava
cantar a mesma canção para ela. Gretta conta que ele era delicado,
de olhos grandes e escuros, costumavam passear quando ela
morava em Galway, na casa da avó, e que morreu quando tinha
dezessete anos. Gabriel pergunta de que o jovem morreu e Gretta
diz que ele tinha morrido por ela, então relembra que foi no começo
do inverno e que ia estudar em um convento em Dublin. Michael
Furey já estava doente e quando soube que Gretta partiria foi
procurá-la abaixo de chuva, uma semana depois quando Gretta
já estava no convento soube que ele havia morrido, ela chora e
diz que ele tinha morrido por ela. Em seguida, ainda chorando
deita na cama e dorme.
No texto “Os mortos” o narrador conta:

Ele se esticou cuidadosamente embaixo dos lençóis e ficou


deitado ao lado da esposa. [...] Ele pensou no fato de que aquela
que estava deitada ao seu lado ocultara no coração durante
tantos anos aquela imagem dos olhos do amado dizendo a ela
que não queria viver.
Lágrimas abundantes encheram-lhe os olhos. Ele próprio
jamais tivera esse tipo de sentimento em relação a uma mulher
mas sabia que aquilo era amor. Mais lágrimas vieram-lhe aos
olhos e na penumbra ele imaginou ver a figura de uma árvore
pingando. Havia outras figuras em volta. A alma dele se acercara
da região habitada pela vasta legião dos mortos. Ele pressentia
a existência errática e perambulante dos mortos, embora fosse
incapaz de aprendê-la. Sua própria identidade desaparecia num
mundo cinzento e incorpóreo: o mundo sólido, antes construído
e habitado por esses mortos, dissolvia-se e se esvaía. Leves
batidas na vidraça fizeram-no virar-se para a janela. Recomeçava
a nevar. [...] Sim, os jornais tinham acertado: a neve cobria
toda a Irlanda.[...] Precipitava-se também no cemitério solitário
da colina onde jazia Michael Furey. Acumulava-se sobre as
cruzes inclinadas e sobre as lápides, sobre as pontas do gradil
do pequeno portão, sobre os espinhos toscos. Sua alma
desfalecia lentamente enquanto ele ouvia a neve precipitando-

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 304


se, placidamente no universo e placidamente se precipitando,
descendo como a hora final sobre todos os vivos e os mortos
(JOYCE, 2012, p. 196-7).

Huston, no filme, mostra um Gabriel amargurado, olhando


pela janela do hotel, tendo diversos pensamentos e contemplando
a neve que cai:

[...] desta vez sabemos deles pela voice over e assistimos


algumas imagens recriadas por Huston, como a cena do velório
da tia Julia. Gabriel permanece na janela e observa os flocos
de neve que caem por toda a Irlanda, sobre todos os vivos e os
mortos. No último momento, a neve que cai invade seu
pensamento, tanto no conto quanto no filme. O branco da neve
paira como uma premonição de morte (REICHMANN, blog,
Acesso em: 21 jul. 2015).

Concluímos que, no filme, três amores foram mostrados:


o amor do poema “Laços partidos” que é consumado, porém seguido
de abandono; o amor de Gretta por Michael Furey que não foi
consumado, mas para sempre presente e vivo na lembrança dela;
o amor de Gabriel personificado pelo desejo que sente por Gretta,
que se concretiza pela vida em comum do casal, contudo não se
realiza como desejo intenso, pois Gretta estava nostálgica,
sonhadora, relembrando seu amor adolescente.

Referências

AZEVEDO, Reinaldo. Disponível em: http://veja.abril.com.br/blog/


reinaldo/geral/um-desagravo-anjelica-huston-os-vivos-os-
mortos/. Acesso em: 15 jul. 2015.

JOYCE, James. Dublinenses. Trad. José Roberto O’Shea. São Paulo:


Hedra, 2012.

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HUTCHEON, Linda. Uma teoria da adaptação. 2. ed. Trad. André
Cechinel. Florianópolis: Ed. Da UFSC, 2013.

REICHMANN, Brunilda. T. Disponível em: http://teorialiteraria-


uniandrade.blogspot.com.br/p/os-mortos-o-conto-de-joyce-e-o-
filme-de_07.html, Acesso em 20 jul. 2015.

STAM, Robert. Teoria e prática da adaptação: da fidelidade à


intertextualidade. Disponível em: http://filmes.seed.pr.gov.br/
arquivos/File/robertstam.pdf. Acesso em: 01 jul. 2015.

STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema. 5. ed. Trad. Fernando


Mascarello. Campinas, SP: Papirus, 2014.

SITE sobre personagens do cinema. Disponível em: http://


filmow.com/john-huston-a4460/. Acesso em: 15 jul. 2015).

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A DUALIDADE E O EXISTENCIALISMO NO CONTO OS
MORTOS, DE JAMES JOYCE

Autores: Luiz Fernando Warumby (UNIANDRADE)


Maria da Consolação Soranço Buzelin (UNIANDRADE)
Orientador: Prof. Dr. Paulo Eduardo de Oliveira (UNIANDRADE)

RESUMO: Esse artigo propõe-se analisar as questões existenciais


presentes em “Os mortos”, conto de James Joyce, publicado em
Dublinenses, 1914. Na tentativa de compreendermos o mundo que cerca
Gabriel Conroy, o personagem principal da narrativa, com seus anseios
e o enclausuramento em seu mundo, nos ancoraremos nos conceitos
de Mikhail Bakhtin, presente em Estética da criação verbal, 2011, no
capítulo “A questão do homem interior- da alma”, bem como pela
percepção existencialista de Jean- Paul- Sartre, em O ser e o nada,
2014, no capítulo “A origem da negação”. Poderemos assim melhor
compreender as dúvidas e incertezas desse homem, na busca de
respostas que nunca serão totalmente encontradas. Talvez essa
angústia e incerteza sejam o maior mistério da condição humana, ou
seja, compreender e vivenciar a problemática da morte.
PALAVRAS – CHAVE: Existencialismo. Condição Humana. Alma.
Incertezas. Morte.

Introdução
“Os Mortos”, de James Joyce, é o último, de uma coletânea
de quinze contos do livro Dublinenses, lançado em 1912. As cópias
foram queimadas por um desconhecido, só restando um volume.
Foi reeditado mais tarde, 1914. Como o próprio nome indica,
Dublinenses, fala de Dublin e seus habitantes. Os contos do livro,
inovadores, prenunciavam o Modernismo. Em “Os mortos” há uma
crítica à paixão política, e são colocados em evidência os costumes
da sociedade da época.

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Narrado de forma linear, com fluxo de consciência e
monólogo interior; tem muitas características no tocante aos
costumes da Irlanda, principalmente às comidas servidas na ceia:
“Enquanto Gabriel e a senhorita Daly serviam os pratos com fatias
de ganso, carne assada ou pernil, Lilly ia de convidado a convidado,
com uma travessa de batatas dorée quentes, embrulhadas em
um guardanapo branco” (JOYCE, 2012, p. 168). Possui um
simbolismo bastante forte da neve em todo o conto, do qual iremos
tratar mais adiante.
O conto se inicia num ambiente festivo, quando os
convidados da festa de fim de ano das Senhoras Morkan, tias de
Gabriel Conroy, o personagem principal, estão sendo
recepcionados, e termina no hotel onde Gabriel e Gretta, a sua
esposa, vão passar a noite. As lembranças ocasionais de Gabriel
sobre a sua mãe, sobre a infância e a vida adulta são entremeadas
de reflexões:

Uma sombra percorreu-lhe o rosto ao lembrar-se da obstinada


oposição que a mãe fizera ao seu casamento. Certas frases
ferinas machucavam-no ainda na memória. Ela afirmara certa
vez, ser Gretta uma provinciana interesseira, e isso não era
verdade. Gretta é quem cuidara dela durante a longa e fatal
enfermidade, em Monkstown. (JOYCE, 2012, p. 160)

A narrativa é, dessa forma, orientada pela conduta de


Gabriel na festa, que delimita seu caráter soberbo, sua memória,
e a descoberta da verdade de sua existência, que o levam a uma
deflagração dos encontros com o passado, com experiências do
presente e com as elucubrações futuras, momentos que são
considerados “epifanias”, ou seja, “transitou para o circuito
literário, graças a James Joyce, com o sentido de “iluminação,
“revelação” (MOISÉS, 2004, p. 156).

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 308


Para nossa análise, dividiremos o conto em três partes:
na primeira, serão apresentadas as pessoas que se reúnem na
festa, onde se notará a estagnação da sociedade dublinense presa
a valores temporais e mundanos. Na segunda parte, será colocado
em evidência o discurso que Gabriel faz na festa com ênfase ao
enclausuramento em seu mundo, construído com suas próprias
conclusões e certezas e, na última parte, o colóquio de Gabriel e
Gretta, sua esposa, no hotel, local em que Gabriel confronta-se
com a sua existência, uma vez que as certezas que o solidificavam
não existem mais. Como embasamento teórico, nos ancoraremos
nos conceitos de Mikhail Bakhtin, presentes em Estética da criação
verbal, sobre “A questão do homem interior - da alma”, bem como
na percepção existencialista de Jean-Paul Sartre, em O ser e o
nada, sobre “A origem da negação”.
Em nossa análise será abalizada, como tema central, a
mortalidade do ser humano perdido em um mundo sem
comunicação e sem propósito. Em um meio no qual persistem
regras que são convenções sociais, isto é, sem um argumento
plausível que as sustentem, e ações e falas das personagens que,
simplesmente, obedecem a um script social para não serem mal
faladas e continuarem fazendo parte de um grupo, a aparente
contradição entre o ambiente festivo e o título “Os mortos”, faz o
leitor refletir, num primeiro momento, sobre a finitude de sua
existência.

A festa
Na primeira parte do conto, Gabriel Conroy chega à festa,
e é recebido por Lilly, a filha do zelador:

- Diga-me, Lily – perguntou em tom amável – você ainda vai à


escola?
- Oh, não senhor! Deixei de estudar há mais de um ano.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 309


- Suponho então – acrescentou Gabriel, brincando – que um
dia desses iremos ao seu casamento?
A jovem olhou-o por sobre os ombros e respondeu com azedume:
- Os homens de hoje são todos uns aproveitadores bons de
conversa.
Gabriel enrubesceu como se tivesse cometido um deslize e,
sem olhar para ela, tirou as galochas e esfregou vigorosamente
o cachecol nos sapatos de verniz. (JOYCE, 2012, p.152)

No diálogo acima, Gabriel inicia a conversa num tom


amável, mostrando-se receptivo à resposta de Lilly, que, num
primeiro momento, mostra-se solícita e, de forma respeitosa,
responde. Contudo, o tom de Lilly muda, uma vez que Gabriel dá a
entender que ela abandonou a escola para casar. Lilly sente-se
ofendida e Gabriel tem a sua autoconfiança abalada, por isso
enrubesce, ficando envergonhado. No entanto, Gabriel, para
mostrar-se superior, dá a Lilly uma moeda:

Quando terminou de lustrar os sapatos, endireitou-se, e ajustou


o paletó em seu corpo robusto e, afobadamente, tirou uma
moeda do bolso: - Lilly, disse ele, colocando a moeda em sua
mão - Estamos no Natal, não é? Tome... uma pequena...
Apressou-se em direção à porta. (JOYCE, 2012, p. 152-153)

Dessa forma, ele acredita que ao dar dinheiro a Lilly pode


apagar a situação embaraçosa, redimir-se frente a ela e comprar
a sua estima.
Gabriel considera que o equívoco ocorreu devido ao seu
deslocamento e inadequação social, porque é difícil conciliar a
simplicidade das pessoas com a sua superioridade intelectual,
pois se considera um homem autossuficiente, meticuloso,
observador e superior, e que não mostrava estar à vontade entre
os convidados: “A forma grosseira como os homens batiam os pés

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 310


e arrastavam os sapatos no chão recordou-lhe a diferença de
cultura que os separava” (JOYCE, 2012, p. 153).
O primeiro clímax do conto decorre dessa certeza de Gabriel
ao acreditar que é superior aos demais, e, por isso é sempre
agradável e bem quisto pelas pessoas com as quais convive.

Era um rapaz forte, bastante alto. O acentuado rubor de suas


faces subia até a testa onde se atenuava em manchas informes
e rosadas. Em seu rosto liso, cintilavam sem descanso as lentes
e os aros dourados dos óculos que lhe cobriam os delicados e
inquietos olhos. Os cabelos, negros e lustrosos, eram repartidos
no meio e penteados numa longa curva atrás das orelhas, onde
se enrolavam levemente no sulco deixado pelo chapéu. (JOYCE,
2012, p. 152)

Observa-se também, que Gabriel, como Narciso, ainda está


voltado apenas para a sua beleza, pois, o reconhecimento da sua
superioridade só o faz afirmar ainda mais que ele tem qualidades
positivas que o fazem diferente dos outros que não as têm. Segundo
o Dicionário Rideel de Mitologia: “Narciso, filho do deus-rio Cefiso e
da ninfa Liríope, viveria muito desde que não contemplasse a
sua imagem. Tornou-se o símbolo do egocentrismo, do amor próprio
e da vaidade” (JULIEN, 205, p. 153).
Na continuação da festa há o seguinte diálogo entre
Gabriel e Molly Ivors, que é considerada pelo narrador como uma
“jovem falante e desembaraçada”:

Ao tomarem seus lugares para a dança, ela afirmou


inopinadamente:
- Tenho uma conta a ajustar com você.
- Comigo?
Ela balançou a cabeça com ar grave.
- O que é? – perguntou Gabriel, sorrindo de seus modos solenes.
- Quem é G.C.? – indagou a jovem encarando-o de frente.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 311


Gabriel enrubesceu e ia franzir a testa como se não tivesse
compreendido, quando ela prosseguiu:
- Oh, meu ingênuo farsante! Descobri que você escreve para o
Daily Express. Não se envergonha disso?
- Por que haveria de me envergonhar? - perguntou Gabriel
piscando os olhos e tentando sorrir.
- Bem. Estou envergonhada de você. – disse ela com franqueza
– Pensar que escreve para um jornal como esse. Não sabia que
era anglófilo. (JOYCE, 2012, p.160)

A primeira frase do trecho acima lembra a organização do


baile, quando os participantes da dança já têm lugares e funções
definidas. Dessa forma, a festa ocorre normalmente, em
conformidade com o que é convencionado pela sociedade, de modo
racional e equilibrado.
Gabriel, nesse momento da narrativa, procura sintonizar-
se com o ambiente festivo ao tomar seu lugar na dança, voltando
à sua certeza existencial. Entretanto, agora ele encontra um
interlocutor que parece ser mais gabaritado que os outros, pois
Molly Ivors toma a iniciativa do diálogo e num tom de desafio
indaga sobre a identidade de G. C. que escreve para o Daily Mail.
Num primeiro instante, Gabriel procurou manter o equilíbrio pela
manutenção de seus modos solenes. Contudo, enrubesceu
novamente e não conseguiu esconder sua identidade de escritor
daquele jornal para a senhorita Ivors. A colocação de Molly poderia
ser tomada como uma brincadeira, mas na verdade é uma
provocação, que novamente abalou a autoconfiança de Gabriel,
colocando-o, aparentemente, como traidor dos irlandeses, porque
Molly afirma que Gabriel ao escrever para um jornal inglês,
logicamente era anglófilo, isto é, amigo dos ingleses. Gabriel
espanta-se com as afirmações de Molly, pois não consegue ver
ligação entre escrever resenhas e a política. Ele tem bastante
prazer naquele trabalho literário:

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 312


Não sabia como enfrentar aquele ataque. Queria dizer que a
literatura estava acima da política, mas eram amigos há muitos
anos e suas carreiras- primeiro na universidade, depois como
professores - tinham sido paralelas: não poderia arriscar uma
frase grandiosa com ela. (JOYCE, 2012, p. 161)

Dessa forma, Gabriel se sente desconfortável, uma vez que


está deslocado, dentro de um contexto que aparentava ser
confortável para a sua existência social, a qual deveria ser
valorizada pelos participantes da festa. Assim, novamente ele
sofre pela sua inadequação social.
Não podemos esquecer de que na época em que se passa a
narrativa, a Irlanda estava em vias de se tornar independente da
Inglaterra, e, por isso, havia a tensão nacionalista entre os
ingleses e os irlandeses, o que confirma nossa citação de crítica
política presente no conto, além de que, pode estar refletida nesse
trecho a voz do autor, a forma de justificar, por meio da literatura,
o seu amor ao país e até a sua inadequação enquanto irlandês.

O discurso
No início da narrativa, logo depois de seu encontro com
Lilly, e do incidente que ocasionara, Gabriel encontra-se no salão
onde as pessoas dançam:

Estava ainda perturbado pela resposta brusca e rude da jovem.


O incidente lançara uma sombra sobre ele, que agora tentava
dissipá-la ajustando os punhos da camisa e o nó da gravata.
Tirou um pedaço de papel do bolso do colete e leu os tópicos
que anotara para o seu discurso. [...]. O discurso todo era um
equívoco, um completo fracasso. (JOYCE, 2012, p. 153)

Essa constatação faz com que Gabriel reconheça que o seu


discurso de final de ano seja revisto, pois, ao considerar-se

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 313


superior às pessoas que estão ao seu redor, “temia que estivesse
acima da compreensão dos ouvintes” (JOYCE, 2012, p. 153).
Seu medo reside no fato de errar ao não se adequar
socialmente, pois se sentia superior ao que lhe era oferecido.
Considerava o seu discurso como fadado ao fracasso porque os
convidados não o compreenderiam, e que somente ele tinha a
erudição para compreender os versos de Robert Browning, ou até
mesmo versos de outros escritores mais populares como os citados:
Shakespeare e Thomas Moore.

O hotel
Na terceira parte de nossa análise de “Os mortos”, Gabriel
e sua esposa Gretta, vão para um hotel, onde irão passar a noite.
Ele encontra-se recuperado das duas situações que abalaram a
sua autoconfiança e, por conseguinte, a sua reputação social
impecável, e na suposta proximidade com a esposa apercebe-se
de que: “Momentos de sua vida íntima irromperam como estrelas
na memória” (JOYCE, 2012 p. 182).
Gretta não compartilha da mesma euforia de seu esposo
e, no quarto do hotel, encontra-se triste e introspectiva. Gabriel
depois de vê-la na festa, na escada, parada, ouvindo uma música
ao fundo, intriga-se. Ela acaba por revelar que a música lhe trazia
a lembrança de alguém que conhecera quando jovem:

Procurou manter o tom de frio interrogatório, mas sua voz soou


humilde e indiferente:
- Suponho que esteve apaixonada por esse Michael Furey,
Gretta.
- Queríamo-nos muito bem nesse tempo – respondeu ela.
Sua voz era velada e triste. Percebendo como seria tolo tentar
arrastá-lo ao que pretendia.
Gabriel começou a acariciar-lhe a mão e disse, também com
tristeza.
- E por que morreu tão jovem, Gretta? Tuberculose,foi?

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 314


- Creio que morreu por minha causa. (JOYCE, 2012, p.187)

Se no primeiro diálogo apresentado Gabriel sentiu-se


culpado e no segundo perplexo, agora ele encontra-se
desestabilizado, pois percebe que suas verdades não existem mais.
As sucessivas desestabilizações de suas certezas minam
a sua autoconfiança e o despem da máscara daquele homem
talhado pelas convenções sociais e pelos olhares externos. Agora,
Gabriel compreende que sua vida retilínea e metódica não é
suficiente para sobreviver socialmente. A constatação de que
Gretta havia tido um passado, conhecera alguém, faz com que
ele se recorde de outros mortos e os que estavam na festa
desapareceriam também: “Pobre tia Júlia! Ela também seria uma
sombra (...) surpreendera esse fúnebre presságio em sua face,
quando ela cantava. (...). Um por um, estavam todos se
transformando em sombras” (JOYCE, 2012, p. 190). Conforme
afirma Bakhtin:

Os valores de uma pessoa qualitativamente definida são


inerentes apenas ao outro. Só com ele é possível para mim
alegria do encontro, a permanência com ele, a tristeza da
separação, a dor da perda, posso encontrar-me com ele no tempo
e no tempo mesmo separar-me dele, só ele pode ser e não ser
para mim. (BAKHTIN, 2011, p. 96)

A necessidade de olhar para dentro de si, provocada por


situações embaraçosas, ou mais do que isso, questionadoras e
desafiadoras, faz dele um personagem cíclico, o qual se volta
sempre para a sua situação emocional e existencial. Esse
momento pode ser representado quando Gabriel olha a neve que
cai na vidraça. A neve nesse conto tem uma simbologia muito
forte. Conforme o dicionário de símbolos, define-se a neve como:

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 315


Símbolo do indeterminado, que preceda revelações importantes:
é o prelúdio da manifestação. No desenrolar da narrativa,
significa uma perturbação, uma transição no tempo, uma
passagem mais fantástica ou maravilhosa. (CHEVALIER,
GHEERBRANT, 2005, p. 634)

Portanto, para Gabriel, a neve que cai é apenas um


fenômeno da natureza. Quando ela recobre a paisagem, invade
também o pensamento dele e evoca, pelo seu branco, a igualdade
de todas as pessoas: os vivos que irão morrer e os mortos que
estão entre nós. Essa neve, ao mesmo tempo em que protege a
figura imponente de Wellington, cintila, lembrando e destacando
a importância histórica de Wellington para a formação da Irlanda.
Gabriel busca a fuga e o abrigo da neve, como se fosse a sua capa
protetora para confortar a mente.
Em Sartre, podemos encontrar uma reflexão significativa
sobre as muitas interrogações sobre o ser e não ser, a vida e a
morte, que se apresentam ao mesmo tempo como manifestação
do ser e do vazio de ser:

Partimos em busca do ser e parecia que tínhamos sido levados


a seu núcleo pela série de nossas indagações. Eis que uma
olhada na própria interrogação, quando supúnhamos alcançar
nossa meta, nos revela de repente estarmos rodeados de nada.
A possibilidade permanente do não ser, fora de nós e em nós,
condiciona nossas perguntas sobre o ser. E é ainda o não ser
que vai circunscrever a resposta: aquilo que o ser será vai se
recortar necessariamente sobre o fundo daquilo que não é.
Qualquer que seja a resposta pode ser formulada assim: “O
ser é isso, e, fora disso, nada”. (SARTRE, 2014, p. 46)

Nesse “nada” que atinge Gabriel, ele não encontra


respostas. As três passagens que marcam o desnudamento de
Gabriel podem ser encaradas como ritos que não precisaram de

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 316


longos tempos de maturação ou de uma cerimônia específica. Na
verdade, a cerimônia está no próprio baile e no hotel, com sua
mulher, as quais propiciaram ao personagem ultrapassar o nível
da reflexão, chegando até a percepção da dúvida que passou a
guiar a incerteza de sua própria existência.

Considerações finais
Sem a dúvida que gera a procura por respostas nos seres
humanos, o homem não seria um ser lógico e racional. A morte
da certeza e o florescimento da dúvida é o que se percebe como a
passagem de uma situação determinada a outra, uma vez que o
objetivo é idêntico, isto é, o abalo das estruturas que suportam a
imagem social que Gabriel vê transparecer em sua vida.
Ao mesmo tempo em que relembra pontos do seu discurso,
agora voltado para a hospitalidade irlandesa, sente-se incomodado
com as palavras de Molly Ivors, que, apesar de elogiá-lo, não crê
em suas palavras: “Molly Ivors elogiara-o. Teria sido sincera? Será
que, apesar de todo seu proselitismo, ela teria uma verdadeira
vida interior? Até aquela noite, nunca existira animosidade entre
eles” (JOYCE, 2012, p.164). Assim, Gabriel lembra uma frase que
escreveu num dos seus artigos, a qual reflete exatamente como
está se sentindo naquele baile: “Sente-se estar ouvindo uma
música torturada pelo pensamento” (JOYCE, 2012, p.164). Bakhtin,
em sua obra Estética da criação verbal, afirma:

Quando as fronteiras estão dadas, a vida pode ser disposta e


enformada nelas de modo inteiramente distinto, da mesma
forma que a exposição do fluxo do nosso pensamento pode ser
construída de maneira diferente quando a conclusão já foi
encontrada e dada (foi dado o dogma) e quando ainda está sendo
procurada. A vida determinada, livre das garras do porvir, do
futuro, do objetivo e do sentido, torna-se emocionalmente
mensurável, musicalmente exprimível. (BAKHTIN, 2011, p.98-99)

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 317


Gabriel acreditava nos limites dessas fronteiras e por isso
vivia o seu mundo construído em suas próprias conclusões e
certezas. Não cabe em suas reflexões o conceito de desvio na
relação entre o eu e o outro, como afirma Bakhtin que “em linhas
gerais, o homem é uma equação do eu e do outro, um desvio em
face das significações axiológicas” (BAKHTIN, 2011, p. 99).
Na verdade, o dualismo com o qual Gabriel enxerga a vida
não considera uma relação entre o eu e o outro, pois ele traça
paralelos ao pensar em superior e inferior, cultura erudita e
popular e erro ou acerto, além de não perceber o desvio que é o
homem, pois ele o vê justamente como um axioma completo pelo
que é e representa na sociedade. Nesse sentido, não podemos
deixar de mencionar o próprio título do conto “Os mortos”. Segundo
o dicionário de símbolos:

A morte é o aspecto perecível e destrutível da existência. Ela


indica aquilo que desaparece na evolução irreversível das coisas.
[...]. Ela é revelação e introdução. Todas as iniciações
atravessam uma fase de morte, antes de abrir o acesso a uma
vida nova. Nesse sentido, ela tem um valor psicológico: ela
libera as forças de ascensão do espírito. (CHEVALIER,
GHEERBRANT, 1996, p. 621)

Assim Gabriel vê-se frente à realidade, momento em que


compreende melhor a sua existência. No excerto do poema “Ela
carpe Rahoon afora”, encontramos também esses momentos:

Das sombras sim nossos corações. Ó amor,


Jazerão e frios como jazia o do meu amante
Sob as urtigas cinza lua, ah o negro bolor
E a chuva lamuriante. (JOYCE, 2015, p. 11)

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 318


Encontram-se também, no final de “Os mortos”, momentos
de paralisia e de epifania. Instantes reveladores que fazem com
que Gabriel, no quarto com Gretta, ao se confrontar com a
realidade, tente escapar da idéia de sua própria morte. Talvez
essa seja, precisamente, a condição humana, situada sempre
nos limites entre a existência e o nada, entre a vida e a morte,
não como pontos definidos de forma absoluta, mas, como instantes
de uma mesma e única totalidade da existência.

Referências

BAKHTIN, M. A questão interior da alma. In: Estética da criação


verbal. Tradução de Paulo Bezerra. 6.ed. São Paulo: Martins Fontes,
2011, p. 91- 120.

CHEVALIER, J. GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos: mitos,


sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números.
Tradução de Vera da Costa e Silva. Rio de Janeiro: José Olympio,
1996.

JOYCE, J. Os mortos. In:_____. Dublinenses 1. ed. Trad. Hamilton


Trevisan. Rio de Janeiro: BestBolso, 2012, p. 150-191.

______. Ela carpe Rahoon Afora. In:______. Pomas doiscontoscada.


Tradução de Eclair Antonio Almeida filho e de Josina Nunes
Magalhães Roncisvalle.São Paulo: Lumme, 2015, p. 11.

JULIEN, N. Dicionário Rideel de mitologia. 1. ed. Tradução de Denise


Radonovic Vieira. São Paulo: Rideel, 2005.

MOISÉS, M. Dicionário de termos literários. 12. ed. São Paulo:


Cultrix, 2004.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 319


SARTRE, J, P. O existencialismo é um humanismo. Trad. Rita Correia
Guedes. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural. 1987.

______. A origem da negação. In: ______. O ser e nada: ensaio de


ontologia fenomenológica. 23. ed. Tradução de Paulo Perdigão. Rio
de Janeiro: Vozes, 2014, p. 43-64.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 320


O DIÁRIO DO AMAZONAS DE ROGER CASEMENT

Autora: Mail Marques de Azevedo (UNIANDRADE)

RESUMO: Este trabalho analisa The Amazon Journal of Roger Casement


(1997), com o objetivo de traçar o perfil da figura histórica, o cônsul-
geral do Império Britânico no Brasil (1909-1913), que viaja à Amazônia
peruana para investigar denúncias de atrocidades contra as populações
indígenas na extração de borracha. Admirador de Casement Vargas
Llosa transforma-o em protagonista do romance El soño del celta.(2010).
Utiliza-se na análise a estrutura da operação historiográfica,
estabelecida por Paul Ricoeur: estágio do testemunho e dos arquivos;
fase das indagações e plano da escrita da representação historiadora
do passado. O registro dos testemunhos de cidadãos britânicos de
Barbados, executores dos castigos bárbaros, e das indagações e
reflexões de Casement desenha o perfil do diarista: observador
perspicaz, juiz destemido e defensor dos direitos humanos. Demonstra-
se como esse retrato psicológico e moral contrasta com as acusações
de pedofilia e traição à pátria que o condenaram à morte, em 1916.
PALAVRAS-CHAVE: Roger Casement. Diário do Amazonas. Borracha.
Investigação.

No ensaio “As raízes do humano”, Mário Vargas Llosa


analisa a dialética entre civilização e barbárie em O coração das
trevas: a novela de Joseph Conrad seria uma diatribe contra os
crimes perpetrados pela Companhia Belga de Leopoldo II,
responsável pelo extermínio de cinco a oito milhões de nativos
entre os anos de 1885 e 1906. Entre as vozes de protesto e
denúncia, observa Llosa no prólogo do ensaio, as do irlandês, Roger
Casement, e as do belga, Edward Morel, “mereceriam as honras
de um grande romance” (2007, p. 38).
Vargas Llosa concretizou seu propósito com a publicação,
em 2010, do romance El sueño del Celta, em que se utiliza de um

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 321


simulacro de crônicas históricas e diários pessoais para
aproximar o livro do tempo em que o romance transcorre.
De fato, a linguagem do sonho está muito próxima ao estilo
do Roger Casement histórico no seu diário do Putumayo, editado
e publicado em 1997 pelo pesquisador Angus Mitchell, com o título
de The Amazon Journal of Roger Casement.
A pesquisa que realizamos estabelece na análise do Diário
do Amazonas uma relação similar àquela existente entre as fases
da operação historiográfica, conforme a epistemologia das
ciências históricas de Paul Ricoeur. The Amazon Journal configura
o estágio do testemunho e dos arquivos que conduz, no percurso
epistemológico, pela fase das indagações ao plano da escrita da
representação historiadora do passado. O romance de Vargas
Llosa representa esta última fase da operação historiográfica,
segundo Paul Ricoeur, isto é, o plano da escrita da representação
historiadora do passado.

Preâmbulo: O Diário do Putumayo e os Black Diaries


Dentre os documentos pessoais de Roger Casement,
arquivados na Biblioteca Nacional da Irlanda, Angus Mitchell teve
acesso, em 1995, ao vasto manuscrito da viagem ao Putumayo
que, provavelmente em virtude do volume, fora praticamente
ignorado. Mitchell viria a editar e publicar esse material em 1997
como The Amazon Journal of Roger Casement, agrupado em três
partes intituladas “A viagem ao Putumayo”, “O diário do Putumayo”
e “A caminho de Londres”, precedidas de informações sobre a
controvérsia a respeito dos diários de Casement.
Os diários de Casement, de que trata a primeira parte do
livro de Mitchell, foram mencionados em público pela primeira
vez no quarto dia do julgamento por traição e criaram rumorosa
celeuma na imprensa e nos meios intelectuais britânicos.
Denominados de Black Diaries abrangem material apreendido pela
Scotland Yard entre os papéis de Roger Casement. A par de

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 322


anotações inócuas, o material contém relatos de atos sexuais
em Londres, no Congo, Madeira, nas Ilhas Canárias e em Serra
Leone, principalmente com meninos nativos. Na Inglaterra
eduardiana, um crime quase tão grave quanto o de traição à pátria.
Especialistas em grafologia e pessoas do círculo íntimo de
Casement identificaram sua letra em fac similes dos manuscritos,
mas a firme confiança na estatura moral de Casement despertou
dúvidas sobre a autenticidade do material, que teria sido forjado
pela Inteligência Britânica. Até hoje, quase cem anos após os
acontecimentos, as opiniões permanecem divididas.
O governo britânico declara o caso encerrado. Todavia,
desde os anos cinquenta, adeptos da teoria da falsificação
levantam dúvidas sobre a autenticidade dos Black Diaries. Foram
liberados ao público, em 1994, o material que constitui os Black
Diaries, mais de cento e setenta arquivos fechados: a questão dos
diários de Casement passou a constituir história. O exame direto
dos documentos, entretanto, não trouxe o esperado esclarecimento
e as posições, tanto do governo e da imprensa britânica a respeito
do Gay Traitor, como a dos grupos questionadores da autenticidade
dos diários, permanecem inalteradas.
Já a autenticidade dos arquivos pessoais de Casement,
que deram origem ao diário do Putumayo, jamais foi questionada.
O próprio aspecto físico desses arquivos % montanhas de
manuscritos esparsos, cuidadosamente datados, que não tinham
sido manipulados anteriormente % fala em defesa da veracidade
das informações. Ao examinar esses arquivos, em 1995, Angus
Mitchell começa a duvidar da autenticidade dos Black Diaries,
que aceitara até então. Percebe inúmeras discrepâncias de dados
e datação entre esses arquivos e outros, já manipulados
extensivamente. Mitchell passa a acreditar em um plano
brilhante da Inteligência Britânica para impedir que Casement
se tornasse um mártir.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 323


O diário do Putumayo é um relato da viagem de Casement
à Amazônia peruana, quando cônsul-geral do governo britânico
no Brasil, para investigar denúncias de atrocidades contra as
populações indígenas empregadas na indústria da borracha. O
relato contundente das condições em que se realizam as
pseudotrocas comerciais com os nativos revela a natureza firme
e destemida do Casement histórico que inspira a caracterização
do personagem de ficção.
A análise de cartas de Casement e do diário do Amazonas,
como gêneros híbridos, quer em acepção especifica, no material
arquivado, quer como simulacro ficcional, revelador de suas
reflexões íntimas, embasa a construção do perfil do diarista-
personagem.

A operação historiográfica
Estágio do testemunho e dos arquivos
No prelúdio do capitulo intitulado “História/Epistemologia”,
em A memória, a história, o esquecimento, Paul Ricoeur recorre ao
Fedro de Platão para explanar o nascimento mítico da escrita da
história e a valoração maior atribuída no mito ao discurso oral %
“o discurso da verdadeira memória, de nascimento legítimo,
inscrito na alma”. Todavia, tanto o discurso oral como o escrito
são escrituras, o que permite dizer que ambos são aparentados e
“o discurso escrito é de certa forma uma imagem (eidólon) daquilo
que na memória viva é vivo” (2007, p. 153).
Para conhecer o Casement histórico e levantar seu perfil
seria necessário ouvir sua voz. Mas onde ouvi-la? Na falta de
testemunhos orais, propomo-nos utilizar as cuidadosas anotações
feitas durante a viagem ao Putumayo, bem como as cartas em
que ouvimos suas preocupações sobre as dificuldades da missão
– anotações que constituem a segunda parte do Diário do
Amazonas, editado por Mitchell.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 324


Do S.S. Hilary no mar. 02 de agosto de 1910
Bulldog, meu velho.
Viagem agradável até aqui – apesar do excessivo contato com a
Comissão da Companhia Peruana do Amazonas. Pretendo
manter-me à parte tanto quanto possível sem ferir as regras
da polidez. Acho que esta viagem não vai trazer nenhum
resultado – talvez indireta, mas não diretamente. (...) É
praticamente impossível chegar a um juízo ou seguir qualquer
linha de investigação independente quando do começo ao fim
estarei recebendo tudo “de favor”. (...)
Com meus melhores votos para todos.
Seu sempre –
Tiger
(CASEMENT, in MITCHELL, 1997, p. 65)

Bulldog. e Tiger são apelidos-símbolo de lealdade, força e


coragem usados por Edward Morel – o belga mencionado por Llosa
– e Casement, que sedimentam a longa amizade iniciada no
Congo, a qual terá final melancólico com as acusações de traição
ao Império Britânico, e de pedofilia e perversão sexual.
A tarefa da Comissão da Companhia Peruana do Amazonas,
formada por ingleses ligados à própria Companhia, é tanto
investigar a veracidade das acusações de crueldades praticadas
contra os índios na região do Putumayo, onde o empreendimento
conjunto britânico-peruano se desenvolve, como fiscalizar suas
operações comerciais.
Os testemunhos dos barbadianos, bem como os relatos de
conversas informais com pessoas ligadas à Companhia Peruana
do Amazonas, correspondem à primeira fase da operação
historiográfica: a dos testemunhos e arquivos.
A missão de Casement é complexa e inúmeros os
obstáculos geográficos, linguísticos e, principalmente, políticos
que se lhe opõem: (1) para atingir seu destino, Iquitos, cidade
principal da província de Loreto e sede da Companhia, bem como

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 325


as estações de coleta de borracha na região do Putumayo,
Casement é forçado a utilizar-se dos barcos da Companhia e
hospedar-se em suas instalações; (2) os raros intérpretes das
principais línguas indígenas, o huitoto e o borá, têm ligação com
a companhia; (3) Julio Arana, presidente da Companhia, tem força
política superior à do próprio governo peruano. É quem garante o
pagamento dos salários de juízes, policiais e de funcionários civis
e militares de Iquitos, sempre em atraso. Arana goza de enorme
prestigio como civilizador do Putumayo, o patriota que garantiu
ao Peru a posse de territórios reivindicados pela Colômbia.
Casement tem plena consciência de estar se lançando
em luta desigual, de resultados incertos:

Se fôssemos realmente uma Comissão investida de autoridade


e poder para investigar de fato e colher provas sob juramento,
e dispuséssemos de intérpretes adequados e guias com algum
conhecimento local de homens, lugares e transações, que
estranhas revelações a respeito de “suprimento de mão de obra”,
“propriedades da borracha” e “trabalho dos índios” poderíamos
trazer à luz! (CASEMENT, in MITCHELL, 1997, p. 83)

Casement registra meticulosamente o dia-a-dia de sua


missão e oferece aos possíveis destinatários um testemunho
espontâneo dos fatos registrados quase que simultaneamente à
observação. A brevidade temporal entre observação e registro
característica do gênero impressiona pela veracidade que não
pode alterar nem deformar a recordação dos fatos referidos. Nos
diários do Putumayo, o registro objetivo dos fatos é sempre
acompanhado de sua refração na consciência do autor, o que lhes
confere caráter intimista e quase confessional. Como observa
Philippe Lejeune (2008), é difícil encontrar um diário
quimicamente puro: há momentos em que a introversão supera

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 326


no espírito do redator a parte da extroversão ou vice-versa. Ao
assenhorear-se da situação local, Casement usa o papel como
confidente de seus maus presságios:

E aqui estou eu, com o relógio marcando quase 3 horas da


tarde, esperando para interrogar os peões barbadianos deste
baluarte do vicio. Como é que vai ser? Um verdadeiro
interrogatório abrangendo o terreno de suas relações com a
Companhia e os deveres que lhes cabia desempenhar, ou
simplesmente um simulacro que me permita “livrar a cara” e
assegurar a Tizon que os homens “parecem satisfeitos e todos
dizem que são bem tratados e pagos em dia” etc. (CASEMENT,
in MITCHELL, 1997, p. 83)

Eis a grande dificuldade de Casement: coletar e preservar


testemunhos que acusam diretamente a cúpula da Companhia.
Como fazer valer o testemunho prestado não oficialmente por ex-
funcionários, estrangeiros de pele escura, cúmplices dos
barbarismos cometidos pelos dirigentes?
Paul Ricoeur enfatiza o núcleo comum do testemunho em
diferentes situações. Seja na conversação diária, em situação
dialogal ou no confronto com vários testemunhos e várias
testemunhas, em um espaço de controvérsia, somos colocados
de imediato diante da questão crucial: até que ponto o testemunho
é confiável? A suspeita se desdobra “ao longo de uma cadeia de
operações que tem inicio na percepção de uma cena vivida,
continua no da retenção da lembrança, para se concentrar na
fase declarativa e narrativa da reconstituição dos traços do
acontecimento” (RICOEUR, 2007, p. 171).
O testemunho de Josiah Dyall, um dos barbadianos, sobre
atos de que participou, beira o absurdo.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 327


Sábado, 24 de setembro – 8 horas

Como seus testemunhos são gravíssimos, pois admitiu que


assassinou cinco índios com as próprias mãos, dois a tiros, e
bateu em dois até matá-los “esmagando seus testículos” com
um pedaço de pau por ordem e com a ajuda de Normand, e um
ele açoitou até morrer, achei prudente que apresentasse sua
evidência completa diante da Comissão e do Sr Tizon.
CASEMENT, in MITCHELL, 1997, p.124)

Em diálogo com Casement, o barbadiano Josiah Dyall atesta


a realidade de cenas das quais participou como ator. No ato de
testemunhar, faz o que Dulong caracteriza como uma “narrativa
autobiográfica autenticada de um acontecimento passado, seja
essa narrativa realizada em condições informais ou formais”
(DULONG, in RICOEUR, p. 43) A testemunha pede que lhe deem
crédito: eu estava lá. Entra então a parte de Casement: a
autenticação do testemunho mediante a resposta em eco daquele
que recebe o testemunho e o aceita. A partir desse instante, o
testemunho está não apenas autenticado, mas acreditado
(RICOEUR, p. 48).

Quanto aos barbadianos, eles se acusaram a si mesmos o que,


em grande parte, prova a verdade de seus testemunhos. Eu
não conseguia ver que motivo induziria um homem a acusar-
se de crimes graves e covardes, como fizera Dyall, a menos que
estivesse fazendo uma confissão. Se eram culpados de atos
criminosos, como acredito que fossem, os verdadeiros
criminosos não eram eles, mas os homens que lhes tinham
dado ordem para fazer tais coisas e, se fosse o caso de punir
alguém, eu procuraria defender esses homens buscando
conselho e ajuda legal. (CASEMENT, in MITCHELL, 1997, p.
125)

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 328


Casement aceita como verdadeiros os testemunhos dos
barbadianos, testemunhas contra a vontade, segundo Ricoeur,
que se incriminam a si próprios. É o credenciamento, enquanto
processo em curso, que abre a alternativa entre a confiança e a
suspeita. O intervalo ideal entre o testemunho e seu
credenciamento deve ser curto, para não dar origem, segundo
Freud à “elaboração secundária” (RICOEUR, p. 173). Casement
defende seu ponto de vista diante de todos os membros da
Comissão.

LA CHORRERA – DOMINGO 25 DE SETEMBRO


Falei bastante durante o encontro. Expliquei que o senhor Tizon
não achava aconselhável confrontar os Chefes de Seção, que
visitaríamos em breve, com acusadores negros que haviam sido
seus empregados. Por outro lado, afirmei que esse confronto
era o único meio a nosso dispor para estabelecer a verdade
ou não dos testemunhos dos barbadianos contra seus
patrões. (CASEMENT, in MITCHELL, 1997, p. 127-128, ênfase
acrescentada)

Já na primeira estação, La Chorrera, é evidente que os


índios são açoitados: apresentam profundos vergões vermelhos
nas nádegas e coxas.
Ciente da própria fraqueza, na ausência de juízes
imparciais, ou mesmo de qualquer tipo de autoridade legal na
vastidão do Putumayo, em cuja imparcialidade também não
poderia confiar, Casement pede a ajuda de Deus para guiá-lo a
fazer o certo: “Que Deus me ajude a ajudar esses seres infelizes!”
O sofrimento imposto aos índios enche-o de justa ira:

Juro por Deus que enforcaria todo esse bando de miseráveis


com as minhas próprias mãos, se tivesse poder para tal, e com
o maior prazer. Nunca tive prazer em caçar; na realidade deixei
totalmente de atirar por detestar a ideia de tirar a vida. Eu

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 329


mesmo nunca dei vida a outro ser, e meu celibato me faz frugal
no que concerne à vida humana. No entanto, seria capaz de
exterminar a tiros esses criminosos infames muito mais
facilmente do que atiraria num crocodilo ou mataria uma cobra.
CASEMENT, in MITCHELL, 1997, p. 140)

Acompanhamos a lenta viagem rio acima até a estação de


Ocidente, no registro minucioso de acontecimentos e reflexões
no diário de Casement. A situação não se altera: “Mas aí está o
que temos % os muchachos, [índios] armados e treinados para
matar seus infelizes conterrâneos, ou ainda, índios borás
assassinando huitotos e vice-versa para satisfazer os caprichos
ou assegurar os lucros de seus senhores, que no final se voltam
contra eles (por uma variedade de motivos) e os matam”.
Antes de sair de Iquitos, Casement fora avisado de que os
postos mais próximos da fronteira com a Colômbia eram os mais
perigosos e desses o de Matanzas — matanças ou massacres —o
de pior reputação. Muito antes de atingir Matanzas, porém,
notícias da crueldade do chefe da estação, Armand Normand, já
haviam chegado aos ouvidos de Casement. Bishop o barbadiano
que o acompanha desde Iquitos, diz-lhe que acredita firmemente
nas histórias de que Normand teria arrebentado os miolos de
crianças batendo-lhes a cabeça de encontro a tocos de árvores e
queimando-as vivas, contadas a ele mais de uma vez por Donal
Francis, barbadiano que estivera a serviço de Normand por quase
dois anos.
Casement encara com repugnância e raiva impotente a
próxima convivência com o assassino desalmado, na condição de
hóspede da Companhia. O aspecto físico de Normand, que é
chamado de uma correria para receber a Comissão, e suas
atitudes altaneiras de comandante, confirmam os receios de
Casement:

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 330


DOMINGO, 16 DE OUTUBRO
Cerca das 5h30 ouvimos um tiro de rifle na floresta, vindo do
sul e o nome “Normand”, murmurado pelos rapazes e
empregados. Parecia a chegada de um grande guerreiro! (...)
Devo dizer que ele correspondia a tudo o que se pensava dele
ou lera a seu respeito, um ser minúsculo, raquítico, magro e
baixo, cerca de 1,70 m, com a fisionomia mais repulsiva que
vira em toda a minha vida. Era totalmente diabólica, cruel e
maligna. Senti-me como se estivesse sendo apresentado a uma
serpente. (CASEMENT, in MITCHELL, 1997, p. 256)

Casement sente-se impotente por não possuir provas


documentais que pudessem ser apresentadas a uma hipotética
corte peruana e, pior ainda, pela necessidade de manter em sigilo
suas investigações e interrogatórios, a fim de proteger a
integridade física dos barbadianos.

MATANZAS, TERÇA-FEIRA 18 DE OUTUBRO

Estamos cercados de criminosos de todos os lados. Nosso


hospedeiro à cabeceira da mesa, os rapazes que nos servem, e
todo o saco de gatos. Atravessar este Distrito fazendo de conta
que estamos de olhos vendados e aceitando o significado
superficial das coisas que vemos, destruirá nossos objetivos –
pois não podemos, mais tarde, apresentar, como provas
confiáveis, mexericos e histórias contadas em segredo, com
homens postados para evitar bisbilhoteiros, comportando-nos
como criminosos com medo de ser descobertos. (CASEMENT,
in MITCHELL, 1997, p. 265)

Decidido a partir imediatamente, para afastar-se de


Matanzas, “o coração desses acontecimentos horripilantes,”
Casement interroga os barbadianos Lane e Levine, separadamente
e em confronto, quando se contradizem. Consegue arrancar dos

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 331


dois homens o testemunho da morte de cinco índios, açoitados
até morrer. O relato da morte atroz do mais velho deles, Kodihinka,
deixa Casement doente: “E dizer que isso aconteceu no mês
passado, quando estávamos em Iquitos ou Chorrera!” Kodihinka
havia liderado a fuga dos índios, entre eles sua mulher e seu
filho, mas foram todos capturados bem além da outra margem do
Caquetá, já na Colômbia, depois de vinte e um dias de perseguição.
A “Comissão” de captura, chefiada por Normand, avançara em
território estrangeiro em desrespeito às leis. Foram todos
açoitados e postos no cepo, onde Kodihinka morreu três dias
depois, sua carne em decomposição exalando um cheiro
nauseabundo ao lado da mulher e do filho presos como animais
ferozes.
Os testemunhos dos barbadianos estão registrados e
arquivados no diário do Putumayo. Além da constituição dos
arquivos, porém, o testemunho como representação do passado
vai reaparecer em narrativas. Primeiramente no relatório de
ruidosa repercussão internacional que Casement apresenta ao
Foreign Office, no regresso à Inglaterra. Como reconhecimento,
o rei lhe concede o título de “Sir”, mas Casement não comparece
à cerimônia, por problemas de saúde.

Fase das indagações (uso dos porquês) nas figuras da explicação


e da compreensão.
A fase do processo historiográfico que Ricoeur denomina
da explicação e da compreensão diz respeito aos modos de
encadeamento entre fatos documentados. A configuração
narrativa é básica para a arquitetura do saber histórico. A
representação em seu aspecto narrativo não se acrescenta de
fora à fase documental e à fase explicativa, mas as acompanha e
as sustenta.
As indagações, nas figuras da explicação e da
compreensão, correspondem a uma interpretação do

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 332


encadeamento de fatos. O conceito de interpretação tem a mesma
de aplicação que o de verdade. Nesse sentido, há interpretação
em todos os níveis da operação historiográfica, por exemplo, no
nível documental com a seleção das fontes, no nível explicativo-
compreensivo com a escolha entre modos explicativos
concorrentes e, finalmente, da representação como interpretação.
Em relação aos arquivos de Casement, os questionamentos
se direcionaram principalmente à questão dos Black Diaries. A
interpretação que lhes foi dada aponta para o caráter de Casement
como paradoxal: um homem capaz de proteger povos nativos, mas,
por outro lado, de pervertê-los para satisfazer seus desejos sexuais;
um funcionário exemplar do Império Britânico, capaz de trair
princípios e compromissos. Sua sexualidade doentia é um reflexo
da sua traição ao país.
Angus Mitchel destaca o caráter épico da investigação de
Casement e a profunda mudança que provoca em sua visão do
império como instituição civilizadora. No início da viagem, defende
os métodos britânicos de condução do Império Britânico, em
comparação aos portugueses e espanhóis, enfatizando “as
garantias legais estabelecidas por nosso governo colonial para
proteger os nativos e, acima de tudo, seus direitos sobre a terra”
(CASEMENT, in MITCHELL, 1997, p. 79).
A fé nos princípios civilizadores do império, todavia,
desaparece diante da crueldade bárbara perpetrada em nome da
“civilização,” (In MITCHELL, 1997, p. 265) que testemunha na
viagem ao Putumayo. A raiva impotente diante da extensão do
crime e da impossibilidade de punir os culpados sinaliza sua
mudança radical de atitude. A volta, descendo o rio, mostra um
Casement inteiramente desiludido com o processo de civilização
de povos primitivos com que os impérios mascaram os interesses
econômicos das metrópoles. Está inteiramente convencido do
papel do comércio internacional como o verdadeiro vilão destruidor
do modo de vida tribal.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 333


ENTRE RIOS, 3ª FEIRA, 25 DE OUTUBRO

Acredito sinceramente que a tragédia do índio sul americano é


a maior no mundo de hoje, e a maior injustiça da humanidade
nestes últimos 400 anos registrados pela história. Não houve
interrupções desde que Pizarro desembarcou em Tumbes,
nenhuma luz de uma aurora que se aproxima. (CASEMENT, in
MITCHELL, 1997, p. 312)

Plano da escrita: representação historiadora do passado


A história oficial de Roger Casement ainda está por ser
escrita. A imagem controversa de heroísmo humanitário e de
perversão sexual norteia até o presente os relatos a seu respeito.
Angus Mitchell nos informa que série recente da BBC, sobre o
herói do império que renega sua filiação, teve como principio a
autenticidade dos Black Diaries e não faz qualquer referência aos
movimentos de contestação.
O mundo em história é a vida dos homens do passado tal
como ela foi. Tal como aconteceu. Mas seria, na realidade, tal
como o dizemos? Eis a questão que nos acompanhará até o final
do estágio da representação, onde encontrará, se não sua
resolução, ao menos sua formulação exata sob a rubrica da
representância (RICOEUR, p. 184). Aí é que se distingue o par
antinômico narrativa histórica/narrativa de ficção. O leitor
pressupõe implicitamente que o discurso do historiador é honesto e
verídico, o mais próximo possível daquilo que um dia foi “real”,
diferente, portanto da ficção “irreal”. Mas, no mundo do texto,
entrecruzam-se os efeitos exercidos por ficções e narrativas
verdadeiras.
Angus Mitchell inicia a pesquisa dos documentos de
Casement, por solicitação de seus editores, com a pressuposição
da autenticidade dos Black Diaries. Sua hipótese, todavia, não se
confirma e modificam-se o foco e o teor das perguntas que faria
ao texto. A introdução, os comentários e as notas explicativas do

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 334


texto de Mitchell, no Amazon Journal, são evidentemente norteados
pela hipótese dos Black Diaries como impostura e da probidade
moral indiscutível de Casement.
Paul Ricoeur reformula o que se costumava chamar de
“ficcionalização do discurso histórico” como “entrecruzamento da
legibilidade (estilo) e da visibilidade (história) no seio da
representação historiadora.” (p. 276) É com o retrato das
personagens da narrativa, sejam narrativas de vida, narrativas
de ficção ou narrativas históricas, que a visibilidade (história)
supera claramente a legibilidade (estilo). As personagens da
narrativa são inseridas na intriga ao mesmo tempo em que o são
também os acontecimentos que, em conjunto, constituem a
história narrada. Com o retrato, distinto do fio da trama da
narração, o par do legível desdobra-se nitidamente.
É o que se lê na biografia ficcionalizada de Roger Casement
em O sonho do celta de Mário Vargas Llosa.

Referências

LEJEUNE, P. O pacto autobiográfico. De Rousseau à Internet. Jovita


M.G.Noronha (Org.) Trad. Jovita M.G.Noronha e Maria Inês C.
Guedes. Belo Horizonte: UFMG, 2008.

LLOSA, M.V. La verdad de las mentiras. Madrid: Santillana, 2007.

_____ O sonho do celta. Trad. P. Watch e A. Roitman. Rio de Janeiro:


Objetiva, 2011.

MITCHELL, A. (Ed.) The Amazon Journal of Roger Casement. Dublin:


Lilliput Press, 1997

RICOEUR, P. A memória, a história, o esquecimento. Trad. Alan


François [et al.]. Campinas : Ed. UNICAMP, 2007.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 335


A PARÓDIA SATÍRICA EM CONTOS DE MACHADO DE ASSIS
E JAMES JOYCE

Autor: Márcio Pereira Ribeiro (Uniandrade)


Orientadora: Profa. Dra. Anna Stegh Camati (Uniandrade)

RESUMO: Com base em excertos bíblicos e dogmas da igreja, este


trabalho tem como objetivo apresentar uma análise comparativa entre
o conto “A igreja do diabo” (1884), de Machado de Assis (1839 – 1908),
e “As irmãs” (1914), do autor irlandês James Joyce (1882 – 1941), a
partir do conceito de paródia teorizado por Linda Hutcheon (1989). Em
ambos os contos, há uma severa crítica à Igreja Católica: no conto de
Joyce, o narrador relata o falecimento de um padre, oferecendo indícios
de seu envolvimento na prática da pedofilia e, na narrativa de Machado,
a figura bíblica do Demônio apresenta queixas a Deus e expõe seu
desejo de também fundar sua própria igreja. Tanto Machado quanto
Joyce, ao se apropriarem do texto bíblico ou da temática religiosa,
flagram aspectos dos abusos cometidos em nome da religião. Enquanto
Machado realiza sua denúncia por meio da ironia, Joyce deixa
subtendida a pedofilia na amizade peculiar entre um padre e um
menino.
PALAVRAS CHAVE: Paródia. Sátira. Bíblia. Machado de Assis. James
Joyce.

Introdução
Religião sempre foi um tema polêmico na história da
humanidade. Em seu nome, principalmente pelo do Cristianismo,
povos foram dizimados, reinos conquistados, pessoas foram
enviadas à fogueira. Amparados pelo texto bíblico cometeram-se,
e ainda se cometem inomináveis atrocidades contra a
humanidade. O texto cristão já foi (e em alguns locais do mundo
ainda é) utilizado para afirmar e impor valores, posições sociais,
legitimar racismo, desigualdade social e outros tipos de
preconceito.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 336


No Brasil, através do texto bíblico legitimou-se a escravidão
negra, dizendo-se até que o escravo africano não tinha alma, ao
contrário do indígena que, supostamente a possuía e, assim,
deveria ser catequizado e tê-la salva. Essa fé cristã legou-nos,
ainda, um ranço preconceituoso em relação às outras religiões.
Ranço esse que persiste ainda nos dias de hoje, haja vista os
recentes ataques ocorridos a centros de prática do Candomblé,
bem como a seus praticantes.
No conto “A igreja do diabo”, assim como em boa parte de
sua literatura, Machado apropria-se da temática bíblica para
desenvolver seus enredos, como no Romance Isaú e Jacó (1904)
em que parodia uma história do Livro do Gênesis, atualizando a
temática da rivalidade entre irmãos – também presente em outra
história Bíblica: a de Caim e Abel. No conto em questão, o diabo,
após imensas tentativas de se apoderar do poder celestial,
seduzindo aos homens com sua igreja de más virtudes, acaba ao
fim inconformado com a dualidade humana, o pode-se dizer
resultante do livre-arbítrio bíblico. Machado de Assis parodia o
texto cristão envolvendo-nos numa trama bastante espantosa,
ou como chama o capítulo I “uma ideia mirífica”. Esta dualidade
entre o santo e o profano, entre o pecado e a fé também é utilizada
na literatura de cordel, em que há embates entre o bem e o mal,
retratados normalmente na figura de um indivíduo que vence as
forças das trevas através de certa inteligência popular adquirida
ou pela sua própria fé.
Em “A igreja do diabo” o autor utiliza-se ainda de obras e
personagens ficcionais parodiando-os, e até mesmo dialogando
com eles, a fim de reforçar os argumentos que tornariam essa tal
ideia – uma igreja fundada pelo diabo – possível de acontecer,
deixando-nos a reflexão de que e se fosse possível? Como seria?
Já James Joyce nos apresenta o resultado social de sua
terra natal, a Irlanda, devido aos conflitos étnicos, políticos, sócio-
econômicos e religiosos que deixaram marcas profundas na vida

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 337


e na história de seu povo. Em 1920, a Inglaterra estabeleceu uma
divisão na ilha, ficando a província de Ulster (ao norte), de prática
majoritária protestante, separada do sul, tornando-se Irlanda do
Norte. A outra parte, de prática católica, receberia o nome de
Irlanda, somente. Dois anos depois dessa divisão, a Irlanda
prosperou, abrindo caminho para que se tornasse independente
da Inglaterra. Porém os católicos que viviam na Irlanda do Norte
– hoje 40% da população – continuaram insatisfeitos. E foi lá que
se acirraram os conflitos entre grupos armados dos dois lados,
como o Exército Republicano Irlandês (o IRA, Irish Republican
Army, católico e pró-independência) e os movimentos unionistas
(protestantes e pró-Inglaterra).
Nesse contexto, vivendo já em Trieste (Itália), Joyce iria
concluir sua obra Dublinenses (1914). Uma crítica mordaz ao povo
de seu país e seus costumes. A obra fora recusada diversas vezes
pelas editoras, levando cerca de dez anos para ser publicada. O
autor teve que contar, inclusive, com a ajuda de seu irmão,
Stanilaus, que havia ficado na Irlanda, para obter algumas
informações muito particulares sobre sua cidade natal, como, por
exemplo, a informação de que se um padre poderia mesmo ser
enterrado de batina, como o fez no conto “As irmãs”. Apesar desses
contratempos, relativizando o tempo, a obra viria a incomodar
bastante seus conterrâneos dublinenses. O que dizer do conto
“As irmãs” em que há um clima tenso de luto devido à morte de
um clérigo que supostamente adoecera devido a um incidente
canônico, a quebra de um cálice? É admirável e digno de
comentário a coragem com que o autor parodia o rito canônico,
levando-o a revelar a postura de seus clérigos na época, expondo
a religião – um assunto bastante caro à Irlanda durante muito
tempo, e à própria Igreja ainda nos dias de hoje, a pedofilia.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 338


Machado de Assis e a Bíblia: “A igreja do Diabo” (ou dos
homens?)
Em “A igreja do diabo”, Machado de Assis provoca o leitor já
a partir do título, causando repulsa em alguns, inclusive. Uma
igreja fundada pelo espírito das trevas, pelo anjo caído, aquele a
quem se atribui toda a maldade na terra, o pecado original, a
tentação de Cristo no deserto... O título já anuncia que se trata
de uma paródia entre céu e inferno, entre o sagrado e o profano,
ou seja, um confronto proposto pelo diabo: escritura contra
escritura, visto que o diabo imita os ritos da Igreja Católica
Apostólica Romana, adaptando-os aos seus propósitos. Machado
de Assis faz alusão a textos clássicos e parodia o texto bíblico, em
especial o Livro do Gênesis e alguns trechos dos Evangelhos, como
quando a personagem diabo afirma que irá “lançar sua pedra
fundamental” – uma paródia ao texto de Mateus16:18: “Pois
também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei
a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra
ela”.
O narrador cita ironicamente a Ordem dos Beneditinos,
fundada no ano de 529, como a responsável pela confecção do
manuscrito que nos conta todo o ocorrido quanto à igreja fundada
pelo diabo:

Conta um velho manuscrito beneditino que o Diabo, em certo


dia, teve a idéia de fundar uma igreja. Embora os seus lucros
fossem contínuos e grandes, sentia-se humilhado com o papel
avulso que exercia desde séculos, sem organização, sem
regras, sem cânones, sem ritual, sem nada. Vivia, por assim
dizer, dos remanescentes divinos, dos descuidos e obséquios
humanos. Nada fixo, nada regular. Por que não teria ele a
sua igreja? Uma igreja do Diabo era o meio eficaz de combater
as outras religiões, e destruí-las de uma vez. (ASSIS, 2007,
p. 183)

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 339


A ironia está no fato de que durante o transcurso da sua
história, a ordem Beneditina sofreu numerosas reformas, devido
à eventual decadência da disciplina no interior dos mosteiros. A
primeira reforma importante foi realizada por São Juan De Perez
Lloma no Século X essa reforma, chamada Cluniacense a tomar
um grande impulso a tal ponto que, durante grande parte da Idade
Média, praticamente todos os mosteiros beneditinos estavam sob
o domínio do mosteiro situado na França, na cidade de Cluny.
O conto, dividido em capítulos (De uma ideia mirífica; Entre
Deus e o Diabo; A boa nova aos homens e Franjas e franjas)
apresenta uma boa experiência da tão famosa ironia machadiana:
não se trata de um enredo possível na vida real, mas guardadas a
devidas proporções é como se o autor nos dissesse: Mas não
vivemos, mesmo, num inferno? Perdidos em meio à cobiça,
ganância, mentira e luxúria? Então, por que não uma igreja
fundada pelo senhor das trevas?
Ao que parece, é a mesma ideia que o diabo tem no capítulo
I, De uma ideia mirífica: mesmo tendo bons lucros, sente-se
humilhado com o papel secundário que lhe fora dado no início dos
séculos: sem ritual, sem cânone, sem regras – sem organização.
Segundo ele: “Uma igreja seria uma maneira de combater e
destruir as outras religiões”. Não é raro na obra de Machado de
Assis encontrarmos personagens movidos por essa mesma
necessidade gananciosa de reconhecimento e poder, vide Brás
Cubas em suas Memórias Póstumas (1881), que após uma odisséia
fantasiosa de reconhecimento público, busca num unguento
medicamentoso o reconhecimento que o levaria à morte. Pois
bem, o diabo imagina que terá o mesmo sucesso que teve Deus
ao fundar a sua igreja entre os homens. O diabo imagina sua
doutrina indivisível, protegida de Maomés e Luteros.
Linda Hutcheon (1989) aponta que a paródia é um processo
integrado de modelação estrutural, de revisão,
recontextualização, inversão e transcontextualização de obras de

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 340


arte anteriores. No capítulo, Entre Deus e o Diabo, temos um bom
exemplo desta transcontextualização de uma obra de arte anterior,
pois há um diálogo interessantíssimo entre o Senhor da Luz e o
Príncipe das Trevas: este cobra de Deus para si todos os Faustos,
desde o início dos séculos – ou seja, não estaria na presença de
Deus cobrando-lhe uma única alma, mas sim todas, desde o início
da criação relatada no Livro do Gênesis. O Fausto aqui
mencionado refere-se ao representado pelo romancista alemão
Johann Wolfgang Von Goethe (1749 – 1832) na obra homônima
de 1830. Nesta obra Mefistófeles (um demônio) faz uma aposta
com Deus: diz que poderá conquistar a alma de Fausto – um sábio
que tem a ambição de saber tudo que pode ser conhecido. Tema
bastante parecido ao proposto por Machado de Assis no conto em
análise. É perceptível ainda a paródia feita do rito da consagração
do pão e do vinho na Eucaristia, em que o sacerdote ora junto à
assembléia: “Permiti que tenhamos sempre, Senhor, um igual
temor e amor pelo vosso santo Nome; pois não deixais de governar
aqueles que estabeleceis na firmeza do vosso amor. Vós que viveis
e reinais pelos séculos dos séculos. Amém” (grifo nosso); e o
Livro do Apocalipse 1:6 “e nos fez reino, sacerdotes para Deus,
seu Pai, a ele seja glória e domínio pelos séculos dos séculos.
Amém”.
Ao chegar ao céu, a fim de comunicar a Deus suas
intenções, o diabo encontra-o recebendo um homem que salvara
um casal de namorados em um naufrágio, dando-lhes uma tábua
na qual se salvara, mergulhando assim para a morte na
eternidade. Negando, como lhe é de costume (Eu sou o espírito
que nega) qualquer sinal de bondade no homem, o diabo dá a este
ato de doação ares de misantropia (aversão aos seres humanos).
Não tendo mais conseguido admoestar ao Senhor, o diabo,
como um raio, cai na terra. Lá estando, não perde um minuto
sequer, e põe-se a espalhar uma doutrina nova e extraordinária:

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 341


promete aos fieis as delícias da terra, as glórias e deleites mais
íntimos:

(...) as virtudes aceitas deviam ser substituídas por outras,


que eram as naturais e legítimas. A soberba, a luxúria, a
preguiça foram reabilitadas, e assim também a avareza, que
declarou não ser mais do que a mãe da economia, com a
diferença que a mãe era robusta, e a filha uma esgalgada. A ira
tinha a melhor defesa na existência de Homero; sem o furor de
Aquiles, não haveria a Ilíada: “Musa, canta a cólera de Aquiles,
filho de Peleu...” O mesmo disse da gula, que produziu as
melhores páginas de Rabelais, e muitos bons versos de Hissope;
virtude tão superior, que ninguém se lembra das batalhas de
Luculo, mas das suas ceias; foi a gula que realmente o fez
imortal. Mas, ainda pondo de lado essas razões de ordem literária
ou histórica, para só mostrar o valor intrínseco daquela virtude,
quem negaria que era muito melhor sentir na boca e no ventre
os bons manjares, em grande cópia, do que os maus bocados,
ou a saliva do jejum? Pela sua parte o Diabo prometia substituir
a vinha do Senhor, expressão metafórica, pela vinha do Diabo,
locução direta e verdadeira, pois não faltaria nunca aos seus
com o fruto das mais belas cepas do mundo. Quanto à inveja,
pregou friamente que era a virtude principal, origem de
propriedades infinitas; virtude preciosa, que chegava a suprir
todas as outras, e ao próprio talento. (ASSIS, 2007, p. 187)

Quem resistiria a tal pregação? Ainda mais tendo o pregador


sua figura retificada, para algo que, ao olhar dos homens, parecia
melhor, tendo em vista que o preço para se chegar o céu lhes
parecia bastante caro.
Por fim, no último capítulo (Franjas e franjas) ocorre o
desfecho irônico mais inesperado pelo diabo (e previsto por Deus?):
as pessoas, os fiéis da Igreja do diabo, após alguns anos, começam
à surdina, sorrateiramente a seguir os antigos preceitos cristãos:

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 342


jejuns, dar esmolas, restituir o que fora roubado, buscar
confissões, etc.
Inconformado com tal desfecho, o diabo retorna aos céus:

Não se deteve um instante. O pasmo não lhe deu tempo de


refletir, comparar e concluir do espetáculo presente alguma
coisa análoga ao passado. Voou de novo ao céu, trêmulo de
raiva, ansioso de conhecer a causa secreta de tão singular
fenômeno. Deus ouviu-o com infinita complacência; não o
interrompeu, não o repreendeu, não triunfou, sequer, daquela
agonia satânica. Pôs os olhos nele, e disse-lhe:
— Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm
agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de
algodão. Que queres tu? É a eterna contradição humana. (ASSIS,
2007, p. 190)

O desfecho é um belíssimo exemplo da já mencionada ironia


machadiana e de sua visão pessimista sobre os homens e suas
ações. Não importa o quanto tenham, sempre querem mais, e
além do mais, não sabem o que querem.
Segundo Linda Hutcheon (1989) a paródia é formal, a sátira
é social. O objetivo da sátira é ridicularizar os costumes e loucuras
da sociedade com a intenção de corrigi-los. Assim, compreender
a intenção de Machado de Assis ao parodiar o texto bíblico em
nada acrescenta à interpretação do conto, agora reconhecer sua
ousadia ao parodiar os dogmas da Igreja católica, bem como seu
principal documento, a Bíblia, pode nos levar a compreender como
era a sociedade do Rio de Janeiro da época e a crítica que o autor
pretendia fazer. Isso, levado quase dois séculos adiante, resultaria,
em outra esfera de circulação, na sátira social que faria o autor
irlandês James Joyce, em sua obra Dublinenses.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 343


James Joyce e a religião: “As irmãs” (ou A culpa é do coroinha)
Em Dublinenses, há vários tipos de delitos, alguns
pequenos, como na cena em que dois meninos que haviam
decidido matar aula, no conto intitulado “Um encontro”, são
abordados num local ermo por um velho, que inicialmente põe-se
a lhes perguntar sobre namoradas, e que, depois de proferir
algumas falas insensatas sobre violência e punição, os levaria a
presenciar uma cena sórdida de masturbação – assim os meninos
descobrem que o mundo pode ser pervertido e assustador. E há
delitos escandalosos, como no conto “As irmãs” em que se relata
o suposto envolvimento homo-afetivo entre um menino de oito
anos e o padre James Flynn.
O tom narrativo escolhido por James Joyce dá ao conto
um ar de mistério. Afinal, que pecados teria cometido o padre ao
ponto de levarem-no à insanidade, à paralisia, ao ato falho da
quebra de um cálice sagrado?
É preciso que leiamos as entrelinhas, as frases
metafóricas e sem conclusão do personagem senhor Cotter, como
quando diz: “Não, afirmaria que era exatamente... mas havia nele
algo de excêntrico... de misterioso. Em minha opinião...”, e
também: “tenho minha teoria sobre isso (...) penso que se trata
de um desses... casos peculiares... mas é difícil afirmar” (JOYCE,
2005, p.9). Note o dito pelo não dito, a ideia que se completa nas
entrelinhas, no titubear da personagem. Não afirmaria que era
exatamente (um pedófilo, um mundano?); que teoria teria o Sr.
Cotter sobre isso? A que casos peculiares ele se refere – seria
comum e de conhecimento público os casos envolvendo abuso
sexual por parte de padres?
É também muito importante que saibamos interpretar o
comportamento incomum do menino, ou é ainda nos dias de hoje,
normal um menino andar de segredos com um homem mais
velho? Aprendendo “coisas”, como diz o senhor Cotter. Sem
mencionar aqui com mais delonga o sentimento de alívio sentido

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pelo menino após a morte do padre Flynn. Algo bastante revelador,
uma vez que seria plausível a morte do amigo trazer-lhe ao menos
duas das cinco fases do luto, conforme apontadas pela psicóloga
Elisabeth Kubler-Ross (1926-2004): Negação, raiva, barganha,
depressão e aceitação. O menino não as vivencia, pelo contrário
todas elas são substituídas por uma imensa sensação de alívio,
de libertação.
Mas por que teria James Joyce escolhido um padre como
personagem mundano e não outro dublinense? Seria o desejo de
escancarar o assunto à sociedade, uma forma de crítica àquela
cidade tão puritana. Parece-nos que há uma diferença grande
em dizer que um homem maduro tem relações de cunho sexual
com um menino e dizer que, um padre, aquele que representa
Deus na terra, aquele que consagra o pão e o vinho na Eucaristia
tem relações sexuais com uma criança, pior ainda com um
menino, um de igual gênero.
Os três primeiros contos de Dublinenses (“As irmãs”, “Um
encontro” e “Arábia”) apresentam um narrador em primeira
pessoa e, foram agrupados no que o autor chamou de “Infância”.
Por se tratarem de memórias, pode-se dizer que Joyce teria feito
autobiografia. Assim, poderíamos dizer que o menino no conto
“As irmãs” representa alguma memória do autor – teria ele sofrido
abusos cometidos por um padre em sua infância no Clongowes
Wood College?
Outro aspecto interessante no mencionado conto é a data
da morte do padre Flynn. Joyce escolhia muito bem as datas em
seus escritos, por exemplo: Em Ulysses, o dia 16 de junho de 1904
não foi escolhido aleatoriamente. Essa data marca o dia em que
James Joyce e sua futura esposa Nora Barnacle teriam tido um
“encontro” amoroso, segundo seus biógrafos. Da mesma forma, o
dia da morte do padre Flynn (01/07/1895) tem grande importância
para os irlandeses em geral. Nesta data, nos países católicos, se

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comemora a Festa do Preciosíssimo Sangue de Nosso Senhor
Jesus Cristo.
E, foi no ano de 1895 que se comemorou o centenário de
Maynooth, o mais importante seminário Católico da Irlanda.
No conto, o padre é acometido por uma paralisia após um
incidente canônico, a quebra de um cálice. Esta paralisia do padre
poderia estar associada à paralisia da Igreja Católica diante de
crimes cometidos por religiosos, às atrocidades cometidas em
nome da fé, e ao seu efeito moralizador e puritano sobre os
irlandeses, e a eles próprios como cidadãos que aceitaram no
passado as medidas de austeridade impostas pela Inglaterra.
A paralisia é um tema recorrente na literatura de James
Joyce, visto que aparece também em O retrato do artista quando
jovem (1916). Em Dublinenses, em “Eveline”, a personagem que dá
nome ao conto desiste de escapar de uma realidade miserável,
paralisada no porto, enquanto o noivo a aguardava para fugirem
para a Argentina em um navio. Eveline tem uma epifania (chama
por seu próprio nome) e desiste de embarcar. Essa mesma
sensação de incapacidade de movimento se manifesta no jovem
protagonista de “As irmãs” na forma como ele, no final da
narrativa, se mostra, ao mesmo tempo, libertado pela morte do
padre e incapaz de superar os “ensinamentos” que recebeu do
sacerdote.
Tanto Machado de Assis quanto James Joyce, ao se
apropriarem do texto bíblico e também do rito cristão, parodiando-
o ou usando da temática religiosa no enredo, atingem
severamente a sociedade. Fosse o Rio de Janeiro da época do
Império ou a Dublin do início do século XX, ambas apresentavam
um protecionismo aos assuntos escusos de seus clérigos, de suas
igrejas, da instituição cristã. Machado de Assis denuncia isto
através da ironia, James Joyce deixa subtendida a pedofilia na
amizade peculiar entre um padre e um menino.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 346


Referências

HUTCHEON, L. Uma teoria da paródia: ensinamentos das formas


de arte do século XX. Trad. Tereza Louro Pérez. Lisboa: Edições
70, 1979.

ASSIS, Machado de. 50 contos /Machado de Assis: seleção,


introdução e notas de John Gledson. – São Paulo: Companhia das
Letras, 2007.

JOYCE, James. Dublinenses. Trad. Hamilton Trevisan, 9. ed. Rio


de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

BÍBLIA, N.T. Mateus. Português. Bíblia Sagrada. Reed. Versão de


Antonia Pereira de Figueiredo. São Paulo: Ed. das Américas, 1950.
Cap. 16, vers. 18.

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HENRY JAMES E OSCAR WILDE:
EXPOENTES DA HISTORIOGRAFIA RETRATADOS POR
THE MASTER, DE COLM TÓIBIN

Autor: Maria Aparecida Borges Leal (UFPR)


Orientador: Profa. Dra. Célia Arns de Miranda (UFPR)

RESUMO: O objetivo deste trabalho é refletir acerca do modo como se


configura o narrador criado pelo romancista irlandês Colm Tóibin, em
The Master (2004), um romance biográfico que discute parte da vida e
do percurso literário do escritor norte americano Henry James (1843-
1916), sobretudo no que se refere à tentativa de James de enveredar
pela dramaturgia. Parcela significativa desse romance aponta para a
maneira pela qual James olhou para a vida privada e a dramaturgia de
Oscar Wilde (1854-1900). Aos olhos desse narrador, se de um lado
Wilde escancara sua privacidade – por oposição à importância
exacerbada de James à própria vida –, de outro, James sempre
reconheceu a superioridade de Wilde como o grande dramaturgo de
língua inglesa. Contemporâneos, James e Wilde brilham no cenário da
prosa de ficção e na dramaturgia, respectivamente.
PALAVRAS-CHAVE: Ficção histórica. Intertextualidade. Sexualidade.
Romance biográfico.

Introdução
Desde as últimas décadas do século XX, a ficcionalização
de pessoas que desempenharam papéis na História tem sido uma
constante tanto na literatura brasileira quanto na literatura
inglesa. Quatro aspectos da ficção histórica carecem de destaque:
o primeiro diz respeito aos grandes homens que desempenharam
papéis relevantes em fatos históricos, sobretudo em guerras e
conflitos de uma maneira geral, assentados nos livros de História.
O segundo, mais acentuadamente na última década do século
XXI, refere-se àquelas pessoas das quais não se tem registro

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 348


histórico, mas que desempenharam papéis igualmente
relevantes, e, no entanto, foram consideradas secundárias nesses
mesmos conflitos. Essas pessoas, que só agora estão sendo
buscadas pela ficção para trazê-las para o primeiro plano narrativo,
são postas como protagonistas de romances considerados
históricos. O terceiro, bastante significativo, cria ficcionalmente
a vida e a trajetória literária de escritores famosos que fizeram
história na literatura. Essa vertente é a que mais interessa aos
propósitos deste trabalho. O quarto desdobramento da ficção
histórica alude àquelas personagens, criadas por textos canônicos,
que migram para os textos novos que lhes permitem o
reconhecimento pelos leitores atentos. Essas personagens são
resgatadas por escritores contemporâneos para protagonizarem
seus romances. Segundo Marilene Weinhardt (2010), podemos
refletir sobre esses romances como ficções críticas, por deixarem
vir à tona não só a identidade literária dessas personagens, mas,
também, estabelecerem intenso diálogo intertextual com as obras
de seus criadores e, além disso, fazerem com que a crítica literária
faça parte do processo de ficcionalização.
Em referência ao terceiro aspecto, conforme explicitado por
Marilene Weinhardt (2006), o primeiro romance da literatura
brasileira que cria ficcionalmente a vida, a trajetória literária de
um escritor e discute o papel do artista na vida político-cultural
brasileira é Em liberdade: uma ficção de Silviano Santiago (1981),
do renomado escritor e ensaísta Silviano Santiago. Nesse
romance, o autor elabora um discurso baseado nos recursos
estilísticos de Graciliano Ramos, cria uns originais que teriam
sido publicados postumamente e constrói ficcionalmente o sujeito
que marcou época na história literária brasileira. Tanto na Nota
do editor, quanto em Sobre esta edição – elementos textuais
que antecedem o romance e ambos assinados por Silviano
Santiago – é possível observar um discurso tão convincente que

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 349


aquele leitor menos atento é capaz de acreditar que Graciliano
teria mesmo mantido um diário após a sua saída da prisão.
Na Literatura de Língua Inglesa, o processo de criação
ficcional de aspectos factuais e de sujeitos que tiveram uma
existência empírica tem sua semente em Ivanhoé (1819), de Walter
Scott (1771-1832), contudo, não faz parte desse trabalho traçar
um panorama histórico desde então. Em 2004, a vida privada e o
percurso literário de Henry James foram retomados em, pelo
menos, três romances, considerados pela crítica como biographical
novels about a writer, publicados quase que ao mesmo tempo: The
Line of Beauty, de Alan Hollinghurst; Author, Author, de David Lodge
e The Master, de Colm Tóibin.
O propósito deste trabalho é refletir a respeito do olhar do
narrador de The Master, principalmente no que se refere à tentativa
de James em buscar na dramaturgia uma segunda via de
expressão artística, encontrando ninguém menos que Oscar Wilde
(1854-1900), o grande dramaturgo de língua inglesa, em seu
caminho. Dois admiráveis expoentes da historiografia seduzem,
ainda hoje, críticos e leitores: James na prosa de ficção e Wilde
na dramaturgia.

Contextualização de The Master


The Line of Beauty, de Alan Hollinghurst, conta a história
de Nick Guess, um jovem estudante, homossexual e usuário de
drogas injetáveis, que diz escrever uma tese de pós-graduação
sobre Henry James, contudo o romance termina sem que ele
escreva uma só linha sobre o romancista norte-americano. O
enredo se passa em Londres, apresenta como referência temporal
o período entre 1983 e 1987 e reflete acerca do início da
propagação do vírus da AIDS entre o público do qual Nick Guess
faz parte. Nessa época, as pessoas morriam muito jovens sem
que ninguém soubesse quais eram as formas de contaminação
pelo vírus HIV e prevenção, o que se tornou um grande enigma

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para a medicina. A impressão que se tem é a de que o protagonista
usa o argumento de escrever sobre Henry James para manter o
status de acadêmico entre o seu grupo de amigos e para dar uma
justificativa à sua família e aos seus amigos e professores do
interior. Interessante que, embora o romance não trate nem da
vida nem do percurso literário de James, ele é considerado como
tal e retrata um momento histórico significativo e, talvez, por
esse motivo tenha levado o Booker Prize de 2004.
Author, Author, de David Lodge é o segundo romance que a
crítica considera como romance histórico, publicado em 2004,
que realmente discute e reflete sobre a vida e a obra de Henry
James. O romance, composto de quatro partes, tem início in
medias res. Henry, a essa altura um cidadão britânico, muito
doente, intercalando momentos de consciência e
semiconsciência, em dezembro de 1915, em Londres, recebe o
anúncio de que seria condecorado com a Ordem do Mérito. Na
segunda e terceira partes, a narrativa, no uso do recurso do
flashback, retrocede ao ano de 1880, quando o protagonista
encontra-se no auge da carreira. Segue, de modo relativamente
linear até 1897 quando Henry tenta se recuperar do malogro de
Guy Domville – peça teatral escrita pelo James, sujeito empírico
– e, aos poucos, retornar à prosa de ficção. De acordo com Author,
Author, por oposição ao fracasso de Henry no teatro, o leitor se
depara com o sucesso extraordinário de Trilby (1895), um romance
com recursos narrativos muito pobres, escrito pelo cartunista
belga George Du Maurier (1834-1896), amigo íntimo de Henry.
Esse romance fora adaptado para o palco e trouxe ao seu autor
grande êxito de crítica e de público. Na quarta parte de Author,
Author, o fio narrativo deixado pendente na primeira parte é
retomado e tecido até o final da história, em fevereiro de 1916,
com a morte de Henry. O círculo da narrativa e o portal
metaficcional abertos pelo prólogo autoral se fecham com os
agradecimentos, etc., em que o autor faz referência às fontes de

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 351


pesquisa às quais ele recorreu para escrever o romance. A título
de informação, Lodge não constou da lista dos indicados para o
Booker Prize de 2004, o que lhe causou grande frustração.
The Master, do escritor irlandês Colm Tóibin, é o terceiro
romance sobre Henry James, publicado em 2004. Fora indicado
para o Booker Prize, mas não levou o prêmio. O enredo do romance,
com alguns flashbacks e flashforwards, se passa em Londres, entre
os anos de 1895 a 1899, período considerado pelo historiador Leon
Edel (1969) como The treacherous years. Tem início com a
apreensão de Henry em função da estreia de Guy Domville, no
teatro St James, em Londres. Passa pela dor e o sofrimento causado
pelo malogro da peça. Segue de modo relativamente linear até
outubro de 1899 com um Henry vivendo severos conflitos
interiores em relação à sua sexualidade e à arte de ficção. O
romance termina com Henry vivendo na Lamb House, despedindo-
se do irmão William, da cunhada Alice e da sobrinha Peggy após
passarem um período com ele. A essa altura Alice, a irmã, já
estava morta. Nesse lapso de tempo em que passaram juntos,
William – homem muito prático, bem sucedido na carreira de
professor e filósofo – discute com o irmão sobre sua prosa de ficção,
considerada complexa e intricada pela crítica e o público da época:
“Harry, [eu] percebo que preciso ler e reler inúmeras frases que
você escreve agora para ver se encontro o que elas querem dizer.
Isso é tudo, em poucas palavras.” (TÓIBÍN, 2005, p. 405). E William
continua sua crítica: “[...] nesta época movimentada e de leitura
apressada, você vai permanecer ignorado e não lido enquanto
continuar a se perder nesse estilo e nesses temas; [...].” (p. 405).
Cabe considerar que a relação dos irmãos não se restringiu
à esfera familiar. Henry orientou-se pelas teorias de William
James (1842-1910), reconhecido como o pai da Psicologia
Americana, autor de Principles of Psychology (1890) e criador do
termo stream of consciousness. Foi sobre essa base que James
desenvolveu o realismo psicológico, interessando-se pela

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 352


consciência das suas personagens, explorando-a à exaustão e se
transformando no mestre de muitos romancistas. Não por acaso,
Tóibín demonstrou um lampejo genial de sagacidade ao escolher
o nome de The Master para o seu romance biográfico sobre Henry
James.

Expoentes da historiografia: Henry James e Oscar Wilde


Em Henry James (1960), Leon Edel divide a trajetória
literária de James em três fases distintas: a primeira estende-
se de 1865 a 1882 e tem como obras principais a novela Daisy
Miller (1879) e os romances The American (1877) e The Portrait of a
Lady (1881). Essas obras apresentam como tema o choque que
domina as personagens americanas no austero contexto
sociocultural europeu.
Na segunda fase, entre os anos de 1883 e 1900, James
abandona o tema internacional e parte para romances sociais
que criam molduras realistas, porém o seu determinismo
apresenta-se como essencialmente psicológico – tema que viria
a ser desenvolvido no século XX – e que, na época, não teve a
aceitação que seu autor gostaria. Entre 1890 e 1895, na tentativa
de estabelecer uma segunda via de expressão artística, James
escreve sete peças teatrais das quais apenas duas são encenadas:
The American, uma adaptação para o palco do romance de mesmo
nome e Guy Domville, peça de costumes. Vaiado publicamente
pela segunda delas, James, ressentido, sai de Londres. Retoma a
prosa de ficção, agora com histórias curtas, das quais as que mais
se destacam são: o conto “The Middle Years” (1893) – considerado
como autobiográfico pelo biógrafo –, a novela The Turn of the Screw
(1898) e os romances What Maisie Knew (1897) e The Awkward
Age (1899).
Na terceira fase, a mais importante da sua carreira,
James retorna a prosa de ficção e os temas internacionais, agora
com aproveitamento das técnicas apreendidas na sua fase

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madura, sobretudo na experiência com o teatro. A ação é
apresentada por meio da cena, os diálogos são construídos como
um processo narrativo, o narrador deixa de desempenhar o papel
de informador e comentarista o que torna mais difícil a leitura,
obrigando o leitor a um esforço extra. As obras mais significativas
dessa fase são os romances The Wings of the Dove (1902), The
Ambassadors (1903) e The Golden Bowl (1904). O objetivo de traçar
esse painel é o de contextualizar minimamente, na historiografia,
os cinquenta anos do percurso literário de James.
Oscar Wilde, famoso dramaturgo, ensaísta, ficcionista e
poeta irlandês, começa a ser premiado e publicar em 1874, com
apenas vinte anos. Contos infantis e góticos fazem parte de sua
produção em prosa, contudo, o único romance é The Picture of
Dorian Gray (1891). As peças teatrais, todas de uma relevância
extraordinária, tanto que são encenadas até hoje, mais de um
século após sua morte, são: Salomé (1892), proibida em Londres e
encenada com muito sucesso em Berlim e Paris, em 1893; The
lady Windermere’s fan (1892); A woman of no importance (1893) An
ideal husband (1895) e The importance of being Earnest (1895). Vale
salientar que, no início de 1895, An ideal husband estava em
cartaz no teatro Haymarket, em Londres, com excepcional sucesso
de bilheteria e acontece a estreia deslumbrante de The importance
of being Earnest, no teatro St James, também em Londres.
Extasiado pelo sucesso, Wilde não conseguiu conter seus ímpetos
e externou seus sentimentos de modo imoral para a sociedade
da época.
Apenas para contextualizar a época na qual Wilde viveu,
vamos fazer um breve apanhado: Era Vitoriana, época em que os
aspectos morais eram muito considerados e qualquer deslize,
punido de forma severa gerando uma atmosfera altamente
repressiva. Victoria se torna rainha aos dezoito anos, em 1837,
fato que assusta os britânicos por temerem que ela não fosse
respeitada como tal. No entanto, ela rege o mais longo período da

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história inglesa. Nesse sentido, a opinião da sociedade torna-se
relevante o que faz com que a hipocrisia reine como a mais
importante virtude. A repressão, como se sabe, gera pessoas
submissas e obedientes por medo das represálias e pessoas
excêntricas, destemidas e rebeldes dispostas ao embate com as
regras estabelecidas.
Além das pessoas não poderem manifestar suas ideias
publicamente, em 1859 as teorias de Charles Darwin sobre a
evolução das espécies revolucionam as convicções religiosas
estabelecidas até então e o conflito entre religião e ciência é
iminente, levando algumas pessoas ao desespero. Para piorar um
pouco mais, a Revolução Industrial (1750-1850) já havia provocado
uma série de mudanças sociais e econômicas: a Inglaterra movida
basicamente pela agricultura e o comércio torna-se uma moderna
sociedade industrial. Surgem inúmeras invenções, e as cidades
crescem desordenadamente, sem condições sanitárias adequadas
o que culmina com uma severa epidemia de cólera. Crianças
passam fome e pessoas morrem sem qualquer assistência numa
luta de extrema crueldade. Dessa forma, alguns artistas preferem
escrever sobre os horrores enfrentados pelo povo, manifestando
repúdio a tudo aquilo. Outros preferem dar ênfase à beleza, por
oposição àquela situação repulsiva. Wilde torna-se um
participante proeminente de The Aesthetic Movement uma espécie
de reação contra o conformismo e as incertezas em relação à
Inglaterra do século XIX. Nesse Movimento, a arte vale por si e o
belo é um refúgio seguro. O deleite por algo belo é o maior prazer
que alguém pode obter, por isso, vamos viver intensamente e
nos deliciar com o belo. Entre 1880 e 1890, um sofisticado grupo
de artistas foi gerado por essa longa rebelião contra a hipocrisia
vitoriana, o cientificismo, o materialismo e a crueldade da
industrialização. Isso fica muito claro, sobretudo nas peças de
Wilde que ironizou toda essa atmosfera de sordidez e repressão.
O sucesso de suas peças se deve ao fato de os expectadores terem

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conhecimento desse clima e se sentirem na pele de suas
personagens. A excentricidade atribuída a Wilde culmina não só
com o sentido pessoal do termo, mas, sobretudo, nesse seu caráter
inovador numa Londres que demonstrava certo esgotamento na
dramaturgia. Uma pena que ele não tenha fingido tolerância com
a hipocrisia de seu tempo para, talvez, não ter sido punido como
foi e morrer tão jovem.
O pressuposto sobre esses dois grandes artistas é que se
de um lado Wilde escancara a sua vida privada permitindo que
isso interfira e até prejudique a sua arte, James tem extremo
cuidado com a sua privacidade e faz da sua arte a sua vida. Quando
lemos “The middle years” (1927), conto considerado autobiográfico
pela crítica, isso fica muito claro. Dencombe, o protagonista,
demonstra essa angústia do artista de viver uma vida curta sem
tempo para aprimorar as técnicas apreendidas no decorrer dessa
vida, que para James, ao que tudo indica, se restringia à sua
produção artística. Muito embora ele tivesse uma intensa vida
social, nunca se permitiu que uma esfera interferisse na outra.
Contudo, em um aspecto os dois artistas se assemelham: Wilde,
como James, segue a sua intuição e defende seus ideais,
independentemente de se referirem à vida pública ou privada.
Em outras palavras, se Wilde, de convicções fortes em relação a
si, não aceita compactuar com toda a repressão, crueldade e
hipocrisia da sociedade londrina e mudar o seu comportamento
íntimo para não sofrer
represálias, de outro, James não abre mão das suas convicções
artísticas para agradar ao público e violentar-se interiormente,
se fechando para o seu ideal de perfeição artística.

O olhar do narrador de The Master sobre Wilde e James


De modo linear, usando a estratégia do narrador onisciente
neutro, segundo a classificação de Friedmamn – Philip Stevick
(1967) – Tóibín cria uma narrativa que gera pouco material para

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reflexão a respeito da prosa jamesiana. Quase todo o enredo é
construído em torno da sexualidade de Henry. Para introduzir essa
temática, o autor, enquanto manejador de disfarces, dá uma
importância exagerada à prisão de Wilde, suas motivações e
consequências. Páginas e páginas são destinadas às
especulações que circundam Londres, muitas delas com
fundamentos concretos e muitas sem base sólida alguma. A
explosão do sucesso de Wilde eclode com o fracasso de James na
dramaturgia e com a prisão de Wilde, numa Londres
extremamente conservadora.
Após o malogro de Guy Domville, o Henry criado ficcionalmente
por Tóibín vai para a Irlanda e hospeda-se no castelo de Dublin,
no qual reside um casal de amigos, na certeza de que ninguém
saberia do ocorrido em Londres e ninguém lhe cobraria um
comentário, ou uma explicação. Contudo, dentre os convidados
dos Wolseley, um jovem parlamentar, Webster, político influente,
indicado para ser o Primeiro Ministro, arrogante e indiscreto,
questiona Henry sobre sua possível amizade com Oscar Wilde e
lhe dá a notícia dolorosa: “[...] uma peça do senhor [de Henry] foi
tirada de cartaz para dar lugar ao segundo sucesso dele [de Wilde]
na temporada, e ele parece bastante satisfeito com a
coincidência.” (TÓIBÍN, 2005, p. 56).
O segundo sucesso de Wilde ao qual Webster se refere é The
importance of being Earnest, e, de acordo com a Introdução de The
Plays of Oscar Wilde, Anne Varty (2002), o famoso dramaturgo
Irlandês é preso em 05 de abril de 1895, com An Ideal Husband e
The Importance of being Earnest em cartaz no St James e no
Haymarket, respectivamente. E a provocação de Webster não para
por aí, ela continua com a referência aos problemas que Wilde
estaria vivendo com a esposa:

É uma época difícil para ele [Wilde] [...], Lady Wolseley me diz
que o senhor não tem esposa. Essa poderia ser uma solução.

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Desde que não vire moda, suponho. [...] Mas o fato de ser solteiro
deve deixá-lo aberto a todo tipo de... Como posso me expressar?
Todo tipo de afinidade. (p. 56)

Essa postura de Webster, sutilmente, introduz o tema da


sexualidade em The Master. Wilde encontra-se às voltas com o
processo movido pelo marquês de Queensberry, sob a acusação
de sodomia. Com seu temperamento rebelde e excêntrico, Wilde
enfrenta o marquês movendo-lhe um processo por calúnia e
difamação, sendo que ele estava envolvido, de fato, com Lord Alfred
Douglas, filho do marquês. O embate entre os dois gera uma série
de provas – com poucas evidências de serem verdadeiras – e isso
resulta na prisão de Wilde.
Em The Master, na noite de estreia de Guy Domville, chama
a atenção o fato de Henry ir ao Haymarket assistir a An Ideal
Husband, para relaxar, até que apresentação de sua peça
finalizasse e ele chegasse, ao final, apenas para os aplausos. Na
verdade o que ele recebe são vaias pesadas de uma plateia
constituída de pessoas que mal conheciam James e que foram
ao teatro para ver a interpretação de George Alexander, ator muito
querido do público, diretor e protagonista da peça.

Instantaneamente, assim que [Henry] colocou os pés da calçada


do Haymarket, ele sentiu ciúmes de Wilde. Havia algo de leviano
naqueles que entravam no teatro, pareciam pessoas prontas a
se divertir como nunca. [...], pessoas que pareciam tão alegres,
tão despreocupadas, tão vistosas, tão bem, dispostas. [...] essas
pessoas procuravam desfechos felizes. [...] o óbvio, o vazio, o
superficial provocavam na plateia gargalhadas entusiásticas e
sinceras. [...] o texto, fala após fala, era um arremedo de texto,
um apelo ao riso fácil, [...] a peça era malfeita. (TÓIBÍN, 2005,
p. 24-25)

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É curioso que Henry sabia do caráter triste e de renúncia
que sua peça apresentava, por oposição a toda aquela euforia
transmitida pela peça de Wilde. É nesse momento que Henry
pressente o fracasso e percebe que agora era tarde demais. Ele
sabe que vai perder essa identidade de dramaturgo que ele tentou
conquistar, vai ser humilhado e ter a sua identidade como
romancista arranhada, senão, destruída. Um aspecto que chama
a atenção, nesse fragmento, é a afirmação de que a peça era
malfeita. Wilde abusou da fórmula da well made play e essa
colocação do narrador remete a um paradoxo não à fórmula, mas
à terminologia. Não é novidade que um dos grandes obstáculos
que James encontrou na dramaturgia foi a questão do tempo e do
espaço limitados que não permitem voltas. No teatro, as falas
devem ser concisas e consistentes, sem espaço para divagações.
Ele sente isso na pele quando adapta The American para o palco.
Mesmo com os apelos do diretor para cortes infindáveis, a estreia
da peça, na província de Southport, durou quase quatro horas, um
tempo impossível de ser administrado no palco. Diante disso, é
natural que ele sinta ciúmes da superioridade e perspicácia de
Wilde em explorar a temática da ridicularização das regras sociais
estabelecidas, com a brevidade adequada e, pelo público conhecer
bem toda a hipocrisia reinante, o riso e a descontração são
evidentes.
De acordo com The Master, não muito tempo depois de
Henry voltar a Londres, começam as visitas dos amigos para
demonstrarem solidariedade após o fracasso de sua peça, e, dentre
esses amigos, os destaques ficam com Johathan Sturges (1864-
1911) e Edmund Gosse (1849-1928), e Wilde é o assunto que mais
se destaca nesses encontros. Henry, de natureza muito reservada,
deixa para os amigos a divulgação dos fatos e procura ouvir e
observar os gestos e as alterações no semblante quando tratam
da indecência desenfreada no comportamento de Wilde e a
disposição dos juízes para puni-lo dentro dos rigores e preceitos

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da lei. Gosse trazia suas informações diretamente do gabinete do
primeiro ministro, enquanto Sturges as trazia dos salões e dos
encontros casuais com informantes poucos confiáveis.
Logo após o início do julgamento de Wilde, os dois passaram
a visitar Henry diariamente e sempre apresentavam “[...] um novo
elemento de intriga [...]”. (p. 92). Os três, Henry, sobretudo, não
entendiam por que Wilde não tomava Douglas e fugia com ele
para Paris, por exemplo, onde as convenções sociais não eram
tão rígidas quanto na Inglaterra. Gosse explica que se encontrara
com George Bernard Shaw (1856-1950) e este lhe contara da
tentativa de dissuadir Wilde do embate com o marquês. Douglas,
todavia, insistia na continuidade do processo contra o pai. Segundo
o narrador de The Master:

Wilde frequentara bastante os pensamentos de Henry durante


os meses anteriores. Suas duas peças ainda estavam em cartaz.
[...] Escreveu a William a respeito, comentando um dos novos
fenômenos da vida londrina, o inescapável Oscar Wilde,
subitamente próspero em vez de ridículo, subitamente diligente
e sério em vez de alguém ocupado apenas em desperdiçar o
seu tempo e o dos outros. (p. 89).

Esse fragmento é muito significativo por demonstrar o


respeito de Henry pela dramaturgia de Wilde, independentemente
do sua vida privada. Num dos encontros com os amigos, Henry
pergunta da esposa e dos dois filhos de Wilde. Embora não
conseguisse imaginar os sentimentos da senhora Wilde, a
existência dos meninos em meio a essa atmosfera de tensão e
desespero em relação ao pai, o deixava bastante comovido. “[Henry]
Imaginou os dois filhos esperando pela volta do pai [...]. Pensou
neles, inconscientes da reputação do pai, mas aos poucos formando
uma noção a seu respeito e sentindo sua falta [...].” (p. 91). Gosse
informa que as testemunhas arranjadas pelo marquês, contra

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Wilde, são pessoas desqualificadas. “Wilde, ao que parece, andou
se relacionando com patifes, ladrões e chantagistas.” (p. 93).
No momento em que o Henry de Tóibín percebe que não
vai haver volta e que Wilde vai ser mesmo punido, ele sugere:
“[...] talvez um período de confinamento solitário ajude Wilde, [...].
Mas não o martírio. Não se deve desejar isso a ninguém.” (p. 96).
E, novamente Henry pergunta “[...] dos filhos de uma união de
duas forças opostas.” (p. 103). Quem responde é Gosse dando conta
de que a esposa tinha seu próprio dinheiro, mudou-se para a Suíça,
trocando seu nome e os dos filhos. As crianças passam a ocupar
os pensamentos de Henry: “[...] criaturas lindas em estado de
alerta num país onde não compreendiam uma palavra da língua,
seus próprios nomes suprimidos, seu pai responsável por algum
crime obscuro e sem nome.” (p. 99). Sturges comenta que a esposa
de Wilde teria vindo à Inglaterra para dar ao marido, já
encarcerado, a notícia da morte da mãe dele. Henry novamente
se comove com a situação das crianças:

[...] Imaginou os dois filhos de Oscar Wilde, com os nomes


mudados e o destino incerto, vendo de uma janela sua mãe
partir. Perguntou-se o que eles mais temeriam agora, quando
a noite caía, duas crianças assustadas, [...] sem saber muito
bem por que sua mãe os deixara aos cuidados de serviçais,
perseguidas por pavores sem nome [...] [e] pela escassa
lembrança de seu pai infeliz que tinha sido trancafiado. (p.
103)

Diante desse excerto, é possível perceber um Henry sensível,


comovido e indignado com os rumos que as coisas tomaram para
Wilde. Uma leitura possível para esse Henry ficcional é que a
sensibilidade do artista vai muito além da preocupação em
publicar, vender, fazer sucesso com sua obra e ressentir-se com
o sucesso do outro. Ao que parece, a dor maior está em se colocar
no lugar do outro num momento destruidor desses, e mais, ser

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 361


capaz de colocar-se no lugar das crianças e pensar no sofrimento
delas, no que elas poderiam pensar ou sentir em relação ao pai.
O James empírico vem de uma família de cinco irmãos, dentre
os quais William, de quem a diferença de idade é de apenas um
ano. Os pais viajavam com frequência e os deixavam por conta de
serviçais e isso devia gerar muita angústia e muitos
questionamentos interiores numa cabecinha de criança, em
função dessa sensibilidade aguçada. Talvez, por isso, o Henry
ficcional se posicione com tanta intensidade emocional sobre os
filhos de Wilde.

Considerações finais
Em 04 de setembro de 2004, Alan Hollinghurst escreve
uma crítica a Author, Author, para o jornal The Guardian, com o
nome de The middle fears, com o intuito de fazer um jogo de
palavras com “The middle years,” de Henry James – conto
inacabado, e publicado postumamente em 1917. Nessa crítica,
Hollinghurst aborda os aspectos tomados por Lodge para criar
ficcionalmente a vida e o percurso literário de Henry James em
Author, Author, em comparação às abordagens de Tóibín, em The
Master, sobre o mesmo artista. Afirma que Tóibin se mantém
mais próximo do que James considerou o ponto de vista puro. O
narrador de The Master, segundo o crítico inglês, permanece na
consciência do protagonista, apontando para seus medos,
inseguranças, dúvidas, desejos e sua ansiedade acerca da própria
sexualidade.
A crítica é pertinente na medida em que Henry James
penetrou na consciência de suas personagens e as constituiu
com intensa interioridade. Dessa forma, Tóibín cria um
protagonista largamente convincente e completo, tanto que
agradou ao público e à crítica e o romance fora indicado para o
Booker Prize. Todavia, pelo fato de o narrador de The Master tratar,
mais especificamente, da suposta homossexualidade de Henry,

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 362


as ferramentas para penetrar na consciência do protagonista são
vastas e dispõem de uma série de aspectos a serem explorados:
seus anseios, suas expectativas, suas dúvidas em relação à própria
sexualidade o que torna o romance atraente ao público leitor.
Outro ponto que vale salientar é que esse narrador não é tão
complexo como costumam ser os narradores contemporâneos.
Nesse sentido, a leitura se torna mais fluente e um leitor
semântico, segundo a denominação de Umberto Eco (2003) –
aquele leitor mais interessado no enredo e em descobrir de que
jeito o romance vai terminar, sem preocupação com as estratégias
narrativas adotadas pelo autor – é perfeitamente capaz de lê-lo
sem dificuldades. Como dito no início, o romance abre poucas
discussões sobre a obra de James.
Podemos afirmar, sem medo de errar, que a importância
exagerada que Tóibín dá à vida privada e à trajetória literária de
Oscar Wilde, em The Master, não só reforça a temática do romance,
como também o torna ainda mais atrativo aos leitores. Prova disso
é a grande quantidade de páginas dedicadas ao artista irlandês.
Para finalizar, a postura do Henry ficcional é bastante
discreta, suas falas são mínimas e seus questionamentos poucos
e sempre bem fundamentados. Muito do que sabemos dele é por
intermédio do narrador, por meio do discurso indireto. Henry é
um observador atento, prefere ouvir e saborear o gosto de cada
palavra que seus interlocutores pronunciam e calcular o peso de
cada uma delas. Escolhe ponderar os gestos, as expressões e as
respostas dadas por eles, fazendo sua própria análise do quadro
todo. Henry censura o fato de Wilde escancarar a sua vida privada
e não pensar no destino da esposa e dos filhos pequenos.
Percebemos que mesmo tendo em Wilde um rival muito forte na
dramaturgia, Henry defende pena branda para o dramaturgo
irlandês e se emociona profundamente com os danos psicológicos
que o comportamento do pai imporia às crianças.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 363


Referências

ECO, Umberto. Ironia intertextual e níveis de leitura. In:_______.


Sobre a literatura. Tradução de: AGUIAR, Eliana. Rio de Janeiro:
Record, 2003, p. 199-217.

EDEL, Leon. The treacherous years: 1895-1901. Published by


arrangement with J. B. Lippincott Company. New York: Avon
Books, 1969.

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HOLLINGHURST, Alan. A linha da beleza. Tradução de WHATELY,


Vera. Rio de

Janeiro: Nova Fronteira, 2005.

______. The Guardian. The middle fears. Disponível em:

http://www.guardian.co.uk/books/2004/sep/04/
fiction.henryjames, Acesso em 19/07/2015.

LODGE, David. Author, Author. Great Britain: Secker & Warburg,


2004.

FRIEDMANN, Norman. Point of view in fiction: the development


of a critical concept. In: STEVICK PHILIP (org). The theory of the
novel. London: The Free Press. A division of Macmillan Publishing
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TÓIBÍN, Colm. O Mestre. Trad. José Geraldo Couto. São Paulo:


Companhia das Letras, 2005.

______. The Master. New York: Macmillan Library, 2004.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 364


WEINHARDT, Marilene. A biblioteca ilimitada ou uma Babel
ordenada: ficção-crítica contemporânea. Cadernos de estudos
culturais, Campo Grande, MS, v. 1 p. 91-116, jan./jun. 2010.

______. O romance histórico na ficção brasileira recente. In:


CORRÊA, Regina Helena M. A. (Org.). Nem fruta nem flor. Londrina:
Ed. Humanidades, 2006, p. 131-172.

WILDE, Oscar. The plays of Oscar Wilde. Introduction and Notes:


VARTY, Anne. Hertfordshire: Wordsworth Editions Limited, 2000.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 365


O MITO DA AMÉRICA NO CINEMA ITALIANO
CONTEMPORÂNEO:
GIUSEPPE TORNATORE x EMANUELE CRIALESE

Autora: Maria Célia Martirani Bernardi Fantin (UFPR)

RESUMO: O presente estudo pretende verificar os modos pelos quais


o cinema contemporâneo - mais especificamente o de dois cineastas
italianos – por meio de seus respectivos discursos cinematográficos
atualizam, transfiguram e relativizam o mito do “fare l’America”,
consolidado no imaginário dos imigrantes italianos, que foram obrigados
a partir em busca de melhores condições de vida, especialmente no
contexto histórico de fins de séc. XIX, início de séc. XX. O foco desta
análise se dedicará ao filme La leggenda del pianista sull’oceano (1998),
de Giuseppe Tornatore em diálogo com Nuovomondo (2006) de Emanuele
Crialese. Importa notar o quanto o tema vem assumindo relevância na
contemporaneidade, já que a nova geografia humana que se impõe em
nossos dias implica necessariamente em incessantes travessias de
verdadeiras levas migratórias, na maioria das vezes, trágicas e
desumanas.
PALAVRAS-CHAVE: Cinema Italiano Contemporâneo. Migração.
Tornatore. Crialese.

Uma das infinitas tentativas de aproximação ao


polissêmico conceito de Mito pode ser a que o considera, a princípio,
como uma construção ideológica baseada no imaginário das
populações, que expressa, pela via do simbólico, o anseio por
respostas aos limites de uma realidade vivida.
Segundo Lévi-Strauss (2003), o Mito não é uma narrativa
histórica, mas a representação generalizada de fatos que ocorrem
com uniformidade na vida dos homens. Por isso, o Mito nunca
reproduz a situação real, mas opõe-se a ela, porque a
representação é embelezada, corrigida e aperfeiçoada,
expressando assim as aspirações a que a situação real dá origem.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 366


Ao retomar os princípios da “ontologia cinematográfica”
sistematizados por André Bazin (1958), para quem o cinema é,
antes de tudo “linguagem e discurso”, Gilles Deleuze (2006) afirma
que a força da imagem consegue implementar reflexões
fundamentais sobre a origem, a perpetuação e a relativização
dos mitos, “produzindo conhecimento”.
Nesse sentido, o presente estudo pretende verificar os
modos pelos quais o cinema contemporâneo - mais
especificamente o de dois cineastas italianos – por meio de seus
respectivos discursos cinematográficos atualizam, transfiguram
e relativizam o mito do “fare l’America”, consolidado no imaginário
dos imigrantes italianos, que foram obrigados a partir em busca
de melhores condições de vida, especialmente no contexto
histórico de fins de séc. XIX, início de séc. XX.
Importa notar o quanto o tema vem assumindo relevância
na contemporaneidade, já que a nova geografia humana que se
impõe em nossos dias implica necessariamente em incessantes
travessias de verdadeiras levas migratórias, na maioria das vezes,
trágicas e desumanas (como por exemplo, as que partem do Norte
da África com destino à ilha de Lampedusa, no sul da Itália). E
como não poderia deixar de ser, cresce, cada vez mais, o número
de manifestações e representações artísticas que vem se
debruçando sobre o assunto, a exemplo da sétima arte.
Nossa escolha se pautou pelo método de análise
comparatista entre o filme La leggenda del pianista sull’oceano
(1998), traduzido entre nós como A lenda do pianista do mar, de
Giuseppe Tornatore em diálogo com Nuovomondo (2006), em
português: Novo Mundo de Emanuele Crialese, pois, em nosso
entendimento, guardando as diferenças específicas de cada obra,
ambas se detém na atualização do mito do “fazer a América”, nos
primórdios do século XX.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 367


A América como “Terra Prometida” na literatura italiana: Carlo
Levi
Cumpre observar o quanto boa parte da Literatura Italiana
contemporânea também tratou do tema e em que medida algumas
de suas páginas antológicas podem servir de apoio para a
verificação de como o referido mito foi sendo consolidado ao redor
da ideia de “Terra Prometida”.
É o que podemos depreender do seguinte excerto de um
romance de Carlo Levi:

Para a gente da Lucania, Roma não é nada; é a capital dos


Senhores, o centro de um Estado estrangeiro e maléfico. Nápoles
poderia ser a sua capital e realmente o é, a capital da miséria,
nos rostos pálidos, nos olhos febris de seus habitantes, nos
vãos das portas abertas por causa do calor; é o verão, com
mulheres seminuas que dormem sobre as mesas e nos degraus
de Toledo; mas já não há em Nápoles, desde muito tempo,
nenhum rei, e nela só se chega para embarcar. (LEVI, 1990,
p.108, trad. nossa)

Nessa obra-prima de traços autobiográficos, que narra a


situação de exílio forçado do autor, devido a seus embates com a
ideologia fascista da época (1935-36), conseguimos notar a
minúcia retratista do olhar do que vem de fora (Carlo Levi era
proveniente de Turim, do norte desenvolvido, quando é mandado
para o sul subdesenvolvido) observando tudo ao redor,
especialmente o atraso e a miséria da região da Lucania – o que,
inclusive, justifica o título do romance: Cristo si è fermato a Eboli
(1945), traduzido entre nós como Cristo parou em Eboli. A narrativa
hiper-realista do autor parece querer documentar o anseio
daquela gente por migrar, fugindo da miséria e do abandono, na
tentativa desesperada de se reinventar no outro mundo, a
América:

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 368


O Reino acabou: o reino dessa gente sem esperança não é
desta terra. O outro mundo é a América. A América também
tem, para os camponeses, uma dupla natureza. É uma terra
para onde se vai para trabalhar, onde se sua e se dá duro,
onde o pouco dinheiro se economiza com muitas dificuldades
e privações, onde, às vezes se morre e ninguém nem se lembra,
mas ao mesmo tempo e sem contradição, é o paraíso, a terra
prometida do Reino. (LEVI, 1990, p.108, trad. nossa)

A obra literária foi adaptada para o cinema pelo diretor


Francesco Rosi, (numa coprodução ítalo-francesa em 1979) que
obteve, naquele ano, dois prêmios David di Donatello como melhor
filme e melhor diretor, além de ter vencido também o Grande
Prêmio do Festival de Moscou no mesmo ano e, em 1983, o de
melhor filme estrangeiro (BAFTA). Contou com a excelente a
atuação de Gian Maria Volonté, como protagonista.

A América eufórica de Alessandro Baricco e Giuseppe Tornatore


Outro autor que trata do tema de modo enfático é
Alessandro Baricco (nascido em Turim em 1958), considerado um
dos mais importantes escritores italianos contemporâneos. Sua
obra : Novecento: un monologo (1994) inspirou o filme de Giuseppe
Tornatore: La leggenda del pianista sull’oceano (1998) e é a história
de um homem que nasce, cresce e morre dentro de um navio,
tornando-se um exímio pianista, vivendo confinado entre a proa
e a popa do transatlântico Virginian, grande embarcação, que fazia
incessantes viagens entre a Itália e a América, carregando levas
de migrantes que procuravam “fazer a América”, na virada do
século XIX para o XX.
Tornatore transfigura, plasticamente, a chamada
primeira “aparição” da América, conseguindo como que ilustrar,
por meio da “imagem em movimento” (JAMESON, 1995) - que é,
em síntese, uma das definições da linguagem cinemato- gráfica
- a primeira página da obra de Alessandro Baricco.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 369


De fato, a página que abre o monólogo, refere-se à tal
aparição como algo de encantado, maravilhoso, um fascínio
associado, ao mesmo tempo, à dúvida e ao medo do novo (aquele
que primeiro a via, ficava como que extasiado e anunciava, com
os pulmões cheios de ar, como marinheiro que, antes de todos,
avistasse terra: América! Interessante notar que essa primeira
visão da América, coincidindo com a abertura da obra e também
do filme, quer enfatizar o quanto havia de expectativas geradas,
em torno do simples nome “América”. (FANTIN, 2009, p.182,183)
O que percebemos, logo de saída, na obra de Baricco e
também, mais ainda, de certa forma, na adaptação feita para o
cinema por Tornatore é a configuração de um ideal de América
calcado na euforia do sonho, numa idealização que exacerba a
visão utópica da assim chamada “Terra Prometida”, onde
jorrariam o leite e o mel. O imaginário simbólico – em cuja base
reside a construção do conceito de mito – nessa acepção, eleva
ao máximo as expectativas daqueles que se deslocam em busca
de melhores condições de vida e que almejam encontrar, nas
longínquas terras americanas, o paraíso perdido, o bálsamo para
toda sorte de privações e sofrimentos:

Acontecia sempre que alguém, a certa altura, levantava a


cabeça... e a via. É uma coisa difícil de entender. Quero dizer...
Éramos mais de mil, naquele navio, entre ricaços em viagem e
emigrantes, e gente estranha, e nós... E no entanto havia
sempre um, um só, um que primeiro... a via. Talvez estivesse
ali comendo, ou passeando, simplesmente, na ponte... talvez
estivesse ali ajeitando as calças... levantava por um instante
a cabeça, lançava um olhar ao mar... e a via.
Então ficava imóvel, ali onde estava, partia-lhe o coração em
mil pedaços e sempre, todas as malditas vezes, juro, sempre,
virava-se para nós, para o navio, para todos e gritava (baixo e
lentamente): a América! Depois permanecia ali, imóvel como se
devesse fazer parte de uma fotografia, com cara de quem a

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 370


tivesse feito, a América. À noite, depois do trabalho, e aos
domingos, pedira a ajuda de um cunhado, pedreiro, boa pessoa...
primeiro, tinha em mente alguma coisa em compensado,
depois... tomou-lhe um pouco a mão, fez a América... (BARICCO,
2000, p. 9-10)

Nesse tipo de abordagem, há a exaltação do mito do “fare


l’America” e a representação é embelezada, corrigida e
aperfeiçoada (Levi Strauss, 2003) expressando assim, as
aspirações a que a situação real dá origem e a mitificação quase
premonitória daquele que primeiro “descobre” a nova terra:

Aquele que é o primeiro a ver a América. Em cada navio existe


um. E não é preciso pensar que são coisas que acontecem por
acaso, não... nem mesmo por uma questão de dioptria, é o
destino, aquilo. É o tipo de gente que desde sempre teve aquele
instante gravado na vida.
E quando eram crianças, você podia olhá-los nos olhos e, se
olhasse bem, já a via, a América, já ali, pronta para saltar,
para escorregar pelos nervos e pelo sangue – e eu sei como –
até o cérebro e dali para a língua, até dentro daquele grito
(gritando) AMÉRICA!, já existia, naqueles olhos de menino,
inteira, a América.(BARICCO, 2000, p.9, 10)

A América de Emanuele Crialese: a diluição do sujeito nos


mares de leite
Emanuele Crialese é um dos mais importantes diretores
do cinema italiano da atualidade. Nascido em Roma em 1965,
não deixa de homenagear, em boa parte de seus filmes, alguns
traços de suas origens sicilianas. Passou a ser reconhecido
mundialmente, após o lançamento da premiada trilogia: Once we
were strangers (1997); Nuovomondo (2006) e Terraferma (2011), que
ele mesmo denomina “Trilogia do movimento humano” (CRIALESE,
2011).

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 371


Uma das características mais evidentes do conjunto de sua
obra é fruto do que se poderia denominar – conforme o nome de
um famoso festival de cinema italiano – de “contaminações”:

O meu cinema fala de integração e diversidade... Interessam-


me as “contaminações”, termo que, porém é, muitas vezes,
usado em acepção negativa. Eu acredito que seja muito
importante, para a raça humana, misturar os contornos, abolir
as fronteiras, os limites, pois, do contrário corremos o risco de
nos trancafiarmos em nossas celas particulares e egocêntricas
. Quando nos “contaminamos”, nosso olhar se torna mais
genuíno: ir embora de casa nos dá uma nova visão também do
retorno... (CRIALESE, 2012)

Da trilogia, escolhemos, para o presente estudo, analisar o


segundo: Nuovomondo, pois parece ser o que melhor ilustra o
propósito, explicitado anteriormente.
A primeira cena que abre o filme é impactante. Dois
homens, pai e filho, sobem uma montanha altíssima de pedra.
Hábeis e ágeis pisam a aridez daqueles rochedos apenas com a
planta dos pés que sangram, habituados, desde sempre, à dureza
descalça daquele chão. E é, também, pedra o que carregam nas
bocas totalmente cerradas. Estão sós e sua solidão é ampliada
em meio a um mundo que parece feito de calcário branco
acinzentado, a se perder de vista nesta espécie de agreste
siciliano. Os dois vão escalando o cume escarpado. A única música
que se ouve é a dos ruídos dos corpos em movimento, quase como
a batida compassada de seus corações aflitos e dos pios de aves
agourentas.
A pergunta inicial que, inevitavelmente, fazemos é: para
onde estarão indo essas criaturas tão abandonadas, que
palmilham aquelas pedras com tamanha desenvoltura,
carregando, no olhar, apenas, urgências? E o que se descobrirá,
após esse árduo trajeto, é que estão indo ao alto, em direção a um

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 372


Santuário. Lá depositam as pedras que retiram da boca, em
oferecimento a uma santa, em penitência, para que Ela os oriente,
dando-lhes um sinal qualquer que indique a melhor escolha: ficar
ou partir. E o veredicto acabará sendo o mesmo que impulsionou
tantas levas de pobres italianos meridionais a aventurarem-se
nos navios, que os levariam à América, ao Novo Mundo, na
esperança de uma vida digna.
Esse primeiro momento se fecha com uma tomada de cena
em que a câmera lentamente se afasta dos dois e vai flagrando-
os do alto, como se os sobrevoasse. Nessa panorâmica, o efeito
que se cria é de uma plasticidade singular. Os dois homens vão
se tornando diminutos, até a diluição total em meio àquele relevo
silencioso e absoluto das pedras que se impõem, numa reverência
ancestral. E, a partir daí, terá início a travessia de Salvatore
Mancuso, seus dois filhos e a mãe, além de duas moças, que ele
se incumbe de fazer chegarem sãs e salvas à América.
Aparentemente estamos diante de mais um filme sobre a
saga de imigrantes, obrigados a tentar uma nova vida em outra
terra, tema já tão bem tratado por outros grandes cineastas, como
por exemplo, os irmãos Taviani em Kaos (1984) ou Good Morning
Babilonia (1987), Tornatore em La leggenda del pianista sull’oceano
(1998) e Gianni Amelio, em L’America.(1994).
Entretanto, o que parece excepcional é a nova linguagem
com que Crialese traduz esse tão conhecido e atualíssimo tema.
Veja-se, ilustrativamente, a cena da partida propriamente dita.
Temos apenas o apito doloroso do navio que, lentamente, vai se
afastando do porto. Uma nesga de mar se interpõe entre a multidão
de homens que fica e a outra que parte, como se a integridade de
um corpo fosse cindida ao meio. A tênue linha de água que os
separa vai se ampliando, aos poucos, dando conta do paulatino,
mas decisivo afastamento dos que vão para nunca mais voltar.
Quase como morrer um pouco, nessa despedida… Quase como
deixar pra trás toda uma vida, uma história, em que só resta o

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 373


apego obstinado à idéia da reinvenção do ser no novo mundo que
se anuncia. E o navio passa a ser uma espécie de ventre gigante
que abriga a todos, irmãos transitórios da mesma embarcação.
A travessia, então, assume o papel de protagonista e
aqueles homens, antes dispersos, passam a se reconhecer. Em
tudo que, de alguma forma, já foi reiterado por diversos cineastas
ao retratarem essa viagem pelo oceano, a câmera de Crialese
assume, aqui, a força de uma beleza inigualável. Especialmente
na cena da tempestade em alto mar, em que os corpos
desgovernados são jogados de um lado para o outro, acompanhando
a fúria das ondas que oscilam impetuosas, ele consegue ilustrar
aquela dor, com a mesma precisão dramática de certos claros-
escuros que vemos, por exemplo, nas telas de um Caravaggio.
Finalmente, depois do duro percurso, a chegada: o Golden
Gate, a porta de entrada para a América. Os imigrantes que
chegam a Ellys Island são submetidos a uma série de exames e
testes para que possam ser admitidos no novo mundo. Um viés
de profunda e irônica crítica à mentalidade americana, nesse
momento, denuncia a arrogância e a postura extremamente
preconceituosa dos “civilizados”, em relação aos pobres ignorantes
“bárbaros” que acabam de chegar. Toca-se aqui, de modo explícito,
na ferida, ainda aberta e muito atual, subjacente às teorias
xenófobas de eugenia e de superioridade de raças, sustentadas
pelos regimes nazi-fascistas. E teremos o absurdo dessas
mentalidades, revelada na justificativa dada pelos agentes
americanos, ao submeterem os imigrantes recém-chegados a
certos “testes de lógica”. Afirmam eles que a inteligência seria
determinada geneticamente e que aqueles povos poderiam
representar uma séria ameaça, se não fossem submetidos a uma
triagem, já que se sabia que a falta de certas capacidades mentais
revelariam uma grave doença contagiosa.
Importa notar a coragem com que, abertamente, o filme
denuncia a ferrugem corrosiva do preconceito e da política de

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 374


higienização, camuflada no Portão Dourado de entrada para as
“facilidades” da nova terra. O preço para nadar nos amenos rios
de leite (imagem recorrente, à época, para falar da fartura das
terras americanas) é muito mais alto do que, de longe, se poderia
supor... E parece ser justamente nisso, nesse eixo de tensão que
se estabelece entre a ânsia e a necessidade de sair da terra de
origem e a integração esforçada, na difícil assimilação dos novos
padrões da terra de chegada, que reside uma das muitas
qualidades da obra de Crialese.
Sabiamente, muito além da história da saga de italianos
obrigados a buscar trabalho e vida digna no eldorado paradisíaco,
o filme traz à tona a problemática atualíssima das questões
migratórias de nossos tempos, em que o mapa geográfico do mundo
implica novas configurações humanas.
A última cena, quase surreal, aproximará, num close, a
câmera de Mancuso, Lucy e dos dois filhos, de quem só veremos
as cabeças, já que os corpos estão submersos no grande mar de
leite em que nadam. Uma cenoura gigante corta-lhes a frente e,
satisfeitos, eles se apóiam nela, usando-a como bóia.
Gradualmente, tal como no momento inicial do filme, a
câmera vai se distanciando em movimento de ascensão, como
se os sobrevoasse e o que se nos apresenta é um imenso fundo
branco, o oceano de leite em que milhares de cabeças, com seus
chapéus negros, nadam.
A abertura e o final do filme são construídos, formalmente,
de modo coincidente. No início, os Mancuso, peregrinos pastores
sicilianos, diluem-se no gigantesco universo montanhoso das
pedras que parece absorvê-los por completo. Ao final, também,
como que se diluem na imensidão branca do mar de leite da
América. Talvez, a diferença resida em que, no primeiro momento,
sejam ainda seres autênticos que integram aquele ambiente,
meio homens-meio pedras, num entranhamento íntimo de

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 375


convívio com a terra, que só se conhece, por meio da raiz umbilical
e única da identidade e do reconhecimento.
Nadando no mar de leite, ao contrário, ainda que com todas
as facilidades sedutoras e fascinantes da nova vida, os Mancuso
deixam a pedra ancestral e correm o risco de não saber mais
quem, de fato, são, em meio à multidão anônima dos que
perambulam por aí errantes, talvez, na eterna busca de uma
simples, mas verdadeira, identidade.

Conclusão
O mito da América tem sido representado artisticamente,
em diferentes épocas e contextos da história humana. Como
procuramos observar, no presente estudo, os fenômenos
migratórios de fins do século XIX e início do século XX, ocuparam
e ocupam boa parte da literatura e do cinema.
Hoje, mais do que nunca, alargam-se as questões em torno
da nova reconfiguração geográfica mundial, em grande parte
determinada pelas arbitrariedades impetradas pelo
póscolonialismo, que vêm obrigando o êxodo incessante de
populações inteiras, como por exemplo, as do norte da África.
Os fenômenos migratórios da contemporaneidade se
impregnam das marcas trágicas das diásporas, cujas
consequências funestas, equiparadas a verdadeiros genocídios,
estão nas páginas de todos os jornais, acusando o Mediterrâneo
como um Mar de Morte (EURONEWS, 2014).
Como não poderia deixar de ser, a literatura e o cinema
(enquanto expressões artísticas) abrem-se ao diálogo crítico com
o contexto histórico atual, por meio das múltiplas representações
e abordagens que nos apresentam, seja retomando mitos para
reforçá-los, seja revisitando-os de forma irônica e relativizadora.
Justamente porque percebemos a urgência de abordar tais
questões é que nos propusemos a analisar, especificamente, duas
linguagens cinematográficas distintas, criadas por grandes nomes

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 376


da cinematografia italiana. Mais do que analisar a adaptação
fílmica, por exemplo, feita por Tornatore, a partir da obra de
Baricco; mais do que constatar que o filme de Crialese traz uma
nova abordagem de um dos temas mais explorados pelo cinema e
pela literatura, qual seja o da viagem transoceânica de pobres
imigrantes italianos, que eram obrigados a deixar a terra natal
“per fare l’America”, nosso intuito foi o de ir além, buscando
refletir, especialmente, como cada um destes cineastas tratou
do mito da América idealizada, enquanto paraíso de salvação e
como a História se repete ciclicamente, trazendo cenas do passado
para ilustrar o presente.
Se Tornatore investe na visão paradisíaca e eufórica da
América, Crialese propõe o pathos e a ironia, na tensão que cria
entre as cenas da partida e a da chegada com a subsequente
diluição do sujeito, na tentativa de aquisição da nova identidade,
tocando muito de perto na condição precária e desesperada dos
deslocamentos humanos que se configuram na atualidade.
Em cada um dos respectivos casos, é o discurso
cinematográfico que se impõe, composto de elementos
procedimentais que conferem à película o status de tessitura
narrativa autônoma, que determina e reafirma o que Frederic
Jameson (1995) denomina: “ontologia visual”.
O Mito do Novo Mundo – aqui revisitado pelo cinema – se
relativiza e assume outra dimensão, porque traduz, em termos
dialéticos, importantes e pertinentes reflexões para a própria
contemporaneidade, na medida em que coloca em cena a
atualíssima problemática do sujeito, obrigado a partir, em
processos cada vez mais traumáticos de desterritorialização e
reinserção nos novos mundos, cujos portões insistem em não
abrir.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 377


Referências

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_______. Novecentos: um monólogo. Trad: Y.A.Figueiredo. Rio de


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_______.Nuovomondo. Direção: Emanuele Crialese. Gênero:


Aventura. Elenco: Charlotte Gainsbourg, Vincenzo Amato, Aurora
Quattrocchi, Francesco Casisa, Filippo Pucillo, Federica De Cola,
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Chierici, Nino D’Agata, etc. Duração: 124 min. País de origem:
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TORNATORE, G. La leggenda del pianista sull’oceano. Baseado na


obra Novecento de Alessandro Baricco. Direção: Giuseppe
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Taylor Vince, Nicola Di Pinto, Gabriele Lavia, Anita Zagaria, Luis
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Duração: 165 min. Produção: Itália. 1998.

UNCHR: Migrazioni, Mediterraneo mare di morte. In meno di un anno


3400 vittime. Disponível em: http://www. it.euronews.com. Acesso
em: 10 dez. 2014.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 379


W. B. YEATS E A IDENTIDADE IRLANDESA NO INÍCIO
DO SÉCULO XX

Autor: Patricia de Aquino (USP)


Orientadora: Profa. Dra. Laura P. Z. Izarra (USP)

RESUMO: A obra literária e crítica do poeta irlandês W.B.Yeats sempre


esteve associada à formação da identidade nacional irlandesa. Há entre
os críticos, no entanto, divergências sobre o tipo de influência e
consequências que sua obra teve na formação dessa identidade
nacional. No ano em que se comemora 150 anos do nascimento do
poeta, este artigo tem por objetivo revisitar, revisar e analisar alguns
aspectos do papel literário de Yeats na formação da identidade
irlandesa, especialmente através das representações femininas ao
longo de toda sua obra poética, questionando aspectos críticos como a
idealização da identidade nacional e o escapismo das realidades
materiais e históricas da virada do século XX, e propondo uma
diversidade de caracterizações e de processos de transformação da
identidade da Irlanda.
PALAVRAS-CHAVE: W.B. Yeats. Identidade. Irlanda. Mulher. Feminino.
Poesia.

O ano de 2015 comemora 150 anos do nascimento do poeta


irlandês William Butler Yeats. Nascido em 13 de Junho de 1865
em Dublin, Yeats deixou uma vasta obra que inclui livros de
poesias, peças teatrais, textos folclóricos e ensaios críticos. Foi
co-fundador de algumas instiuições importantes ligadas à
promoção da cultura nacional irlandesa como a Irish Literary
Society e National Literary Society, ambas no ano de 1892, e o
Irish Literary Theatre em 1899, teatro precursor do famoso Abbey
Theatre, inaugurado em dezembro de 1904. Após a formação do
Estado Livre Irlandês em 1922, Yeats foi senador por dois

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 380


mandatos, iniciados em 1922 e 1925, estabelecendo sua carreira
como político e homem público, além de artista. No ano de 1923,
Yeats foi ganhador do Prêmio Nobel de Literatura (Wikepedia,
2015).
O crítico cultural irlandês Declan Kiberd (1989) retoma a
afirmação de Oliver John Gogarty, um dos senadores do Estado
Livre Irlandês, de que sem a poesia de Yeats a Irlanda não seria
um estado independente. Para Kiberd, essa afirmação é um tanto
exagerada, mas não completamente errônea, pois através dela
pode-se compreender a importância do trabalho de Yeats na
retomada de posse, visão e sentido da paisagem irlandesa, o que
o fez ser celebrado no mundo todo como “um dos grandes poetas
da descolonização” (p. 231). O crítico sugere que a descolonização
na obra de Yeats se dá em zonas utópicas e virtuais, pois esses
eram os únicos espaços em que a resistência era possível,
considerando que a Irlanda era um território ocupado e o processo
de anglicização, acelerado (NLI, 2006).
A Irlanda de Yeats, segundo Terrence Brown (2010), era
uma terra de espírito imortal, de druídas e suas canções, em que
o homem e a natureza eram um só. Fintan O’Toole (NLI, 2006)
diz que Yeats queria criar a Irlanda segundo a sua imagem:
romântica, heróica e épica; sem ter muito interesse, no entanto,
em tratar dos aspectos democráticos e sociais de seu tempo.
Kiberd, por sua vez, fala do papel de
Yeats em reverter os esteriótipos da identidade do povo
irlandês. “Desde os tempos de Edmund Spencer, (...) os ingleses
foram apresentados como frios, refinados, urbanos, confiáveis,
habilidosos, maduros e racionais”; já os irlandeses, por oposição
e como convinha ao seu colonizador, como “cabeças-quente,
brutos, emocionais, supersticiosos, atrasados, infantis e
femininos” (p. 262-64). Segundo Kiberd, a solução de Yeats para o
dilema da construção identitária do irlandês pela mediação do
inglês era criar uma literatura nacional para ser lida por um

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público local na qual a Irlanda se expressaria para si mesma,
sem a mediação do estrangeiro. No entanto, para o crítico, Yeats
não foi tão bem sucedido em sua proposta, já que acabou criando
a imagem de uma terra pastoral, mística e primitiva e de um
povo subserviente e serviçal, representado pela imagem de um
camponês idealizado fora da história e do contexto social. Yeats,
por sua vez, dizia que “as artes repousam sonhando com aquilo
que está por vir” (Kiberd, p. 256). Em seu ensaio The Literary
Movement in Ireland, Yeats (1899) afirma que a Irlanda com a qual
ele sonha é uma terra de dores e emoções imemoriáis, de heróis,
santos e camponeses, de músicas e histórias e de um passado
celta.
Portanto, neste trabalho, investigarei como a identidade
da Irlanda é construída na obra poética de W.B. Yeats. Para tal,
farei o pequeno recorte de analisar as representação da Irlanda
como mulher através das personagens femininas que aparecem
em seus poemas. Finalmente, averiguarei como essa construção
identitária corresponde ou diverge das proposições apresentadas
pelos teóricos acima.
Declan Kiberd (1989) explica que “uma das tradições
bárdicas mais antigas é a noção da Irlanda como uma mulher,
que devia ser adorada, cortejada, conquistada, se necessário, até
com a morte” (p.235). O crítico ainda complementa com a
explicação de que às vezes a Irlanda era também imaginada como
mãe, de filhos fortes e traidores. No século 18, a Irlanda aparece
como uma mulher passiva, nostálgica e com desejo pouco
articulado. No período da virada do século XX, os nacionaistas
preferiam figuras mais revolucionárias como Deidre, Maeve e
Grace O’Malley.
Nossa possibilidade de análise será pautada também no
carácter simbólico da poesia yeatsiana. Neill Mann (NLI, 2006)
explica que Yeats via o mundo mediado por símbolos e que sua
poesia tinha um forte senso de lugar que sempre era um símbolo

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para algo além. Os símbolos eram de grande interesse para Yeats
porque permitiam múltiplas interpretações.
Dentro deste contexto, neste trabalho buscarei especificar,
caracterizar as personagens femininas e suas transformações
ao longo do tempo nos poemas de Yeats. Comecemos pela morte,
esta que é uma etapa da vida tão próxima do nascimento para
Yeats. A Irlanda representada como uma mulher morta aparece
logo no primeiro poema de seu primeiro livro, Crossways de 1889.
Em The Song of the Happy Shephard, a Irlanda é Arcadia, a terra
imaginária dos poetas românticos que está morta. Seus bosques
morreram e perderam a alegria de um mundo antigo que se nutria
em sonhos. É uma terra que vira sua cabeça em sinal de
discordância ou resistência à verdade cinzenta, mas se mantém
viva na chama das palavras. No poema September 1913, publicado
no livro Responsibilities em 1914, a Irlanda romântica está morta
e enterrada na cova com John O’Leary, revolucionário nationalista
irlandês. No poema Upon a Dying Lady, publicado em 1919, a
Irlanda já não está mais morta, mas entre a vida e a morte. É
representada através de uma mulher nobre, de graça e bondade
antiga e notável. Está vestida em trajes de seda turca, mas sua
face não leva a maquiagem vermelha e branca. Neste trecho, há
uma clara referência à cruz de São Jorge e à bandeira da
Inglaterra como presenças colonais. Essa mulher que está para
morrer não quer que seus visitantes fiquem tristes, mas
enxerguem em seus olhos a chama do riso. Sua natureza não se
tornou bárbara, ainda que disessem. Provém de uma raça comum
e inestimável. Não considerou maus seus prazeres e seus dias
felizes os chamou de bons. Antes de sua morte, a mulher brinca
como criança. A última coisa que vê antes de morrer é uma árvore
cujos galhos estão cheios de vida.
Nesse poemas, percebemos que a Irlanda através da figura
da mulher morta vai ganhando vida. Nos primeiros, a mulher
está morta, enterrada com os antigos heróis, perdeu seus sonhos

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e alegria. No último, do ano de 1919, já não está mais morta.
Seus olhos tem vida e riso. Há em sua história dias felizes e
prazeres. É comparada com uma criança. Tem sua origem em
uma raça comum e inestimável que contrasta com a vestimenta
colonial que a levarou ao túmulo. Na visão da árvore que dá frutos
está a Irlanda que renasce.
A Irlanda como a mulher que deixou a morte e volta à
vida pode ser melhor conhecida no papel de amada. O’Corráin
(1989) explica que a tradição do casamento sagrado entre o rei e
a terra, a qual foi incorporada pelos celtas e cujo símbolo maior é
a montanha de Tara, provém dos tempos neolíticos no território
irlandês. “O Rei tem o papel sagrado de se casar com a deusa-
terra e tornar as pessoas e a terra férteis” (p.24). Portanto,
analisaremos poemas que dialogam com essa tradição do homem
se relacionando com a mulher de alguma forma que lembre o ato
do casamento e suas núpcias.
No poema The Heart Of a Woman de 1899, a jovem amante
deixa os cuidados de sua mãe e o pequeno lar construído sobre
oração e descanso, para juntar-se ao seu amado e deitar-se com
ele. No final do poema, amada diz já não se importar mais com a
vida ou com a morte desde que seu coração e sua respiração
estejam unidas com a de seu amado. Em He Remembers Forgotten
Beauty do mesmo ano, o amado deseja acordar e relembrar a
amada de sua beleza esquecida. Ele diz que sua beleza foi se
enfraquecendo porque os reis jogaram sua coroa nas poças de
sombras e os exércitos fugiram. No entanto, no abraço e na troca
de beijos, a beleza suspira e acorda de seu sono. Já em The Three
Bushes, que aparece na última coletânea de poemas entre 1936-
39, a amada percebe que seu amado lhe escapa. Ela receia que o
amor acabe por falta de nutrição e assume a culpa pelo seu fim.
O ato sexual é impedido e mediado por uma outra mulher, a
camareira, demonstrando pudor e censura muito maiores do que
nos poemas anteriores. Seu amado é um cavaleiro que morre ao

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cair do cavalo e ela morre também. Eles são enterrados lado a
lado.
Percebemos pelas representações contidas nesses
poemas que a Irlanda como amante ganha vida, recupera sua
beleza, une-se ao seu povo, deleita-se em prazeres, mas no fim
da obra poética de Yeats volta à morte e sente-se culpada pelo
fracasso no relacionamento amoroso com seu povo.
Sob a figura da mãe, a Irlanda pode ser representada pelo
poema The Ballad of Moll Magee, de 1889, no qual a mãe pede para
que seu filho se aproxime dela com piedade e não lhe atire pedras.
Essa mulher tinha um relacionamento com um pescador pobre,
trabalhava limpando os peixes trazidos por ele, até ele lhe dá um
dinheiro e ordena com ofensas para que vá embora de casa. A
mulher é abondonada com sua criança. Em seu caminho, as portas
e janelas estavam fechadas. No verso
“the little straws were turning round across the bare
boreen”, a imagem da palhas que giram somada a palavra cross
remetem a cruz e a lenda Santa Brigida (Yeats, 1998, p.19). Logo
em seguida, a mãe e a criança encontram uma outra mulher,
fumando na porta de sua casa pela manhã. Em troca de dinheiro
e ainda com desdém, a mulher lhes dá comida. A mãe segue sem
destino, trabalhando com madeira e na terra quando pode. Ao
olhar as estrelas acredita que Deus cuida dos pobres.
Em The Song of an Old Mother de 1899 a mãe é uma senhora
de idade que acorda de madrugada para acender as sementes do
fogo. Ao longo do dia ela faz o trabalho doméstico enquanto os
jovens repousam sonhando com um cordão que amarra o peito e
cabeça, os quais correspondem a elementos das antigas tradições
de casamentos na Irlanda. A mãe encerra o poema dizendo que
necessita trabalhar, pois a semente do fogo fica fraca e esfria.
Nos poemas da fase final da obra de Yeats, como em The
Mother of God e Remorse for Intemperate Speech, ambos de 1933, a
figura da mãe aparece mais forte e consciente do terror de seus

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atos e dos atos de seus filhos. No poema The Mother of God a mãe
inicia o primeiro poema dizendo que quis gerar em seu ventre o
Paraíso, mas que este se transformou no terror dos terrores. Ela
se pergunta: “what is this flesh
I purchased with my pains, this fallen star my milk
sustains?” (Yeats,1998, p.212). A mesma referência ao terror
gerado no ventre aparece no famoso poema Easter 1916 no célebre
verso “a terrible beauty is born” (op. cit. p.152). O poema Remorse
for Intemperate Speech, confessa o coração fanático herdado e
gerado no ventre da mãe. A partir desses poemas, podemos
perceber que a representação da Irlanda enquanto mãe se
modifica ao longo do tempo. No primeiro poema, The Ballad of Moll
Magee, a mãe é representada de forma desidealizada como uma
mulher vitimada, envergonhada, sofrida e abandonada. Apesar
disso, é também uma mulher forte, trabalhadora e cheia de fé.
Há no clamor representado pelo verso “don’t fling stones at me” a
imagem da figura bíblica da mulher adúltera (Yeats, 1998, p. 18).
A Irlanda deste poema se identifica com as mulheres marginais
de seu tempo. Na sociedade irlandesa do século 19 e 20, as
mulheres que tinham filhos fora do casamento e as mulheres
divorciadas eram rebaixadas moralmente e socialmente,
assemelhando-se à mulher adúltera bíblica, que na lei judaica,
era apedrejada pelo seu crime. No contexto irlandês, essas
mulheres eram comunmente depositadas em conventos ou
manicômios. Finalmente, podemos dizer que há, além de uma
identificação, uma solideriedade da terra-mãe Irlanda para com
essas mulheres, representada pela figura de Santa Brigida, uma
mulher misericordiosa, protetora e que compreende, como na
lenda, o pagão, o diferente de si.
O segundo poema apresentado, The Song of an Old Mother,
no livro publicado em 1899, projeta duas figuras femininas: o da
mãe e o da esposa. A mãe prepara o fogo para que os jovens se
casem. Aqui há a ligação da Irlanda nas figuras de mãe e a esposa.

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Não coincidentemente, este poema aparece no livro antes do Heart
of A Woman já tratado acima. Retomando a tradição do casamento
do heroí que se casa com a terra, a mãe cuida de manter a chama
acessa para que esse casamento aconteça. Essa mãe é uma
senhora, velha, trabalhadora, servil e se assemelha a uma
camponesa. Ela credita em sonhos e os nutre nos jovens. É uma
mulher esperançosa. Nos últimos poemas apresentados,The
Mother of God e Remorse for
Intemperate Speech, as representações das mães diferem
das primeiras. Elas não são mais tão vitimadas ou abandonadas,
nem tão sonhadoras e esperançosas; ao contrário, são mulheres
conscientes e conhecedoras de seu poder e seus efeitos. Há um
certo tom de arrependimento na alegação de que o filho que ela
gerou não resultou como seu desejo. Apesar desse tom, o poema
deixa claro que a mesma mãe que gerou o terror, continua
alimentando-o. Ela sabe que gerou um coração fanático por ela,
sendo ela mesma, a terra, fanática pela ideia de si.
Terminamos essa apresentação com uma representação
feminina que aparece na fase final da obra de Yeats: a mulher
louca. Para tratarmos dessa representação, analisaremos o
conjunto de 6 poemas que figuram a personagem Crazy Jane. No
primeiro poema, Crazy Jane and The Bishop, a personagem
amaldiçoa o bispo por ter banido e deixado sem lar seu amor,
Jack the journeyman. Ela diz que foi o livro em seu punho que os
fez viver como bestas. Para Jane, o bispo é um velho enrrugado e
corcunda. No poema Crazy Jane Reproved, Jane condena a
inocência de Europa, que no mito acreditou no amor do touro e
por isso foi abduzida e aprisionada. Em Crazy Jane on the Day of
Judgement, segue tecendo suas críticas ao amor. Ela diz que o
amor é insaciável, não pode ter corpo ou alma e já passou do
tempo. Ela está nua, deitada sobre a grama e dá o azedo de suas
palavras, suas zombarias e dissenções para que aqueles que a
julgam no céu. Ao encontrar seu amado no poema Crazy Jane and

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Jack the JourneyMan, ela atesta a efemeridade do amor ao fimar
que “the more I leave the door unlatched the sooner love is gone”
(Yeats, 1998, 219). O amor tranformou ela e seu amado em dois
fantasmas. Ele lhe virou a cabeça e ela caminha morta. No poema
Crazy Jane on God ela diz que os amores, as batalhas passam e
ela é como uma estrada que não reclama ao ser pisada. Crazy
Jane volta a encontrar-se com o bispo em Crazy Jane talks with
the Bishop, o qual, dessa vez, a insulta. O bispo a descreve como
uma mulher de peito caído, murcho e de veias secas. Ele ordena
que ela vá para o céu e abandone sua ferida. Jane diz que a justiça
e erro fazem parte de seu clã e que o justo necessita do falho. Ela
diz que o fato de seus amigos partirem é uma verdade, mas não
um túmulo. Ela diz o amor sujou sua casa de excrementos.
Finalmente, no último poema do conjunto, Crazy Jane Grown Old
Looks at the Dancers, Crazy Jane está diante de um casal de
dançarinos. O par decide enforcar a dançarina, a qual, por sua
vez, pega uma faca e o mata. Jane assiste a cena, não interfere
e diz que deixou que o destino se cumprisse na vida dele. Jane se
pergunta se eles morreram ou se pareciam estar mortos. Sem se
importar, ela pede para que Deus esteja com ela, se levanta e vai
dançar.
Analisemos, finalmente, o conteúdo geral desses poemas
em relação às características atribuídas pelos teóricos à
identidade irlandesa. Através da riqueza das representações
femininas presentes nos poemas de Yeats, podemos constatar a
maneira pela qual o poeta dá vida, alma e personifica a terra
Irlanda como parte de um projeto de descolonização. A Irlanda se
apresenta não só como a terra de personagens masculinos como
druídas, heróis e reis; mas também como camponesas, mulheres
trabalhadoras, mães-solteiras e loucas. Yeats dá voz em seus
poemas a figuras femininas de classe baixa e marginalizadas,
contrariando em parte, a alegação de que sua poesia e sua
caracterização da Irlanda é idealizada e afastada dos contextos

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sociais. A terra de Yeats nem sempre é mística, é também uma
terra vitimada, sofrida e pobre. Apesar disso, as mulheres dos
poemas de Yeats não parecem demonstrar tanta passividade ou
abaixar a cabeça. Elas se dizem fortes, lutam para conseguir
condições melhores, amam, desejam, tem prazer, se arrependem
e, acima de tudo, são conhecedoras de seu poder de influenciar
seus filhos, amantes ou amigos. A Irlanda de Yeats é poderosa,
ainda que este poder nem sempre gere vida e bons frutos.
Na fase final de sua obra poética, depois do Levante de
Páscoa de 1916 e a Guerra da Independência (1919-21) e Civil
(1922-23), há uma mudança no tom e nas representações dessas
mulheres. Nos poemas anteriores a 1921, ainda há mulheres
com mais vida e esperança. Todavia, depois da Guerra Civil, o
remorso, a raiva e a revolta ganham tom. A Irlanda não mais
está mais morta, no entanto, deixa de ser a mãe ou a esposa e se
torna a louca. Essa é uma figura um tanto diferente dentro da
tradição de representações femininas da Irlanda. Nos mitos
irlandeses e celtas, a figura da morta aparece através de Morrigan
e Banshee, a mãe e a esposa, através Deidre e Graine, mas a
louca é uma figura que destoa. No entanto, essa parece ser a
única representação possível da Irlanda depois de um período de
guerras. A Irlanda de Yeats consegue somente sua liberdade de
ser e se expressar na figura da louca que denuncia abertamente
e sem medir palavras as mazelas da descolonização, do
cristianismo e da obsessão do amor por si mesma. Não veste mais
os trajes ingleses, mas anda nua. A Irlanda, representada pela
personagem Crazy Jane, é azeda, zombeteira e agressiva. Deixou
de ser mãe e de nutir seus filhos. Tampouco é esposa, pois se
arrependeu do amor. A Irlanda do início da República é, na poesia
final de Yeats, uma menina machucada que dança solitária e
cambaleante contemplando o horizonte no mar:

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That crazed girl improvising her music.
Her poetry, dancing upon the shore,
Her soul in division from itself
Climbing, falling She knew not where,
Hiding amid the cargo of a steamship,
Her knee-cap broken, that girl I declare
A beautiful lofty thing, or a thing
Heroically lost, heroically found.

No matter what disaster occurred


She stood in desperate music wound,
Wound, wound, and she made in her triumph
Where the bales and the baskets lay
No common intelligible sound
But sang, ‘O sea-starved, hungry sea.’
(Yeats, 1998, p. 259)

Referências

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KYBERD, D. Irish Literature and Irish History. In: FOSTER. R.F.


The Oxford History of Ireland. Oxford: Oxford University Press,
1989.

NATIONAL LIBRARY OF IRELAND (NLI). The Life and Works of


William Butler Yeats. Dublin: National Library of Ireland, 2006.

Ó CORRÁIN, D. Prehistoric and Early Christian Ireland. In:


FOSTER. R.F. The Oxford History of Ireland. Oxford: Oxford
University Press, 1989.

WIKIPEDIA. W. B. Yeats. 2015. In: https://en.wikipedia.org/


wiki/W._B._Yeats. Acesso em Junho, 2015.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 390


______. Irish Literary Society. In: https://en.wikipedia.org/
wiki/Irish_Literary_Society. Acesso em Junho, 2015.

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en.wikipedia.org/wiki/National_Literary_Society. Acesso em
Junho, 2015.

______. Irish Literary Theatre. https://pt.wikipedia.org/wiki/


Irish_Literary_Theatre. Acesso em Junho, 2015.

______. Abbey Theatre. https://pt.wikipedia.org/wiki/


Abbey_Theatre. Acesso em: Junho, 2015.

YEATS, W.B. (1899). The Literary Movement in Ireland. In: PIERCE,


D. (Ed.) Irish Writing in the 20th Century. Cork: Cork UP, 2000.

______. The Collected Poems. Londres: Wordsworth Poetry Library,


1998.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 391


SUBVERSÃO DA FÓRMULA DO ROMANCE DETETIVESCO EM
O CRIME DE LORDE ARTHUR SAVILE

Autor: Prof. Paulo Roberto Pellissari (FACEL)

RESUMO: Paródia não se refere a imitação ridicularizadora das teorias


e das definições padronizadas que se originam das teorias de humor
do século XVIII. A importância da prática paródica sugere definição da
paródia como uma repetição com distância crítica que permite a
indicação irônica da diferença no próprio âmago da semelhança. A partir
das considerações críticas de Linda Hutcheon e John Cawelti, este
estudo se propõe a analisar O crime de Lorde Arthur Savile: estudo de
um dever (1891), de Oscar Wilde, um dos contos de destaque na obra
wildiana. Pretende-se demonstrar de que forma Wilde parodia, subverte
e satiriza as convenções da ficção do romance policial ao construir
uma diegese que, diferentemente do padrão formulaico em que um
crime, uma vítima, um enigma, um detetive quase sempre diletante e
excêntrico disposto a decifrar o mistério e a encontrar o criminoso,
rompe com a convenção e estrutura reconhecidas do romance
detetivesco.
PALAVRAS-CHAVE: Paródia. Subversão. Romance detetivesco. Wilde.

Em se tratando de romance policial, encontra-se um


crime, uma vítima, um enigma, um detetive disposto a decifrar o
mistério e a encontrar o criminoso. Nessa fórmula, nem sempre
o crime ou a própria vítima são os mais importantes. Na narrativa
policial, o personagem principal é o detetive, que fascina pela
sua inteligência, pelo seu poder de percepção e análise como
investigador. Acompanhar passo a passo, tentar seguir as pistas
e chegar a resolução do crime torna-se um verdadeiro jogo.
O fascínio dos leitores pela narrativa policial dá-se com
Edgar Allan Poe (1809-1849), denominado o mestre do conto de
terror, o pai do romance policial moderno. Em três contos Os crimes
da rua Morgue (1841), considerado a primeira narrativa policial

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 392


moderna, a fundadora do gênero, O mistério de Maria Roget (1842)
e em A carta roubada (1844), Poe constroi seu detetive, C. Auguste
Dupin, ou apenas Dupin, muitas vezes considerado o primeiro
detetive da ficção, precursor dos detetives da literatura. Uma
verdadeira máquina de pensar, que servirá de modelo para muitos
outros que vieram depois.
Nos romances ligados a esta linha existe o problema ou o
crime, a solução inicial ou investigação, as complicações
enfrentadas pelo detetive, o estágio de confusão, as primeiras
pistas e finalmente a solução seguida por uma explicação do
detetive ao narrador anônimo ou seu amigo. Neste momento o
romance gira em torno de um detetive, solitário e bon vivant, e
não do policial. A polícia não existia ainda como Instituição
respeitada pela sociedade.
Dois outros detetives/narradores-memorialistas
completam o “tripé” da literatura policial: Sherlock Holmes de
Arthur Conan Doyle (1859-1930), primeiro detetive científico, cujo
trabalho procurava seguir o caminho do método científico, ou seja
por meio da observação, obtinha uma hipótese, formulava uma
teoria, e a testava, e Hercule Poirot, ou simplesmente Poirot, de
Agatha Christie (1890-1976), famoso detetive policial, protagonista
em várias adaptações para o cinema, teatro e rádio.
Nas histórias policiais, o detetive nunca é culpado, o leitor
e o detetive devem ter a mesma chance de descobrir o criminoso,
a narrativa não traz intriga amorosa, o amor perde espaço para o
crime; o crime não deve usar meios que possam tapear o leitor
ou que tenham sido usados pelo criminoso. O mistério deve ser
descoberto por meio realistas; o criminoso não pode ser um
profissional; análises psicológicas e soluções banais estão fora.
Pretende-se com este artigo demonstrar de que forma
Oscar Wilde (1854-1900) parodia, subverte e satiriza as
convenções do romance detetivesco ao construir uma diegese
em O crime de lorde Arthur Savile: estudo de um dever (Lord Arthur

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 393


Savile’ crime: a study of duty), publicado em 1891, que,
diferentemente do padrão formulaico em que um crime, uma
vítima, um enigma, um detetive quase sempre diletante e
excêntrico disposto a decifrar o mistério e a encontrar o criminoso,
rompe com a convenção e estrutura reconhecidas do romance
detetivesco.
O crime de lorde Arthur Savile foi publicado na obra O crime
de lorde Arthur Savile e outras histórias, na qual fazem parte três
outros contos: O fantasma de Canterville, A esfinge sem segredo e O
modelo milionário. Tais contos geralmente são descritos pelo críticos
como sátira social. Neles, Wilde explora o conceito de destino,
dever e amor e parodia a hipocrisia e padrões, em especial do
período vitoriano, que governam a vida dos homens.
Especialmente em O crime de lorde Arthur Savile, o autor parodia o
romance detetivesco e, por meio dele, satiriza a realeza e a alta
burguesia, dissecando os costumes e o savoir-faire das camadas
sociais, uma vez que havia grande interesse da sociedade
vitoriana por assassinatos chocantes e por processos de
investigação.
Linda Hutcheon, em Uma teoria da paródia: ensinamentos
das formas de arte do século XX (1985), afirma que paródia não é
apenas aquela imitação ridicularizadora mencionada nas
definições dos dicionários populares. O Ulisses (1914-1921) de
James Joyce (1882-1941), por exemplo, fornece o exemplo mais
patente da diferença, quer em alcance, quer em intenção, daquilo
que ela designa por paródia na contemporaneidade.

Há extensos paralelismos com o modelo homérico, ao nível


das personagens e do enredo, mas trata-se de paralelismos
com uma diferença irônica: Molly/Penélope, esperando no seu
quarto insular pelo marido, manteve-se tudo menos casta na
ausência. Tal como acontece com os ecos irônicos de Dante e
de muitos outros na poesia de Eliot, não se trata apenas de
uma inversão estrutural; trata-se também de uma mudança

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 394


naquilo a que se costumava chamar o “alvo” da paródia. Embora
seja evidente que a Odisseia é o texto formalmente parodiado
ou que serve de fundo, ele não é escarnecido ou ridicularizado;
quando muito ele deverá ser visto como um ideal - ou, pelo
menos, uma norma -, da qual o moderno se afasta. (...) Com
efeito, o que é notável na paródia moderna é o seu âmbito
intencional do irônico e jocoso ao desdenhoso ridicularizador.
(HUTCHEON, 1985, p. 16-17)

A paródia é, pois, na sua irônica transcontextualização e


inversão uma repetição com diferença. Está implícita uma
distanciação crítica entre o texto a ser parodiado e a nova obra
que incorpora, distância geralmente assinalada pela ironia. Mas
esta ironia tanto pode ser apenas bem humorada, como pode ser
destrutiva. O prazer da ironia da paródia não provém do humor
em particular, mas do grau de empenhamento do leitor no vaivém
intertextual. A paródia é uma forma de imitação caracterizada
por uma inversão irônica, nem sempre às custas do texto
parodiado. “É, noutra formulação, repetição com distância crítica,
que marca a diferença em vez de semelhança” (HUTCHEON, 1985,
p. 17).
A inversão irônica é uma característica de toda a paródia.
A crítica não tem de estar presente na forma de riso ridicularizador
para que lhe chamemos paródia. A paródia é igualmente um
gênero sofisticado nas exigências que faz aos seus praticantes e
intérpretes. Tanto a ironia como a paródia operam em dois níveis:
superficial e secundário (implícito ou de fundo). O sentido final
da ironia ou da paródia reside no reconhecimento da sobreposição
desses níveis.
Em O crime de lorde Arthur Savile, o protagonista Savile é
apresentado por lady Windermere ao Sr. R. Septimus Podgers,
um quiromante, que lê sua mão e lhe diz que está em seu futuro
que será um assassino. Lorde Arthur quer se casar, mas decide
que não tem o direito de fazê-lo até que ele tenha cometido o

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 395


assassinato. A primeira tentativa de vítima de assassinato é a
sua idosa tia Clementina Beauchamp, que sofre de azia. Fingindo
que é remédio, lorde Arthur dá-lhe uma cápsula de veneno,
dizendo-lhe para tomá-la apenas quando tiver um ataque de azia.
Lendo o jornal, algum tempo depois, Savile descobre que a tia
morreu e vitoriosamente retorna a Londres para saber se deixou-
lhe alguma propriedade. Ao inspecionarem a casa da tia, ele
encontra a pílula de veneno, intocada, o que caracteriza que a
senhora morreu de causas naturais, e Savile se vê, portanto, na
necessidade de uma nova vítima.
Após algumas ponderações, Savile obtem uma bomba, em
forma de relógio, de um anarquista alemão e envia anonimamente
a um parente distante, o Deão de Chichester, colecionador de
relógios antigos. Quando a bomba explode; no entanto, para sua
surpresa, o dano feito parece apenas um truque.

Parker o desembrulhou e papai colocou-o no consolo da lareira


da biblioteca, estávamos todos sentados lá, na manhã de sexta-
feira, quando, no exato momento em que o relógio marcou dez
horas, ouvimos um zumbido; um pequeno sopro de fumaça saiu
do pedestal da figura e a deusa da Liberdade despencou,
quebrando o nariz no guarda-fogo! Maria ficou completamente
alarmada, mas aquilo pareceu tão ridículo que James e eu
explodimos num acesso de riso e até papai divertiu-se. (WILDE,
2014, p. 120-121)

O alemão contudo, mesmo reconhecendo que a algo tinha


dado errado com o mecanismo, admitiu que tudo estava tão
adulterado hoje em dia, que mesmo a dinamite dificilmente era
obtida em estado puro. Em desespero, lorde Arthur acredita que
seus planos de casamento são condenados, e vai ao encontro
inesperadamente, à noite, na margem do rio Tâmisa, do mesmo
quiromante que havia-lhe dito a sua sorte. Para concretizar o
assassinato a que almejava, Savile empurra R. Septimus Podgers

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 396


no rio. O inquérito afirma que o senhor Podgers “cometeu
suicídio”, e, finalmente lorde Savile, feliz, pode se casar. A
narrativa se encerra quando lady Windermere revela a esposa de
Arthur que o Sr. Podgers era um impostor. Arthur diz acreditar
plenamente em quiromancia, pois devia toda a felicidade a ela.
Como afirma P. H. James (2012) “romances que contêm
um mistério, muitas vezes envolvendo um crime, e que
proporcionam a satisfação da solução final são, evidentemente,
comuns no cânone da literatura inglesa” e como afirma Dorothy
L. Sayers no prefácio do livro Grandes contos de detetive, mistério e
horror, de 1934, “A morte, particularmente, parece proporcionar à
mente da cultura anglo-saxã um fundo de prazer inocente maior
do que qualquer outro assunto”. Percebe-se diante do exposto que,
conhecedor deste contexto, Wilde parodia, subverte e satiriza as
convenções da ficção do romance policial ao construir o conto O
crime de lorde Arthur Savile que, diferentemente do padrão
formulaico, rompe com a convenção e estrutura reconhecidas do
romance detetivesco.
Em Adventure, mistery, and romance: formula stories as art
and popular culture em capítulo intitulado The formula of the
classical detective story, John G. Cawelti relaciona quatro modelos
da fórmula do clássico romance detetivesco: situação, ação,
personagens e relacionamentos e setting. (CAWELTI, 1976, p.80-98)
Na situação, o que se espera é um crime central
misterioso, geralmente assassinato e que pode ser por razões
grotescas, sexuais ou por intrigas políticas, e que proporcionem
algo misterioso para que a história detetivesca seja gerada. O
crime deve ser dentro de um círculo fechado, com vários suspeitos,
cada um com motivo, meios e oportunidades de cometer o crime,
e um detetive que entra em cena como uma divindade vingadora
para resolver tudo.
Logo no início do conto de Wilde, temos a situação-
ambiente, que denota um certo círculo fechado da sociedade

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 397


vitoriana, repleta de diálogos com falsos moralismos e interesses
políticos, em especial quando o narrador afirma que aquele
encontro era uma miscelânea de pessoas, denotando-se que ali,
apesar de ocuparem a mesma cena, havia diferenças de cultura,
caracteres, interesses, etc.

Era a última recepção de Lady Windermere antes da Páscoa e


Bentinck House estava ainda mais repleta que o usual. Seis
Ministros do Gabinete vieram da recepção do presidente da
Câmara, ostentando estrelas e faixas, todas as belas mulheres
trajavam seus vestidos mais vistosos e no fim da galeria de
quadros, postava-se a princesa Sophia de Carlsrühe, uma
senhora robusta de fisionomia tártara, com pequeninos olhos
negros e magníficas esmeraldas, falando mal o francês o mais
alto que podia, indo exageradamente de tudo que lhe era dito.
Com certeza era aquela uma assombrosa miscelânea de
pessoas. (WILDE, 2004, p. 91)

Reafirmando a sátira social a que Wilde se propunha, lady


Windermere apresenta um convidado importante, pelo menos para
ela, o quiromante Sr. Septimus Podgers.

Onde está meu quiromante?


Seu o quê?, exclamou a Duquesa, com sobressalto involuntário.
Meu quiromante, Duquesa; no momento não posso viver sem
ele.
Gladys, querida, você é sempre tão original, murmurou a
Duquesa, tentando recordar o que exatamente era um
quiromante, na esperança de que não fosse um quiropodista.
Ele vem regularmente duas vezes por semana para ver minha
mão (...).
Oh, céus! Disse a Duquesa a si mesma, trata-se de um tipo de
quiropodista, no final das contas. Que coisa mais desagradável.
De qualquer forma espero que seja estrangeiro. Assim não seria
de todo mau. (WILDE, 2014,p. 92)

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 398


No excerto acima, Wilde escancara o medo vitoriano do
estrangeiro por este ser um estranho que pode subverter a
estabilidade das rígidas convenções sociais.
A sofisticação na ironia em Wilde é exemplificada no
trecho abaixo, quando autor se utiliza, provavelmente munido
de conhecimentos da quiromancia, para com humor deleitar seus
leitores com o chamado understatement, ou seja o humor
subentendido, comentando sobre a região da palma da mão
designada montanha de lua, cuja significação demonstra quão
desenvolvida, imaginária e criativa, entre outros adjetivos seria
a pessoa.

Querida Gladys, eu na verdade não acho que isso seja


perfeitamente correto.
As coisas interessantes jamais são, disse lady Windermere: on
a fait le monde ainsi. Mas devo apresentá-la Sr. Podgers, esta é a
Duquesa de Paisley, e se você disser que ela tem a montanha
de lua tão grande quanto a minha, nunca mais acreditarei em
você novamente.
Tenho certeza, Gladys, que não tem nada desse tipo em minha
mão.
Vossa graça está completamente certa, disse o Sr Podgers (…)
A montanha da lua não está desenvolvida (…). (WILDE, 2014,
p. 94)

Como fórmula do gênero policial é esperado que ocorra um


crime neste círculo fechado, pois o leitor ciente destas condições
impostas pelo caráter formulaico possui um horizonte de
expectativa, uma vez que o título do conto remete que se trata de
um conto policial, mas o crime não ocorre, evidenciando a ruptura
de Wilde com a ficção policial convencionalizada.
Na ação, tem-se a investigação e a solução de um crime.
Num primeiro momento, mostram-se as competências do detetive
para então ser apresentado o maior elemento do romance

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 399


detetivesco: o crime. Justamente o que não ocorreu no conto de
Wilde. O personagem principal é apresentado por lady Windermere
ao Sr. Podgers, este lê sua mão e lhe diz que no futuro será um
assassino. Lorde Arthur quer se casar com Sibyl Merton, mas
decide que não tem o direito de fazê-lo até que ele tenha cometido
o assassinato. Tem-se a principal subversão, pois ao invés de
encontrar o criminoso, tem se a busca constante por um crime.
Não há investigação nem tão pouco solução, pois Arthur acredita
que para ser feliz e se casar, deveria por primeiro cometer um
assassinato, assim como previsto pelo Sr. Rodgers. Novamente
rompe-se com a fórmula, já que o amor perde espaço para o crime.

Sentiu que casar com ela, com a sina do assassinato pairando


sobre a cabeça seria uma traição como a de Judas, um pecado
pior que qualquer um dos Borgia jamais havia sonhado. Que
felicidade poderia haver para eles se, a qualquer momento, ele
poderia ser convocado a suportar a horrível profecia escrita em
sua mão? Que estilo de vida seria o deles enquanto o Destino
detivesse essa temível sina em sua balança? O casamento
deveria ser adiado, a todo custo. (...) reconhecia, entretanto,
em que consistia seu dever, e era completamente cônscio do
fato de que não tinha nenhum direito de casar-se com ela até
que tivesse cometido o assassinato. (WILDE, 2014, p. 106)

Um crime simboliza não apenas uma infração da lei mas


uma ruptura na normalidade da sociedade. Assim sendo, na
estrutura básica do romance detetivesco há uma interrupção no
fluir normal do mundo, um heroi que se dispõe a resolver essa
desordem temporária em nome da sociedade ameaçada - no conto,
o crime deverá ocorrer para resolver o fluxo normal da vida de
Arthur Savile - até se atingir a verdade e o reestabelecimento da
ordem. Por trás destes aspectos estruturais básicos está uma
oposição entre o bem o e o mal.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 400


Percebe-se em O crime de lorde Arthur Savile a rapidez nos
diálogos, que evoluem, num crescendo de complexidade e
intensidade dramáticas alternando o estilo notadamente teatral,
pois, por vezes, nos sentimos diante de uma representação cênica,
como atores entrando e saindo do palco.

Sua razão revoltava-se contra aquilo, mas ainda assim sentia


que alguma tragédia pairava sobre si e que fora repentinamente
convocado a suportar uma carga intolerável. Atores são tão
afortunados. Podem escolher em que vão atuar, se numa
tragédia ou comédia, se irão sofrer ou se alegrar, rir ou derramar
lágrimas. Mas na vida real é diferente. Homens e mulheres, na
maioria, são forçados a interpretar papéis para os quais não
estão qualificados. Nossos atores, como Guildenstern,
interpretam Hamlet para nós, e nossos Hamlets têm que ser
engraçados como o príncipe Hal. O mundo é um palco, mas a
distribuição dos papéis é equivocada. (WILDE, 2014, p. 99)

Ainda dentro do proposto por Cawelti, temos o terceiro


modelo, personagens e relacionamentos. Rompendo com a
tradição, Wilde mais uma vez subverte o padrão ao selecionar o
protagonista Arthur Savile como um mal caráter, ao contrário
das características esperadas de um detetive, aquele sujeito cuja
capacidade de raciocínio fosse uma verdadeira máquina de leitura
de indícios via intelecto. Savile parte em busca da previsão a que
estava destinado e para isso faz uma lista de nomes de parentes
para ver quem poderia ser assassinado, o que contrapõe totalmente
a lista do detetive padrão, que geralmente faz uma lista para ver
quem pode ser o suspeito do crime.
Arthur nas tentativas frustradas, depois de tentar
envenenar uma prima de segundo grau, lady Clemetine
Beauchamp, e explodir um tio, acha finalmente sua vítima.
Aproximando-se da Agulha de Cleópatra, viu um homem
inclinado sobre o parapeito, ao chegar mais perto, o homem

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 401


ergueu os olhos e a luz do lampião de gás iluminou (…) Era o
Sr. Podgers, o quiromante!.(…) Num instante agarrou-o pelas
pernas, lançando-o no Tamisa. ( WILDE, 2014, p.123)

A vítima é o catalisador no cerne do romance e morre por


ser quem é, o que é e onde está, pelo poder destrutivo ou secreto
que exerce sobre a vida de pelo menos um inimigo desesperado.
Como último modelo de Cawelti, o setting, deve ser um
local isolado, na grande maioria, na área rural. Arthur Savile
comete o assassinato em um ponto turístico de Londres, na Agulha
de Cleópatra, sem testemunhas. No momento onde deveria ser
anunciado o criminoso, dentro dos moldes clássicos, rompe-se
mais uma vez com a estrutura formatada e tem-se o crime e a
vítima. Ironicamente, o profeta da proeza - Sr. Podgers - que sem
querer acabou realizando a sua própria profecia ao tornar-se a
vítima de Arthur Savile.
A ficção policial sempre existiu. Ela é anterior ao rótulo,
ela é a própria literatura. Uma vez que os homens vivem em
sociedade e disputam espaço e poder, suprimir a vida alheia ou
surrupiar os bens de outrem é uma estratégia natural, embora
passível de punição, e um poderoso motor de que se vale a
literatura para avaliar o mundo. Não interessam as motivações...
se há um crime a ser investigado ou evoluções que conduzam a
um delito, o relato é de natureza policial, ainda que seu arco de
alcance toque a essência da condição humana, como ocorre a
todo grande romance ou conto.
Wilde ocupa uma posição única no panorama da literatura
universal. Poucos conseguiram como ele, antes ou depois, criar
um legado tão consistente um resumo de sua época, dos costumes,
do falso moralismo, entre outros. As situações paródicas, as
situações prováveis e improváveis sublinham sua extrema ironia
recheado de diálogos repletos de paradoxos, epigramas, de humor
subentendido.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 402


Em O crime de Lorde Arthur Savile, Wilde mostra sua
irreverência, sua maestria, sua grandiosidade. Savile constitui
a voz estruturante da visão que é transmitida pelo conto, sendo
uma voz concomitante da voz ideológica que perpassa a sociedade
retratada e quando ao ser indagado por um policial que estava
próximo ao local do assassinato ao perceber algo estranho com
Savile “Deixou cair algo, senhor? Nada importante, sargento,
respondeu sorrindo (...)” (WILDE, 2014, p.123).
Este é um pensamento vigente naquela sociedade e que é
bem retratada pela ótica da personagem lady Windermere: “Leões
são bons apenas para uma temporada. Tão logo as jubas são
cortadas, tornam-se as criaturas mais tediosas. Lembra-se
daquele horrível Sr. Podgers? Era um impostor. Interesso-me por
telepatia, agora” (WILDE, 2014, p.123).
É neste contexto de superficialidade, falsidade, crítica e
preconceito da sociedade inglesa, aristocrática e burguesa,
realidades predominantes e imperativas do reinado da rainha
Vitoria no final do século XIX, que Wilde como um verdadeiro
profeta antecipa em O crime de lorde Arthur Savile uma arte à frente
de seu tempo, pois podemos dizer que como exploradores, olhamos
para o passado e a paródia é a expressão central de nosso tempo.

Referências

CAWELTI, J. G. Adventure, Mistery, and Romance: formula stories


as art and popular culture. Chicago: The University of Chicago,
1976.

HUTHEON, L. Uma teoria da paródia: ensinamentos das formas de


arte do século XX. Rio de Janeiro: Edições 70, 1985.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 403


JAMES, P. H. Segredos do romance policial: história das histórias
de detetive. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Três Estrelas,
2013.

SAYERS, D. G. Grandes contos de detetive, mistério e horror. 3


série. London: Editora Gollancz, 1934.

WILDE, O. The collected works of Oscar Wilde. London: Wordsworth


Editions, 1997.

_______________. Contos completos. Trad. Luciana Salgado. São


Paulo: Editora Landmark, 2004.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 404


FICÇÃO E HISTÓRIA:
ENCONTROS, DESENCONTROS E NOVOS CAPÍTULOS
PARA NARRAR

Autor: Phelipe de Lima Cerdeira (UFPR)


Orientador: Rodrigo Vasconcelos Machado (UFPR)

RESUMO: Dentro da historiografia literária, um capítulo preponderante


é aquele reservado à compreensão e à interseção existente entre ficção
e história. Dos laços clássicos que as uniam, as duas áreas já viveram
tempos de polaridade antagônica, os ditos campos das artes e das
ciências. No entanto, um novo parágrafo foi aberto na década de setenta
do século XX, quando Hayden White e outros teóricos re-elaboraram a
maneira de perceber cada uma das duas esferas a partir de uma
premissa comum: a questão narrativa. A partir desse pressuposto, este
trabalho ressaltará as transformações sofridas no contexto da cultura
ocidental e que acabaram impactando diretamente a maneira de se
pensar e protagonizar os discursos ficcional e histórico, dando ainda
destaque à modalidade narrativa do romance histórico. Partindo do
pensamento aristotélico presente na Poética, o raciocínio é alicerçado
pelas teorias de Georg Lukács, Célia Fernández Prieto, Noé Jitrik e
Hayden White.
PALAVRAS-CHAVE: Literatura e História. Romance Histórico. Teoria
Literária.

Para se entender história e ficção


Se, atualmente, história e ficção questionam suas
distinções, valores, compromissos e responsabilidades, em tempos
clássicos, ambas apresentavam uma trajetória comum no
desenvolvimento da sociedade ocidental. Em uma retrospectiva
inteligente para se entender a concepção primeiramente da
história, Walter Mignolo relembra que é no Ocidente que se dá o
levante para a oficialização da “origem” histórica, desprezando
contribuições de civilizações como os incas ou os povos

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 405


mesoamericanos, por exemplo, simplesmente por enquadrá-los,
de maneira limitada, como “alfabeticamente ágrafos” (MIGNOLO,
1993). Equívoco ou não, o fato é que essa gênese é fundamental
como marco de estudo e avaliação. Partindo dele, chega-se na
Grécia de Aristóteles e o seu contraponto a partir do critério da
mimesis, atribuindo ao historiador o caráter de informar e de
exercer uma espécie de “testemunho ocular”, enquanto que a
poesia ficava atrelada às atividades verbais baseadas na imitação.
A grande contribuição de Aristóteles na obra El arte poético
(1948) está em sua proposta de verossimilhança ou mimesis,
voltada, especialmente, aos processos de reconstituição – evita-
se aqui, propositalmente, mencionar a terminologia imitação –
da natureza. Uma vez que historiadores e poetas se diferenciavam
por sua forma de observar os elementos naturais e narrativizá-
los, excluía-se, portanto, qualquer divisão pautada na forma dessa
apresentação. Mais ainda: com a proposição aristotélica,
diferentemente do que havia com o seu mestre Platão, a poesia e
o poeta ganhavam um tratamento especial, valorizando o seu
caráter filosófico e a sua capacidade de atribuir um sentido geral
para o que era visualizado.
Da diferenciação aristotélica entre historiadores e poetas,
surgem as adaptações por conta das traduções do grego para o
latim. É exatamente nessa passagem que a poesia é substituída
pelo conceito de literatura, produzindo uma mudança de ordem
estética já que, desde aquele momento, também estava em jogo
para a estrutura literária a percepção de sensação de beleza. Nos
séculos XVII e XVIII, ocorre certa inversão na hierarquia
aristotélica, valorizando uma mimesis que é, acima de tudo,
imitação da natureza (prevalência, tal como dito anteriormente,
da acepção da mimesis absoluta). A poesia passa, em certo sentido,
a ser percebida como algo inferior e subsidiário à história. Em
termos narrativos, à esfera histórica, coube apresentar
diretamente o real, delegando ao âmbito ficcional uma marca de

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 406


“copia de segunda mano” (FERNÁNDEZ PRIETO, 1998, p. 61).
Ponderando sobre tais transformações, Fernández Prieto demarca:
“Esta concepción restringida de la verdad poética, que lleva a
someterla a la verdad histórica, y que, en consecuencia, coloca a
la historia por encima de la mímesis poética, va a ser la
dominante en la crítica europea del XVII.” (FERNÁNDEZ PRIETO,
1998, p. 61).
Mas, sem dúvida alguma, o que fortalece o jogo comparativo
entre história e literatura é a mudança de raciocínio adotada no
século XVIII, sobretudo pelas contribuições de Jean Boudin,
responsável por destituir o sentido dominador da historiografia
até então em voga. Nesse, o “testemunho ocular” cede espaço
para o acúmulo das informações a partir de um saber
enciclopédico, organizado por um método claro e crítico de reunião
de informações e documentos. A história, calcada pelo
historicismo, passava, notoriamente, para o ramo das “ciências”,
enquanto a literatura, sem a responsabilidade de estar atrelada
a alguma sistemática, ficava com a chancela das “artes”
(MIGNOLO, 1993). Adiantando-se em algumas páginas sobre a
temática do romance histórico, parece válido relembrar que, quase
paulatinamente, o século XVIII transforma-se, então, em
testemunha de uma história rendida ao historicismo e, por outro
lado, de uma literatura, estabelecida como porta-voz de uma dita
ficção. Anos mais tarde, será possível entender como as duas
conectar-se-ão em um encontro único: o do romance histórico
(JITRIK, 1995).
É o binarismo ‘ciências versus artes’ que explica, mesmo
em ditos tempos pós-modernos, que exista, em algumas
circunstâncias, a manutenção de hierarquias de valor. É como
se à história ficasse tudo o que realmente poderia ser encarado
com seriedade, passível e merecido de ser estudado; à literatura,
sobrava o interesse pela fruição e o lirismo. Outra maneira de se
distinguir cada uma, na tentativa de dialogar com o pensamento

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 407


do escritor peruano Mario Vargas Llosa, seria pensar que à
literatura estariam reservadas as mentiras – múltiplas,
descabidas, que extrapolam todos os limites; já à história, caberia
apenas uma verdade – santa, virginal, intocável. Por certo, a
delimitação maniqueísta de cada uma das áreas não é a questão
principal a ser levantada nessa reflexão. O fato é que, ao adentrar
ao seleto ramo das ciências, a história passava a significar um
terreno para poucos, o que possibilitou, durante muito tempo, a
sua oficialização de acontecimentos sem possibilidades (e
necessidades) de se questionar ou reavaliar.
Daí a dimensão da quebra proposta por Hayden White, no
ano de 1973, com a publicação do seu livro Metahistory: The
Historical Imagination in Nineteenth-century Europe (1973),
classificando a história não aos moldes de uma ciência exata,
mas partindo de um fundamento similar ao da literatura: a
questão narrativa. Nessa esfera, de acordo com o estudioso, há
uma reelaboração de um determinado passado a partir de uma
natureza poética, utilizando, para tanto, quatro tropos da
linguagem: a metáfora, a metonímia, a sinédoque e a ironia. De
acordo com tal exercício de construção, fica estabelecida a meta-
história, já que o historiador busca maneiras de explicar não
exatamente o que se passou em determinado tempo, mas,
primeiramente, o que aconteceu com ele mesmo após interpretar
certo conjunto de dados.
Na mesma linha de White e, já no ano seguinte, também
é válido citar a contribuição do teórico-crítico Murray Krieger que,
ao ratificar o pensamento de White, ainda denomina o historiador
como um “intérprete”, entendendo que o mesmo está mais
próximo da ficção do que da ciência propriamente dita (MENTON,
1993). O exercício de autoexplicação, característico na meta-
história, é fortalecido a partir do olhar de outros teóricos como
Roland Barthes que, analisando o discurso histórico, ratificou a
questão do uso dos mecanismos linguísticos e como estes

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 408


acabaram por representar uma natureza poética que é,
inevitavelmente, elaborada a partir de uma ideologia. Nesse caso,
a realidade é mais do que existência certa, mas outra elaboração
de sentido.
Ao encarar a realidade como um sentido, de certa forma
apreendido, Barthes também contribui para a dialética existente
entre a história e a ficção, afinal, a primeira parece voltar a ser
analisada também pelo seu aval de dar significado ao que é
percebido. Real e realidade deixam de ser um simples conceito
estático, favorecendo uma percepção em movimento, dinâmica,
suscetível a uma permanente revisão. A percepção do real
transcende, assim, a um suposto acontecimento factual ou ao
grau de observação de um sujeito. Ela está, ao contrário, atrelada
a uma estrutura construída, relacionada a uma época e cultura,
arquitetada literalmente pelas palavras. A maneira de perceber
o sentido do real passa a ser, em algum grau, comparada à oposição
entre os verbos ver e recordar. Da filosofia, Nietzsche também
dedica atenção especial para discorrer a respeito da atuação dos
historiadores e do que ele chama de objetividade histórica. Ainda
que não classificando os representantes do discurso histórico
como intérpretes, tal como fez Krieger, o pensador alemão
aprofunda a análise a respeito de recortes realizados em função
de um contexto e de um interesse determinados.
Complementando a linha de raciocínio tão incômoda aos
olhos daqueles que exercem aquela História com h maiúsculo,
tão pesada quanto o número de suas leis e documentos listados
durante os anos, White questiona a então diferença entre o
“encontrar” dos historiadores e o “inventar” dos escritores, já que
os primeiros, em alguma medida, só encontram algo a partir de
uma decisiva “intenção”:

A veces se dice que la diferencia entre ‘historia’ y ‘ficción’ reside


en el hecho de que el historiador ‘halla’ sus relatos, mientras

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 409


que el escritor de ficción ‘inventa’ los suyos. Esta concepción
de la tarea del historiador, sin embargo, oculta la medida en
que la ‘intención’ también desempeña un papel en las
operaciones del historiador. (WHITE, 1998, p. 18)

Diante do exposto, é possível perceber que, entre o


encontrar e o inventar, vive um pulsante “querer”. Similaridade
que White busca ao máximo e resume, como lembra Mignolo
(1993), em frases como “a ficção das representações factuais” e
“a história como artefato literário” (WHITE apud MIGNOLO, 1993,
p. 115). Seja como for, parece muito relevante o fato de que, para
que haja uma descrição, não passa incólume a necessidade de
que esta seja elaborada narrativamente, selecionada,
transformada em um fato, o qual é finalmente (e, muitas vezes,
literariamente), um resultado descrito. Há, por tudo isso, uma
espécie de retroalimentação quando se pensa em ficção e em
história.
Vislumbrando as diferentes buscas exercidas por ficção e
história, Hayden White, Barthes e tantos outros pensadores que
fundamentam um momento em que as certezas são destituídas
ajudam a dinamitar o que se entendia como verdade única da
história. Como bem aponta Fernández Prieto, passa a ser
necessário ecoar, de maneira plural, as possíveis e questionáveis
verdades responsáveis por fazer a história: “[...] hay que hablar,
en plural, de verdades parciales, sujetas a controversia,
provisionales, verdades que se confirman o desconfirman en la
interacción social, mediante acuerdos sociales, institucionales
o interpersonales.” (FERNÁNDEZ PRIETO, 1998, p. 40, grifos
nossos). Passa a ocorrer o que muitos classificaram de perda das
fés unificantes.
Corroborando com a ideia de que as narrativas ficcional e
histórica são semelhantes, Gerard Genette, em sua obra Ficction
et diction (1991), apenas diferencia ambas pelo modo que cada

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 410


uma encontra para ser construída, dando dimensão à profundidade
dos personagens e à velocidade da descrição, por exemplo
(FERNÁNDEZ PRIETO, 1998). Sob o título El estilo de los
historiadores, a crítica de Carlos García Gual afasta qualquer
possibilidade de tratar o discurso histórico como parte de uma
ciência objetiva, mas como o resultado de uma justaposição de
diversos relatos. Sendo assim, de acordo com ele, “La Historia no
fue nunca una ciencia exacta, sino un método para recobrar y
reflejar el pasado. No una epistéme, sino una téchne, como se decía
en griego. Y se articula como una serie de “historias”.” (GARCÍA
GUAL, 2010).
Peter Burke – outro historiador que se transforma em
referência quando o assunto é a mudança de perspectiva ao tratar
tal tema –, em sua obra Formas de hacer historia (1993), fala sobre
como os novos historiadores deveriam seguir algumas estratégias
narrativas dos escritores (especificamente, dos romancistas).
Segundo Burke, para pensar na construção do discurso histórico,
passa a ser necessário a adoção de diferentes perspectivas sobre
um mesmo acontecimento, deixando tal conduta visível nos
relatos. Dessa forma, o historiador parece acompanhar a mudança
de perspectiva do narrador também ostentada na literatura,
fazendo com que muitas das narrativas abandonassem o
tradicional narrador onisciente para, ao contrário, apostar em
um visão autodiegética. O resultado para o leitor, claro, seria a
possibilidade de afastar a história de uma impressão mítica,
irretocável, para uma condição onde novas interpretações
passariam a não ser entendidas como heresias. Nesse sentido, a
proposta de Burke parece ser uma verdadeira poesia para o
desenvolvimento da ficção encarregada de transformar os recortes
históricos em grandes aditivos para o florescer de sua mimesis.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 411


Romance histórico: a busca pela identidade, o declínio e a
reviravolta da pós-modernidade
A ligação entre história e literatura desde os tempos gregos
possibilitou, sem dúvida alguma, um grande diálogo entre os seus
praticantes. Mesmo a mudança das prerrogativas de cada uma
das áreas, sobretudo com a atribuição da história como uma
ciência, tal como visto anteriormente, não impediu que muitos
escritores utilizassem em suas criações dados históricos ou cenas
apoiadas por descrições escoradas por costumes de determinada
época.
A ascensão da burguesia exigiu no plano literário uma
nova perspectiva, algo capaz de alimentar a sede de novos leitores,
combinando questões específicas de ordem estética e formal, o
que garantiu protagonismo para um gênero até então promissor:
o romance. Este parece alimentar-se rapidamente dos referentes
históricos e da historiografia, ganhando como desdobramento
específico, no início do século XIX, o romance histórico. Tamanha
relação sinérgica favorece a impressão de que “[...] la narrativa
ficcional y su evolución a lo largo de la historia literaria es
inseparable de la concepción y de los caracteres del discurso
historiográfico” (FERNÁNDEZ PRIETO, 1998, p. 35). O resultado
fascinante entre as duas áreas acabou permitindo a milhares de
leitores uma maneira distinta (e, por isso, sempre nova) de aceder
a algumas perspectivas que até então eram particulares e próprias
do discurso histórico. Diante de olhos atentos e curiosos, velhas
paisagens, nomes e lugares passaram a ser reconstruídos com o
atrevimento particular da arquitetura romanesca, possibilitando,
assim, a aventura daquelas antigas epopeias, agora, com voz e
calor de uma narrativa.
Dentre tantas definições possíveis para o romance
histórico, a reflexão de García Gual se transforma em um
irresistível convite para o mergulho de interessados e

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 412


frequentadores assíduos desse mar que mistura em suas águas
ficção e história:

Las novelas históricas invitan a sus lectores a viajar a un


pasado más o menos lejano. Es decir, a un tiempo que no es el
actual y cotidiano. Suele tratarse de una excursión atractiva,
porque los novelistas acostumbran evocar momentos de vivaz
dramatismo y ambientes espectaculares, o, al menos,
novedosos e intrigantes. Nos proponen asomarnos al
pasado que sirve de marco a una trama con figuras
interesantes, bien por su papel histórico o bien por su
condición de testigos de una época que aún guarda
singular interés para el lector. Unas veces nos presentan a
grandes actores de la Historia; otras, a gentes ignoradas por
los historiadores que sufren su drama privado enmarcado en
una época histórica de fuerte colorido. (GARCÍA GUAL, 2005,
grifos nossos)

Para estudar o romance histórico, passa a ser necessário


“renunciar a la esperanza de un modelo único de comprensión.”
(JITRIK, 1995, p. 09). Como uma espécie de ponto de partida, ficou
a cargo de Georg Lukács, no ano de 1937, um ensaio vigoroso
sobre a manifestação dessa modalidade narrativa, elegendo como
o seu principal precursor Sir Walter Scott, que, já em 1814,
publicou Waverley e, cinco anos depois, em 1819, ganhou
notoriedade com o famoso e cheio de aventuras Ivanhoé. A escolha
lukácsina por tal precursor não é aleatória, nem deixa de
considerar romances anteriores que, de alguma maneira, acabam
por utilizar recursos históricos para conduzir a sua narrativa.
Por certo, o contexto sócio-cultural vivido por Sir Walter
Scott acabou possibilitando as condições necessárias para que o
romance histórico enquanto modalidade narrativa pudesse,
efetivamente, se consolidar: a queda de Napoleão e a derrocada
da influência francesa diante dos demais países europeus

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 413


impulsionaram o interesse para que muitos povos insistissem
em uma revisita a sua história, tendo como prerrogativa, por isso,
consolidar suas questões regionais, valorizar os seus símbolos,
folclore, indivíduos e personagens (LUKÁCS, 1966). De maneira
mais importante, as pessoas passaram a compreender a sua
existência cotidiana a partir da influência preponderante dos
componentes históricos. Tal percepção fundamenta um ponto
indispensável para o desenvolvimento do romance histórico
segundo a perspectiva lukácsiana (conhecido, posteriormente,
como o romance histórico romântico ou clássico): a ocorrência
de um evento histórico capaz de transformar e que ocupa a
centralidade dentro do enredo. Esse evento, segundo ele, deveria
ser paradigmático, como uma guerra, responsável por uma espécie
de quebra dentro da linha do tempo. Convivendo nesse contexto
reconstruído, personagens históricos famosos e ficcionais. Os
primeiros precisariam assumir uma aparição marginal, não
assumindo em nenhuma instância o foco da narrativa; já os
últimos, particulares do plano ficcional, assumiriam a função de
destaque e o protagonismo. É assim que surge a concepção do
herói médio, ou seja, aquele que jamais teria relevância dentro
da história hegemônica e que, de certa forma, tem o papel de
representar a parcela do povo silenciada pelo discurso vigente.
Essa estratégia de dar protagonismo a quem estava em
silêncio explica, inclusive, o fato de críticos do romance histórico,
tais como Román Álvarez, por exemplo, também chamarem os
heróis médios ao estilo scottiano como protagonistas “inclusivos”
(FERNÁNDEZ PRIETO, 1998). Mais do que incluírem, os
personagens – históricos e ficcionais – parecem conversar mais
diretamente com os leitores, demonstram também ter medos e
serem eles próprios fontes de dúvida. Passa a haver, por isso,
uma decorrente humanização daquelas figuras até então tomadas
como símbolos inquebráveis, os ditos pilares de uma nação.
Exatamente por conta da amplitude desse herói do povo – daquele,

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 414


como já se sabe, que não é oficial do discurso histórico – buscada
insistentemente por Sir Walter Scott, Doris Sommer esclarece
os pontos que diferenciam a prática do escritor escocês para a
constituição do romance enquanto gênero e, obviamente, para a
materialização do romance histórico:

Scott reivindica, e em grande parte logra, sua importância


enquanto historiador porque ele escreve histórias romanescas,
preocupado não apenas com o “maravilhoso e o incomum”, mas
também com a dimensão extrapessoal e social de um passado
coletivo. (SOMMER, 2004, p. 42)

De forma lúcida, Seymour Menton (1993) resume bem essa


busca dos romancistas românticos, atendendo, de acordo com ele,
com o preceito de criar a história daqueles que não tinham
história. Por atender a todas essas premissas, o modelo scottiano
acaba por ganhar destaque dentro da análise promovida por
Lukács, explicando, mais uma vez, a sua relevância para os
estudos do romance histórico. No entanto, é válido dizer que o
mesmo teórico, embora com suas preferências para delimitar o
que era um romance histórico, já percebia na gênese dessa
modalidade uma essência de mutação.
A gênese da mutação explica o porquê de, depois de Walter
Scott, muitos outros escritores tenham preferido apropriar-se do
recorte histórico de maneira distinta, recriando, assim, um
romance histórico sem certas balizas até então estáticas
observadas por Lukács e que eram particulares à estética
scottiana. Fazem parte dessa transformação grandes
representantes da literatura como, por exemplo, Balzac, Georg
Eliot, Victor Hugo e Alfred de Vigny, este que, ao publicar Cinq-
Mars, em 1826, preferiu fugir do herói médio e dar protagonismo
a uma figura histórica (algo, então, jamais considerado pela lógica
scottiana e pelo seu privilégio ao herói médio).

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 415


A citação de alguns dos precursores dessa modalidade
narrativa faz-se necessária aqui, sobretudo, para demonstrar não
somente o quanto a obra inicial de Scott assumiu uma espécie
de função-estopim em relação aos escritores que deram
continuidade ao trabalho de interseção entre ficção e história,
mas, sobretudo, para valorizar que uma modalidade narrativa como
o romance histórico só consegue alcançar vigor e dimensão,
séculos depois, exatamente por conta do colecionar de cada uma
dessas histórias (re)escritas.
Nesse cenário tumultuado, para os que ainda mantêm o
raciocínio científico do século XVIII, o romance histórico acaba
comportando-se como um bastardo aos olhos dos seus pais,
Literatura e História. O argumento, para aqueles protetores da
moral e dos bons costumes – engessados – do discurso histórico e
ficcional seria a ambiguidade ostentada pelo romance histórico,
o fato de não atingir a seriedade necessária de um, tampouco a
notoriedade e criatividade inovadora de outro. Em outras palavras,
um comportamento em cima do muro, no meio do caminho. A
visão é limitada, contraproducente no que diz respeito à narrativa
como um todo, e que, sem dúvida, parece ser pouco feliz (para não
dizer totalmente incoerente) em um momento em que os limites
que tangenciam os discursos e as áreas demonstram estar
praticamente sublimados.
É preciso, no entanto, abandonar a discussão sobre a
postura reacionária de alguns e voltar a mergulhar no que é,
sim, factual, ou seja, a importante condição centáurica do
romance histórico ao longo de toda a sua cronologia na
historiografia literária. Independentemente da perspectiva tomada
pelo escritor, se pelos fundamentos do romance histórico
tradicional (aquele que atende ao modelo lukácsiano), ou mesmo
pelo olhar dos sucessores da estética scottiana, o fato é que a
racionalidade e a verdade histórica serão sempre primordiais para
diferenciar e dar fundamento para um romance histórico, em

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 416


comparação a outro romance, ou mesmo àquele que possa apenas
se inspirar na atmosfera histórica para extrair o seu material
discursivo.
A verdade atrelada ao romance histórico não está ligada a
qualquer baliza sacralizada e já superada depois dos
questionamentos atrelados à pós-modernidade. Não se trata da
verdade científica ou outra qualquer, mas sim, de uma que seja
“pertinente y fundante” (JITRIK, 1995, p. 12). Entendendo tal
relevância para a fundamentação da modalidade narrativa e,
ainda, percebendo como esta se modifica continuamente, é
determinante pensar no contrato sempre presente – e silencioso
– entre quem escreve e quem lê. É desse acordo que surgem novos
pontos de atenção e aditivos para repensar e garantir o espírito
de mudança do romance histórico.
Discorrendo a respeito das diferenças do romance histórico
romântico e, posteriormente, os que sofreram a influência do
Modernismo (aqui, pensando especificamente sobre o movimento
que esteve em voga no cenário hispano-americano e europeu,
entre 1882 e 1915), Seymour Menton reforça o quanto a busca
esteve voltada prioritariamente a um ideal escapista (MENTON,
1993). O postulado de Menton apresentado deixa em voga a
observação de um cenário que tem a América Latina como ponto
central de enunciação. Do lado do velho continente, a perspectiva
em relação ao romance histórico constituído em plataforma
modernista não é diferente. Mais uma vez, reforça-se a estratégia
escapista e o não diálogo com os recortes históricos para uma
reflexão relacionada à identidade nacional. A elaboração ficcional
do passado parece ser, mais do que tudo, de ordem estética e
cultural.
Ainda sobre as características específicas sobre o romance
histórico modernista, Fernández Prieto também pondera sobre a
tentativa sempre perene de divisão entre o plano diegético e o
plano do leitor. No afã de que a narrativa e o ambiente romanesco

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 417


dessem conta de um espírito constante de efeito de tempo
presente – característico do realismo crítico –, o passado era
necessariamente delineado como passado. A preocupação era,
portanto, que este não estivesse “[...] contaminado por el presente.”
(FERNÁNDEZ PRIETO, 1998, p. 140).
É válido frisar que a fase considerada em latência produtiva
do romance histórico significou, obviamente, não um fim, mas
uma não predominância, como é recorrente no território das artes.
Ainda que com características próprias, o romance histórico e as
suas eventuais mudanças e problemáticas formais e conceituais
estão atreladas a questões maiores, de ordem da sua constituição
enquanto gênero, que é o romance, e, claro, no que diz respeito à
narrativa (GIUFFRÉ, 2004). Sua singularidade de contemplar ficção
e história como um tecido comum, pode-se inferir, permitiu que
a modalidade literária emergisse após um período em que voltar
ao passado era, literalmente, a única maneira de se (re)construir
o presente. Exatamente por isso,

[…] la novela histórica resurge a partir de la II Guerra Mundial


y desde entonces la afición al género de autores y de lectores
no ha hecho más que incrementarse hasta convertirse en un
fenómeno cultural transnacional, que se manifiesta no sólo
en las sociedades occidentales sino también en otros ámbitos
culturales como el de las naciones árabes. (FERNÁNDEZ
PRIETO, 1998, p. 144)

Tal ressurgimento ganhou ainda mais fôlego e permitiu


que o romance histórico reaparecesse com grande expressividade,
graças ao oxigênio da estética promovida pelas discussões pós-
modernistas. Nesse contexto, voltava a figurar o interesse pelas
questões do passado, principalmente como forma de repensar e
reavaliar tudo o que aconteceu. A baliza passa a ser fortemente o
questionamento, a revisão e, muitas vezes, a contestação, sempre

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 418


como forma de enriquecer o debate e a reflexão, mas nunca com
um caráter final (HUTCHEON, 1991). Exatamente nesse prisma,
ganham destaque novas designações para o romance histórico,
tal como “novo romance histórico”; o “romance histórico pós-
modernista” e a “metaficção historiográfica”, tendo a última como
grande referência crítica a canadense Linda Hutcheon.
Em comum, todas essas novas manifestações da
modalidade narrativa partem para um olhar da historiografia que
é menos dogmático, balizado por um espírito anacrônico crítico e
aguçado. Aludindo sobre o novo romance histórico, por exemplo,
Fernández Prieto relembra que a intenção está centrada “[...]
precisamente en el cuestionamiento de la historiografía y esto
determina la estructura, la semántica y la pragmática de los
textos que se presentan como novelas de metaficción
historiográfica.” (FERNÁNDEZ PRIETO, 1998, p. 159). No caso do
romance histórico pós-modernista, a tarefa de denúncia a respeito
dos discursos oficiais, históricos, é ainda mais preponderante,
questionamento como os mesmos se estabelecem como
“instrumentos de poder” (FERNÁNDEZ PRIETO, 1998, p. 174).
É possível notar que a volta do romance histórico com
efeitos protagônicos no palco literário, de alguma forma, também
evidencia o apagamento dos limites entre os próprios gêneros.
Provocando uma maior discussão e reflexão a respeito dos
pantanosos limites entre ficção e história, consagra-se, na
literatura, o momento oportuno para a aparição de gêneros
também híbridos, tais como as autobiografias, o gênero epistolar,
entre outros. Mais interessante, portanto, do que o
descumprimento e afinco pela derrocada da historiografia parecem
ser o fato de que as novas facetas da modalidade narrativa do
romance histórico enquanto a quebra dos próprios limites
literários.
Rompendo com tais narrativas totalizadoras (ESTEVES,
2008), o romance histórico volta a apontar papel preponderante

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 419


para recontextualizar diversas questões pertencentes ao
imaginário, pontuando, como nunca, os encontros e desencontros
protagonizados pela história e pela ficção.

Referências

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GARCÍA GUAL. El viaje a otras épocas. Análisis: El País. Novela


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GIUFFRÉ, Mercedes. En busca de una identidad (La Novela Histórica


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ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 420


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JITRIK, Noé. Historia e Imaginación Literaria, las posibilidades de


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SOMMER, Doris. Ficções de fundação: os romances nacionais da


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ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 421


O MITO DE TRISTÃO E ISOLDA COMO INTERTEXTO E TEMA
DE REFLEXÃO SOBRE O CINEMA, O TEATRO E A TV

Autor: Prila Leliza Calado (Uniandrade)


Orientador: Profa. Dra. Anna Stegh Camati (Uniandrade)

RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo verificar como a ideia


de tradução cultural foi proposta no filme intitulado Romance (2008), do
diretor e roteirista Guel Arraes. Por meio de perspectivas teóricas sobre
intertextualidade, intermidialidade e adaptação, mostra-se, num
primeiro momento, como a narrativa do mito irlandês de Tristão e
Isolda, do escritor francês Joseph Bédier (2006), é transposta para a
cena (a produção da peça de teatro dentro do filme) e, num segundo,
como a produção cinematográfica realiza a transposição da referida
lenda medieval do século XII para o nordeste brasileiro do século XIX,
promovendo então a atualização de um mito e sua difusão. Ademais, a
metalinguagem da película Romance é discutida, mais precisamente os
discursos que refletem sobre conceitos pré-estabelecidos a respeito
de outras formas de arte, ou seja, como o cinema explora teatro e TV
de forma crítica e renovadora.
PALAVRAS-CHAVE: Adaptação. Tradução cultural. Intermidialidade.
Intertextualidade. Metalinguagem.

Os dois personagens principais do filme Romance (2008),


de Guel Arraes, discutem todo o tempo sobre a herança deixada
pelo século XII, com a lenda de Tristão e Isolda. E não apenas
discutem. Encenam, escrevem peças e séries de TV e vivem em
suas vidas toda a carga dramática que envolve o amor e a paixão
de acordo com tal herança. Esse é o mote que dispara a discussão
que perpassa todo o filme: em que medida somos ou estamos
escravizados a certas experiências do amor e do romantismo que
naturalizamos como verdades; e qual a possibilidade de, sem
recusar essas imagens que nos acompanham durante séculos,

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 422


produzir outras verdades, outras imagens e experiências do
encontro amoroso. Porém, tal discussão não se aplica somente
às experiências amorosas que vivemos; se aplica também às
relações entre literatura e qualquer mídia que intencione adaptar
uma obra literária: em que medida somos ou estamos
escravizados, acostumados, afeiçoados a conceitos de fidelidade,
superioridade, completude, que nos acompanham durante
décadas? E então como produzir novos conceitos e entender que
novas releituras são capazes de trazer uma vida nova ao texto
fonte?
Então, o percurso de Ana e Pedro, atores que se apaixonam
pelo romance dos lendários Tristão e Isolda, e também entre si,
se vê marcado por estes questionamentos e confrontos. Ambos
seguem caminhos que os levam a desencontros e reencontros,
mas em todos os momentos está em primeiro plano o amor-paixão
e as várias tentativas de redimensioná-lo à luz da urgência em
criar outros possíveis e superar impasses morais e éticos. O mais
interessante é que o próprio enredo traz para o centro do debate
os vários meios artísticos (teatro, televisão e cinema) pelos quais
é possível se apropriar do problema colocado pelo romance, com
cada diferença de estilo sendo mais uma peça a se encaixar no
quebra-cabeça que vai se tornando o encontro de Ana e Pedro,
especialmente quando Ana se vê arrebatada por outra paixão. E
assim, num genial jogo de espelhos, Ana e Pedro não apenas
interpretam os personagens medievais, mas tornam-se também
estes mesmos personagens em suas vidas; arte e vida se
misturando e se contaminando de maneira irreversível e
permanente.
O desafio que vai ocupar os modernos Tristão e Isolda (sim,
de certo modo repetimos Tristão e Isolda, queiramos ou não, esta
é uma das mensagens do filme) será o de se haver –
especialmente Pedro que se põe a escrever um roteiro adaptado
para a TV – com as exigências estéticas de um produtor rigoroso

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 423


e muito voltado para a audiência de seus programas. É aí que o
roteiro mostra um grande fôlego, pois os embates entre Pedro e o
produtor também fazem parte de uma experiência de paixão e
amor: o amor/paixão pela arte, o encontro com o desconhecido
que ela impõe, movimento respeitoso com a criação, seja ela no
campo artístico estrito, seja na vida comum.
A presente análise terá dois objetivos: o primeiro será,
por meio de estudos sobre adaptação cultural, verificar como foi
realizada no filme a adaptação da lenda medieval de Tristão e
Isolda para uma narrativa regional brasileira, ou seja, quais
elementos da história foram transpostos para a tela e de que
forma. O segundo será analisar, à luz dos estudos da
metalinguagem e da metaficção, como a arte se volta para ela
mesma, e no filme Romance, como a ficção trata a ficção, como o
cinema fala de literatura, teatro e TV.

Diálogos intertextuais e intermidiáticos como fonte de


renovação
A história de Tristão e Isolda é uma interpretação literária
de uma antiga lenda celta do século XII. Quanto a esta história
ser baseada em fatos reais, não há um consenso entre os
historiadores, sendo praticamente impossível encontrar uma fonte
comum para esta narrativa. Entretanto, ela está presente entre
os mais variados povos antigos, sob formas e versões distintas,
as mais remotas provindas da cultura popular dos celtas que
habitavam o norte da França. Os textos mais populares pertenciam
a dois poetas deste período, Tomás da Inglaterra e Béroul. Suas
recriações desta lenda apresentavam diferenças muito sutis,
porém detinham os mesmos elementos narrativos.
A trama se desenrola na Cornualha, península da Grã-
Bretanha, governada pelo Rei Marc. Tristão, logo cedo, perde a
mãe, Blanchefleur, e o pai, Rivalen, quando este teve seu reino
Loonois tomado depois de uma árdua batalha. Criado pelo cavaleiro

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Rohalt, de quem se julgava filho legítimo, foi sequestrado por
comerciantes da Irlanda e abandonado na Cornualha, região na
qual tem contato com o rei, sem saber que ele é seu tio. O pai
adotivo o localiza e lhe conta a verdade sobre suas origens.
Preparado para recuperar sua terra natal, Tristão se empenha
neste empreendimento e doa seu reino para Rohalt, retornando
à companhia do tio, também ciente da verdade. O herói era então
já famoso por ser um bravo guerreiro e virtuoso harpista. Para
libertar o rei de um débito com a Irlanda, ele se dispõe a duelar
com Morholt, a quem vence, mas é seriamente envenenado pela
espada do adversário. Colocado em um barco, à deriva no mar,
ele é levado às costas da Irlanda, tratado e curado pela princesa
Isolda, por quem se apaixona.
O destino, porém, reserva a Isolda o matrimônio com Marc,
e Tristão, resignado, volta à Irlanda com a missão de levar a
princesa para o tio. Aqui variam algumas versões; em umas,
Tristão simplesmente traz Isolda consigo, e ambos tomam um
filtro do amor preparado pela serva ou pela mãe da nobre, e são
então dominados por uma intensa paixão; em outras, Tristão
vence um dragão, é prometido para a bela princesa, mas renuncia
a ela por fidelidade ao seu tio, porém não consegue resistir quando
ambos tomam um vinho misturado a uma poção mágica no navio
que os traz para a Cornualha.
De uma forma ou de outra, eles se tornam amantes, ela
se casa com o rei, eles dão sequência ao seu romance, até serem
descobertos, quando Tristão foge. Há algumas variantes, mas ao
final da história ambos morrem, ele envenenado, ela quando sorve
parte do veneno ao beijá-lo ou esfaqueando-se com o punhal de
Tristão. Depois de enterrados um ao lado do outro, roseiras brotam
de cada túmulo e se entrelaçam.
O texto literário utilizado como base para esse artigo é O
Romance de Tristão e Isolda, escrito pelo francês Joseph Bédier.
Já no prefácio da obra, produzido por Gaston Paris, lemos que o

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 425


escritor francês realizou adaptações em sua releitura: “Tenho o
prazer de apresentar aos leitores o mais recente dentre os poemas
que a admirável lenda de Tristão e Isolda fez nascer. Na verdade,
é um poema, embora seja escrito numa prosa bela e simples”
(BÉDIER, 2006, p. IX). De acordo com Robert Stam, professor da
New York University:

O texto polifônico, dialógico, heteroglóssico e plural do


romance, para usar a linguagem de Bakhtin, se torna suscetível
às múltiplas e legítimas interpretações, incluindo a forma de
adaptações como leituras ou interpretações. (STAM, 2006, p. 25)

Além da narrativa poética de Joseph Bédier, essa análise


tomará como objeto de estudo o filme Romance, do diretor Guel
Arrares (O auto da compadecida; Lisbela e o prisioneiro) e roteiro
em parceria com Jorge Furtado (O homem que copiava; Saneamento
básico). A película narra a história de dois atores de teatro – Pedro
e Ana – que encenam a peça Tristão e Isolda em um pequeno
teatro em São Paulo. Os atores se apaixonam em meio aos ensaios
para a peça e vivem todas as dificuldades que uma pequena
companhia de teatro enfrenta em seu dia-a-dia: falta de dinheiro,
problemas com a divulgação e estrutura etc. Após serem vistos
em cena por um diretor de TV famoso – Danilo Bresi – Ana é
convidada a participar da gravação de uma novela no Rio de
Janeiro, o que faz com que Pedro termine o namoro. Três anos
depois, Pedro, que além de ator também é escritor, tem a
oportunidade de produzir um especial para a TV, tendo Ana, agora
famosa, como atriz principal. Ele propõe uma adaptação da lenda
de Tristão e Isolda para o nordeste brasileiro. O diretor Danilo
Bresi aceita, desde que o fim seja alterado, pois acredita que o
público não irá gostar do fim trágico que a história possui. As
gravações têm início no sertão da Paraíba e Ana fica dividida entre
o amor antigo que sente por Pedro e algo novo que sente pelo ator

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 426


falsário Orlando, que finge ser um sertanejo local só para conseguir
o papel de Tristão. As gravações chegam ao fim e Pedro, em meio
a uma artimanha cinematográfica, consegue filmar o final trágico
original mesmo a contra gosto de Danilo, deixando-o furioso. Após
descobrir as armações de Orlando, Ana retorna a São Paulo e, no
mesmo teatro onde tudo começou, junto com Pedro, termina
atuando em uma comédia intitulada Romance, a qual narra
humoristicamente a trajetória do casal. Pedro havia prometido à
Ana escrever uma peça no início do filme.
Temos então duas produções artísticas, uma literária e a
outra cinematográfica, entretanto, vale ressaltar que o filme não
é uma adaptação do romance impresso de Joseph Bediér. A obra
de Guel Arraes e Jorge Furtado é uma narrativa ficcional que
retrata um jovem casal de atores, sendo ele roteirista também,
que vive de teatro e se envolve com o meio televisivo. A lenda de
Tristão e Isolda – que serve como pano de fundo – é representada
pelo casal nos palcos e acaba influenciando também o
relacionamento amoroso dos dois artistas. Logicamente, e para
aumentar o teor romântico da película, muitas passagens do livro
de Bediér são incluídas nas falas dos personagens de Wagner
Moura e Letícia Sabatella, mesmo quando estão fora do palco.
Tais inserções fazem com que o espectador que já teve contato
com a obra remeta à narrativa escrita. Os roteiristas fazem uso,
nesses momentos, da intertextualidade, destacando dois níveis
intertextuais diferentes dentro da película: um nível diegético,
“real” do filme, dos personagens Pedro e Ana; e outro nível,
literário, ou seja, a transposição da lenda medieval europeia
proposta por Pedro para um romance de cordel brasileiro e sua
filmagem para a TV. Um exemplo de como esses dois níveis
intertextuais se entrelaçam é quando a equipe de TV está
gravando o especial no sertão da Paraíba, e Pedro percebe que
Ana e Orlando não estão somente representando os personagens,
mas também se envolvendo amorosamente fora das gravações,

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 427


ou seja, o roteirista Pedro, enquanto profissional, vê seu grande
amor nos braços de outro em ambos os universos: o diegético e o
extra-diegético.
Há também outro exemplo dessa mescla de níveis
intertextuais: a cena que antecede o encontro do casal de atores
com o diretor de TV Danilo Bresi.

Ana: Foi lindo!


Pedro: Foi!
Ana: É só isso que você tem pra me dizer? Foi? Três letras?
Uma para cada mês de ensaio?
Pedro: Mas o que importa o som da minha voz? É o som do meu
coração que deveis ouvir.
Ana e Pedro beijam-se. (ARRAES, 2008)

Os atores estão no camarim, após a encenação da peça, e


Pedro cita um trecho que até o momento não havia sido mostrado
durante o filme, mas que está presente na narrativa de Joseph
Bediér:

Então Tristão deixou de disfarçar a voz:


– Amiga, como pudestes por tanto tempo desconhecer-me, mais
tempo do que este cachorro? Que importa este anel? Não sentes
que teria sido mais doce para mim ser reconhecido à simples
evocação de nossos amores passados? Que importa o som da
minha voz! É o som do meu coração que devias ouvir. (BÉDIER,
2006, p. 133)

Constatamos assim, que por meio da intertextualidade –


mais precisamente conforme a classificação de Gérard Genette
– por meio da citação, o roteiro foi adaptado de forma a recorrer a
inúmeros trechos da obra O romance de Tristão e Isolda. Em outra
passagem do filme Pedro faz uma alusão à obra Cyrano de Bergerac,

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no momento em que Ana lhe confirma que está gostando de
Orlando, seguida de mais uma citação, agora da peça francesa:

Pedro: Eu coloquei na boca dele tudo o que eu queria lhe dizer.


Ana: Porque você mesmo não me disse?
Pedro: Tem razão. Eu tô mais pra um Cyrano de Bergerac,
escrevendo declarações de amor para serem ditas pelo meu
rival. ‘Enquanto me escondia à sombra de uma história, um
outro recebia o beijo da glória’. (ARRAES, 2008)

Portanto, fica claro que inúmeros são os recursos a serem


utilizados para enriquecer as adaptações, e por isso não podemos
nos esquecer de que a intertextualidade é, sem dúvida, uma das
pontes que proporciona a infinidade de relações propostas pelos
autores e construídas pelos leitores / espectadores. Quando Pedro
vai ao Rio de Janeiro expor seu projeto para o especial de TV, ele
sugere realizar uma adaptação do romance de Tristão e Isolda
para o nordeste brasileiro.

Na nossa versão nordestina para o romance de Tristão e Isolda,


os trovadores provençais vão ser os cantadores nordestinos,
os cavaleiros medievais como Tristão vão ser os vaqueiros, os
reis e rainhas como Marcos e Isolda vão se tornar os grandes
proprietários de terra, os donos de fazenda de gado. (ARRAES,
2008).

Assim, verificamos que Pedro propõe uma tradução


transcultural, ou seja, transporta uma narrativa que provém da
Europa do século XII para outra cultura e época completamente
diferentes; por isso precisa fazer alterações que atinjam o público
receptor – o público brasileiro – de maneira lógica e agradável.
Segundo a professora Linda Hutcheon:

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 429


Muitas vezes isso inclui uma mudança de linguagem; quase
sempre, há uma troca de lugar e de momento histórico. (...) as
culturas mudam com o tempo. Em nome da relevância, os
adaptadores buscam a recontextualização ou reambientação
‘correta’. (HUTCHEON, 2013, p. 196-197)

Dessa forma, é possível observar que vários detalhes são


transpostos da narrativa impressa e do texto cênico para a produção
televisiva, sendo que o programa brasileiro assume um aspecto
que se assemelha ao romance de cordel, sem, no entanto, alterar
o enredo de partida. Conforme a afirmação de Hutcheon, Pedro
fez, criativamente, mudanças na linguagem, no figurino, no
espaço e na época para recontextualizar e reambientar a história
dos dois amantes, de modo que se adaptasse à cultura nordestina
brasileira do fim do século XIX. Além das alterações mencionadas,
modificou-se também o tipo de mídia a transmitir a adaptação,
ou seja, do teatro a obra será encenada para a TV. Em seu estudo
intitulado Inter textus / inter artes / inter media, o professor Claus
Clüver, da Indiana University, afirma:

Especialmente interessante e igualmente irrepresentável é a


existência de várias transposições do mesmo texto-fonte não
apenas em diversos gêneros (inclusive gêneros não-artísticos),
mas também em diversas mídias: as relações intertextuais
entre todas essas versões podem influenciar consideravelmente
a recepção de uma determinada transposição. As adaptações
de textos (na maioria, literários) por diversos meios de
comunicação de massa resultaram num fenômeno que Karl
Prümm descreveu em 1988 de maneira eloqüente, mas nomeou
com um rótulo questionável: ‘Pode se falar, então, de
multimidialidade quando um objeto estético está disponível e
é passível de recepção em várias mídias’. (CLÜVER, 2006, p.
33)

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 430


A adaptação cultural idealizada por Pedro se materializa
então através de figurinos típicos dos sertanejos, do local onde as
filmagens foram realizadas – o sertão da Paraíba –, e da linguagem
que é carregada de sotaque e expressões locais.
Além desses aspectos, um detalhe especial faz com que a
produção televisiva remeta aos romances de cordel do século XVII
e XVIII: a música Tristão e Isolda no sertão, composta pelo diretor
e roteirista Guel Arraes em estrofes de três versos, e interpretada
pelo cantor Agamenon Pereira dos Santos, da mesma forma que
os cancioneiros nordestinos recitavam os poemas de cordel
naquela época.

Tristão e Isolda no sertão


Amigos que hoje encontro em dia de boa sorte
Escutem o meu romance de amor, de vida e de morte
Entre Tristão e Isolda aqui nas terras no norte.

Isolda amava em segredo Tristão com muito carinho


Um dia veio um recado de Marcos, tio e padrinho
Pedindo a mão de Isolda para não viver mais sozinho.

Isolda vai casar com o tio, mas ela amava o sobrinho


Tristão a ama em segredo, não quer trair o padrinho
Isolda faz um feitiço e mistura dentro de um vinho.

O amor quando é proibido atiça mais a paixão


Como a água represada que precisa da vazão
Foi assim que aconteceu com Isolda e Tristão.

Um dia o coronel Marcos viu que havia amor


Entre a esposa e o sobrinho; quase não acreditou
Viu com seus próprios olhos o que nunca imaginou.

Em sepulturas vizinhas os dois foram enterrados


Nos túmulos uma roseira com galhos entrelaçados

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 431


Desencontrados na vida, na morte reencontrados. (ARRAES,
2008)

Pode-se afirmar, dessa forma, que uma adaptação cultural


procura acrescentar a noção de ressignificação à ideia de
intertextualidade, isto é, na medida em que um filme adaptado é
uma recriação de outro texto (ou textos), ele também ressignifica
sua fonte em um novo meio, um novo contexto, um novo código
de representação e, antes de tudo, uma nova atitude discursiva.
Essa multiplicidade de perspectivas aponta para a inerente
capacidade da adaptação de ser abordada por diversos pontos de
vista, sem que sejam nem um ou outro, certo, superior, fiel ou
intocável. E pensar em métodos que ampliem a discussão – como
se fez até agora – é reconhecer a relevância que o processo de
adaptação ocupa na configuração da cultura atual. Não é mais
uma questão apenas de literatura-cinema: a adaptação participa
da constituição de diversos produtos culturais, que tanto corrobora
uma perspectiva mercadológica (a de insistir e recriar o que já
fez sucesso), quanto indica aspectos para se entender a realidade
cultural e social dos diversos povos e de suas produções simbólicas.
Nesse sentido, a professora Anna Stegh Camati ressalta:

A análise das adaptações não deve limitar-se à comparação


dos aspectos formais e temáticos entre o texto-fonte e o texto-
alvo. As principais determinantes do redirecionamento de
sentido em qualquer adaptação são as alterações efetuadas
em função da mudança do tempo-espaço e do imaginário cultural
(...). Nesse sentido, o fenômeno da adaptação pode ser visto
como uma manifestação do processo cultural em constante
mutação. Em face dessas perspectivas, a estética brechtiana
da atualização dos textos clássicos tornou-se uma prática
comum. Esse procedimento altera radicalmente o sentido
atribuído às obras canônicas pela crítica tradicional, preocupada
com a integridade textual. Brecht defendia a necessidade da

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 432


historicização dos clássicos, um processo que põe em jogo duas
historicidades: o tempo em que o texto foi escrito e o tempo
em que ele é reescrito ou transposto para outro meio, visto
que o passado influi no presente, e o presente modifica o
passado. (CAMATI, 2009, p. 295)

As colocações do teórico Júlio Plaza corroboram com os


estudos de Robert Stam, quando afirma que:

A operação tradutora como trânsito criativo de linguagens nada


tem a ver com a fidelidade, pois ela cria sua própria verdade e
uma relação fortemente tramada entre seus diversos
momentos, ou seja, entre passado-presente-futuro, lugar-
tempo onde se processa o movimento de transformação de
estruturas e eventos. (PLAZA, 1987, p. 1)

confirmando, portanto e, acima de tudo, que a cada vez que uma


nova versão ou adaptação surge, mitos são atualizados,
revitalizados através dos diálogos intertextuais e intermidiáticos
propostos.

Metaficção e o pastiche pós-moderno na produção


cinematográfica Romance
Para desenvolver a segunda parte dessa análise é
necessário lembrar que o termo metalinguagem designa a
linguagem que se debruça sobre si mesma. Em seu estudo sobre
as funções da linguagem, Roman Jakobson (1977) define a função
metalinguística como a linguagem que fala da linguagem,
voltando-se para si mesma: “(...) podemos falar em português
(como metalinguagem) a respeito do português (como linguagem-
objeto) e interpretar as palavras e as frases do português por meios
de sinônimos, circunlocuções e paráfrases portuguesas”
(JAKOBSON, 1977, p. 46). Segundo Jakobson, a função
metalinguística da linguagem não é importante apenas para os

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 433


estudos científicos e literários, mas desempenha um papel de
destaque também em nossa linguagem cotidiana. O linguista cita
como exemplos expressões que utilizamos quando necessitamos
verificar se o remetente e o destinatário de uma determinada
mensagem estão utilizando o mesmo código: “Entende o quero
dizer?”, “Como assim?”, “Você pode explicar melhor?” (JAKOBSON,
1977, p. 47). Nesses casos, há uma reflexão sobre o próprio código
utilizado, a fim de garantir a eficácia do processo comunicativo.
A função metalinguística na linguagem literária, muitas vezes,
assume papel semelhante. O poeta, ao refletir sobre a linguagem,
desnuda para o leitor seu processo de escrita, compartilhando
com ele momento da criação do poema.
Os processos metalinguísticos não são, porém, exclusivos
da literatura. A metalinguagem se faz presente muito
frequentemente nos filmes (Cinema Paradiso, A rosa púrpura do
Cairo, Lisbela e o prisioneiro), nos quais percebemos o constante
processo auto-reflexivo de um filme narrando a experiência
cinematográfica, aqui denominada então de metaficção. Os
dicionários de etimologia informam que o prefixo de origem grega
metá significa, dentre outras coisas, reflexão, posteridade,
transcendência. Assim, é possível observar um constante processo
crítico-reflexivo sobre os diversos meios artísticos fazendo parte
da narrativa criada pelos roteiristas de Romance. Logo, a
metaficção se realiza quando verificamos que o filme faz críticas
aos bastidores das produções televisivas; exibe as gravações de
cenas de novela; faz menção aos problemas enfrentados pelas
pequenas companhias de teatro em sua rotina diária; mostra a
difícil tarefa do dramaturgo que precisa escrever uma obra
pressionado pelo patrocinador, tendo que abrir mão de sua vontade;
e evidencia o trabalho do roteirista ao escrever as falas das
personagens. Dessa forma, o diretor Guel Arraes se utiliza da
metalinguagem para fazer com que a arte se volte para ela mesma
e usa a própria arte para falar de arte: usa o cinema para falar de

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 434


literatura, teatro e TV. Nesse sentido, uma das cenas do filme
mostra Pedro lendo para Ana uma crítica literária a respeito da
lenda de Tristão e Isolda:

Pedro: O amor feliz não tem história na literatura ocidental. A


felicidade dos amantes só nos comove pela expectativa da
infelicidade que os ronda. Sem sofrimento não há romance. O
romance de Tristão e Isolda tornou-se modelo de todas as
histórias de amor até hoje. Os amantes se amam, mas não
conseguem superar os obstáculos e serem felizes. Esse é o
segredo do sucesso de Tristão e Isolda e foi isso que os poetas
europeus da Idade Média descobriram: o amor recíproco infeliz.
(ARRAES, 2008)

Já com comentários da personagem Fernanda,


interpretada por Andréa Beltrão, como por exemplo: “Quem é que
vai querer pagar para ficar ouvindo rimas, assistir uma história
de amor tristíssima e ainda descobrir que os mocinhos morrem
no final? (ARRAES, 2008) e “Mania de fazer teatro... Porque você
quer se apresentar para 300 pessoas quando você pode se
apresentar para 30 milhões? Teatro é coisa velha!” (ARRAES, 2008)
o roteiro do filme nos apresenta estereótipos relacionados ao teatro
e à TV que ainda são muito comuns dentre a população e que
precisam ser desmistificados. Percebe-se claramente uma
crônica sobre os vícios de produção, sobre as ambições geradas
pelo desejo da fama, e, de certa forma, um massacre à visão
glamourizada que o meio televisivo impõe ao público em geral. O
divertido personagem de Andréa Beltrão, por exemplo, é a clara
evidência daqueles que só pensam em fazer sucesso e ganhar
dinheiro. Marco Nanini faz uma participação emblemática como
uma mega estrela histérica que reclama da ausência de couro
em sua roupa: “Isso aqui é napa!! É naaapa!!” (ARRAES, 2008).
Nesse sentido, o escritor Haroldo de Campos comenta:

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 435


Crítica é metalinguagem. Metalinguagem ou linguagem sobre a
linguagem. O objeto – a linguagem-objeto – dessa
metalinguagem é a obra de arte, sistema de signos dotado de
coerência estrutural e de originalidade (CAMPOS, 1992, p.11).

Podemos verificar, dessa forma, a materialização do


processo auto-reflexivo que a utilização da metalinguagem propõe,
devido às intersecções existentes entre os personagens Ana e
Pedro, e a história dentro da história.
Outra forma pela qual a metalinguagem se projetou
durante o filme foi através de montagens e inserções de pinturas
que se mesclavam às cenas da peça encenada pelo casal de atores,
conforme as figuras abaixo. Ao mesmo tempo, Pedro lia para Ana
a crítica literária anteriormente citada. De uma forma visual,
temos a metalinguagem fazendo parte da narrativa: a arte se
atualizando através da sobreposição de imagens; pinturas se
sobrepondo às encenações teatrais. Ao analisarmos tais
passagens, é possível afirmar que colocou-se em prática nesse
momento uma técnica pós-moderna que recupera a memória
cultural da lenda, combinando o universo diegético do filme, a
ficção a que assistimos e a mitologia. Segundo a teorização de
Gérard Genette, em Palimpsestos, o pastiche é apontado como um
recurso transtextual, classificando-se como uma forma de
hipertexto uma vez que se trata de um texto que obedece a uma
lógica derivacional diante de outro que lhe é anterior (o hipotexto),
estabelecendo com o texto matriz relações de imitação. O pastiche
insere-se assim no espírito pós-modernista da colagem e
reaproveitamento de moldes e estilos, reabilitando-se e libertando-
se do estigma da inferiorização. Por meio de variadas maneiras a
metalinguagem e a metaficção foram utilizadas durante o filme
Romance. A professora canadense Linda Hutcheon, em seu livro
Narcissistic narrative, descreve o que a metaficção é capaz de fazer.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 436


O trecho foi extraído do artigo O que é metaficção?, da professora
Brunilda Reichmann:

A metaficção tende, sobretudo, a brincar com as possibilidades


de significado e de forma, demonstrando uma intensa
autoconsciência em relação à produção artística e ao papel a
ser desempenhado pelo leitor que, convidado a adentrar tanto
o espaço literário quanto o espaço evocado pelo romance,
participa assim de sua produção. (REICHMANN, 2006, p. 48)

Encontramos aqui novamente caminhos que nos levam


ao fim da “originalidade”, do “estilo autoral”, e que nos trazem a
procura de significado e identidade por meio da adaptação e da
releitura, e com a percepção do mundo e da cultura como fontes
de fragmentos permanentemente reutilizáveis.

Considerações finais
Em Romance, o diretor e roteirista Guel Arraes volta a
produção mais uma vez para o sertão – assim como em O auto da
Compadecida e Lisbela e o prisioneiro – retratando o espaço de
maneira peculiar, com detalhes típicos da cultura local, como as
rimas, o cordel, entre outras artimanhas do diretor que não nega
suas origens. O detalhe mais importante é que o filme se passa
no presente, ancorado no clássico conto de amor de Tristão e
Isolda, lenda que se propaga desde o século XII. Essa informação
foi didaticamente inserida no roteiro, gerando mais conhecimento
para o grande público e vendendo o argumento do filme. No
inteligente roteiro de Guel Arraes e Jorge Furtado, Pedro é um
diretor e ator de teatro que procura uma atriz para encenar a
peça “Tristão e Isolda”. Em sua busca, ele encontra em Ana alguém
para atuar e também viver uma história de amor. Furtado e Arraes

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 437


conseguiram de uma maneira astuta utilizar um clichê – a vida
imita a arte – para produzir um bom filme.
Na história, que mistura literatura, teatro e TV, não faltam
críticas à sociedade, ao culto à fama, ao vazio da televisão, ao
apego ao dinheiro, entre outros aspectos. Assim, considera-se
que o segundo objetivo desse artigo foi alcançado ao constatarmos
que a metalinguagem utilizada pelos roteiristas cumpre sua
função de repensar, renovar, propor conceitos acerca de seu objeto.
Depois de analisadas cenas, imagens, diálogos foi possível
perceber que a metaficção materializada na película em questão
destaca conceitos equivocados em relação ao teatro e sua prática,
além de comportamentos ambiciosos em relação ao meio
televisivo e à fama. Da mesma maneira, o primeiro tema tratado
pelo presente trabalho foi desenvolvido de forma a retomar antigos
julgamentos de superioridade, fidelidade, qualidade e originalidade
dos textos-fonte perante as adaptações, transposições, releituras
propostas em outras épocas. Portanto, durante as considerações
acerca da adaptação cultural a que assistimos no filme Romance,
enfatizou-se as relações intertextuais e intermidiáticas que
fazem com que o espectador torne-se também co-autor da obra
que recebe, pois é através de suas interpretações e ponderações
que o sentido será construído.
Conclui-se que tanto a adaptação – sob qual forma ou mídia
seja proposta – quanto a metalinguagem, neste caso a metaficção,
promovem, acima de tudo, renovação: a adaptação cultural
promove a atualização da lenda e a metaficção promove a
modernização de conceitos pré-estabelecidos a respeito da arte
teatral e televisiva. Dois tópicos que visam à reflexão acerca de
antigos temas, instigando o público receptor a construir novas
leituras e significados a partir do diálogo intertextual que é capaz
de estabelecer entre o que vê e o que traz consigo.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 438


Referências

BÉDIER, J. O romance de Tristão e Isolda. São Paulo: Martins


Fontes, 2006.

CAMATI, A. S. Sonho de uma noite de verão no cinema: travessias


e transações intermidiáticas. Revista da Anpoll, Multimodalidade
e intermidialidade: abordagens lingüísticas e literárias, nº 27, p.
289-313, 2009. Disponível em: http://www.anpoll.org.br/revista/
index.php/revista/article/view/152/162. Acesso em: 22 dez.
2014.

CAMPOS, H. Metalinguagem e outras metas: ensaios de teoria e


crítica literária. São Paulo: Perspectiva, 1992.

CLÜVER, C. Inter textus / Inter artes / Inter media. Trad. do alemão


de Elcio Loureiro Cornelsen. AletriA: revista de estudos de
literatura – Intermidialidade, Belo Horizonte, v.14, p. 14-41, jul./
dez. 2006. Disponível em: http://www.periodicos.letras.ufmg.br/
index.php/aletria/article/view/1357. Acesso em: 20 dez. 2014.

GENETTE, G. Palimpsestos: a literatura de segunda mão. Trad.


Luciene Guimarães & Maria Antônia Ramos Coutinho. Belo
Horizonte: UFMG/Faculdade de Letras, 2005.

HUTCHEON, L. Uma teoria da adaptação. Florianópolis: Ed. da UFSC,


2013.

JAKOBSON, R. Lingüística e comunicação. São Paulo: Cultrix, 1977.

PLAZA, J. Tradução intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 1987.

REICHMANN, B. T. O que é metaficção? Revista Scripta Uniandrade,


Curitiba, v. 4, p. 45-59, 2006. Disponível em: http://

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 439


www.uniandrade.br/pdf/Revista_Scripta_2006.pdf. Acesso em: 22
dez., 2014.

ROMANCE. Direção de Guel Arraes. Brasil: Natasha Filmes, 2008


– DVD (105 min): son., color. Sem legenda. Port.

STAM, R. Teoria e prática da adaptação: da fidelidade à


intertextualidade. In: CORSEUIL, A. R. Film Beyond Boundaries.
Ilha do Desterro, n. 51, p. 19-53, jul./ dez., 2006. Disponível em:
https://periodicos.ufsc.br/index.php/desterro/article/view/
2175-8026.2006n51p19/9004. Acesso em: 08 nov. 2014.

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ASPECTOS CULTURAIS E POLÍTICOS NA TRADUÇÃO
INTERMIDIÁTICA BRIDE AND PREJUDICE,
DE GURINDER CHADHA

Autor: Priscila M. M. G. Kinoshita (UNIANDRADE)

RESUMO: Uma adaptação fílmica transcende a história e reflete a


interpretação da literatura adaptada. Para analisarmos uma obra
literária adequadamente, por sua vez, se faz necessário a compreensão
intrínseca do contexto histórico. O patriarcalismo, a sociedade machista
definida pelo interesse econômico que mediava o matrimônio e a
repressão feminina marcam a época da obra Orgulho e Preconceito de
Jane Austen. Essa problemática do período Georgiano abordado pela
escritora é traduzida para os dias atuais na adaptação fílmica de
Gurinder Chadha Bride and Prejudice e expõe a conturbada questão
social vivenciada pelas mulheres na Índia. A presente reflexão trata
de uma interface entre literatura e cinema que pretende retratar a
hibridização entre as culturas americana e indiana, expondo o que o
hipertexto carrega do hipotexto em termos culturais e como a
transposição fílmica utilizou o romance como base para concepção do
protesto social.
PALAVRAS-CHAVE: Adaptação. Patriarcalismo. Mulheres.

A pluralidade de traduções intermidiáticas de Pride and Prejudice


que nos motivou a escolher o filme Bride and Prejudice da diretora
Gurinder Chadha como objeto de estudo. Bride and Prejudice é um
filme indiano de 2004 feito na indústria cinematográfica
Bollywood e se baseia na obra de Jane Austen, Pride and Prejudice.
São múltiplas as leituras da obra: adaptações fílmicas, minisséries,
musicais, como Jane Austen’s Pride and Prejudice, The New Musical,
apresentado em Nova Yorque em 2009, revista em quadrinhos
para coleção da Marvel e até desenho animado japonês, os anime/
mangá, com versão Ouran voltado para o cenário juvenil atual.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 441


Em nosso estudo da adaptação de Pride and Prejudice
trabalharemos com os conceitos de Gérard Genette sobre relações
entre textos, presente em sua obra Palimpsests. A
hipertextualidade se refere à relação entre um texto, que Genette
nomeia de ‘’hipertexto’’, com um texto anterior, ou ‘’hipotexto’’, o
qual o primeiro transforma, modifica, elabora ou estende (STAM,
2006, p. 33).
Bride and Prejudice envolve um novo contexto, um período
histórico distinto e mudança de mídia. Adaptação, segundo Julie
Sanders, é a reinterpretação de textos em um novo contexto
genérico ou, talvez, relocações do cenário da cultura e/ou período
original do texto fonte, que pode ou não envolver uma alteração
genérica (2006, p. 19). Sobrevive em Bride and Prejudice o título
de Austen e a linha geral da trama: a jovem inteligente e
independente que não se curva à soberba do pretendente superior
economicamente. Os sinais verbais do romance original não são
evidentes para o leitor ou espectador do século XXI,
particularmente localizado num ambiente cultural totalmente
diverso. De acordo com Stam, o processo de adaptação é complicado
ainda mais pela passagem do tempo e mudança de lugar (2000, p.
57), mas, ainda para Stam (2000), um texto literário é uma
estrutura passível de ser trabalhada por contextos ilimitados.
Enxergamos a adaptação como valorização da obra
original, contrariando muitos críticos acadêmicos, que
consideram as adaptações populares contemporâneas
secundárias, derivativas, tardias, convencionais ou então
culturalmente inferiores” (NAREMORE, 2000, p.6). Virginia Woolf
exibe opinião semelhante quando diz que o cinema tinha potencial
para desenvolver um idioma próprio e independente: ‘’o cinema
tem ao seu alcance inúmeros símbolos para emoções que até
hoje não encontraram expressão nas palavras’’ (citado em
HUTCHEON, 2011, p. 22). Analisaremos, portanto, a adaptação de
Pride and Prejudice como obra de arte nova e autêntica.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 442


Dudley Andrew, diretor do Departamento de Cinema da
Universidade de Iowa, afirma que a tarefa da adaptação é
reproduzir no cinema algo essencial de um texto original (1992,
p. 31). Entendemos essência, nesse estudo, como os temas
principais de um romance que podem ser depreendidos em
diferentes adaptações, a exemplo de questões como o
patriarcalismo e a situação da mulher na sociedade.
As adaptações, segundo Stam, são meios de reinterpretar,
com os valores do presente, um texto fonte (2000, p. 57). A
compreensão dos sinais verbais não se dá sempre do mesmo modo
em contextos diferentes. Os problemas sociais depreendidos da
obra de Austen hoje, eram entendidos de diversas formas na época.
Para podermos ler Pride and Prejudice, temos de definir de onde
ele está sendo lido, caso contrário tanto o livro quanto o leitor se
perdem numa nuvem atemporal. Para Bakhtin nenhum texto está
completo sem o leitor/interlocutor que o preenche com
significados de sua posição única no tempo e no espaço (citado
em STAM, 1989, p. 17). Assim como fala Ítalo Calvino, ‘’O dia de
hoje pode ser banal e mortificante, mas é sempre um ponto em
que nos situamos para olhar para frente e para trás’’ (2002, p.
14). O estudo da adaptação parte do conjunto de valores de um
determinado sistema social sobre o ponto de vista de outro sistema
social. A evolução da sociedade fornece os pontos de vista para
análise (PAVIS, 2005, p. 196-7).
Bride and Prejudice faz uma brincadeira com o nome,
substituindo Pride por Bride, alusão ao mote do filme: as mulheres
e o matrimônio. A diretora Gurinder Chadha conserva a ideia
principal da obra original, adaptando a trama para abordar
questões sociais atuais da Índia, como ‘’um pergaminho cuja
primeira inscrição foi raspada para se traçar outra, que não a
esconde de fato, de modo que se pode lê-la por transparência, o
antigo no novo” (GENETTE, 2005, p. 5). O enredo de Bride and
Prejudice é um romance familiar patriótico, que opera a adaptação

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em dois níveis: a tradução do romance para o filme e a tradução
da cultura da classe dos gentry da Inglaterra do século XVIII para
a cultura popular indiana. Julio Plaza diz que ‘’Traduz-se aquilo
que nos interessa dentro de um projeto criativo (tradução como
arte), aquilo que em nós suscita empatia e simpatia como
primeira qualidade de sentimento [...]’’ (1987, p. 34). A adaptação
carrega essa tradução e simpatia que serão apreciadas a partir
do nosso corpus de análise. O estudo da adaptação é uma análise
do processo, ideologia e metodologia de criação (SANDERS, 2006,
p. 20). Os temas encerrados no romance se encaixam
perfeitamente com a problemática feminina atual da Índia, mas
a diferença temporal e espacial do hipotexto necessita da
‘’adequação que acomoda a transferência do cenário campestre
inglês do século XVIII para a India do século XXI’’ (MATHUR, 2007).
A performance teatral, a música, os efeitos sonoros, as imagens
e a fotografia fazem parte da transposição (GENETTE, 1997, p.11)
das palavras e ideias do hipotexto para o hipertexto.
As novas leituras renovam o significado das crises sociais
presentes no romance original, enfatizando no cinema
contemporâneo a compreensão de Jane Austen sobre o seu mundo
e sobre o caráter do ser humano. O intertexto da adaptação não
está explícito; há ‘’[...] mais precisamente, as referências a
conhecimentos anteriores que são assumidamente conhecidos”
(STAM, 2006, p. 29). Para reconhecer a alusão a Pride and Prejudice
na adaptação, se faz necessário entender ‘’o efeito de co-presença
de dois textos’’ (STAM, 2006, p. 29) no filme. Gurinder Chadha diz
que escolheu Pride and Prejudice porque sente que, duzentos anos
atrás, a Inglaterra não era diferente da Amritsar de hoje
(MATHUR, 2007). Entende-se que a afirmativa se refere à
manipulação masculina da sociedade e à Índia como ex colônia
da Inglatera, ainda em fase de desenvolvimento.
A sociedade indiana é extremamente religiosa,
culturalmente patriarcal. Princípios como respeito e obediência

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aos mais velhos e às tradições, discrição feminina e reserva
quanto a temas de cunho sexual são quase que absolutos entre a
população da Índia (BITELMAN, 2010). A cultura em relação a
mulher é bem diferente daquela do ocidente. As mulheres
representam um pesado encargo financeiro e mulheres que só
tem filhas mulheres são, muitas vezes, desprezadas por não
conseguirem ter filhos homens (SANTOS, 2007). Filhos homens
são desejados pelas famílias, pois filhas acompanham um dote
pago pelo pai da noiva quando se casam, onerando a família
(SANTOS, 2007). O único bem pertencente à mulher são as jóias
que ganha da família no dia do casamento e, caso se divorciem,
são as únicas coisas que leva consigo. Muitas vezes os casamentos
são arranjados, levando em consideração a religião e a casta da
família. Os indianos acreditam que pessoas solteiras não possuem
status social, logo as famílias insistem que seus filhos casem
cedo. As mulheres e seus direitos passam a ser propriedade do
marido quando casam, e a cultura que a mulher deve ser menos
valorizada do que o homem impera (SETTI, 2011). Como vemos,
os problemas apontados por Jane Austen são semelhantes aos
que o par amoroso enfrenta no século XXI, com impacto maior,
porém.
No contexto cultural de Bride and Prejudice, a casta das
famílias Indianas no filme são comparadas com a classe alta e
média do romance original. Os pais de Lalita Bakshi (Elizabeth
Bennet), Sr. Bakshi (Sr. Bennet) e Sra. Bakshi (Sra. Bennet)
possuem quatro filhas: Jaya (Jane), Maya (Mary), Lakhi (Lydia) e
Lalita. A Sra. Bakshi quer casar as filhas com homens ricos e
respeitáveis. O enredo do filme é semelhante ao do hipotexto:
‘’Enquanto os Bennets, Bingleys e Darcy negociam o
relacionamento entre matrimônio, dinheiro e nível social na
Inglaterra transformada pelo crescente capitalismo industrial,
os Bakshis, Balraj e Will Darcy, experimentam as mesmas tarefas

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 445


em uma Índia transformada pela globalização corporativa’’
(MATHUR, 2007).
William Darcy, o herói, chega a Amritsar com o amigo, o
Sr. Balraj (Sr. Bingley) e Kiran Balraj, irmã de Balraj, de avião.
William é americano e trabalha na rede de hotéis da família. Na
adaptação, Darcy expressa o seu desagrado com a cultura indiana,
revelando o preconceito cultural. O filme mostra as ruas
desorganizadas, vacas andando pelas ruas e um trânsito caótico,
chocando Darcy, da mesma forma que no romance o Sr. Fitzwilliam
Darcy se surpreende com os bailes da classe média.
O caráter das personagens é apresentado quando as
Bakshi se preparam para uma festa de casamento, onde Darcy e
Balraj estarão. A Sra. Bakshi é impertinente e, como no hipotexto,
envergonha sua família em várias passagens do filme, se
tornando um motivo para o preconceito de Darcy. Lakhi é
desinibida e utiliza roupas que não condizem com a cultura
indiana. Lalita se aborrece com o fato da mãe querer expô-las aos
homens, avessa à posição da mulher na sociedade.
Na festa, a Sra. Bakshi e a Sra. Lamba (Sra. Lucas)
comentam o poder aquisitivo dos recém chegados, aludindo ao
possível casamento de suas filhas. Como diz Odmark, “todos os
romances de Jane Austen resultam em casamento” (1983, p. 121,
tradução nossa), e também nessa adaptação o objetivo a ser
alcançado pela maioria dos personagens é o matrimônio. Ao
reclamar do fato de todas as mulheres da festa estarem olhando
para ele, Darcy revela ao espectador o furor feminino em arranjar
marido. Na festa, Darcy dança e se sente atraído por Lalita, mas
esnoba a cultura Indiana, introduzindo o conflito subentendido
entre identidade cultural e individual. A identidade cultural,
segundo Stuart Hall, se refere ao sentimento de pertença à uma
entidade maior, que no caso é a nação (1992, p. 49). Já a
identidade individual é relativa à relação do sujeito e a estrutura
(HALL, 1992, p. 12). A Índia foi colônia da Inglaterra durante 89

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 446


anos (1858-1947) e o embate entre Lalita e Darcy incorpora essa
discussão. Mesmo Darcy sendo americano, a questão principal
no filme é o imperialismo das culturas estrangeiras interferindo
na cultura secular da Índia. Lalita personifica a cultura indiana
e representa o trauma desse período colonial ao rispidamente
discutir com Darcy sobre questões culturais típicas. Os resquícios
culturais desse período são facilmente visualizados na influência
da cultura estrangeira sobre a cultura local. A adaptação mostra
essa interferêcia através de Kholi, da comercialização dos hotéis
de Darcy na Índia e das viagens realizadas pela família Bakshi
para a Inglaterra e depois para os Estados Unidos.
Darcy, mais tarde, terá de decidir entre aceitar uma
cultura diferente para ficar com Lalita, ou ser intolerante. A
escolha do parceiro se torna um desfilar de decisões éticas e
crítica ao comportamento. O enfoque principal, como alega
Odmark, é que o desfecho se dá somente quando a heroína e seu
parceiro percebem que se deixaram influenciar por situações
externas adversas a eles, por outras pessoas e pela própria
cegueira, o que os impediu de ficarem juntos por certo período de
tempo. As diferentes circunstâncias que levam ao trunfo final da
proposta de casamento variam com a profundidade que
determinam os problemas morais, sociais e psicológicos
enfrentados (ODMARK, 1983, p. 122).
O problema com dinheiro persiste em todas as obras de Jane
Austen e em Bride and Prejudice não é diferente. O desespero de
Sra. Bakshi em relação às filhas é compreensível quando ela
entende que uma mulher que não se casa encara uma condição
social desagradável, principalmente na cultura focalizada e por
sua família não ter propriedades, somente uma casa velha e uma
fazenda hipotecada. As mulheres eram perturbadas pelo medo de
ser um fardo para a família e ter de viver uma vida de privações.
Jane Austen, além disso, sofreu com o preconceito por escrever
e publicar seus escritos sendo mulher e com o assédio moral de

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 447


editores que não pagavam o preço devido. Jane Austen alerta sua
sobrinha Fanny sobre as dificuldades financeiras femininas:
“Mulheres solteiras tem uma terrível propensão em serem pobres
— o que é um argumento poderoso em favor do matrimônio”
(ODMARK, 1983, p. 133, tradução nossa). Esse problema fica claro
quando a Srta. Lamba aceita se casar com o Sr. Kholi (Sr. Collins)
e Wickham comenta com Lalita que nem todas as mulheres
aguentam a pressão como ela e que as pessoas fazem coisas
horríveis por dinheiro. Chandra sabia estar casando com um
homem estúpido, mas confessa ter medo de perder a chance caso
seu príncipe nunca aparecesse, o que é exatamente o conselho
que Jane Austen dá à sua sobrinha Fanny sobre não aceitar a
proposta de um pretendente rico.
A conversa entre Lalita e Darcy sobre a discrepância da
realidade financeira da Índia e dos Estados Unidos cria a primeira
discórdia de cunho moral, pois Darcy marginaliza a cultura indiana
e não parece se importar com a mão de obra barata indiana
explorada em seus hotéis de luxo. O que está exposto nesse
embate ideológico é a integridade moral comprometida pelo
capitalismo. ‘’As situações econômicas comezinhas que Jane
Austen descreve são fatos que o indivíduo deveria saber contornar
sem comprometer sua integridade moral” (ODMARK, 1983, p. 133,
tradução nossa). Está aparentemente claro o quanto dinheiro é
importante na obra; se não bastasse Jane Austen determinar
em Pride and Prejudice quanto os rapazes cobiçados ganham por
ano em valor efetivo, ela também denota claramente no decorrer
da obra quais são os sinais de uma posição social aceitável na
sociedade. “Quando a renda não é especificamente citada por Jane
Austen, então os sinais dela é: a casa , os móveis, o jardim, o
parque, o número de serviçais, a presença de carruagem”
(COPELAND, MCMASTER, 1997, p. 133, tradução nossa). Em Bride
and Prejudice, a diretora Gurinder Chadha manteve o mesmo
padrão de comentário quando o hotel de Darcy e o emprego de

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 448


advogado de Balraj são colocados em destaque, além da história
financeira de suas famílias. “Os marcadores de consumo de renda
e nível social normalmente demarcam os romances de Jane
Austen. Em cada romance, decisões de economia doméstica
definem a heroína - e o herói - em uma escala de gasto familiar
para os leitores contemporâneos” (COPELAND, MCMASTER, 1997,
p. 134, tradução nossa). Lalita, ao contrário, não se atém a
questões financeiras e Darcy, apesar de se importar com o poder
da família da noiva, irá superar essa barreira em prol da satisfação
pessoal. Não há, no entanto, uma caracterização engessada do
caráter das personagens principais e elas são moldadas no
decorrer da história de acordo com o sofrimento causado pelas
próprias imperfeições morais. Existe uma divisão de valores pelos
quais os personagens são julgados: convenções sociais e virtudes
morais (ODMARK, 1983, p. 10). A identidade cultural de Lalita
delineia a sua personagem cujas virtudes morais ‘’surge de seu
pertencimento à cultura indiana’’ (HALL, 1992, p.8), enquanto
Darcy se submete às relações de poder que participa.
Assim como Lizzy e Jane no hipotexo que conversam sobre
o baile do dia e sobre Bingley e Darcy, Balraj e Darcy comentam a
noite anterior e Darcy expõe seu preconceito à garotas indianas,
aconselhando Balraj a encontrar uma garota indiana na Inglaterra
ou nos Estados Unidos e afirma Lalita não ser seu ideal de mulher.
Darcy participa de uma festa de casamento arranjado e
critica esse método. Para ele o noivo havia terceirizado a procura
de uma noiva, pois vivia ocupado e queria algo simples,
indiretamente ofendendo Lalita ao afirmar ser a Índia um lugar
de mulheres simples. Percebe-se aqui a metatextualidade de
Gérard Genette, pois o ‘’filme tem uma relação mais difusa e não
declarada com o romance original’’ (STAM, 2006, p. 30), restando
ao espectador depreender o diálogo que Gurinder Chadha faz da
concepção de matrimônio como transação comercial e do conceito
das indianas como mulheres ignorantes com os conceitos

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apresentados por Austen no romance. Constrói-se portanto o
desentendimento que irá acompanhar o conceito sobre Darcy até
o final do filme: Lalita vê Darcy como ganancioso e preconceituoso.
Mesmo no contexto indiano, os problemas são os mesmos: o
orgulho das classes sociais, o preconceito estabelecido na
diferença cultural, relações de poder, machismo e princípios
sociais.
Jane Austen apresenta em todas as suas obras um
profundo desgosto por aqueles que se deixam influenciar pelas
forças econômicas e pelos que se curvam ao poder, seja por
necessidade ou por interesse. Assim como reflete Odmark, Jane
Austen não rejeita a sociedade por completo, mas se recusa a
aceitar os valores materiais como base ou justificação de conduta
(1983, p. 134). A personagem de Lalita se recusa a colocar os
interesses sociais acima do caráter moral, não se impressionando
com o poder econômico de Darcy.
Lalita e Darcy travam uma discussão semelhante ao
romance, focalizando a idealização da mulher e nas qualidades
que ela deve ter. No hipotexto, a Srta. Bingley descreve as
qualidades almejadas na mulher.

[...] ninguém pode ser realmente considerada como prendada


se não ultrapassa em muito o que é geralmente tido como
prendada. Uma mulher deve ter um vasto conhecimento de
música, canto, desenho, dança e dos idiomas modernos para
merecer a palavra; e, além de tudo isso, ela deve possuir um
certo quê em seu semblante e modo de caminhar, o tom de
sua voz, sua maneira de falar e em suas expressões ou a
palavra seria meio merecimento. (AUSTEN, 2000, p. 44)

Ao contrário do romance, no filme, a Srta. Balraj satiriza


Darcy ao comentar sobre as mesmas qualidades que ele considera
adequadas e Lalita enumera os defeitos dos homens em geral e
critica o preconceito de Darcy contra as mulheres e contra a

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 450


cultura indiana. A Srta. Balraj diz que as características definem
Darcy, ironizando-o novamente.
Johnny Wickham se apresenta a Lalita, conta ser filho da
babá de Darcy e empregado na rede hoteleira dele. Wickham acusa
Darcy de tê-lo demitido após a morte de seu pai. Ainda afirma
que a mãe de Darcy, Catherine Darcy, planeja casamentos
rentáveis para o filho, prática semelhante ao da Índia. Lalita,
cuja opinião é contrária à influência financeira sobre os
relacionamentos, considera Darcy hipócrita por criticar o mesmo
costume praticado por Catherine. Para Lalita é natural que os
casamentos sejam arranjados, pois é uma prática culturalmente
concebida baseada em construções históricas (CULLER, 1999, p.
49). Já para Darcy esse costume não é ideologicamente aceito,
mas indiretamente praticado, no caso, por sua mãe. As
implicações sociais dessa convenção são basicamente
financeiras, e Collins é a exemplificação desse costume em Pride
and Prejudice e Kholi em Bride and Prejudice.
Elizabeth Bennet em Pride and Prejudice personifica a
mulher ideal, simboliza o equilíbrio entre as regras sociais de
uma sociedade patriarcal e a liberdade feminina. Mesmo assim,
Lizzy não se liberta das amarras do patriarcado quando, por
exemplo, apesar de ter tomado a decisão de não se casar com
Collins, pede permissão ao pai para a sua recusa; e quando decide
casar com Darcy, novamente pede ao pai permissão; Lizzy
encontra justificativas para a atitude de Wickham, ao substituí-
la por uma pretendente mais rica. No entanto, critica Charlotte
por ter escolhido o ridículo Sr. Collins em uma situação
semelhante.
Assim também Lalita, aparentemente independente, em
Bride and Prejudice personifica a cultura da Índia, mas a
personagem continua amarrada pelo controle ideológico indiano,
manipulada como objeto de troca do patriarcado capitalista.
Embora adote a filosofia do discurso dominante como verdade

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 451


(BONNICI, 2005, p. 224), sua consciência individual contraria
padrões definidos inibidores da liberdade feminina. No filme, Lalita
necessita da proteção masculina para salvar sua irmã de
Wickham e, apesar de escolher Darcy como marido, ela, assim
como Lizzy, precisa do olhar aprovador da autoridade patriarcal.
Assim como Elizabeth é livre para opinar e tomar atitudes
espontâneas, dentro das normas sociais masculinas de
comportamento, Lalita pode fazer algumas escolhas, agir
voluntariamente, mas dentro dos padrões do patriarcalismo.
Elizabeth, ao caminhar sozinha, expressar suas opiniões
com desenvoltura para Lady Catherine e retrucar com propriedade
as investidas de Darcy, refuta o estereótipo de mulher frágil e
ignorante, moldada pelas convenções machistas de submissão.
Lalita, por sua vez, mostra a Darcy que as indianas não são
mulheres simples, tímidas e recatadas. Lalita fiscaliza a plantação
da família em um trator, direciona a parte burocrática da empresa
do pai e ainda brinca despreocupadamente de cricket (jogo inglês)
com as crianças e toca violão com um grupo de hippies na praia,
deixando transparecer mente aberta e espírito livre de
preconceitos sociais. Assim como Lizzy mantém a tradição
cultural submetendo-se aos preceitos sociais ao mesmo tempo
em que foge à regra em atitudes espontâneas, Lalita
naturalmente se diverte em uma dança típica indiana, assim
como bebe margueritas em Los Angeles. Gurinder Chadha
perpetua a dualidade conservador / liberal que Austen instituiu
no romance.
A identidade cultural de Lalita impediu que ideias,
comportamento ou cultura ocidental antinacionalista a
influenciassem, reprimindo a convenção ocidental de que as
mulheres indianas são ignorantes e maleáveis, apresentada por
Darcy. Do mesmo modo, Elizabeth contesta os conceitos de Darcy
sobre mulheres prendadas e noções rígidas de comportamento.
Lalita ao glorificar a cultura indiana, glorifica indiretamente a

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 452


sociedade patriarcal, do mesmo modo que Lizzy aprova a restrição
da liberdade feminina ao criticar as atitudes de Lydia. Sobre esse
fator Stam entende que ‘’tanto o romance como o filme são
expressões comunicativas situadas socialmente e moldadas
historicamente’’ (2006, p. 24), cada um evidenciando seu período
histórico e as dificuldades existentes. A adaptação cunhou na
sua abordagem o que representa, na época, a crítica de Austen.
De acordo com Gary Kelly, Austen parece utilizar a ideia do
Anglicanismo, sobre a recompensa do pecador que se redime por
vontade própria e pela graça do Espírito Santo. As heroínas são
falíveis, cometem erros, mas como possuem bom coração, quando
descobrem a verdade se arrependem e recebem a benção de um
próspero casamento, a segurança de uma casa e a sorte de se
casar por amor (COPELAND, E. & MCMASTER, J, 1997, p. 165).
Logo, o erro de Lalita é acreditar cegamente em Wickham e deixar
seu orgulho distorcer as palavras de Darcy causando um
desentendimento. Lalita passa por um processo de conhecimento
quando seus julgamentos a respeito de Darcy revelam-se falsos
(ODMARK, 1983, p. 43).
Kholi (Sr. Collins) é da família, rico, mora na Califórnia e
vai à Índia com o intuito de arranjar uma noiva, pois as indianas
têm valores familiares tradicionais, o que, no caso da Índia, se
refere às regras do patriarcalismo, enquanto as americanas são
muito ‘’sinceras e determinadas’’, qualidades consideradas
nocivas para o matrimônio. Kholi se refere a um ditado popular
indiano: “Não há vida sem uma esposa” (tradução nossa), aludindo
ao fato de pessoas solteiras, na Índia, não terem vida social e
status. Chadha adiciona uma crítica social subjacente à fala da
Sra. Bakshi que, com a intenção de agradar Kholi, aconselha as
filhas a não falarem muito e nada muito inteligente.
Kholi é tão impertinente quanto o Sr. Collins e apresenta
seus dotes financeiros para conquistar o interesse de suas
pretendentes. Assim como Collins, ele detalha a magnificência

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 453


e o valor de sua residência, conceituando o poder econômico
masculino como fator principal da decisão conjugal das mulheres.
Judith Butler afirma que ‘’aquilo que tomamos por causa ou origem
da opressão é na verdade a marca imposta pelo opressor’’ (1990,
p. 49). Como as mulheres indianas são oprimidas pela restrição
financeira imposta, é o quesito econômico que, a priori, as
libertaria dessa necessidade, e é a relação de poder que controla
a procura por homens ricos. Ele enfatiza o potencial econômico
dos Estados Unidos, menosprezando a imagem da Índia e dos
indianos. Kholi é o indiano americanizado, sendo os Estados
Unidos a Lady Catherine de Bourgh benfeitora que o enriqueceu.
A relação de nacionalidade de Darcy no filme corresponde à relação
familiar com Lady Bourgh no romance. O Sr. Kholi é
extremamente ridicularizado na adaptação justamente por não
possuir nacionalidade definida e não pertencer a nenhuma
cultura, não ter identidade cultural definida. Ele não possui
comportamento cultural condizente com suas raízes e suas
atitudes são exageradas pelo personagem para ironizar esse fator.
Os indianos tem o costume de comer com a mão, mas ele come
de forma extremamente nojenta até para a própria cultura.
Lalita descobre que Wickham fugiu com Lakhi e a secreta
transação financeira que salva Lydia da vergonha pública é
traduzida pelo confronto público ente Darcy e Wickham. A câmera
enquadra a briga entre Darcy e Wickham contra a tela do cinema,
definindo Darcy como herói salvador da donzela, e recebe os
aplausos da platéia.
Darcy entende seus julgamentos errados e a superação de
seus preconceitos contra a cultura indiana é simbolizada pela
adesão aos costumes da Índia: no dia do casamento, apresenta-
se em trajes indianos e montado em um elefante.
O final feliz, assim como em Pride and Prejudice, mascara
superficialmente a inescapável sujeição feminina ao patriarcado,
simbolizado pelo olhar inquiridor de Darcy ao Sr. Bakshi, ao pedir

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 454


a mão de Lalita. Judith Butler comenta que a ‘’patrilinearidade é
garantida pela expulsão ritualística das mulheres e,
reciprocamente, pela importação ritualística de mulheres’’ (2008,
p. 68). Com o ritual do casamento, o pai entrega sua filha para
outro homem tomar posse, perpetuando o termo relacional entre
grupos de homens, no qual a mulher é a moeda de troca.
Bride and Prejudice de Gurinder Chadha adaptou o romance
à cultura indiana do século XXI e congregou discursos que
englobam uma grande soma de problemas sociais e a
intertextualidade desses discursos possibilitaram posicionar Jane
Austen em nosso tempo, exemplificando claramente a restrição
feminina que rege aquela sociedade patriarcal. O discurso
etnocêntrico repressivo indiano focalizou a problemática do
romance exaltando seu viés de protesto e desabafo.

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ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 457


AS PRÁTICAS SUBVERSIVAS DE GÊNERO:
UMA ANÁLISE QUEER DO FILME BREAKFAST ON PLUTO

Autor: Rafael Alves de Almeida (UTFPR)


Orientadora: Profa. Dra. Gisele Giandoni Wolkoff (UTFPR)

RESUMO: Este trabalho tem por objetivo fazer uma leitura da narrativa
cinematográfica Breakfast on Pluto no que se refere à representação
de estereótipos de gênero, bem como suas desconstruções, na medida
em que a personagem Kitten – uma figura em constante conflito e
transição – vai moldando sua própria identidade ao longo da obra. Dessa
forma, esta leitura insere a adaptação fílmica no debate contemporâneo
sobre identidade, gênero e sexualidade; campos que estão em
constantes dinâmicas sociais. Neste filme, tais dinâmicas se dispõem
enquanto elementos que se complementam na construção de sentido
em diferentes níveis; tanto do contexto histórico-social, quanto na
jornada íntima da protagonista em busca de suas raízes, identidade e
liberdade. Jornada esta que resultará na incorporação de práticas
subversivas, como as inscritas nos estudos queer das teóricas Judith
Butler e Guacira Lopes Louro, as quais nortearão a presente análise.
PALAVRAS-CHAVE: Breakfast on pluto. Estudos queer. Estudos de gênero.
Análise.

Introdução
Este trabalho tem por objetivo fazer uma leitura da
narrativa cinematográfica Breakfast on Pluto no que se refere à
representação de estereótipos de gênero, bem como suas
desconstruções, na medida em que a personagem Kitten – uma
figura em constante conflito e transição – vai moldando sua própria
identidade ao longo da obra. Dessa forma, esta leitura insere a
adaptação fílmica no debate contemporâneo sobre identidade,
gênero e sexualidade; campos que estão em constantes dinâmicas
sociais. Neste filme, tais dinâmicas se dispõem enquanto
elementos que se complementam na construção de sentido em

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 458


diferentes níveis; tanto do contexto histórico-social, quanto na
jornada íntima da protagonista em busca de suas raízes,
identidade e liberdade. Jornada esta que resultará na incorporação
de práticas subversivas de gênero.
Para tanto, é importante que se contextualize esta teoria
para que seja possível conduzir esta análise. Segundo Louro (2006,
p. 96):

“Queer é tudo isso: é estranho, raro, esquisito. Queer é,


também, o sujeito da sexualidade desviante- homossexuais,
bissexuais, transexuais, travestis, drags. É o excêntrico que
não deseja ser integrado e muito menos tolerado. Queer é um
jeito de pensar e de ser que não aspira ao centro e nem o quer
como referencias; um jeito de pensar que desafia as normas
regulatórias da sociedade, que assume o desconforto da
ambiguidade, do entre lugares, do indecidível. Queer é um corpo
estranho que incomoda perturba, provoca e fascina”. Louro deixa
claro, a ideia da teoria queer como uma concepção inovadora e
perspicaz que traz pensamentos e ideologias diversificados e
problematizadores. Destacando também, o fato de ser uma
representação de uma minoria excluída que não almeja a
permanência de uma sociedade centralizadora e normatizante,
pois busca em seu excentrismo, liberdade, ativismo,
provocações e desafios. E por ser inovadora, desviante,
pervertida e rara, traz o estranhamento e a repulsa daqueles
que se autodenominam “normais”.

Desta forma, a teoria surge com um objetivo político de


ressignificar, atribuindo um valor positivo, a um termo pejorativo
em Língua Inglesa direcionado àqueles corpos e identidades
subversivas que a sociedade não consegue enquadrar em seus
padrões cisgênero (quem se identifica com o gênero que lhe foi
designado ao nascer) e heteronormativos, onde podemos
identificar a personagem Patricia Kitten Braden de Breakfast on
Pluto que desde sua infância apresenta um comportamento que

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 459


foge do estereótipo padrão de masculinidade imposto pela
sociedade àqueles que nascem com uma anatomia possuidora
da projeção fálica proveniente da estrutura cromossomática XY.
Como um corpo abjeto que vaga sob as sombras das
construções sociais de signos, é importante ressaltar que aqueles
que fogem ao padrão são categorizados a fim de distinguir-se deste
outro que me é esquisito, patologizar e retaliar socialmente.

A obra enquanto instrumento de desconstrução


Este filme, então, parece querer, através de sua linguagem
e de forma bem criativa, desconstruir conceitos, para então
reconstruí-los como uma forma de garantir e legitimar formações
discursivo-ideológicas para além do que é estabelecido pelo que
já é senso comum.

Quanto à ideia de ruptura e desacordo, é importante salientar


o ideal de desconstrução promulgado por Jaques Derrida, pois
se luta contra um construtivismo social vigente, determinado
pelas normas e regras quanto aos estudos de gêneros e sexuais.
Portanto, é necessária uma análise desconstrutivista para
garantir a diversidade existente na sociedade contemporânea.
(MIRANDA e GARCIA, 2012, p. 5)

Dessa forma, a primeira instituição que a obra se irá propor


desconstruir é a própria família, sendo esta a principal responsável
por garantir a manutenção da hereditariedade sociocultural, a
qual garante que indivíduos internalizem valores e reproduzam
papéis sociais, principalmente quanto aqueles desempenhados
pelos dois gêneros legitimados pela sociedade, feminino e
masculino.
A relação da qual Kitten nasce é clandestina e
desestruturada, entre padre Liam e Eily Bergin, e a qual resultará
em seu primeiro abandono por parte de sua mãe na porta do padre
Liam, que por sua vez, numa viela mal iluminada durante o dia -

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 460


reforçando o status clandestino daquela operação - entrega a
criança aos cuidados de outra mulher que a violentará simbólica
e fisicamente de forma sistemática. Estas violências são
perceptíveis na cena em que ela encontra Kitten vestindo seus
sapatos e utilizando o vestido da irmã adotiva e depois o leva ao
banho. Ela esfrega forte as costas de Kitten, como se tentasse
higienizar seu corpo e sua subjetividade enquanto sua irmã grita
histericamente para sua mãe a bater forte com a escova. E através
da repetição de sua fala - I am boy, not a girl - ela o tenta convencer
sobre o seu gênero. Detalhe interessante o da repetição, e sobre
qual Judith Butler (apud LOURO, 2001, p. 548) diz:

que as sociedades constroem normas que regulam e


materializam o sexo dos sujeitos e que essas “normas
regulatórias” precisam ser constantemente repetidas e
reiteradas para que tal materialização se concretize. Contudo,
ela acentua que “os corpos não se conformam, nunca,
completamente, às normas pelas quais sua materialização é
imposta.

Subvertendo o corpo, a ordem na busca pela identidade


É possível dizer que existe uma inadequação do eu subjetivo
com o eu social que é exigido ser; portanto a protagonista vai se
moldando e deixa-se moldar ao desnaturalizar o feminino
enquanto gênero por começar a inscrever marcas que subvertem
a ordem socialmente estabelecida sobre o seu próprio corpo e sobre
seu gênero. Este corpo que representa um altar de significação
daquela em quem Kitten constituíra-se por dentro, em sua alma,
que para Butler (2003, p. 193) é aquilo que precisamente falta ao
corpo, pois o corpo é uma “falta significante”, em outras palavras,
o corpo inscrito significa aquilo que compõe a nossa alma, nosso
interior, a nossa identidade transcodificada e significada daquilo
que não se pode mostrar diretamente. “Nos termos de Foucault, a
alma não é aprisionada pelo ou dentro do corpo, como sugeririam

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 461


algumas imagens cristãs, mas ‘a alma é a prisão do corpo’”
(BUTLER, 2003, p. 193).
A construção identitária de Kitten está diretamente ligada
a busca pela sua mãe. Neste trajeto, surge, através do pai de seu
amigo Lawrence, uma comparação física com a atriz Mitzi Gaynor.
Esta comparação ficará gravada na memória da protagonista e
que servirá para que ela comece a formar uma imagem de quem
era sua mãe. Entretanto, a criatividade de Patricia nos
proporcionará uma cena curiosa na qual, na aula de literatura,
ao escrever a estória de como sua mãe, Eily Bergen, e o seu pai,
Padre Liam, se conheceram, e de como aquilo teria acarretado
no roubo de sua inocência, através de um suposto estupro. O
interessante de se analisar neste momento é a forma como eles
estão performando não os personagens que são na obra; na verdade
eles, na imaginação de Kitten, transformaram-se em
representações do estereótipo masculino e feminino na sociedade,
na qual Padre Liam assume o papel de um sujeito em quem o
instinto sexual e malicioso predomina, em contraste a Eily, que
além de incorporar uma ingenuidade exacerbada atua como se
estivesse num filme da década de 1950 estrelado por Mitzi Gaynor.
Desta forma, percebemos que Gaynor não é apenas uma estrela
admirada por Kitten, devido a semelhança física com sua mãe,
mas que também carrega inscrito em seu corpo os signos
máximos de feminilidade impostos ao corpo do sujeito socialmente
lido como mulher.
A partir disso, percebe-se que essa construção da imagem
de sua mãe e essa incessante busca para reencontrá-la se revela
como a construção e a busca de si próprio, de sua própria
identidade. A representação mental que ela faz de sua mãe é o
seu próprio espelho; em quem ela própria está se transformando.
A formação da sua identidade está em constante trânsito,
se pensarmos que a forma como ela se autoafirma e externaliza
seu gênero através de signos não verbais, como é possível observar

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 462


em diferentes momentos da narrativa, revela seu nível de
identificação pessoal com o gênero feminino.
Na inocência de sua infância, através das brincadeiras,
nas quais experimenta a utilização de vestimentas e acessórios
associados ao gênero feminino; como no episódio anteriormente
descrito em que sua mãe a encontra e outro em que simula um
desfile com seus amigos.
Na adolescência, percebe-se sua voz mais fina em relação
ao que socialmente espera-se de meninos, o uso social de
vestimentas e cosméticos, signos atribuídos ao feminino; durante
sua estadia na escola católica, ela pede para participar das
disciplinas de Economia Doméstica e Costura reservadas ao
público feminino daquela instituição ao invés de Educação Física,
revelando seu desejo em ocupar os espaços reservados às
mulheres.
No seu contexto escolar, ainda, há uma cena particular que
chama atenção. Durante uma intervenção do Diretor Peepers
Egan a respeito das transformações físicas que os estudantes
estão passando naquela fase, é pedido que eles escrevam suas
dúvidas num papel e depositem numa urna, para que então o
corpo eclesiástico possa ajudar os jovens neste período conturbado,
afinal “eles estão lá para isso”, segundo diz o próprio diretor. Fato
que não se concretiza com Kitten que, em seu desejo de ser
atendida e em sua inocência – ou o que se vai sobrando dela –
resolve perguntar em seu papel se sabiam onde se fazia uma boa
operação de “mudança de sexo” (sic). Diferentemente de sua outra
punição pela criação de uma estória obscena, episódio no qual é
levada pelas orelhas ao passo que faz comentários jocosos, desta
vez ela não parece brincar. Desta forma, começa-se a perceber a
real condição da protagonista, não relacionada diretamente a sua
orientação sexual, mas sim a sua identidade de gênero.
Um outro aspecto a ser analisado neste episódio, e que
ocupa lugar central na vida do indivíduo que ousa subverter os

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 463


papeis tanto de gênero, como sexual, é a elevada repressão das
instituições reguladoras que tem por objetivo manter a submissão
dos corpos à ideologia dominante para, assim, manter a ordem
na qual a sociedade está organizada. Como nos diz Foucault (2009)
a Igreja Católica reduz ao nível da linguagem tudo o que diz
respeito ao sexo como uma forma de dominá-lo com maior eficácia.
A circulação deste discurso foi rigidamente controlada, sendo
incentivado apenas e unicamente à confissão, para que a igreja,
como nos é visível no filme, pudesse oferecer a penitência, como
uma forma de controle sobre as mentes e os corpos para que assim
se mantenham as estruturas de poder estabelecidas na sociedade
e a sua ordem, que garantem a distribuição dos bens econômicos
e culturais, ad nauseum.
A fase “adulta” de Patricia, que aqui considero a partir de
sua fuga de casa, depois de ser fortemente repreendida por sua
mãe, pois sua atitude no colégio resultou numa advertência, da
qual a preocupação era a vergonha da repercussão que aquilo
teria na cidade; sendo até chamada de “creature” pela sua irmã
adotiva quando ela renega seu abraço. “Oh figgy boogles. What’s
the point? That’s it, I’ve tried my best. I’m off” - é a fala anterior a
sua saída, revelando esgotamento daquela realidade repressiva
na qual vivera por tantos anos e na qual, provavelmente, só era
tolerado pois significava mais um meio de subsistência através
do dinheiro que Padre Liam enviava anonimamente à sua família
adotiva. Ela era uma marginal, uma estranha dentro de sua
própria casa.
É nesta fase adulta que sua expressão de gênero se
acentua e a sua sexualidade se aflora ao encontrar Billy, seu
primeiro e intenso amor.
Kitten ainda se conserva como uma figura andrógina
aquém de um binarismo de gênero que a materialidade
performativa dela desconstrói. E é através da arte que Kitten terá
sua primeira aparição transicionada em termos de indumentária,

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 464


em um dos shows da banda de rock irlandesa Billy Hatcher and the
Mohawks, na qual ela aparenta ter seu momento Yoko Ono,
subindo ao palco e cantando romanticamente com o vocalista
numa “Associação de Bem-Estar de Prisioneiros Republicanos”.
A banda e o público percebendo a íntima relação entre os dois -
sendo que um deles era esse corpo estranho que transgride as
regras de gênero e assume a posição social feminina - rejeita a
performance, episódio que proporciona mais uma exclusão para
a lista da protagonista. E então Kitten é convidada por Billy Hatcher
a se retirar da banda, oferecendo em troca um lugar para ficar,
onde Hatcher estabelecia sua relação obscura com membros do
IRA, para quem guardava armas. A subversão de Kitten a faz
desafiar a guerra e a morte. Morte esta que também a rejeita
através da fala dos membros do IRA furiosos com o sumiço das
armas: “Just do it, I’ve nothing left to live for in this stupid, serious
world” – diz Kitten. “He’s not Worth the bullet, the mental nancy” –
respondem os dois membros do Exército Republicano Irlandês.
Neste espaço de forças opressoras e tensões políticas a
protagonista se mostra como um símbolo de resistência às
imposições, as quais em seu corpo desmantela e transgride,
oferecendo possibilidades de ser e pertencer, rompendo com os
binarismos: homem/mulher; Irlanda do Sul/Irlanda do Norte;
centro/margem; católicos/protestantes. Ela oferece o intermédio,
a área cinzenta entre dois extremos e o conceito de deixa-se ser
e estar, ao contrário de “seja/esteja”.

As praticas subversivas de gênero como metonímia das tensões


políticas irlandesas
Kitten apesar de ser da Irlanda do Sul, uma Irlanda
Católica, conservadora, nacionalista. Visto que seu pai é um Padre
da Igreja Católica, e sua mãe uma cidadã comum, a protagonista
é, também, desde o nascimento, filha da subversão de ordens e
regras socialmente impostas aos corpos e a construção do eu.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 465


É interessante notar que a pequena cidade numa zona
fronteiriça na qual ela é criada, é um local de conflitos, de
incertezas e tensões. Este contexto representa o estado de alma
da própria protagonista. O que afetará seu sentimento de
pertencimento e sua identidade enquanto um corpo abjeto meio
às violências simbólicas e físicas direcionadas ao que ela é em
termos de gênero e nacionalidade. Sente-se ela uma estrangeira
naquele local e em seu próprio corpo. Em consequência, sua
diáspora torna-se incontornável, em busca de sua mãe, que
representa sua própria identidade, como já dito anteriormente, e
de seu local no mundo. Talvez o episódio que melhor represente
esta face da história seja o da explosão da boate e os eventos
subsequentes.
Nesta boate, já em Londres, cheia de soldados britânicos
Kitten parece ter se assimilado mais ao gênero feminino e é lida
como mulher a partir dos signos dispostos sobre seu corpo. Um
que se aproxima agressivamente para flertar, e ao perceber que
não se trata de uma mulher cisgênero, a rejeita – a constante
que se repete em praticamente todos os espaços. Então avista
um dos soldados, que a paga uma bebida e se aproxima para
conversar. “Fucking Ulster” é a resposta do soldado, quando
questionado onde teria sido sua última missão. Contudo, ao
perceber tratar-se de uma Irlandesa, levanta-se um clima de
tensão e diz que não tem nada contra a mentalidade irlandesa.
Para tentar contornar a situação, através de sua inventividade
sem fim, Kitten finge não ser irlandesa: “I heard they’re very
frindly”. Ele a responde: “Don’t know. Maybe. “It’s the Politians what
fuck it up, though, isn’t it?” - ideia que se repete, pelo menos, em
outros dois episódios na obra. Aqui Kitten, embora tente distanciar-
se de sua terra, ela conserva sua simpatia pelas pessoas de lá.
Pelo olhar simbólico, há duas forças opressoras operando por trás
dessas personagens nesta cena.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 466


A conexão inevitável de Kitten com a Irlanda católica, e o
soldado como figura representando o poder colonial britânico.
Ambos, juntos, subvertem em si a ordem patriarcal e política
dessas duas nações em conflito, mas que ali se encontram e se
tocam com a doçura de um corpo livre e de um corpo que se deixa
libertar. Toda a tensão simbólica por trás deste momento acaba
com a explosão de uma bomba, da qual Kitten é a primeira
suspeita. Primeiro por ser Irlandesa e segundo por ser identificada
como uma travesti. Aquele corpo que não pertence a nenhum
lugar, à nenhuma cultura.
Os jornais a exotificam e a acusam como a responsável
pelo atentado terrorista: “Lady Killer”, “Killer Queen”, “Sweet Smile
of Cross-Dressing Killer” – aparem as manchetes de jornais,
enquanto é torturada e interrogada pela polícia. Sua prisão pode
ser concebida como uma forma de conter o perigo tanto do
estrangeiro inimigo e intruso, quanto do perigo que representa a
liberdade do seu corpo e de sua alma às convenções de gênero e
sexualidade estabelecidos pela sociedade patriarcal.
Este perigo que ela parece representar ao mundo dos
homens, materializa-se em um de seus momentos de momentos
de fuga da realidade, em que ela assume ser uma agente secreta
trabalhando disfarçada para desfazer uma célula do exército
republicano irlandês, sendo o exército a instituição que
representa signo máximo do poder masculino, da força, da
objetividade e da violência, segundo nos faz acreditar a sociedade.
E então, vestida numa roupa de couro e munida de um perfume
Channel número cinco – signos relacionados ao feminino – ela
acaba por deter todos os homens que a tentam confrontar e que
reagem violentamente em relação àquela figura excêntrica - e
por isso intrusa - no meio social.
A Inglaterra é o lugar em que Kitten que além de ser
marginalizada por conta de sua expressão de gênero e sexualidade,
também a exclui por ser Irlandesa. Ela é usada para escárnio do

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 467


público, quase assassinada e salva pelo seu perfume, antes mesmo
de ter o seu delírio, além de suspeita de crime, presa, torturada,
apenas por ser Irlandesa. É arrastada para a prostituição, pois
segundo a própria, quando perguntada por que não arruma um
emprego regular: “Well, to tell you the truth, Inspector, I’m not that
employable”. Para então ser levada a um estabelecimento
regularizado, onde se encontram outras meninas irlandesas.
Emprego que também a obriga a se alinhar definitivamente aos
padrões de gênero feminino, já que para conseguir o dinheiro
necessário para sua sobrevivência, os homens que frequentavam
aquele local precisavam vê-la como mulher cisgênera e
preferencialmente nos padrões de beleza hegemônicos. Sua
condição de Irlandesa e transexual a coloca numa posição de
subalternidade e transformam-se num fator de dupla exclusão
social.

Considerações finais
Kitten é o sujeito em constante transição, aquela que
representa a subversão das ordens de gênero de uma sociedade
patriarcal. Ela não pertence, seja as convenções sociais, nem ao
seu local de origem, embora terceiros tentem reivindica-los por
ela. É uma personagem que se apropria de signos e a partir de
possibilidades dentro das próprias normas regulatórias, produz
um corpo que não se ajusta. Um sujeito abjeto, porém,
indispensável, visto que ela fornece o limite e a fronteira, aquilo
que está aquém do entendimento dentro de uma cultura
patriarcal; a possibilidade de transitar.
Ao nível das tensões políticas, a identidade de gênero da
personagem e sua nacionalidade são fatores que fazem com que
a coloquem numa posição de marginalidade, sendo no filme esses
dois traços metonímicos, realidades que compartilham no contexto
sócio-histórico.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 468


Breakfast on Pluto é uma obra queer por excelência, a qual
significa em seu corpo discursive a insubmissão e desconstrução
aos discursos hegemônicos quando o que está em jogo é nossa
liberdade, identidade

Referências

BUTLER, J. Problemas de gênero. Rio de Janeiro, Civilização


Brasileira, 2003.

LOURO, G. L. Teoria queer: uma política pós-identitária para a


educação. Revista Estudos Feministas, Florianópolis , v. 9, n. 2, p.
541-553, 2001. Disponível em: <http://www.scielo.br/
scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
026X2001000200012&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 14 de Junho
de 2015.

LOURO, G. L. Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria


queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.

MIRANDA, O. C. e GARCIA, P. C. A Teoria Queer como


representação da cultura de uma minoria. In: Encontro Baiano de
Estudos em Cultura, III, 2012, Universidade Federal do Recôncavo
da Bahia, (Anais), Cachoeira, 2012. Disponível em: <http://
www3.ufrb.edu.br/ebecult/wp-content/uploads/2012/04/A-
teoria-queer-como-representaçao-da-cultura-de-uma-
minoria.pdf>. Disponível em: 13 de junho de 2015.

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O RETRATO DE DORIAN GRAY NA MONTAGEM DE MACBETH
(2012) POR GABRIEL VILLELA

Autora: Rebeca Pinheiro Queluz (UFPR)


Orientadora: Profa. Dra. Célia Arns de Miranda (UFPR)

RESUMO: Este artigo objetiva analisar o diálogo intertextual que é


estabelecido na adaptação de Macbeth (2012), dirigida por Gabriel Villela,
com O retrato de Dorian Gray (1890), de Oscar Wilde. Na montagem de
Villela é colocado em cena um enigmático artefato (uma espécie de
caixa sobre rodas que se transforma numa moldura com a projeção de
um ser humano transfigurado) que está encoberto e só é revelado na
cena em que Lady Macbeth aparece pela primeira vez. Através deste
objeto, Villela potencializa o processo de deterioração do protagonista
e a reviravolta nos rumos do seu destino. O quadro é acrescido de
significado se interpretado como uma referência intertextual com o
romance de Wilde. Além de firmar um elo entre Macbeth e Lady
Macbeth, o artefato instaura uma conexão com as transformações que
ocorrerão em suas almas tornando-se um reflexo das maldades que
são cometidas pelo casal.
PALAVRAS-CHAVE: Macbeth. Villela. Intertextualidade. Dorian Gray.

Este trabalho faz parte da pesquisa de mestrado da autora


sobre a encenação de Macbeth (2012) protagonizada por Marcello
Antony e Claudio Fontana. Seu objetivo é propor uma reflexão
sobre o diálogo intertextual que é estabelecido nesta adaptação
dirigida por Gabriel Villela, cuja estreia se deu em 2012 no Teatro
Vivo em São Paulo, com o romance O retrato de Dorian Gray (1890),
de Oscar Wilde. Para a análise foram utilizados, além da novela
de Wilde, uma gravação em formato de DVD, a tradução de Marcos
Daud e o texto do espetáculo fornecidos pela produção de Macbeth.
Nosso estudo compartilha os pressupostos teóricos de Kristeva
(1974), Barthes (1998), Bakhtin (2003), entre outros. Tanto Wilde
como Villela propõem em suas obras uma reflexão em torno dos

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 470


binômios vida e arte, realidade e ficção, entre aquilo que é ou
não é, entre a aparência e a realidade. O primeiro realiza esse
feito através de um quadro que deveria representar um homem,
enaltecendo sua aparência física, mas que na realidade funciona
como um espelho de sua alma; revela a verdade, a essência, a
feiura e a decadência do mesmo a ponto de o indivíduo escondê-lo
das pessoas com quem convive no sótão de sua casa. Esse homem,
que deveria ser real, é uma ficção, a beleza aparente, superficial.
Coloca-se em questão o conceito de realidade, de real. Villela, por
sua vez, através de um diálogo intertextual, insere uma obra de
arte dentro de uma ficção, reforçando a ideia da decadência da
alma de Macbeth e de sua esposa, das máscaras que as pessoas
utilizam na frente umas das outras e propondo um esfacelamento
da fronteira entre vida e arte. Inicialmente, serão realizadas
algumas breves considerações sobre o conceito de
intertextualidade. Em seguida, analisaremos o uso que Villela
faz da moldura/quadro e de como ela pode ser interpretada à luz
do romance de Wilde.
A noção de intertextualidade está relacionada à interação
entre, pelo menos, dois textos – tomados aqui em sentido
abrangente como toda produção cultural com base na linguagem,
podendo ser, por exemplo, uma imagem, uma pintura, uma peça,
quadrinhos –, que se entrecruzam, ressignificando o que já foi
dito. Ingedore Villaça Koch afirma que a intertextualidade diz
respeito “aos modos como a produção e recepção de um texto
dependem do conhecimento que se tenha de outros textos com os
quais ele, de alguma forma, se relaciona” (KOCH, 2005, p. 60). A
autora também assinala que todo texto é um objeto heterogêneo
que aponta relações com outros textos que lhe dão origem, que o
predeterminam, com os quais dialoga. Logo, um texto retoma
outros textos, faz alusões, oposições, ou mesmo homenagens.
Nessa mesma linha, Célia Arns de Miranda, em um artigo
intitulado “O entrelaçamento textual no pós-modernismo”, sugere

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 471


que um texto se constitui “enquanto um conjunto de relações
múltiplas, refletindo e questionando na sua própria imanência
os outros textos, discursos e influências por ele incorporados e
nele reestruturados” (MIRANDA, 2005, p. 143). Dessa forma, ele
abre espaço para o diálogo com inúmeras outras obras, oferecendo
uma visão do mundo multifacetada e caleidoscópica. A autora, ao
mencionar o caráter autorreflexivo da literatura e, de modo mais
amplo, da obra de arte, mostra como o significado de uma obra se
estabelece por meio de sua relação com outros textos, ou ainda,
com a tradição literária existente.
Mikhail Bakhtin, teórico da língua e da literatura,
considerado um dos principais pensadores do século XX, preocupa-
se em apontar o quanto a linguagem é dialógica, mostrando como
uma obra remete a outras obras, estabelecendo elos de uma
interminável corrente. Conforme Ricardo Zani, para Bakhtin, “a
noção de que um texto não subexiste sem o outro, quer como
uma forma de atração ou de rejeição, permite que ocorra um
diálogo entre duas ou mais vozes, entre dois ou mais discursos”
(ZANI, 2003, p. 2). É uma escrita na qual se lê o outro, na qual se
detecta o discurso do outro.
Segundo Bakhtin,

cada enunciado é pleno de ecos e ressonâncias de outros


enunciados com os quais está ligado pela identidade da esfera
de comunicação discursiva. Cada enunciado deve ser visto antes
de tudo como uma resposta aos enunciados precedentes de um
determinado campo (aqui concebemos a palavra “resposta” no
sentido mais amplo): ela os rejeita, confirma, completa, baseia-
se neles, subentende-os como conhecidos, de certo modo os
leva em conta. Porque o enunciado ocupa uma posição definida
em uma dada esfera da comunicação, em uma dada questão,
em um dado assunto, etc. (BAKHTIN, 2003, p. 297)

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 472


Assim, como salienta Andrea Cristiane Kahmann,
Bakhtin considera que “o processo de leitura não pode ser
concebido desvinculado da noção de intertexto, já que o princípio
dialógico permeia a linguagem e confere sentido ao discurso,
elaborado sempre a partir de uma multiplicidade de outros textos”
(KAHMANN, 2004).
A partir das ideias de Bakhtin sobre polifonia, dialogismo
e carnavalização, Julia Kristeva desenvolve seu conceito de
intertextualidade. A autora afirma que “todo texto se constrói como
mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de
um outro texto” (KRISTEVA, 1974, p. 64). Ou seja, nenhum texto é
original, neutro ou puro, porque sempre vai remeter a outros
textos. Antonio Carlos Rodrigues de Freitas assinala que “o
escritor apela para a sua memória discursiva e traz à tona
enunciados que já tenha ouvido ou lido antes e, a partir daí, ele
constrói o seu texto” (FREITAS, 2011, p. 28). A partir desses
enunciados e dessa bagagem cultural é que o escritor
desenvolverá a sua escrita e o seu estilo. E é nesse sentido que
ele poderá ser entendido como original; pela forma como moldou,
como aproveitou e como ressignificou o que já havia sido dito ou
escrito antes. De acordo com Kahmann, para Kristeva, “a
intertextualidade é um fenômeno que se encontra na base do
próprio texto literário, imbricada com a inserção deste num
múltiplo conjunto de práticas sociais relevantes” (KAHMANN,
2004). Decorrente dessa afirmação, a noção de texto passa a ser
entendida como um evento situado na história e na sociedade.
Tal evento, mais do que refletir uma situação, é a própria situação,
“apagando linhas divisórias entre as disciplinas e constituindo
um cruzamento entre diferentes superfícies textuais e distintas
áreas do saber científico e da esfera artística” (KAHMANN, 2004).
Outro teórico que trabalha com a intertextualidade é
Roland Barthes. Ao contestar a noção de originalidade e de
autoridade autoral, o autor defende que um texto

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 473


é feito de escrituras múltiplas, oriundas de várias culturas e
que entram umas com as outras em diálogo, em paródia, em
contestação; mas há um lugar onde essa multiplicidade se
reúne, e esse lugar não é o autor, como se disse até o presente,
é o leitor: o leitor é o espaço mesmo onde se inscrevem, sem
que nenhuma se perca, todas as citações de que é feita uma
escritura; a unidade do texto não está em sua origem, mas no
seu destino, mas esse destino não pode mais ser pessoal: o
leitor é um homem sem história, sem biografia, sem psicologia;
ele é apenas esse alguém que mantém reunidos em um único
campo todos os traços de que é constituído o escrito. (BARTHES,
1998, p. 70)

Como explica Célia Arns de Miranda, “Barthes, ao destacar


o pressuposto que coloca o autor/emissor como o único detentor
do sentido final e autorizado do texto, destaca o papel do leitor/
receptor dentro das inter-relações que constituem parte relevante
do contexto discursivo” (MIRANDA, 2005, p. 147). Nesse sentido, o
leitor é considerado o ativador dessa rede intertextual. Segundo
Barthes, nenhum texto pode ser considerado original, porque ele
só ganha sentido e importância como parte de discursos
anteriores. Igualmente, “o texto atual mantém uma relação de
reciprocidade (de diálogo) com o passado e com o futuro,
caracterizando-se como uma forma de entrelaçamento perpétuo”
(MIRANDA, 2005, p. 147).
A partir desses pressupostos, é possível estabelecer, na
encenação de Macbeth por Villela, diálogos com diferentes obras
e tradições, desde referências a outras peças shakespearianas
(como Henrique V), passando pela mitologia greco-romana das
moiras e das parcas, pela tradição das gueixas no Japão até o
trabalho de diretores como Antunes Filho e Akira Kurosawa. A
percepção dessas relações intertextuais certamente enriquece
e acrescenta novos significados e significações à tragédia

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 474


escocesa. Neste artigo nos limitaremos à análise do diálogo que
o diretor cria com o romance de Oscar Wilde.
Desde o início da encenação de Villela é colocado em cena
um enigmático artefato: uma espécie de caixa sobre rodas que
se transforma numa moldura ou num quadro com a projeção de
um ser humano transfigurado. Esse quadro está encoberto e só é
revelado na cena em que Lady Macbeth aparece pela primeira
vez. A iluminação e a voz de Lady Macbeth destacam tal objeto,
conferindo à cena uma forte carga de mistério. Quando a imagem
é desvelada, nota-se uma semelhança com o ator que representa
Macbeth (Marcello Antony) que, para fazer o papel do protagonista,
raspou o seu cabelo, ficando totalmente careca. A imagem que se
revela no quadro é a de um ser humano representado da cintura
para cima com seus órgãos expostos. Na encenação é possível
observar que a iluminação cria um paralelo entre Macbeth e o
rosto distorcido.
Num primeiro momento, pode-se depreender que o quadro
revela a forma como são as pessoas por dentro, como é constituído
o corpo, feito de ossos, tecidos, sangue, vida. Ou seja, como se dá
o funcionamento do corpo humano, como a vida pulsa, transforma-
se e se deteriora. É a marca, o lembrete sempre presente de que
somos mortais. Há também o fato de que ali está exposto o que
normalmente não se vê: a parte interna do ser humano. A peça
expõe o outro lado, aquele a quem poucos têm acesso.
Esse objeto está presente em toda a encenação e se destaca
quando Macbeth e a esposa estão sozinhos, planejando a morte
de Duncan, ou apenas conversando, quando o protagonista tem
visões da arma do crime, quando ele está pronto para cometer o
assassinato do rei, quando retorna para Lady Macbeth e lhe mostra
suas mãos ensanguentadas.
O quadro estabelece um elo entre as duas personagens
principais. No momento em que Lady Macbeth sai de trás desse
objeto como se fizesse parte da imagem, instaura-se sua conexão

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 475


com as mudanças que irão ocorrer em sua alma e na de seu
marido. A estranha figura parece anunciar as maldades que serão
cometidas. Quando o contrarregra (ator que interpreta a
personagem Banquo) gira a caixa sobre rodas com Lady Macbeth
do outro lado, o espectador a vê emoldurada. É como se ela
incorporasse o lado mais obscuro da ambição humana. Sua
presença centralizada na cena, a postura corporal séria e o
figurino preto com a capa de tecido leve dão mais densidade à
sua fala. Há uma associação entre a imagem transfigurada do
quadro que foi vista, o reverso com Lady Macbeth e a força do
texto que ela profere. Algumas passagens dão o tom da influência
maligna da personagem e o seu pacto com os espíritos demoníacos
como, por exemplo:

sua [de Macbeth] natureza me preocupa. Está tão repleta do


leite da bondade humana que não tem coragem de ir pelo
caminho mais curto. Você quer a grandeza e tem até uma certa
ambição. Mas falta-lhe maldade [...] prefere não trapacear, mas
não se importaria se alguém trapaceasse por você […] venha
logo para casa, para que eu possa inspirá-lo com a minha paixão.
Minhas palavras certeiras irão sobrepujar os escrúpulos que
se colocam entre você e o círculo dourado […] venham, ministros
da morte, onde quer que estejam, venham até meus seios
maternais e azedem meu leite […]. (VILLELA, 2012, p. 13-14)

O posicionamento de Macbeth (de costas) e Lady Macbeth


(de frente para o público) constrói o sentido de que eles são duas
faces da mesma ambição – ele como um grande guerreiro, um
soldado reconhecido por sua bravura, um quase herói que se vê
enredado pelas previsões do futuro e pela obstinação de sua
esposa; ela, como a mentora do regicídio, como o encanto sedutor
que convence seu marido a ultrapassar os limites do que é ser
homem. Esse é um dos momentos cruciais da peça, pois

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 476


potencializa o processo de transformação de Macbeth e a
reviravolta nos rumos do seu destino.
Vale lembrar que no início da peça há uma discussão
entre Lady Macbeth e Macbeth sobre os limites da masculinidade
e da virilidade e de até onde se deve ir para conquistar o poder.
Quando Macbeth decide que “vamos dar um basta nesse negócio
agora mesmo” e afirma que se atreve a “fazer qualquer coisa que
seja digna do homem. Quem vai além não é homem”, Lady Macbeth
se impacienta e responde que “quando se atrevia a ir em frente,
aí sim você era um homem. Ter ambição é o que torna alguém
um homem de verdade”. Ao sugerir a possibilidade de um fracasso,
Macbeth enfurece a esposa que o estapeia três vezes e lhe diz:
“Estique a sua coragem até o limite que não iremos fracassar”
(VILLELA, 2012, p. 18). Com seu discurso inflamado, convence o
marido a prosseguir com o plano.
É possível interpretar a presença deste quadro como uma
referência intertextual ao romance de Oscar Wilde, O retrato de
Dorian Gray. Publicada em julho de 1890, a obra-prima do escritor
irlandês aborda questões como o propósito e o objetivo da obra de
arte, a supremacia da beleza e da juventude, a mortalidade
inevitável, a superficialidade das preocupações e dos diálogos da
sociedade daquela época, as consequências de uma influência
negativa, a falta de consciência e de preocupação com as
consequências dos próprios atos, a falta de responsabilidade, a
busca pelo prazer e por uma perfeição inatingível, a
homossexualidade, o narcisismo, o belo, entre outras.
Em sua essência, o enredo da narrativa gira em torno da
transformação por que passa o protagonista Dorian Gray – de um
jovem inocente e dotado de um certo narcisismo a um homem
corrompido pelos prazeres, tanto carnais como sensoriais. As
personagens que instigam essa mudança são Lorde Henry Wotton,
um sofisticado cavalheiro que aponta um mundo diferente a
Dorian, e o pintor Basil Hallward, que faz o melhor retrato em

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 477


tela de toda a sua carreira: o de Dorian Gray. O quadro exprime
tamanha similaridade com o modelo que se torna invejável.
Temendo envelhecer, o protagonista faz um pacto em que
exclama:

Como é triste! – murmurou Dorian Gray com os olhos ainda


fixados no retrato. – Como é triste! Vou ficar velho, feio,
desprezível. Mas esse retrato ficará jovem para sempre. Nunca
será mais velho do que neste dia de junho... Se simplesmente
fosse o contrário! Se eu permanecesse jovem para sempre e o
quadro envelhecesse! Por tal coisa – por isso – eu daria tudo!
Sim, não há nada no mundo que eu não desse! (...) Tenho ciúme
de tudo cuja beleza não morre. Tenho ciúme do meu retrato
que você [Basil Hallward] pintou. Por que ele deve manter o
que eu terei de perder? Cada momento subtrai algo de mim e
dá algo para ele. Ah, se simplesmente fosse o contrário! Se o
quadro pudesse mudar, e eu permanecer para sempre como
sou hoje! (WILDE, 2013, p. 116-117)

Como afirma Nicholas Frankel em uma das notas da edição


anotada de O retrato de Dorian Gray, “Dorian não se dá conta, porém
fez um pacto faustiano (com lorde Henry ou talvez com o diabólico
autor de Dorian Gray) ao expressar o desejo de ‘dar tudo’ em troca
da juventude eterna” (WILDE, 2013, p. 118). A partir desse
momento na narrativa, o retrato começa a sofrer a ação do tempo
e das transgressões cometidas por Dorian, como a ruína e o
consequente suicídio da atriz Sibyl Vane, a indiferença, a vaidade,
a luxúria e o assassinato do pintor Basil Hallward. Enquanto isso,
Dorian permanece jovem e belo, de modo que os leitores são
surpreendidos por uma inversão da realidade e da ficção. Dito de
outra forma, o retrato revela, ou mesmo, exterioriza o que o
homem esconde: sua decadência, sua consciência, sua idade,
sua corrupção moral e psicológica que provocará não apenas a
destruição do próximo como, finalmente, de si mesmo. Dorian

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 478


Gray em determinado ponto da narrativa não consegue mais
determinar a sua própria identidade por receber tantas
influências: o pintor Basil, seu amigo Henry, a própria pintura,
Sibyl Vane, o livro amarelo. Ele percebe as mudanças em seu
caráter e em sua alma através das alterações no quadro. Por meio
desta personagem Wilde contesta a teoria de que o caráter de
uma pessoa pode ser determinado por sua aparência, por aquilo
que está no exterior.
Ainda, pode-se perceber que os conceitos de arte e vida se
confundem, assim como Oscar Wilde pensava em relação à
produção artística conforme o prefácio de O retrato de Dorian Gray:
“O objetivo da arte é se revelar enquanto esconde o artista”
(WILDE, 2013, p. 324). Wilde, ao propor a inversão do conceito
aristotélico de realidade artística, levanta uma controvérsia que
irá abalar o rumo das reflexões artísticas: em The Decay of Lying,
ele propõe que “a vida imita a arte muito mais do que a arte
imita a vida” (WILDE, 1994, p. 51). Conforme aponta Célia Arns
de Miranda, Wilde tornou-se um precursor ao observar que nós
criamos a realidade que

nós vemos, ou seja, nós organizamos as nossas percepções de


acordo com os modelos cognitivos que são providos por uma
certa sociedade, entretanto, nós derivamos, frequentemente,
os procedimentos interpretativos da própria arte. O predomínio
de uma visão relativista torna-se mais aceitável e lógico do
que o apregoamento de verdades únicas e absolutas, contudo
inadmissíveis. (MIRANDA, 2004, p. 106-107)

A partir dessas ponderações, é interessante notar como,


na encenação de Villela, a luz incide sobre o quadro e sobre Lady
Macbeth e Macbeth, de modo que destaca esses três elementos
ao mesmo tempo. Ambos os personagens vão se deteriorando como
seres humanos na medida em que a encenação vai progredindo.

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Da mesma maneira, tal deterioração ocorre em Dorian Gray.
Apesar de ele manter sua beleza física, o seu interior, retratado
pelo quadro, vai se desintegrando – a sua alma vai se perdendo.
Somada a essas considerações está o posicionamento dos atores
no palco: ao lado do quadro, em frente a ele ou atrás. Ressalte-se
que o quadro está posicionado no centro da cena em muitos
momentos de tensão.
Assim como em Dorian Gray, Macbeth também discute a
ideia das diversas máscaras que as pessoas usam, o que
aparentam ser e o que são, o que decidem mostrar aos outros e o
que escondem para si. Na peça de Villela, Lady Macbeth (Ato I,
Cena V) reclama com o marido:

Meu marido, seu rosto mais parece um livro cheio de ideias


estranhas. Para enganar o mundo é preciso ser igual ao mundo.
Que só se leiam as mais sinceras boas-vindas em seus olhos
e em seus gestos. Tenha a aparência de uma flor cheia de
inocência que esconde uma serpente embaixo dela. (VILLELA,
2012, p. 14)

A ardilosa esposa de Macbeth recebe Duncan (Ato I, Cena VI) da


melhor forma possível; é uma anfitriã atenciosa e recebe
inúmeros elogios do monarca:

Duncan: Vejam, nossa digníssima anfitriã. Obrigado por nos


receber assim, de última hora, e perdoe-nos por qualquer
inconveniente. Nossa vinda mostra apenas o carinho e a
devoção que temos por vocês dois.
Lady Macbeth: Se o que pretendemos fazer por Vossa
Majestade pudesse ser multiplicado por dez, ainda assim seria
pouco se comparado com as grandes honrarias que vem nos
concedendo. Estamos às suas ordens. (VILLELA, 2012, p. 16)

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Em outras palavras, Lady Macbeth assinala que ela e o
esposo são devedores do rei e que sempre rezarão por ele. O ritmo
fluido das primeiras palavras de Lady Macbeth a seu hóspede
enfatizam a hipocrisia premeditada.
Por fim, faz-se necessário ressaltar que o quadro presente
nessa encenação leva o espectador a notar o esfacelamento da
fronteira entre vida e arte, entre realidade e ficção. Ele é
ressignificado na maneira como as personagens de Villela se
apropriam e se portam diante dele; é o enfoque que é dado que
interessa, o tipo de iluminação, as diferentes nuances e
perspectivas.

Referências

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2003.

BARTHES, R. A morte do autor. In: BARTHES, R. O rumor da língua.


São Paulo, Brasiliense, p. 65-70, 1998.

FREITAS, A. C. R. O desenvolvimento do conceito de


intertextualidade. Revista Icahary. Revista dos Alunos dos
Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras UFF. Edição
nº6/2011. Disponível em: http://www.revistaicarahy.uff.br/
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Acesso em: 05 jul. 2015.

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De todo lo visible y lo invisible, de Lucía Etxebarría. Espéculo.
Revista de Estudios Literarios. Universidad Complutense de
Madrid, 2004. Disponível em: <https://
pendientedemigracion.ucm.es/info/especulo/numero28/
inteetxe.html>. Acesso em 03 jul. 2015.

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KOCH, I. G. V. O texto e a construção dos sentidos. São Paulo:
Contexto, 2005.

KRISTEVA, J. Introdução à semanálise. São Paulo: Perspectiva,


1974.

MACBETH. Gravação realizada por UFPR TV. Direção de Gabriel


Villela. Curitiba,

2012. DVD (78 min), color.

MIRANDA, C. A. O entrelaçamento textual no pós-modernismo.


Intertextualidades. Scripta Uniandrade n. 3. Curitiba:
UNIANDRADE, p. 143-150, 2005. Disponível em: http://
www.uniandrade.br/pdf/Revista_Scripta_2005.pdf. Acesso em: 8
jul. 2015.

MUIR, K. (ed). The Arden Edition of the Works of Wiiliam Shakespeare:


Macbeth. Croatia: Thomson Learning, 2001.

VILLELA, G. Macbeth: roteiro de encenação. São Paulo, 2012a.

______. Programa do Espetáculo Macbeth. São Paulo, 2012b.

WILDE, O. A decadência da mentira e outros ensaios. Trad. João do


Rio. 2. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1994.

WILDE, O. O retrato de Dorian Gray – edição anotada e sem censura.


Organização

de Nicholas Frankel. Tradução de Jorio Dauster. São Paulo: Globo,


2013.

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A LUZ DO FAROL:
EXPOSIÇÃO DAS FERIDAS FAMILIARES

Autora: Rejane de Souza Ferreira (UFT)

RESUMO: Conhecido como um autor que expõe, em sua obra, a realidade


das famílias irlandesas, Colm Tóibín, em seu romance A luz do farol,
expõe a instituição familiar em diferentes gerações e níveis. O objetivo
deste trabalho é analisar como os irmãos Helen e Declan, que nasceram
e foram criados pela mãe e pela avó, em um momento em que a Igreja
Católica exercia forte influência no comportamento das pessoas,
rejeitaram o sistema no qual eles foram criados e, na fase adulta,
tentaram redefinir, cada um a seu modo, o modelo familiar que
desejavam para si e a dor que ambos tiveram que suportar quando a
doença de Declan reuniu todos eles no momento que o país passava
por fortes transformações que marcaram o período denominado Tigre
Celta. A pesquisa conta com o apoio teórico e crítico de Elizabeth
Roudinesco e Costelo-Sullivan, além de entrevistas do próprio autor
sobre o romance.
PALAVRAS-CHAVE: Irlanda; família; sexualidade

A luz do farol narra a história de Helen que recebe a notícia


de que seu irmão Declan está hospitalizado em Dublin, mas quer
passar o fim de semana com ela, a mãe e os amigos na casa da
avó em Cush, deixando-a com a responsabilidade não só de
organizar a realização de seu desejo, mas também de notificar a
mãe e a avó que ele é gay e se encontra com aids.
Declan vivia numa época em que a Irlanda ainda não
havia descriminalizado as relações homoafetivas e a maior
concentração do vírus HIV incidia sobre o grupo dos homossexuais.
Certamente, por isso, ele esconde da família o máximo que pode
sua condição, preferindo recriar um novo modelo de família com
seus amigos. Essa escolha é percebida por Helen já no início da

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trama e a convivência dessas duas famílias em um mesmo
ambiente facilita a percepção da oposição existente entre elas.
Apesar dos valores tradicionais da Irlanda e do
conservadorismo arraigado do Condado de Wexford, lugar de origem
de Declan, das mulheres da trama e do próprio autor, Colm Tóibín,
a percepção de Helen mostra a simultaneidade desses valores
antigos com os novos valores familiares que começaram a fazer
parte da Irlanda a partir do Tigre Celta. Nessas circuntâncias, é
evidente que o modelo de família respeitável era o convencional,
formado por pai, mãe e filhos. Com a abertura da Ilha para a
globalização, a convivência com a cultura dos novos imigrantes,
o apoio financeiro dos Estados Unidos e os escândalos da Igreja, a
respeitabilidade de outros modelos familiares, até então
reprimidos, foram naturalmente conquistando espaço, já que o
desejo de viver em família não se extinguiu, apenas se renovou,
como observou Elizabeth Roudinesco:

Num sentido amplo, a família sempre foi definida como um


conjunto de pessoas ligadas entre si pelo casamento e a filiação,
ou ainda pela sucessão dos indivíduos descendendo uns aos
outros: um genos, uma linhagem, uma raça, uma dinastia, uma
casa, etc. [...] Longe de constituir um grupo, é organizada em
uma estrutura hierarquizada, centrada no princípio da
dominação patriarcal. [...] [E]mbora permaneça,
paradoxalmente, a instituição humana mais sólida da
sociedade, [à]família autoritária de outrora, triunfal ou
melancólica, suscedeu a família mutilada de hoje, feita de
feridas íntimas, de violências silenciosas, de lembranças
recalcadas. (2003, p. 18, 20-21)

Diante da vergonha e do medo de se expôr para as mulheres


de sua família biológica, que eram a representação viva da
moralidade católica, Declan buscou em seus amigos uma
alternativa familiar mais eficiente para as suas necessidades.

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Semelhantemente ao seu irmão, porém de forma menos radical,
Helen tenta construir com seu marido e seus filhos seu novo
refúgio familiar, e porque ela não deseja manter vínculos com o
passado, sua mãe e sua avó não foram convidadas a participar da
cerimônia de sua nova fase, seu casamento, o mesmo
acontecendo quando seus filhos nasceram.
José Carral-Romero (2012) ao discutir sobre a redefinição
de família nas obras de Colm Tóibín, aponta para o incômodo que
as leis de proteção às famílias, surgidas a partir da Constituição
de 1937, sempre causaram:

Apesar da certeza tradicional da ideia de família, a verdade é


que essa noção tem uma natureza muito complexa. Desde que
ela descreve relações que são estabelecidas entre grupos de
pessoas, pode-se argumentar que o conceito de família tem
um proeminente significado pessoal e emocional. (CARRAL-
ROMERO, 2012, p. 3)

É justamente por conta das emoções e lembranças


desagradáveis da infância que os irmãos Helen e Declan se
refugiam na convivência com outras pessoas e silenciam diante
daqueles que aparentemente são os mais próximos. Afinal, eles
se sentiram abandonados na casa dos avós, quando seus pais
estavam no hospital em Dublin, e se sentiram ainda mais
abandonados depois que o pai morreu. Declan, que em princípio
parecia se relacionar bem tanto com a mãe quanto com a irmã e
se esforçava por reconciliar as duas, esteve na verdade fora do
foco de ambas e também da avó, durante todo o tempo. Enquanto
Declan fingia estar tudo bem consigo, as mulheres se tinham
em alta conta e se faziam de vítimas da própria fortuna, até que
ele não conseguia mais fingir. Paul chama a atenção primeiro
de Helen e depois de Lily para que ambas compreendam que,

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 485


naquele momento, não dava para ninguém se sentir mais
importante que Declan.
O disfarce de Declan, no entanto, não tira a sinceridade
de sua preocupação com as mulheres de sua família, e ainda
revela uma característica cultural bastante peculiar dos homens
irlandeses, sobretudo de Wexford Co. Na obra encontra-se a
revelação de que os homens desse condado conversam pouco, e,
nesse sentido, vale aguçar a lembrança de Tóibín revelando que
os irlandeses adoram conversar e contar histórias, desde que isso
tire o foco sobre eles mesmos.

[Q]uando você é jovem na Irlanda você aprende rapidinho que


não deve aborrecer as pessoas, e essa é uma das melhores
coisas para se saber como escritor, quando a história deve ser
interessante e quando ela deve acabar; como se manipular a
história. [...] Você aprendeu isso naturalmente, e você também
aprendeu que conversar é um jeito de despistar. As pessoas
muitas vezes não conversavam de jeito nenhum a respeito do
que era mais importante para elas. Então, você aprendia a saber
que conversar não era um jeito de as pessoas dizerem sobre si
mesmas, mas muitas vezes o jeito de despistar-se.
(FERNÁNDEZ, 2009, p. 83)

A distração do foco acaba por gerar um imenso silêncio,


ainda que dentro do ruído da conversa. Declan se camufla em
suas brincadeiras e distrações e, apesar de sua avó não ter
autocompaixão, como acontece com Lily e Helen, e perceber que
deve existir algo de errado com o neto, ela tampouco quebra o
silêncio guardado por ele. Ao contrário disso, ela espera até que a
notícia venha de outra forma, no caso, através de Helen. Ao
conversar com a neta, Paul e Larry, a sra. Devereux confidencia
sua cumplicidade parcial em relação ao problema de Declan:

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tem uma coisa que eu sabia. Sei disso faz um ano, mas nunca
contei nada para ninguém. O Declan esteve aqui no verão do
ano passado. Estacionou em algum lugar mais afastado, por
isso não ouvi nenhum barulho de carro. Mas por alguma razão
resolvi ir até o portão e olhei para o penhasco e então o vi
caminhando em minha direção [...] mas [ele] não esperava dar
de cara comigo, e fiquei com a impressão de que ele não queria
me ver. [...] E quando chegou mais perto, percebi que estivera
chorando. Estava tão magro, tinha uma expressão tão estranha,
como se não quisesse se encontrar comigo. Ele sempre foi muito
afetuoso, mesmo quando era garotinho, e tentou consertar as
coisas depois que entrou em casa. Sorria e fazia piadas, mas
nunca vou me esquecer do aspecto que ele tinha quando o vi
caminhando pela estrada. Tomamos chá juntos e havia algo no
ar, era evidente que alguma coisa horrível tinha acontecido.
[...] Eu sabia que alguma coisa estava prestes a acontecer e
fiquei esperando. (TÓIBÍN, 2004, p. 143-144)

Para completar o silêncio habitual entre os membros dessa


família que parecem nunca querer quebrá-lo, apenas mantê-lo
ou aumentá-lo, Helen se pergunta por que a avó não lhe contara
isso antes, mas não dirige uma única palavra a avó. Contradito-
riamente, ela deseja que sua avó pare de falar e, por isso, desvia
o assunto:

Helen conteve a respiração enquanto o feixe de luz do farol


varava outra vez na penumbra. Indagou a si mesma por que
sua avó não havia lhe contado isso antes. [...] Helen queria
que sua avó parasse de falar. Endereçou uma pergunta a Larry
e a Paul: “Suas famílias sabem que vocês são gays?” (TÓIBÍN,
2004, p. 144)

A falta de comunicação entre os membros da família


apenas aumenta a dificuldade das relações familiares entre eles
e é interessante como as mulheres se questionam o motivo de

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 487


terem ficado alheias a determinadas informações sendo que elas
tampouco se importam em informar umas às outras de seus
passos e decisões. As três se perguntam por que Declan escondeu
delas a doença; Lily pergunta por que Declan não lhe revelou sua
preferência sexual; Helen, como já dito, se questiona por que a
avó não lhe contara que Declan estava com problemas. Mas a avó
não consulta a filha quando negocia seus terrenos; Lily não
consulta Helen quando vende a casa; Helen não consulta o marido
sobre o que ele acha de não lhe fazer companhia enquanto ela
fica com Declan e todos os não consultados ficam insatisfeitos
por serem ignorados. Mesmo Declan, que parece não se importar
por ficar de fora, questiona a mãe por tê-lo abandonado na ocasião
em que seu pai morrera.

A Helen me disse que eu abandonei vocês dois quando o seu


pai ficou doente”. [...] Lily estava quase chorando, porém, Helen
notou que Declan a observava com uma expressão severa.
Indagou a si mesma se ele havia acreditado na mãe. Ela não
acreditara. “Por que você me largou na casa dos Byrne durante
o enterro e não foi me ver?”, inquiriu Declan.( “Foi o conselho
que todos me deram na época. Todo mudo dizia que você era
pequeno demais para compreender a morte do seu pai e que a
visão do caixão e do túmulo o deixaria muito impressionado.
[...] Declan rendeu-se e segurou a mão dela. (TÓIBÍN, 2004, p.
229-230)

Apesar de Declan ter cedido em sua mágoa, Helen


continua resistindo. Costello- Sullivan (2012) argumenta que
enquanto os efeitos do abandono em Declan o deixaram infantil e
carente, em Helen os efeitos tiveram resultado contrário, pois
ela se tornara autosuficiente como um mecanismo de defesa:

Declan apresenta marcas comportamentais de alguém que


sofreu abandono. Enquanto Helen aprende a não confiar em

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 488


ninguém, a insegurança de Declan é evidente no que Helen
chama de “sua necessidade insaciável de obter a atenção e a
aprovação da mãe”. Ele, também, é incapaz de estabelecer uma
relação romântica saudável, como sugere sua falta de parceiro
estável. Isso implica que, como Helen, ele tem dificuldade de
se ligar (e talvez de confiar) nas pessoas. (COSTELLO-SULLIVAN,
2012, p. 139)

Outro fator que agrava o silêncio, a mágoa e o afastamento


entre as pessoas da família é o tempo. Já faz tanto tempo que o
ressentimento existe que parece nem mais fazer sentindo pôr
um fim nele, pois isso requeriria uma nova identidade a Helen,
que a formou austera desde o falecimento de seu pai:

Quando meu pai morreu, eu me senti abandonada por minha


mãe e minha avó. Sei que elas tiham seus próprios problemas
e que talvez não houvesse nada que pudessem fazer para me
ajudar, é possível que o estrago já estivesse feito, mas o fato é
que elas não estavam lá para me amparar e me consolar. E
essas duas mulheres são a parte que tratei de enterrar em
mim, é isso que elas são para mim, tanto uma como a outra, e
é por isso que ainda hoje insisto em manter distância delas.
(TÓIBÍN, 2004, p. 186)

Mas apesar de Helen ter se escondido dentro de sua rigidez


como se não se importasse com a situação, ou como quem não
precisasse mais da mãe e da avó, no fundo ela ainda gostaria que
as coisas fossem diferente entre elas.

No momento em que está indo junto com a mãe e o irmão para


a casa da avó ela percebeu que pela primeira vez em muitos
anos – talvez dez – estava de volta ao seio da família, essa
família da qual ela tentara com tanta determinação distanciar-
se. Pela primeira vez em muito tempo ficariam todos sob o
mesmo teto, como se nada houvesse acontecido. Deu-se conta

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 489


também de que as emoções mudas que circulavam entre eles
no interior do carro, assim como a sensação de que os três
constituiríam novamente uma unidade, pareciam perfeitamente
naturais agora que havia uma crise, um elemento catalisador.
Estava de volta ao lar onde desejara jamais tornar a pôr os pés
e sentia-se, contra a própria vontade, quase aliviada. (TÓIBÍN,
2004, p. 108)

O escudo de Helen não a protege da dor, apenas a camufla


para adiar a resolução dos fatos e é justamente essa resolução
que ela não pretendia encarar. No entanto, algo a faz se sentir
“quase aliviada” e se não é a falsa impressão de que tudo está
bem entre eles dentro do carro, é, pelo menos, a possibilidade de
que a convivência deles todos na casa da avó faça-os finalmente
quebrar a tensão existente durante tantos anos.
Outro momento em que aparece o desejo íntimo de Helen
de se reconciliar com sua mãe é quando ela relembra seu
desapontamento com a venda da casa em que ela fora criada,
mesmo não fazendo sentido ela se importar com essa casa como
se fosse algo dela. Afinal, ela já estava casada e a propriedade
que ela partilhava com Hugh e as crianças era o espaço que
deveria lhe importar de fato:

Refletiu que não conseguia tirar da cabeça a história da venda


da casa porque acreditava que um dia voltaria para lá que aquela
casa seria o seu refúgio, e que, apesar de tudo, sua mãe estaria
lá para recebê-la, acolhê-la e protegê-la. Nunca havia pensado
nisso antes, sabia que era uma idéia irracional e descabida,
mas, não obstante, sabia também que era real e esclarecia
tudo. [...] Não que ele [Hugh] fosse abandoná-la, e sim que,
mais cedo ou mais tarde, ela bateria à porta de sua mãe pedindo
para voltar e ser perdoada, e sua mãe lhe diria que o seu quarto
estava sempre à sua disposição e que ela podia ficar o tempo
que quisesse. (TÓIBÍN, 2004, p. 120-121)

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 490


Ao se abrir com Paul, Helen admite sua inclinação para
se reconciliar, mas também não esconde a vontade de fugir e de
desejar uma saída que não a levasse a ter de passar por uma
dessas escolhas, como se isso fosse possível:

“Fico dividida entre o desejo de me reconciliar com elas e a


vontade de fugir delas”, disse Helen. “Mas, na verdade, o que
eu realmente gostaria de fazer, se é que você quer ouvir isso...”.
Ela sorriu.( “Quero, sim, disse ele em tom pesaroso. “O que eu
gostaria de fazer era pegar um carro e passar por cima da minha
mãe, é isso o que eu realmente gostaria de fazer”. (TÓIBÍN,
2004, p. 187)

Se já não faz mais sentido por fim ao ressentimento entre


ela, sua mãe e sua avó, devido ao longo tempo que ele existe, por
outro lado, paradoxalmente, e pelo mesmo motivo, não há mais
razão para manter a intriga, a não ser pelo medo de Helen ter de
se enfrentar. Ela própria revela a Paul que percebe a mãe e a avó
tentando puxá-la de volta, porém, reconciliar-se com as mulheres
da família é, ao mesmo tempo, se desnudar da máscara que Helen
utilizou para se autoidentificar por todos esses anos. Isso requer
um processo difícil e lento do qual Tóibín permitiu ao leitor
conhecer apenas o início e seu pequeno desenrolar, a medida
em que os dias foram se passando na casa da avó, até o momento
em que Helen, inevitavelmente, teve de levar sua mãe para a
casa em Dublin, enquanto ambas aguardavam a chegada de Hugh
e o horário de visita de Declan no hospital. O que virá depois
disso, cabe ao leitor completar com a própria imaginação, já que
o romance acaba exatamente nesse ponto.
Na verdade, esse processo de reconciliação perpassa todas
as partes do romance, pois mesmo antes de Helen revelar suas
feridas a sua mãe, ela já havia tentado dar trégua às desavenças
entre elas. No momento em que Helen busca sua mãe em Wexford

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 491


para levá-la ao hospital em Dublin, ela já assume que está se
esforçando para tolerar a mãe, por entender que Declan esperava
que em um momento como esse elas superassem suas
diferenças, mas Lily ainda não estava preparada para perceber
esse esforço da filha.
O problema é que Helen parece sempre estar um passo a
frente de sua mãe e nunca recua quando sua mãe alcança o
último ponto, pois no momento em que Lily lamenta a falta de
interesse da filha pelas suas coisas pessoais, roupa e casa, Helen
ao invés de lembrar à mãe que elogiara a casa dela e seu elogio
fora ignorado, avança outro passo e reclama que sua mãe nunca
está satisfeita com a filha que tem, parecendo sempre desejar
que ela fosse diferente.

“Eu gostaria que você fosse o tipo de filha que se interessasse


pelas coisas da mãe, adoraria que você viesse me visitar e ficasse
me dando palpites sobre a casa, sobre o jardim, sobre as minhas
roupas” [...]( “Mamãe”, disse, Helen, “eu adoraria que um dos
meus filhos tivesse talento para música – o pai deles também
ficaria muito contente – , mas eles não têm, nenhum dos dois,
e nós os amamos do jeito que eles são. [...] Teria me feito bem
se, em algum momento, você houvesse demonstrado estar feliz
comigo, embora eu não fosse como você desejava que eu fosse.
Ajudaria muito se você parasse de querer que eu seja outra
pessoa”. (TÓIBÍN, 2004, p. 205)

O ápice da disscussão, no entanto, é o momento em que


Helen admite que a origem dos conflitos estão relacionadas à
doença e à morte de seu pai.

“Eu nunca entendi”, disse Helen, “como você foi capaz de nos
deixar aqui durante a doença do meu pai e ficar tanto tempo
longe, sem nos visitar uma única vez”. [...] “Você não sabe o
que aconteceu com seu pai”, disse Lily. “Não faz idéia de como
ele estava amedrontado, de como ele se sentia solitário e

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 492


desamparado no hospital, embora eu estivesse lá todos os dias.
Não tive escolha. Por acaso é isso que vem te consumindo
esses anos todos?”
“O Declan e eu nos sentimos abandonados quando você nos
deixou aqui. [...] E acho que é verdade que isso tem me
consumido ao longo de todos esses anos, como você diz. Foi
algo que me marcou muito”. (TÓIBÍN, 2004, p. 209, 210)

Embora, neste momento, Helen finalmente tenha se


permitido revelar parte de seu rancor, ela ainda não diz tudo o
que sente de uma só vez, pausas acontecem entre um diálogo e
outro com sua mãe, ora porque Lily transfere o foco de sua ira
para Paul, ora porque era necessário socorrer Declan, ou até
mesmo porque faltava oportunidade para retomar o assunto. Nos
intervalos, Helen reflete sobre o que já havia sido dito e,
principalmente, sobre o que ainda faltava para ser dito por ela e a
mãe uma para outra. Era a primeira vez que o silêncio de vários
anos havia sido quebrado. Expor todas as feridas de uma só vez
não era uma tarefa fácil.
Então Helen se lembrou de como vira sua mãe fingir na
ocasião da morte de seu pai e comparou com o mesmo fingimento
que ela estava vendo sua mãe expressar diante da situação de
Declan.

Era aquela incorrigível mistura de busca por compadecimento


e necessidade de atenção, uma pessoa capaz de alternar a
ternura mais calorosa com a mais gélida indiferença,
inundando os outros de afeto para no momento seguinte lhes
virar as costas porque estava ocupada. [...] Aquelas emoções
cruas que Helen vira a mãe expor a todo mundo, exceto a ela,
sua filha, emoções que haviam sido ostentadas em público mas
raramente reveladas na intimidade do lar, estavam novamente
em cena na mesa da cozinha em Cush. E ainda queriam que
ela fizesse as pazes com sua apregoadora. (TÓIBÍN, 2004, p.
216, 217)

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 493


Lily, à semelhança dos demais personagens da trama,
apresenta um comportamento dúbio, pois se mostra capaz de
manipular os próprios sentimentos e ações diante das pessoas.
Para Helen, ela alega que não podia visitar os filhos durante a
agonia do marido porque ele estava amedrontado, mas para Declan
a desculpa apresentada para o abandono dos filhos é a preocupação
da avó em não perturbar as crianças desnecessariamente.
Convém enfatizar que quando ela se justifica para Helen ela havia
sido pega de surpresa pela reclamação da filha, mas quando ela
se justifica para Declan, é ela quem inicia o assunto, um dia
depois da discussão com a filha, numa situação em que ela ainda
estava sem lhe dirigir a palavra e fingia não notar a presença
dela no quarto, quando abordou o assunto:

“A Helen me disse que eu abandonei vocês dois quando o seu


pai ficou doente [...] Eu escrevia o tempo todo”, prosseguiu ela,
“e a sua avó me dizia que, se eu viesse visitá-los, isso só
serviria para deixar vocês intranquilos. [...] E foi por isso que
não os visitei nenhuma vez. Pode perguntar à sua avó, pergunte
a ela se isso não é verdade. Eu queria vir, o seu pai também
queria que eu viessse, nem que fosse apenas por um dia, mas
a sua avó dizia que seria demais para vocês me reencontrar e
depois me ver partir novamente. Ela achava que vocês ficariam
muito abalados. (TÓIBÍN, 2004, p. 229)

Apesar de o pai de Helen estar amedrontado, isso não


implica que ele não quisesse que a esposa visitasse os filhos,
mas como o narrador foca o ponto de vista apenas em Helen, a
contradição na fala de Lily não passa imperceptível ao leitor.
Afinal, é impossível que este fique sabendo o que realmente se
passa na intimidade de Lily, assim como não lhe é possível saber
o sentimento real do pai, Michael Breen, que já está morto desde
o início do romance. De qualquer forma, o comportamento de Lily
corrobora para o que Persson (2007) chama de

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 494


“rachaduras [na] fachada do núcleo familiar ideal”: o romance
introduz a noção de que há, talvez, rachaduras invisíveis numa
fachada perfeita sugerindo ainda que o núcleo familiar ideal, a
principal base da Igreja Católica, é uma quimera e uma ilusão
[...] essa é uma cultura de silêncio. Helen e sua mãe não se
comunicam bem, e pensamentos são frequentemente
suprimidos. Também quando o pai de Helen teve câncer e depois
morreu, ninguém informou Helen nem Declan, nem mesmo o
padre. Parece, então, que assuntos de doença e família são
considerados muito íntimos para se conversar abertamente.
(PERSSON, 2007, p. 161, 162)

O livro, não por acaso, é intitulado, no original, de The


Blackwater Lightship (O farol de Blackwater), o mesmo que ora se
encontra inutilizado. Também sem uso, espera-se que se torne o
silêncio e tudo o que a ele se vinculou durante os vários anos nas
diferentes gerações dessa família. Afinal, ela fora apontada, por
muitas críticas do romance, como a exposição da fraude do ideal
familiar previsto na Constituição da Independência, na
Constituição de 1937 e em tantas outras reformulações que a
Constituição da República da Irlanda sofrera até a década de 1990.
Pois mesmo com tantas reformulações, a sempre prenunciada
idealização familiar formada por pai, mãe e filhos se mantinha
como única possibilidade de família feliz.
Alguns críticos como Persson (2007) e Hagan (2010), por
exemplo, sugeriram que o romance mostra a eficácia da família
homossexual em oposição à falácia da família normativa e
argumentam como os personagens gays se conhecem e se
comunicam bem entre si, ao contrário dos demais personagens,
que reservam suas opiniões aos próprios pensamentos, tornando-
se portanto estranhos uns aos outros, como se não fizessem parte
de uma mesma família.
Sem mencionar o fato de que Lily está muito longe do ideal
materno que se vincula à imagem da nação. Até que Declan fique

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 495


doente e reúna as mulheres na casa da avó, Lily não havia feito
o menor sacrifício pelos filhos. Como Hagan (2010) deixa
subentender, Lily se preocupava muito mais com seus alunos do
que com sua própria prole.

Lily, de fato, falha em distinguir seu papel como professora de


computação do seu papel de mãe, mesmo se Helen está
encarregada da tarefa de informar Lily da doença de Declan.
Lily confessa, “Quando a vi sair do elevador, achei que era
mesmo você, e fiquei me perguntando se teria vindo até aqui
para fazer um curso de informática.” Lily não podia imaginar
“negócios de família” tendo uma realidade diferente de um
“negócio de computador”. É quase como se o mundo novo da
computação irlandesa fosse exatamente a tecnologia certa para
ligar o senso de deslocamento familiar que Helen e Declan
sentem. (HAGAN, 2010, p. 102)

No entanto, Costello-Sullivan (2012) apresenta uma nova


interpretação familiar: a de Paul e Larry como novos integrantes
à família biológica de Declan.

Paul and Larry não apenas moldam uma alternativa, mas, eles
também integram a família do Declan como está. [...] Declan
teve por muito tempo Larry e Paul como parte de sua família,
mas a presença deles também foi excluída de seu núcleo
familiar. Em vez de uma simples redefinição de família, a
presença deles proporciona, assim, reconhecimento de uma
parte da família dele que tem sido fundamental para o Declan
o tempo todo, uma transcrição da narrativa familiar mais
inclusiva, apurada e representativa. [...] Em vez de substituir a
família nuclear de Declan, Larry e Paul suplementam e
completam a célula familiar tradicional. (COSTELLO-SULLIVAN,
2012, p. 142)

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 496


Este trabalho, por sua vez, concorda com Costello-Sullivan
(2012), no que se refere à inclusão dos amigos de Declan à sua
primeira família, mas faz questão de lembrar que esses não são
os únicos novos integrantes. O final do romance vislumbra planos
para a aproximação de Hugh, Cathal e Manus, que, apesar de já
fazerem parte da família e do convívio de Declan, estavam
desentrosados da sra. Deveraux e completamente afastados de Lily.
Outra ressalva deste trabalho é de que o núcleo familiar
homossexual de A luz do farol se apresenta em instâncias muito
perfeitas para ser real. Paul é capaz de falar por Declan com mais
propriedade que o próprio enfermo. É Paul quem explica os sintomas
que o amigo sente e prontamente já aponta o que deve ser feito.
Diferentemente do que as críticas têm apresentado, este
trabalho arrisca dizer que o romance mostra como uma família,
homossexual ou não, consegue lidar com seus problemas para
tentar superá-los, sem tentar promover um modelo de família
em prejuízo do outro. Toda família enfrenta problemas,
independentemente de como ela é formada ou da opção sexual de
seus membros. O romance, apesar de mostrar as mazelas da
família tradicional, não aponta a família homosexual como
superior, mas o quanto pode ser produtivo a união das duas,
sugerindo ao país um modelo de inclusão.
Essa opnião se fundamenta no próprio comportamento de
Declan que, apesar de ter construído para si uma nova família
com seus amigos homossexuais, não renega sua família
consanguínea. Ele poderia ter escolhido passar seus prováveis
últimos dias na presença só de seus amigos, ou só na presença
da avó, da mãe e da irmã, mas ele escolheu reunir todas essas
pessoas, ainda, que elas nem se conhecessem e nunca fossem
desejar um encontro. Juntas essas pessoas aprendem a se
respeitarem e a se tolerarem mesmo na ausência de Declan,
como Helen, ao fim do romance, foi capaz de receber sozinha sua
mãe em sua casa.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 497


Referências

CARRAL-ROMERO, José. “Colm Tóibín and Post-Nationalist


Ireland: Redifining Family Through Alterity”. In: Estudios
Irlandeses, Number 7, 2012, p. 1-9.

COSTELLO-SULLIVAN. Mother/Country: Politics of the Personal in


the Fiction of Colm Tóibín. Oxford: Peter Lang, 2012.

FERNÁNDEZ, José Francisco. “Short Stories, Novels and Spain:


An Interview with Colm Tóibín”. Estudios Irlandeses, n. 4 (2009).
pp.82-87. Disponível em: http://www. colmtoibin.com/
bibliography/qanda/CTLIT.htm. Acesso em: 09. set. 2013.

HAGAN, Edward A. “The Delusion of Cultural Studies: Colm Tóibín,


The Blackwater Lightship”. In: ______. Goodbye Yeats and O’Neill:
Farse in Contemporary Irish and Irish-American Narratives.
Amsterdam-New York: Rodopi, 2010. p. 99-109.

PERSSON, Ake. „”Do your folks know that you re gay? : Memory
and Oral History as Education and Resistence in Colm Tóibín s
The Blackwater Lightship”. In: FRIBERG, Hedda; NORDIN, Irene
Gilsenan; PEDERSEN, Lene Yding. Recovering Memory: Irish
Representations of Past and Present. Newcastle: Cambridge
Scholars Publishing, 2007.

ROUDINESCO, Elizabeth. A família em desordem. Trad. André


Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

TÓIBÍN, Colm. A luz do farol. Trad. Alexandre Hubner. São Paulo:


Companhia das Letras, 2004.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 498


O AMOR NÃO CONSUMADO EM “EVELINE”,
DE JAMES JOYCE

Autora: Selmi Machado (Uniandrade)


Orientadora: Profa. Dra. Brunilda Reichmann (Uniandrade)

RESUMO: O artigo faz uma abordagem do amor não consumado no


conto “Eveline” da coletânea Dublinenses, de James Joyce (1914). O
enfoque é dado à leitura de passagens que trabalham conceitos
semelhantes a spots of time, [to] see into the life of things (William
Wordsworth); ao estranhamento e à epifania. “Eveline” pertence,
segundo o autor, à categoria histórias da adolescência. O espaço
ficcional é a cidade de Dublin e “Eveline” é o primeiro conto da coletânea
que apresenta um narrador em terceira pessoa, onisciente seletivo. O
autor cria uma atmosfera de introspecção e contemplação do presente
e do futuro, e retrata metaforicamente a “paralisia” sociopolítica da
Irlanda. A delicadeza do (não) dito é uma característica joyceana
marcante. No final do conto, o efeito no leitor é de estranhamento
pelo “grito” contido, seguido de uma epifania sobre a condição presente
e futura da protagonista.
PALAVRAS-CHAVE: técnicas, paralisia, epifania.

Dublinenses
Visando melhor situar a coletânea de contos Dublinenses,
de James Joyce, se faz necessário fazer um breve apanhado
histórico da Irlanda do início do século XX – abordando algumas
questões socioculturais – e alguns comentários breves sobre o
autor e sua obra. Durante décadas, o governo britânico praticou
uma política de austeridade, condenando a Irlanda ao declínio,
que eclodiram, em 1840, com a deflagração de problemas
econômicos, sociais e políticos, como o desemprego, a fome, a
mortandade, os altos tributos e a falta de investimentos; motivados
pelo “maior desastre da história da Irlanda”, denominado a “grande
fome”. A fome, considerada tragédia nacional, dizimou quase

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 499


metade da população do país e muitos emigraram tentando buscar
melhores condições de vida. Ocorreu nessa época a maior queda
demográfica da Europa, atingindo em torno de 75% da população.
Tais acontecimentos intensificaram um antigo sentimento de
rancor contra os colonizadores ingleses, que provocaram, na
década seguinte, inúmeros confrontos. Esse período foi
considerado como uma estagnação e catástrofe em todas as áreas.
Os irlandeses então passaram a almejar ver a Irlanda
independente da Inglaterra e irrompem em guerras. Com o
fracasso da operação, a ideia ficou adormecida e um longo período
de estagnação política impera na Irlanda.
Passados mais de 60 anos, brota uma nova investida em
busca da autonomia Irlandesa, e a Independência da Irlanda é
declarada no ano de 1922. Assume o Comitê Executivo, William
Cosgrave, que governa entre 1922 e 1932, período que busca uma
retomada da economia, impulsiona o resgate social e estabelece
algumas relações comerciais. Esses fatos históricos são descritos
por Joyce, em alguns de seus contos em Dublinenses e, nos
romances O retrato do artista quando jovem e Ulisses.
Apesar de a Irlanda estar em meio a momentos tão
adversos, surgem grandes nomes na cultura irlandesa. É possível
destacar, além de Joyce, três mitos literários, como: Jonathan
Swift (1667-1745), Oscar Wilde (1854-1900) e Bram Stoker (1847-
1912), autores de As viagens de Gulliver, O retrato de Dorian Gray e
Conde Drácula, respectivamente. Conquistam quatro Prêmios
Nobel da Literatura: William Yeats (em 1923), George Shaw (em
1925), Samuel Beckett (em 1969) e Seamus Heaney (em 1995). E
o diretor cinematográfico, Jim Sheridan, ganha três Oscar, com
os filmes: Meu pé esquerdo (1989); Em nome do pai (1993) e Terra
de sonhos (2003). Com “Terra de sonhos conquista, também, o Globo
de Ouro, em 2003.
James Joyce, conhecido e renomado autor, é descrito por
Haroldo de Campos (1981), como fundamental para autores que o

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 500


sucedem. Considerado um escritor eclético percorre diversos
gêneros literários com maestria. Sua capacidade de reger as
palavras o torna notável e o leva a ser considerado um dos autores
de maior relevância do séc. XX. Suas obras parecem ser uma
catarse de sua vida em Dublin. Segundo Aristóteles (1987), catarse
é à purificação das almas por meio de uma descarga emocional
provocada por um drama e autoconsciência, que na filosofia da
mente é apontada como a característica lógica da consciência de
ser, constitutivamente, consciência da consciência – não há
consciência sem autoconsciência, afinal sempre que um sujeito
tem consciência de um objeto ele tem autoconsciência da sua
consciência desse objeto. Por sua qualidade, os escritos de Joyce
são objetos de pesquisas por renomados estudiosos e influenciam
vários escritores, como Samuel Beckett, Jorge Luis Borges, Flann
O’Brien, Máirtin Ó Cadhain, Salman Rushdie, Thomas Pynchon,
William Burroughs, entre outros.
Joyce viveu na Irlanda até inicio de sua juventude. Ao se
mudar para Itália, escrevia, por anos, ao irmão e o incumbia de
descrever detalhes da cidade de Dublin, cidade que nunca
abandona, e das lembranças de sua infância que mais tarde
seriam cenários de sua obra. Menciona Joyce em carta ao irmão:
“parece estranho que nenhum artista a tenha oferecido ao
mundo”. Em Trieste o escritor trabalha nas primeiras versões
dos contos e registra com detalhes as travessas, comércio, odor
ou aspecto de sua cidade, marcas distintas por quem lá esteve ou
viveu. A coletânea de contos, intitulada Dublinenses, começou a
ser escrita entre os anos de 1903 e 1904 e reflete a estagnação e
paralisia em Dublin, Irlanda. Os contos remetem a inúmeras
reflexões e demonstram a vida, em variados momentos, com finais
improváveis. Segundo Benilde Montgomery,

Dublinenses pode ser lido sob categorias Nietzschianas. Joyce


não só transforma essas categorias em ficção, mas também as

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 501


usa tanto como norteadores ideológicos quanto elementos
estruturais na organização de seus contos. Tanto a filosofia de
Nietzsche quanto a obra de Joyce intentam examinar os padrões
morais vigentes e com isso propiciar a transformação de antigos
valores estáticos e incrustados em novas realidades vitais.
(MONTGOMERY, 1978, p. 65)

Ao completar doze contos, os reuniu em Dublinenses e


buscou editá-los sem sucesso. Os editores reconheciam a
qualidade literária, mas alegavam que por retratar a Irlanda e
seus habitantes sob uma perspectiva “naturalista”, não seria
apropriado ao mercado editorial. O livro chegou a ser considerado
subversivo e pouco comercial, o que dificultava a sua aceitação
pelas editoras. Acreditavam que esses fatores prejudicariam a
repercussão e sugeriam alterações.
Porém, Joyce ansiava em retratar questões existenciais
em sua obra, dizia que pretendia escrever “um capítulo da história
moral de seu país”. Assim, defendeu a liberdade artística de
expressão e colocou-se abertamente contra a censura. Lutou para
editar a coletânea por dez anos, mas as editoras se negavam a
publicá-la como idealizada. Em 1914, após acrescentar três (03)
contos, totalizando quinze, Dublinenses é finalmente publicado.
O livro teve uma recepção modesta por parte dos leitores e da
crítica. A época não era favorável, o mundo vivia às vésperas do
primeiro grande conflito mundial.
Os três primeiros contos de Dublinenses são narrados em
primeira pessoa e descrevem a infância de um menino. Esses
contos são considerados autoficção; Joyce, possivelmente, estaria
descrevendo sobre sua infância em Dublin. Porém a maioria dos
contos é narrada em terceira pessoa; com onisciência seletiva,
discorre sobre frustrações da infância, desilusões da adolescência
e da maturidade e o despertar sexual. Exibe composições
inovadoras e desafiadoras, cria personagens com uma estrutura
complexa do consciente, revela seus pensamentos e reações no

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 502


desenrolar da história, com clareza e sensibilidade magnífica em
uma sequência de episódios que retratam a vida da classe média
de Dublin, mostrando vários lados de seus cidadãos, com uma
forte carga de veracidade e habilidosa precisão.
O livro é surpreendente, um clássico pautado no amor
controverso, na epifania e na inquietação do mundo. Apresenta
textos breves, criativos, repletos de profundidade e versatilidade,
que sensibilizam e envolvem o leitor. Os contos possuem término
inesperado, e o leitor chega ao final sem soluções mágicas, muitas
vezes com situações incontroláveis.

O conto “Eveline”
Vamos nos deter, agora, no conto “Eveline”, um dos contos
da adolescência, como definido pelo autor. O conto é construído
por meio da disjunção espacial e familiar da protagonista. Eveline,
adolescente de dezenove anos, pobre, filha de pai alcoólatra e
violento, trabalha duro em casa e na loja, sem reconhecimento.
A situação remete a uma existência tediosa, frágil e insegura.
Aspira fugir com Frank, seu namorado, para levar uma nova vida
em outro país.
A narrativa interliga o real e o imaginário, onde autor, leitor
e momento histórico compõem os arranjos, criando uma forma
de escrita que é impressionante até hoje. O enredo é preciso,
descreve com clareza e sensibilidade a vida da classe média. Exibe
alto grau de sensibilidade. O conto é narrado em terceira pessoa,
pelo narrador onisciente seletivo. Emprega o discurso indireto
livre, onde a narrativa assume a linguagem da personagem por
meio do fluxo de consciência: “Estaria casada; ela, Eveline. As
pessoas iriam tratá-la com respeito, não sofreria como sua mãe”
(JOYCE, 2001, p. 18).
Cria uma atmosfera de introspecção e contemplação,
permeada por conflitos psicológicos, fluxo de consciência, que
embasa a junção particular, familiar e afetiva, da protagonista,

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 503


na expectativa de se reinventar. Ao recordar as mudanças
ocorridas com as pessoas ligadas a ela, conjectura como todos
mudam, portanto, ela também deve mudar. Como no instante
que reflete o passado:

Tudo isso aconteceu muito tempo atrás; ela e os irmãos e irmãs


tinham crescido; a mãe havia morrido. Tizzie Dunn também
havia morrido, e a família Water tinha voltado para a Inglaterra.
Tudo muda. Agora ela estava prestes a ir embora como os
outros, a sair de casa. (JOYCE, 2001, p. 18)

A criação ficcional do amor não consumado no conto, se


mostra presente nas passagens que Eveline apresenta
características românticas e convencionais, sonhando com o
marinheiro que iria envolvê-la em seus braços:

Ela se levantou em um súbito impulso de terror. Fugir! Precisava


fugir! Frank haveria de salvá-la. Ele lhe daria vida, e talvez
amor, também. Mas ela queria viver. Por que deveria ser infeliz?
Ela tinha direito à felicidade. Frank haveria de tomá-la em seus
braços, estreitá-la em seus braços. Ele a salvaria. (JOYCE,
2001, p. 20)

E o momento que, Frank, percebe que ela não partirá com


ele:

Todos os mares do mundo desaguavam no peito dela. Ele a


puxava para o fundo: acabaria por afogá-la. Ela se agarrou com
as duas mãos à balaustrada de ferro.
– Venha!
Não! Não! Não! Era impossível. (JOYCE, 2001, p.20)

A fonte propulsora, insegurança, se dá na dicotomia de


sucumbir ou viver, movida pela razão, numa apreensão do enredo

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 504


sensível e instigante, voltada à perspectiva de Eveline, em breves
diálogos, permeada das emoções dos interlocutores.

Ela havia aceitado ir embora, sair de casa. Seria uma decisão


sábia? Tentou avaliar todos os aspectos da questão. Em casa,
tinha abrigo e comida; tinha todas as pessoas que havia
conhecido durante a vida inteira por perto. (JOYCE, 2001, p.
38)

E, em:

O sofrimento despertou-lhe uma náusea no corpo e ela


continuou movendo os lábios em uma ardorosa oração muda.
Um sino dobrou no peito dela. Sentiu quando Frank tomou-
lhe a mão:
– Venha! (JOYCE, 2001, p. 20)

Expressa traço estilístico próprio, demonstra uma invasão


presente, num bloco de sensação e de fluxo de consciência. A
influência de Freud se mostra presente ao transpor o exterior
(objeto) no interior (subjetivo), como, ao ouvir o realejo tocando e
é, automaticamente, remetida à lembrança da morte da mãe;
spots of time, marcas que ficam para sempre guardadas na
lembrança.
Como em todos os contos da coletânea, o discurso joyceano
é descritivo e preciso, apresenta paisagem exterior e interior e a
estrutura do inconsciente, em textos compactos e ricos em
significação; com fragmentação, final incontrolável, fluxo de
consciência, conflito religioso e epifanias.
Jacques Lacan (2005), psicanalista, pondera que Joyce
reinventa padrões sintáticos e de linguagem, produzindo recursos
verbais diferenciados. Destaca o uso da linguagem segmentada,
a quebra de palavras e a maneira que descreve a elaboração do
inconsciente com elocuções perfeitas. Apreende o mundo e a

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 505


própria arte, o que permite entrar numa dimensão nova, só visível
pelo olhar estético ou artístico. Faz um paralelo entre a paralisia
da personagem e a paralisia de Dublin.
Explora o potencial simbólico de imagens e palavras, como
no uso de aforismos encontrados em: “As pessoas a tratariam
com respeito.” (p. 18) e “Tinha direito à felicidade.” (p. 20). E de
metáforas: “Estaria no mar” (a morte) (p.20) e “As grades de ferro”
(o pai) (p.20).
Remete ao conceito de estranhamento dos formalistas
russos em sua literalidade, como no final do conto, no grito seguido
de epifania, onde presente e futuro se interligam. Uma súbita
revelação acerca da essência do momento, num momento de
estupefação, como num ímpeto de liberdade em situações
cruciais.

Expõe lembranças inconscientes, despontando passagens


marcantes ou desafiadoras que denotam a introspecção do eu.
Assim, podemos considerar que apresenta: spots of time, marcas
no tempo, que ficam para sempre guardadas. Pode ser considerado
ao ler o momento intenso, no caso, de grande sofrimento, descrito
de forma sensível e delicada, como ocorre na retomada, pela
protagonista, da ocasião em que a mãe agonizava no leito de
morte.

Estranho que o realejo surgisse ali naquela noite para lembrá-


la da promessa que fizera à mãe de manter o lar unido enquanto
pudesse. Lembrou-se da noite em que a mãe morrera; era como
se estivesse novamente no quarto fechado e escuro do outro
lado do hall e lá fora ouvisse a melancólica canção italiana.
(JOYCE, 2001, p. 19)

Outros momentos, quando a personagem see into the life


of things, denotam momentos de apreensão da “essência” das
coisas. Nas últimas linhas do poema “Lines Composed a Few Miles

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 506


above Tintern Abbey”, Wordsworth fala sobre essa experiência
sublime:
– that serene and blessed mood,
In which the affections gently lead us on, –
Until, the breath of this corporeal frame
And even the motion of our human blood
Almost suspended, we are laid asleep
In body, and become a living soul:
While with an eye made quiet by the power
Of harmony, and the deep power of joy,
We see into the life of things. (WORDSWORTH, 1798)

Nesse momento em que o corpo parece dormir (paralisia)


e nos tornamos uma alma vibrante, a personagem vive algo que
não tinha vivido antes, tem um momento de iluminação
espiritual. Presente na passagem que Eveline percebe que
encontrará um mundo desconhecido ao partir com Frank. Cruzar
o grande mar a transportaria para bem longe, o que significa se
deparar com algo que desconhece, e o novo a assusta. Decide
ficar, permanecer com os problemas que já conhecia, mesmo com
todas as adversidades.
Todos os mares do mundo agitavam-se dentro de seu coração.
Ele [Frank, o namorado] a estava levando para esses mares:
ele a afogaria.
- Vem!
Não! Não! Não! [...] no meio dos mares ela deu um grito de
angústia. (JOYCE, 2001, p. 20)

Essa iluminação espiritual momentânea, lembra a noção


de epifania. Promove um “descortinio”, segundo Clarice Lispector,
uma súbita manifestação espiritual, presente nos momentos
delicados e evanescentes, como no instante que Eveline é tomada
por completo, como numa revelação. Eveline, paralisada, surpresa,
gélida, neste momento podemos pensar que ela tem um insight,

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 507


algo indescritível. Algo que, provavelmente, já sentimos, mas que
Joyce é capaz de expressar em palavras.

No meio dos mares ela deu um grito de angústia.


- Eveline! Evvy!
Ele correu para o outro lado do cordão de isolamento e chamou-
a para que o seguisse. Gritaram para que fosse em frente, mas
ele continuou a chamá-la. Ela o encarou com o rosto pálido,
passivo, como um animal indefeso. Seus olhos não
demonstraram qualquer sinal de amor ou adeus ou
reconhecimento. (JOYCE, 2001, p. 20)

Por suas inúmeras características, James Joyce é um


escritor evitado por alguns leitores que o julgam prolixo, difícil,
emblemático e misterioso. No entanto, múltiplas características,
mesmo essas características mencionadas, produzem um imenso
fascínio a milhares de admiradores.

Referências

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco; Poética., 4. ed. Trad. Eudoro de


Souza. São Paulo: Nova Cultural, 1991.

CAMPOS, de Haroldo. Deus e o diabo no Fausto de Goethe. São Paulo:


Perspectiva, 1981.

JOYCE, James. Dublinenses. São Paulo: Editora Record, 1970.


São Paulo: Nova Cultural, 1987.

LACAN, Jacques. O seminário: o sinthoma, livro 23. Rio de Janeiro:


Jorge Zahar, 2005.

MONTGOMERY, Benilde. Uma leitura nietzschiana de “Dubliners”


de Joyce, Jornal da Academia Americana de Religião. Publicado

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 508


por: Oxford University Press, v. 46, n. 1, março de 1978. Disponível
em: http://www.jstor.org/stable/1462756. Acesso em: 02 maio
2015.

NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia. São Paulo:


Companhia das Letras, 2007.

WORDSWORTH, William. “Lines Composed a Few Miles above


Tintern Abbey” Disponível em: http://www.shmoop.com/tintern-
abbey/stanza-2-lines-22-49-summary.html. Acesso em: 30 jun.
2015.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 509


O ESPAÇO COMO ELEMENTO DOMINANTE NO CONTO
“O PRIMEIRO VOO” DE LIAM O’FLAHERTY

Autor: Sérgio Luís Borges (Uniandrade)


Orientadora: Profa. Dra. Sigrid Renaux (Uniandrade)

RESUMO: Partindo dos pressupostos teóricos de Roman Jakobson em


“O Dominante”, este estudo propõe-se analisar o espaço como elemento
dominante no conto “O Primeiro Voo”, do autor irlandês Liam O’Flaherty.
Tendo como função principal situar as ações das personagens a fim de
estabelecer com elas uma interação, o espaço físico apresenta-se de
diferentes maneiras: das saliências de um alto rochedo, onde um filhote
de gaivota, angustiado, espera o desenrolar de sua aventura ao alçar-
se no primeiro voo, ao mar, milhas baixo, aguardando-o. Analisando o
espaço sob diferentes ângulos percebemos como o autor, ao descrever
com clareza os locais da ação, leva-nos a uma reflexão profunda não
só sobre a compaixão que sentimos pelo filhote em sua angústia antes
de voar mas principalmente sobre a emoção que compartilhamos com
ele durante seu primeiro voo, estabelecendo assim um paralelo entre
seres humanos e pássaros.
PALAVRAS-CHAVE: Espaço. Dominante. O Primeiro voo. Liam O’Flaherty

Introdução
A presença de animais e sua humanização, estão
ganhando cada vez mais evidências na literatura, demonstrando
o respeito devido pelos animais bem como seu lugar no espaço.
Podemos considerar que é com este intuito que irlandes Liam
O’Flaherty (1896-1984), renomado novelista e contista, escreveu
seus contos, dando a possibilidade de natureza humana a seus
personagens animais.Percebemos o gosto que o autor tem com
histórias relacionadas ao respeito pela natureza e os animais.
Mesmo com extensa bibliografia, Liam O’Flaherty, não tem no
Brasil a mesma visibildade que outros escritores irlandeses dos
séculos XIX e XX, como Bram Stocker, Oscar Wilde, James Joyce

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 510


e Samuel Becktt. Da vasta obra de Liam O’Flaherty, foram
traduzidos para o português oito contos, que fazem parte de O
Mundo e suas Criaturas - Uma antologia do Conto Irlandês,
organizada por Munira H. Mutran, publicada em 2006 pela
Associação Editorial Humanitas.
É vasta a lista de artigos críticos, e livros, que se voltam
para o exame da obra de O’Flaherty. Até o início da década de
cinquenta, era comum a publicação da crítica literária em jornais
e revistas muito mais do que em livros. Àquela época jornais
podiam ser diários, semanais, quinzenais e as revistas, semanais
e até trimestrais.
O conto apresentado neste trabalho para análise será “O
primeiro voo”, extraído do livro O Mundo e suas Criaturas, onde
um filhote de gaivota demonstra seu medo insegurança para
realizar seu primeiro voo. O objetivo deste trabalho é analisar o
espaço como elemento dominante, a partir dos pressupostos
teóricos de Roman Jakobson, observando os diferentes tipos de
espaços que presenciamos na narrativa. Ressaltamos que será
utilizado na análise o termo “cronotopo” para estudar como as
categorias de tempo e espaço estão representadas nos textos.
Bakhitin introduz esse conceito em sua obra Questões de
Litratura Estética, definindo-o e revelando a origem do termo:

Nós daremos o nome de cronotopo (literalmente, “espaço-


tempo”) para a ligação intrínseca das relações temporais e
espaciais que são artisticamente expressas na literatura. Este
termo (tempo-espaço) é empregado em matemática, e foi
introduzido como parte da Teoria da Relatividade de Einstein.
O significado especial que ela tem na teoria da relatividade
não é importante para nossos propósitos estamos tomando-o
emprestado para a crítica literária quase como uma metáfora
(quase, mas não totalmente). O que conta para nós é o fato de
que ele expressa a inseparabilidade do espaço e do tempo (tempo
como a quarta dimensão do espaço). Entendemos o cronotopo

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 511


como categoria formalmente constitutiva da literatura, não
vamos lidar como o cronotopo em outras áreas da cultura.
(BAKHTIN, 2010, p. 211)

Bakhtin afirma que o cronotopo determina toda e qualquer


unidade de uma obra, isto é, todas as definições espaço-temporais
são inseparáveis em uma obra e são sempre constituídas pela
matriz da unidade.

A capacidade de ver o tempo, de ler o tempo no espaço e,


simultaneamente, de perceber o preenchimento do espaço sob
a forma de um todo em formação, de um acontecimento, e não
sob a forma de uma tela de fundo imutável ou de um dado
pronto. A capacidade de nler em todas as coisas - seja na
natureza ou nos costumes do homem e até em suas ideias (em
seus conceitos abstratos) -, os índices da marcha do tempo.
(BAKHTIN,2014, p. 112)

Podemos afirmar que, pela concepção de Bakhtin (1993),


as categorias cronotópicas colaboram para a formação do romance
por apresentarem personagens inacabadas em um processo de
evolução que nunca se concluirá. Assim, constrói-se a imagem
do homem em formação e o tempo interioriza-se no suijeito
modificando sua vida, seu destino e a si mesmo. Esta
transformação podemos evidenciar com clareza na análise do
conto “O primeiro voo”, que vem na sequência colocando o espaço
como elemento dominante.

O espaço como elemento dominante no conto “O primeiro voo”


Para analisar o conto, utilizamos os pressupostos teóricos
do pensador russo Roman Jakobson (1896-1982) que se tornou
um dos maiores linguistas do século XX e pioneiro da análise
estrutural da linguagem, poesia e arte.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 512


Sua vida foi baseada no conhecimento, e principalmente
em espalhar o conhecimento pelo mundo, sempre comparando
culturas para que elas pudessem ter um sentido que foi o início
de suas teorias. Conseguiu transformar conceitos que até hoje
são utilizados. Se manteve firme diante de regimes cruéis, o que
levou a se refugiar em diferentes países.
Distinguiu-se ao nível da linguística por desenvolver o
conceito de traços distintivos em fonologia. Posteriormente,
tornou-se uma figura influente ao nível da crítica literária, tendo
seu trabalho estabelecido as bases para uma abordagem
estruturalista da teoria literária.
Segundo Roman Jakobson (1971), pode-se definir o
dominante como sendo o centro de enfoque de um trabalho
artístico: ele regulamenta, determina e transforma os seus outros
componentes. O dominante garante a integridade da estrutura.
É ele que torna específico o trabalho.
Partindo da ideia de Jakobson, observamos os diferentes
espaços como elemento dominante presente na narrativa “O
primeiro voo”, sua importância no desenrolar da história. É o
espaço que interfere na condução e no desenvolvimento da
narrativa, revelando o modo de ser da(s) personagem (ns),
influenciando o comportamento e a atuação.
Conforme Massaud Moisés, o espaço

...constitui outro ingrediente em que deve atentar o analista


de ficção. Como se sabe uma narrativa pode passar-se na cidade
ou no campo, mas depende de seu caráter linear ou vertical a
maior ou menor importância assumida pelo cenário. Na verdade,
a frequência e a intensidade e densidade com que o lugar se
impõe no conjunto de uma obra ficcional está em função de
suas outras características. (MOISÉS, 1999, p. 107)

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 513


Para elaboração do trabalho e análise dos diferentes
espaços, tomamos como referência o capítulo três “Sujeitos, Tempo
e Espaços Ficcionais” da obra “Espaço e Literatura” de Luis Aberto
Brandão e Silvana Pessôa (BRANDÃO e PESSÔA, 2001, p. 67).
Segundo os autores citados acima o espaço pode ser: físico
(espaço geográfico), temporal (espaço histórico), em relação a
outras personagens (espaço social), em relação às suas próprias
características existenciais (espaço psicológico), em relação ás
formas como essa personagem é expressa e se expressa (espaço
da linguagem).
A seguir iniciamos nossa análise sobre o espaço como
elemento dominante no conto “O primeiro voo”, e a importância
que o mesmo apresenta na estrutura da narrativa.
A conto de Liam O’Flaherty mostra a luta do filhote de
gaivota, para superar o medo e o desespero que lhe causa o
primeiro voo. Da necessidade de enfrentar muitas provas, no
caminho da conquista de um lugar no grupo, decorre a narrativa
na ação e na emoção.

Espaço físico (ou espaço geográfico)


O primeiro elemento de referência à questão do espaço
no conto “O primeiro voo” é a frincha, pequena saliência no
rochedo, que se configura como o espaço onde o pássaro,
angustiado, espera o desenrolar de sua aventura de descoberta
do primeiro voo.
Vale destacar que além do filhote de gaivota aprender a
voar, teria que aprender também a mergulhar sobre as ondas
para pescar, para o seu sustento:
Vira até mesmo o irmão mais velho apanhar seu primeiro
arenque e devorá-lo plantado numa rocha, enquanto os pais
voavam em círculos numa algazarra orgulhosa. A família inteira
passara a manhã caminhando sobre o grande platô que ficava a

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 514


meio do rochedo em frente, atazanando-o por sua covardia.
(O’FLAHERTY, 2006, p. 208).
Observamos que o espaço físico, evidencia a dficuldade o
isolamento do diálogo entre o filhote e seus pais, dificultando a
sobrevivência do filhote bem como adquirir coragem para realizar
seu primeiro voo. Pois além de sentir calor não se alimentava já
faziam algumas horas.
Chegou a roer os pedaços ressecados das cascas
pintalgadas. Era como devorar parte de si mesmo. Depois
caminhara em passo rápido de uma extremidade à outra da
saliência, o corpo cinzento se confundindo com o rochedo, as
longas pernas cinzentas dando passos delicados, tentando
encontrar um modo de alcançar os pais, sem precisar voar.
(O’FLAHERTY, 2006, p. 208).

Espaço temporal (ou espaço histórico)


Podemos considerar o espaço temporal no conto, como
sendo a história do desenvolvimento da gaivota.
Lembramos que existem várias espécies de gaivotas,
diferentes em tamanho, em cor de plumagem mas muitos de seus
hábitos se assemelham. Para os filhotes deixarem o ninho o ninho
aprenderem a voar, o tempo varia de vinte a cinquenta dias, tudo
muito rápido. Por esse motivo que a família tinha pressa para
que o filhote voasse.
O pai e a mãe tinham voltado, chamando-o com gritos
estridentes, corrigindo-o, ameaçando deixá-lo passar fome em seu
refúgio, caso ele não voasse. Mas nada nesse mundo o faria se
mover (O’FLAHERTY, 2006, p. 207).
Aqui podemos de fato estabelecer uma relação com a vida
humana, lembrando que cada ser é único, apresentando
características próprias, variando o aprendizado de um para o
outro. Os irmãos do filhote aprenderam a voar mais rápido, pois
não apresentavam medo e angústia com a ação do primeiro voo.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 515


Porém o tempo e coragem do filhote, eram outros, deixando em
evidência a diferenças entre eles.

Espaço social
Considerado por Brandão o espaço que se divide com a
comunidade, com a família, com os amigos. Podemos fazer uma
comparação indireta com a nossa própra condição humana e “O
primeiro voo”, pois temos expectativas em relação aos outros, no
sentido de sua adaptação às regras de convivência social:

E entre eles e os pais havia um imenso profundo abismo.


Será que conseguiria chegar até eles sem voar movendo-
se para o norte ao longo da face do rochedo? Mas e dai,
onde iria caminhar? Não havia ressaltos no rochedo e ele
não era uma mosca. (O’FLAHERTY, 2006, p. 208)

Espaço psicológico
Aquele espaço em que cabe a relação com as próprias
características do personagem, o seu próprio eu. No conto verifica-
se que o filhote apresenta medo e insegurança para fazer seu
primeiro voo, passando até por humilhação e ofensa por parte de
seus pais e irmãos.
Viu os dois irmãos a irmã cochilando sobre o platô, com a
cabeça enfiada no pescoço. O pai alisava as penas do dorso branco.
Somente a mãe, em pé sobre uma protuberância do platô, o peito
branco estufado, olhava para ele. A intevalos, bicava um pedaço
de peixe a seus pés e a segur aspava os dois lados do bico na
rocha. A visão da comida era de enlouquecer. Como ele gostava
de rasgar a comida desse jeito, raspando o bico repetidas vezes
para afiá-lo! Grasnou baixinho. A mãe grasnou também e olhou
para ele. - Ga, ga, ga - gritou ele - suplicando-lhe que lhe trouxesse
comida (O’FLAHERTY, 2006, p. 209).

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 516


Espaço da linguagem
Brandão o define como um espaço onde a personagem é
expressa e se expressa. A personagem protagonista é expressa
pelo narrador, no início como um ser faminto, indeciso e medroso,
por não ter coragem de fazer seu primeiro voo. Com a conquista e
vitória do seu primeiro voo, o filhote se apresenta alegre, e festeja
com sua família.

- Ga, ga, ga. Ga, ga, ga. Gó uul-ah. A mãe mergulhou perto
dele, ruflando ruidosamente as asas. Respondeu-lhe com outro
grito. Então o pai esvoaçou acima dele, soltando guinchos
agudos. Daí viu os dois irmãos e irmã voando à sua volta,
corcoveando e fazendo curvas contra o vento, elevando-se e
mergulhando. (O’FLAHERTY, 2006, p. 210)

Após o primeiro voo o estado de desânimo da gaivota


desaparece, mostrando uma alegria contagiante.
Completamente esquecido de que nem sempre soubera
voar, começou ele também a mergulhar e a corcovear, emitindo
gritos estridentes. (O’FLAHERTY, 2006, p.210).
O conto “O primeiro voo”, também apresenta em sua
narrativa muitos adjetivos, frases curtas, narrando as ações de
forma direta, envolvendo o leitor a se emocionar e se alegrar com
a conquista do primeiro voo da gaivota filhote.
Na presente análise, buscamos evidenciar o espaço como
elemento dominante no conto “O primeiro voo”, ressaltando que
todos esses espaços interferem na condução e desenvolvimento
da narrativa, no comportamento e ação das personagens.
Por fim, acreditamos que a análise do conto “O primeiro
voo” do irlandês Liam O’Flaherty, chame a atenção para a produção
do referido autor, nos causando um estado de profunda emoção.
Escolhemos esse conto para analisar, e assim observarmos
a importância que o cronotopo tem na ação narrada no primeiro

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 517


voo da gaivota, deixando em evidência o espaço que o filhote tinha
a conquistar, bem como o tempo que levou para adquirir coragem.

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins


Fontes, 1992.

________, Mikhail. Questões de Literatura e Estética. São Paulo:


Annablume, 2002.

MOISÉS, Massaud. A Análise Literária. São Paulo: Cultrix, 1996.

O’FLAHERTY, Liam. O primeiro voo. In: MUTRAN, Munira H. (Org.).


O mundo e suas criaturas. São Paulo: Humanitas, 2006. p.207-
210.

SANTOS, Luis Alberto Brandão e OLIVEIRA, Silvana Pessoa de.


Sujeito, Tempo e Espaço Ficcionais. Introdução à Teoria da
Literatura. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 518


ROGER CASEMENT SOB O OLHAR POLIÉDRICO DE VARGAS
LLOSA EM EL SUEÑO DEL CELTA

Autora: Profa. Dra. Sigrid Renaux (Uniandrade)

RESUMO: Este trabalho analisa o romance histórico El sueño Del Celta,


de Mario Vargas Llosa, a partir da visão poliédrica que o autor oferece
de Roger Casement (1864-1916) e de sua trajetória desde a infância na
Irlanda até sua condenação e morte em Londres: herói britânico, traidor
da Inglaterra, e, ainda, difamado como pervertido. Ao transitar - sob a
forma de rememoração –, pelas diversas etapas da carreira do
protagonista como cônsul britânico, Llosa mantém-se, como
historiógrafo, fiel à história de Casement, mas revela, por outro lado,
toda a riqueza e complexidade da personagem por meio dos recursos
que o gênero ficcional lhe fornece. A perspectiva metodológica levará
em conta esses diferentes olhares e representações discursivas sobre
o herói, partindo das concepções teóricas de Mikhail Bakhtin e Edward
Said, além de outros teóricos que discutem o colonialismo, o neo- e o
pós-colonialismo e o romance histórico.
PALAVRAS-CHAVE: Romance histórico. Roger Casement. Vargas Llosa.

Ao receber o Prêmio Nobel de Literatura, Mario Vargas


Llosa, no discurso “Elogio de la lectura y la ficción”, afirma que

La buena literatura tiende puentes entre gentes distintas y,


haciéndonos gozar, sufrir o sorprendernos, nos une por debajo
de las lenguas, creencias, usos, costumbres y prejuicios que
nos separan. (...) Cuando Emma Bovary se traga el arsénico, Anna
Karenina se arroja al tren y Julien Sorel sube al patíbulo(...), el
estremecimiento es semejante en el lector que adora a Buda,
Confucio, Cristo, Alá o es un agnóstico (...). La literatura crea
una fraternidad dentro de la diversidad humana y eclipsa las
fronteras que erigen entre hombres y mujeres la ignorancia, las
ideologías, las religiones, los idiomas y la estupidez. (2010)

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 519


Estas palavras emblemáticas, pronunciadas em dezembro
de 2010, um mês após o lançamento do romance histórico El sueño
del Celta, confirmam o que a obra irá revelar: o relato da vida
heróica e trágica do irlandês e cônsul britânico sir Roger
Casement (1864-1916). A narrativa faz não apenas nos
“surpreendermos” ao compartilharmos das aventuras de
Casement pelo Congo Belga e pela Amazônia peruana, ao ele
presenciar e delatar os horrores do colonialismo belga e britânico
nos dois continentes; e “sofrermos” com ele, ao servir de
intermediário entre o governo alemão e os Easter Rebels durante
a Primeira Guerra Mundial ao ver derrocados seus planos de
libertar a Irlanda do jugo inglês, ser preso, julgado e condenado à
morte. Faz-nos, igualmente, compreender o lado obscuro de sua
personalidade, como revelado nos Black Diaries.
Num trânsito constante entre história e ficção, a pesquisa
feita por Llosa sobre a trajetória de vida e os escritos de Casement
bem demonstra a persistência que teve ao mergulhar seu talento
nesse personagem da história da Irlanda, da Inglaterra e, também,
“cidadão do mundo”, como será chamado por Yeats. Como Llosa
comenta no Epílogo, “tardó buen tiempo (...) hasta ser aceptado
como lo que fue: uno de los grandes luchadores anticolonialistas
y defensores de los derechos humanos de las culturas indígenas
de su tiempo y un sacrificado combatiente por la emancipación
de Irlanda” (2010, p. 448-449). E é a leitura do romance que faz
nos unirmos “por debajo de las lenguas, creencias, usos,
costumbres y prejuicios que nos separan”, para rendermos nosso
tributo a esse herói – simultaneamente “muchos hombres”, no
qual “angeles y demonios se mezclan en su personalidad de
manera inextricable” (SC, p. 449).
Esta visão poliédrica que Llosa lança sobre Casement como
ser humano, em toda sua complexidade, é que pretendemos
explorar – por um lado o herói idealista, o libertador, o mártir e,
por outro, o vilão “traidor” e homosexual abjeto – a fim de ressaltar

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 520


como essas diferentes facetas irão revelar um personagem
contemporâneo, ao se transformar gradualmente não só de
defensor do colonialismo europeu em lutador anti-colonialista,
mas também ao chegar à percepção de que o Império Britânico
coagia de maneira idêntica os nativos da Amazônia e os
habitantes da Irlanda. Este salto é que o torna nosso
“contemporâneo”, ao Casement estabelecer relações entre
acontecimentos e situações que poucos em sua época ousaram
ver. Como destaca Giorgio Agamben,

contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo


para nele perceber não as luzes, mas o escuro. (...) O
contemporâneo é aquele que percebe o escuro do seu tempo
como algo que lhe concerne e não cessa de interpelá-lo, algo
que, mais do que toda luz, dirige-se direta e singularmente a
ele. (2009, p. 62-64)

Em função desses “princípios estruturais da imagem do


herói”, irão juntar-se nesta obra, igualmente, as diferentes
variantes da tipologia histórica do romance – de viagem, de provas,
biográfico e de educação/formação (BAKHTIN, 1992, p. 235) –, com
destaque para a última variante. Como argumenta Bakhtin, se a
maioria dos romances de educação conhece apenas “a imagem
pré-estabelecida do herói”, postulando-o como uma “grandeza
constante” (1992, p. 237), os romances de formação apresentam
“a imagem do homem em devir”: o herói já não é uma unidade
estática, mas uma unidade dinâmica, no qual ele e seu caráter
se tornam uma grandeza variável pelas mudanças ocorridas em
sua trajetória e temporalidade cíclica. Teríamos assim em El
Sueño del Celta um romance de educação que absorve não apenas
– o romance de aventuras, de viagem e de provas, com a
transformação do “adolescente idealista e sonhador”, através da

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 521


experiência, num lutador incansável pelos direitos humanos dos
povos oprimidos;
– o romance biográfico, no qual “a transformação é o
resultado de um conjunto de circunstâncias e empreendimentos
que modificam a vida”, visto que, na prisão, Casement se
transformara num homem derrotado pelas circunstâncias, porém
resignado com a morte, pela fé.
Teriamos, principalmente, um romance de formação, que
se efetua num tempo histórico real, profundamente cronotópico,
no qual

O homem já não se situa no interior de uma época, mas na


fronteira de duas épocas (...). Ele é obrigado a tornar-se um
novo tipo de homem, ainda inédito. (...) A força organizadora do
futuro desempenha portanto um importante papel (...). São os
fundamentos da vida que estão mudando e compete ao homem
mudar junto com eles. Não é de surpreender que, nesse tipo
de romance de formação, os problemas sejam expostos em toda
a sua envergadura (...). A imagem do homem em devir perde
seu caráter privado (...) e desemboca numa esfera totalmente
diferente, na esfera espaçosa da existência histórica. (BAKHTIN,
1992, p. 238-40)

Essas teorizações, que antecipam e englobam a argumentação


de Agamben sobre o contemporâneo, permanecerão como pano
de fundo para a discussão de algumas das múltiplas facetas que
Llosa revela da persona de Roger Casement.

O despertar do herói
Os diferentes aspectos da personalidade de Casement –
idealista, aventureiro, poeta, tímido, sensível e intuitivo – já estão
presentes no relato de sua infância e adolescência, antecipando
assim os traços que se tornarão marcantes quando adulto e que,
em decorrência dos acontecimentos e das aventuras pelas quais

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 522


irá passar, serão responsáveis pela sua conversão política: ao
passar do idealismo e timidez
– à coragem e combatividade contra a opressão colonialista
e imperialista sobre os indígenas no Congo e na Amazônia;
– à ousadia e militância pela causa irlandesa;
– e, na prisão, à sua reincorporação à igreja católica.
Apesar de Roger Casement ter nascido em Dublin, seu
pai, o capitão Roger Casement, inculcou-lhe “que su verdadera
cuna era (...) el corazón del Ulster, la Irlanda protestante y
probritánica, donde el linaje de los Casement estaba establecido
desde el siglo XVIII” (SC, p.18). Esta bifurcação quanto ao seu
pertencimento à República da Irlanda, onde nascera, ou à Irlanda
do Norte, de onde descendiam os familiares do pai, será retomada
ao longo da narrativa, culminando com sua conscientização da
força opressora do imperialismo britânico em relação à Irlanda
do Norte, que o levará a trair a Inglaterra e, em consequência, a
ser julgado e enforcado.
A mesma ambivalência irá ocorrer quanto a seu credo:
mesmo sendo educado, com os irmãos, na Church of Ireland,
descobriu, já adolescente, que sua mãe Anne Jephson, havia se
convertido ao protestantismo para casar-se com seu pai, mas
continuava sendo católica às ocultas; descobriu também que ele
próprio havia sido batizado católico aos quatro anos.Esta
ambivalência irá igualmente atravessar a narrativa, culminando
com sua reintegração ao catolicismo, antes de morrer.
Também antecipando as viagens que faria e as situações
extraordinárias e aventuras pelas quais iria passar quando adulto,
o narrador comenta o interesse que o menino demonstrava pelas
histórias do pai sobre as batalhas das quais havia participado na
India e no Afganistão, nessas “remotas fronteras del Imperio”.
Histórias essas complementadas pelas próprias leituras das
façanhas dos grandes navegantes que haviam “surcado los mares
del planeta”.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 523


Esta admiração pelo pai, todavia, contrastava com sua
extrema severidade, pois “no vacilaba en azotar a sus hijos cuando
se portaban mal” (SC, p.20), episódios que irão se repetir, de forma
muito mais cruel, ao Casement presenciar os castigos que os
exploradores brancos aplicavam aos nativos na África e na
Amazônia, estabelecendo um novo paralelo entre fatos da infância
e o que está por vir.
Entretanto, quem Roger amava de verdade era a mãe – “esa
mujer esbelta que parecia flotar em vez de andar” (CS, p. 20) –,
fato que irá prenunciar sua presença constante nas
rememorações de Casement, bem como uma sensibilidade e
carência por parte do menino pelo carinho materno que sempre
vêm à tona em momentos culminantes da narrativa. A morte da
mãe quando Roger tinha nove anos o abalou muitíssimo.
O fato de seu pai, após a morte da mãe, ter deixado Dublin
e entregue os filhos aos tios-avós em Ulster, afastou Roger do
convívio paterno. Com a morte do pai três anos após a mãe, Roger
continuou com os tios até os quinze anos. Entretanto, “solo muchos
años más tarde aprenderia a sentirse cómodo” (...) na “casa solar
de los Casement” (SC, p. 22-23), revelando sua inadequação ao
que se referia ao solar paterno, em contraste com a natureza à
sua volta – as colinas, o mar, as aldeias antigas e os glens. Esse
“rincón del paraíso” (SC, p.23) de sua infância e adolescência, que
será contrastado com o cenário inexorável de extermínio e
crueldade humanos que irá presenciar no Congo e Amazônia,
servirá, igualmente, de estímulo para sonhar com uma Irlanda
livre.
Por conselho do tio-avô John Casement, Roger aos quinze
anos foi trabalhar em Liverpool. Continuava lendo e estudando
sobre a África e

repetia convencido, las ideas que impregnaban esos textos.


(...) El comercio llevaba allá la religión, la moral, la ley, los

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 524


valores de la Europa moderna, culta, libre y democrática, um
progreso que acabaria por transformar a los desdichados de
las tribus en hombres y mujeres de nuestro tiempo. En esta
empresa, el Imperio británico estaba a la vanguardia de Europa
(...) (SC, p. 26)

Llosa nos adianta, assim, as principais facetas que a


personalidade híbrida do herói irá desenvolver: mesmo que fosse
idealista em relação à sua missão e extremamente sensível pelo
amor dedicado à figura materna, já conhecia a ambivalência de
seu pertencimento nacional e religioso e de sua admiração e
afeto pelo pai apesar dos castigos infligidos; e, ao se defrontar
com a realidade brutal das regiões que irá percorrer – quando
sua sensibilidade, exacerbada ao testemunhar o sofrimento,
tortura e mutilação dos nativos no Congo e no Putumayo, leva-o
às raias da loucura –, é induzido à conscientização de sua
homossexualidade e da coprolalia nos Diários, quase que como
uma válvula de escape diante de tanto horror.

As aventuras do herói no Congo


As três primeiras viagens de Casement ao Congo são
motivadas pelo desejo de ajudar os africanos a sair de sua condição
“sub-humana” e, assim, “en un arranque de idealismo y sueño
aventurero, decidió em 1884 dejar Europa y venir al África a
trabajar para, mediante el comercio, el cristianismo y las
instituciones sociales y políticas de Occidente, emancipar a los
africanos del atraso, la enfermedad y la ignorancia” (SC, p. 35).
Esta profunda convicção da função civilizadora do
Imperialismo, comentada por Edward Said – “Imperialism after
all was a cooperative venture, and a salient trait of its modern
form is that it was (or claimed to be) an educational movement; it
set out quite consciously to modernize, develop, instruct, and
civilize” (SAID, 1994, p.223) – materializa-se ao receber a notícia

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 525


de que faria parte da expedição do “más famoso aventurero em
suelo africano: Henry Morton Stanley.(…)! Acompañar al héroe
que encontró al desaparecido doctor Livingstone!” (SC, p. 35).
A razão aparente da expedição de 1884 era preparar as
comunidades do Congo para a chegada dos comerciantes e
administradores europeus que a Associação Internacional do
Congo iria trazer, uma vez que as potências ocidentais deram a
concessão do Congo ao rei Leopoldo II da Bélgica. Stanley e seus
acompanhantes deveriam explicar aos caciques as “intenções
benévolas” dos europeus e Roger, a princípio, não queria dar-se
conta de que os contratos de Stanley eram um embuste, pois os
caciques não sabiam o que assinavam.
Em seu confronto com Stanley, ouve que virão
missionários, médicos, companhias, escolas para, aos poucos, os
nativos trocarem “sus costumbres bárbaras por las de seres
modernos e instruídos” (SC, p.43). Mas o idealismo de Roger já
começava a sofrer abalos:

Hasta entonces creia que el colonialismo se justificaba com


ellas: cristianismo, civilización y comercio. (...) Era inevitable
que se cometieran abusos. (...) aprendió también que el
explorador era un mistério ambulante. Todas las cosas que se
decían sobre el estaban siempre en contradición entre ellas
mismas (...).Lo único claro fue que la idea de um gran benefactor
de los nativos no correspondía a la verdad. (SC, p.43-4)

Numa segunda etapa, já como cônsul da Grã Bretanha em


Boma, em 1900, recebe a autorização do Foreign Office para viajar
a todos os lugares onde se fazia a extração da borracha no Congo,
pois “debía verificar sobre el terreno qué había de cierto en las
denuncias sobre iniqüidades cometidas contra los nativos en el
Congo de su Majestad Leopoldo II” (SC, p.34).

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 526


Assim, converte-se de aventureiro em investigador oficial
do Governo Britânico. Nesses três meses, em todas as regiões
que visitava repetiam-se as mesmas explicações: os negros
morriam de doenças, pragas, má alimentação. Mas Roger sabia a
resposta verdadeira: “La plaga que había volatilizado a buena parte
de los congoleses (...) eran la codicia, la crueldad, el caucho, la
inhumanidad de un sistema, la implacable explotación de los
africanos por los colonos europeos” (SC, p.82).
A denúncia que faz ao capitão Marcel Junieux, responsável
pela Força Pública da região, não surte efeito, pois além de fazer
troça do idealismo de Casement, ainda o adverte: “no hay fuerza
humana que cambie este sistema. Es demasiado tarde para eso”
(SC, p.102). Esta advertência não apenas confirma o poder e a
desumanidade deste sistema colonial já intuída por Roger, mas
também nos remete ao que Agamben denomina de “Dispositivo”:

qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de


capturar, orientar, determinar, (...) controlar e assegurar os
gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres
viventes. Não somente, portanto, as prisões, os manicômios,
(...) as escolas, a confissão, as fábricas, as disciplinas, as
medidas jurídicas, etc., cuja conexão com o poder é num certo
sentido evidente, mas também a caneta, a escritura, a literatura,
a filosofia, a agricultura, o cigarro, a navegação, os
computadores, os telefones celulares e – por que não – a própria
linguagem (...). (AGAMBEN, 2009, p. 40-41)

Transpondo essas reflexões para a investigação de


Casement, poderíamos sugerir que o colonialismo europeu, como
dispositivo, tinha capacidade de determinar e controlar as
condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes – dos que
executam as ordens como dos que padecem sob as mesmas; este
sistema foi responsável pela transformação do herói, pois, segundo
Agamben, o sujeito, o que resulta da relação de subjugação dos

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 527


seres viventes aos dispositivos, “pode ser o lugar dos múltiplos
processos de subjetivação” (AGAMBEN, 2009, p. 42). Como Roger
perceberá, “en esse período cambió su manera de ser y se
convirtió en otro hombre, más lúcido y realista de lo que había
sido antes, sobre el Congo, el África, los seres humanos, el
colonialismo, Irlanda y la vida. Pero aquella experiencia hizo de
él, también, um ser más propenso a la infelicidad” (SC, p. 80-81).
Assim, esta transformação do herói num outro homem
leva-nos ao âmago da visão poliédrica de Llosa sobre Casement.
Servirá de parâmetro não só para sua próxima incumbência de
averiguação de atrocidades no interior da Amazônia peruana ,
pois Casement, ao lá chegar, já era esse “outro homem”; servirá,
igualmente, para descobrir sua afinidade com a Irlanda, como a
correspondência que mantém com a prima Gee revela:

Así es, Gee querida, te parecerá otro sintoma de locura pero


este viaje a las profundidades del Congo me há servido para
descubrir a mi próprio país. (...) En estas selvas no solo he
encontrado la verdadera cara de Leopoldo II. También he
encontrado mi verdadero yo: el incorregible irlandés. (...) Tengo
la impresión de haber mudado de piel, (...) de mentalidad y
acaso hasta del alma. (SC, p.109)

eu”, percepção essa que continua em seus pensamentos sobre o


país de sua infância e juventude É a primeira menção da
descoberta de uma nova verdade: seu nacionalismo nascente,
juntamente com seu “verdadeiro para afastar as imagens de horror
que o destruíam:

No era también Irlanda una colonia, como el Congo? (...) No


habían invadido los ingleses al Eire? No la habían incorporado
el Imperio mediante la fuerza, (...) tal como los belgas a los
congoleses? Con el tiempo, aquella violencia se había mitigado,

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 528


pero Irlanda seguia siendo uma colonia, cuya soberania
desapareció por obra de um vecino más fuerte. (SC, p.110)

É o início do salto de Casement – ao descobrir, através da


mentira do colonialismo, a verdade de que era irlandês e, portanto,
também cidadão de um país “desangrado y dealmado” como o
Congo – salto que o levará, após a experiência da Amazônia, a
lutar pela libertação da Irlanda.
Deste modo, as aventuras de Casement, durante os vinte
anos no Congo e em sua volta à Inglaterra, onde se tornou um
herói, demonstram como este aprendizado não apenas ressalta
suas facetas de aventureiro e idealista reveladas na infância e
adolescência, mas como aos poucos sua experiência o havia
transformado num outro homem, realista, corajoso e atuante,
ao denunciar as atrocidades que investigara – fato já mencionado
por Edward Said, ao comentar que, “in colonies like the Congo
and Egypt people such as Conrad, Roger Casement, and Wilfrid
Scawen Blunt, [who] record the abuses and the almost mindlessly
unchecked tyrannies of the white man” (SAID, 1994, p.107); e,
concomitantemente, ao iniciar uma trajetória nacionalista que
o levaria, já naquela ocasião, a dizer que “odiava o Império
britânico” e a se recusar a receber a condecoração real.
Essas facetas, entre outras, serão projetadas e acentuadas
uma vez mais em novas aventuras, até desembocarem nas ações
a favor da independência da Irlanda e à “traição” ao Império
Britânico, que o levarão ao desenlace fatal.

As aventuras do herói na Amazônia


Durante seus anos de serviço consular em Santos, Belém
do Pará e Rio de Janeiro, Casement participou de uma missão
oficial à Amazônia, em 1910, para averiguar as denúncias de
crimes perpetrados contra os nativos pela Peruvian Amazon
Company, em Putumayo. Como comenta Angus Mitchell, “a viagem

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 529


viria a aprofundar as suas preocupações sobre a forma destrutiva
dos impérios e do poder da modernização não inspecionada” (2011,
p.15), confirmando não só a transformação que sua faceta
sonhadora havia sofrido – pois será com um olhar conhecedor
que irá avaliar as atrocidades que irá presenciar – como também
a revelação de novas facetas: seu “carácter estoico” (SC, p. 141),
visto que nunca deixou transparecer que seu estado geral de
saúde, já abalado no Congo, havia piorado; e o aguçamento da
percepção de seu nacionalismo: sonha com o ano e meio que
passou na Irlanda, entre 1904 e 1905, e como “aquellos meses
significaron el redescubrimiento de su país, (...) una Irlanda que
no era cola y sombra del Império británico, que luchaba por
recobrar su lengua, sus tradiciones y costumbres”. Como escreveu
Gee, “Roger querido: te hás vuelto um patriota irlandês” (SC, p.
143).
Apesar de ainda não haver iniciado sua investigação, Roger
já percebia as semelhanças entre os dois continentes, unidos
pelo flagelo do “dispositivo” colonialista, e sentia-se transportado

en el espacio y en el tiempo al Congo. Los mismos horrores. El


mismo desprecio de la verdad.(...) La diferencia, que Zumaeta
hablaba en español y los funcionários belgas en francés.
Negaban lo evidente com la misma desenvoltura porque ambos
creían que recolecter caucho y ganar dinero era un ideal de los
cristianos que justificaba las peores fechorías contra esos
paganos que, por supuesto, eran siempre antropófagos y
asesinos de sus propios hijos. (SC, p.174)

As novas atrocidades que a Comissão descobre em La


Chorrera – os indígenas “marcados como animales” (SC, p. 219) e
o cepo de torturas – fazem Roger perceber a similaridade entre os
indígenas da Amazônia e os da África, que não se rebelavam pelas
mesmas razões, remetendo-nos, novamente, às relações de
subjugação das classes dos “seres viventes” aos “dispositivos”

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 530


(AGAMBEN, 2009, p. 40): “Porque, cuando el sistema de explotación
era tan extremo, destruía los espíritos antes todavia que los
cuerpos. La violencia de que eran víctimas aniquilaba la voluntad
de resistencia, el instinto por sobrevivir, convertia a los indígenas
en autómatas paralizados por la confusión y el terror” (SC, p. 221).
Leva-o a igualmente uma nova descoberta que irá
redirecionar seu idealismo ao engajamento político, pois, como
anotou em seu diário, “Los irlandeses somos como los huitotos
(...) del Putumayo. Colonizados, explotados y condenados a serlo
siempre si seguimos confiando en las leyes, las instituiciones y
los goviernos de Inglaterra, para alcanzar la libertad. Nunca nos
la darán. (...) Esa presión solo puede venir de las armas”. (SC,
p.239). Esta ideia irá se intensificar de agora em diante, ao
concluir que “No debemos permitir que la colonización llegue a
castrar el espíritu de los irlandeses como há castrado el de los
indígenas de la Amazonía. Hay que actuar ahora, de uma vez,
antes que se atarde y nos volvamos automatas” (SC, p.247). É
assim que Roger retorna à Europa em fins de 1910.
Em Londres, apesar da piora de seu estado de saúde, redige
o Informe sobre el Putumayo, elogiado pelo ministro sir Edward Grey.
Com a publicação deste Relato em 1912, há uma grande comoção
em Londres, Europa e Estados Unidos e Casement é reconhecido
como o grande humanitário lutando contra o extermínio dos
indígenas, atingindo destarte o auge de sua ascensão como herói.
Em novembro de 1912 a Peruvian Amazon é levada a
julgamento e, no interrogatório, o testemunho mais esperado foi
o de Roger, que descreveu tudo “con precisión y sobriedad”: a
tortura nos cepos, cicatrizes das flagelações, as correrias, a
escravidão, a exploração sub-humana dos índios. Exibiu os objetos
e as fotos tiradas em El Encanto: cicatrizes, cadáveres, sacos de
borracha solidificada, “inapelable testimonio” (SC, p. 331) da
condição desses seres famintos e maltratados por pessoas ávidas
de lucro.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 531


A ida de Casement a Berlim para escapar dos jornalistas
serviu-lhe para que uma idéia se convertesse “en uno de los
vértices de su acción política”: como a possibilidade de o
Parlamento inglês conceder Home Rule à Irlanda mobilizou os
unionistas de Ulster a favor da Inglaterra, Roger pensou em buscar
solidariedade na Alemanha, pois se a Inglaterra fosse derrotada
na guerra iminente isto levaria à emancipação da Irlanda. Será
o seu erro trágico e fatal: estar dividido entre uma Inglaterra que
o cobria de glórias e uma Irlanda que desejava livre (SC, p. 328).

A falha trágica do herói


O novo projeto de Casement, agora, era “ocuparse de otros
indígenas, los de Irlanda”. Entregou pedido de renúncia ao Foreign
Office por motivos de saúde, pois não queria “volver a vivir en la
duplicidad, ejercer de diplomático al servicio de un Imperio que
condenaba com sus sentimientos y princípios”. O homem de ação
se fortalece: publica “El Putumayo irlandés” e começa a escrever
na imprensa nacionalista.
Em 1913 Roger percorre a Irlanda fazendo discursos
políticos e colabora com os planos estratégicos dos voluntários,
empenhados em dotar o movimento com armas para lutar pela
soberania. Em 1914, reafirma ao jornalista Oskar Schweriner a
ideia que tivera em Berlim “de vincular la lucha por la
emancipación de Irlanda a Alemania si estallaba un conflicto
bélico entre este país y Gran Bretaña” (SC, p. 398), iniciando
destarte o que será sua falha trágica: confiar numa aliança com
a Alemanha. Quando a Grã-Bretanha declarou guerra à Alemanha,
Roger e os dirigentes do Clan decidiram que ele iria a este país
representando os independentistas para estabelecer uma aliança
estratégica, na qual o Kaiser ajudaria política e militarmente os
voluntários e estes fariam campanha contra o alistamento de
irlandeses no exército britânico.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 532


Roger se entregou à ação com enorme energia:
confirmando sua faceta antibritânica (SC, p. 405), publica Irlanda,
Alemania y la libertad de los mares: un posible resultado de la guerra
de 1914. Seus pronunciamentos a favor da Alemanha
impressionaram os diplomatas do Reich nos EUA e Roger expôs
ao embaixador alemão o pedido dos nacionalistas: fusís e munições
para um levantamento militar irlandês anticolonialista que
imobilizaria as forças militares inglesas no litoral irlandês. Os
alemães aprovam as conversações.
Nas conversas que mantém, em Berlim, com os sacerdotes
que chegaram para o campo dos prisioneiros irlandeses, Roger
expôs “su desconcierto espiritual” e suas dúvidas sobre a nova
missão, pois, ao se dirigir aos prisioneiros explicando a razão de
uma Brigada Irlandesa, foi recebido com hostilidade, uma
experiência da qual nunca se recuperou.
A chegada em 1915 a Berlim de Joseph Plunkett, delegado
dos Voluntários e da Irish Republican Brotherhood (IRB), com
notícias da Irlanda de que uma minoria leal aos Voluntários
contava com militantes decididos a lutar, faz com que Roger
insista na ofensiva alemã como condição para o Levante.
Entretanto, Roger sente-se um fracassado, ao ser aconselhado
pelo conde Blücher a descartar a invasão num futuro próximo,
pois a Irlanda representava pouco em termos geopolíticos. Entre
tantos revezes e tensões, sentiu que perdia o equilíbrio mental:
fora enganado pelo Reich, que não tinha interesse na libertação
da Irlanda, servindo-se de sua ingenuidade e boa fé. É a verdade
final, que descobre: “su anhelo de que la Brigada se convirtiera
em uma pequeña fuerza simbólica de la lucha de los irlandeses
contra el colonialismo se había hecho humo” (SC, p. 430).
Começou a sentir pela Alemanha um ódio semelhante ao
que lhe inspirava a Inglaterra, como comenta em carta a John
Quinn, numa intuição fatídica: “Así es, mi amigo: he llegado a

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 533


odiar tanto a los alemanes que, antes de morir aquí, prefiero la
horca británica”.
Em inícios de março de 1916 recebe a notícia que o comitê
irlandês havia decidido que o Levante teria lugar no dia 23 de
abril e que ele deveria permanecer na Alemanha como “embajador
de la nueva República de Irlanda” (SC, p.431). Percebeu que não
fora avisado pelos companheiros dos planos antes do governo
alemão. Como estavam cientes de sua oposição a um levante
sem invasão conjunta alemã, pensavam que na Irlanda ele seria
um estorvo. Mas Roger tem sua linha de conduta clara: partir ele
próprio à Irlanda com o carregamento de armas que esperava
conseguir para seus amigos do Levante, a fim de convencê-los
que esperassem, pois com o passar do tempo a guerra europeia
poderia criar situações mais propícias para a insurreição; e,
também, impedir que os cinquenta e três inscritos na Brigada
Irlandesa partissem à Irlanda, já que, como “traidores” do Governo
britânico seriam executados, se capturados pela Royal Navy.( SC
p.432). Esta decisão de Roger reflete mais uma vez sua abnegação
e altruísmo, pois sabia que seria capturado ao desembarcar na
Irlanda. Foi o que aconteceu.

O desenlace
Durante os três meses em que se encontra na prisão de
Pentonville, em Londres, Roger recebe informações sobre o
andamento do processo, visitas e, principalmente, reavalia sua
trajetória de vida: reflete sobre os erros que cometeu, que
culminaram no seu julgamento como traidor do Império Britânico
e, também, sobre sua reintegração ao catolicismo da mãe: ao
receber a visita do Padre Carey, antes de ser enforcado, este lhe
confirmou que “No necesita ser recibido de nuevo en la Iglesia
católica. Siempre estuvo en ella”. Roger “se alegró por la
complicidad que esse secreto establecía entre él e Anne Jephson.
Y porque de este modo se sentia más en consonancia consigo

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 534


mismo, com su madre, con Irlanda” (SC, p.125), demonstrando,
destarte, a profunda conexão existente entre o amor pela mãe, a
reintegração ao catolicismo e o amor pela Irlanda, três facetas
que se iniciaram na infância e que o acompanham até o final.
Por intermédio de Carey Roger também descobre a verdade
paradoxal de que havia sido julgado e condenado por trazer armas
para uma secessão violenta da Irlanda, quando, na realidade,
havia feito essa viagem arriscada da Alemanha à Irlanda para
evitar esse Levante, fadado ao fracasso. Roger percebe também
que a vida que levara, com todos seus percalços, era preferível,
pois “Había visto mundo, su horizonte se amplió enormemente,
entendió mejor la vida, la realidad humana, la entraña del
colonialismo, la tragédia de tantos pueblos por culpa de esa
aberración” (SC, p. 135) evidenciando assim, mais uma vez, sua
contemporaneidade na acepção agambeniana.
Por outro lado, neste recapitular de sua vida antes da
execução, permanece a dúvida: “Estaban justificados los sacrifícios
de esos veinte años africanos, los siete años em América del
Sur, el año y pico en el corazón de las selvas amazónicas, el año
y médio de soledad, enfermedad y frustraciones en Alemania?”.
Destarte, a autoavaliação de sua vida o faz descobrir verdades
sobre o ser humano e sobre si mesmo: “! Así se escribía la Historia!
Él, que vino a tratar de atajar el alzamiento, convertido en su
líder por obra del despiste británico. (...) Eso era la historia, uma
rama de la fabulación que pretendía ser ciencia.” (SC, p. 274). É a
grande contradição entre história e realidade, verdade que Roger
descobre através de suas próprias ações e, simultaneamente, é
a complementação entre história e ficção.
Como Llosa comenta, no Epílogo, a história de Casement
se projeta, apaga e renasce após sua morte como fogos de artifício.
Levou tempo a ser admitido no panteão dos heróis da
independência da Irlanda. Nem agora se dissipou de todo a
campanha que a inteligência britânica lançara, sobre

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 535


homosexualismo e pedofilia. Sua figura incomodava a Irlanda,
que mantinha uma severíssima moral. Com a revolução dos
costumes, o nome de Casement foi abrindo caminho, até ser
aceito como o que foi, como já visto: “uno de los grandes
luchadores anticolonialistas y defensores de los derechos
humanos y de las culturas indígenas de su tiempo y un sacrificado
combatiente por la emancipación de Irlanda.” (SC, p. 448-9)
É o olhar poliédrico de Llosa que lhe permitiu ver “muchos
hombres” em Casement, tornando-o não apenas
- um herói de grandeza variável num romance de formação,
- um herói que se situa na fronteira de duas épocas, na
argumentação bakhtiniana,
- mas também nosso contemporâneo, que não se deixou cegar
pelas luzes de seu século
e recebeu em pleno rosto o facho de trevas do seu tempo, de
acordo com Agamben.
É esta imagem do homem em devir que o faz desembocar
“na esfera espaçosa da existência histórica”. A discussão continua
em aberto, conforme demonstra o romance. A palavra final, em
função de uma atitude dialógica e plurissignificativa, cabe ao
leitor.

Referências

AGAMBEN, G. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Trad.


Vinicius Nicastro Honesto. Chapecó: Argos, 2009.

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes,


1992.

___________. Problemas da poética de Dostoievski. Rio de Janeiro:


Forense Universitária, 1997.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 536


CARLOS, A. M. e ESTEVES, A.R.(orgs). Ficção e História: leituras
de romances contemporâneos. Assis: Faculdade de Ciências e
Letras de Assis, 2007.

CASEMENT, R. The Amazon Journal of Roger Casement. Ed.


MITCHELL, Angus. London: Anaconda Editions, 1997.

MITCHELL, A. Roger Casement no Brasil: a Borracha, a Amazônia


e o Mundo do Atlântico. Org. Laura P. Z. Izarra. São Paulo: W.B.Yeats
Chair of Irish Studies; Humanitas, 2011.

SAID, E. W. Culture and Imperialism. New York: Vintage Books,


1994.

VARGAS LLOSA, M. “Elogio de la lectura y la ficción”. Discurso de


Mario Vargas Llosa al recibir el premio Nobel de Literatura 2010.
Copyright Fundación Nobel 2010, p. 3. Referências de fonte
eletrônica.Disponível em: //www.nobelprize.org/nobel.../
vargas_llosa-lecture. PDF/Adobe Acrobat. acesso em 20/12/2010.

_________. El sueño del Celta. Buenos Aires: Aguilar, Altea, Taurus,


Alfaguara, 2010.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 537


FACES DA VIOLÊNCIA NA FICÇÃO IRLANDESA
CONTEMPORÂNEA
(work in progress)

Autora: Profa. Solange Viaro Padilha (Faculdades Santa Cruz)

RESUMO: O tema da violência atrai pesquisadores das mais diversas


áreas. Filósofos, cientistas políticos, antropólogos, psicanalistas e
psiquiatras, entre outros profissionais, dedicam-se ao estudo desse
tópico tão complexo. A cada dia, ampliam-se os conceitos, as tipologias,
as teorias a respeito do assunto. No ocidente, as marcas da violência
podem ser facilmente rastreadas nas tragédias gregas, nas sagas
nórdicas, na mitologia celta, no teatro elisabetano, nos contos de fadas
e em tantos outros textos que tratam das relações de poder e
dominação. O infortúnio ou a tragédia, muitas vezes vistos como
decorrentes da crueldade ou da tirania, são um tema caro à literatura.
O propósito deste estudo é fazer uma reflexão sobre a opressão e as
agressões que acontecem no âmbito privado e sua representação na
ficção irlandesa contemporânea. Para tal, analisaremos os contos “Crie
uma sereia só para você”, de Marina Carr, e “The Parting Gift”, de
Claire Keegan.

Too long a sacrifice


Can make a stone of the heart
(W. B. Yeats, “Easter, 1916”)

Ao longo dos anos, antropólogos, cientistas políticos,


escritores, filósofos, médicos, psicólogos e profissionais de diversas
áreas têm se dedicado ao estudo da violência. Tema caro à
literatura, o termo tem sua origem na palavra latina violentia,
que remete a veemência, força intensa, dano, destruição e
violação, seja de propriedades ou de pessoas. Segundo o Dicionário
eletrônico Houaiss da língua portuguesa, violência é a “ação ou efeito
de violentar, de empregar força física (contra alguém ou algo) ou
intimidação moral contra (alguém); ato violento, crueldade, força”.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 538


Em termos jurídicos, o mesmo Dicionário traz a seguinte
definição: “constrangimento físico ou moral exercido sobre
alguém, para obrigá-lo a submeter-se à vontade de outrem;
coação”.
Para a Organização Mundial de Saúde (2014), a violência
configura

o uso intencional da força física ou do poder, real ou em ameaça,


contra si próprio, contra outra pessoa, ou contra um grupo ou
uma comunidade, que resulte ou tenha a grande probabilidade
de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de
desenvolvimento ou privação.

De acordo com Anthony Asblaster, “Não existe uma


definição consensual ou incontroversa de violência. O termo é
potente demais para que isso seja possível” (apud OUTHWAITE;
BOTTOMORE, 1996, p.620). Por não haver um consenso com
relação ao seu caráter, a palavra é permanentemente redefinida,
pois vai além das manifestações que acontecem em público a
práticas mais veladas como a violência psicológica ou institucional.
Diversos autores acreditam que, “Na verdade, só se pode falar de
violências, pois se trata de uma realidade plural, diferenciada,
cujas especificidades necessitam ser conhecidas” (MINAYO;
SOUZA, 1998, p.514). Portanto, qualquer reflexão que se proponha
sobre o assunto deve levar em consideração tanto a complexidade
quanto as controvérsias despertadas pelo objeto.
Talvez o único consenso geral seja o de que o ímpeto
ofensivo se manifesta de diversas maneiras, e sempre revela
alguma forma de dominação, seja de um indivíduo, de um grupo,
de uma instituição ou de uma nação. A grande variedade de
formas de agressão permite a divisão em tipologias: as violências
de gênero, doméstica, sexual, juvenil, social, étnica, religiosa,
política, midiática, psicológica, institucional, o terrorismo, entre

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 539


outras. Cada uma das categorias apresenta características
distintas, ainda que não necessariamente excludentes.
Estudos a respeito da violência propagaram-se a partir
século XX, especialmente em decorrência das duas grandes
guerras, dos inúmeros conflitos existentes em todo o mundo (seja
por motivos de ordem étnica, racial, religiosa, ideológica) e dos
discursos pacifistas que se seguiram. Entidades humanitárias,
instituições de saúde, de segurança pública e cientistas sociais
passaram a dedicar-se ao assunto, que por sua vez também é
explorado nas artes e na literatura.
Em nosso estudo, apontaremos alguns aspectos
relacionados à opressão que se dá no âmbito privado, aquela que
nem sempre é fácil identificar: a violência doméstica. Mais
especificamente, os atentados contra a mulher e contra a criança.
Esse é reconhecidamente um problema mais abrangente do que
indicado por boletins de ocorrência, e muitas pesquisas procuram
estimar a real extensão do problema junto à população (BARNISH,
2004).
A Declaração sobre a Eliminação da Violência contra as
Mulheres, documento da ONU que data de 1993, define a violência
contra as mulheres como

qualquer ato de violência baseada em gênero que resulta em,


ou pode provavelmente resultar em dano físico, sexual ou
psicológico ou sofrimento para as mulheres, incluindo ameaças
de tais atos, coerção ou privação arbitrária da liberdade, quer
esta ocorra em público ou na vida privada.

Essa definição menciona as raízes da opressão baseada no gênero,


reconhecendo que “a violência contra as mulheres é um dos
mecanismos sociais cruciais pelos quais as mulheres são forçadas
a uma posição subordinada em relação aos homens” (UNICEF,
Innocenti Digest, 2000). Ela amplia o conceito de violência ao incluir

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 540


ambos os danos físicos e psicológicos causados às mulheres, bem
como os atos que ocorrem tanto na vida pública quanto privada.
Como se pode observar, o assunto é muito mais abrangente
do que se poderia tratar neste breve estudo. Assim sendo,
passaremos à representação da violência na literatura e, mais
especificamente, na ficção irlandesa contemporânea.
No ocidente, a presença da violência na literatura é
bastante antiga. Ela pode ser encontrada nas grandes tragédias
gregas, a exemplo de Medéia (Eurípedes, 431 a.C.) e de Édipo Rei
(Sófocles, 429 a.C.), nas mitologias de vários povos, em textos da
idade média, nas sagas nórdicas, em Shakespeare (O rapto de
Lucrécia; Hamlet; Rei Lear, entre outras), nos contos de fadas, em
William Butler Yeats, Samuel Becket, Martin McDonagh, para
mencionar apenas alguns autores.
A violência da sociedade moderna permeia os textos
literários dos séculos XX e XXI. Tanto a destruição em massa
provocada pelas guerras – com o poder letal dos exércitos e a agonia
dos campos de batalha – quanto os crimes individuais de
assassinato, estupro e abusos de toda ordem são temas de
romances, poemas, ensaios, peças teatrais. Um texto carregado
de violência traz em si um grande potencial de chocar os leitores,
fazendo-os refletir a respeito de suas crenças. Embora admitamos
um possível apelo sensacionalista, nas décadas que sucederam
a Segunda Guerra Mundial, muitos escritores expressaram a
angústia de viver em um mundo no qual a selvageria humana
ameaçava provocar a destruição global. Desse modo, a violência
torna-se um tópico por meio do qual é possível, simbolicamente,
apresentar o panorama histórico, psicológico e artístico de toda
uma era.
A ideia de que a literatura irlandesa contemporânea
ocupa-se da violência por ter tido um passado bastante turbulento
é legítima; no entanto, pode-se afirmar que as literaturas de
diversas nações – quer tenham sido elas colonizadas ou

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 541


colonizadoras – abordam o tema. Outra leitura bastante corrente
é a de que a mulher, em uma multiplicidade de textos, representa
a própria Irlanda. Nesse sentido, se essa mulher é agredida,
brutalizada, se ela sofre algum tipo de opressão ou de intimidação,
isso também se refere ao país. De qualquer maneira, as relações
de poder e dominação por meio da selvageria são constantes.
Embora as tipologias sejam inúmeras, optamos pela
violência doméstica e sua representação na ficção irlandesa
contemporânea como objeto de nosso estudo. Para tal,
analisaremos os contos “”Crie uma sereia só para você””, de
Marina Carr e “The Parting Gift”, de Claire Keegan. Duas autoras
mulheres, duas vozes potentes desnudando a crueldade da
natureza humana.

“Crie uma sereia só para você”

But the self cannot survive without love.


The self starved of love dies.
(James Gilligan)

Ao discorrer sobre as fotografias de guerra, Susan Sontag


(2003) assevera que cada imagem é um recorte fotográfico de um
momento de violência; tal recorte seleciona e exclui. De certo
modo, consideradas as diferenças entre ambas as artes, pode-se
dizer que um processo semelhante acontece com a literatura.
Afinal, ao escrever, o autor seleciona as cenas que quer retratar.
No conto “Crie uma sereia só para você”, Marina Carr faz
um retrato precioso de uma família em pleno processo de
desagregação. As várias pequenas cenas, num total de catorze,
são como imagens fotográficas de momentos cotidianos de
expectativa, tensão, hostilidade, abandono, sofrimento.
As personagens, com exceção de Vó Blaize, não são
nomeadas. Uma atmosfera de conto de fadas é apresentada logo

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 542


na vinheta inicial: a criança (a protagonista), encanta-se ao ler
um anúncio de venda de sementes de sereia. Engana-se o leitor
que acreditar ser esse um conto inocente. Embora a roupagem
seja moderna, ele remete aos antigos contos de fadas, ou contos
de destino, que tratam dos aspectos trágicos da vida.
A perspectiva de violência começa a se delinear de forma
sutil a partir da segunda cena. Vó Blaize, que já não tem plena
consciência de seus atos, faz trejeitos incompreensíveis; parece
tentar pegar alguma coisa no ar. Mesmo sendo asperamente
interpelada por sua filha, que é a mãe da criança, a velha senhora
continua a puxar algo invisível de cima da cabeça até o chão.
Sabe-se que

Quando começou a agir assim, já estava em declínio. A criança


gostava mais dela agora, no momento antes da partida. A
criança imaginava Vó Blaize abrindo uma porta com um fio
mágico, uma porta em algum outro lugar, em qualquer lugar,
mas distante daqui. (CARR, 2000, p. 30)

Além de perceber a debilidade da avó, a criança a imagina


manipulando um objeto mágico, que poderá abrir uma passagem
para algum lugar distante. E a própria criança parece desejar
estar “em algum outro lugar, em qualquer lugar”, desde que esse
local seja afastado de seu mundo. Nós, leitores, ainda não sabemos
por que razão ela ambiciona partir. Mas compreendemos que, para
a menina, desligar-se daquela casa soa quase como algo
extraordinário.
Aos poucos, constatamos que algumas estruturas familiares
se repetem. A avó havia sido deixada pelo marido há trinta anos,
e ainda carregava a dor do abandono. A mãe da criança também
havia sido abandonada pelo esposo, e planejava reconquistá-lo
quando a construção da casa nova no lago dos castelos estivesse
concluída: “[...] e quando seu pai vir essa casa, vai se apaixonar

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 543


por ela [a casa], principalmente pela sala de música, e vai voltar,
para sempre desta vez” (CARR, 2000, p.31).
Aos poucos, o comportamento da mãe em relação à criança
revela-se doentio. Em algumas noites de solidão,

a mãe da criança apertava-a tanto junto a si que não podia


respirar. A criança ficava quente e pegajosa quando sua mãe
sussurrava embaixo do acolchoado sobre ‘aquele filho da mãe’
e ‘depois de tudo que eu fiz por ele’ e ‘é assim que ele me
paga’. A criança tentava colocar a mão fora das cobertas para
pegar um pouco de ar fresco e a mãe da criança a agarrava e a
puxava de volta ao escorregadio calor da cama. ‘Meu amorzinho’,
murmurava a mãe da criança enquanto a criança jazia lá
banhada de suor, com a face úmida da mãe em seu pescoço. A
criança abafava um grito. (CARR, 2000, p.31-32)

O contato físico incomoda a criança, que se sente sufocada pelo


abraço asfixiante da mãe. O texto tem aberturas que permitem
questionamentos tais como: Ao murmurar “meu amorzinho”,
estaria a mãe fazendo da criança uma substituta do marido
ausente? Por que motivo a garota ficava “quente e pegajosa” e
desejava gritar? Que tipo de carinho – ou violência – estava
acontecendo embaixo das cobertas?
Não se pode dizer que as respostas a essas perguntas sejam
totalmente claras. De qualquer maneira, o conto vai tecendo uma
intrincada rede de significados. Desconfiar que a mãe abusava
sexualmente da filha começa a fazer sentido. Por que razão a
mãe se habituara a bater na criança, e exigir que a pequena
tirasse toda a roupa antes de castigá-la com um cabide de
madeira? Somente por requintes de crueldade ou havia algum
tipo de prazer nisso? Após a surra, exausta, a garota dormia no
sofá “e sonhava com um homem com um forcado que vivia no
fundo do mar. – Quanto tempo? – sussurrava a criança” (CARR,
2000, p.33). O que a menina aguardava com tamanha ansiedade?

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O homem do forcado pode ser interpretado como Poseidon
ou Netuno, o deus dos mares, “símbolo das águas primordiais”,
arquétipo tanto da integração quanto da dissolução universais
(CHEVALIER; GHEERBRANT, 1986, p.848). Qual era o real anseio
da criança? Desaparecer? Transformar-se em sereia ou em
espuma? E ela conjeturava: “Uma sereia morreria nesta casa”
(CARR, 2000, p.34), talvez expressando um desejo, intuição ou
vaticínio.
Certo dia, após longo período de ausência, o pai da criança
reapareceu. Ao brincar com os filhos para distraí-los, ele disse ao
pequeno que poderia fazê-lo desaparecer, e o garoto se assustou.
A menina, imediatamente, ofereceu-se para fazer o número,
dizendo que não queria voltar. O pai estremece diante de tamanha
assertividade.
Quando, mais uma vez, o pai vai embora no meio da noite,
a esposa quebra a porta de vidro com a cabeça do filho pequeno.
No consultório, ela cochicha para o médico que cuidava do
ferimento: “– É tão difícil cuidar deles!” (CARR, 2000, p.35). Embora
o grau de violência e de cinismo seja extremo nesse trecho,
Marina Carr o coloca de forma leve, jornalística. A cena é descrita
unicamente com três adjetivos: “aguda e superficial” ao referir-
se à respiração do irmão machucado, e “difícil”, ao referir-se aos
cuidados com relação aos filhos.
Segundo o documento online da Unicef intitulado Behind
Closed Doors, algumas das maiores vítimas da violência doméstica
são os menores. Indefesas, as crianças do conto são submetidas
aos caprichos de uma mãe que já não controla seus impulsos de
fúria e brutalidade. De acordo com a OMS, vítimas da violência
podem apresentar uma propensão a se tornarem violentas no
futuro. Não sabemos em que medida essa mãe viveu situações
de violência antes de perpetrá-la. Os únicos indícios que o leitor
tem são o abandono por parte de pai – que se foi para a Itália sem

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 545


avisar e jamais regressou – e também do marido – que de vez em
quando voltava para novamente a deixar.
Na noite do incidente com o irmão, “a criança sonhou que
a mãe a estava cozinhando no fogão e a servindo para os ciganos
com pão feito em casa. A criança acordou gritando, a mão pegajosa
da mãe fervendo em cima dela. A criança preferia o pesadelo”
(CARR, 2000, p.36). Mesmo um pesadelo tão horrível, no qual ela
era desmembrada, cozinhada e servida como alimento, era
preferível à realidade da “mão pegajosa da mãe fervendo em cima
dela”. A mão da mãe não lhe passa segurança, carinho. Antes, é
símbolo de invasão, violação, domínio. A criança sente-se acuada
diante da situação que vive em casa.
No texto da OMS (2014), o uso de bebida alcoólica figura
entre os fatores associados à violência, tanto para quem a sofre
quanto para quem a pratica. Já na casa nova, a mãe, solitária,
vive longas noites de espera à janela, mas o marido não vem.
“Bebe uísque e cerveja e beija os filhos” (CARR, 2000, p.36) e seu
hálito provoca repulsa na menina. Então, “A mãe da criança
caminhou lago adentro numa noite calma sem lua. O pai da
criança voltou, para sempre desta vez” (CARR, 2000, p.36). O
suicídio da mãe é descrito de maneira poética e com poucas
palavras, como se não houvesse mais nada a dizer, como se as
palavras fossem desnecessárias.
Passado o funeral, o pai reúne os filhos na sala e anuncia
que ficará celibatário por seis meses. A criança enrubesce, pois
entende o que ele quer dizer. Mais tarde, ao encontrar revistas
pornográficas no armário do progenitor, a garota as confisca.
Quando em outro momento constata que elas haviam sumido do
local onde as havia guardado, deduz que estavam novamente com
o pai. “Naquela noite arrancou um dos olhos dele num sonho. Na
noite seguinte costurou-o de volta (CARR, 2000, p.38). A criança
parece sentir raiva e, ao mesmo tempo, ciúme do pai. Em sonho,

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 546


ela age contra ele de forma selvagem, e ameniza a situação na
noite seguinte devolvendo-lhe o olho que havia extirpado.
Novamente o texto retoma a estrutura dos contos de fadas:
“A criança dorme por vinte anos. A sereia que nunca veio há
muito já foi esquecida” (CARR, 2000, p.39). Imaginamos que a
menina, tal qual a Bela Adormecida, precisa de um período de
recolhimento e de amadurecimento, do qual ressurgirá pronta
para enfrentar as asperezas da vida. Qual não é a nossa surpresa
quando vemos que, “Um dia, caminhando pela rua, a criança tira
a aliança de casamento da mãe e a joga numa lata de lixo” (CARR,
2000, p.39), vai para casa e adormece. Por que motivo ela usava a
aliança de casamento da mãe? E por que razão, decorridos vinte
anos, ela acorda e joga a aliança no meio de detritos, impurezas,
sujidades? Nós, leitores, ficamos com essas perguntas oprimindo
nossos corações, pois intuímos, mesmo contra vontade, o que
ocorreu ao longo dos anos: a criança havia se tornado a esposa do
próprio pai.
O final do conto é aberto e se presta a interpretações
distintas: a de que a menina adormeceu e sonhou, ou a de que
ela, assim como a mãe, pôs fim à própria vida:

A criança está em numa piscina. Parece que ela nunca vai


alcançar o fundo, então o alcança. Uma porta de forte se abre
com um rangido, um reluzir de barbatanas douradas, a sereia
aparece. [...] A criança se prepara para a descida nas águas. O
rabo da sereia ilumina o caminho. (CARR, 2000, p. 39)

Levando-se em consideração a crueza, a brutalidade dos


acontecimentos na vida dessa menina, a descida nas águas, ou
seja, a morte, parece ser a leitura mais coerente. Essa leitura
condiz com dados de documento online da OMS (2012), segundo
os quais a pessoa que foi submetida à violência sexual pode vir a
sofrer de depressão, angústia e atentar contra a própria vida:

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uma meta-análise da prevalência de abuso sexual da criança e
suas consequências para a saúde ao longo da vida mostrou
que o abuso sexual da criança contribui significativamente para
depressão, uso e dependência de álcool e drogas, síndrome do
pânico, síndrome do estresse pós-traumático e tentativas de
suicídio. (OMS, 2012, p.11)

Ao alcançar o fundo da piscina, a menina realiza o antigo


sonho da infância: encontrar a sereia. Lembramos que as sereias,
por sua beleza, “seduzem os navegantes para arrastá-los para a
morte e devorá-los; [...] simbolizam, destruição do desejo e a morte”
(CHEVALIER; GHEERBRANT, 1986, p.948). Após tantos anos de
violência e opressão, a criança não foi capaz de, tal qual Ulisses,
aferrar-se ao mastro do navio, firmar-se ao eixo vital do espírito,
reerguer-se e comandar a própria vida. Tal qual a Pequena Sereia,
resta a ela a descida nas águas, a dissolução final.

“The Parting Gift”

A violência, assim como a caridade,


começa em casa.
(James Gilligan)

Raio de sol batendo no pé de um toucador, uma jovem que


se levanta, mala de viagem. No conto “The Parting Gift”, Claire
Keegan usa as palavras tal qual uma câmera filmadora. O olhar
do leitor é conduzido, às vezes para o detalhe, às vezes para o
plano geral. A protagonista, uma jovem, talvez com dezoito anos,
e cujo nome não é revelado, está prestes a deixar a casa dos pais
na Irlanda e seguir para a América, para Nova Iorque.
Nos seus últimos momentos junto à família, ela observa e
ouve tudo como quem parte para jamais retornar. Ao olhar pela
janela, percebe que, “Outside, dew lies on the fields, white and
blank as pages” (KEEGAN, 2007, p.23). Cobertos de orvalho, brancos

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e vazios como páginas, estão os campos e o futuro que se descortina
para a jovem. Ao deixar o lar, a família e a própria terra natal, que
história ela escreverá nestas páginas?
A moça prepara-se para deixar uma área rural da Irlanda
e instalar-se em um grande centro urbano, longe de todas as suas
raízes. Uma leitura do conto que contemple a transição pela qual
o país passa e todas as implicações relativas a essa transformação
econômica e social é legítima e extremamente relevante. No
entanto, dado o escopo deste artigo, vamos nos ater ao aspecto da
violência que ocorre no âmbito familiar.
Na hora matinal que antecede sua partida, alguns
pensamentos a invadem. Ao retornar ao quarto para pegar o
passaporte, ela se observa: “You look strange in the photograph,
lost” (KEEGAN, 2007, p.24). Por que razão pareceria ela perdida?
Compreende, então, que parte dela não liga para o que acontecerá
à mãe após a sua partida, e percebe que não tem nada a dizer à
sua progenitora, mesmo porque, “If you started, you’d say the wrong
things and you wouldn’t want it to end that way” (KEEGAN, 2007,
p.25). Começamos a perceber que a moça carrega uma revolta
interna, algo sobre o qual prefere não falar.
O desejo da moça de ir para um internato e ter uma boa
formação nunca se realizou. “By then, your father saw no point
in educating girls” (KEEGAN, 2007, p.26). Representante autêntico
da mentalidade de um sistema patriarcal arcaico, o pai acreditava
que ela sairia da escola e, supostamente, um outro homem
qualquer usufruiria da educação que ela teria recebido. Seria
essa a única razão para que ele, o pai, não quisesse enviar a
filha ao internato?
De repente, uma recordação da infância vem à mente da
jovem. Aparentemente, trata-se de uma cena comum, casual,
mas que se revela de intensa crueldade:

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Your mother didn’t want a big family. Sometimes, when she
lost her temper, she told you she would put you in a bucket,
and drown you. As a child you imagined being taken by force to
the edge of the Slaney River, being placed in a bucket, and the
bucket being flung out from the bank, floating for a while before
it sank. As you grew older you knew it was only a figure of
speech, and then you believed it was just an awful thing to
say. People sometimes said awful things. (KEEGAN, 2007, p.
25-26)

A jovem tenta entender e racionalizar aquilo que, para a criança


que ela foi, era excessivo e amedrontador. De que maneira não
sentir medo ou viver acuada com esse tipo de ameaça? A jovem
lembra-se da época em que a cachorra setter havia tido os filhotes
e ela vira a própria mãe segurando um saco dentro de um barril
cheio d’água. A mãe segurara saco embaixo d’água até que os
gemidos cessaram. “That day she drowned the pups, she turned
her head and looked at you, and smiled” (KEEGAN, 2007, p.27). A
mãe havia tido frieza o suficiente para afogar os filhotes. Não
teria ela coragem suficiente para afogar a filha? Talvez fosse esse
o pensamento que perturbava a criança. O medo de sofrer algum
tipo de brutalidade...
Anualmente, para comemorar o aniversário do pai, a mãe
costumava visitá-lo em seus aposentos e eles faziam sexo.
Entretanto, as visitas pararam e, na época em que a cachorra
havia parido, a criança começou a ser enviada para o quarto do
pai, aproximadamente uma vez por mês, sempre quando Eugene
não estava em casa:

You went willingly at first, crossed the landing in our nightdress,


put your head on his arm. He played with you, praised you, told
you you had the brains, that you were the brightest child. Then
the terrible hand reaching down under the clothes to pull up
the nightdress, the fingers, strong from milking, finding you.

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The mad hand going at himself until he groaned and then him
asking you to reach over for the cloth, saying you could go then,
if you wanted. (KEEGAN, 2007, p. 26-27)

Em que medida as ameaças da mãe de que afogaria a criança –


quando esta sabia que ela era perfeitamente do que ela era capaz
– não a fizeram calar quando a mãe começou a enviá-la ao quarto
do pai? Que controle nefasto esse pai exercia sobre a família?
Que ameaças de violência não estariam em cada palavra, em
cada gesto, em cada olhar? Existe uma visão segundo a qual a
violência masculina geralmente “resulta de seu senso de direito
a certos privilégios. [...] Como muitas mulheres apontaram, não
é apenas a desigualdade de poder que leva à violência, mas um
senso – consciente ou inconsciente – de direito ao privilégio”
(KAUFMAN, 1999). E o pai se permitia algumas liberdades.
Em “The Parting Gift”, o provedor da casa se prevalece
daquilo que ele acredita ser um direito adquirido. Quanto à filha,
ainda menina, como reagir contra as mãos e os dedos fortalecidos
pela ordenha? Como evitar sentir-se usada tal qual um animal?
“‘Yes.’ Agree with him. Always, that was your strategy” (KEEGAN,
2007, p.28). Concordar. Concordar em ser tratada como um objeto.
Concordar para sobreviver a esse pai, fruto de um modelo social
de opressão, desrespeito e de tirania.
Não bastassem os sentimentos de medo e repulsa, ainda
havia a obrigação do beijo:

The mandatory kiss at the end, stubble, and cigarettes on the


breath. Sometimes he gave you a cigarette of your own, and
you could lie beside him smoking, pretending you were someone
else. You’d go into the bathroom when it was over and wash,
telling yourself it meant nothing, hoping the water would be
hot. (KEEGAN, 2007, p. 27)

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A inocência e a alegria iniciais cedem lugar ao asco e à rejeição.
Talvez à rejeição de si mesma, por vivenciar aquela situação
ultrajante. Afinal, “a violência resulta de uma estrutura patriarcal
que atribui papéis codificados e frequentemente repressivos a
cada sexo, reforçando ideias tradicionais de honra e desonra,
orgulho e vergonha” (GILLIGAN, 1996, p.267). Envergonhada, a
menina fuma um cigarro e finge ser uma outra pessoa; tenta
convencer-se de que aquilo não significou nada, quem sabe para
amenizar a dor pela violação sofrida.
Anos depois, no dia da partida, a mãe insiste que ela vá se
despedir do pai. Diante da porta do quarto, a jovem hesita: “You
haven’t gone through this door since the blood started, since you
were twelve. You open it. [...] There’s that same old smell of
cigarette smoke and feet. […] You feel sick” (KEEGAN, 2007, p.28).
A única vingança possível foi ter vendido uma potranca do sítio,
sem que o pai soubesse, para conseguir o dinheiro para a viagem.
Como o animal seria entregue somente depois que a jovem
partisse, o pai não teria como desfazer o negócio.
Ao se olhar no espelho, a protagonista observa os parafusos
enferrujados, o vidro embaçado. Reflete que não se formou na
escola secundária, pois teve dificuldades com diversas matérias.
Segundo documento da Unicef (2006, p.2), crianças expostas à
violência no lar podem apresentar dificuldades cognitivas. O abuso
por parte do pai transformou-a em objeto, alterando
definitivamente sua maneira de ver o mundo. Não são somente
os parafusos que estão enferrujados. Tal qual o espelho, sua vida
também tem pontos de estagnação e áreas sem brilho, sem cor,
sem luz.
Apesar de se mostrar suficientemente forte para ir em
busca da individualização e do crescimento pessoal, a mágoa e o
sofrimento a fragilizam. Parece menos difícil romper os laços que
a ligam à família do que romper os laços que a prendem à dor
vivida. No aeroporto, ela se despede de Eugene e faz o check in: “It

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is all getting hazy but you keep on going, because you must, past
the T-shirts and the duty-free towards the gate” (KEEGAN, 2007,
p.33). Trancada no toalete, sem testemunhas, ela finalmente se
permite chorar.

Considerações finais
Embora o tema da violência atraia estudiosos de várias
áreas, sabemos que ele ainda carece de muita investigação. Ao
iniciarmos este estudo, constatamos que as fontes de pesquisa
não se restringem ao campo literário ou filosófico. Vimos a
importância dos inúmeros documentos de instituições
internacionais ou governamentais, relatórios das áreas de saúde
e criminal que se debruçam sobre o assunto. Neste artigo,
detivemo-nos nesses documentos iniciais, que consideramos a
base para análises posteriores.
A afirmação unânime dos documentos e dos teóricos é a
de que a violência que ocorre no espaço público, coletivo, é
facilmente identificável. A maior dificuldade está em detectar e
mapear a violência de caráter privado, aquela que se desenvolve
no seio das famílias.
A literatura, ao representar a obscuridade do ser humano,
a sociedade minada por abuso, incesto, violência, cruamente
revela o caos (interno e externo) de nosso mundo. Ao mesmo tempo
em que provoca, desperta a consciência humana para questões
cruciais.
Os textos “Crie uma sereia só para você”, de Marina Carr,
e “The Parting Gift”, de Claire Keegan, têm em comum
personagens crianças cujos nomes não sabemos, e que são
vítimas de abuso, crueldade, violência física e/ou psicológica
dentro da própria família. O limite de sua resistência é testado. A
criança do primeiro conto transforma-se em uma mulher. As
pequenas tragédias familiares dão a tônica à história: sua avó,
abandonada pelo avô, humilhada, mal suportava a dor da solidão;

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sua mãe repetia a trajetória da matriarca. Já na idade adulta, a
criança, tal qual a mãe, prefere se suicidar a ter que conviver
num ambiente de abuso, sofrimento e degradação.
A criança de “The Parting Gift” transforma-se em uma
jovem que se exila, que parte para um outro país carregando na
mala a dor do ultraje. Ela dá o primeiro passo em busca de
liberdade, e deixa para trás o mundo rural e arcaico, a estrutura
patriarcal com suas mazelas. Na fotografia do passaporte, ela se
enxerga estranha, perdida. Mas sabemos que nenhuma imagem
refletirá a face desfigurada, a alma dilacerada... Vítima de abuso,
existirá para ela o esquecimento, a verdadeira redenção?
Em que medida essas personagens da ficção irlandesa
contemporânea querem deixar para trás um modo de viver que já
não tem nenhum significado? Será a sua frustração a mesma
frustração da Irlanda, que pretende se libertar das amarras de
um passado colonial e desvencilhar-se de poderes opressores?
Sabemos que a violência retratada em um texto literário não pode
ser dissociada de seu contexto histórico.
Para James Gilligan (1996), a violência é resultado de um
sistema patriarcal que confere a cada sexo papéis
preestabelecidos e repressivos, que dão continuidade a ideias
tradicionais e ultrapassadas. Marina Carr e Claire Keegan são
duas vozes que denunciam essa estrutura arcaica, instigando o
leitor a refletir sobre um assunto tão complexo, polêmico e delicado.

Referências

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HMIP, 2004.

CARR, Marina. “Crie uma sereia só para você”. Tradução de


Brunilda T. Reichmann. In MUTRAN, Munira H. (org). O mundo e

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CHEVALIER, J; GHEERBRANT, A. Diccionario de los símbolos.


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GILLIGAN, James. Violence: Reflections on a National Epidemic.


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HOUAISS, A. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa.


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MINAYO, Maria Cecília de Souza; SOUZA, Edinilsa Ramos de.


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ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 556


“A SUMMONS TO ALL MY FOOLISH BLOOD”: THE
DEPICTION OF SEX AND SEXUALITY IN DUBLINERS, BY
JAMES JOYCE

Autor: Thiago Moreira Marques (UTFPR)


Orientadora: Profa. Dra. Jaqueline Bohn Donada (UTFPR)

ABSTRACT: The following essay analyzes the depiction of sex and


sexuality in Dubliners, by Irish author James Joyce. Four short stories,
one from each part, are chosen among the fifteen that compose the
book, in order to demonstrate how James Joyce thought Dublin society
from early twentieth century understood sex and sexuality: “Araby” on
childhood, “The Boarding House” for youth, “A Painful Case” regarding
adulthood and “The Dead” regarding social life. A hypothesis is that an
involution occurs in the way the characters deal with this subject:
what was considered natural during childhood and youth years becomes
a taboo during adulthood, a subject that is not discussed nor talked
about; constituting one more trait of the paralysis that permeates
Joyce’s works.
KEYWORDS: James Joyce. Irish literature. Dubliners. Sex. Sexuality.
20th Century Literature.

James Joyce was born in Dublin, Ireland, in 1882, and is


well-known as one of the most talented and influential writers of
English language in the twentieth century. His first major
publication in prose was Dubliners, in 1914. It paints a portrait of
Dublin society at late nineteenth and early twentieth century
through fifteen short stories.
The stories tend to group themselves roughly around 4
groups that correspond to phases in a person’s life. In a 1906
letter to Grant Richards, a possible publisher, Joyce writes:

My intention was to write a chapter of the moral history of my


country and I chose Dublin for the scene because that city

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 557


seemed to me the centre of paralysis. I have tried to present it
to the indifferent public under four of its aspects: childhood,
adolescence, maturity and public life. The stories are arranged
in this order. (ELLMAN, 1966, p. 134)

Considering this possible division by the author, this essay


intends to look at the depiction of sex and sexuality throughout
Dubliners. Four short stories are analyzed, one for each phase:
“Araby”, for childhood; “The Boarding House” for youth or
adolescence; “A Painful Case” for maturity or adulthood; and “The
Dead” regarding social life.

Araby
“Araby” is about a boy on his quest to buy a gift to his
friend’s sister, with whom he is in love, from a bazaar called Araby.
The story tells of his sexual awakening, as he seems to be in
pubertal or pre-pubertal age. Among the analyzed short stories, it
is the only one narrated in the first person by the boy himself.
Throughout the story, the young narrator cannot explain
what is happening with him, although he can approach the topic
to himself with his feelings and sensations. He tries to express
what is happening with him through comparisons and metaphors.
As the girl passes through the street, the boy narrates: “my body
was like a harp, and her words were like fingers running upon
the wires.” (JOYCE, 1996, p. 31). All of the girl’s movements and
actions cause a reaction in his body. He cannot quite explain
what he is feeling, but he tries to, for example, comparing his
own body to a musical instrument, in which every note played
reverberates. And this ability to create metaphors to explain the
subject highlights childhood’s natural approach over sex and
sexuality.
In another important passage, the narrator learns about
the bazaar Araby, and feels the girl’s influence on him again:

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 558


While she spoke, she turned a silver bracelet round and round
her wrist. She could not go, she said, because there would be
a retreat that week in her convent. Her brother and two other
boys were fighting for their caps and I was alone at the railings.
She held one of the spikes, bowing her head towards me. […]
What innumerable follies laid waste my waking and sleeping
thoughts after that evening! I wished to annihilate the tedious
intervening days. I chafed against the work of school. At night
in my bedroom and by day in the classroom her image came
between me and the page I strove to read. The syllables of the
word Araby were called to me through the silence in which my
soul luxuriated and cast an Eastern enchantment. […] I
answered few questions in class. I watched my master’s face
pass from amiability to sternness; he hoped I was not beginning
to idle. I could not call my wandering thoughts together. I had
hardly any patience with the serious work of life which, now
that it stood between me and my desire, seemed to me child’s
play, ugly monotonous child’s play. (Joyce, 1996, p. 32-33)

What seems to have an effect over the boy, besides her


voice, is her turning the bracelet on her wrist and her holding of
the spike. The spike is a phallic symbol, and this may be the
reason why indirectly, subtly, and even symbolically it affects the
boy that much. The girl, then, occupies the boy’s thoughts all the
time: when he is sleeping and awake and during classes. Even
his master suspected he became idle. The girl made his “soul
luxuriate”, and that is the reason why he cannot organize his
thoughts. But even so, he is able to think metaphorically and
narrate it.
Also, in many other passages, the narrator depicts the
changes that are occurring within him and what he is feeling: “I
had never spoken to her and yet her name was like a summons
to all my foolish blood” (JOYCE, 1996, p. 30); and “All my senses
desired to veil themselves.” (JOYCE, 1996, p. 31). Thus,
strengthening the viewpoint that the boy is going through a sexual

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 559


awakening and, although it is something new to him, he is still
able to think about it. Naturally, a young boy such as the narrator
from “Araby” has only metaphors to deal with an unknown subject
such as the awakening sexuality. Ergo, the awareness over the
subject matures alongside the maturation of the characters from
Dubliners, allowing them to address the subject directly, without
the use of metaphors, as if the consciousness awareness would
come later, with age. But it is not what will be seen throughout
our analysis.
In the end of the story, the boy goes to Araby, but, as it was
too late, the bazaar was already about to close. He, then, faces his
first great disappointment: “Gazing up into the darkness I saw
myself as a creature driven and derived by vanity; and my eyes
burned with anguish and anger.” (JOYCE, 1996, p. 30). The boy
may deduce that all these feelings are the result of his vanity;
therefore, leading him to the conclusion that thinking about and
having expectations over sex and sexuality will result in failure.
The transformations happening within the narrator, after his
delusion, seem to be understood by himself as mere vanity, thus
becoming hollow, without substance, a product of his ego, not a
natural part of his growth.

The boarding house


The next short story analyzed is “The Boarding House”, on
adolescence. It tells the story of Mrs. Mooney, the owner of a
boarding house, and Polly Mooney, her daughter. Mrs. Mooney, at
first, protects her daughter from the men guests of the boarding
house by sending Polly to work outside, but then realizes that
she can more easily keep her eyes on her daughter if she is
close.
Polly is described as a “little perverse madonna” (JOYCE,
1996, p. 67), and she also sings at the boarding house:

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 560


“’I’m a naughty girl
You needn’t sham;
You know I am.’” (JOYCE, 1996, p. 67)

Polly sings a popular song about being a naughty girl. She


sings about a girl that accepts, perhaps, her own sexuality, and
tells her lover that it is normal to deal with it. Later on, Mrs.
Mooney discovers that Polly, besides being in a relationship with
one of the guests, Mr. Doran, is pregnant. Mrs. Mooney, then,
plans to marry them and blackmails Bob Doran to prevent his
denial. It is not only Polly Mooney’s honour which is in check, as
it is possible to see in this excerpt: “She knew he had a good
screw for one thing, and she suspected he had a bit of stuff put
by”. (JOYCE, 1996, p. 70). It is possible to infer that Mrs. Mooney
is also interested on Mr. Doran’s money and possessions.
Mr. Doran, then, confesses to a priest his sin of having had
sexual intercourse with Polly without being married:

The recollection of his confession of the night before was a


cause of acute pain to him; the priest had drawn out every
ridiculous detail of the affair, and in the end had so magnified
his sin that he was almost thankful at being afforded a loophole
of reparation. (JOYCE, 1996, p. 71)

Not only pregnancy and Mrs. Mooney make the youngster feel
oppressed, but also the priest, representing the Catholic Church,
makes Mr. Doran feel unnaturally guilty about his sexuality.
According to Corrêa, “in almost all the stories of Dubliners the
Catholic Church is ubiquitous” (CORREA, 2014, p. 122). Joyce, in
a subtle manner so present throughout Dubliners, criticizes, or
rather, unveils the Catholic Church: The priest from “The
Boarding House” is more interested in the details of the affair
than in Mr. Doran’s reparation of his sin. Other similar examples

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 561


from the book are Father Flynn, who had a “strange friendship”
with a boy from “The Sisters” and the priests from the Catholic
School from “An Encounter”..
Later, when remembering his time with Polly, Doran thinks
about her traits: “He remembered well her eyes, the touch of her
hands and his delirium… But delirium passes.” (JOYCE, 1996, p.
73). He clearly remembers the influence her body had over him
and the delirium he felt, just like the boy from “Araby”. But Doran’s
delirium passed, due to social and religious restraints, that
associate sexuality with guilt and sin.
According to Fargnoli and Gillespie

the story’s events reflect in miniature a critique of the broader


sexual and marital tensions of Irish life. The recurring conflict
of the story stands out not regarding the proper moral choice
for a character to make but rather as an inquiry into whether
the option of choice in fact exists. As the reader glimpses details
of the lives of Mrs. Mooney, Polly, and Bob Doran, it becomes
evident that none of the characters has any real options to
exercise. Rather, the weight of social convention immediately
overwhelms the opportunity for choice, ensuring that every
decision made by every character is a foregone conclusion from
the opening lines to the end. (FARGNOLI; GILLESPIE, 2006, p.
58)

It is possible to say that the characters from “The Boarding


House” do not have any option due to social conventions regarding
the intercourse that happened before the narrative takes place:
Mr. Doran has to marry Polly; Mrs. Mooney has to guarantee their
marriage, for “she had all the weight of social opinion on her
side” (JOYCE, 1996, p. 70). Polly has to convince Mr. Doran about
marriage, and the priest must make Mr. Doran feel guilty about
having sex without being married. Every character from this short

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 562


story has no other choice than to act according to what their
paralyzed state allows them to.
Bob Doran and Polly Mooney, the young characters from
“The Boarding House”, initially see sex and sexuality in a
natural manner, but it begins to be repressed by society and
religion, represented by Mrs. Moony and the priest. Sex, then,
becomes a sin, which will inhibit their choices throughout the
rest of their lives.

A painful case
Regarding adulthood, the analyzed short story is “A Painful
Case”. It tells the story of Mr. James Duffy, a reclusive, single,
middle-aged man. He befriends a couple, Mr. and Mrs. Sinico. Mr.
Sinico is a sailor who “had dismissed his wife so sincerely from
his gallery of pleasures that he did not suspect that anyone else
would take an interest in her.” (JOYCE, 1996, p. 122). Due to this
dismissal and Mr. Sinico’s constant travels, Mr. Duffy and Mrs.
Sinico become closer. During one of their meetings, Mrs. Sinico
touches Mr. Duffy’s cheek while “[…] showing every sign of
unusual excitement.” (JOYCE, 1996, p. 124). So, Mr. Duffy decides
to end his friendship with her. Four years later, Mr. Duffy reads
on the newspaper that Mrs. Sinico had been hit by a train while
crossing the rails and had passed away.
Mrs. Sinico, in another instance of Joyce’s subtle use of
language, may have committed suicide, and this may be the result
of successive cases of sexual repression she suffered: first, being
forgotten by her husband; second, being rejected by her friend.
Therefore, adults are characterized by the repression of the
subject. Another example is when, while reading some books,
Duffy writes the following note: “Love between man and man is
impossible because there must not be sexual intercourse, and
friendship between man and woman is impossible because there
must be sexual intercourse.” (JOYCE, 1996, p. 125). It summarizes

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 563


the severe restrictions the adults from Dubliners have over their
own and other’s sexuality.
If the stories are understood as a sequence, it is possible to
conclude that Mr. Duffy learned what was taught to Mr. Doran:
that they must abstain from sex, for it is a practice forbidden by
society and the Catholic Church alike. And more: in “A Boarding
House”, although the act was an interdiction, the sexual
relationship is present, in a moment prior to the events shown
in the narrative. In “A Painful Case”, the slightest mention of
the subject is cut short as soon as it happens.

The dead
The last analyzed short story is “The Dead”, regarding
social life. During the first half of the story silence is meaningful,
for the subject of sex and sexuality is never commented on. Gabriel
Conroy and his wife, Gretta, attend their aunts’ traditional annual
party, held around Christmas time.
During the whole party, Gabriel fails when trying to
interact with any women younger or the same age as himself:
first Lilly, the caretaker’s daughter, is offended by his question
about marriage; after that, Miss Ivors calls him a “west Briton”
because he writes book reviews for a British newspaper called
The Daily Express; and last, his wife becomes angry at him for his
refusal to travel, saying “’There’s a nice husband for you, Mrs.
Mallins’” (JOYCE, 1996, p. 218).
And this is not to mention that he and his wife follow
different ways during the majority of the party, and Gabriel only
perceives her again, maybe affectively, maybe sexually, maybe
both, at the end of the party, when Bartell d’Arcy is singing The
Lass of Aughrim. Afterwards, on the way back home, Gabriel
pictures his private moments with Gretta at home: First, his “blood
went bounding along his veins and the thoughts went rioting
through his brain, proud, joyful, tender, valorous.” Then, “Moments

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 564


of their secret life together burst like stars upon his memories.
[…] He longed to recall to her those moments, to make her forget
the years of their dull existence together and remember only their
moments of ecstasy.” Their secret life of ecstatic moments has a
sexual connotation, implying that Gabriel is eager to have
intercourse with her. Also “He longed to be alone with her”, and
“He could have flung his arms about her hips and held her still,
for his arms were trembling with desire to seize her and only the
stress of his nails against the palms of his hands held the wild
impulse of his body in check”, (JOYCE, 1996, p. 243-246)
reinforcing the sexual tone of his thoughts.
But Gretta did not answer the way Gabriel expected her
to, so “he was trembling now with annoyance. […] He longed to
cry to her from his soul, to crush her body against his, to
overmaster her” (JOYCE, 1996, p. 248). Gretta is not receptive to
her husband because she is thinking about a love from her youth,
whose memories were reawakened because he, Michael Furey,
used to sing The Lass of Aughrim to her. To make matters worse,
Gretta feels guilty for Furey’s death, as he worsened a cold by
going out on a winter’s night in order to see her. The destruction
of Conroy’s expectations is complete: when he most thought of
his wife, she was thinking about a boyfriend from her past, which
died for love. The night ends with Gabriel staring through the
window at the cold winter night outside, the contrary of everything
he had wanted to.
Both the boy from “Araby” and Conroy suffer a
disappointment, both caused by their disillusion towards the one
they are in love with, hence sex may be a key aspect of those
characters’ significant changes: the boy from “Araby” could not
buy a gift from the bazaar for his beloved one and faces his first
great delusion that may have negative effects on the rest of his
life; Conroy, on the other hand, achieves an epiphany after his
disappointment. He understands that the moment he had with

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 565


his wife was of ultimate trust, and that every person is formed
and constructed by everybody who came before, by “all the living
and the dead” (JOYCE, 1996, p. 256).

A possible conclusion
There seem to occur an involution in the way Dubliners’
characters deal with sex and with their own sexuality: the incipient
awareness of one’s own sexuality in “Araby” and “The Boarding
House” gives place to repression, silence and disillusionment.
The inability to deal with sex and sexuality may also be another
aspect of the paralysis so present throughout Dubliners’ short
stories.
According to Michels, Joyce

believed that the people of Ireland had the capacity, but lacked
the true desire, to come to a realization about their situation.
He thought that their refusal to open their eyes to their
situation (and also to accept some responsibility for it) was
the reason they were trapped in a state of paralysis. Physically,
emotionally and sexually, the people of his Dubliners could do
no more than float through a life that barely scratched the
surface of what they could truly experience. (MICHELS, p. 64)

Paralysis permeates all the short stories from Dubliners,


appearing on different aspects and intensities. Therefore, one of
the embodiments of paralysis can be seen in the characters’
perspective on sex and sexuality.
Another interesting trait is that the analyzed short stories
are the last from each phase: “Araby” is the last from childhood,
“The Boarding House” is the last one from youth, and so on. Also,
those short stories were chosen for presenting the analyzed
subject more evidently. One may infer that it is the characters’
perspective on sex and sexuality that defines and differentiates
children, youngsters and adults.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 566


It is also important to remember that “Araby” and the two
other childhood short stories are the only ones narrated in first
person, which may indicate that children can deal with their
feelings and emotions, while the youngsters and adults from the
book would need an outside narrator, a third person, to express
those feelings. Just like “North Richmond Street, being blind,
was a quiet street except at the hour when the Christian Brothers’
School set the boys free” (JOYCE, 1996, p. 29), the adults from “A
Painful Case” and “The Dead” may also be blinded towards their
own emotions and, on this case, their sexuality, differently from
the children and adolescents.

References

CORRÊA, Alan Noronha. “Dubliners: the stages of paralysis”. IN:


SÁ, Daniel Serravalle de; DONADA, Jaqueline Bohn (Orgs.). Critical
Perspectives: Essays in nineteenth- and twentieth- centuries English
Literature. Florianópolis: UFSC. 2014.

ELLMAN, Richard (ed.). Letters of James Joyce. Volume II. New York:
The Viking Press, 1966.

FARGNOLI, A. Nicholas; GILLESPIE, Michael Patrick. Critical


Companion to James Joyce: A Literary Reference to his Life and Work.
New York: Facts of File, 2006.

JOYCE, James. Dubliners. Penguin Books, England; 5ª ed. 1996.

MICHELS, Anne. Paralysis and Epiphany: How Joyce Could Save


Dublin. Available at: http://hilo.hawaii.edu/academics/hohonu/
documents/Vol05x17ParalysisandEpiphany.pdf Access on 22 June
2015.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 567


VAMPIROS E ZUMBIS: O APOCALIPSE DO SÉCULO XXI

Autora: Verônica Daniel Kobs (UNIANDRADE e FAE)

RESUMO: O presente trabalho revisita o romance Drácula (1897), de


Bram Stoker, para relacioná-lo com o novo gótico. O objetivo da análise
é demonstrar que vampiros e zumbis são metáforas da sociedade
contemporânea, que será analisada com base nos pressupostos teóricos
de Zygmunt Bauman. Para tanto, o texto literário de Stoker será
comparado ao filme Drácula, a história nunca contada (2014), de Gary
Shore, e ao livro Memórias desmortas de Brás Cubas (2010), de Pedro
Vieira, ambos exemplos da arte contemporânea e da estética New Weird.
No que se refere às relações intermidiáticas, o trabalho buscará
respaldo nos estudos de Irina Rajewski e Robert Stam. A partir dos
dados já levantados, nas comparações feitas, foi possível determinar
que um dos motivos para a retomada do gótico, no século XXI, deve-se
a um dos efeitos provocados pela globalização: a crescente
individualização e a consequente mudança no conceito de “comunidade”.
PALAVRAS-CHAVE: Vampiros. Zumbis. Literatura. Cinema. Século XXI.

Introdução
Este trabalho relaciona o romance Drácula (1897), de Bram
Stoker, às narrativas contemporâneas da literatura e do cinema,
as quais fazem parte do que pode ser considerado como novo
gótico. A partir de Drácula, obra precursora no mito do vampiro,
personagem considerado um morto-vivo, são estudados o livro
Memórias desmortas de Brás Cubas (2010), de Pedro Vieira; e o
filme Drácula, a história nunca contada (Dracula untold, EUA, 2014),
do diretor Gary Shore.
Contemporaneamente, é bastante expressivo o número
de obras em que vampiros e zumbis são os protagonistas. Nas
artes, nos meios de comunicação de massa e até mesmo nas
manifestações populares, o horror e o estranho refletem as
transformações da sociedade atual. Para demonstrar essa

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 568


predominância, seguem-se alguns exemplos: 1) No cinema e na
literatura, destacam-se: os filmes da saga Crepúsculo; a história
de Abraham Lincoln como caçador de vampiros; os sucessos
recentes Guerra mundial z e Meu namorado é um zumbi; e releituras
de clássicos da literatura, como: A escrava Isaura e o vampiro, de
Jovane Nunes; e Orgulho e preconceito e zumbis, de Seth Grahame-
Smith. 2) Na TV, o destaque vai para as séries The walking dead,
True blood, Supernatural e para a minissérie Amorteamo. 3) No
universo virtual, são famosos os jogos Resident evil, Alone in the
dark e Dungeons and dragons. 4) Para completar a lista, há ainda
brinquedos, como a arma Nerf zombie strike e as bonecas Monster
high.
O medo, a violência e a temática da morte, representados,
hoje, por zumbis e vampiros, personagens mortos-vivos,
asseguram a permanência do gótico. Evidente que essa retomada
vem acompanhada de algumas mudanças, as quais garantem a
adequação das características estéticas ao aspecto social
contemporâneo:

(...) a literatura gótica inglesa nunca deixou de existir e adentrou


sorrateiramente o século XX disseminando-se em outras
literaturas, contaminando outros recantos artísticos — como
o cinema e as artes plásticas —, e gerando novos rebentos —
como os RPGs (rolling playing games, ou jogos de interpretação
de papéis) e a cultura cyberpunk. (ROSSI, 2014)

O gótico chega, então, ao século XXI já transformado e


adaptado à miríade dos novos padrões culturais, mas sem perder
sua essência: a escuridão, a noite, o Mal, o terror e o horror, a
psicologia do medo, a instauração de impasses na racionalidade
da lógica. Agora, porém, em um contexto de sociedades e
subjetividades fragmentadas, sua presença se torna cada vez mais
forte e seu caráter contestatório revela-se cada vez mais

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 569


contundente, já que ele não necessita mais abrir suas brechas
de entrada no universo racional: elas já existem entre os
fragmentos das sociedades e dos sujeitos. (ROSSI, 2014)
Com base nesse panorama, consolida-se a dominação
vampiresca-zumbi no século XXI e, em razão disso, o objetivo
principal deste trabalho é verificar em que medida os vampiros
de hoje se distanciam ou se aproximam do mito consolidado por
Bram Stoker, em Drácula. Para tanto, este trabalho é dividido em
duas partes: a primeira versa sobre o romance do autor irlandês
e suas relações com o filme Drácula, a história nunca contada, de
Gary Shore; e a segunda parte analisa as implicações dos mortos-
vivos na contemporaneidade, tomando por base o livro Memórias
desmortas de Brás Cubas, de Pedro Vieira, que, em alguns pontos,
será associado às obras de Stoker e Shore.

O mito de Drácula: do clássico ao contemporâneo


Bram Stoker, em 1897, deu início ao mito de Drácula,
temido não apenas por ser vampiro, mas também por empalar
suas vítimas. O conde Vlad é “o mais famoso vampiro da ficção e
de acordo com o Guiness Book é o personagem do gênero com
maior número de aparições na mídia, diretas ou indiretas” (BAND,
2015). Pelo fato de o romance do autor irlandês ter imensa
repercussão, até os dias de hoje, e por ter sido precursor no
assunto, Drácula é referência obrigatória, quando se trata de
adaptação sobre vampiros e, principalmente, sobre Vlad, o
empalador.
No romance de Stoker há menções que formaram o mito
e acabaram, portanto se consolidando junto com o personagem.
Embora o texto literário apresente mais de uma forma de
transmutação do vampiro (em morcego e em lagarto), o morcego
é a representação mais típica, como descreve esta passagem:
“(…) fitava o céu enluarado, onde havia apenas um grande morcego
que batia as asas, sem fazer nenhum ruído, como se fosse um

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 570


fantasma (…)” (STOKER, 2002, p. 116). Outro elemento recorrente,
que faz parte do mito vampiresco, é a transformação propriamente
dita, sempre é caracterizada pelos caninos longos e afiados e por
intensa lividez: “(…) aparentemente desmaiada, vi a pobre Lucy,
com a já impressionante palidez ainda mais pronunciada. Até
seus lábios estavam brancos e descorados e as gengivas pareciam
ter-se retraído, expondo os dentes (…)” (STOKER, 2002, p. 134).
Na condição de morto-vivo, o vampiro é um monstro cruel,
condenado à eternidade e que se alimenta do sangue dos
humanos. A única proteção efetiva contra ele é uma segunda
morte, espécie de ritual que Stoker assim descreve, em Drácula:
“- Terei de decepar sua cabeça e encher sua boca com um punhado
de flores de alho silvestre. Depois disso, traspassarei o seu corpo
com uma estaca pontiaguda” (STOKER, 2002, p. 200).
Entretanto, o romance vai muito além da narrativa de
terror e suspense protagonizada por um vampiro. Feita a partir
do gênero epistolar, a história investe na verossimilhança, pelo
artifício das cartas, por meio das quais os personagens fazem
confissões, contam seus piores medos e angústias, bem como
registram testemunhos sobre o conde e sua condição de morto-
vivo. Além disso, os crimes cometidos pelo vampiro repercutem
nos jornais, cujos trechos e manchetes são, muitas vezes,
transcritos nas cartas que compõem o romance. Ambos os
gêneros, o epistolar e o jornalístico, têm intrínseca relação com a
história, seja ela social ou individual, e, justamente por isso,
alimentam a veracidade da narrativa. Como se não bastassem
esses poderosos estratagemas, Bram Stoker também faz uso do
contexto histórico da Romênia, que travou inúmeras batalhas
contra os turcos. No romance, várias passagens mencionam esses
conflitos, a exemplo deste trecho:

O nosso inimigo de hoje deve ter sido o famoso voivoda Drácula,


o qual se tornou célebre por sua luta contra os turcos (…). Os

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 571


Dráculas pertenciam a uma gloriosa e nobre estirpe, embora
também contassem, ocasionalmente, com alguns membros que
seus contemporâneos acreditavam ter feito pacto com Satanás.
(STOKER, 2002, p. 237)

Essa parte do livro encontra correspondência nestes fatos


históricos: “Em 1431, Vlad II entrou para a Ordem do Dragão, uma
fraternidade secreta militar e religiosa (...)” (ASSOMBRADO, 2015);
“(...) Vlad III, também conhecido como Príncipe da Valáquia, Vlad,
o Empalador, Vlad III Draculea ou Vlad epe’ (...) nasceu no ano de
1431, na cidade de Sighi’oara na região conhecida como
Transilvânia – Romênia” (ASSOMBRADO, 2015, ênfase no
original).
Com o objetivo de ampliar essa relação com a história, o
filme Drácula, a história nunca contada, de Gary Shore, inicia-se
com a narração do passado do protagonista, escravizados por um
sultão da Turquia e treinado “para matar sem consciência”
(DRÁCULA, 2014) todos aqueles que desafiavam o império turco.
A partir dessa brevíssima apresentação do tema principal da
adaptação fílmica, já é possível concluir que o título é, no mínimo,
incongruente. Como mencionado anteriormente, Bram Stoker,
em várias partes do romance, faz o narrador citar o passado de
Drácula, referindo-se à ação devastadora e cruel do império turco
sobre a Transilvânia. A única novidade do filme em relação ao
livro é o destaque a esse contexto histórico, que aparece de modo
exponencial e contundente, logo no início da película, e vai se
adensando no decorrer da história.
Até mesmo o pacto com o demônio, que também faz parte
do mito de Drácula e cujo ritual garante a Vlad uma força
descomunal, é aproveitado pelo diretor. Contudo, nesse ponto, o
filme surpreende, porque elege como cenário do pacto uma
caverna de ossos, uma clara alusão a uma recente descoberta
arqueológica na Romênia:

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 572


Fósseis humanos encontrados em uma caverna de ursos na
Romênia foram datados como os mais antigos de homens
modernos na Europa (...). Entre os restos, está a mandíbula de
um homem que teria vivido há algo entre 34 mil e 36 mil anos.
Os fósseis, de três indivíduos, seriam de uma época da história
da Terra em que homens modernos conviveram com seus
predecessores humanóides, conhecidos como Homens de
Neanderthal, hoje extintos. (BBC, 2015)

O fato foi divulgado pela imprensa mundial, em 2003, e,


em razão de Gary Shore usar esse dado como um dos cenários de
sua adaptação, pode-se afirmar que o diretor tenta se aproximar
de Stoker, ao utilizar um fato histórico, que foi notícia nos
principais jornais, para tentar conferir mais veracidade à
narrativa. Essa atualização feita por Shore demonstra o que Robert
Stam afirma, quando fala da necessidade de a adaptação
corresponder ao seu público e à sua época:

Já que as adaptações fazem malabarismos entre múltiplas


culturas e múltiplas temporalidades, elas se tornam um tipo
de barômetro das tendências discursivas em voga no momento
da produção. Cada recriação de um romance para o cinema
desmascara facetas não apenas do romance e seu período e
cultura de origem, mas também do momento e da cultura da
adaptação. (STAM, 2006, p. 48)

De acordo com Irina Rajewsky, que também reconhece a


necessidade de o filme fazer mudanças em relação ao texto, esse
processo não é apenas condicionado pelos contextos histórico e
social, como destaca Stam, mas também pelas especificidades
da mídia cinematográfica. Conforme a autora, o primeiro tipo de
intermidialidade compreende a “transposição midiática”
(RAJEWSKY, 2005, p. 52), espécie de “concepção de
intermidialidade ‘genética’, voltada para a produção; o texto ou o

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 573


filme ‘originais’ são a ‘fonte’ do novo produto de mídia” (RAJEWSKY,
2005, p. 52, ênfase no original). Considerando a relação entre as
obras de Bram Stoker e de Gary Shore, o filme Drácula, a história
nunca contada encaixa-se perfeitamente no que Irina Rajewsky
classifica como “transposição midiática”, categoria que focaliza a
narrativa em si e sua relação com o contexto e o com o público,
bem como com os recursos e ferramentas do novo suporte
midiático.

Os mortos-vivos do novo gótico


No século XXI, os mortos-vivos reaparecem como metáfora
para as relações sociais, que envolvem identidade e alteridade.
Nesse sentido, vampiros e zumbis fazem parte do mesmo conjunto,
porque adquirem uma sobrevida e, a partir do momento da
transformação, passam a ser uma ameaça aos outros. Zumbis e
vampiros se alimentam do outro, devorando partes do corpo,
inclusive o cérebro e as entranhas, no primeiro caso, e bebendo
o sangue das vítimas, no segundo caso. Essa relação de alteridade,
que se realiza fisicamente, com a devoração do outro, é
demonstrada no filme de Shore, quando Vlad bebe o sangue da
própria mulher para vencer os turcos. Na obra de Stoker, isso é
demonstrado em várias passagens, que mencionam que “o
monstro podia sugar grandes quantidades de (...) sangue” (STOKER,
2002, p. 200) e que para matar um vampiro era preciso “decepar
sua cabeça” (STOKER, 2002, p. 200).
Em Memórias desmortas de Brás Cubas, de Pedro Vieira, o
protagonista é um zumbi, que também precisa se alimentar dos
outros: “Seu corpo acabou mutilado de tal maneira que não sobrou
muita coisa para se transformar em zumbi, nem quando comi
seu cérebro” (VIEIRA, 2010, p. 109). Porém, a questão da alteridade,
nessa obra, vai além, sendo associada, pelo narrador, à teoria de
Humanitas, famosa nos romances machadianos, que são a base
para a adaptação feita por Vieira: “A nossa condição de mortos-

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 574


vivos nos livrava dos grilhões que a sociedade nos impunha e
deixava Humanitas fluir livremente, é grandioso ver Humanitas
atuando de maneira tão natural” (VIEIRA, 2010, p. 50). Tais
citações não apenas servem para associar vampiros e zumbis,
quando se trata das relações de alteridade. Elas comprovam
também outras coincidências entre as duas criaturas do universo
do gênero de terror e a principal delas é o modo de aniquilamento
efetivo dos mortos-vivos. Na obra de Pedro Vieira, assim como no
romance de Stoker, faz-se menção à decapitação, o que encontra
respaldo na mitologia: “(...) em conformidade com a mitologia
viking, o único modo de matar um zumbi é decepar-lhe a cabeça”
(SUPERINTERESSANTE, 2012, p. 15, ênfase no original).
Outra constatação que embasa a teoria de que hoje os
mortos-vivos representam as relações de alteridade, para
expressar o acirramento da individualidade, a ruptura com o
conceito de comunidade e a ameaça ao outro, é o fato de a condição
zumbi estar associada ao vírus da raiva e a crimes muito violentos,
que envolvem, inclusive, canibalismo. O episódio 5 da primeira
temporada da série Confidenciais (Unsealed), exibida no canal
Discovery, associou alguns crimes hediondos ao mito dos zumbis.
Entre as notícias apresentadas, merece destaque um assassinato
ocorrido em Baltimore, em que um homem arrancou e comeu
pedaços do coração e do cérebro da vítima (NATIONAL
GEOGRAPHIC, 2014). Nesse aspecto, o destaque dado aos zumbis
se justifica pelo fato de eles não se transmutarem em morcegos,
como fazem os vampiros. Sendo assim, a imagem de uma pessoa
devorando outra ilustra de modo mais cruel a tensão das relações
interpessoais. Zygmunt Bauman relaciona esse conflito à
ausência do conceito de comunidade, destruída pela violência
interna: “Um impulso violento está sempre em ebulição sob a
calma superfície da cooperação pacífica e amigável” (BAUMAN,
2001, p. 221).

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 575


Contemporaneamente, os zumbis representam de modo
mais incisivo essa luta entre iguais e alguns estudos sobre o
assunto demonstram que esse processo, o qual ajudou a consolidar
a retomada do gótico, teve início logo após a tragédia das torres
gêmeas, em Nova Iorque, no início do século XXI:

(...) os atentados de 11 de setembro de 2001 podem estar por


trás dessa “Renascença Zumbi”: de repente, para o público
ocidental, o fim do mundo nas mãos de forças assassinas
voltava a ser um conceito plausível. Seja como for, os últimos
anos viram algo em torno de 30 filmes sobre mortos-vivos a
cada 12 meses, uma média sem precedentes (...).
(SUPERINTERESSANTE, 2012, p. 38, ênfase no original)

A obra de Pedro Vieira encaixa-se nessa tendência. O autor


promove o cruzamento entre duas literaturas, a clássica e a
contemporânea, e faz uso de Brás Cubas, um personagem
machadiano que narra sua vida postumamente e que, portanto,
também se insere no universo dos mortos-vivos, para profetizar o
Apocalipse dos dias atuais: “Acreditem em mim: é questão de
tempo até vocês começarem a devorar uns aos outros. E eu estarei
por aqui para roer os restos” (VIEIRA, 2010, p. 140).
Outra característica da adaptação de Vieira diz respeito à
linguagem. O narrador declara que, nos dias de hoje, mesóclises,
palavras rebuscadas demais e referências a obras e autores
clássicos não são mais adequadas ao discurso literário e, por isso,
avisa o leitor de que haverá mudanças significativas. A ideia não
é original (pois o próprio Machado fez isso, em Memórias póstumas
de Brás Cubas, quando opôs as características realistas às
românticas), mas permite que o autor explore simultaneamente
semelhanças e diferenças em relação ao texto-base. Nesse
aspecto, merecem destaque: o capítulo “Qm vc axa ke eh??!?!”
(VIEIRA, 2010, p. 73), no qual o autor atualiza a linguagem

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 576


machadiana a partir do uso de termos comuns ao internetês; e
as referências a vários filmes (Resident evil, Eu sou a lenda,...), na
lista de títulos dos capítulos e no próprio texto: “(...) não estranhe
quando eu citar A Madrugada dos Mortos ou Blade Runner. Foi-se o
tempo em que eu me importava em citar Virgílio ou Sêneca –
este texto não é pra você, intelectualóide de plantão (...)” (VIEIRA,
2010, p. 20, ênfase no original).
Ao utilizar as referências da mídia cinematográfica na
narrativa literária, o autor põe em prática duas categorias de
intermidialidade definidas por Irina Rajewsky (2005): a
“combinação de mídias” e as “referências intermidiáticas”, ambas
relevantes ao processo de “remediação”, também discutido pela
autora:

A “remediação”, como concebida por Bolter e Grusin, denota


um tipo particular de relações intermidiáticas, através de
processos de remodelação midiática. Nessa dinâmica (...) mídias
com origens mais antigas como pinturas, textos (literários),
fotografia, filme, etc. têm freqüentemente remediado (e
continuam a remediar) tanto as respectivas mídias novas como
também umas às outras. (RAJEWSKY, 2005, p. 48, ênfase no
original)

Sem dúvida, a junção feita por Pedro Vieira é positiva, e


por diversas razões. Primeiramente, cumpre ressaltar que o
cinema é a mídia que deu origem ao mito dos zumbis e, já que o
protagonista do livro é um morto-vivo, não há homenagem mais
justa. Em segundo lugar, a referência a outro tipo de mídia era
um recurso usado pelo próprio Machado, autor do texto que é
adaptado por Vieira. Embora, nos romances do autor realista, as
referências literárias fossem abundantes, havia também
menções ao teatro, à ópera e até a textos publicados nos jornais
da época. Por fim, o cruzamento da literatura com o cinema ilustra
o hibridismo e a multiplicidade, características que predominam

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na sociedade contemporânea. E ainda há a contribuição da mídia
digital, com o internetês, que amplia esse entrelaçamento.
Certamente, os diálogos entre as mídias e entre o passado e o
presente podem ser considerados a tônica do livro de Vieira e
essa interseção amplia o alcance e as possibilidades das mídias
envolvidas no processo, sobretudo em se tratando da literatura,
que descobre novas linguagens, ao mesmo tempo em que se ajusta
ao novo contexto social.

Conclusão
Neste trabalho, verificou-se de que modo a obra Drácula,
de Bram Stoker, que deu origem ao mito do vampiro, influencia
as produções literária e cinematográfica contemporâneas, ambas
relacionadas ao novo gótico. Por sua vez, esse processo de
retomada das narrativas de horror protagonizadas por mortos-vivos
foi relacionado ao perfil da sociedade contemporânea, que, de acordo
com Bauman, privilegia a individualidade, em detrimento da
comunidade, como consequência da globalização: “A globalização
parece ter mais sucesso em aumentar o vigor da inimizade e da
luta intercomunal do que em promover a coexistência pacífica
das comunidades” (BAUMAN, 2001, p. 219). Na concepção do autor,
essa ruptura com o social acabou por enfatizar a violência, tema
que motivou a reinserção de vampiros e zumbis na
contemporaneidade, afinal, essas criaturas exemplificam a
disputa com o outro, especificamente de um humano contra outro,
encenado uma guerra entre iguais.
Desse modo, os monstros do passado servem, hoje, como
metáforas e se encaixam perfeitamente no que Bauman
denomina “comunidades explosivas”, as quais “precisam de
violência para nascer e para continuar vivendo” (BAUMAN, 2001,
p. 221). Nesse contexto contemporâneo, cabe ressaltar a
predominância dos zumbis, já que eles, ao contrário dos vampiros,
não seduzem, nem hipnotizam suas vítimas com o olhar, com

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palavras ou com a promessa da vida eterna. Os zumbis atacam,
matam e devoram por simples instinto e por pura necessidade de
sobrevivência. Por essa razão, os zumbis potencializam a violência
do homem contra o homem, encenando um tipo de disputa mais
adequado ao fim dos tempos. Por essa razão, os zumbis são usados
na tentativa de expressar uma espécie de “vazio simbólico”
(LEVERETTE, 2008; MOREMAN; RUSHTON, 2011) e refletem uma
sociedade degenerada, condenada à morte, seja ela o momento
derradeiro ou apenas passagem para uma nova vida.

Referências

ASSOMBRADO. A história real de Vlad Tepes – Filme Drácula: a


história nunca contada. Disponível em: http://
www.assombrado.com.br/p/o-blog.html. Acesso em: 17 mai. 2015.

BAND. A sede de Drácula nunca acaba. Disponível em: http://


noticias.band.uol.com.b

r/cidades/bahia/noticia/?id=100000678435. Acesso em: 29 jun.


2015.

BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,


2001.

BBC. Fóssil humano da Romênia é o mais antigo da Europa.


Disponível em: http://www.bbc.co.uk. Acesso em: 02 jun. 2015.

DRÁCULA, a história nunca contada. Direção de Gary Shore. EUA:


Michael De Luca Productions e Legendary Pictures; Universal
Pictures, 2014. 1 DVD (92 min); son.

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 579


LEVERETTE, M. et al. Zombie culture: autopsies of the living dead.
Plymouth: Scarecrow Press, 2008.

MOREMAN, C. M.; RUSHTON, C. J. (Eds.). Zombies are us: essays


on the humanity of the Walking Dead. Jefferson: McFarland &
Company, 2011.

NATIONAL GEOGRAPHIC. A verdade sobre os zumbis. Disponível


em: https://www.youtube.com/watch?v=-wDIgAuDw18. Acesso
em: 22 ago. 2014.

RAJEWSKY, I. O. Intermediality, intertextuality and remediation:


a literary perspective on intermediality. Intermédialtés/
Intermedialities, Montreal, n. 6, p. 43-64, 2005.

ROSSI, A. D. Manifestações e configurações do gótico nas


literaturas inglesa e norte-americana: um panorama. Disponível
em: http://www.slmb.ueg.br/iconeletras. Acesso em: 05 set. 2014.

STAM, R. Teoria e prática da adaptação: da fidelidade à


intertextualidade. Revista Ilha do Desterro, Florianópolis, n. 51, p.
19-53, jul./dez. 2006.

STOKER, B. Drácula. São Paulo: Nova Cultural, 2002.

SUPERINTERESSANTE. Zumbis: a ciência, a história e a cultura


pop por trás do fenômeno. São Paulo: Abril, 2012.

VIEIRA, P. Memórias desmortas de Brás Cubas. São Paulo: Tarja,


2010.

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O MITO DE CU CHULAINN E SUA REPRESENTAÇÃO NA
CULTURA JAPONESA

Autor: Vinicius Keller Rodrigues (FARESC)


Orientador: Profa. Dra. Solange Viaro Padilha (FARESC)

RESUMO: Este artigo tem por objetivo principal apresentar as histórias


e lendas sobre o herói irlandês Cu Chulainn e fazer uma comparação
entre a representação do herói como personagem nas peças de W. B.
Yeats – ou seja, a representação de Cu Chulainn por um próprio escritor
irlandês e as interpretações desta personagem na cultura popular
japonesa – principalmente nos jogos eletrônicos da série Shin Megami
Tensei e nas novelas visuais da série Fate/Stay Night escritas por
Kinoko Nasu. O artigo pretende ainda discorrer sobre a importância da
aparição de lendas irlandesas em outras mídias e culturas, utilizando
o contexto japonês e algumas de suas características para ilustrar a
relevância do mito de Cu Chulainn para a popularização do folclore
irlandês em outras esferas.
PALAVRAS-CHAVE: W. B. Yeats. Cu Chulainn. Cultura Japonesa.

O mito
Embora o foco deste artigo sejam as representações do mito
de Cuchulain tanto em Yeats quanto no Japão, é necessário
primeiro conhecer a lenda em si. Portanto, dedicarei esta
primeira parte às histórias sobre a vida de Cuchulain, de sua
infância a sua vida adulta e morte. As histórias reproduzidas aqui
são uma tradução e adaptação minha de partes do artigo From
Legend to Literature, W. B. Yeats and the Cuchulain Cycle, escrito
por Robert Coltrane e publicado em 1971 no periódico Lock Haven
Reviews.
Os primórdios da vida do herói são contados no livro
intitulado The Book of the Dun Cow (Lebor Na Huidre), em que se
encontra a narrativa The Cattle Raid of Cooley (Tain Bo Cualnge).

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Nesta narrativa, Fergus e outros homens de Ulster que
desertaram o rei Conchubar para juntarem-se ao exército da
rainha Maeve de Connacht contam alguns dos feitos de Cuchulain
durante seus primeiros anos. É aqui que aprendemos que o herói
era o filho de Dechtire, irmã do rei Conchubar, e que seu pai
mortal era Sualtach, um capitão de Ulster. Contudo, Cuchulain
também tinha um pai sobrenatural em Lug, um príncipe dos
Tuatha De Danann (o povo fada, os Sidhe).
Aos cinco anos de idade, Fergus conta, o jovem Cuchulain
(até aqui em sua vida chamado pelo nome Setanta, seu nome de
batismo) fugiu de casa para viajar até Emain Macha, a capital de
Ulster, onde o rei Conchubar residia. Na capital existia uma tropa
de garotos em treinamento militar, cujos cento e cinquenta
membros, o jovem Setanta derrotou a fim de ser admitido como
parte deles.
Cormac Conlonges, filho de Conchubar, narra a história de
como Cuchulain adquiriu seu nome. Um ano após o jovem herói
ter subjugado os garotos guerreiros de Emain Macha, um ferreiro
chamado Culann convidou o rei Conchubar a um banquete, e
este convidou Setanta. Entretanto, o garoto não poderia chegar
na hora combinada, e acabaria um pouco atrasado. Esquecendo-
se deste detalhe, Culann soltou seu feroz cão de guarda para
proteger sua propriedade enquanto comia com o rei, sem saber
do jovem que estava para chegar. Quando Setanta chegou à casa
do ferreiro, foi atacado pelo cachorro e foi obrigado a matá-lo em
autodefesa. Culann ficou arrasado com a perda de seu cão e o
jovem, sentindo-se mal pelo que havia feito, ofereceu-se para
cuidar da propriedade do ferreiro enquanto um novo cão era criado
e treinado. Conchubar, então, mudou o nome de Setanta para
Cuchulain, que significa “Cão de Culann”.
O próximo grande acontecimento da vida de Cuchulain é
conhecido como The Wooing of Emer, em que ao herói, ainda
imberbe e solteiro, é oferecida uma mulher aceitável pelos seus

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 582


compatriotas de Ulster. Entretanto, a mulher em questão, Emer,
possui tantos pretendentes que Cuchulain precisa aprender novas
façanhas de guerra para conquistá-la. Então, ele parte para a
Escócia a fim de treinar com uma famosa guerreira, Scathatch.
Durante seu treinamento, uma briga acontece entre Scatach e
sua rival, Aoife. Cuchulain, ao derrotar Aoife em batalha, torna-
se seu conquistador, tendo um filho com ela. O herói então ordena
que, sete anos depois, a mulher envie a ele seu filho. Estes
acontecimentos são narrados no The Yellow Book of Lecan, escrito
por volta do século 14.
Voltando ao The Book of Dun Cow, encontramos o momento
em que Cuchulain é consagrado como maior herói da Irlanda.
Isto acontece na história Bricriu’s Feast (Fled Bricriu). Bricriu,
durante um banquete que oferece ao rei Conchubar, semeia a
discórdia entre Laegaire, Connall e Cuchulain ao dizer a eles,
separadamente, que cada um tem direito à porção do herói do
banquete, que era dada ao maior herói do reino em
reconhecimento à sua posição. Por causa disso, inicia-se uma
disputa entre os heróis (e até suas esposas e servos) para decidir
quem deles merecia a porção. A luta toma tais proporções que
eles vão à presença de Ailill, rei de Connacht, para que ele decida
quem é o maior. Quando Ailill é incapaz de decidir, eles se voltam
para Cu Roi, um feiticeiro. Cu Roi faz com que cada um dos heróis
lute com um gigante e Cuchulain é o único que vence. O feiticeiro
dá a Cuchulain a porção do herói, mas quando os três voltam
para casa, Laegaire e Connall negam que o prêmio havia sido
dado ao outro herói.
Então, certa noite, um vilão, grande e feio, chega a Emain
Macha carregando um bloco de madeira e um machado. Ele desafia
qualquer um a cortar sua cabeça e esperar a noite seguinte quando
ele voltaria para buscar a cabeça de seu oponente. Laegaire corta
a cabeça do vilão e este se levanta e vai embora carregando a
própria cabeça. Quando ele volta na noite seguinte para decapitar

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 583


Laegaire, este havia desaparecido. A mesma coisa acontece com
Connall. Cuchulain, entretanto, mantém sua promessa e oferece
seu pescoço quando o vilão retorna. Este golpeia com o machado
em direção ao pescoço do herói, mas desvia antes de acertá-lo e
proclama Cuchulain como campeão da Irlanda. O vilão, então,
desaparece e é revelado que ele era, na verdade, o feiticeiro Cu
Roi disfarçado, que tinha vindo para cumprir seu veredito.
O próximo evento notável é a morte do filho de Cuchulain.
Como mencionado anteriormente, antes de partir da Escócia, o
herói comanda a Aoife que envie a ele seu filho depois de passados
sete anos. A história do encontro entre pai e filho pode ser
encontrada no The Yellow Book of Lecan, sob o nome de “The Tragic
Death of Aoife’s Only Son”. Aoife envia o filho, Connla, a seu pai,
ordenando que este não revele sua identidade a nenhum homem
e que não recuse combate a ninguém. Quando Connla chega num
barco, Conchubar envia vários guerreiros a ele para evitar que
aportasse antes de se identificar. O jovem se recusa a dizer quem
é e derrota os que se opõem a ele. Por causa disso, os guerreiros
passam a temer enfrentá-lo e é dito que o garoto “faz zombaria do
exército de Ulster”. Para preservar a honra de sua terra,
Cuchulain vai questionar o jovem apesar de Emer, sua esposa,
alertá-lo de que pode ser seu filho. Devemos assumir que o herói
ou se esqueceu que os sete anos haviam se passado ou que seu
orgulho como campeão não lhe permite reconhecer o garoto, pois
quando Connla se recusa a dizer seu nome, eles lutam. O jovem
resiste tão fortemente que Cuchulain se vê forçado a utilizar a
gae bolg, ferindo seu filho mortalmente. Connla grita que aquela
era a única arma sobre a qual Scathach nunca havia lhe avisado,
e então Cuchulain reconhece seu filho.
A última história que irei transcrever, antes da história
sobre sua morte, é conhecida como “The Wasting Sickness of
Cuchulain and the Only Jealously of Emer” (“Serglige con Culainn
inso sis oenet Emire”). Nesta, Cuchulain encontra-se doente, e

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 584


envia palavra a Emer para que ela o visite. Quando ela chega,
sua esposa incentiva o herói a se curar de sua longa doença. Li
Ban, uma sidhe, aparece e o convida para o Outro Mundo, pedindo
ajuda na luta contra os inimigos do marido dela, Labraid. Laeg é
enviado primeiro, para fazer um reconhecimento, e retorna
contando da beleza de Fand (uma belíssima mulher do outro
mundo) e das terras que ela possui. Cuchulain vai até o Outro
Mundo e derrota os inimigos de Labraid; passa um mês com Fand,
e concorda em retornar a ela mais tarde. Quando ele vai ao lugar
onde se encontrariam, Emer aparece e o repreende por
desrespeitá-la. Fand devolve Cuchulain a Emer e vai embora com
Manannan, um homem-fada que reina na Ilha do Homem. O
campeão da Irlanda fica tão deprimido que os druidas, sentindo
pena dele, lhe dão uma poção para que esqueça de Fand. Emer
também toma da poção para se esquecer de sua inveja.
Por fim, irei avançar alguns anos para contar da morte de
Cuchulain, que ocorre durante uma guerra entre Ulster e
Connacht. Após o exército de Connacht ter sido destruído por
Cuchulain, Maeve, rainha de Connacht, acumula em um novo
exército filhos dos homens que haviam sido mortos pelo herói
irlandês. Vários presságios avisam a Cuchulain que não batalhe,
mas ele viaja para enfrentar o exército de Maeve da mesma forma.
No caminho, ele acaba quebrando sua promessa de nunca ingerir
carne de cachorro e seu destino é selado. Quando o herói se
aproxima de seus inimigos, é forçado a atirar sua lança três vezes,
pois três homens ameaçam ultrajar seu rosto e suas terras caso
Cuchulain recuse. Como sua lança estava destinada a matar um
rei, um dos inimigos a agarra toda vez que é atirada e a joga de
volta. Na primeira vez, a lança mata Laeg, rei dos cocheiros. Na
segunda vez, a lança mata o cavalo de Cuchulain – O Cavalo
Cinzento de Macha, rei dos corcéis. Na terceira vez, a lança atinge
mortalmente o herói. Cuchulain recebe permissão de se limpar
em preparação para a morte e, depois de limpar seus ferimentos,

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 585


amarra-se a um pilar de pedra para morrer de pé. Lugaid (filho do
feiticeiro Cu Roi, que Cuchulain havia matado mesmo depois do
primeiro ter-lhe sagrado Campeão da Irlanda), como vencedor,
decepa a cabeça do herói. Então, Conall chega e cumpre sua
promessa de vingança, capturando e decapitando Lugaid.

Cuchulain em Yeats
O poeta e dramaturgo irlandês escreveu cinco peças que
têm Cuchulain como personagem principal. São elas On Baile’s
strand (1904), The Green Helmet (1910), At the Hawk’s Well (1917),
The Only Jealously of Emer (1919) e The Death of Cuchulain (1939).
As peças não foram escritas apresentando a vida do herói em
ordem cronológica (por exemplo, o acontecimento mais antigo
retratado numa peça é o encontro de Aoife e Cuchulain em At
The Hawk’s Well, a terceira peça escrita). Como Coltrane (1971)
aponta, Yeats preferiu escrever de acordo com suas necessidades
na época, ao invés da ordem cronológica.
Quanto à representação do herói, observamos um foco no
lado humano da personagem, com seus feitos marciais deixados
em segundo plano (em On Baile’s strand, por exemplo, o combate
entre Cuchulain e seu filho ocorre fora de cena, com o foco da
peça sendo na conversa entre um cego e um tolo durante a luta,
os fatos desta contados depois). Yeats também mostra Cuchulain
como impertinente, porém honrado e confiante em sua habilidade.
Outro foco da obra de Yeats é a abnegação ou auto sacrifício,
mais precisamente, o sacrifício nas peças que contêm o herói
Cuchulain como personagem. Como tema, tal altruísmo aparece
nas peças On Baile’s Strand, The Only Jealously of Emer e The Green
Helmet, embora, segundo Richman (1970), de formas diferentes.
Em On Baile’s Strand, Cuchulain, após descobrir que havia matado
seu próprio filho, joga-se ao mar, parecendo lutar contra as próprias
ondas, e acaba se afogando. Aqui, o herói busca absolvição pelo
pecado que cometera, entregando sua vida ao mar. Em The Only

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Jealously of Emer, para salvar a alma do afogado Cuchulain, Emer
se vê forçada a renegar para sempre o amor deste, sacrificando
seu desejo pelo bem de seu amado. Finalmente, em The Green
Helmet, Cuchulain oferece a própria vida para trazer paz e
normalidade de volta à vila onde ele, sua esposa e seus amigos
viviam. Ainda sobre The Green Helmet:

Reconhecendo sua própria honra como valor primário, e


reconhecendo também o inevitável resultado da arbitragem
Celta, ele [Cuchulain] resolve o problema radicalmente, como
um herói deveria, e, como bode expiatório de boa vontade,
oferece sua cabeça para expiar o grupo e para se realizar de
forma mais completa num gesto que o levanta sobre a multidão.
(RICHMAN, 1970, p. 140-141)

O tema do sacrifício é preservado na representação japonesa do


herói, como será discutido logo abaixo. Vale também mencionar
a influência que o teatro Noh teve nas peças de Yeats, sobretudo
na peça At the Hawk’s Well, mostrando que não só a cultura
japonesa teve influência irlandesa, mas que o oposto é verdade
também, com o Japão influenciando a Irlanda.

No Japão: Fate/Stay Night


Fate é uma novela visual (novela japonesa lida numa
aplicação semelhante a um jogo de computador) escrita por Kinoko
Nasu e publicada pela empresa TYPE-MOON em 2004. Explicarei
rapidamente a premissa básica da novela, a fim de contextualizar
a aparição de Cuchulain como personagem.
O enredo se passa em 2004 na cidade fictícia de Fuyuki
(embora esta possua lugares baseados na região de Kobe), que é
palco do que é chamado de Guerra do Graal (V€og&b‰N, Seihai
Sensô). O Santo Graal é a relíquia cristã que recebeu o sangue de
Cristo e, em Fate, é capaz de realizar qualquer desejo, mas apenas

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 587


a uma pessoa. Para escolher quem terá seu desejo realizado, o
Graal escolhe sete magos como Mestres e lhes dá a possibilidade
de invocar Espíritos Heroicos (pessoas, fictícias ou não, que foram
tão extraordinárias durante suas vidas que foram removidas do
ciclo de ressureição para preservarem sua imagem. A força destes
está diretamente relacionada à fama que têm – quanto mais
famoso o herói, mais forte ele é.) chamados de Servos e divididos
em sete classes de acordo com suas habilidades – Saber (para
espíritos heroicos que usam espadas), Archer (para arqueiros),
Lancer (para aqueles famosos pelo uso de lanças), Rider (para
aqueles de habilidade hípica renomada), Caster (para feiticeiros),
Assassin (para assassinos) e Berserker (servos invocados como
Berserker têm sua sanidade removida em troca de poder
descomunal. Qualquer espírito heroico pode ser invocado por esta
classe, mas são extremamente difíceis de controlar). Há também
uma oitava classe, Avenger, designada especialmente para a
divindade persa Angra Mainyu. Para preservar suas identidades
reais, os servos geralmente são chamados pelo nome de sua
classe. Assim divididos, os Mestres e Servos lutam entre si até
que reste apenas um, dos sete iniciais, e ao final da guerra o
sobrevivente pode fazer seu desejo ao Graal.
Fate/Stay Night conta os eventos da quinta Guerra do
Graal. O personagem principal é Emiya Shirou e sua serva é Saber.
Cuchulain aparece como Lancer, servo do antagonista principal,
Kotomine Kirei. Semelhante à representação de Yeats, o herói
irlandês aparece como um guerreiro honrado e determinado.
O tema do sacrifício aparece aqui também. Perto do final
de uma das rotas (a novela é dividida em três histórias diferentes,
cujo acesso depende das escolhas do leitor) Shirou é capturado
pelo mestre de Cuchulain, Kirei, e separado de sua serva Saber.
Kotomine manda Cuchulain guardar Shirou e garantir que este
não escape, enquanto Gilgamesh (o outro servo de Kirei) estaria
um andar acima, para evitar que Saber se reunisse com Shirou

ANAIS IV JORNADA DE ESTUDOS IRLANDESES ABEI/UNIANDRADE PR 588


no porão. Entretanto, quando Saber chega à igreja de Kotomine e
é impedida por Gilgamesh de continuar, Cuchulain aparece para
atrasá-lo, sabendo que estava quebrando seus votos com Kotomine
ao enfrentar Gilgamesh e sabendo também que não seria capaz
de derrotar Gilgamesh e morreria. Cuchulain se sacrifica por
dois motivos principais. O primeiro é a sua revolta com Kotomine,
que não é nem seu mestre original – Kirei mata a mestra original
de Lancer e rouba-o dela – e não o usa de forma satisfatória.
Cuchulain não deseja o Santo Graal, ele deseja apenas lutar e
servir, desejo esse tomado dele por Kirei, que o usou apenas como
batedor para observar os outros servos. O herói irlandês não gosta
de sua função, achando-a desonrosa, e usa a oportunidade dada
por Shirou e Saber para se rebelar.
O segundo motivo para a rebeldia é a sua moral. Lancer
não concorda com Kirei, e embora Shirou e Saber sejam seus
inimigos, ele simpatiza com os motivos deles, pois ambos apenas
querem o bem. Cuchulain, acima de tudo, prioriza o que ele
acredita como a coisa correta a se fazer, que era garantir que os
protagonistas tivessem uma chance de derrotar Kirei, mesmo
este sendo mestre do irlandês. Estes valores – rebeldia, moralidade
– são compatíveis com a representação de Yeats do herói. Basta
observar como exemplo a peça The Green Helmet, onde Cuchulain
oferece sua vida como pagamento de uma aposta que nem fizera,
com o único propósito de terminar as brigas e restaurar a paz à
vila, como já mencionado.

Em Shin Megami Tensei


Shin Megami Tensei (literalmente A verdadeira reencarnação
da deusa) é uma enorme franquia de jogos eletrônicos presente
em diversas plataformas. O primeiro jogo foi Megami Tensei (lit.
Reencarnação da deusa) lançado em 1987, no Japão. Quase todos
os jogos envolvem a mesma premissa: adolescentes encontram
de alguma forma um poder que lhes permite invocar demônios

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(que são geralmente criaturas mitológicas de diversas regiões).
Cuchulain aparece como invocação possível em quase todos os
jogos, mas quase sempre de forma opcional ou em segundo plano.
A franquia se inspira em diversas mitologias e lendas de todo o
mundo, mas a principal (e, às vezes, única) figura irlandesa é
Cuchulain, demonstrando o quão longe a influência de sua lenda
chega.
Também é possível traçar um paralelo com o tema do
sacrifício, presente em diversos jogos, mas principalmente em
Shin Megami Tensei: Persona 3. Como dito anteriormente, em
Persona, adolescentes usam o poder de deuses, demônios e figuras
heroicas como facetas de suas personalidades para combater
shadows, por isso Cuchulain não atua tão diretamente na história
quanto em Fate. Entretanto, no cânone de Persona 3, o protagonista
(cujo nome é definido pelo jogador e cujos nomes oficiais variam,
mas que por ora será chamado de Arisato Minato) se vê diante de
uma escolha. A deusa Nix vem para destruir a humanidade, e
Minato é seu chamariz, podendo escolher entre destruir a shadow
que havia sido selada dentro dele – o que faria que seus amigos
perdessem as memórias da destruição iminente e pudessem
morrer em paz – ou lutar contra Nix, o que apenas causaria dor e
sofrimento para seus colegas e acarretaria na morte de Minato
para salvar o mundo.
O jogador pode fazer essa escolha, mas o final canônico é
o final em que Arisato se sacrifica, colocando as vidas de seus
amigos acima da sua própria. Minato é um mártir, e não é
apropriado que uma das personas de que dispõe seja Cuchulain,
que também havia se disposto ao sacrifício e mais de uma vez?
Personas são facetas da personalidade de cada um e, embora o
protagonista seja uma folha em branco a ser preenchida pelo
jogador, essa personalidade altruísta existe na personagem e
talvez seja por isso que os escritores do jogo incluíram Cuchulain
(entre algumas outras personas que também possuem essas

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nobres características) como possibilidade de Persona,
representando o heroísmo e nobreza de Minato.

Por que o Japão?


A razão para a aparição de diversas mitologias diferentes
na literatura japonesa pode ser o sincretismo religioso do país.
Como aponta Daniela de Carvalho (2002), boa parte dos japoneses
afirma não possuir religião alguma, mas o número de afiliados a
instituições religiosas no Japão supera a população do país,
demonstrando que, embora afirmem não serem religiosos, os
japoneses têm comportamentos e afiliações religiosas.
As duas maiores religiões no país são o Budismo e o
Xintoísmo, e é possível que a crença budista contribua para o
sincretismo.

O Budismo originalmente apresenta uma abordagem


inclusivista de outras religiões. Na expansão do Budismo isso
se mostrou especialmente através de um inclusivismo ou
sincretismo histórico, e em termos doutrinais a partir de uma
classificação que colocasse alguma escola budista no topo de
uma pirâmide de valoração. Em situações específicas,
principalmente devido a motivos sociais ou políticos, a atitude
inclusivista do Budismo foi abandonada em favor de um
exclusivismo ou anti-sincretismo. (SHOJI, 2007, p. 139)

Podemos observar claramente esse sincretismo analisando


não só as obras aqui discutidas, mas também o jogo de 2011 da
empresa From Software, Dark Souls. Neste, podemos ver uma área
inspirada no antigo cemitério judeu, em Praga; podemos ver uma
área baseada no Angkor Wat, em Camboja; há uma área cujo
exterior é baseado no Il Duomo, em Milão e uma área baseada no
Chateau de Chambord, na França, para mencionar apenas
algumas. Artistas buscando inspiração em mitologias e países
diferentes não é um evento isolado, mas sim uma tendência

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cultural, decorrente da mistura de religiões e mitologias na
história do país.

Qual é a importância destas representações da lenda?


Aqui chegamos à conclusão do artigo. Qual é, afinal, a
importância destas representações? A resposta é relativamente
simples. É por meio dessas que a lenda se mantém viva. Antes da
invenção da escrita, lendas eram repassadas pela tradição oral
para garantir que não fossem esquecidas, e mais tarde foram
escritas e reproduzidas em livros e mais tarde ainda em filmes.
E, claro, encontramos a lenda de Cuchulain nos antigos
manuscritos irlandeses e em Yeats, mas, excluindo as aparições
do herói aqui mencionadas, não o vemos tão reverenciado quanto
o Rei Arthur, por exemplo. Arthur é retomado na literatura
moderna (As brumas de Avalon, de Marion Zimmer Bradley, por
exemplo-) e em filmes sobre sua lenda, o que garante que boa
parte da população conheça sua história. Cuchulain não desfruta
do mesmo tratamento no Ocidente, mas encontra fama no Japão.
Excetuando-se as duas franquias mencionadas aqui, seu nome
aparece em pelo menos mais duas (em Final Fantasy e em Yu-gi-
oh) e em Fate as personagens o reconhecem imediatamente
quando ele usa a gae bolg, demonstrando que pelo menos alguma
parte das pessoas, no mínimo, ouviu falar sobre sua lenda (nem
que por causa da sua aparição na cultura popular).

Referências

COLTRANE, R. From Legend to Literature: W. B. Yeats and the


Cuchulain Cycle. Lock Haven Reviews, nº 12, 24-46, 1971.

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DE CARVALHO, D. Religião, Sociedade e Cultura: O Caso do Japão.
Psicologia, Educação e Cultura, vol. VI, nº2, p. 379-396, 2002.
Disponível em <http://comum.rcaap.pt/bitstream/123456789/
5255/1/2002_PEC_2.pdf#page=149>. Acesso em 26/07/2015.

GUTIERREZ, D. Ghosts Benefic and Malign: The Influence of the


Noh Theatre on Three Dance Plays of Yeats. Forum H9, Houston,
p. 42-48, 1971.

HATSURA, H. Shin Megami Tensei: Persona 3. ATLUS, 2006. [DVD]

MIYAZAKI, H. Dark Souls. From Software, 2011. [Digital]

NASU, K. Fate/Stay Night. TYPE-MOON, 2002. [DVD]

RICHMAN, L. K. The Theme of Self-Sacrifice in Yeats’s Drama.


Dissertação de doutorado. Derpartment of English of Duke
University, Carolina do Norte, USA, 1970.

SHOJI, R. Buscando o Olhar Budista: Notas sobre o Diálogo Inter-


religioso no Japão. Um relatório a partir do Instituto para Religião
e Cultura da Universidade de Nanzan (Nagóia, Japão). Revista de
Estudos da Religião, p. 138-145, São Paulo, 2007. Disponível em
<http://revistas.pucsp.br/rever/rv2_2007/f_shoji.pdf>. Acesso
em 26/07/2015

STANTON, R. The Real Dark Souls Starts Here: 13 Real Life


Inspirations for Lordran. Disponível em: <http://www.ign.com/
articles/2014/03/13/the-real-dark-souls-starts-here-12-real-
life-inspirations-for-lordran>. Acesso em: 26/07/2015.

YEATS, W. B. Selected Plays. 1ª ed. Penguin Books, Londres, 1997.

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