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Huberto Rohden - Deus PDF
Huberto Rohden - Deus PDF
DEUS
COLÓQUIOS COM O GRANDE ANÔNIMO DE MIL NOMES SOBRE AS
ANGÚSTIAS DO HOMEM E OS ENIGMAS DO UNIVERSO
UNIVERSALISMO
Índice
Advertência
Orientando
Que é Deus?
Estrelas matutinas
Tão poderoso és tu
O grande paradoxo
Transcendente – imanente
Superpersonal
Conscientemente bom
Bandeirante do infinito
Amém
Advertência
A conhecida lei de Lavoisier diz que “na natureza nada se crea nada se
aniquila, tudo se transforma”; se grafarmos “nada se crea”, esta lei está certa,
mas se escrevemos “nada se cria”, ela resulta totalmente falsa.
A esses tais devo dizer, antes de tudo, que estas páginas foram escritas anos
atrás, numa fase de transição e agonias íntimas – digamos, numa longa noite
de parturição espiritual...
Disse-me alguém que este livro Deus lhe faz lembrar o estilo ardente e
paradoxal de Nietzsche. Entretanto, não me consta que o autor de Zaratustra
tenha, alguma vez, lançando âncora nas águas tranquilas de uma bonança
espiritual e de uma certeza interior sobre o mundo de Deus.
O homem que teve o seu encontro pessoal com o grande Anônimo de mil
nomes não deixa de o procurar incessantemente, em ínvias florestas e vastos
desertos e, quanto mais o possui, tanto mais o procura, clamando
angustiosamente pelo grande amor de sua alma, sempre presente e sempre
ausente, não menos imanente que transcendente, tão deliciosamente
propínquo e tão dolorosamente longínquo. É que a distância que medeia entre
a finitude do homem e a infinitude de Deus é sempre infinita – e dentro do
silencioso deserto desse infinito ecoam, sem cessar, os clamores do humano
viajor...
Cuidado com aqueles que não sofrem o problema “Deus”!... É possível que
tenham ultrapassado as extremas fronteiras da evolução espiritual e atingido o
zênite da montanha sagrada – mas é possível também que ainda se achem no
nadir da profanidade e nem tenham dado ainda o primeiro passo nessa árdua
jornada ascensional...
Lê, pois, ignoto companheiro de viagem, os capítulos deste livro que te derem
luz e força, por serem os ecos explícitos da implícita interrogação da tua
própria alma – e omite os que não te falarem a linguagem das tuas
experiências pessoais.
Dia virá, para as almas sinceras, em que o grande Anônimo terá um nome.
Por ora, é verdade, “nem olhos viram, nem ouvidos ouviram, nem jamais
penetrou em coração humano o que Deus preparou àqueles que o amam” –
mas o amor sabe que, um dia, verá face a face, com meridiana clareza, o que
ontem ignorava como que envolto em trevas noturnas, e o que hoje apenas crê
por entre a semi luz crepuscular de espelhos e enigmas...
Quem julga ter provado Deus é ateu, e quem adora esse Deus demonstrado é
idólatra.
A inteligência pode dar certa luz, mas não pode dar força.
Quem toma a sério as teologias balofas prova que não viveu Deus. Os grandes
místicos que viveram Deus são, geralmente, excomungados pelos teólogos
que apenas crêem em Deus; antigamente, os grandes místicos acabavam nas
fogueiras da Inquisição, acesas por aqueles que não tinham vivido Deus. Hoje
não há mais fogueiras físicas, mas os teólogos mandam os teístas, os místicos,
para a fogueira metafísica do inferno, sobre a qual os teólogos julgam ter
poder.
Podemos ter absoluta certeza, não por provas analítico-intelectuais, mas sim
pela intuição racional (espiritual).
Quem quer luz solar na sua sala, deve abrir uma janela rumo ao Sol.
Quem quer ser invadido por Deus deve tornar-se invadível, deve remover o
obstáculo que impede essa invasão da luz solar da Divindade.
Ninguém pode achar Deus – mas Deus pode achar o homem que se torne
achável.
Ninguém pode descobrir Deus – mas Deus pode descobrir o homem, se este o
permitir.
Deus pode ser chamado a Vida do Universo, da qual vêm todos os vivos, as
creaturas finitas. A Vida como tal é transcendente a todos os vivos, mas é
também imanente em todos eles; os vivos são vivos porque neles está a Vida.
A essência de todos os vivos é a Vida; as existências vivas não são Deus por
sua existência, que é sempre limitada. Identificar a existência viva com a
essência da Vida seria ilógico panteísmo.
Mas identificar a essência dos vivos com a Vida Universal, isto é a grande
verdade do monismo.
Deus pode também ser chamado a consciência cósmica, que está, embora
imperfeitamente, em todos os conscientes individuais.
– inconsciente nos minerais, não por causa do recebido, mas por causa do
recipiente,
Quanto mais o homem acha Deus, tanto mais ele o procura. Este homem está
na linha reta da certeza de Deus, e por isto mesmo ele o procura sempre mais
e sofre a sua própria limitação e finitude, porquanto, diz a matemática: todo o
finito em demanda do Infinito está sempre a uma distância infinita. Desta
dolorosa angústia sofria o próprio Jesus. Dessas dolorosas interrogações estão
repletas as páginas deste livro.
Não existe no universo Ser algum que tantos nomes tenha como tu, meu
grande Anônimo, meu Ser inominável...
E é natural que assim aconteça, porque nenhum desses nomes diz o que tu és
na realidade. Todas essas denominações são simples tentativas do impossível,
vãos tentames de frágeis pigmeus de escalar a torre altíssima da tua
intangibilidade.
Dizem que és God, Gott, Gut, isto é, um ser bom, bondoso, benévolo – e
também eles têm razão, porque tu és a essência de toda a bondade.
Dizem que és o grande El, Alá, Ilu, quer dizer, o Senhor, o Chefe – e proferem
uma grande verdade, porque tu és o Rei dos reis, Senhor dos senhores.
Entretanto, nem mesmo essa feliz denominação de Yahveh, Tao, exaure a tua
grande realidade, nem designa adequadamente a tua natureza, meu eterno
Anônimo. Ficará sempre, entre o nome e o nominado, uma distância infinita,
um vácuo sem limites, uma noite sem alvorada...
E, uma vez que és para nós o Anônimo por excelência, tanto mais o homem se
aproxima de ti quanto mais anônimo se torna para si mesmo e para o mundo.
O homem, “nominado” pela individualização, tem de se “desnominar” pela
divinização, pela integração no mar imenso do teu divino cosmos. Essa
aparente extinção do Eu personal é, de fato, a mais intensa realização do
nosso indivíduo, porque é o regresso para a sua primeira fonte e origem.
Ninguém é tão “homem” como quem se des-homifica para se divinizar, porque
só assim é que se super-homifica, ou melhor, só assim de pseudo ou semi-
homem se torna pleni-homem genuíno.
Por isto, Senhor, nos momentos mais divinos da minha vida, eu me sinto como
um não-ego, como um ser desegoficado, cosmificado, deificado...
“Deus é eterno” – disse-me alguém. Desde então ecoam estas palavras pela
vasta solidão de minh’alma, como um trovão que sempre renasce do seu
próprio eco.
E, neste quase século de minha existência terrestre, não diminuiu ainda, por
um átomo sequer, o veemente e interminável estampido deste pensamento,
“Deus é eterno”.
E quanto mais escuto este bramido metafísico da tua eternidade, ó Ser Infinito,
tanto mais ele se avoluma e intensifica, abafando completamente as vozes da
Natureza em derredor...
Entretanto, o que leva ao ápice a minha estupefação é que possa haver um ser
tão intensamente real que nunca tenha sido irreal, por mais que recuemos o
termo do seu início; que exista um ser tão pleno e potente que nada tenha de
não-ser, nem no passado nem no futuro; que seja um “sim” absoluto e integral
e desconheça a mais ligeira sombra do “não”... Isto é que é espantoso!
Posso imaginar um existir eterno que desde toda a eternidade deva sua
existência a outro ser; um ser creado ab aeterno, um ser eternamente alo-
existente – mas um ser auto-existente, absolutamente autônomo e
independente de qualquer fator alheio – este pensamento paralisa todas as
minhas faculdades intelectivas e imaginativas, esta idéia me leva à extrema
periferia da possibilidade...
Vejo, meu Deus, que a tua eternidade não é senão um corolário da tua auto-
existência.
Dentre todos os seres alo-existentes és tu o único ser auto-existente.
Nós semi-existimos, e tão precária é esta nossa semi-existência que não faltou
quem a apelidasse de pseudo-existência – tu, porém, pleni-existes, porque és.
O teu passado e o teu futuro são presentes. Tu não eras nem serás, tu és
simplesmente, ontem, hoje, amanhã, desde sempre e para sempre.
Tu não foste produzido nem te produziste, pois seria absurdo admitir que o
nada pudesse agir antes de existir – a tua eterna essência a tal ponto coincide
com a tua existência que as duas se identificam plena e cabalmente em uma
única, indivisa e indivisível, auto-realidade.
O meu ser poderia não existir. A minha existência, hoje real, era ontem irreal e
meramente possível. Passei da zona noturna da simples potencialidade para a
zona diurna da positiva atualidade.
Entre o meu “possível” e o meu “real” medeia um abismo, que bem pudera ser
eterno, e para milhares de seres é, de fato, eterno esse abismo do não-existir,
em cuja profundezas inexistem seres eternamente possíveis e potenciais, mas
não atuais.
Só um ser real pode realizar o irreal. E esse ser real deve possuir em si e por si
mesmo toda a plenitude da realidade – deve ser pleni-real, auto-real.
Eu sou algo de irreal realizado – tu, porém, meu Deus, és o único ser real que
nunca foi realizado, porque nunca foi irreal. Tu és pleni e auto-real.
E, como não podemos realizar o irreal, assim também não podemos irrealizar o
real. Não podemos nem crear nem aniquilar coisa alguma.
Há uma semelhança entre nós, meu Deus: ambos somos reais – mas há entre
nós também uma dessemelhança, e certamente bem maior que a semelhança,
porque tu és auto-real, e eu sou alo-real.
Eu sou parecido contigo, meu Pai – eu sou diferente de ti, meu Creador.
Assim és tu, meu Deus eterno – assim sou eu, homem efêmero...
Tu és o Tudo que a seu lado não tolera um átomo sequer do nada – eu sou
apenas algo, uma feliz execução do nada, uma microscópica ilha de existir que
a custo emergiu do vasto oceano do não-existir. Destas águas profundas me
tiraste, Senhor, e nesse abismo recairia eu no mesmo instante em que a tua
potência deixasse de me suspender sobre as águas sinistras do nada.
Não, tu não és o “primeiro” dos seres, assim como um elo é o primeiro numa
grande corrente. Se fosses o “primeiro”, poderiam haver um “segundo” e
“terceiro” no plano do teu ser.
***
Sim, eu quero que esta força tangencial das grandes idéias me arrebate e, qual
ciclone raptor, me arremesse ao espaço, à vasta trajetória da eterna e infinita
Divindade. Viver, trabalhar, lutar, sofrer, morrer ao bramir das tuas jubilosas
tempestades, meu Deus, isto é belo e heróico – e eu quero viver assim.
***
Os extremos tocam-se...
Vejo que a mais profunda raiz do meu Eu humano está no teu Tu divino...
Quanto mais longe eu me julgava de mim mesmo, tanto mais perto estava de
mim – em ti...
Lancei a minha nau para o extremo ocidente, fugindo de mim – e eis que me
descubro nos litorais do oriente, do teu oriente, meu grande Mistério Solar...
Procurando-me – perdi-me...
Não permitas que eu torne a afastar-me de ti – para que possa ficar comigo,
em ti...
Ó Deus eterno!...
Estrelas matutinas
“Deus creou tudo do nada” – estas palavras soaram muito tempo aos meus
ouvidos como insuportável dissonância e como um desafio à lógica. Doíam-me
na alma porque não harmonizavam com o resto que eu sabia de ti, meu Deus,
ou julgava saber.
Tu és o Tudo e, por isto mesmo, não existe nem jamais existiu um nada fora de
ti. Nem existe um vácuo, nem espaço algum, pequeno ou grande, onde não
haja realidade, porque tu, ó Deus onipresente, és a imensa e infinita Realidade,
que com sua universal e inexorável presença atinge, penetra e enche todos os
espaços e todos os tempos.
Ora, uma vez que existe a tua onipresente Realidade, já não há margem para o
nada, para o vácuo, para o irreal.
Se, pois, creaste algo, creaste-o da tua infinita Realidade – e não da infinita
vacuidade, que só poderia existir se, em alguma parte, tu não existisses.
Quando digo que creaste do nada todas as coisas, quero dizer que deste
existência real às essências meramente possíveis; transferiste a simples
possibilidade ideal dos seres ao plano da realidade atual. Encheste com o
conteúdo dum fator positivo a nulidade do zero.
O teu divino “crear” não dá apenas forma, como o “criar humano”, senão
também a matéria-prima – e isto é estupendo e assombroso...
Eu, quando produzo algo, não produzo a matéria do meu artefato, mas dou tal
ou tal forma a um punhado de matéria preexistente, matéria que continua a
existir depois que o meu artefato perdeu a forma específica que eu lhe dera.1
1. Precisando melhor este pensamento, avisamos ao leitor que, na creação divina, o “algo” da
existência sai do “Tudo” da essência; o “fenômeno” sai do “Número”, e o “efeito” sai da “Causa”
– ao passo que, nas criações humanas, não há transcrição da “essência” para a “existência”,
mas apenas uma transformação de uma determinada “forma existencial” para outra “forma
existencial”, de um “indivíduo” em outro “indivíduo”.
Não está em meu poder crear um só átomo, como, por outro lado, também não
sou capaz de aniquilar a mais insignificante parcela de matéria. A origem e o
fim de todas as coisas escapam à alçada do meu poder, subtraem-se
inteiramente à minha potência e jurisdição. Não lhes dou existência nem
inexistência. Todo o meu poder é um simples criar, uma transformação, uma
incessante modificação da mesma argila plasmável, processo que não atinge
nem o berço nem o túmulo das coisas. Nada posso crear.
Tu, porém, meu Deus, dás origem ao nada e podes dar fim ao algo. Podes dar
existência ao inexistente e aniquilar o existente. Podes tirar do nada e podes
reduzir ao nada o que quiseres. A transferência do “0” para o “1” existencial
exige um poder infinito, o mesmo poder infinito que requer a redução do “1” ao
“0”. Do nada ao algo vai distância infinita. Por isto, só tu é que podes crear e
aniquilar.
***
Cada um dos seres que creaste é obra original, inédita, um mundo por si, que
nunca existiu nem jamais existirá igual. Não te repetes em nenhuma das tuas
obras, meu supremo Artífice. Não és amigo de seres em série, como os
diretores das nossas fábricas. Perdoa-se à humana impotência a produção de
mercadorias em série, mas não se perdoaria à tua divina onipotência. Se
fosses obrigado a repetir uma só das tuas obras, deixarias de ser Deus, porque
revelarias falta de sabedoria, não podendo conceber novo modelo inédito, ou
darias sinal de fraqueza creadora, não podendo realizar, no plano concreto, o
teu novo ideal inédito.
Os teus mundos são duma infinita variedade. São como uma epopéia de
círculos concêntricos que circundam o trono do teu eterno e único Ser. Quanto
mais chegados ao centro da tua divina espiritualidade tanto mais espirituais e
divinos são esses seres; quanto mais distantes e periféricos, tanto menos
divinos e espirituais são eles.
Uma grande força sem direção – que maior calamidade se poderia imaginar?
Tão poderoso és tu...
Cheio de pasmo e estupor ouvi deste primeiro fracasso do teu poder, da tua
sabedoria e bondade – e fiquei desnorteado...
Disseram-me que, depois deste malogro parcial sofrido com o mundo dos
puros espíritos, havias feito segunda tentativa, desta vez com seres
semimateriais, na esperança, talvez, de que a ignorância desses seres fosse
mais obediente às tuas ordens do que a orgulhosa inteligência dos anjos.
Entretanto, maior que o primeiro foi o teu segundo fracasso. Não só uma parte
desses seres se revoltou contra ti, mas todos eles, embora fossem apenas um
par.
***
Depois, através dos séculos e milênios, tentaste com mil e mil sofrimentos
revocar a humanidade ao caminho da tua vontade – mas não tiveste mais sorte
que antes, porque a tal abismo de perdição chegou a nossa raça que
resolveste exterminá-la da face da terra, excetuando apenas oito pessoas,
únicas dentre muitos milhares que não haviam frustrado os teus planos.
Mais tarde, aniquilaste com fogo e enxofre uma série de florescentes cidades,
“porque toda a carne corrompera o seu caminho”.
Mas também isto foi inútil. A humanidade andou de mal a pior.
Resolveste então escolher um povo que fosse portador do teu espírito através
dos séculos. Suscitaste no meio deste povo os teus arautos e videntes que lhe
transmitissem a tua divina vontade, e prometeste enviar ao mundo, do seio
desse mesmo povo, o teu próprio filho unigênito, a fim de salvar o mundo.
E agora, quase dois mil anos após a vinda do teu Cristo, a imensa maioria da
humanidade ignora ainda o grande acontecimento. Diminuta parcela da
humanidade, talvez a quarta parte, ouviu a doutrina do teu Messias – mas
quantos lhe adotaram o espírito? Quantos se guiam de fato pelo seu Evangelho
redentor?
Tal é, Senhor, à luz da nossa filosofia e teologia, a história dos teus planos
divinos, história triste e deplorável, o maior malogro que já sofreu um artífice,
desde que o mundo existe...
***
Será possível, meu Senhor eterno e onipotente, que tu sejas tão fraco como
pareces à luz da nossa sapiência?... Não será tudo isto senão um aspecto
externo e unilateral da tua grande obra?... Não será deficiente, e até em grande
parte falsa, a nossa perspectiva em face do gigantesco painel do teu universo?
Certo é que não podes querer o mal absoluto – que nem existe – podes,
todavia, querer o mal relativo, que é fator integrante do teu plano eterno e
obediente executor da tua vontade, como o próprio bem. Tu, conhecedor da
“árvore do conhecimento do bem e do mal”, plantaste essa árvore bem no meio
do Éden – para quê? Para que o homem, conhecedor do bem, fosse também
conhecedor do mal, e assim se igualasse a ti, como tu mesmo disseste: “Eis
que o homem se tornou semelhante a nós, conhecedor do bem e do mal.”
O mal relativo, fator integrante do teu plano eterno, é um anjo luciferino que
cumpre a tua vontade parecendo hostilizá-la.
E que universo espiritual seria aquele cujas unidades não atingissem jamais a
sua plena consciência individual e proclamassem a sua autonomia?... que
nunca se separassem da consciência cósmica nem fizessem do seu semi-eu
um pleni-Eu?...
Tão poderoso és tu que não precisas exibir poder, que podes parecer fraco a
ponto de permitir a rebeldia das estrelas matutinas do teu mundo espiritual...
Tão ilimitada é a confiança que tens no teu poder que podes crear seres e
abrir-lhes os caminhos do mais longínquo ateísmo – na certeza de que todas
as inteligências e vontades são servidores da tua Divindade...
Mas não compreendo que tenhas creado matéria – tu, que não és matéria nem
material.
O reino dos espíritos é, por assim dizer, o primeiro círculo, próximo do trono da
tua espiritualíssima divindade – mas onde fica o círculo da matéria? na extrema
periferia dos círculos concêntricos? Mas onde localizar esse círculo extremo, se
do espírito à matéria vai uma distância quase infinita?
Tu, porém, meu grande Ignoto, és tão intensamente espiritual e divino, tão
infinitamente tu mesmo, que nenhum não-tu é capaz de adulterar o teu tu, nem
mesmo pôr em perigo a inabalável fidelidade que tens a esse infalsificável “tu”
da tua divina natureza.
A matéria é, a meu ver, o mais radical não-tu, a mais veemente negação da tua
espiritualidade, a mais longínqua periferia da grande central da tua divindade...
***
Mais ainda. Infundiste à matéria algo que não é matéria nem material. Que é
esse algo? espírito? alma? inteligência? razão?... Não sei...
Não sei como definir esse indefinível quê, esse misterioso algo que faz a
matéria evolver, que a faz progredir, que procura subir de perfeição em
perfeição, ela, que não possui propriamente espírito, nem alma, nem
inteligência, nem razão...
Não, não é a matéria que faz isto – és tu, meu Deus, dentro da matéria, tu, que
és onipresente, oni-imanente – e onde estás presente também és agente, és
ativo, dinâmico, realizador.
Tu, meu Deus, que és espírito, creaste um mundo espiritual – e eu adoro a tua
potência.
Que outros mundos podiam ainda brotar das tuas mãos creadoras? Seria
possível que maiores maravilhas e mais arrojadas epopéias partissem de ti, ó
eterna Divindade? Obras que ultrapassem a luminosa plenitude das
inteligências angélicas e a tenebrosa vacuidade da inércia material?...
Que admira que esse ser paradoxal viva em perpétua inquietude?... que oscile
sempre entre as alturas e as profundezas... que seja semi-anjo e semi-
animal?... um satânico serafim e um seráfico satã?...
Não tem a pedra sossego senão no seu centro de gravitação – e como poderia
o homem sossegar se está fora do seu centro?...
Não descansa a agulha magnética quando desviada do seu norte – e onde
está o norte do homem?... Onde está a sua verdadeira pátria? o centro do seu
repouso?...
Na terra?
Protesta o espírito...
No céu?
Protesta a matéria...
Ecce homo...
O homem-chaga...
O homem-tormento...
O homem-agonia...
O homem-homem...
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É este, Senhor, o maior dos paradoxos que já saiu das tuas mãos creadoras.
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É esta a mais insatisfeita nostalgia que clama e soluça nos vastos desertos do
teu cosmos...
***
Qual o sentido real dessa estranha parábola, meu Deus? a parábola “homem”?
Haverá um ocaso sabatino, ou até uma alvorada pascal, para esse eterno
agonizante que cravaste na cruz do Calvário da humanidade?...
Entre facínoras...
Rasgado de açoites...
Coroado de espinhos...
Ardendo em febre...
Consumido de sede...
Disseram-me que tu, Ser Transcendente, habitavas para além das nuvens do
firmamento – do firmamento sideral e do firmamento pessoal.
Disseram-me que o teu céu é nas alturas – e o teu inferno nas profundezas.
Bem o dissera teu Messias: “O reino de Deus está dentro de vós... Os que
adoram o Pai devem adorá-lo em espírito e em verdade...” Mas eu ignorava
estas palavras brevíssimas e imensas, e quando cheguei a conhecê-las,
interpretei-as à luz das minhas idéias errôneas, e não as compreendi.
Quem não te vive e sofre não te conhece, não tem idéia do que Jesus quis
dizer com as palavras “reino de Deus”.
A ciência te estuda – a consciência te revela...
***
Depois de feita a inefável descoberta de que o teu reino está dentro de mim,
sucederam-se outras descobertas, cada qual mais feliz. Desde esse dia
encontrei o teu reino em toda a parte, mesmo lá onde ninguém lhe suspeitaria
a existência.
Para salvar do iminente naufrágio o meu querido teísmo, repetia eu o que tinha
ouvido dizer: que tuas leis estavam dentro dos seres, dirigindo-os para certos
fins. Não podia eu, nesse tempo, crer que tu mesmo estivesses dentro de tudo
que o que é real, que eras o Uno Infinito e todo o verso finito do universo; que
todas as coisas, desde as mais simples até as mais perfeitas, estão dentro de ti
porque tu estás dentro delas, e as penetras inteiramente com a tua onipresente
Divindade.
Cheguei a compreender também que o teu céu não é algum lugar longínquo
para onde deva a alma viajar após a sua separação do corpo – mas que o teu
céu é um estado espiritual dessa mesma alma liberta, uma atmosfera divina
creada dentro da alma na vida presente e revelada na vida futura.
Ninguém pode estar dentro do reino de Deus se esse reino não estiver dentro
dele. Tudo o que é grande, bom, verdadeiro, sincero, belo, justo, puro, tudo isto
é o teu reino, não só no mundo futuro, senão também na vida presente.
Não é a morte que me introduz no teu reino, e sim a vida. Também, como
poderia a não-vida fazer de mim o que a vida não fez?...
Exultei de júbilo ao descobrir esta grande realidade. A luz é tão bela, tão
ardente, tão pura... A luz é fonte de vida e alegria – e tu, meu Deus, eras para
mim a claridade imensa que iluminava as noites da minha existência.
2. Não se esqueça o leitor, em face dessa estranha afirmação, de que a jornada ascensional da
alma rumo à luz definitiva vai através de luzes e trevas intermitentes. Lembre-se da “noite
tenebrosa da alma” de São João da Cruz, e de todos místicos.
A princípio, pensava eu que essa treva metafísica fosse privilégio da tua divina
essência; que só no centro do teu Eu divino é que reinava essa grande
escuridão. Mais tarde, porém, verifiquei, com indizível assombro, quase com
desespero, que tenebroso é tudo que te circunda e sai das tuas mãos. De
todos os círculos concêntricos que rodeiam o teu sólio eterno irradiam trevas,
até da extrema periferia do cosmos material e espiritual...
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Naqueles tempos, quando a tua eterna divindade me parecia luz intensa, eras
tu para mim delícia suprema. Pensar em ti me era doce... Proferir o teu nome
era um encanto... Adorar-te era um paraíso...
Isto és para mim, ó Deus, depois de tantos decênios que ando à tua procura,
leal e sinceramente...
Mais do que nunca eu te quero, amo, adoro... E no dia em que me fores ainda
mil vezes mais obscuro e doloroso, mil vezes mais te hei de querer, amar,
adorar...
Desconfio dum “deus” que não seja assim como tu és... um “deus” não
misterioso nem doloroso me encheria de desconfiança de ser um pseudo-
deus, um não-deus...
Na vida presente, quero-te noturno, doloroso, enigmático – um “deus
desconhecido”...
Quero-te assim como és, infinitamente amargo. Esse amargor – não sei por
que estranhas leis de contraste ou polaridade – tem para mim maior doçura
que todas as doçuras do universo...
Amo essa tua escuridão, meu Deus, não por ser escuridão – mas por ser “tua”
escuridão.
Tempo houve em que eu era muito mais “sábio” do que hoje – e até mais
“religioso”, como dizem os homens. Naquele tempo sabia eu provar com
impecáveis silogismos a tua existência e os teus atributos. Quase uma dúzia de
“argumentos”, todos eles infalíveis, estavam nitidamente exarados nos meus
alentados cadernos apologéticos. Naquele tempo sabia eu expor aos meus
semelhantes todos os secretos desígnios da tua providência. Arvorava-me
afoitamente em advogado e defensor do teu governo e julgava de meu dever
justificar cada uma das tuas obras. Provava, com precisão quase eletrônica,
que tudo quanto acontecia tinha de acontecer justamente assim, sem um
milímetro de diferença para a direita nem para a esquerda – e que era tolo
quem isto não compreendesse...
Como vês, meu Deus, eu era nesse tempo ótimo advogado da tua providência
e funcionário ideal do teu reino.
Sei que existes – mas sei também que o teu existir não é assim como eu penso
e creio. A idéia que faço do teu existir e do teu agir é, a bem dizer, a minha
própria existência e atividade projetadas ao infinito. Conheço-te, não assim
como és – mas assim como eu sou. Vejo-te através dos óculos coloridos da
minha individualidade e do meu caráter pessoal. Tu és assim como eu
compreendo que possas ser, ou como desejaria que fosses.
Tudo isto penso eu de ti, e tudo isto és tu na verdade – mas não o és assim
como eu penso e imagino. O conceito que de ti formo não é idéia adequada,
senão apenas análoga. Concebo-te como o melhor e mais perfeito dos seres
do mundo, elevo-te à potência infinita – e digo que isto és tu.
Desde então me tornei mais prudente e cauteloso nas minhas afirmações e nas
minhas negações. Trato com caridade e indulgência os que pensam de modo
diferente.
Sei, minha luminosa Escuridão, que, assim mesmo, chegarei aonde estás,
porque tu, que não apagas a mecha fumegante nem quebras a cana fendida,
me levarás nas palmas das tuas mãos...
Sei que tu julgas o homem, não pelo que ele faz e de fato realiza – mas sim
pelo que quer e sinceramente desejaria realizar.
Tu sabes que o homem não é o que ele é historicamente – mas sim o que ele é
no mundo longínquo dos seus ideais...
Eu sou o que sou livre e espontaneamente e o que desejo ser, ainda que de
fato não o consiga ser – isto sou eu na verdade. Sei que entre o meu “querer” e
o meu “poder” medeia distância quase infinita, mas não é essa distância a
bitola do meu verdadeiro ser; o que vale e decide é o meu sincero querer, e
não o meu impotente poder. Sei que os meus ideais são montanhas
longínquas, cumes excelsos imersos em luz divinal – e sei também que as
minhas realidades são prosaicas e cinzentas planícies, areais monótonos, que
talvez nunca atinjam sequer o sopé dos meus longínquos Tabores...
Mas tu sabes, meu Deus, que eu não sou este esfarrapado e exausto viajor
que se arrasta pela prosaica planície da sua humana fraqueza – eu sou aquele
saudoso peregrino do Infinito que, em pleno areal desta terra finita, crava os
olhos famintos nos luminosos cumes dos seus grandes ideais...
E é por isto mesmo que não desmaio na longa jornada... O único que tenho de
meu é meu sincero querer – e é por este querer que tu me julgas, e não pelo
poder ou não-poder, como os homens insensatos.
Por isto, minha luminosa Escuridão, eu me julgo mais perto de ti no meio das
minhas trevas de hoje do que na minha claridade de ontem...
Distanciando-me de mim?...
Assim pensava eu, por muito tempo. Tinha a impressão de que o sofrimento
me afastava do Eu, à medida que me aproximava de Deus; deslocava-me do
centro humano em direção à periferia divina...
Vejo hoje que não é bem assim... De fato, o sofrimento por ti me aproxima de ti
e, em certo sentido, me distancia de mim, do meu ego estreito – mas não me
distancia do meu verdadeiro e autêntico Eu, desse Eu largo e livre, desse Eu
eterno que está oculto sob a grossa camada com que o meu ego efêmero e
profano encobriu aquele verdadeiro e eterno Eu.
Fiz esta grande descoberta: que o único caminho certo para o verdadeiro Eu é
via Deus. Quem não vai via Deus encontra sempre um pseudo-eu, e ficará
eternamente alheio ao verdadeiro Eu do seu ser...
E é por isto que eu quero, amo e adoro essa tua luminosa Escuridão, ó Deus
eterno...
Superpersonal
Tu não és “pessoa” no sentido comum desta palavra, nem mesmo por simples
analogia. Se “pessoa” é um ser vivo, consciente, dotado de inteligência e
vontade, talvez possas ser assim apelidado – mas, neste caso, o teu ser-
pessoa é tão diferente do nosso ser-pessoa como o fogo real diverge do fogo
pintado, como a luz solar se distingue das lanternas fosfóreas dum vaga-lume,
como a vida dum serafim é diferente da vida dum molusco ou protozoário...
Tu és poder irrestrito...
Tu és saber imenso...
Tu és amor universal...
Não existes aqui nem acolá, não exististes nem existirás, tu és simplesmente...
Disseram-me, um dia, que tuas leis regiam o universo. Entretanto, não são
propriamente tuas leis, és tu mesmo. Tu mesmo és o universo, porque és tudo
que é real. Por mais estranho que pareça, tu és também a matéria, enquanto
ela é algo real, mas não a és enquanto ela diz imperfeição. Se a matéria tem 1
grau de realidade, tu és esse grau 1.
Eu sou um ser racional, mas nem por isto deixo de ser um ente mineral,
vegetal, animal, uma vez que tudo isto é real dentro da minha racionalidade. De
modo análogo, meu Deus, tu és o universo, embora sejas infinitamente mais do
que essa tua manifestação visível ou imaginável.
A equação não é, pois: Universo = Deus, mas sim: Universo < Deus, ou: Deus
> Universo. Mas, pelo fato de ser o Universo menor que tu, não deixa ele de
ser parcialmente tu mesmo, numa como que fração infinitesimal, na razão
direta da sua realidade ontológica.
Minha alma está toda e inteira no meu corpo, e toda e inteira também em cada
uma das suas partes. Em cada uma dessas bilhões de células que compõem o
meu organismo existe, vive e palpita minh’alma integralmente. Nenhuma das
células do meu corpo é minh’alma, mas a alma está toda e inteira dentro de
cada célula. Não são as leis da alma que regem a célula e o corpo, é a própria
alma que os rege, porque está presente com toda a sua realidade e atividade.
De modo análogo, meu Deus, não é tua lei que rege o mundo – és tu mesmo,
tu, Deus transcendente, que és um Deus imanente.
***
Muito a custo chegam a esse teu deserto metafísico uns esvaídos ecos dos
nossos brados de angústia, e as vastas torrentes das nossas lágrimas se
somem e perdem no imenso areal desse Saara que te circunda de todos os
lados...
O homem que te vive nos seres do teu mundo não tem mister refugiar-se ao
silêncio do ermo e à solidão da floresta para estar contigo, porque tu estás
sempre com ele nos seres que o circundam.
Fiquei horrorizado, quase com pena de ti, porque entendia essas ofensas por
analogia ao que os homens chamam ofensa. Comecei a amar-te antes por
motivo de compaixão do que propriamente por amor. Que vida devia ser a tua,
pensei, tu, gravemente ofendido, dia a dia, milhares de vezes, pelos séculos e
milênios!...
Mais tarde, quando ouvi que mais de quatro bilhões de homens povoavam a
face do nosso planeta, muitos dos quais adultos e capazes de pecar, fiz, com
horror, o cálculo de que recebias diariamente cerca de um bilhão de ofensas,
entre elas certamente algumas centenas de milhões de injúrias graves.
Quando então encontrei nos livros sacros as palavras: “O justo peca sete vezes
por dia”, não conheceu mais limites a comiseração que senti por tua vida
atribulada, e quase que achei mais feliz a minha vida que a tua, porque eu
passo dias inteiros sem receber ofensa da parte dos homens, e tu és ofendido
sem cessar.
O homem justo traça uma linha finita paralela à infinita da tua vontade – o
pecador traça uma linha divergente, torta ou curva, que se afasta da paralela
da tua vontade, ou corta-a em determinado ângulo. Desajustou a sua linha
finita, em vez de a manter justa à tua linha infinita.
Não, ele mesmo se castigará, porque toda culpa, quando não devidamente
cancelada, leva no seio o germe da pena.
A tua justiça exige a justeza do cosmos, assim como a toda ação segue uma
reação, assim como à causa segue um efeito.
O único prejudicado pelo pecado é o pecador. Ele é a vítima direta do seu ato,
os outros são apenas alvos indiretos.
Quem arremete com o crânio contra uma muralha de granito ofende mais a si
mesmo do que ao granito.
O maior mal que o homem pode fazer a si mesmo é tentar fazer mal a outrem,
seja a um seu semelhante, seja a um inferior ou superior. Para outros pode ser
um mal extrínseco – para o pecador é um mal intrínseco.
Dizem os homens que tu, meu Deus, vingas as injúrias que te fazemos, que
nos castigas e punes pelos nossos pecados – mas é certo que essa “vindicta”
inere necessariamente ao teu universo, que age automaticamente, como toda a
lei biológica. Queira ou não queira o homem, será infalivelmente restabelecida
a justeza do universo por ele desajustado. Não pode haver desequilíbrio para
sempre. Como a agulha magnética volta sempre ao norte, assim seguirá a todo
desequilíbrio um reequilíbrio. As obras de Deus não falham. Não depende do
homem restaurar ou não restaurar a ordem do universo – ela será
necessariamente restaurada, e com infalível certeza e precisão. Nas mãos do
homem está apenas a escolha entre dois modos de reajustamento cósmico:
voluntário ou forçado. O reajustamento voluntário é digno do homem racional e
o reajustamento forçado lembra potências férreas de um mundo ignoto. O
mundo desajustado pela culpa será reajustado pela conversão, ou, se esta
faltar, pela pena. Culpa – conversão; ou então: culpa – pena... Não há outra
alternativa. É esta a inexorável matemática do universo. É esta a justiça de
Deus, porque é a justeza do universo.
Vezes sem conta, Senhor, tenho ouvido falar em homens ateus e antiteus,
homens que te negam e homens que te odeiam. Entretanto, não me convenci
até hoje da existência de semelhantes homens. Pois como poderia alguém
negar, de consciência tranquila, precisamente aquilo que é a quintessência da
Realidade? Como poderia odiar o que é a infinita plenitude de toda a Bondade?
Assim como o ódio não é, muitas vezes, senão a manifestação dum grande
amor incompreendido ou atraiçoado – assim é também o chamado ateísmo
desses homens um profundo e descompreendido teísmo, uma espécie de
“escrita especular”, que, invertida, deve ser lida no espelho, reinvertida, a fim
de dar sentido...
Homem que fosse realmente ateu devia ser mais satânico que Satã, devia ser
um supersatã, um ultradiabo – suposto que tivesse suficiente inteligência para
esse ateísmo satânico e esse satanismo ateu...
***
Mas... por que há tantos homens que se dizem ateus?... Serão mentirosos
todos eles?... Quererão todos eles enganar a humanidade com o seu pretenso
ateísmo?
Não, eles não são, por via de regra, enganadores – porém enganados, auto-
iludidos. Iludidos pelas penumbras do próprio ego, pela eterna esfinge do seu
subconsciente.
E essa ilusão radicada no próprio ego encontra, não raro, abundante alimento e
adubo no ambiente social e religioso em que vivemos.
O Deus real e verdadeiro não pode ser objeto de negação e de ódio da parte
do homem, uma vez que esse Deus é a afirmação da Suprema Verdade e do
Bem absoluto – objetos necessariamente afirmáveis pela inteligência e pela
vontade. Não é possível que a inteligência, no seu estado normal, negue a
Verdade conhecida como tal, nem é possível que a vontade não adulterada
odeie o Bem que, como tal, se lhe apresente.
***
É tão fácil ser “religioso”, no sentido comum da palavra – e é tão difícil ser
“bom”, na verdadeira acepção do termo...
Para ser “religioso” basta praticar determinados atos cultuais que as religiões
prescrevem a seus adeptos como necessários ou convenientes. Quem os
pratica é considerado “religioso”, quem não os pratica é chamado homem sem
religião, herege, ateu...
Mas, para ser bom, requer-se mais, muito mais. Ninguém é bom pelo fato de
fazer isto ou aquilo – bom só é o homem pelo fato de estar em harmonia com o
Infinito. Só uma atitude interna, um hábito permanente, um determinado modo
de ser do Eu central é que faz o homem bom, e nunca um simples complexo de
atos externos.
Pode um homem ser “religioso”, no sentido comum da palavra, e não ser bom –
mas o homem verdadeiramente bom é sempre um homem profundamente
religioso.
Do ser “religioso” dum homem ou dum povo pode-se fazer cadastro e levantar
estatística – mas quem poderia crear um padrão ou elaborar um catálogo do
ser-bom dum homem ou dum grupo humano?... O fariseu no templo de
Jerusalém exibiu a Deus magnífica estatística de sua religiosidade – mas
voltou para casa “não ajustado”...
Ser-bom é algo tão delicado, profundo e sublime que não pode ser colhido nas
malhas duma definição nem instituição humana.
Se fosse tão grande o número dos homens bons como o dos homens
“religiosos”, talvez não houvesse quem se dissesse ateu. O homem “religioso”
acha suficiente entender-se com Deus, ser bom diante dele – ao passo que o
homem realmente bom tem de entender-se também com os homens, o que é
muito mais difícil do que o entendimento com Deus. Para se entender com
Deus, infinita Retitude, basta ser reto e bem-intencionado, traçar o seu pensar
e agir como linha paralela à grande paralela da vontade de Deus. Mas para não
entrar em conflito com as mil e uma linhas tortas dos homens, e isto sem
entortar a própria consciência, requer-se uma geometria tão engenhosa e uma
ginástica tão heróica que só mesmo um homem intimamente bom a consegue
realizar sofrivelmente. E assim, dominados pela lei da inércia e do menor
esforço, milhares de homens preferem ser “religiosos” a serem bons, porque
isto é difícil, e aquilo relativamente fácil. Muitos chegam ao ponto de se
sentirem como que dispensados de serem bons pelo fato de serem “religiosos”.
Capitalistas da “religiosidade”, tornam-se verdadeiros indigentes da bondade –
e abrem falência diante de Deus... Mas como são considerados, oficialmente,
homens “religiosos”, levam ao chamado ateísmo muitos daqueles que
quiseram ver homens cuja religiosidade culminasse em pura, perfeita e sincera
bondade.
O chamado ateu bem quisera ser teísta se visse nos teístas protocolares uma
religiosidade tão pura e grande que culminasse em sincera bondade... Quisera
ver-lhes o credo explodir numa deslumbrante floração de ética... Quisera ver a
estática rigidez dos dogmas eclesiásticos vibrar na elasticidade dinâmica duma
luminosa benevolência... Quisera ver a árvore divina da fé coberta da viridente
fronde de humana solidariedade... Quisera, numa palavra, ver nos teístas um
indissolúvel consórcio entre o ser-religioso e o ser-bom...
E dizem-se ateus...
Mais fatal é à tua igreja um ano de bonança que três séculos de tempestade...
Tua igreja nasceu no campo de batalha – e não pode viver sem lutas...
Os cristãos, uma vez que no mundo devem viver, ao mundo se querem adaptar
– para não parecerem imodernos e anacrônicos...
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Por que é que milhares de espíritos sinceros, depois de lutas ingentes, depois
de trágicas odisséias repletas de angústias e saudades de ti, Senhor, por que é
que esses nautas não arribam enfim ao porto tranquilo da tua igreja?... Deixou,
porventura, o cristianismo de ser o que foi?... Teriam contra ele prevalecido as
portas do inferno?...
A “alma naturalmente cristã” volta-se, com irresistível avidez, para o Sol, para o
Cristo, para ti, Senhor – e foge de todos os lampiões e de todas as lanternas
multicores com que os homens pretendem substituir o sol do teu Evangelho...
Onde está, no cristianismo de hoje, aquela força titânica dos primeiros séculos?
aquele jubiloso entusiasmo dos verdadeiros discípulos do Nazareno? aquela
irresistível magia, aquela poesia virgem, aquela alvorada inédita, aquela
arrasadora tempestade de Pentecostes, aquele onipotente ciclone que
arrebatava as almas a alturas de infinita amplitude?...
Vejo igrejas, vejo almas piedosas que as frequentam, que crêem nos dogmas
do seu credo e vivem a sua vida medíocre, burguesmente honesta e sofrível –
mas onde estão os heróis do Cristianismo?...
Por isto, quando um homem te possui, não te possui com alguma faculdade
parcial do seu ser – só te possui com o conjunto total do seu ser.
E esta posse integral é viver-te, é uma espécie de encontro vital contigo. Essa
posse vital e essencial do teu ser é muito mais que um “saber-de-ti”, muito mais
que um “crer-em-ti”. Ainda que esse “saber-de-ti” e esse “crer-em-ti” entrem
nesse “viver-te”, não coincidem com ele, não o esgotam em sua vasta
totalidade.
O homem que te viveu nada sabe de ti, no sentido comum do termo – mas tem
de ti experiência mais verdadeira do que todos os filósofos e teólogos do
universo que te estudaram e não te viveram. É o único homem que possui a
sabedoria da tua Divindade...
Por que, Senhor, escreveste no teu livro tão belo um capítulo tão feio?...
Por que creaste a dor, tu, que és a mais veemente afirmação do gozo?...
Por que fizeste essa treva imensa da alma, tu, que és luz infinita?...
Por que abriste na face do homem duas fontes para as lágrimas e apenas uma
para o sorriso...
Não “podias” impedir que a dor avassalasse o gênero humano, tu, que és
onipotente?
Não “querias” impedir que sofrimentos atrozes dilacerassem a nossa vida, tu,
que és amor e beatitude?
Entre as ominosas farpas deste dilema oscilou minha vida muitos anos,
rasgada de angústias...
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Eu, porém, Senhor, não quero ver partido o arco-íris da minha vida a boiar
sobre as águas sujas dos meus caminhos terrestres. Quero vê-lo, inteiro e
puro, nas alturas do teu céu. Quero ver o arco-íris da minha fé a arquear uma
ponte de luz, de um a outro horizonte, desde as praias do aquém até aos
litorais do além... E sobre esta ponte quero mandar passear todas as coisas
boas e belas da minha vida, para salvá-las do grande naufrágio... Quero que tu,
Senhor, estendas sobre o vasto dilúvio das minhas lágrimas este “sinal da tua
aliança” com minha alma...
Bem sei que poderia crer teoricamente num Deus a quem não amasse; bem
sei que poderia emitir profissão de fé dogmática e afirmar com os lábios e a
inteligência a tua existência e os teus atributos – mas que seria esta fé teórica
e dogmática senão um arco-íris em pedaços, tombado do céu, a boiar sobre
águas estagnadas, à semelhança daquela tênue camada de gasolina numa
poça do caminho?
Não! eu só posso crer sinceramente num Deus que possa também amar
ardentemente.
Nunca direi com a inteligência e os lábios o que não possa dizer com o
coração, com toda a alma do meu ser. Antes de tudo, tenho de ser sincero
comigo mesmo, fiel ao íntimo quê do meu ser.
Por demais robusta e temerária era, nesse tempo, a confiança que eu tinha nas
asas da minha filosofia intelectual, como se ela, qual água celeste, pudesse
levar-me até o trono da tua Divindade...
Não sabia eu, nesse tempo, que toda ciência nos leva invariavelmente a um
“ponto morto”, onde terminam todos os caminhos do intelecto, onde começa o
grande silêncio a todas as nossas interrogações, onde se eclipsam todos os
astros do firmamento e se apagam todos os faróis das praias...
Ignorava eu, nesse tempo, que, para além dos mais longínquos horizontes da
ciência existe algo que não tem nome nos vocabulários humanos, mas que é
tão real, tão poderoso e tão suave que de grande paz e sossego enche a alma
que o bebe em momentos de intuição espiritual.
Que imponha silêncio aos ruídos profanos do ego periférico, a fim de perceber
as melodias sacras do Eu central...
E, depois disto, saberá porque existe o sofrimento e o que ele faz do homem
iniciado nos seus mistérios...
***
Depois daquele grande dilúvio, fui jogado pelas tuas tormentas, Senhor, a uma
praia solitária e tranquila, onde amanheceu a luz da compreensão, não um
meio-dia de luz integral – reservado a outros mundos – mas ao menos um
tolerável crepúsculo matutino de serenidade interior e de conciliação contigo e
com o teu mundo tão enigmático e paradoxal...
Fiz a grande e dolorosa viagem do meu ego periférico para o meu Eu central –
e encontrei-te nesse centro, onde sempre estavas, mas onde eu não estava
ainda. É este, aliás, o único ponto certo onde o homem te pode encontrar, uma
vez que “o reino de Deus está dentro do homem”. Fácil seria uma viagem daqui
ao Himalaia, ao Pólo Norte ou Sul, ou à estratosfera – difícil, porém,
imensamente difícil, é esta viagem da periferia ao centro do nosso ser; porque
tudo o que chamamos nosso ego pessoal e histórico – sentidos, afeições e
inteligência – nos obriga a andar na superfície das coisas e nos impede de
descobrir o nosso verdadeiro Eu central. Esse Eu central é como o ponto
matemático de um eixo, fulcro que tudo move, mas que é imóvel em si mesmo
– um movente imóvel – quase como tu mesmo, Senhor, o eterno movente
imóvel de todos os fenômenos transitórios.
Nesse meu centro imóvel aprendi um pouco desse capítulo noturno da dor.
E esse pouco foi o suficiente para me dar algum sossego diante de ti – e diante
de mim mesmo... Impediu que caísse das alturas o arco-íris da minha fé e
morresse, fragmentado, numa poça de água suja... Consegui crer num Deus
amável... Fiz do amor a alma da minha fé e, como o amor é imortal, deu ele
imortalidade à minha fé, enquanto essa mesma fé não se transforme em amor,
fundindo-se com ele numa suprema e eterna unidade...
Continua o grande dilúvio das nossas lágrimas – à luz do teu excelso arco-íris,
meu Deus...
Conscientemente bom
Vai um grande mistério, meu Deus, naquilo que teu servo Moisés escreveu
sobre a “árvore do conhecimento do bem e do mal” que, a princípio, plantaste
no Éden.
Não, tu não querias que o homem fosse bom, e, menos ainda, que fosse mau,
querias que ele fosse conscientemente bom. Seres bons existiam aos milhares,
aos milhões, nos vastos domínios do teu universo. Todos os astros do cosmos
são bons, porque obedientíssimos servidores da tua vontade, traçando as
órbitas que lhes prescreveste e não aberrando sequer por um triz dos
gigantescos roteiros que lhes marcaste. As tuas estrelas não falham, não
prevaricam, não cometem pecado contra a tua soberana vontade – são seres
“bons”, inconscientemente bons, porque lhes falta a “ciência do bem e do mal”.
O que os astros praticam de “bom”, é bom porque é teu – e o mal não existe
em ti.
Depois disto, porém, creaste um ser inédito e inaudito – tu, que és amigo das
coisas originais e inéditas e não costumas repetir nenhuma das tuas obras.
Creaste um ser estranho, diferente de todos os outros. Um ser que, como os
astros do céu e os organismos da terra, não era apenas “bom”, mas “muito
bom”, como diz o Gênesis.
Esse ser novo era efetivamente bom, e muito bom – mas era possivelmente
mau, e muito mau... Esse ser estranho tinha em si a possibilidade de ser bom
ou mau. E precisamente por não ser apenas efetivamente bom, como os outros
seres, mas possivelmente mau, como os outros não podiam ser, esse ser novo
era “muito bom”.
Melhor é a teus olhos um ser bom que tem em si a possibilidade de ser mau do
que um ser simplesmente bom sem a possibilidade de ser mau. Assim és tu.
Uma creatura necessariamente boa é um ser limitado – uma creatura
livremente boa é um ser ilimitado. E eu sei que tu és amigo de tudo o que é
ilimitado, tu, que és a infinita ilimitação, a suprema Negação de todas as
barreiras reais e imagináveis.
Os outros seres que creaste são seres de “planície” – o homem é ser de “altura
e profundidade”...
Estava o homem em face dum grande dilema. Podia ser o “filho mais velho”
que nunca deixou a casa paterna – e podia ser também o “filho mais novo”, o
“filho pródigo”, que livremente deixou a casa do pai e livremente a ela voltou,
depois de conhecer as “terras estranhas” da culpa...
Muito mais querido foi ao pai o filho regresso ao lar do que o filho nunca
egresso da casa paterna. Por quê? Porque este era inconscientemente bom, e
aquele era conscientemente bom.
Podia a humanidade ser como o filho mais velho – mas é como o filho mais
novo... E não é o homem o filho mais novo do Pai celeste? obra novíssima da
Divindade creadora? produzida pela tua Onipotência, meu Deus, depois de
todas as demais maravilhas do teu poder e da tua sabedoria?...
O homem é o benjamim de Deus, e tão querido do Pai eterno que lhe foi dado
o poder de ser bom ou mau...
Oh! quão grande, meu Deus, é a confiança que tens no teu benjamim! ao ponto
de lhe dares a faculdade de ser bom ou mau! ... Todos os astros do céu e todos
os organismos da terra invejam a excelsa prerrogativa do homem ao pé de cujo
berço foi plantada a “árvore do conhecimento do bem e do mal!”...
Permite, meu Deus, que eu te faça uma pergunta, talvez indiscreta: terias tu
plantado no Éden essa árvore da ciência do bem e do mal se previsses que a
humanidade fosse apenas filho pródigo, e não também filho controvertido?...
que o homem, no meio dos porcos de seu despótico senhor e desejoso de
fartar-se com repasto imundo, não sentisse, um dia, as saudades da casa
paterna e resolvesse lançar-se, contrito, aos braços de seu paternal amigo?...
Se previste uma culpa sem conversão, por que creaste o homem?... Por que
deste ao “filho mais novo” do teu amor a permissão tácita de deixar a casa
paterna da tua vontade e ir em demanda da terra estranha do seu querer
individual?... Por que não vedaste a teu benjamim o acesso à árvore do
conhecimento do bem e do mal?... Por que não lhe impossibilitaste a colheita
do pomo fatídico, assim como o puseste fora do alcance de todos os outros
seres?...
Não, não posso crer, meu Deus, que tu sejas tão cruel e insensato que
creasses um ser destinado a ser infeliz, que chamasses à existência uma
humanidade fadada a perecer longe de ti, em terra estranha, faminta, no meio
de animais imundos.
Por isto, meu Deus, é injusto e irrazoável que deploremos a humanidade que
povoa este planeta. Tu sabias que ela seria assim – e não impediste que assim
fosse. Seremos mais sábios e santos que tu? Teremos a ousadia de considerar
a tua obra como um fracasso e uma falência? Daremos ganho de causa a teu
inimigo? Que Deus tão pouco divino serias tu se, no fim dos tempos, o teu
adversário saísse mais vitorioso que tu? se levasse consigo a maior parte da
tua humanidade?
Não nos compete, pois, a nós, arautos do teu reino, deplorar a excessiva curva
que o gênero humano abre através da história, distanciando-se do termo final
do seu destino eterno; compete-nos aumentar dentro das almas a inata força
de atração que nos impele ao teu centro, para que a força de repulsão do
nosso individualismo não nos arrebate para fora da órbita e nos lance aos
espaços glaciais da noite eterna...
Assim são as águas vivas da humanidade. Não pode a mais vasta liberdade do
homem frustrar para sempre os planos que a Divindade ideou.
Tão grande és tu, meu Deus, que até das trevas sabes fazer luz!... que da
árvore do mal sabes colher frutos do bem... que da imensa curva das nossas
culpas sabes fazer uma reta mais reta que a reta da inocência – a linha
retíssima do homem conscientemente bom...
O felix culpa!...
Minha querida ex-deusa natura
Quando em mim despertou o primeiro amor da minha vida ainda não vivida,
verifiquei que esse amor era impessoal, intransitivo, sem determinado objeto
externo.
Nenhum impulso de fora acendera em mim essa ignota centelha, nascera ela
do meu próprio Eu, do íntimo quê da minha natureza.
Entretanto, não podia esse amor ficar, por muito tempo, assim, intransitivo.
Encontrei um objeto.
Quando relembro aqueles tempos, verifico com estranheza que esse primeiro
objeto do meu amor adolescente não era um ser humano determinado e
conhecido como tal – mas era a Natureza, ou algo que dentro dela me
fascinasse.
Será por que não conheci infância e, instintivamente, queria fazer da grande e
silenciosa Natura minha mãe terna e afetiva?
É esta a filosofia com que, mais tarde, procurei explicar o inexplicável daqueles
meus amores para com a Natureza. Entretanto, confesso a minha insuficiência:
não compreendo a última razão de ser desta minha grande afeição cósmica. A
mais profunda e verdadeira raiz do amor está na zona noturna do
subconsciente – e todo o meu ser era, nesse tempo, um vasto subsolo
crepuscular do meu Eu posterior, consciente. O despertar do intelecto é apenas
o início da consciência; mas esta transição das trevas à luz é gradual e
paulatina, como o desmaiar da noite, o entressorrir da aurora e a plena vigília
do dia.
Faminto e sedento duma infância não vivida, adivinhei a minha afinidade com
esse mundo dormente e eternamente crepuscular, que chamamos Natureza.
Procurei, nesse mundo silente, o meu lar materno, o meu jardim d’infância...
***
Mas... a Natureza que eu tanto amava não correspondia aos meus amores de
adolescente infantil. Não me dava confiança. Fugia de mim. Fechava-me as
portas para seus mistérios íntimos...
Por que não me queria como filho, quando eu lhe queria tanto como mãe?
Naquele tempo sofri imenso com essa atitude repulsiva da natureza em face
das minhas declarações de amor.
Hoje, após alguns decênios de experiências externas e internas, agradeço-lhe
a recusa. Se, naquele tempo, me tivesse a Natureza compreendido e feito a
vontade – não teria eu acabado por me despersonalizar e diluir em seus
misteriosos fluidos? não teria desaparecido, qual frágil onda, no oceano
cósmico da Natureza impessoal?
Quem sabe se essas potências sinistras que regem os ínferos da zona noturna
do mundo subconsciente não chegariam a descristalizar o cristal da minha
personalidade consciente?
Eu a amava, e amo-a ainda, como naquele tempo; mas, agora, amo-a como
ciente e iniciado. E ela me corresponde, porque sabe que, na qualidade de
ciente e iniciado, as minhas auras sintonizam com as pulsações do seu
coração e vibram com as vibrações das suas artérias.
Por isto, reina entre nós uma grande e sincera amizade, uma profunda e
silenciosa compreensão, uma afeição mútua que tem a serenidade outonal da
amizade e a veemência primaveril do amor...
Um amor amigo...
***
E, para que tudo acontecesse assim como aconteceu, foi necessário, meu
Deus, que eu naufragasse ao furor de grandes tempestades e fosse pelas
ondas bravias dos teus mares, arrojado às praias tranquilas da tua grande
paz...
Parece-me, por vezes, que entre estas duas quietudes, a tua, meu Deus, e a
da tua Natureza, existe apenas um véu muito tênue... Se meus sentidos
conseguissem romper essa gaze sutil – que aconteceria? Ver-te-ia eu face a
face? atingir-te-ia com as potências específicas do meu Eu humano?...
Os ruídos profanos do mundo são espessa muralha que se ergue entre mim e
ti – o silêncio na Natureza é uma delgada cortina que se move ao mais ligeiro
sopro...
Por isto era o teu Messias tão amigo da solidão do ermo e do silêncio das
montanhas...
Por isto haurem os teus arautos forças sobre-humanas na larga quietude que
passam a sós contigo...
Muitas vezes tenho lido e ouvido que tu, meu Deus invisível e sempre
silencioso, aparecias e falavas aos teus arautos, que lhes revelavas grandes
realidades que por si sós não descobririam jamais.
Cuidava eu, nesse tempo, que essa tua presença fosse veiculada para dentro
da alma do vidente pelas ondas luminosas ou sonoras de algum objeto externo,
através da pupila, da retina, do nervo ótico; através do tímpano, do labirinto e
do nervo auditivo; através de papilas sensitivas, dos gânglios e do cérebro, e
assim chegasse tua revelação à consciência do arauto das tuas mensagens.
Ignorava eu, nesse tempo, que “o teu reino está dentro do homem”, não
apenas dentro desta estreita faixa luminosa que a ciência chama “consciente”,
mas também nessa vastíssima zona que se apelida de “inconsciente”.
Estreita réstia de luz atravessa, em certo ponto, essa grande escuridão, assim
como um holofote projeta pela noite imensa estreita lâmina de claridade. De
cada lado dessa faixa luminosa corre uma zona penumbral, tanto mais escura
quanto mais distanciada do centro e, para além dessa meia-luz graduada,
alargam-se, incomensuráveis e ignotas, trevas espessas...
Isto sou eu. Isto é o meu pequenino ser consciente. Isto é o meu grande ser-
inconsciente ou semiconsciente.
E tu, meu Deus, quando te revelas ao homem, quando lhe falas, quando lhe
apareces, vens sempre do interior dessa grande noite do inconsciente, e daí
invades o crepúsculo matinal do semiconsciente ou a luz diurna do consciente.
Teu reino, disse teu Filho Unigênito, “não vem com aparato exterior, nem se
pode dizer: ei-lo aqui! ei-lo acolá! – o reino de Deus está dentro do homem”.
É mil vezes mais fácil transpor oceanos e subir Himalaias do que realizar esta
grande viagem da periferia para o centro do próprio Eu, onde amanhece o reino
de Deus... “O reino de Deus é alvo de violência, e homens violentos o tomam
de assalto”... A maior “violência espiritual” de que é capaz o homem é esta, a
conquista do Eu central através dos obstáculos do ego periférico...
Também, como poderia o teu reino, meu Deus, vir de fora, do mundo material,
quando tu és o Ser mais imanente e central que imaginar se possa? Tu, o
espírito puríssimo? O espírito anda por caminhos espirituais. O teu espírito não
tem “ubiquação” local, é supralocal, extralocal, onipresente. Sendo espírito,
revela-se por via espiritual através da vasta noite do Eu inconsciente,
amanhecendo na silenciosa e tépida alvorada do Eu consciente...
***
Perguntam os homens onde está o teu céu e o teu inferno. Dizem que o céu
está em cima, e o inferno está embaixo.
O teu céu está sempre rumo às alturas, rumo à luz, rumo à pureza, rumo ao
espírito – e o teu inferno (que propriamente não é teu!) está sempre rumo às
profundezas, rumo às trevas, rumo a todas as coisas antiespirituais e
antidivinas.
O teu céu e o teu inferno não são lugares, no sentido comum do termo, são
estados da alma, atitudes do espírito, perspectivas retas ou falsas do Eu.
Estou no teu céu ou no teu inferno quando estas coisas, divinas ou antidivinas,
estão dentro de mim, em estado latente, agora – em estado manifesto, no
mundo futuro.
O reino de Deus e o reino de Satã estão dentro do homem. E aonde quer que o
homem vá, leva consigo o seu céu ou o seu inferno. Não é a morte que me
leva ao céu ou ao inferno – é a vida. Não pode a não-vida fazer de mim o que
de mim não fez a vida. A morte apenas revela às claras o que a vida fotografou
às escuras, na lâmina sensível da alma. Se em vida proclamei dentro de mim o
reino de Deus, não pode a morte estabelecer dentro ou em torno de mim o
reino de Satã. Mas se a vida acendeu dentro de mim um inferno – como
poderia a morte levar para o reino do céu esse reino do inferno dentro de
mim?...
Eu serei amanhã o que sou hoje – ninguém se pode tornar o que não é...
Não pode despertar para o estado atual o que não dormita em estado
potencial...
Revelar é tirar o véu, tirar o véu de algo que estava velado – mas esse “algo” já
existia, ao menos em germe, sob o véu. Deus se revela ao homem que já tem
Deus em si – embora seja talvez um “deus desconhecido”, um deus ignoto,
velado por uma grande saudade espiritual, uma nostalgia longínqua, um
tormento metafísico, uma profunda insatisfação no meio das satisfações, uma
vontade imensa de romper as estreitas barreiras do ego e transfundir-se em
algum Tu bastante vasto e forte para receber essa grande inundação...
Todos os Saulos e Agostinhos, todas as Madalenas e Samaritanas que dentro
de si tenham esse “Deus em botão”, podem presenciar uma jubilosa “floração
de Deus” dentro de si... Mas nenhum fariseu interiormente estéril e satisfeito
consigo mesmo pode viver uma revelação divina dentro de si – por mais
abundante que seja a folhagem das suas pretensas “boas obras”...
As tuas palavras, Senhor, não são como as nossas, que têm princípio e fim,
que são como pequenas linhas destacadas, finitas, limitadas à esquerda e à
direita, embaixo e em cima.
Não, as tuas palavras são essencialmente infinitas, linhas sem princípio nem
fim, ilimitadas na horizontal e na vertical, em todos os sentidos.
Por isto, nunca poderá homem algum exaurir o sentido total das tuas
revelações. Por mais que as aprofunde, estará sempre no início da sua
profundeza...
Nunca poderá o nosso finito beber o teu Infinito em toda a sua plenitude...
Nesse mar imenso das tuas revelações cada homem submerge segundo a
medida da sua capacidade, uns mais, outros menos profundamente... Alguns
colhem apenas as gotinhas que saltam à praia... Outros apanham quantidades
maiores das tuas águas divinas... Mas quem teria a presunção de afirmar: eu
colhi na minha inteligência toda a vastidão do oceano! não ficou fora do meu
amplexo mental uma só onda, uma gotinha sequer da revelação de Deus!?...
Outro ainda, iniciado nas altas academias do mundo espiritual, perceberá nas
profundezas do teu Verbo a significação “mística”, a verdade suprema e última
que palpita em tuas palavras.
Cheio está um vaso de litro quando nada mais cabe no seu âmbito.
Afere-se a plenitude dum ser não pelo volume do conteúdo – mas pela
capacidade do continente.
Não compreendemos Deus assim como ele é – mas assim como nós somos.
O Deus compreendido pelos homens será sempre mais humano que divino.
Tanto mais divino será quanto menos humana for a sua capacidade
compreendedora.
Nem penses que seja apenas questão de “quantidade” – pois é antes questão
de “qualidade”.
Como poderia uma corda afinada por vibrações aéreas de pouca intensidade
reagir a ondas eletrônicas?...
Todo homem tira das tuas revelações o que seu espírito apreende e de que ele
tem mister. O conteúdo das tuas palavras é infinito, mas o homem absorve só a
parcela finita que é por ele absorvível. Da infinitude do teu oceano haure cada
um as gotas possíveis e necessárias ao seu Eu individual.
Quanto mais se bebe de ti, Senhor, mais se quer beber! ... É este o delicioso
tormento dos que começaram a beber de ti por meio duma parcela de
compreensão. Não comece a beber-te e compreender-te quem não te quiser
sofrer! É assim que tu te “vingas” do homem que teve a audácia de começar a
procurar-te: obrigando-o a “procurar-te” cada vez mais... E a mística desse
“procurar-te” vai numa progressão infinita: quanto mais te encontra, mais tem
de procurar-te. É que cada encontro contigo gera a possibilidade para novos
encontros cada vez maiores e mais intensos. Cada grau de compreensão
produz no compreendedor nova capacidade compreensiva.
Quem uma vez abriu os olhos em direção aos teus horizontes Infinitos, já não
pode dormir tranquilo nas praias do finito...
Quem começou a compreender algo das tuas palavras descobre-lhes sentido
cada vez mais profundo, e vai no encalço desse sentido sem nunca parar –
porque cada uma das tuas palavras é um caminho para o Infinito... Depois de
percorrer, ao longo desse “fio de Ariadne”, todos os labirintos da terra, toda a
vastidão do cosmos, todos os domínios do universo material e espiritual; depois
de deixar após si tudo quanto tenha existido, exista ou venha a existir em todos
os planos da realidade – ainda não atingiu o humano viajor o termo final das
tuas palavras. E por mais que esse arrojado bandeirante prosseguisse a
devassar selvas e desertos, a cortar continentes e mares, a descobrir mundos
ignotos e universos sem fim, nunca poderia armar a sua tenda em algum ponto
e dizer: aqui é o fim! aqui terminou o sentido das palavras de Deus!...
E descobri por toda a parte rastros estranhos que me diziam: por aqui passou
Ele... Ele, o Poderoso, o Sábio, o Bom, o Formoso...
Era tão doce repousar sob as frondes dormentes das grandes árvores...
Era tão bom escutar a liturgia que o cristal das fontes cantava por entre pedras
ninféias...
Era tão inebriante o incenso que os cálices multicores derramavam pela vasta
catedral das tuas selvas tropicais...
Era tão delicioso ser uma parte integrante do grande cosmos, sem saber da
sua própria vida...
Por que ainda procurar o Deus das obras se as obras de Deus eram tão belas
e sedutoras?...
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Fizeste bem, mãe Natureza, em não deixares o filhinho incauto brincar com tão
perigoso brinquedo... Quem nasceu para o mundo consciente não pode
desnascer para o mundo inconsciente... Deve renascer para um mundo
superconsciente...
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Era bem feita a ponte silogística que minha inteligência lançara no largo caudal
dos fenômenos do meu mundo externo e interno. E eu saltava lentamente de
pedra em pedra, de causa em efeito, dos meios para os fins, do “porquê” ao
“para quê”, do “donde” ao “para onde”, a fim de colher-te, meu inefável Mistério,
no litoral d’além, nas sólidas malhas da minha lógica e cautelosa filosofia...
Encontrei-te como a Voz potente que nas profundezas do ser racional ecoa
como inextinguível voz da consciência; como Bem supremo que de ardentes
anseios de beatitude enche os seres que pensam e amam...
Por algum tempo estava a minha inteligência satisfeita com o seu hábil trabalho
de engenharia filosófica, e cuidava poder repousar sobre os louros colhidos.
Verifiquei que a luz que minha inteligência derramava em torno de si era uma
luz fria, um fantástico luar sobre vastos campos de neve... Contraiu-se o meu
íntimo ser à frialdade da minha ciência, e o coração tiritava ao contato com a
atmosfera polar que minha filosofia criara em derredor...
Respirei, aliviado...
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O que a fé nos diz dos mundos intangíveis nunca será desvendado pela ciência
da vida presente. À entrada da universidade da fé jaz a ciência, analfabeta, e,
por mais que peça, rogue e suplique, não conseguirá nunca matricular-se
nessa excelsa academia das supremas realidades do universo. Por outro lado,
por que ia a fé sentar-se nos bancos toscos do jardim d’infância da nossa
filosofia intelectualista? Por que aprender os sinais macabros com que a nossa
enfatuada inteligência soletra e balbucia aquilo que julga saber?...
Areal imenso...
Horizontes sem fim...
Silêncio angustiante...
Fome e sede...
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Se não estás nas alturas nem nas profundezas, nem nos horizontes da direita
nem da esquerda, nem dos mundos do conhecer nem do crer – onde estás?
Que é do teu reino?... Não algum reflexo lunar ou solar do teu reino, mas esse
mesmo reino em toda a sua deslumbrante realidade e transbordante plenitude
– ou mesmo em toda a sua indevassável escuridão e dolorosa sanguinolência,
contanto que seja o teu reino real e verdadeiro, genuíno e integral?... onde está
ele?...
“O reino de Deus não vem com aparato exterior; nem se pode dizer: ei-lo aqui!
ei-lo acolá! – o reino de Deus está dentro de ti!”...
Não, não quero “inteligir” nem “crer” no reino de Deus – eu quero viver esse
reino. Eu quero ser esse reino – perdoa-me, Senhor, se é orgulho esta
expressão; tu sabes o que eu quero dizer; é a sincera humildade de minh’alma
que me conduz a este “orgulho”. Sim, eu quero “viver” e “ser” o teu reino.
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Adormeceu então a “sapiência” da minha insipiência...
O teu reino, meu Deus, embora habite dentro do homem, é, por ora, um reino
ignoto...
É um lindo deserto...
Aleluia...
Amém...
Meu crudelíssimo amor
Há quase meio século que minh’alma anda rondando, qual cão faminto, os
castelos de tua opulência, meu divino Senhor e Rei.
E até hoje não me atiraste um osso sequer com que iludir pudesse a fome
atroz que me devora as entranhas...
4 Não se escandalize o delicado leitor com a rudeza destas palavras blasfemas, aqui
reproduzidas. Leia antes a tremenda maldição que o grande e santo sofredor Job deixou
imortalizada nas páginas das Sagradas Escrituras.
Que é que eu sei de ti, Senhor, que não soubesse decênios atrás?... A tua
noite é absoluta... As tuas torres, altíssimas... As muralhas do teu castelo,
eternamente inescaláveis...
Não compreendo nada do teu ser, nem do teu mundo... Estou em perfeito
jejum...
Não te conheço...
Que estranho princípio de polaridade é este, Senhor?... Por que é que o vácuo
do intelecto invoca a plenitude do coração?... Não dizem os filósofos que o
“querer segue ao conhecer”?... Como é, pois, que eu te amo tanto mais quanto
menos te compreendo?... Será que o amar e o compreender são como as
conchas duma balança: quanto mais uma desce tanto mais a outra sobe?...
Vezes sem conta, meu ignoto Amor, tenho falado de ti aos homens, na roda
íntima de amigos e no vasto silêncio dos santuários; em praça pública e ao
microfone das estações emissoras; nas páginas tranquilas dos livros e nas
colunas inquietas dos jornais – sempre e por toda a parte eras tu o centro dos
meus pensamentos e das minhas palavras...
Verdade é que, por algum tempo, era eu mesmo dessa opinião otimista:
julgava conhecer-te – pois se sabia definir com impecáveis silogismos a tua
natureza e os teus atributos... Era o tempo em que eu ignorava minha própria
ignorância, o período do meu ingênuo narcisismo intelectual, quando eu
enxergava, no fundo das águas da minha ignorância, o semblante quimérico do
meu pretenso saber – e julgava conhecer o Deus infinito, quando desconhecia
até o meu Eu finito...
Muito tenho falado de ti aos homens, meu ignoto Amor, dezenas de livros tenho
escrito sobre ti e teu reino, não porque algo soubesse de ti, mas porque algo
desejava saber de ti, meu eterno Anônimo; porque a potência do querer e a
impotência do poder me geravam nas profundezas da alma elementos
vulcânicos que não me davam sossego... Esse falar-de-ti parecia diminuir a
pressão da lava ígnea dentro de mim, e dava-me um pouco de sossego diante
de mim mesmo...
***
Não me iludo... Sei que será inútil todo o meu esforço humano...
Sei que, também no futuro, vais destruir todas as minhas Babilônias, assim
como as destruíste no passado – porque tu és o rei dos demolidores... Que são
os nossos carros de assalto e as nossas bombas atômicas em face do mais
leve sopro dos teus lábios? Um só pensamento teu é mais violento que o maior
dos nossos terremotos, e um único olhar das tuas pupilas arrasa Himalaias e
aniquila sistemas planetários...
Não me iludo, meu crudelíssimo Amor... Sei que serás sempre o que sempre
foste.
Mas eu te quero assim mesmo... Quero que sejas como és – e não quero
fazer-te assim como eu sou...
Quando me disseram, Senhor, que o teu reino estava dentro de mim, julguei
perceber a coisa mais absurda e a maior blasfêmia que dizer se pudesse. É
que era falsíssima a idéia que eu formava de ti, do teu reino – e até de mim
mesmo. Pensava que teu reino viesse de fora, das alturas do céu sideral, do
mistério de horizontes longínquos, do seio ignoto do universo. Não podia, de
forma alguma, imaginar que o teu reino surgisse das silenciosas e vácuas
profundezas do próprio Eu, porque eu só conhecia o meu ego periférico,
profano e vazio, e ignorava a plenitude do meu Eu central.
Hoje sei que o meu verdadeiro Eu é um traço de união entre o finito e o Infinito,
que é a única porta aberta para o cosmos das grandes realidades, e que não
entrará jamais no mundo das supremas maravilhas quem não abrir a porta do
Eu, invisível mago do meu verdadeiro ser.
Homem, se não quiseres ser para ti e para os outros eterna esfinge e ominoso
pesadelo, procura, antes de tudo, descobrir o teu verdadeiro e autêntico Eu
central, através dessas espessas camadas do pseudo-eu periférico.
Esse teu ego personal e histórico não és tu. Esse teu ego periférico é de ontem
ou anteontem – mas o teu verdadeiro Eu central é eterno.
Aquele é unilateral – este é onilateral.
Corpo e mente são a sede e fonte das sensações, das afeições e dos
pensamentos, que em ininterrupta carreira se sucedem, como as águas duma
torrente, como as catadupas duma cachoeira – mas esse estardalhaço de
sensações, afeições e pensamentos não és tu, não é a verdadeira essência do
meu ser.
O meu lago interno é tranquilo e imóvel, não por vacuidade, mas por plenitude;
não por deficiência, sim por abundância.
Assim é, assim deve ser o meu verdadeiro Eu, a essência cósmica do meu ser:
centro imóvel que tudo move, foco dinâmico do qual irradiam todas as energias
da minha vida, lago plácido que absorve todas as torrentes e reflete na sua
perene quietude o azul do céu e o sol da Divindade.
Por via de regra, anda o homem nas camadas periféricas do seu ego, mais ou
menos distante do Eu central. Poucos são os que conseguem penetrar até
esse misterioso centro, porque árdua luta e intensa introspecção espiritual
exige a ruptura dessas espessas camadas do nosso ser. Sensações físicas,
afeições psíquicas e pensamentos intelectuais, habituados à tépida superfície
diurna do nosso ego periférico, recusam-se a submergir na silenciosa
profundidade noturna do Eu central; parece-lhes uma noite polar, uma zona
gelada e mortífera, e por isto fogem sempre em sentido contrário, rumo à
superfície.
Como obrigar os rebeldes a empreenderem a grande expedição rumo às
regiões profundas do Eu central?
A única coisa que podemos fazer com as nossas potências físicas, psíquicas e
intelectuais é polarizá-las, dar-lhes uma atitude centrípeta e deixá-las depois
atuarem, suave e espontaneamente, por si mesmas, neste sentido. Essa
constante e persistente polaridade via centro acabará por lhes neutralizar a
primitiva centrofobia e lhes quebrará paulatinamente toda a vontade e todo o
poder de oposição e rebeldia. Mais ainda, essa constante e suave perspectiva
polarizadora chegará ao ponto de converter as nossas potências periféricas em
veículos e dóceis aliados centrófilos, que nos levarão, quando menos, até as
muralhas externas do grande santuário central do nosso Eu cósmico e
espiritual. Chegados à entrada desse silencioso santuário, esses servidores
psico-físico-mentais montarão guarda e se quedarão, qual silenciosa e vigilante
sentinela, a proteger o palácio do grande rei.
“O reino de Deus está dentro de vós... Quem não renascer pelo espírito não
pode entrar no reino de Deus”...
Bandeirante do infinito
Cético, no verdadeiro sentido da palavra, não é aquele que de tudo duvida, que
acha tudo incerto, vacilante, mal-seguro. Cético vem de skepsis, isto é
investigação, pesquisa, exame. Cético é, pois, aquele que investiga, pesquisa,
examina, procura – é o bandeirante do teu reino, meu Deus.
O cético, de início, não afirma nem nega; mantém-se em equilíbrio hábil entre
dois extremos; pensa, estuda, compara, analisa, pondera os prós e os contras;
procura descobrir uma solução objetiva, real, para aquilo que o dogmático
aceita como já solucionado.
Sempre com saudade duma pátria que o coração lhe diz existir...
O dogmático não procura propriamente a verdade, porque julga possuí-la
definitivamente. Vai apenas em busca de provas que apóiem o seu dogma e o
justifiquem perante a própria consciência ou em face de inteligência alheia.
Assim, Senhor, era eu naquele tempo bandeirante das tuas selvas imensas,
dos teus vastos desertos, dos teus horizontes sem fim...
E assim será sempre, enquanto o meu finito não se integrar no teu Infinito,
enquanto este pequenino arroio não desaguar na vastidão do teu oceano.
Nem admira que assim seja. Como poderia o finito permanecer tranquilo em
face do Infinito?... Como poderia a pedra ficar suspensa no ar quando o seu
centro de atração está no âmago da terra?... Como poderia a planta deixar de
estender no espaço os sensíveis tentáculos da sua grande nostalgia
heliotrópica, quando tão longe está da querida claridade do sol que a chama a
si com silenciosa veemência?...
Não me dou por infeliz, Senhor, por ser hoje mais cético que dogmático, mais
dinâmico que estático. Creio hoje mais firmemente do que nunca na tua
palavra, mas esse crer não é um inerte repousar nem um indolente estacionar.
O lago plácido do meu antigo dogmatismo converteu-se em impetuosa torrente
de bandeirismo, e essa torrente vai em demanda dos teus mares divinos. Podia
eu tomar o meu lago de ontem por um mar – mas nunca a minha torrente de
hoje me parecerá o teu oceano, meu Deus. Naquele tempo cria eu em ti e em
mim – hoje creio em ti e descreio de mim – isto é, no meu ego físico-mental.
Creio no meu Eu divino, que és tu.
Dou-te graças, Senhor, por esta dolorosa inquietude do meu espírito. Não é a
inquietude do desespero – é a inquietude duma grande esperança...
Uma coisa apenas te rogo, Senhor: não permitas que eu venha a cair vítima de
um ceticismo narcisista; que não me enamore das águas do próprio ego, da
venustidade do meu semblante mental. Preserva-me deste perverso
masoquismo de eu me deliciar nos martírios íntimos da minha intelectualidade
itinerante. Não permitas que eu me intoxique com a entorpecente cocaína da
minha nostalgia metafísica, apaixonando-me pela viagem e esquecendo-me do
termo da mesma. Sei que esse funesto narcisismo acabaria por me embalar
num sono mortífero e sustaria a minha marcha rumo aos teus horizontes
eternos...
Não, não me encontrei. O meu Eu não existia como ser autônomo. Tinha sido
roubado. O que ele devera ser, um Eu individual, fazia parte integrante dum Tu
cósmico – e esse Tu tinha o teu nome, meu Deus...
Por mais absurdo e paradoxal que esta frase pareça, ela é o reflexo fiel do que
senti naquele tempo, quando abri os olhos da razão e robusteci as energias do
espírito, quando cheguei à plena consciência da minha individualidade não me
encontrei.
Eu não era eu. O meu Eu fora absorvido por um não-Eu, por um Tu alheio,
antes que chegasse a se tornar um Eu pleniconsciente.
Nesse tempo, a minha força egocêntrica era igual a zero – e a tua força
teocêntrica era, como é sempre, de potência infinita. Que admira, pois, que o
Eu sucumbisse ao Tu? que a microscópica gotinha do meu ser fosse tragada
pela intérmina vastidão do teu oceano, ó Ser Infinito?...
Olhei em derredor. Olhei para cima. Olhei para baixo. Olhei para dentro – e não
me concentrei em parte alguma. Tinha sido raptado por ti, enquanto dormia o
sono da inconsciência ou semiconsciência...
Percebi com satisfação que, quanto mais me afastava de ti, tanto mais diminuía
em mim a força antiga que me prendera, e tanto mais aumentava a força nova
que me lançava em vertiginosa carreira pelas vias inexploradas do cosmos.
Imensa, indescritível foi a alegria que senti ao saber-me, como entendia, fora
do alcance da tua força de atração, meu despótico astro central. Oh! Como era
bom ser um Eu integral e exclusivo e, 100%, não mais fazer parte integrante
dum Tu... Livre, obedecia tão somente à força intrínseca da própria
personalidade... Parecia-me quase uma divindade autônoma e onipotente...
Na minha descontrolada carreira, esbarrei com outros meteoros, até com uns
planetóides que incautamente ousaram cruzar o meu espaço vital... Mas como
eles eram pequenos e eu era grande, foram reduzidos a fragmentos e cinzas, e
eu prosseguia, infrene, na minha vasta órbita, rumo ao vácuo absoluto rumo à
noite eterna...
***
Entretanto – naufraguei...
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Não me admira que milhões de astros tracem, com absoluta precisão, as suas
gigantescas trajetórias... Não me admira que a fauna e a flora e todos os seres
da Natureza irracional obedeçam à risca a tua vontade – porque nenhum deles
pode desobedecer.
Nem estranho que o ser livre desobedeça à tua vontade, uma vez que é livre.
Como é possível que a um ser que não és Tu mesmo lhe dês tanta confiança,
quando esse ser se pode tornar um antiTu?... quando ele tem a possibilidade
de se evadir das tuas mãos e fugir pela linha tangencial da liberdade abusada
para a noite eterna do afastamento e da rebeldia?...
Que força estranha possuis tu, meu Deus, que possas abrir-nos todos os
caminhos do ateísmo e do antiteísmo – sem que estes caminhos nos levem
para fora do teu teísmo?...
Como podes, sem lesar a liberdade, fazer com que um ser faça hoje por
vontade própria o que ontem não fazia nem por vontade alheia?
Creio, Senhor, que estas duas palavras dizem tudo o que dizer se pode de ti e
das tuas relações com o homem.
Creio que estas duas palavras antitéticas sintetizam todas as teses e hipóteses
que sobre ti se hão excogitado, no decorrer dos séculos e milênios.
Divinizar-se...
Que é toda a poesia do amor terreno e toda a luz da ciência humana em face
dessa suprema e única realidade da tua posse integral, eterna, infinita?...
Assim pensava eu, a princípio. Pensava como certos filósofos de Atenas, que
tanto mais espiritual e divino seria o homem quanto mais aguçada fosse a
cúspide da sua inteligência, quanto mais elevado o pináculo da sua torre
científica, quanto mais Intensa a chama do seu inteligir mental.
De todas as belas e queridas ilusões da minha vida, a mais bela e querida foi
esta. E até o presente dia não consegui matar de todo as saudades que tenho
deste meu primeiro e grande amor Intelectual...
Doloroso foi o desengano, funesta a queda lá das alturas da minha torre
babilônica... E até hoje não cicatrizaram as feridas profundas que me abriu na
alma a convicção de que a ciência, por si só, não te pode atingir cabalmente...
***
Vendo que a soberba torre da minha filosofia não valia romper as nuvens do
teu céu nem lançar uma ponte entre as baixadas da nossa terra e a excelsitude
do teu trono, tentei uma invasão nos teus domínios em sentido contrário. É
que, nesse tempo, eu acreditava ainda na possibilidade desta invasão do teu
reino pelo homem...
Se a conquista não era possível rumo ao zênite – quem sabe se era possível
via nadir?
Fugi da sociedade...
Que é que faltava?... Por que é que não cheguei ao termo da minha jornada
ascética?... Por que é que fugia de mim a meta, na razão direta que eu a de-
mandava?...
Estaria eu marcando passo ou movendo-me num eterno círculo, sem avançar
um passo rumo às fronteiras longínquas do teu reino?...
***
***
Depois de muito pensar e sofrer, depois de muito lutar e errar, compreendi que
o homem não pode possuir-te indo ao teu encontro rumo às alturas, mas que
só tu podes possuir o homem demandando-o rumo às profundezas...
A única possibilidade de possuir-te é deixar-me possuir por ti. Só depois desta
tomada de posse, divino-humana, é que é possível a tomada de posse
humano-divina...
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Mas para que o homem enxergasse estas estrelas longínquas do teu céu, era
necessário que se apagasse primeiro o sol do seu orgulho...
Abri um livro inspirado e li: “Deus resiste aos soberbos, mas dá sua graça aos
humildes”.
Compreendi que tanto mais poderosa é a tua atração quanto mais vácuo o meu
ser, uma vez que o teu Tu é sempre infinita plenitude.
Compreendi que o meu ego tem de ser como um pólo totalmente negativo para
que possa atuar o pólo do teu Tu sempre infinitamente positivo...
Vacuidade e humildade...
Vacuidade e verdade...
Vacuidade e fé...
E para que venha a mim esse teu reino, nada posso fazer da minha parte
senão estabelecer dentro de mim esse grande vácuo, porque tu não enches o
que está cheio, só enches o que está vazio...
Nada de positivo posso fazer para atrair o teu presente, a tua misteriosa dádiva
gratuita. Só posso fazer-me mendigo, mendigo absoluto, em face da tua infinita
riqueza e liberalidade. Só posso erguer os olhos, estender as mãos vazias e
esperar, esperar, esperar... Se quiseres deixar vazias estas mãos mendicantes,
vazias ficarão para todo o sempre. Se as quiseres encher com teus dons,
cheias ficarão de ti, por ti, para ti...
Entretanto, sei que não deixarás sem resposta a minha ansiosa expectativa...
Onde quer que encontres uma humana vacuidade enchê-la-á com tua divina
plenitude...
Apesar de todas as vicissitudes por que passou minha vida íntima; apesar
desse mundo de contradição e desconcertantes paradoxos que povoam a
minha vida – devo confessar que nunca modifiquei radicalmente o meu íntimo
ser humano.
O meu Eu central é imutável, por mais que mudem os meus egos periféricos.
Nunca me converti...
Nunca me perverti...
Nunca me reformei...
Nunca me regenerei...
Que fiz então, meu Deus, através de todas essas vicissitudes e metamorfoses
da vida?
Mas coisa rara é a sorte grande: a maior parte dos homens não encontra no
cenário da vida ambiente propício para a evolução consciente do seu Eu
inconsciente.
E então procura essa vida não vivida historicamente engendrar uma vida vivida
idealmente...
A realidade objetiva, inexistente, gera então uma realidade subjetiva, que, não
raro, acaba por assumir mais palpável realismo e mais imediata tangibilidade
do que a própria realidade histórica de outros homens.
E neste seu mundo ideal vive o homem mais realmente do que outros homens
vivem no seu mundo histórico...
Hoje sei que este mundo ideal é mais real que todas as realidades do mundo
circunjacente. As páginas do teu Evangelho não falam de outro mundo senão
deste mundo ideal. “Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro – este
mundo físico – se sofrer prejuízo no mundo de sua alma?”... “O reino de Deus
não vem com aparato exterior; nem se pode dizer: ei-lo aqui, ei-lo acolá – o
reino de Deus está dentro de vós”.
Como é difícil a um rico entrar no reino dos céus, porque põe a sua confiança
num mundo inerte, de metal e outros seres mortos, e ignora o mundo vivo das
idéias e dos ideais...
***
Não queria crer firmemente num Deus que não pudesse amar ardentemente...
E este heliotropismo nunca morreu, ainda que, por vezes, estacionasse por
causa das espessas nuvens que encobriam o céu da minha vida...
O que odiava nos homens não era a sua baixeza e mesquinhez, mas sim as
amargas decepções da minha própria egoidade e os duros reveses dos meus
interesses pessoais no meio dos homens.
Divinamente amável é a humanidade, porque é amada por um ser divino, por ti,
meu Deus.
Todo o meu desamor aos homens procedia dum pseudo-amor a mim mesmo,
que também é desamor. Quando faço o que é desumano, pseudo-humano, o
que meu Eu central e divino reprova, mas que meu ego periférico e antidivino
quisera ver aprovado – então me irrito, me torno nervoso, aborrecido, mal-
humorado. Mas, em vez de descarregar sobre mim mesmo a pesada carga
elétrica do meu descontentamento, descarrego-a em algum pára-raio, sobre
alguma das outras unidades do gênero humano.
Falo então do desvalor dos homens, da mesquinhez da humana sociedade, da
perversidade de meus semelhantes, e caio em negro pessimismo.
O homem só deixa de ser amável quando deixa de ser ele mesmo, quando se
adultera no íntimo quê do seu ser, quando se torna um pseudo-homem quando
se divorcia da fonte eterna da sua retidão. O que é natural é divino e amável –
o que é desnatural é antidivino e desamorável.
Dizem que a verdade é austera, crua e sem poesia. Mas assim só é a verdade
quando contemplada de fora, como um vitral olhado de fora para dentro é, por
isto mesmo, sem arte nem beleza. A verdade contemplada de dentro para fora,
contra a claridade da tua luz, Senhor, esta verdade é mais poética que toda a
poesia, porque a verdade integral é poesia infinita.
“Graças te dou, meu Pai – dizia o mais forte dos chamados fracos – porque
ocultaste estas coisas aos entendidos e as revelaste aos pequeninos, porque
assim foi do teu agrado”.
Para entrar neste “reino dos céus”, é necessário que o homem se faça
criança... é necessário que simplifique a sua complexidade...Que desadultere
as falsificações da sua natureza... Que retifique as mil e uma tortuosidades da
sua vida... Que desintelectualize o seu estreito intelectualismo... Que
desobstrua com um sopro de liberdade cósmica os canais do seu ego –
hipertrofiado...
Só o homem assim divinizado é que é integralmente humano...
E quem ama a humanidade lhe faz bem, mesmo que não tenha nenhum
contato físico com essa humanidade. Para as grandes forças cósmicas não há
distância... As auras benéficas dum Eu genuíno e autêntico atuam ao infinito,
sem veículo algum, sem ruído, sem estardalhaço, atuam pela força intrínseca
da sua natureza divina...
Para fazer bem não se requer nem é suficiente que se “faça” alguma coisa –
mas é indispensável que se “seja” algo ou alguém...
Hoje, embora não tenha decifrado a esfinge do teu mundo visível, estou
tranquilo porque sei e sinto que, para além de todo esse caos que percebemos,
existe um cosmos que, por ora, escapa à nossa percepção.
Nenhuma dessas almas parece guardar lembrança do planeta Terra que, por
decênios, foi teatro de vida, cenário de muitos sofrimentos e de algumas
alegrias... Aqui ficaram pais ou filhos, esposo ou esposa, amigos e parentes,
pessoas que com aquela alma tinham íntima comunhão de interesses,
afinidade de idéias, de ideais, de afetos, de fé, de esperança, de amor...
Poetas, artistas, músicos, gênios de grandes vôos – todos eles deixam o vasto
ou estreito cenário dos seus amores e partem para nunca mais voltar...
Por que é que nenhum deles se interessa mais por aquilo que formava o centro
da sua vida e atividade?...
Esposa ou noiva afetuosa, tu que vivias por um ente querido que no mundo era
a razão de ser da tua vida, por que agora essa incompreensível indiferença e
estranha apatia?...
Não parecem ter razão aqueles que consideram a alma como uma luz que se
extingue ao sopro glacial da morte e volta ao nada donde veio?...
Não parece a nossa fé numa vida após morte uma miragem falaz, um ludíbrio
suave e cruel, uma imensa gargalhada de escárnio lançada do grande vácuo
do além para o grande vácuo do aquém?...
Não parece esse pavoroso silêncio dos sem-corpo justificar tudo quanto de
triste e atroz se tem dito e escrito sobre o grande deserto e a noite eterna que
dizem reinar para além dos túmulos e ciprestes?
Bem sei, Senhor, que temos por aliadas a ciência e a fé – essa fé que crê
firmemente na imortalidade, e essa ciência que elabora argumentos geniais
para demonstrar a existência duma vida após a morte. Sei e creio em tudo
isto...
Neste problema de “ser ou não ser”, quisera eu possuir algo que fosse como
uma superciência e uma superfé...
Quisera ter uma intuição direta, uma vidência imediata, uma afirmação
categórica da realidade da vida eterna...
É o meu Eu total?...
É o cosmos em mim?...
Sei apenas que essa grande intuição que, por vezes, alvorece e me dá certeza
imediata da vida eterna, é uma voz que fala em nome e por ordem de uma
grande e universal harmonia...
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Creio num mundo futuro porque não posso descrer da ordem do teu Universo.
Após esta noite terrena que nos desorienta e apavora, despontará uma
alvorada que iluminará os nossos caminhos...
Eu quero fé – mas uma fé prodigiosa, capaz de encher integralmente os
grandes vácuos que estão dentro do meu ser...
Eu quero vida eterna – porque sem ela me é insuportável esta vida efêmera
que vivo e que morro cada dia...
Por que, Senhor?...
Por que, Senhor, não prevalece, enfim, o teu espírito neste mundo dos
homens?
E, por fim, desceu ao nosso planeta o teu Messias, o mais vasto e intenso
reflexo da tua Divindade.
Crucificaram o teu Cristo em nome da religião: “Nós temos uma lei, e segundo
a lei ele deve morrer, porque se fez filho de Deus”...
Querem os homens que o teu reino seja deste mundo – quando o teu Cristo
negou solenemente que deste mundo era o teu reino: “O meu reino não é deste
mundo”.
Querem os homens que o teu reino venha com aparato exterior, à semelhança
dos reinos da política mundana – como, se o teu Cristo dissera explicitamente:
“O reino de Deus não vem com aparato exterior, nem se pode dizer: ei-lo aqui,
ei-lo acolá! o reino de Deus está dentro de vós”.
Uma e mil vezes perguntaram os homens onde se deve adorar a Deus, se nas
alturas de Garizim, se no templo de Jerusalém – quando o teu Enviado lhes
disse com absoluta clareza que o teu culto não é uma questão de lugar, mas
sim de disposição interior: “Deus é espírito, e os que o adoram, em espírito e
em verdade o devem adorar”.
Querem os homens fazer da religião uma tal ou qual magia ritual, um complexo
de fórmulas cabalísticas – quando o teu Messias lhes disse que os teus
cultores deviam cultuar-te no santuário da verdade e da justiça, no templo da
sinceridade e da pureza, na ara da bondade e da fraternidade universal.
Por que, Senhor, são tantos os homens religiosos – e tão poucos os homens
bons?
Por que trucidam os cristãos a alma do Cristo no louco afã de salvar o corpo do
Cristo, ou o sepulcro vazio desse corpo?...
Por que se desunem os homens por causa dos seus pequenos símbolos
religiosos – quando podiam unir-se por amor ao grande simbolizado da
Religião?
Por que não se fundem, enfim, essas dolorosas antíteses seculares numa
jubilosa síntese – na grande tese do Sermão da Montanha?
Por que não se torna realidade o que teu Messias, em vésperas de sua morte,
te suplicou com tamanha insistência: “Rogo-te, Pai, que todos sejam um, assim
como nós somos um?”
Por que permites que essa pulcritude do teu retrato apareça na horripilante
caricatura do nosso caos religioso?...
Tu, que podes compelir a ti as nossas vontades rebeldes, sem lhes ofender o
apanágio da liberdade – por que permites que almas sinceras e espíritos
sedentos de ti não te encontrem? Por que não destróis essa selva tropical de
sargas com que as religiões nos ocultam a Religião?...
Há entre nós tantos Nicodemos que buscam o teu reino, em plena noite...
Tantas samaritanas sequiosas das águas vivas da vida eterna e prontas para
convocar povos inteiros ao redor de ti e do teu Evangelho...
Por que, Senhor, deixas esses viajores à beira da estrada de Jericó, feridos,
espoliados, agonizantes?... Se sacerdotes e levitas passam indiferentes, por
que não envias ao menos um bom samaritano para os salvar?...
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Prosaico e banal é o dia profano do que sei dizer – fascinante e solene a noite
sagrada do que não sei exprimir...
Eu nunca te disse o que quisera dizer, meu ser indizível, meu grande Anônimo,
minha inefável Poesia...
Entre o Pólo Sul e o Pólo Norte, nesse ardente equador de perene angústia,
oscila a agulha magnética do meu espírito...
É esta a poesia trágica, é esta a epopéia lírica da minha vida feita de quietude
inquieta...
Não posso sair dessa atmosfera crepuscular porque não posso fugir de ti nem
sair de mim mesmo...
Muito tenho dito aos homens, Senhor, muito, em dezenas de anos; muito tenho
escrito, muito, em numerosos volumes – mas não disse ainda o que dizer
queria...
O melhor dos meus livros é aquele que não escrevi – nem jamais escreverei.
Ainda que séculos vivesse e falasse, não conseguiria dizer o que desejaria,
porque essa única coisa que não disse é indizível – és tu, Senhor, meu grande
Anônimo...
É este o eterno tormento de todo homem teotrópico: só pode dizer o que pensa
perifericamente, e não pode dizer o que ele vive e é centralmente. E, no
entanto, isto que o homem vive e é, é infinitamente mais digno de ser dito do
que tudo aquilo que ele pensa e diz fora dessa zona central...
Pode o homem dizer mil coisas periféricas – mas não pode dizer o seu Eu
central, porque esse Eu é imagem e reflexo teu, ó indizível Anônimo...
Pelo que, Senhor, não me julgues pelos zeros negativos que eu disse – julga-
me pelo “1” positivo que não pude dizer...
Não me julgues pelo que eu sou no cenário histórico da minha vida vivida –
julga-me pelo que eu desejaria ser no plano ideal da minha vida não vivida...
Tu és o que és, mas eu não sou o que sou – eu sou o que desejaria ser...
Não me julgues, pois, Senhor, pelos ruídos da sociedade em que vivo – julga-
me pelo silêncio da solidão que eu sofro...
Quanto mais alargo os olhos pela vastidão dos horizontes, mais se confundem
os contornos das coisas em derredor... No tempo em que eu, na minha miopia
espiritual, percebia as coisas que me ficavam ao alcance dos sentidos e do
intelecto, julgava conhecer com grande nitidez e precisão todos os seres do
universo... Não duvidava de coisa alguma, porque vivia na ridícula e sacrílega
segurança da minha orgulhosa e estúpida sapiência... Sorvera a cocaína falaz
do intelectualismo que me pintava mundo, quiméricos em todas as periferias da
vida...
Cosmifiquei-me...
Universalizei-me...
Divinizei-me...
E assim entrei em contato com todas as coisas... Porque no seu último centro
todos esses seres periféricos são um só...
Senti que só pela vidência intuitiva e mística é que o homem pode atingir a
realidade das coisas... É este o único “saber” real, essencial, central, genuíno e
panorâmico que o homem pode conseguir na vida presente...
Tudo isto, porém, ocorreu para além das fronteiras deste ego periférico e
histórico que os homens conhecem... Ocorreu nas regiões imensas onde não
vigora a infeliz distinção entre o sujeito e o objeto, entre o Eu e o Tu, entre o
meu e o teu, entre o ontem, o hoje e o amanhã, entre o tempo e a eternidade...
É certo que muito leitor que teve a audácia de seguir até aqui os clamores da
minha inquietude metafísica te agradecerá, Senhor, do íntimo do coração, por
não ser como eu, circundado de problemas crepusculares, torturas de
perguntas sem respostas, dilacerado de angustiosas desarmonias... Ele, que
vive à luz meridiana de seus dogmas nitidamente definidos; ele, que de nada
duvida nem discorda; ele, que sente na alma o tépido bafejo das auras da paz
e tranquilidade interior – não compreende que um homem que sinceramente te
procura, ó Eterno, possa experimentar-te, viver-te e sofrer-te como uma
luminosa escuridão, como um delicioso tormento, como um Deus ao mesmo
tempo imanente e transcendente...
Não compreende, esse felizardo, que um homem que te possui possa procurar-
te infatigavelmente dia e noite... Que possa chorar por ti... Agonizar por ti...
Alongar o olhar das suas saudades por todos os horizontes do mundo interno e
externo, a ver se encontra um vestígio teu nas areias mortas do deserto...
Não compreende, esse felizardo sem problemas nem problemática, que, para
nós, os Tântalos da vida presente, o único modo de possuir-te é procurar-te
sempre de novo...
Tudo isto és tu, Senhor, real e irrefragavelmente – mas nem por isto deixas de
ser o meu grande Anônimo, um Ser eternamente longínquo, obscuro,
enigmático, paradoxal e doloroso...
Também eu, como aquele homem, tenho em casa um filho doente, prestes a
morrer, e por ele te suplico entre lágrimas: “Vem, Senhor, antes que meu filho
morra!”... Há muito tempo que a pobre criança de minha alma está assim,
enferma, sem poder viver nem morrer...
Quero viver uma vida viva – e não uma vida morta ou agonizante...
Viver uma vida morta ou agonizante não é viver... Mas eu quero viver plena,
integral, intensamente, ainda que esta vida plena seja um eterno sofrer por ti,
Senhor... Sofrer por ti é a vida mais intensa e genuína do que viver sem ti...
Quem não te vive não te sofre – infeliz desse homem!... Melhor lhe fora não ter
nascido! ...
Assim creio e descreio eu, Senhor – à luz noturna dos teus astros, sempre
presentes e sempre ausentes...
Amém...
Foi necessário que eu dissesse o que disse, a fim de desabafar o meu coração.
Não havia, neste planeta, creatura assaz forte para suportar esse temporal,
para ouvir indene tão terríveis verdades. Nem havia um ser bastante largo e
sereno para receber esse dilúvio de queixas e impropérios que lancei contra ti.
Tu és, possivelmente, o único ser que não me queira mal pelo que disse. As
tuas creaturas, mesmo as que vivem com o teu nome à flor dos lábios e com os
teus símbolos nas vestes, me considerarão, talvez, irreverente, blasfemo,
herege, ateu, luciferino, porque algumas das coisas que eu disse de ti são
grandes demais para caberem nos estreitos moldes da nossa humana filosofia.
Entretanto, basta-me saber que tu me conheces e pões na balança o sincero
amor que te consagro, no meio de todas essas noites da inteligência.
Não fosses tu o grande amor da minha vida, e não serias a dor imensa do meu
coração. O indiferente ou semi-amante nada sofre com as vastas escuridões
que te circundam... Vive feliz na tépida superfície da sua vida ou pseudovida –
esse infeliz...
E é por isto que a vida humana oscila sempre entre dois extremos que lutam
por harmonizar a sua vasta polaridade...
Entretanto, meu Deus, prefiro sofrer neste céu infernal a gozar num limbo sem
contrastes...
Mais me encanta o mistério da noite estrelada do que a claridade dum dia sem
enigmas...
Tu és uma noite imensa...
Tu és um universo sideral...
Amar-te é sofrer-te...
Sofrer-te é gozar-te...
É por isto, Senhor, que todos os impropérios que te lancei à face, nas páginas
deste livro, são outros tantos protestos de amor...
De amor noturno...
De amor doloroso...
Huberto Rohden
Nasceu na antiga região de Tubarão, hoje São Ludgero, Santa Catarina, Brasil
em 1893. Fez estudos no Rio Grande do Sul. Formou-se em Ciências, Filosofia
e Teologia em universidades da Europa – Innsbruck (Áustria), Valkenburg
(Holanda) e Nápoles (Itália).
Rohden não está filiado a nenhuma igreja, seita ou partido político. Fundou e
dirigiu o movimento filosófico e espiritual Alvorada.
Ao fim de sua permanência nos Estados Unidos, Huberto Rohden foi convidado
para fazer parte do corpo docente da nova International Christian University
(ICU), de Metaka, Japão, a fim de reger as cátedras de Filosofia Universal e
Religiões Comparadas; mas, por causa da guerra na Coréia, a universidade
japonesa não foi inaugurada, e Rohden regressou ao Brasil. Em São Paulo foi
nomeado professor de Filosofia na Universidade Mackenzie, cargo do qual não
tomou posse.
Nos últimos anos, Rohden residia na capital de São Paulo, onde permanecia
alguns dias da semana escrevendo e reescrevendo seus livros, nos textos
definitivos. Costumava passar três dias da semana no ashram, em contato com
a natureza, plantando árvores, flores ou trabalhando no seu apiário-modelo.
Maravilhas do Universo
Alegorias
Ísis
Por mundos ignotos
Coleção Biografias
Paulo de Tarso
Agostinho
Por um ideal – 2 vols. autobiografia
Mahatma Gandhi
Jesus Nazareno
Einstein – o enigma do Universo
Pascal
Myriam
Coleção Opúsculos
Catecismo da filosofia
Saúde e felicidade pela cosmo-meditação
Assim dizia Mahatma Gandhi (100 pensamentos)
Aconteceu entre 2000 e 3000
Ciência, milagre e oração são compatíveis?
Autoiniciação e cosmo-meditação
Filosofia univérsica – sua origem sua natureza e sua finalidade