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Entendendo o Batuque

O contexto histórico
O Batuque surgiu no período de 1895 a 1935, em Porto Alegre e, como diversas religiões
praticadas no Brasil, teve origem na África, tendo sido trazido pelos negros, no tempo da
escravidão. É fruto das religiões dos povos da Costa da Guiné e da Nigéria, com as nações Jeje,
Ijexá, Oyó e Nagô.
As religiões afro-brasileiras, tais como existem hoje, no Brasil, com seus ritos, crenças e
mitos, são frutos da experiência existencial do povo africano e das diversas adaptações pelas quais
passaram durante sua trajetória na Diáspora.
Sua religião foi a única e inseparável bagagem trazida nos porões dos navios negreiros.
Longe da sua terra, tiveram que encontrar formas de reconstruir seus ritos e suas crenças
num mundo totalmente novo e hostil, onde sua memória e cultura era o que menos importava e
eram constantemente cercados de cuidados para que esquecessem os seus mitos e seus deuses
“demoníacos”. Nesse contexto, preencheram o seu vazio existencial voltando-se aos seus deuses –
apesar de todas as tentativas da Igreja Católica de catequizá-los. Isso fez com que, de certa forma,
“reinventassem” a sua religião, adaptando-a a esta nova situação, a este novo território, e ao contato
que estavam fazendo com novas tribos e nações.
Assim nasceu o Batuque no Rio Grande do Sul, o Candomblé na Bahia, o Xangô no Recife e
as Casas de Nagô e Minas no Maranhão.

Sendo Ajudá o principal exportador de escravos da Costa da Mina, onde se encontravam os


jejes, estes foram os primeiros a trazer sua religião para o Brasil. Mas, com a conquista dos reinos
litorâneos pelos Régulos, de Abomey, os portugueses foram buscar seus negros em outros lugares,
como no Rio de Lagos, na terra dos iorubás. Isso fez com que a nação Nagô predominasse na Bahia,
até a abolição da escravatura.
Já a história do negro no Rio Grande do Sul teve um caráter distinto, pois as circunstâncias
com que se desenvolveu foram muito diferentes.
Oficialmente, a presença negra no Rio Grande do Sul ficou estabelecida em 1737, quando o
Brigadeiro José da Silva Paes começa a construção do Presídio Jesus, Maria e José. No entanto, os
primeiros negros vieram para este Estado em 1725, com a frota de João Magalhães.
Desde então, o negro marcou sua presença no folclore, nas artes, no esporte e na política do
Rio Grande do Sul. Foram, inclusive, os principais soldados que lutaram na Guerra do Paraguai.
É, porém, na religião popular que o negro mais se destacou. Desde o século 19 se verifica a
existência de terreiros de Batuque em Porto alegre. Atualmente estes terreiros somam mais de 50
mil em todo o Estado.
O Continente de São Pedro foi, durante muitos anos, distante e hostil e era usada contra os
escravos rebeldes ou preguiçosos do centro do país, pois era considerado por eles como pior que o
inferno, um degredo.
Os negros eram, então, trazidos para o Rio Grande do Sul para trabalharem especificamente
no trato com o gado, que foi a base da economia gaúcha durante um longo período da história.
Esta economia seria mais consolidada, ainda, com o surgimentos das charqueadas. Elas
produziam o charque, um produto que era a base da alimentação de escravos em todo o Brasil. Essa
produção trouxe muita riqueza à região de Pelotas, que se tornou uma espécie de capital cultural do
Rio Grande do Sul.
As charqueadas começaram a surgir na região de Pelotas em torno de 1780. O charque já era
produzido, mas de maneira artesanal e em pequena escala. Uma série de secas sucessivas no
nordeste, onde estava concentrada a maior produção de charque do país, criou uma excelente
oportunidade para o produto gaúcho.
Mesmo com a opulência gerada com a produção de charque, as próprias charqueadas eram
um exemplo de miséria e de condições sub-humanas. Grandes grupos de escravos eram submetidos
a um trabalho exaustivo e os senhores adotavam uma política de extrema intimidação para mantê-
los obedientes. As charqueadas eram verdadeiros sistemas penitenciários. Esse tratamento brutal se
baseava no interesse econômico, pois quanto mais produzissem, mais seus donos lucravam. Mesmo
assim, com toda essa violência e com os métodos primitivos usados pelas charqueadas, elas
sobreviveram e geraram lucros consideráveis até a abolição da escravatura. A partir dessa época,
enfrentaram dificuldades cada vez maiores e se extinguiram.
Neste contexto de miséria e violência, os Orixás, os mitos e uma série de outros elementos
culturais negros sobreviveram no Rio Grande do Sul e persistem até hoje, formando o que
chamamos de Batuque.
Mas não foram só os escravos que trabalhavam nas charqueadas que influenciaram a religião
e a cultura do Rio Grande do Sul. O Continente de São Pedro também teve a presença de jejes e
nagôs, vindo junto com as caravanas de desbravadores. Eles vinham do centro do país e de outros
estados brasileiros. Os povos iorubás, portadores de uma mitologia complexa e altamente
organizada também trouxeram seus mitos.

Um dos estados nagôs mais poderosos, o Reino de Benin, foi destruído no final do século
19, pelos ingleses. A destruição deste reino trouxe para o Rio Grande do Sul, o Príncipe Custódio
Joaquim Almeida, que teve um significado muito importante para a resistência do negro gaúcho.
São João Batista de Ajudá era uma fortaleza portuguesa no Daomé, construída pelo rei
português Dom Pedro II, para proteger o comércio que os portugueses faziam na Costa da Mina.
Era a capital do antigo reino do Daomé.
Posteriormente, foi comprada em 1876 pelos ingleses, que estabeleceram importantes
feitorias, que passaram a ser defendidas pelas fortalezas construídas por Portugal. A Inglaterra fez
diversos acordos com os reis e príncipes que governavam aquela região. Entre eles estava o Príncipe
de São João Batista de Ajudá, que deixou sua terra na Costa da Mina em 1862, com 31 anos de
idade. Entre as condições impostas ao príncipe, estava a de que não ofereceria qualquer resistência
aos novos invasores, se exilasse e jamais voltasse aos seus domínios. Da sua parte, a Grã-Bretanha
se comprometeu de fornecer-lhe uma subvenção mensal, que seria paga em qualquer parte do
mundo onde estivesse.
Chegou ao Brasil em 1864, fixando-se, inicialmente em Rio Grande e mais tarde no interior
de Bagé, onde ficou conhecido por manter viva a tradição religiosa do seu povo, praticando o que
hoje se chama de Batuque. Tinha, também, um grande conhecimento das propriedades curativas das
nossas plantas medicinais, atendendo muita gente que o procurava, tratando-as com as ervas e com
os ritos africanos.
De Bagé, mudou-se para Porto Alegre, aonde chegou em 1901, aos 70 anos de idade.
Sua família, aos poucos, foi crescendo e não demorou muito a atingir o número de 26
pessoas.
No dia 26 de maio de 1936 morreu o príncipe Custódio aos 104 anos de existência. Seu
velório e seu enterro, atendendo ao pedido expresso do morto, foi feito dentro das tradições
africanas com muito batuque e muitos "trabalhos", em intenção do morto.
Não há dúvidas de que Custódio de Sakpatá influenciou, e muito, a religião que se pratica,
atualmente, no Rio Grande do Sul. No entanto, existem poucas referências sobre quem seriam seus
filhos-de-santo e sua descendência atual.
A religião e sua energia

Se o pensamento científico pretende descrever e explicar a


realidade, é forçado a usar seu método geral, que é o da
classificação e da sistematização. A vida é dividida em
províncias separadas que são claramente distinguidas umas
das outras. Os limites entre os reinos das plantas, dos animais,
do homem - as diferenças entre espécies, famílias, gêneros -
são fundamentais e indeléveis. Mas a mente primitiva as ignora
e as rejeita. Sua visão da vida é sintética, e não analítica. A
vida não é dividida em classes e subclasses. É sentida como um
todo contínuo e ininterrupto que não admite distinções nítidas e
claras.(...) Se existe algum aspecto característico e destacado
do mundo místico, qualquer lei que o governe, é a lei da
metamorfose. Mesmo assim, dificilmente poderíamos explicar a
instabilidade do mundo mítico pela incapacidade do homem
primitivo para apreender as diferenças empíricas das coisas.
Quanto a isso, o selvagem muitas vezes prova a sua
superioridade em relação ao mundo civilizado. É suscetível a
muitos aspectos distintivos que escapam à nossa atenção.
Ernest Cassirer, Ensaio sobre o homem.

O Batuque, como qualquer religião afro-brasileira, é derivado das religiões mais antigas do
mundo que se desenvolveram na África com o começo da civilização humana.
A essência de todas as religiões afro-descendentes é o Axé. Esse princípio é encontrado em
muitas outras tradições religiosas, com outros nomes. Brahma para os hindus, Tao para os taoístas,
etc.
O Axé é uma energia móvel que não pode estagnar-se, precisa ser transmitida. Axé precisa
de Axé. Este é o princípio que faz circular esta energia por todos os seres, vegetais, minerais, água,
mel, sangue, homens, deuses.
A própria universalidade do Axé, no entanto, escapa a qualquer personalização. Não é uma
força individual. É contínua, e está misturada com todas as coisas. Não é um atributo de nenhum
ser, mas é o próprio ser. Dinâmico. O universo tem como unidade criadora esta energia em contínua
interação e interligação.
Quando nos iniciamos, temos contato com esta energia. É na iniciação que damos o primeiro
passo religioso. Aqui começamos a conhecer os seres que criaram e comandam o Orum e o Ayê, o
céu e a terra, o mundo encantado e mítico e o mundo material. Aqui podemos ter a nossa primeira e
fundamental experiência no Batuque: somos possuídos pelo nosso Orixá.
O Axé não é, porém, algo doado pelo Orixá ao filho-de-santo, ou vice-versa. Os Orixás são
apenas os ancestrais detentores do Axé, que se valeram dessa energia para criar o mundo. O que
fazemos nesta troca entre o que é oferecido pelo filho (alimentos, sacrifícios animais, obrigações,
etc.) é fortalecer e manter essa energia. Em troca, o filho tem seus objetivos satisfeitos, através de
proteção, aconselhamento, cura ou qualquer intervenção que ele necessite do Orixá. Essa relação
dinâmica mantém o equilíbrio energético entre os dois pólos. A possessão é fundamental nessa
interação. É nesse processo que se encontram os dois pólos (yin e yang) interagindo no mundo
material.
Mesmo que o Orixá, como personificação das forças agentes no mundo, tenha o seu Axé, ele
é abstrato, não pode ser visualizado. O Orixá não se concretiza sem o seu filho. Essa relação Orixá-
Elegun torna-se, então, imprescindível. Cada filho de santo tem o seu Orixá particular. Esse Orixá
só nasce quando incorporado. Ele só veio ao mundo porque tem o seu Elegun. Este casamento do
concreto (Elegun) com o abstrato (Orixá) é que dá o equilíbrio do Axé.
Os Orixás, no entanto, só podem nos oferecer força mística se eles a receberem por meio das
oferendas. O Axé não é um produto dos deuses, é uma energia autônoma. É a própria força da
natureza, que não vem de lugar algum, e se o homem, ou o Orixá, a possui, é, justamente, por sua
condição de, também, ser natural. Assim, cada ser, seja animal, vegetal ou mineral, é dotado de
Axé. Diferente do misticismo judaico-cristão, que entende o ser como estático (“aquilo que é”), o
pensamento africano equipara o ser ao Axé. Assim, esta energia está espalhada por todo o Universo,
em todos os seres. Em tudo há vida, há Axé, não como bênção de um ente supremo, mas como uma
força em si mesma, cultivada na relação do homem com a natureza. O Axé está nas partes que se
relacionam, no filho-de-santo e no Orixá, mas somente quando estão se relacionando.
Assim, dentro do Batuque, não há nenhum acidente. O universo é um todo que afeta todas as
coisas e todas as coisas o afetam. Acredita-se que todas as coisas possuem um significado, uma
alma.
Esta religião “primitiva” nos mostra, então, uma nova forma de pensar, voltada para o
reencontro do homem com a natureza, procurando reparar o erro que existe na subordinação da
natureza ao homem. O homem, além de racional e cultural, também é biológico, natural.

A religião e sua prática

Os Orixás cultuados no Batuque são Bará, Ogum, Yansã, Xangô, Odé, Otim, Obá, Ossaim,
Xapanã, Oxum, Yemanjá e Oxalá. Cada um deles se subdivide em alguns “caminhos”, como Bará
Lodê, Bará Ajelu, etc.
O ciclo das iniciações do Batuque segue a seguinte ordem:
1) Lavar cabeça: esta é a primeira obrigação da Iniciação. Nesta cerimônia o pai-de-santo
utiliza o Mieró (ervas sagradas maceradas com água pura) para lavar a cabeça do futuro
filho-de-santo. Após essa obrigação o iniciado deve respeitar e participar de todas as
atividades do Ilê.
2) Aribibó: essa obrigação é feita mais por segurança, em casos de doença e
principalmente em crianças. Utiliza-se para sacrifício um casal de pombos brancos e a
comida pertencente ao orixá de cabeça da pessoa que irá fazer a obrigação. O filho de
santo fica recolhido por 24 horas. Não é obrigatória para realizar a próxima.
3) Bori de Aves: é o principal fundamento do Batuque. São sacrificadas aves
correspondentes aos Orixás (de cabeça, ajuntó, etc.) pertencentes ao filho-de-santo. Este
ritual estreita os laços do filho-de-santo com seu Orixá e com a própria religião.
4) Bori de Quatro-pés: é a mesma obrigação acima, acrescentada dos animais de quatro
patas (cabritos, ovelhas, etc.) referente a cada Orixá.
5) Feitura-de-santo: é o assentamento dos Ocutás (pedras) relativos aos Orixás em
vasilhas de barro ou de porcelana com suas respectivas ferramentas, com o sacrifício dos
animais de penas e de couro. Este assentamento será a representação do Axé do Orixá e
somente será desfeito e despachado quando o filho-de-santo morre.
6) Ifá e Obé: é a coroação de todo o aprendizado do filho-de-santo, afirmando que ele
poderá se tornar um pai-de-santo. Neste ritual ele prepara suas facas, que serão utilizadas
em sacrifícios para seus Orixás e de seus filhos-de-santo e seus búzios, ferramenta que
guiará sua vida no culto.
7) Fala do Orixá: essa cerimônia só é realizada após a Feitura-de-santo e, somente se, o
filho-de-santo é possuído pelo seu Orixá. Sempre que um Orixá “chega” pela primeira
vez, diz-se que aquele Orixá “nasceu”. No entanto, ele é, normalmente, muito rude. O
pai-de-santo, então, começa a ensinar ao Orixá certos comportamentos e fundamentos
necessários. Após este Orixá atingir um determinado nível, ele passará por essa
cerimônia, para que tenha permissão para falar. É um fundamento de muito segredo e
devem ser jogados os búzios para verificar a possibilidade do Orixá aceitar ou não a fala.
A cerimônia consiste, basicamente, em uma prova para verificar a veracidade da
possessão. É sempre algo de muita comemoração quando essa veracidade é confirmada.
8) Funerais: Existe muito temor, e até um certo pânico, dentro do Batuque, com a questão
do Egun. Mesmo assim, o culto aos antepassados faz parte do fundamento religioso,
mas, as obrigações e tudo o que se refere a rituais fúnebres é separado e diferente do
culto aos Orixás.
Somente pais-de-santo que atingiram um domínio maior da religião possuem o Balê ou
“buraco”, que é o local específico para as obrigações ligadas aos Eguns.
No Batuque não há uma distinção clara entre o bem e o mal. Não há um envolvimento direto
com o conceito cristão de pecado, pois isso não faz parte do universo religioso do Batuque.

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