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Não consegue ler um livro?

Entenda por que a pandemia derruba nossa capacidade de


concentração

Duração da tragédia e crises políticas causam desgaste emocional na população, mas há


formas de reduzir a ansiedade e retomar o equilíbrio.

Ninguém achou que seria fácil, mas a gente não imaginava que se tornaria tão difícil. A
gaúcha Soraya Chara, assim como todo mundo que pode ficar em casa e tem juízo,
mergulhou no recolhimento domiciliar. Autônoma, a coordenadora de ensaios
fotográficos sempre trabalhou muito em sua residência, numa vila paulistana de onde se
vê o pôr do sol. Soraya cortou despesas e elaborou uma nova rotina. Hoje, porém, com
mais de dois meses de isolamento social, seu estado de humor é outro. A produtora tem
experimentado dificuldade para se concentrar, sono intermitente e crises de ansiedade.
Tarefas antes simples, como ler um livro, tornaram-se um exercício complicado.

— No início, havia mais trabalho, e estava me sentindo melhor. Fiz uma revisão na
vida, percebi que posso me desfazer de muita coisa. Conseguia ler, relaxar. Mas, de uns
dias para cá, a ansiedade chegou com força. Comecei a tremer sem saber o motivo —
relata Soraya, que busca equilíbrio com aulas de meditação e ioga, por meio do
aplicativo Zoom. — Ajuda a controlar a tensão. Mas é difícil. Todos os planos foram
por água abaixo, não há previsão de nada. Tem gente querendo voltar a fazer ensaios
fotográficos com equipe, como antes. Não pode! A epidemia está piorando, as pessoas
estão morrendo, e as crises provocadas pelo governo agravam tudo.

O trajeto psicológico da moradora de São Paulo ilustra um movimento social.


Profissionais de saúde mental das redes pública e privada ouvidos pelo GLOBO
descrevem sinais claros de desgaste na população. Um estudo conduzido pelo Instituto
de Psicologia da Uerj, que vem colhendo dados com 1.460 pessoas de classes sociais
distintas, sugere que sintomas de ansiedade e depressão duplicaram apenas entre março
e abril.

Trata-se de uma montanha-russa já bastante documentada por pesquisadores que


identificam um padrão na forma como uma população reage a desastres. Depois de
choque, negação e desorientação, vem uma fase de “lua de mel”, com sentimentos de
otimismo e altruísmo, que geram solidariedade e comunhão em meio à crise. Porém, em
seguida, é comum aparecer um estágio de desilusão. É quando a angústia, com
problemas financeiros ou a com própria extensão da tragédia, começa a gerar altas doses
de estresse.

A psiquiatra Fernanda Gueiros observou essa mudança em seus pacientes. Com a


escalada das mortes por Covid-19, o isolamento social continua urgente, mas, segundo a
médica, o prolongamento da situação afeta mesmo aqueles determinados a ficar em
casa. O desgaste faz muita gente se expor. Idosos com mais de 80 anos se arriscam em
saídas ao mercado. Solteiros lidando com a “carentena” marcam encontros furtivos e
depois convivem com o medo de contágio. Tem gente exibindo testes com resultados
negativos no aplicativo Tinder. Outros topam ir para a cama “às cegas”, como no sexo
sem camisinha, e depois fazem exames para saber se a escapulida pode levar a um leito
de hospital. Mas não se consegue ler um livro, fazer um curso on-line...

— Falta de concentração é sintoma clássico da ansiedade. O número de mortos, o


colapso econômico e a crise política deixam as pessoas inseguras. Ativam áreas do
cérebro responsáveis por disparar reações de fuga e luta. Mas não estamos na savana
africana fugindo de leões, como na pré-história. Estamos confinados, e isso gera
impasse no sistema nervoso. Não somos preparados para ficar parados diante do perigo,
embora seja o melhor a se fazer agora — comenta Gueiros. — Vivemos um estado de
vigília que tende a nos tirar o foco de tudo o que não está ligado ao risco que corremos.

A psicóloga Kali Alves é vice-coordenadora de Saúde Mental da Policlínica Piquet


Carneiro, na Uerj, que atende a cerca de 600 pessoas, a maioria de comunidades na
Grande Tijuca e arredores. Ela diz que, nos últimos dois meses, o estado emocional dos
pacientes sofreu uma piora preocupante. A motivação para encarar o isolamento deu
lugar ao medo do que pode acontecer, como o desemprego e a perda da assistência de
saúde pública. Nas sessões de teleatendimento, os profissionais reforçam a importância
de se engajar em tarefas como o artesanato, mas muita gente não consegue mais se
concentrar nessas atividades, que promovem o equilíbrio mental.

— Precisamos nos preparar para lidar com o estresse pós-traumático e outros


transtornos, algo comum em populações que vivem uma tragédia e que pode se tornar
um grande problema no pós-pandemia — observa a psicóloga.

Diante de uma situação sobre a qual não temos controle nenhum, profissionais de saúde
mental recomendam atividades de autorregulação e autoconhecimento, como exercícios
aeróbicos, meditação e ioga, que nos ajudam a tomar as rédeas da respiração, reduzindo
a ansiedade e melhorando a capacidade de concentração. A professora de ioga Karina
Grecu vem ministrando, para um grupo fechado de 60 alunos no Zoom, sessões diárias
de meditação, às 7h30, e de ioga, às 20h.

— São sessões a cada 12 horas, como se fossem um remédio — compara a professora.


— Estamos numa corda bamba, é preciso trabalhar a estabilidade mental. Não podemos
nos alienar, mas temos que ficar firmes. A meditação é um treino da mente.

Na internet ou nas redes, é fácil encontrar aulas de ioga e meditação que podemos
reproduzir em casa. Também há uma série de aplicativos, como Calm, Head Space e
Insight Timer, que oferecem técnicas de autorregulação formuladas por especialistas.
Em 2013, o psiquiatra Diogo Lara, então professor da PUC-RS, criou o Cingulo, hoje
um dos aplicativos de terapia guiada mais bem avaliados do mundo, com opções
gratuitas. Em janeiro, quatro mil pessoas acessavam o app diariamente. Durante a
pandemia, são 18 mil. Há uma ferramenta chamada SOS Coronavírus, com 13 técnicas
desenvolvidas para os desafios surgidos na crise.

— Estresse e ansiedade gastam energia e deixam a mente nublada — diz Lara. —


Meditação e terapias guiadas treinam a capacidade de adaptação e geram a
autorregulação, para sair de um estado de sobrecarga de estresse e enxergar uma luz no
fim do túnel.

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