Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
FUNDAMENTAIS
DE FICÇÃO EM
LÍNGUA
PORTUGUESA
Patrícia Hoff
Narrativa, realidade
e representação:
questões de princípio
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:
Introdução
Você alguma vez já ficou em dúvida sobre se algo é fato ou fic-
ção? Saiba que esse também é um problema comum para os estudos
literários, que motiva inúmeros debates. Em tais debates, são centrais as
noções de realidade e representação, assim como as possíveis fronteiras
entre elas.
Outro conceito importante para a apreensão da realidade por meio
da representação é o conceito de narrativa. Em linhas gerais, a narrativa
serve para contar histórias, criando uma certa ordem para os fatos caó-
ticos da existência. E, em se tratando da narrativa literária, os fatos são
ordenados segundo a adoção de alguns elementos e de determinada
perspectiva de narração.
Neste texto, você irá estudar as noções de narrativa, representação e
realidade. Também vai compreender como elas se relacionam e se dis-
tanciam. Além disso, irá conhecer os elementos essenciais das narrativas
literárias e do foco narrativo nelas empregado.
exatamente esses efeitos no espectador. Isso não significa que uma obra deva
sempre reproduzir o modo como as pessoas veem a realidade. Significa, na
verdade, que uma obra deve estabelecer com a realidade uma relação de
lógica e necessidade com as referências que ela mesma suscita, de modo
que possa ser entendida justamente a partir dessa relação. O argumento é o
seguinte: de nada adianta uma obra que não produz sentidos, que não suscita
impressões e interpretações – e produzir sentidos, nesse caso, é dialogar com
a organização do mundo vivenciada por todos. A verossimilhança, portanto,
é uma lei que opera tanto interna quanto externamente: ela atua no interior da
obra, costurando as relações entre os elementos que a compõem – as relações
entre enredo, personagens, tempo, espaço, narração, etc. –, ao mesmo tempo
em que opera com os fatos e as coisas do mundo a que necessariamente faz
referência.
Uma obra verossímil é a que utiliza a realidade como pano de fundo, ainda
que a obra não adote as mesmas regras do mundo factual. Esse pano de fundo
é necessário para que o espectador consiga estabelecer o que você pode chamar
de pacto ficcional. O espectador tem de saber que o que a obra apresenta é
uma história imaginária, mas nem por isso deve pensar que o autor dessa
obra está contando mentiras. É o que ocorre, por exemplo, quando você lê a
história da Chapeuzinho Vermelho, na qual há um lobo que fala. No mundo
real, você sabe que os lobos, ao menos no seu estágio atual de evolução, não
possuem um aparelho fonador suficientemente desenvolvido para que articu-
lem palavras, tampouco têm a consciência linguística para se comunicarem
por intermédio de um código verbal. Entretanto, uma vez que você aceite o
acordo ficcional assim entendido, saber que no mundo real o lobo é incapaz
de falar não impedirá a sua apreensão do mundo ficcional onde lobos falam e
conversam com crianças. Você, ao firmar o pacto ficcional, atribui um valor
de verdade à obra, embora não esteja comparando em igual medida o mundo
ficcional ao mundo real.
O conto de fadas é uma narrativa curta com elementos fantásticos. Seus personagens
normalmente têm origem em tradições folclóricas, como anões, dragões, duendes,
fadas, gigantes, gnomos, grifos, sereias, animais falantes, unicórnios ou bruxas. Além
disso, as ações geralmente envolvem magia ou encantamentos. O gênero se difere
das lendas, que implicam a crença na veracidade dos eventos narrados, e das fábulas,
que trazem um ensinamento moral explícito.
muitas contribuições para as teorias das artes que você estuda atualmente. É
dele, por exemplo, o conceito de catarse e a divisão dos gêneros miméticos
em função dos meios narrativo e dramático.
A obra Arte Poética, de Aristóteles (1995), não chegou completa aos dias atuais. Somente
a parte referente à tragédia está inteira. Segundo Aristóteles, a tragédia é capaz de
promover a catarse, ou seja, tem uma função ético-pedagógica que incide sobre o
espectador, fazendo-o sentir os sentimentos narrados e vivenciá-los interiormente,
experimentando em seguida a libertação. Para entender esse conceito, pense, por
exemplo, em quando você assiste a um filme e chora. Você chora porque vivenciou o
efeito catártico gerado pelo filme, porque experimentou intensamente a problemática
da obra e se “purificou” com ela.
n Dramático: gênero também usado para contar histórias, mas estas são
apresentadas ao leitor sem a mediação de um narrador, ou seja, são
contadas diretamente pelos diálogos das personagens.
Tipos de narrativa
Você já viu que o gênero narrativo serve para contar histórias e é estruturado
conforme alguns elementos. Agora, acompanhe as definições de alguns dos
principais tipos de narrativa.
Foco narrativo
Analisar os tipos de narrador, embora essencial para os estudos literários,
não se trata de uma tarefa simples. O estudo do foco narrativo pode ser
defi nido como um problema técnico da ficção que supõe fazer algumas
perguntas fundamentais, sintetizadas por Lígia Chiappini em O foco nar-
rativo (LEITE, 1985):
Após coletar tais propriedades da narração, você pode adotar uma tipolo-
gia básica de narradores para caracterizar o foco narrativo empregado. Uma
tipologia interessante é a de Norman Friedman (2002), apresentada no famoso
ensaio O ponto de vista na ficção. Friedman (2002) vai elencar as seguintes
classificações:
Narra em primeira pessoa, mas é um “eu” já interno à narrativa. Ele vive os acon-
tecimentos aí descritos como personagem secundária que pode observar, desde
dentro, os acontecimentos. Portanto, os oferece ao leitor de modo mais direto,
mais verossímil. No caso do “eu” como testemunha, o ângulo de visão é, neces-
sariamente, mais limitado. Como personagem secundária, ele narra da periferia
dos acontecimentos, sem conseguir saber o que se passa na cabeça dos outros;
ele pode apenas inferir, lançar hipóteses, se servindo também de informações, de
coisas que viu ou ouviu e, até mesmo, de cartas ou outros documentos secretos que
tenham caído em suas mãos. Quanto à distância em que o leitor é colocado, pode
ser próxima ou remota, ou ambas, porque esse narrador tanto sintetiza a narrativa
quanto a apresenta em cenas. Nesse caso, sempre narra as cenas como as vê.
Narrador-protagonista
O narrador, personagem central, não tem acesso ao estado mental das demais
personagens. Narra de um centro fixo, limitado quase que exclusivamente às
suas percepções e aos seus pensamentos e sentimentos.
Onisciência seletiva
Essa é uma categoria semelhante à anterior, mas que recai sobre uma só perso-
nagem, e não muitas. É, como no caso do narrador-protagonista, a limitação a
um centro fixo. O ângulo é central, e os canais são limitados aos sentimentos,
pensamentos e percepções da personagem central, sendo mostrados diretamente.
Além desses, Friedman aponta para tipos de narração que acontecem com
a exclusão tanto do autor quanto do narrador. Isso ocorre quando se eliminam
os estados mentais e se limita a informação ao que as personagens falam ou
fazem – como no teatro –, com breves notações de cena amarrando os diálogos.
Assim, surgem os tipos modo dramático e câmera.
Modo dramático
Câmera
Para colocar em prática a análise do foco narrativo, você pode buscar estes contos
brasileiros. Neles é possível identificar cada um dos tipos de narradores descritos.
Boa leitura!
Onisciência Graciliano
“Baleia” Vidas secas, 1938
seletiva múltipla Ramos
Onisciência Laços de
“O búfalo” Clarice Lispector
seletiva família, 1960
Notas de Manfredo
Sérgio Rangel, repórter
Câmera “Composição II”
Sant’Anna (a respeito de
Kramer), 1973
Leituras recomendadas
ECO, U. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
GANCHO, C. V. Como analisar narrativas. 7. ed. São Paulo: Ática, 2003. (Série Princípios,
207).
TODOROV, T. As estruturas narrativas. São Paulo: Perspectiva, 2006.