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O CONCEITO DE REPRESENTAÇÃO

LITERATURA, RELIGIÃO E CINEMA

O mundo é ‘re-presentado’, tornado mais uma vez presente.

Sophia de Mello Breyner Andresen (1991:341)

1. IMITAÇÃO E MIMESE

Com as reflexões de Platão e Aristóteles, instauram-se duas visões sobre a

(arte de) imitação: o discípulo de Sócrates condena-a, apelando mesmo à «(...)

necessidade de a recusar em absoluto (...)», pois «(...) todas as obras dessa

espécie se (…) afiguram ser a destruição da inteligência dos ouvintes (...).»

(Platão, 1972:451). Este sentido negativo atribuído à imitação é justificado por

«(...) o poeta imitador instaurar na alma de cada indivíduo um mau governo,

lisonjeando a parte irracional (...), que está sempre a forjar fantasias, a uma

enorme distância da verdade.» (id.:472). Se as existências do mundo sensível

são cópias das ideias puras, modelo ideal, o artista, ao imitá-las, produz imagens

de imagens do arquétipo, cópia da cópia, simulacros, pelo que se distancia duas

vezes do real, afastando o homem da contemplação da verdade. O poeta «imita»

pessoas que actuam, transformando-se, pelo discurso directo das

representações dramáticas, nas personagens, dando vida e alimento às paixões,

suscitando ilusões e falsas crenças, sem conformidade com a verdade universal

das ideias. Daí, a «mimesis» ser um processo enganador e perigoso para a alma,

sendo a imitação perturbadora e deformadora da realidade.

O filósofo peripatético defende que «(...) imitar é congénito no homem

(...)» (Aristóteles, 1986:106), faculdade inerente ao ser humano desde que

1
nasce, dado tratar-se do modo como aprende e apreende o mundo e que o

diferencia dos animais. Segundo Aristóteles, a arte seria imitação por imitar a

natureza, suprindo as suas deficiências, entendendo-se a «mimesis» como uma

acção técnica recriadora da realidade, não repetição, mas analogia, semelhança

– que o produto artístico seja não verdadeiro ou falso, mas possível, provável,

verosímil, visando o universal e não o particular. A imitação poética é, pois,

imitação criadora. O objecto de todas as artes é a imitação de homens que

praticam acções, imitando-os melhores do que são, na tragédia, ou

ridicularizando-os, na comédia. Daí, pois, que o feio possa agradar.

A obra de arte (um quadro, por exemplo) será como uma duplicação

fotográfica do mundo sensível, fruto de um desenho interior formado no

espírito, reprodução de uma imagem interior da mente do artista. A imitação

consiste, pois, em apreender elementos da realidade, construindo uma imagem

simbólica. Não consiste em duplicar, dado não existirem duas imagens iguais –

só há imitação quando falta ou existe algo mais do que no modelo.1 A actividade

imitativa é, assim, um processo produtivo e construtivo que implica uma relação

e uma partilha, para que haja conformidade entre a imitação e o objecto

imitado, que permita o reconhecimento e a equivalência. A arte, como mimese,

para ser interpretada, implica um conjunto de normas e convenções, um código

cultural – a obra de arte imita a realidade, mas não é reflexo da realidade, uma

cópia do real. Condicionado pelas expectativas do artista e do receptor,

condicionando uma obra e a sua interpretação, o acto imitativo é determinado

pela tradição e por mecanismos que permitem reconhecer uma imagem como

representação da realidade ou a percepção que dela se tem. Só a familiarização

1
«(...) os poetas imitam homens melhores, piores ou iguais a nós, como o fazem os pintores (...).»
(Aristóteles, id.:105).

2
com as convenções de cada área artística possibilitará julgar a expressão das

ideias ou emoções de uma obra a ela pertencente. Entenda-se, pois, que haja

rejeição do que é inabitual, artisticamente, dada a sua «irrealidade». Veja-se o

caso das vanguardas – por exemplo, a revista Orpheu, em 1915, tinha como

objectivo irritar o burguês, escandalizar, expressando uma vontade de romper

com o passado, de procurar formas novas, de experimentar processos de escrita

diferentes, de demolir, de renovar e inovar.

O texto literário é uma construção da realidade, uma «realidade fictícia»,

um «mundo fictício», é representação num outro plano. Imitar implica uma

composição e uma transformação, que recria metaforicamente a realidade. A

«mimesis» não é imitação ou reprodução, mas produção sob efeitos da

verosimilhança e da subjectividade: o universo que uma obra constrói é um

mundo possível,2 «(...) universo dotado de uma existência puramente textual

(...)» (Reis, 1997:563), construído a partir da leitura e da interpretação que o

autor faz da realidade, da sua relação com ela, com outros textos escritos,

produzido num determinado contexto. A ficção organiza a realidade em termos

de sentido, apresentando um modelo ou uma proposta de realidade ao

representar entidades do mundo real3 – o homem recorre às palavras (é a

linguagem que produz o texto4) para estruturar a sua percepção e representar o

real.5 A interpretação consiste em mostrar algo, é uma explicação de sentido e

uma reformulação – «fazer é refazer» (Goodman, 1995:43), conduzindo a

versões-de-mundos e não uma única, que se considere verdadeira, o que seria

uma hipótese arbitrária. Assim, a ficção é uma pluralidade de mundos, uma

2
«(...) o possível não é mais do que a face invisível do real.» (Magalhães, 2000:258).
3
«Mas foi a minha imaginação (partindo do real, eu sei) a construí-la. Magia para filtrar o mundo, dar-lhe
algum sentido.» (Oliveira, 2003:28).
4
«Toda a designação do real cabe à linguagem.» (Bessiére, 1995:381).
5
«A percepção e a representação não copiam, pela simples razão de que o mundo apreendido é já o
produto da interacção entre sujeito e objecto, entre o homem e o real.» (Buescu, 1990:268).

3
leitura do real: «A work of art that imitates a model of reality thus seems to be

imitating reality itself.» (Steiner apud Buescu, id.:266). O mundo está no texto

enquanto é referido por ele – o texto apenas pode falar do mundo, representá-

lo. A «mimesis» é um «(...) processo impulsivo de imitar, não a realidade, mas

uma sua representação.» (Medeiros, 2000:37).

2. REPRESENTAÇÃO

Considerava Aristóteles: «(...) não é ofício do poeta narrar o que

aconteceu; é, sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é

possível segundo a verosimilhança e a necessidade.» (id.:115).

A representação é uma forma de compreender, de perceber o mundo,

simbólica e referencialmente, mediada por um sujeito; inclui aspectos e

elementos reconhecíveis do «universo real»,6 imagem de algo ausente,

representado interiormente pela imaginação, configurando-o: «(...) há

representação porque há refiguração (...).» (Bessiére, id.:382). Não se trata de

uma cópia servil, mas de uma interpretação, de uma leitura pessoal da

realidade. É a capacidade de idealizar, aliada à ficção e à transposição, que

apresenta metaforicamente a correspondência entre uma pessoa ou objecto e o

seu representante.7 É a ideia de tomar o lugar de: na política, os deputados

representam os seus concidadãos, que os elegeram como seus representantes;

no teatro, os actores representam as personagens criadas pelo dramaturgo, dão-

lhes vida perante os espectadores, presentificam-nas no palco – «(...) a noção de

6
«Não há representação a não ser através de um lugar e de um momento, através de uma personagem e de
uma acção que é a relação da personagem com os objectos desse lugar e desse momento (I. Watt, 1957).»
(apud Bessiére, id.:383).
7
«As goteiras tilintam: como registar este som?» (Oliveira, id.:30). Para representar sons da natureza,
recorre-se à criação de palavras que traduzam o seu significante.

4
representação quer dizer tornar presente, mas implica sempre uma mistura de

presença e de ausência; de identidade e de diferença.» (Matos, 2001:208). A

representação de algo para alguém implica um acordo, um código, uma

convenção para a nova forma de apresentar, através da mimese e da

verosimilhança, a realidade concreta. Aquilo que representa é diferente do que é

representado, assegura a sua presença, substitui o que está ausente – é pela

semelhança que a representação pode ser conhecida, interiorizada na

consciência, presente no espírito.

Pensemos na religião: quando se diz que as estátuas representam santos

ou a Virgem, o que se afirma é a relação aceite, convencionada, da classificação

daquela imagem que denota o objecto que se pretende imitar. Porque não é

mais que uma norma religiosa o acto de ver e de acreditar nas imagens a

santificação dos seres a que correspondem. Nem sequer se podem dizer que são

feitas à imagem de quem representam, pois não existem representações

primitivas da Virgem ou dos santos que nos mostrem, com fidelidade, como

eram, realmente. Acredita-se que representarão como poderiam ter sido, ou

melhores, nos traços físicos e na expressão de beleza e grandeza, à semelhança

ou em substituição do que não está lá. E a cruz - como ler o que representa a

cruz? Nalgumas igrejas, encontram-se imagens de uma figura masculina

crucificada, noutras, tão-só uma cruz nua de madeira. No primeiro caso,

pretende-se que a expressão de dor e sofrimento provoque nos fiéis (apenas?) a

comoção e desperte a consciência da responsabilidade do peso que, diz-se, Jesus

teria assumido para a nossa salvação. No segundo caso, estamos perante um

símbolo, ou um índice, dado remeter para a imagem antes descrita.8 Não é

8
«(...) porque representar é seguramente referir, estar por, simbolizar. Toda a obra representacionista é
um símbolo (...).» (Goodman, id.:104-105).

5
necessário mais para despertar a memória da narrativa da Paixão de Cristo. Mas

aceita-se que a cruz de madeira representa a morte e a promessa da

ressurreição de Jesus. Só para o crente é que as estátuas e a cruz representam o

que a tradição cristã designa como os seus representantes.

E como é representada a figura divina? Tida como omnipotente e

omnipresente, será representável? Pensar no divino, conceber um

conhecimento abstracto, invisível e inefável, remete-nos para o domínio do

irrepresentável. Só pela escrita foi possível caracterizar Deus, as suas qualidades

e manifestações, recorrendo a um discurso sublime. No tecto da Capela Sistina,

na cena da «Criação de Adão», Miguel Ângelo representa Deus como um

homem de cabelos e barbas brancos, pretendendo significar o tempo absoluto, a

sabedoria, a venerabilidade, o respeito e a autoridade que a idade traria. Outra

possível representação da entidade divina é sob a forma de um triângulo branco,

representando a Santíssima Trindade: Pai, Filho e Espírito Santo. E como

interpretar este através de uma pomba branca? As igrejas são, pois,

representação do espaço divino e este modo simbólico de representação,

classificatório e normativo, impõe ao homem o seu lugar diante de Deus,

garantindo o legado perpétuo de uma ideologia e a sua regra de leitura.

Entendendo-se a representação da figura humana como obedecendo à

harmonia das partes, à proporção das superfícies e dos volumes, à dimensão dos

membros e à sua relação com o tronco e a cabeça, ela é posta em causa quando

se pensa numa figura extra-ordinária: o monstro. Mistura de seres, de partes

de seres, miscelânea de órgãos e de medos e lendas aliadas a cargas simbólicas,

o monstro descentra a representação: «Como estranho à ‘perspectiva’, nega este

modo de ‘simbolização’ (...).» (Gil, 1994:68).

6
Pode entender-se o conceito de representação como: a) reprodução na

consciência de percepções passadas – as recordações; b) antecipação de

acontecimentos futuros – a imaginação. Unidas, estas duas perspectivas criam

uma representação de vivências do passado e antecipações do futuro que

encontraremos, por exemplo, nas obras de Júlio Verne, que encantam e

surpreendem pela capacidade de recriação e antevisão. É o que nos apresenta a

ficção científica – a criação de futuros mundos possíveis, não sem colher

elementos da realidade contemporânea, efabulando-os.9 Não é reprodução ou

reflexo da realidade; inventa-a, cria um outro universo: «(…) utópico, mítico, ou

apenas por vir.» (Matos, id.:213). Por isso, o Romantismo defendia o valor da

individualidade do génio criador sobre a imitação de modelos, rejeitando o

conceito de mimese pelo de expressão.

3. AUTO-REPRESENTAÇÃO E ENCENAÇÃO

Representar é colocar algo em vez de, é característica inata ao homem

dada a sua percepção da morte, mantendo «in praesentia» uma construção de

sentido diferente da realidade. A obra de arte é uma construção de algo novo

segundo uma convenção, que adquire uma nova vida enquanto houver leituras e

leitores, dependente da construção de vários intérpretes. A representação

implica, pois, uma construção de que o construtor não é só o autor.

Pensemos na fotografia: forma de documento do real, é uma

representação que deverá ser estudada em comparação com obras literárias,

com quadros e com outras fotografias da mesma época, como forma de

9
«A arte é, antes de mais, criadora, no sentido de desencadear experiências antecipadoras e alternativas
relativamente à realidade de determinado momento e circunstância.» (Matos, id.:213).

7
cruzamento de dados e apuramento de um contexto epocal. A representação

fotográfica permite captar o indivíduo num determinado instante, melhor ainda

que o retrato pintado, tornando desnecessário que o modelo estivesse a posar

várias horas para que o pintor elaborasse, atenta e pacientemente, o quadro.

Mas, inicialmente, manteve-se a encenação, a pose, a construção de cenários,

imaginando-se o retratado qual personagem histórica, fantasiando, pondo em

cena um jogo ficcional que a fotografia guardaria. Posteriormente, o cinema virá

juntar movimento e vida ao retrato. Este não é um simples reflexo da realidade:

através de técnicas fotográficas, como o enquadramento e a iluminação, o

fotógrafo produz uma certa imagem que permanecerá.

É essa vontade de permanecer, de escapar ao desaparecimento, de deixar

marcas ou sinais de si, que justifica a auto-representação, como repetição,

multiplicação de imagens, exemplo de iteração e a negação da morte como

motor da representação. O indivíduo percepciona-se como um ser finito e

desenvolve uma capacidade de criar respostas para a sua tomada de consciência

através de imagens ou textos, objectos que o façam esquecer a sua condição de

mortal:

A representação do Outro ou de si surge pois como manifestação de uma


presença no mundo, como ponto de vista sobre esse mundo, mas também como forma
de potencialmente o recriar ou restaurar. Representar é sempre revolucionar. É sempre
uma forma de protesto contra o desvanecimento do ser no tempo. (Medeiros, id.:36)

Leia-se, agora, um pequeno texto de Maria Judite de Carvalho (1975:25-

27), para reflectir sobre a questão da representação de si próprio:

8
O GRAVADOR

Eu não sabia como era a minha voz; nunca a tinha escutado a sério, com
atenção... Como havia de ser se falo ao mesmo tempo?
Um dia apareceu lá em casa um gravador, e ei-la a entrar-me pelos ouvidos. Isto
é a minha voz? perguntei num espanto. E todos a dizerem que sim, pois claro, que era
exactamente a minha voz, sem tirar nem pôr.
Coisa mais misteriosa! Uma pequena máquina que rasga os véus entre nós e a
nossa voz, que a fixa ali, como ela é, na fitinha castanha, até à curta eternidade das fitas
magnéticas. Ali está ela, a minha voz (dizem todos que sim e eu acredito) a dizer não sei
o quê há três meses e tal, uma frase qualquer sem pés nem cabeça, a que me ocorreu na
altura.
Coisa útil também, já pensaram? Não para gravar canções, nem conversas, nem
frases sem pés nem cabeça, nada disso. Pedir às pessoas que nos são mais queridas, aos
grandes amigos, àqueles que farão tudo por nós, que gravem frases tranquilizadoras que
depois podemos ouvir incessantemente. Frases definitivas sobre o amor e a amizade e a
lealdade e a imperecibilidade das palavras, das frases ditas num momento e logo
petrificadas para todo o sempre, ali, na fitinha giratória. Hei-de gostar sempre de ti.
Você sabe como eu sou seu amigo (ou sua amiga). Nunca seria capaz de uma
deslealdade. Longe de ti, não sou eu. Não tem ninguém tão seu amigo (ou tão sua
amiga). Coisas assim.
A fitinha a voltar atrás a um simples gesto nosso, e nós tranquilos, meu Deus
que tranquilidade. De olhos fechados, de sorrisos nos lábios, a ouvir, a ouvir... A
acreditar, a acreditar... Na tal imperecibilidade, na tal petrificação... Hei-de gostar
sempre de ti. Você sabe como eu sou seu amigo (ou sua amiga). Nunca seria capaz... E
adormecer assim.

O texto é exemplo de uma auto-representação e uma reflexão sobre a

possibilidade (ou desejo) de perenidade de um sujeito, permitida pela gravação

da sua voz. Recorde-se o provérbio latino: «Verba volant, scripta manent» –

parece que os tempos modernos reformularam este dito com o avanço da

técnica que regista, para além do que é escrito, também o que é dito. Num texto

que se representa confessional, uma reflexão pessoal de um «eu», há que

questionar quais os limites entre a verdade e a invenção, entre a pessoa e a

personagem, e qual a diferença e se há cisão entre a realidade e a ficção – quem

9
escreve, oculta-se no que diz; quem fala, fala na sua ausência. Um texto de

ficção é um discurso representativo com uma intenção de fingimento e uma

aceitação do jogo ficcional por parte do leitor – a suspensão voluntária da

descrença –, não implicando uma atitude de verificação: «(…) o que é possível é

plausível (…)», afirma Aristóteles (id.:116). O funcionamento da verosimilhança

consiste em incutir à ficção o «efeito de real».

Neste texto, o sujeito descobre-se, tem uma revelação de si próprio, ao

ouvir a sua voz gravada e apercebe-se de não ter consciência de como soa. Mais

atento ao acto de falar e às reacções do receptor, não desenvolvera a capacidade

de se ouvir a si próprio e necessita da confirmação dos outros. Daí, a surpresa e

o desconhecimento que se tornam reconhecimento, «espanto». «Coisa mais

misteriosa!»: o gravador ou a consciência de si, no rasgar de «(…) véus entre nós

e a nossa voz (…)», marca do sujeito, qual pintura rupestre, legado verbal,

permanência da voz, «(…) fixa ali, (...) até à curta eternidade das fitas

magnéticas.». Mas será só das fitas, ou também o sujeito se consciencializa da

sua efemeridade e da daqueles que lhe são queridos? Solicita-lhes, pois, que

também dêem registos de si, suas representações, assinatura, como

«praesentia in absentia»,10 do ser, do discurso, dos sentimentos partilhados,

quando não estiverem perto, repetíveis, iteráveis, em momentos de inefável

solidão e frustração humanas. «Frases definitivas», «imperecibilidade das

palavras», «petrificadas», são lexemas que remetem para a ideia da morte, do

sujeito, das outras pessoas, dos seus discursos, mas permanentes na memória:

«(…) meu Deus, que tranquilidade. De olhos fechados, de sorrisos nos lábios, a

ouvir, a ouvir... A acreditar, a acreditar... (...) E adormecer assim.».

10
«(...) a ausência é o lugar primeiro do discurso (...).» (Foucault, 1992:31).

10
4. A REPRESENTAÇÃO NAS ARTES PLÁSTICAS E NO CINEMA

O Renascimento é o grande eixo em torno do qual gira a problemática da

representação, com a noção de perspectiva: a projecção de um espaço dentro do

espaço do quadro. No século XVI, os artistas italianos construíram a câmara

escura, uma espécie de caixa escura através da qual o artista copiava sobre

grandes telas o contorno das imagens invertidas que nelas se projectavam.

Canaletto (1697-1768) foi o primeiro a desenhar com exactidão cenas em

perspectiva, através deste processo – recriando a perfeita ilusão de espaço físico

no espaço plano, representando a realidade miniaturizada numa superfície

plana, reproduzia indícios de profundidade, qualquer que fosse a distância a que

se encontrasse o observador. Uma ilusão torna-se realidade, a partir de um

ponto (de fuga) que atrai o olhar, tal como na representação teatral um foco de

luz orienta o olhar dos espectadores para o palco ou destaca um espaço ou uma

personagem – a visão é o sentido verdadeiramente criador da realidade, pois a

ideia de profundidade é uma construção. A introdução das noções de espaço e

de tempo permitiu que a representação pictórica tivesse uma referência ao

mundo objectivo, sendo a ideia de tempo, nos quadros, representada da

esquerda para a direita.

Quanto à representação do real, a arte grega era profundamente

mimética, em busca da «mimesis» perfeita na representação da figura humana,

procurando aperfeiçoar o real e transformá-lo em símbolo, ideal de força, beleza

e perfeição nas proporções. Os egípcios representavam a figura humana

estilizada, com ausência da tridimensionalidade, não dominando o escorço.11

11
Representação de objectos em proporções menores que a realidade, efeito de perspectiva segundo o
qual os objectos, vistos de frente, apresentam dimensões reduzidas.

11
Pelo contrário, representavam perfeitamente plantas e animais. Por

comparação, a arte da Idade Média é religiosa, simbólica, não mimética,

querendo reproduzir o divino em grandeza, valorizando e destacando o que é

mais importante num tamanho maior, como na arte egípcia, dado a diferença no

tamanho assinalar uma diferença na importância. Atente-se na (des)proporção

das grandes catedrais que esmaga o homem.

A fotografia, imagem colada ao real, instituirá uma crise na representação

com o desaparecimento do «parecido», apesar de, inicialmente, ter um carácter

pictórico com a tentativa de fazer quadros, recorrendo a cenários e à pose.

Assiste-se ao desejo de posse da imagem, acessível a um maior número de

pessoas, fruto do desejo de superar a morte e dar continuidade à vida,

apropriando-se de uma memória viva que substitui o real.

No seu seguimento, o cinema será a representação total e completa da

realidade, ao reproduzir o movimento. Forma de documentar o real através da

imagem e do movimento, o cinema deriva de uma particularidade: a

persistência retiniana. Dado que o olho conserva durante uma fracção de

segundo a impressão do que vê, basta passar à sua frente, com rapidez

suficiente, imagens encadeadas umas nas outras para que se possa reconstituir o

movimento – o olho consegue-o facilmente, pois cada imagem surge antes que a

anterior tenha desaparecido da retina.

Atente-se, agora, no seguinte excerto do Idílio XV de Teócrito: «Ó

venerável Atena, que tecedeiras as conseguiram fazer? Que artistas puderam

desenhar com tanta exactidão estas figuras? Que verdade nas posições, que

verdade nos movimentos! Não parecem tecidas, parecem vivas. O homem é

realmente habilidoso.» (Rodrigues, 2000:123). Não existe imagem sem o olhar,

que alia e institui uma relação entre recreação e recriação (Auerbach,

12
2002:319) – perante uma tapeçaria, o observador não se cansa de exultar as

características da representação (não animada) que admira, mas dotada de tal

animismo que parece adivinhar um avanço técnico futuro que fixará e

representará a realidade em movimento. A tapeçaria evoca a colagem de

fotografias ou fotogramas que se sucedem a um dado ritmo e com uma

determinada rapidez. Repare-se na caracterização: «tanta exactidão»,

«verdade», «parecem vivas» – apesar de imóveis nos seus gestos, as imagens

parecem ganhar vida e dão ao observador a impressão de assistir a uma cena

quotidiana. E será essa a missão do cinema – aliar o divertimento a

representações possíveis da realidade; não reprodução do real, ilusão, mas a

apresentação de histórias com que os espectadores se poderão identificar e,

nesse jogo, ter um efeito catártico, permitindo os possíveis que a vida não

concede.

No cartaz que acompanha o filme de Alejandro González Iñárritu ressalta

uma pergunta: «Quanto pesa a vida?». A resposta é o título do filme: 21 gramas

(EUA, 2003). É esse, assegura a ciência, o peso que se perde no momento da

morte. Vinte e um gramas separam o tudo do nada. Tão pouco e tanto. Mas o

que impressiona é a possibilidade de representar a vida e, opostamente, ser

possível medir, pesar, calcular o significado da morte – uma ausência de peso. E

como é ele perdido? De que órgão? De que forma? Sob que forma? Voltamos à

questão do irrepresentável – mas a ciência afirma... Objectivamente, parece ser

facto (representado numa ficção12) qual é a diferença entre a vida e a morte.

Noutro filme do mesmo ano, do realizador francês Gaspar Noe, intitulado

Irréversible, é apresentado ao espectador uma história de três amigos – uma

12
«‘Fabricação’ tornou-se um sinónimo de ‘falsidade’ ou ‘ficção’ por oposição a ‘verdade’ ou ‘facto’.
(...) a ficção é fabricada e o facto descoberto.» (Goodman, id.:141).

13
mulher, o seu namorado e o seu ex-namorado – e a sua reacção à violação dela,

após a saída de uma festa. A forma inovadora de apresentação/representação

deste filme é, de igual modo, recordada como a crueza do episódio central da

sua história, contada do final para o princípio – isto é, quebrando a norma, a

regra de contar uma história linear, do início até ao seu desfecho, aqui, o

espectador é chamado a intervir, a participar, a ter um papel activo de

acompanhamento, de decifração e reconstituição do que lhe é narrado, pois tem

que fazer ligações constantes e permanentes entre as cenas que já viu, sabendo,

no início, como acaba a história, não porque deduza de imediato ou lhe seja

oferecido tão simplesmente essa conclusão, mas porque tem, logo à partida,

conhecimento do final do filme que se encontra a ver.

Representação da literatura realista do século dezanove emoldurada pela

perspectiva do Renascimento, o cinema passou de arte de feira para os pobres

para entretenimento que disputa o lugar das artes plásticas e da literatura.

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Portuguesa. Lisboa/S. Paulo, Editorial Verbo, 2.º volume, cols. 560-566.

RODRIGUES, Nuno Simões (org.) (2000). Traduções Portuguesas de Teócrito.

Lisboa, Universitária Editora.

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in Vértice n.º 150. Lisboa, Editorial Caminho, Janeiro/Fevereiro de 2010,

pp. 42-52.

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RESUMO

A recusa platónica da imitação, como perturbadora e deformadora da

realidade, e a defesa aristotélica, que considera a imitação como criadora,

marcaram os primórdios da representação simbólica da realidade. Tendo por

base uma relação de equivalência que permite o reconhecimento do real,

constrói-se um mundo fictício, possível, recriando metaforicamente a realidade,

numa representação que a configura através de uma leitura pessoal.

Através de uma regra normativa, as figuras religiosas representam o

divino e a arte pictórica procurará representar o real nas suas características de

espaço, tempo e profundidade. O cinema será a representação total e completa

da realidade, ao reproduzir e fixar o movimento.

A actividade imitativa é um processo produtivo que implica uma

relação e uma partilha, permitindo o reconhecimento e a equivalência com o

real.

O conceito de representação pode ser lido como reprodução na

consciência de percepções passadas – as recordações – e antecipação de

acontecimentos futuros – a imaginação.

A auto-representação é manifestação de uma presença, de marcas ou

sinais de si, e negação da morte através de imagens e palavras como

perenidade de um sujeito.

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