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Fabiana sorrento (bio)

Nascida em S.Paulo 18 de Maio de 1983

Estudos de música, guitarra e percursão (200-2004) — criações musicais

Viaja pela Europa e fixa-se perto de Nápoles vivendo com o namorado Luigi Pulci
(2004-2007)

Estudos de Literatura Portuguesa na USP — 2007-2011

Participa em inúmeras sessões de slam

publica o artigo Hilda Hist e Neto Jorge — sintaxes do sexo (2013)

Tese de Mestrado Villa Paulista, sobre a estada de Emilio Villa em S. Paulo e a sua
relação com a arte Moderna Brasileira (2015)

Edição rítmica de poemas caxinauás para a editora Em Tupi(2016)

Faz a parte curricular do doutoramento na USP

A Arte do Expurgo — (2017) — ensaio sobre a Obra expurgada de Herberto Hélder

Seu Basílio (2018) — poemas feitos a partir de obras de Camilo


Castelo Branco e Clarice Lispector

ensaio — o melhor verso da lingua portuguesa (eclipse, nesse passo, o sol padeça), a
partir do soneto "o dia em que nasci morra e pereça"

vem para Lisboa em Agosto de 2018 para investigar sobre o Soropita e Camões — o
título da tese é o Ritmo das Rhytmas. Escreve uma série de poemas 20 páginas, dos
quais publica alguns na net e em jornais
Não termina ainda a tese. Torna-se artista no Outono de 2019 e começa a expôr
Expurgos e Heresias, influênciada por Kosuth e a Escolástica. Expõe também críticas
de arte e textos curatoriais em forma de poemas visuais a partir de textos existentes,
transcrevendo-os muitas vezes à mão, invertendo assim o processo. Considera a sua
arte uma forma de "copismo".
A OBRA-EXPURGO DE FABIANA SORRENTO UMA ANTI-MENARD

A minha obra constroi-se como autobiografia de uma negatividade, vivência de


expurgos. Destruo o que faço e, como Heróstrato tento fazer desaparecer quer o
insignificante (o mau, o falhado), quer o importante. Podem-se eleger os fragmentos
que queiramos que sobrevivam, mas também se pode apropriar para omitir o que
achávamos importante (o melhor ficaria assim oculto — o que é o segredo e força da
obra, de que o resto é a parte vísivel do iceberg). Um dos meus primeiros livros de
adolescência é uma antologia de sonetos em que retirei todos os versos e palavras que
por uma razão ou outra (oulipiana talvez, ou só caprichosa) me dei a esse trabalho. É
como se o tempo esburacasse esses sonetos. Eu mantive-os como se fossem uma
edição crítica rasurada. Percebi que seria possível estender este procedimento a livros
inteiros, mas que podia também, de alguma maneira, apagá-los completamente (são o
meu negativo pessoal, uma ausência contruída). Em alguns casos foram anos inteiros
para chegar a algum fragmento. Como Ménard, também trabalhei sobre o Quixote.
Os fragmentos foram outros (o meu gosto feminista formado em Louise Lawler
detinha-se mais nas relações amorosas, em Dulcineia e no que podria de ter de
pictórico, fotografável) e o resultado final foi a omissão saboreada do Quixote, numa
atitude que oscila entre a devoção budista ao Vazio e os escrupulosos critérios de uma
censura inquisitorial. A minha tarefa, por vezes prévia, é a de ir apagando livros
inteiros, não segundo a ordem de leitura, mas segundo o critério da qualidade (Já
apaguei completmente 32 páginas do Finnegans Wake, o que é uma tarefa árdua, o
resto do livro está um caos). Outras vezes começa-se pelas partes más, seguem-se as
medíocres, as melhores, as boas e por fim as excelentes, as que dão mais prazer e
ângustia apagar. Apagar livros assim assemelha-se à tarefa de Jasper Johns elidindo
com uma borracha o difícil e custoso desenho de De Kooning. Gostaria que me
escrevessem um livro para eu o fazer desaparecer sem que ninguém o lêsse. Tenho
vindo a criar uma vasta biblioteca que fiz desaparecer da minha vida e cujos
pormenores tento esqeuecer. É uma espécie de index. Possuo também um index de
obras que quero fazer desaparecer no futuro. O que não quer dizer que isso venha a
acontecer.

Simultaneamente sou uma apropriacionista de obras negativas alheias. Aproprio-me,


e tenho por meus, poemas, versos, livros, que outros rejeitaram ou transformaram.
Prefiro, sem dúvida, toda a obra auto-proíbida de Herberto, às suas buriladas e
conscênciosas (escarafunchosas) obras completas (assim como as do Joaquim Manuel
Magalhães). Obras que se tornaram entretanto minhas, e que posso publicar ambas
num só livro ("Obras proíbidas mistas"). Quero-me autora de obras com assumidas
gralhas, ou versões que foram abandonadas pela mesquinhês dos filólogos, a
sprezzatura de alguma pontuação estranha, ou traduções bizarras, como numa recente
tradução de Nicanor Parra que referindo-se a colmillas (aspas em português) faz
passar essas aspas por uma personagem dotada desse texto (um tal Colmillas), quando
ele é atribuído no fim a Rimbaud (é um caso de dupla autoria, que bela ideia,
caramba!). Gosto, por exemplo, de ler a primeira edição do soneto Mudãose os
tempos, mudãose as vontades, despojados do sujeito lírico quando escreve E enfim
conuerte em choro o doce canto, e não no em mim que me parece uma trapalhice lírica
que subjectiva subitamente todo um poema filosófico sobre as mudanças do tempo,
deixando-o menorisado e destituído de dimensão cósmica o Outra mudança faz de
mór espanto/ Que não se muda ja como soîa. Ou aquela edição, não sei se alguma vez
corrigida, da Metafísica de Aristóteles em que s e diz En quanto a lo semejante, se
toma en todos los sentidos opuestos a lo semejante 1 (Traducción del griego por Patricio
de Azcárate, Espasa-Calpe Mexicana, Sexta Ediccion, 12 de diciembre de 1960), frase
espantosa em que todos os sentidos conjuram contra si-mesmos,. Sendo assim a
semelhança é o princípio máximo de refutação e de não-identidade, quando, na
esteira de Duchamp é o príncipio do infra-magro a que toda a reprodução se sujeita (o
semelhante não é o idêntico porque é devorado por mínimas diferenças, por vezes
imperceptíveis).

                                                                                                               
1   O equívoco dá-se no esquecimento não detectado do sufixo di- (àn, em grego). A passagem é
5

ἀντικειμένως δὲ τοῖς ὁμοίοις τὰ ἀνόμοια.  


A ARTE DO EXPURGO EM HERBERTO
(Fabiana Sorrento)

«Algumas vezes (...) exigi-me eliminar poemas escritos e publicados por desordens e
escândalos da atenção. Esta espécie de errata não bastou para me purificar; os poemas a
mais, embora refluxadamente destituídos, projectam a sua mácula nos poemas legítimos.
Cada erro, mesmo ignorado, introduz-se nas conjecturas do acerto.»
(Herberto Helder, texto sem título in A Phala, nº 40)

O expurgo — indissociável da canibalização e da variação.

Um obstinado rigor — mortis.

Um desaustinado rigor coincidente com a festividade destrutiva e antropofágica.

O modo corrente de antropofagia em poesia chama-se tradução — começa-se por


devorar a pretexto de tradução e acaba-se na displicência de um vocabulário maníaco
tomado a outras cabeças, vocabulário que ele mesmo se fala, que é demoníaco e tem
que ser subjugado com destreza. Por isso Herberto diz sobre o verter poesia para a sua
língua — ouso não só um poema português como também, e sobretudo, um poema
meu.

Assim foram lidos esses poemas como seus, os mais explendorosos.

Não sei quando começou o expurgo, o grande expurgo. Sei que desde sempre
abundam as interpolações. E falando de interpolações começamos com Homero — as
interpolações abundam, detectivescamente detectadas.

E temos a Bíblia, que é corte e costura ou interpolação. A interpolação é a permanente


mania de quem quer salvar ou emendar ou censurar.

Quando o autor varia e tem várias edições a articulação torna-se problemática — é o


caso de Hamlet. Como aumentar e diminuir a sua força? Podemos dizer que há desde
logo dois textos e que o que se ganha num perde-se no outro. A soma é dificultosa e
longa.

A arte do expurgo é a arte da condensação — dos tais fluxos de energia. Lema


poundiano. O pequeno poema é o modelo desta estética que é erístico. Vem de
Esparta ou de Éfeso. Epigrama ou aforismo. O epigrama é polémica. De Calímaco a
Marcial. Polimento caro a Horácio. A antologia grega é a suma.

Pound é o grande expurgador, e expurgar faz-se na fábrica gerida pelo miglor fabbro.
Cortar para intensificar. Cortar até se tornar epitáfico, memorável.

A prova prática da Waste Land, que é a de fazer um poema de tamanho razoável


tentou-a Pound com dois dos seus mais bem sucedidos poemas a Homage to Sextus
Propertius e o Hugh Selwyn Mauberley. Mas foi melhor como co-autor da Waste
Land, o poema seminal da modernidade. Os Cantos foram o falhanço que foram. Bem
expurgados seriam um grande poema. Quiçá expurgados do expurgo.

Há duas razões para expurgar — a de vida e obra exemplar, no sentido de Plutarco, e a


da eficácia do total e dos pormenores na obra. Em Herberto a procura de eficácia é
mágica: trata-se de exorcisar a mãe, a pequena e a grande mãe. A loucura materna que
ilumina a poesia. A morte, doce e aterradoura, com o seu cortejo de Musas Cegas.

Quando chegarem as edições críticas com a cruel evidência de um vocabulário


discretamente expurgado, por exigências de intensidade de sentido, rápidamente
daremos conta de que a palavra casta/casto se substituiu, assim como outras. O
expurgo vai no sentido oposto ao da energia original dos poemas, do escandalo da sua
inocência adolescente cheia de borbulhas e gestos toscos. Expurgar vem dum saber
experiênte. É um apuramento anti-casto, alto, vasto. É uma exercitação apocaliptíca, o
desvelamento total, a porné.

Expurgar é elidir, semear buracos, tirar o que está a mais. A juvenilia é a imprecisão
da continuidade. Tudo parece que vai fluir. Mas na poesia nada flui porque tudo está
sempre a regressar, a ser relido e rememorado. Há um perpétuo rewind ou recorrentes
loops. Na poesia nada sucede, ao contrário da narrativa que é toda ela propensão.
"Baudelaire disse: acabou a narração; porque Poe falara de poemas instântaneos ligados
por faixas verbais mortas. (…) Não se trata propriamente de montagem, diga-se: uma
cuidadosa maneira de receber a memória, assistir à ressurreição do que foi morrendo, e
morre e vai morrer." Assistir à ressurreição no momento da eclosão. Não só se nasce
morrendo — é no plano da ressurreição que se entende o caracter iniciático da poesia.
Por isso a poesia não é para todos, só para os longamente iniciados nesse descalabro
que parece salvar-se no apuramento dos poemas. O poeta ou os que lêem na carne a
poesia sentir-se-ão doravante separados. Vivem noutro plano da experiência. Mais
inclinados para outros lados.

O ready-made surge na sua mecânica mais pura com a publicação do poema de Emilio
Villa Mata-Borrão para Flávio Motta como sendo vertido para português. Tendo sido
a primeira parte do meu trabalho encontrar o poema e publicá-lo com inocência, em
1964, achei-me capaz, mais de três décadas depois, de executar a segunda pate, e essa
parte era libertina. Era fazer como se tivesse traduzido o poema, como se o tivesse
mudado para português e para mim — e esse "mim" é um idioma, suponho, ou
pretendo —, era enfim deixar-me atravessar pela fortíssima gramática portugueza de
Villa, e dar o poema por "traduzido". Fica claro como àgua que traduzir é verter para
uma língua e para "mim". Verter (ou com-verter) é encaminhamento líquido. Se a
equação "poemas vertidos" = "poemas seus" era um dado no bebedor nocturno, este
singularissímo caso, seguindo essa lógica, coloca a questão se nas futuras edições da
sua obra este poema figurará como poema do autor? Exercício ménardiano?

A publicação da Lírica do Camões foi um longo exercício de absorção e expurgo. Se a


primeira edição, a do Soropita, pecava, mas com honestidade, por incluír alguns
poemas que não eram de Camões, as sucessivas edições vão ampliando e expurgando
um corpus, em que os poemas variam e em que os editores se dão ao direito de irem
corrigindo o poeta. As virgulas mudam de sítio, as apóstrofes desaparecem, as
maíusculas no início das linhas divergem grandemente. Cada editor ménardiza. E a
obra de Camões, se começou por apropriações indevidas, cresceu canibalizando, e
com o tempo, e os critérios "ciêntificos", tem-se dedicado a ver-se livre de poemas, ou
partes de poemas, que se agarraram ao nome de Camões, quais ervas daninhas.
Pergunto-me se a primeira edição, com os seus descuidos justificados pelo editor, não
testemunha mais fielmente um bom número de textos, com a sua ortografia caótica (a
palavra Sião tem 3 ortografias diferentes no poema Sobre os rios que vão)? Pergunto-
me se a ortografia caótica, as apóstrofes e as vírgulas (que testemunham um estado
fervilhante da produção) não são os testemunhos efectivos de uma sprezzatura que
confere intensidade ao texto, tal como a ortografia de Villa nos seus poemas em
português. Herberto deixa-nos enterver um Camões lutando pela sua língua contra os
editores da sua obra, aos quais, porém, não falta grandeza. Editar bem Camões é uma
tarefa ingrata. E editar póstumamente Herberto é possível sem infidelidades, quando
os seus critérios mudavam constantemente?

O critério herbertiano para expurgar obras da sua obra, do seu Ofício Cantante,
parece, à partida, ser meramente qualitativo.  

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