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TEXTOS

FUNDAMENTAIS
DE FICÇÃO EM
LÍNGUA
PORTUGUESA

Patrícia Hoff
Narrativa, realidade
e representação:
questões de princípio
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

n Relacionar as noções de narrativa, realidade e representação.


n Identificar os elementos essenciais da narrativa literária.
n Diferenciar os tipos de foco narrativo empregados na narrativa
literária.

Introdução
Você alguma vez já ficou em dúvida sobre se algo é fato ou fic-
ção? Saiba que esse também é um problema comum para os estudos
literários, que motiva inúmeros debates. Em tais debates, são centrais as
noções de realidade e representação, assim como as possíveis fronteiras
entre elas.
Outro conceito importante para a apreensão da realidade por meio
da representação é o conceito de narrativa. Em linhas gerais, a narrativa
serve para contar histórias, criando uma certa ordem para os fatos caó-
ticos da existência. E, em se tratando da narrativa literária, os fatos são
ordenados segundo a adoção de alguns elementos e de determinada
perspectiva de narração.
Neste texto, você irá estudar as noções de narrativa, representação e
realidade. Também vai compreender como elas se relacionam e se dis-
tanciam. Além disso, irá conhecer os elementos essenciais das narrativas
literárias e do foco narrativo nelas empregado.

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Representação e realidade: princípios


filosóficos
Embora possam ser entendidas muitas vezes como opostas, as noções de
“representação” e “realidade” não são rígidas e definitivas. Ao longo da his-
tória, surgiram muitas perspectivas e muitos debates sobre esse tema. Um
dos debates mais famosos é sem dúvida o gerado pelas discordâncias entre
Platão e Aristóteles, lá na Antiguidade, mais precisamente no século 4 a.C.
Cronologicamente, a proposta de Platão é mais antiga. Em seu livro
A República (PLATÃO, 2001), ele classifica a poesia e a pintura como imi-
tação (mimesis), mas o faz de um modo pejorativo. Como exemplo, Platão
menciona uma mesa. O filósofo afirma que o marceneiro, ao produzir uma
mesa, realiza uma cópia do modelo já existente no mundo das ideias (a mesa
que você conhece e reconhece como mesa). Mas o pintor, ao representar a
mesa na tela, efetua a cópia da cópia: ele copia na tela a cópia da mesa feita
pelo marceneiro, que, por sua vez, copia a mesa de acordo com a ideia que se
tem de “mesa”. Veja na Figura 1 um exemplo da mímesis platônica.

Figura 1. Exemplo da mímesis platônica.


Fonte: Mesa: donatas1205 / Shutterstock.com; Tela: Zonda / Shutterstock.com

Algo semelhante acontece com a poesia: ao imitar os gestos e as ações


humanas, o poeta está, da mesma forma, copiando os gestos e as ações que
são elas mesmas cópias dos gestos e das ações possíveis da vida das pessoas.

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Em função dessa distância que os poetas possuem da realidade (sendo que,


para Platão, a realidade é esse mundo das ideias), o trabalho artístico era visto
por Platão como enganoso e sem seriedade.
Alguns anos depois, Aristóteles, o discípulo mais famoso de Platão, se-
ria o responsável por ampliar o horizonte dessa discussão sobre o tema da
representação. Na sua Arte Poética (ARISTÓTELES, 1995), ele emprega o
termo mimesis num sentido que foge ao da mimesis platônica (que é ligada
às formas/ideias). Em Aristóteles, mimesis é a representação artística – no
caso, a imitação propriamente dita. Assim, ao contrário de Platão, Aristóteles
valoriza a arte como representação do mundo. Em função disso, passa a ver
o que hoje se chama de “belas-artes” (literatura, escultura, música, retórica,
pintura, etc.) como técnicas, sendo a obra de arte pensada em conformidade
com regras e procedimentos de fabricação. O artista – aquele que domina
uma determinada arte – segue essas normas para atingir o fim a que a arte
se destina.

Aristóteles foi provavelmente o primeiro teórico de arte da história, pois ele se


dedicou a considerar as obras de arte de acordo com os métodos (ou meios) de que
se utilizam e os objetos que imitam/representam. Além disso, foi capaz de destacar
qualidades e defeitos das obras artísticas de sua época.

No que diz respeito ao tema da representação, Aristóteles legou para a


humanidade a ideia de que representação e realidade são conceitos inter-
-relacionados, mas apenas no seguinte sentido: a representação é um tipo
especial de “manipulação” da realidade. Para criar aquela representação, o
artista irá adotar os recursos que julgar necessários e estabelecer as distâncias
que considera relevantes entre o real e o ficcional. Os diversos movimentos
artísticos que fazem parte da história da arte são, em sentido estrito, as
diferentes formas que os artistas elegeram para acessar a realidade a partir
de suas obras.
Ainda nesse contexto, é importante que você conheça o conceito aristoté-
lico de verossimilhança. Segundo Aristóteles, a representação deve sempre
seguir certos critérios que a tornem possível. Ou seja, seus efeitos precisam
estar de acordo com os efeitos da realidade para que ela possa, enfim, suscitar

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exatamente esses efeitos no espectador. Isso não significa que uma obra deva
sempre reproduzir o modo como as pessoas veem a realidade. Significa, na
verdade, que uma obra deve estabelecer com a realidade uma relação de
lógica e necessidade com as referências que ela mesma suscita, de modo
que possa ser entendida justamente a partir dessa relação. O argumento é o
seguinte: de nada adianta uma obra que não produz sentidos, que não suscita
impressões e interpretações – e produzir sentidos, nesse caso, é dialogar com
a organização do mundo vivenciada por todos. A verossimilhança, portanto,
é uma lei que opera tanto interna quanto externamente: ela atua no interior da
obra, costurando as relações entre os elementos que a compõem – as relações
entre enredo, personagens, tempo, espaço, narração, etc. –, ao mesmo tempo
em que opera com os fatos e as coisas do mundo a que necessariamente faz
referência.
Uma obra verossímil é a que utiliza a realidade como pano de fundo, ainda
que a obra não adote as mesmas regras do mundo factual. Esse pano de fundo
é necessário para que o espectador consiga estabelecer o que você pode chamar
de pacto ficcional. O espectador tem de saber que o que a obra apresenta é
uma história imaginária, mas nem por isso deve pensar que o autor dessa
obra está contando mentiras. É o que ocorre, por exemplo, quando você lê a
história da Chapeuzinho Vermelho, na qual há um lobo que fala. No mundo
real, você sabe que os lobos, ao menos no seu estágio atual de evolução, não
possuem um aparelho fonador suficientemente desenvolvido para que articu-
lem palavras, tampouco têm a consciência linguística para se comunicarem
por intermédio de um código verbal. Entretanto, uma vez que você aceite o
acordo ficcional assim entendido, saber que no mundo real o lobo é incapaz
de falar não impedirá a sua apreensão do mundo ficcional onde lobos falam e
conversam com crianças. Você, ao firmar o pacto ficcional, atribui um valor
de verdade à obra, embora não esteja comparando em igual medida o mundo
ficcional ao mundo real.

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Ela surpreendeu-se com a aparência da vovozinha, de Gustave Doré, 1867.


Fonte: Doré (1867).

O conto de fadas é uma narrativa curta com elementos fantásticos. Seus personagens
normalmente têm origem em tradições folclóricas, como anões, dragões, duendes,
fadas, gigantes, gnomos, grifos, sereias, animais falantes, unicórnios ou bruxas. Além
disso, as ações geralmente envolvem magia ou encantamentos. O gênero se difere
das lendas, que implicam a crença na veracidade dos eventos narrados, e das fábulas,
que trazem um ensinamento moral explícito.

A narrativa: conceito e elementos


Para que você estude mais a fundo o conceito de narrativa e os elementos que
a compõem, cabe mais uma vez retornar à Arte Poética de Aristóteles (1995).
Lá, o filósofo afirma que a “arte poética” (as artes em geral) é realizada por
meio da disposição do ritmo, da linguagem e da harmonia. Ele distingue
diferentes gêneros que exploravam, cada um a seu modo, certos elementos.
Alguns gêneros abordados por Aristóteles não são mais praticados, como o
ditirambo (um canto coral entusiástico e exuberante dirigido aos deuses), mas
outros gêneros, como a epopeia e o teatro, ainda hoje podem ser estudados
segundo os critérios aristotélicos. Assim, é possível afirmar que o filósofo deu

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muitas contribuições para as teorias das artes que você estuda atualmente. É
dele, por exemplo, o conceito de catarse e a divisão dos gêneros miméticos
em função dos meios narrativo e dramático.

A obra Arte Poética, de Aristóteles (1995), não chegou completa aos dias atuais. Somente
a parte referente à tragédia está inteira. Segundo Aristóteles, a tragédia é capaz de
promover a catarse, ou seja, tem uma função ético-pedagógica que incide sobre o
espectador, fazendo-o sentir os sentimentos narrados e vivenciá-los interiormente,
experimentando em seguida a libertação. Para entender esse conceito, pense, por
exemplo, em quando você assiste a um filme e chora. Você chora porque vivenciou o
efeito catártico gerado pelo filme, porque experimentou intensamente a problemática
da obra e se “purificou” com ela.

Essa divisão das obras artísticas em gêneros, em especial as obras literá-


rias, vem sendo desde então discutida, ampliada e alterada, satisfazendo às
características de cada época. Os gêneros literários tradicionalmente podem
ser divididos ou em dois grupos – poesia e prosa – ou em três categorias –
lírico, narrativo e dramático.
A primeira classificação é baseada no fator ritmo. Nela você encontra:

n Poesia: gênero com ritmo marcado – com a repetição de fonemas, os


acentos, o jogo de pausas vocais, a pontuação especial, etc.
n Prosa: gênero com ritmo não marcado – com a preservação do ritmo
espontâneo que a linguagem verbal possui em seu uso cotidiano, fora
da literatura.

A segunda classificação leva em conta o fator estilo, que divide os gêneros


em seus diferentes tipos:

n Lírico: voltado para a expressão de sentimentos e emoções – como a


exaltação de alguém, um acontecimento ou um sentimento, como o
amor. O gênero lírico se caracteriza por não contar histórias.
n Narrativo: usado para contar histórias. A história é apresentada ao
leitor por meio da mediação de um narrador. Pode conter narrações,
descrições, diálogos e dissertações.

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n Dramático: gênero também usado para contar histórias, mas estas são
apresentadas ao leitor sem a mediação de um narrador, ou seja, são
contadas diretamente pelos diálogos das personagens.

Agora, você irá conhecer melhor a caracterização do gênero narrativo e,


mais adiante, da narrativa literária.

Em linhas gerais, o conceito de “narrativa” está relacionado ao hábito de contar histórias.


Não se resume, portanto, à literatura (seja ela oral ou escrita), pois quadros, filmes,
músicas, entre outras expressões artísticas, também podem ter por função primordial
contar histórias e produzir sentidos.

O hábito de contar histórias acompanha o ser humano há muitos séculos.


Nesse contexto, se pode afirmar que a narrativa surgiu da necessidade de
criar uma certa unidade para essas histórias. Assim, as narrativas desempe-
nham a função de oferecer um certo ordenamento, uma forma no tumulto da
experiência humana.
A narrativa literária, por sua vez, é caracterizada pela dinamicidade, pela
objetividade e por vezes pela subjetividade, mescladas às ações que se apresen-
tam. O texto narrativo é um sistema complexo e imprevisível de possibilidades
interpretativas, que trabalha continuamente com o real e o imaginário. A partir
das situações vividas pelas personagens, a narrativa aproxima realidade e
representação de fatos, lidando continuamente com o possível e o impossível.
Assim, a narrativa tem por objetivos, além de relatar, produzir informação,
aprendizado e/ou entretenimento. Nesse sentido, o leitor pode se apropriar
dos sentidos que ecoam da narrativa até se identificar com o que está lendo.
A narrativa se estrutura conforme uma rede de relações entre os seguintes
elementos essenciais:

n Enredo: aqui se fundamentam e se desenvolvem as ações da estrutura


da narrativa.
n Personagens: executam as ações. Dividem-se em protagonista (perso-
nagem principal), coadjuvantes (personagens secundárias) e antagonista
(personagem que se opõe à personagem principal).

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n Narrador: relata os fatos. Existem vários tipos de narradores: narrador-


-personagem, narrador-observador, narrador onisciente, entre outros.
A identificação do narrador depende da perspectiva adotada perante
os fatos narrados: basicamente, ou o narrador participa da história ou
é somente um espectador.
n Tempo: momento ou época em que acontecem os fatos. O tempo poderá
ser cronológico (linear) ou psicológico (não linear).
n Espaço: local ou cenário onde se desenrolam os fatos narrados.

Tipos de narrativa
Você já viu que o gênero narrativo serve para contar histórias e é estruturado
conforme alguns elementos. Agora, acompanhe as definições de alguns dos
principais tipos de narrativa.

n Epopeia: longo poema narrativo, de tom solene e elevado. O tema da


epopeia, ao contrário daqueles dos demais tipos de narrativa, é limitado,
tratando sempre de um assunto heroico e nacional. Constitui a primeira
modalidade narrativa criada e é escrita em verso. Seus exemplos má-
ximos são Ilíada e Odisseia, de Homero.
n Romance: narrativa longa que envolve um número considerável de
personagens (em relação à novela e ao conto), bem como um maior
número de conflitos e tempo e espaço mais dilatados. Embora haja
romances que datem do século XVI (D. Quixote de La Mancha, de
Cervantes, por exemplo), esse tipo de narrativa se consagrou sobretudo
no século 19, assumindo o papel de refletir a sociedade burguesa, e vem
se renovando desde então.
n Novela: tipo mais curto de romance, ou seja, tem um número menor
de personagens, conflitos e espaços, ou os tem em igual número ao
romance, com a diferença de que na novela a ação no tempo é mais
veloz. Um exemplo de novela seria Max e os felinos, de Moacyr Scliar,
na qual o personagem central, Max, vive muitas aventuras.
n Conto: narrativa mais curta que tem como característica central con-
densar conflito, tempo e espaço, bem como reduzir o número de per-
sonagens. O conto é um tipo de narrativa tradicional, isto é, já adotada
por muitos autores nos séculos XVI e XVII, como Cervantes e Voltaire.
Atualmente tem adquirido atributos diferentes, como deixar de lado
a intenção moralizante e adotar o fantástico ou o psicológico para
elaborar o enredo.

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n Crônica: texto curto, leve, que geralmente aborda temas do cotidiano.


É um texto híbrido, que pode ter diferentes funções além de narrar,
como contar, comentar, descrever e analisar.

Foco narrativo
Analisar os tipos de narrador, embora essencial para os estudos literários,
não se trata de uma tarefa simples. O estudo do foco narrativo pode ser
defi nido como um problema técnico da ficção que supõe fazer algumas
perguntas fundamentais, sintetizadas por Lígia Chiappini em O foco nar-
rativo (LEITE, 1985):

1. Quem conta a história? Trata-se de um narrador em primeira ou em


terceira pessoa; de uma personagem em primeira pessoa; ou não há
ninguém narrando?
2. De que posição ou ângulo em relação à história o narrador conta (por
cima, na periferia, no centro, de frente, ou mudando)?
3. Que canais de informação o narrador usa para comunicar a história
ao leitor? (palavras? pensamentos? percepções? sentimentos? do au-
tor? da personagem? ações? falas do autor? da personagem? ou uma
combinação disso tudo?)
4. A que distância ele coloca o leitor da história? (próximo? distante?
mudando?)

Após coletar tais propriedades da narração, você pode adotar uma tipolo-
gia básica de narradores para caracterizar o foco narrativo empregado. Uma
tipologia interessante é a de Norman Friedman (2002), apresentada no famoso
ensaio O ponto de vista na ficção. Friedman (2002) vai elencar as seguintes
classificações:

Autor onisciente intruso

Esse tipo de narrador tem a liberdade de narrar à vontade, de se colocar acima


ou atrás, adotando um ponto de vista divino para além dos limites de tempo
e espaço. Pode também narrar da periferia dos acontecimentos, ou do centro
deles, ou ainda se limitar a narrar como se estivesse de fora, ou de frente,
podendo, inclusive, mudar e adotar sucessivamente várias posições. Como
canais de informação, predominam suas próprias palavras e seus pensamentos
e percepções. Seu traço característico é a intrusão, ou seja, seus comentários

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sobre a vida, os costumes, os caracteres, a moral, que podem ou não estar


entrosados com a história narrada.

Narrador onisciente neutro

Narrador em terceira pessoa que, embora semelhante no modo de narrar (ân-


gulo, distância, canais) ao autor onisciente intruso, se distingue pela ausência de
instruções e comentários sobre temas gerais ou mesmo sobre o comportamento
das personagens. Apesar disso, sua presença, se interpondo entre o leitor e a
história, é sempre muito clara.

“Eu” como testemunha

Narra em primeira pessoa, mas é um “eu” já interno à narrativa. Ele vive os acon-
tecimentos aí descritos como personagem secundária que pode observar, desde
dentro, os acontecimentos. Portanto, os oferece ao leitor de modo mais direto,
mais verossímil. No caso do “eu” como testemunha, o ângulo de visão é, neces-
sariamente, mais limitado. Como personagem secundária, ele narra da periferia
dos acontecimentos, sem conseguir saber o que se passa na cabeça dos outros;
ele pode apenas inferir, lançar hipóteses, se servindo também de informações, de
coisas que viu ou ouviu e, até mesmo, de cartas ou outros documentos secretos que
tenham caído em suas mãos. Quanto à distância em que o leitor é colocado, pode
ser próxima ou remota, ou ambas, porque esse narrador tanto sintetiza a narrativa
quanto a apresenta em cenas. Nesse caso, sempre narra as cenas como as vê.

Narrador-protagonista

O narrador, personagem central, não tem acesso ao estado mental das demais
personagens. Narra de um centro fixo, limitado quase que exclusivamente às
suas percepções e aos seus pensamentos e sentimentos.

Onisciência seletiva múltipla

Não há propriamente narrador. A história vem diretamente da mente das


personagens, das impressões que fatos e pessoas deixam nelas. Difere da
onisciência neutra porque agora o autor traduz detalhadamente os pensamentos,
percepções e sentimentos, filtrados pela mente das personagens – enquanto o
narrador onisciente os resume depois de terem ocorrido. O que predomina no
caso da onisciência múltipla, como no caso da onisciência seletiva que vem

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logo a seguir, é o estilo indireto livre, ao passo que na onisciência neutra o


predomínio é do estilo indireto. Os canais de informação e os ângulos de visão
podem ser vários, nesse caso.

Onisciência seletiva

Essa é uma categoria semelhante à anterior, mas que recai sobre uma só perso-
nagem, e não muitas. É, como no caso do narrador-protagonista, a limitação a
um centro fixo. O ângulo é central, e os canais são limitados aos sentimentos,
pensamentos e percepções da personagem central, sendo mostrados diretamente.
Além desses, Friedman aponta para tipos de narração que acontecem com
a exclusão tanto do autor quanto do narrador. Isso ocorre quando se eliminam
os estados mentais e se limita a informação ao que as personagens falam ou
fazem – como no teatro –, com breves notações de cena amarrando os diálogos.
Assim, surgem os tipos modo dramático e câmera.

Modo dramático

Em virtude da eliminação da figura presente do narrador ou da voz narrativa,


nesse tipo narrativo cabe ao leitor deduzir as significações a partir dos movi-
mentos e das palavras das personagens. O ângulo é frontal e fixo, e a distância
entre a história e o leitor, pequena, já que o texto se faz por uma sucessão
de cenas. Trata-se de uma técnica dificilmente sustentável em textos longos.

Câmera

Significa o máximo em matéria de “exclusão do autor”. Essa categoria serve


àquelas narrativas que tentam transmitir flashes da realidade como se fossem
apanhados por uma câmera, de modo arbitrário e mecânico.

No momento em que são apontados os tipos de narrador, Friedman (2002) salienta


que, embora seja possível identificar, por meios internos da obra, a existência de um ou
outro tipo, se trata sempre de uma questão de predominância e não de exclusividade.
Isso porque é difícil encontrar, numa obra de ficção, especialmente quando ela é rica
em recursos narrativos, qualquer uma dessas categorias em estado puro.

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Para colocar em prática a análise do foco narrativo, você pode buscar estes contos
brasileiros. Neles é possível identificar cada um dos tipos de narradores descritos.
Boa leitura!

Tipos de Obra em que


narrador Conto Autor foi publicado

Autor onisciente Machado


“O espelho” Papéis avulsos, 1882
intruso de Assis

Narrador “O inimigo Caio Fernando Pedras de


onisciente neutro secreto” Abreu Calcutá, 1977

“Eu” como “Terceira João Guimarães Primeiras


testemunha margem do rio” Rosa estórias, 1962

Narrador- “Você me paga,


Dalton Trevisan Pão e sangue, 1988
-protagonista bandido”

Onisciência Graciliano
“Baleia” Vidas secas, 1938
seletiva múltipla Ramos

Onisciência Laços de
“O búfalo” Clarice Lispector
seletiva família, 1960

Luís Fernando A mãe de


Modo dramático “Ach, Viena”
Veríssimo Freud, 1985

Notas de Manfredo
Sérgio Rangel, repórter
Câmera “Composição II”
Sant’Anna (a respeito de
Kramer), 1973

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ARISTÓTELES. Arte poética. In: ARISTÓTELES; HORÁCIO; LONGINO. A poética clássica.


São Paulo: Cultrix, 1995.
DORÉ, G. Ela surpreendeu-se com a aparência da vovozinha. 1867. 1 desenho. Disponível
em: <goo.gl/MWVp7C>. Acesso em: 19 abr. 2017.
FRIEDMAN, N. O ponto de vista na ficção: o desenvolvimento de um conceito crítico.
Revista USP, São Paulo, n. 53, p. 166-182, mar./maio 2002.
LEITE, L. C. M. O foco narrativo: (ou A polêmica em torno da ilusão). São Paulo: Ática,
1985. (Princípios).
PLATÃO. A república. 9. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.

Leituras recomendadas
ECO, U. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
GANCHO, C. V. Como analisar narrativas. 7. ed. São Paulo: Ática, 2003. (Série Princípios,
207).
TODOROV, T. As estruturas narrativas. São Paulo: Perspectiva, 2006.

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