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2 OPERADORES DE LEITURA

DA NARRATIVA

Arnaldo Franco Junior

INTRODUÇÃO

Neste capítulo, apresentamos um conjunto de conceitos que podem ser caracterizados como
operadores de leitura do texto narrativo, ou seja, são conceitos-chave para o desenvolvimento de
'uma análise e interpretação do texto narrativo pautada pela tradição dos estudos acadêmicos. Alguns
desses operadores são, muitas vezes, utilizados por diferentes linhas de teoria da literatura quando do
desenvolvimento do estudo de um texto literário a partir dos princípios e da metodologia que lhes são
pertinentes.
Reunimos, portanto, um conjunto do que consideramos ser os operadores de leitura mais comuns
no que tange ao estudo, análise e interpretação do texto narrativo. Quando necessário, apresentamos
as variantes no que se refere a UIlla definição ou dclitnitação .conceitual dos ITICSmOS, de modo a
oferecer informações que permitam ao leitor optar pela que lhe parecer mais adequada ou, ainda, mais
ajustada às eventuais exigências práticas quanto à condução do desenvolvimento de estudos sobre o
texto narrativo.

o GÊNERO NARRATIVO

É já um lugar-comum a divisão da narrativa em três grandes blocos articulados em torno do


conceito de conflito dramático, ou intriga, nos termos de Tomachevski (1976), cada um correspondente
ao que poderíamos classificar como movimelltos próprios ao gênero} a saber: introdução, DeserlJlolvimenJo
.e Conclusão.
Uso o termo mo"imentos porque me parece melhor do que outro qualquer que sugira ou
pressuponha 'uma ordem fixa a partir da qual a Introdução, o Desell"ol"imetlto e a CondllSão devam
aparecer. A própria experiência de leitura demonstra que tais mo"imentos apresentam uma grande
variabilidade no que se refere à ordem de sua posição nos textos. A conclusão, por exemplo, pode

,-~

D ~1
JUNIOR

ser antecipada à introdução e ao desenvolviInento - fato comunl a muitas das narrativas policiais,
de mistério, de terror e de suspense que se marcam, desse rilodo, por um início in ultima res isto é,
J

que corresponde ao desfecho. O desenvolvimento pode prescindir de introdução e de conclusão,


como ocorre, por exelnplo, em certos contos e rOlnances modernos cuja leitura nos exige ulna
mudança em nossos hábitos de leitura c recepção do texto literário. E, por fim, vale lembrar que era
Ull1aconvenção da poesia épica greco-latina iniciar a narrativa in media res, ou seja, apresentando ao
leitor um acontecimento adiantado da história que, depois, era esclarecido com a apresentação do
que ocorrera antes.
Embora pareça ponto pacífico, há divergências quanto a essa divisão da narrativa em três
blocos. Introdução, Desenvolvimento e Conclusão do quê? Da histária, dirão alguns. Da
narrativa, rebaterão outros. Do texto, dirão outros ainda, já acrescentando que qualquer texto
pode ser assim dividido e que, portanto, tal divisão não é traço característico da narrativa. Qual
seria a especificidade da narrativa, então? Eis a questão que é preciso tentar responder, mesmo
sabendo que a resposta é sempre precária.
A especificidade da narrativa parece ser o tratamento conferido ao conflito dramático que lhe
é intríns2co. Seln conflito dramático, não há narrativa, mas ele não é um dado exclusivo da
narrativa. Está aí, há séculos, a poesia lírica para comprovar isso. E, além disso, a presença de
conflito dramático também em relatos - aliás, ITIuitocomum - confirma o que afirrnalllos.
A identificação do conflito dramático é, no entanto, fundamental para que se possa estabelecer
um estudo detalhado da narrativa na qual ele se manifesta - o que já se apresenta como uma
pista metodológica: identificá-lo, voltar a ele quantas vezes for necessário para pensar a história
narrada pelo texto que se está analisando, notar que a partir c/ou em torno dele circula uma
série de elementos que são passíveis de decomposição pela análise descritiva e passíveis de re-
união - operada sempre com algum distanciamento crítico - pela análise interpretativa.
Note-se que a distinção entre análise descritiva e análise interpretativa é, para o que aqui
nos interessa, um recurso didático. A análise descritiva é aquela voltada para a decomposição do
texto em elementos menores que o constituem e o fazem pertencer a um determinado gênero
literário. Tal decomposição do texto em elementos menores é, por assim dizer, algo como
uma dissecação do texto de modo a facultar a compreensão e a classificação das partes que o
constituem. A análise interpretativa, por sua vez, volta-se para a compreensão das. possíveis
relações de sentido que se estabelecem entre tais elementos que constituem o todo textual
e, também, para a compreensão das possíveis relações de sentido que se estabelecem entre a
ordem que preside a organização de tais elementos sob a forma de texto e a história ali narrada.
Além disso, a análise interpretativa também diz respeito às relações entre o texto e o seu leitor,
o texto e o seu autor, o texto e a escola literária à qual se vincula e com a qual dialoga, o texto e
a sociedade, o texto e a hi~tória etc.
A distinção entre a história narrada e o texto no qual ela se manifesta é fundamental. É
preciso levá-la sempre em consideração, pois não basta "e:X:trair", após a leitura, a história narrada
do texto que a veicula. No caso da narrativa literária, os dois aspectos estão sempre intimanlente
vinculados e exigem igual atenção do leitor. É necessário observar, analisar, interpretar e avaliar
criticamente tanto a história que o texto narra como o modo pelo qual a narra. Isso exige uma
atenção para a própria composiçã.o do texto, para o modo como os recursos linguísticos e os
demais elementos constitutivos da narrativa estão, ali, organizados de modo particular.
O tratamento conferido ao conflito dramático pode ser o fator de distinção entre o que
é, num determinado momento histórico, considerado literatura e o que não é considerado
literatura, entre o que é reconhecido como um trat'amento literário dado a urna história e o que
não chega a sê-lo. Compare os dois textos a seguir:

34 -'T E o R I A LITERÁRIA
OPERADORES DE LEITURA DA NARRATIVA

llS,
Assassinato na Rua da Constituição Tragédia brasileira
é,
ia, o funcionário do Ministério da Fazenda, Misael,
na 63, matou a tiros a ex-prostituta Maria Elvira, com Manuel Bandeira
Ta quem vivia há três ~mos.O crime ocorreu na rua da
Constituição, Rio de Janeiro, motivado, ao que parece,
ao
por uma série de traições da mulher. Ao que tudo
10 indica, os amantes mudavam-se de bairro toda vez que
Misael, avesso a escândalos, descobria uma traição de
Maria Elvira. A polícia encontrou a vítima em decúbito
és dorsal, com marcas de seis tiros no corpo.
)a
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aI
10

le
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la
a

11

J
)

)
Note que os dois textos narram a meSlua história: uma mulher foi assassinada a tiros por um
S
homem que era traído por ela. No entanto, os efeitos que cada um dos textos suscita no leitor são
diferentes, e isso afeta a própria história narrada em cada um deles.
O primeiro texto se caracteriza como uma notícia de jornal, marcando-se pela minimização do
conflito dramático estabelecido entre os amantes e, também, pelo esforço de redução do grau de
ambiguidade em favor da objetividade jornalística no registro dos fatos. O segundo caracteriza-se
COlTIO uma narrativa literária, marcando-se pela exploração do conflito draruático de modo a suscitar
e manter o interesse do leitor e, também, pelo lnaior grau de an1biguidade que atribui a determinados
fatos e/ou elementos da história.
No texto de Manuel Bandeira, a história de amor, ciúme, traição e morte que une Misael e Maria
Elvira recebe um tratamento que torna dramático o conflito que os une (Amor x Traição). Note que uma
série de. informações, consideradas de menor importância para o relato jornalístico do fato, são muito
importantes para a criação da expectativa e para a manutenção do intercsse do leitor no texto de Manuel
Bandeira: a descrição do estado físico de Maria Elvira quando Misael a conheceu; os cuidados que ele
dispensou à saúde e à beleza da amante; a relação dos lugares em que o casal morou, o nome da rua em
que o crime ocorreu, a posição do corpo da mulher ao ser encontrada pela polícia, a cor e o tecido do
vestido que ela usava quando foi assassinada, O número de tiros com que o assassino a matou.
Na narrativa literária, tais detalhes ganham relevância exatamente porque intensificanl tanto a
dramaticidade do conflito como o grau de ambiguidade que caracteriza a história narrada- o que faz com
que o texto tenha maior abertura no que se refere às suas possibilidades de interpretação pelo leitor.

THOMAS BONNICI I LÚCI/\. OSI\NA ZOLlN (OIlGANIZADOflES) - 35


{rpR A N C O J UNI O R-

'lOS OPERADORES DE LEITURA DA NARRATIVA


1
o conjunto de operadores de leitura da narrativa que aqui vamos apresentar foi organizado
principalmente a partir das contribuições de teÀ'tOsde teoria e crítica vinculados basicanlente ao
Fornúlismo Russo e ao Neli! CriticíS/H - não por acaso, linhas teóricas que privilegialTI o estudo da
materialidade verbal do texto no desenvolvimento dos estudos literários. De certa forma o Formalismo
Russo e o New Critiâsln forneceram, dado o seu pioneirismo no que se refere à construção da teoria
literária como uma disciplina pautada por princípios e métodos embasados cientificamente, os
operadores de leitura básicos às demais linhas de teoria literária que se manifestaram no século XX.
Partindo-se das contribuições dos formalistas russos, e complementando-as com as contribuições de
outros teóricos, a narrativa pode ser analisada descritivamente utilizando-se os seguintes conceitos:

FÁBULA, TRAMA, INTRIGA, ESTÓRIA, ENREDO

A fábula é um conceito que compreende os acontecimentos ou fatos comunicados pela narrativa,


ordenados, lógica e cronologicamente, numa sequência nem sempre correspondente àquela por meio
da qual eles são apresentados, no texto, ao leitor. Ela exige do leitor a capacidade de realizar uma
síntese da história narrada. Tal síntese deve ser capaz de abstrair, do texto narrativo, os elementos
fundamentais que compõem a história ali narrada. Isso significa que a fábula deve conter os dados
fundamentais que, de maneira sUlTIária,condensem a introdução, o desenvolvimento e a conclusão da
história narrada, articulados a partir das relações de causalidade (causa-e-consequência):

Chama-se fábula o conjunto de acontecimentos ligados entre si que nos são comunicados no
decorrer da obra. Ela poderia ser exposta de uma maneira pragmática, de acordo com a ordem
natural, a saber, a ordem cronológica e causal dos acontecimentos, independentemente da
maneira pela qual estão dispostos e introduzidos na obra (TOMACHEVSKI, 1976, p. 173).

Ao reconstituirmos a fábula de uma história presente em um texto narrativo, organizamos


naturalmente a síntese da história a partir das relações de causa-e-consequência que facilitam a sua
compreensão por outras pessoas, sejanl as que nos ouvem' contar, por exemplo, a história de um
ronlance, de um filmc, de um conto, de urna novela dc televisão em poucas palavras, sejam as que ..
VenhalTIa ler os textos nos quais analisamos e interpretamos um texto narrativo.
A trama é um conceito que corresponde ao modo como a história narrada é organizada sob a forma
de texto, ou seja, ela é a própria construção do texto narrativo, sua "arquitetura", Ton1achevski define
a diferença entre fábula e trama nos seguintes termos:

A fábula opõe-se à trama que é constituída pelos mesmos acontecimentos; mas que respeita
sua ordem de aparição na obra e a sequência das informações que se nos destinam. [... ] Na
realidade, a fábula é o que se passou; a trama é como o leitor toma conhecimento [do que se
passou] (TOMACHEVSKJ, 1976, p. 173).

A trama de uma narrativa revela, ao ser identificada, o trabalho de criação do escritor, as escolhas
textuais que ele fez para contar a história desta ou daquela maneira, criando este ou aquele efeito,
afirmando um determinado conjunto de sentidos possíveis para a interpretação da história por meio
da organização das palavras sob a forma de texto. Isso significa que o(s) sentido(s) e os efeitos presentes
em um texto foram construídos pelo escritor por meio da estruturação, da composição, da construção
daquele mesmo texto de um modo determinado (aquele ali objetivamente registrado pela escrita sob
a forma de texto, e não outro), cuja especificidade deve ser levada em consideração. O leitor deve,
36 - T E o R I A LITERÁRIA
.~
--4:11"'0 O P f. n A o o I{ E S £) E L E I T U It A o A N A R R A T I V A

portanto, aprcnder a construir a sua leitura (análise descritiva + análise inte'lJretativa) a partir do
conjunto de possibilidades que o tCÀ10,organizado de modo singular, oferece.
A trama, diferentemente da fábula, não é passível de síntese. Ela é identificada quando o leitor
.do
ao
investiga e define as relações que unem os diversos elementos que, articulados pela escrita, compõem
.
o tCÃ'tO narrativo.
.
:1
da ,
O conceito de illfriga difere dos de fábula e trama, embora seja intrinsecamentc vinculado a eles. A

I
no
na intriga diz respeito ao conflito de interesses que caracteriza a luta dos personagens n~ma determinada
os narrativa. Tomachcvski nos dá a seguinte definição de intriga:

I
O desenvolvimento da ação, o conjunto de motivos que a caracterizam chama-se intriga [... ].
de
O desenvolvimento da intriga (Oll, no caso de lIm rcagrupamento compjéxo de persoml.gcllS.
o desenvolvimento das intrigas par:tlclas), conduz ao desaparecimento d~onnito ou à cri:lç:i.o
de novos conflitos (TOMACHEVSKI, 1976, p. 177).

A illtriga está relacionada, portanto, com a noção de conflito dramático, que e descnvolvido a
partir das ações das personagcns - elementos esses (ação; personagem), que se.vll1culam à noção

I
dc tIlof;vo, dcfinido por Tomachevski (1976) como "unidade temática mínima"Ibtido quando,
num processo analítico, a obra é decomposta em partes caracterizadas por uma unidade temática
'a, específica:
10
la A noção de tema é uma noção sumária que une a matéria verbal d~bra. A obra inteira
pode ser seu tema, ao mesmo tempo que cada parte da obra. A dcc9lnposição da obra
)s
consiste em isolar suas p:lrtes c:l.rdctcrizddas por uma unidade ~l11ática específica.
)s
[ ... ] Através desta decomposição da obra em unidades tell1~ticas,'hegal11os enfim às
la p:lrtes indccompostas, :lté às pcqucnas partículas do matcrial tcmático: ''A noite caiu";
"Raskolnikov mat'Oua velha", "o herói morreu", "uma carta chegoJ~ etc. O tema desta
partc indecomposta da obra chama-se [... ] motivo. No fundo, cada prtposiÇãO possui scu

10
próprio motivo. [... ] I _
Os motivos combinados entre si constituem o apoio tcmático da obraJNcsta perspectiva, a
:n

I
r.í.bulaaparece como o conjunto dos motivos em sua sucessão cronol6~ica dc caUS:le efeito;
la
a trama aparece como o conjunto destes mesmos motivos, mas na sú'tessão em que surge
dentro da obra (TOMACHEVSKI, 1976, p. 174).

,s
Os conceitos de fábula e Irama cncontram, de certa forma, correspondentes nos conceitos
a ""
de eslória (slory) e enredo (Plof), disscminados a partir dos estudos de Forster (1974) e do Nel/l
n
Criticisl11 norte-americano. Tal correspondência é, a rigor, itnpcrfeita c, no ljri~te, inadequada.
e
No entanto, é con1UI11encontrannos textos ctn que os termos estória e euredolstabelecetTI um
contraste semclhante àquele estabelecido entrc a fábula e a trama. O conceito de cstória é utilizado
a tanto para identificar a história narrada pelo texto narrativo como, muitas vcze;~para identificar
a síntese de tal história. O conceito de enredo foi originalmentc criado para id~ntificar o modo
como uma história é construída por meio de palavras e, portanto, organizada sob: forma de texto.
Ncsse scntido, ele corresponde, de fato, ao conceito de trama utilizado pelos formalistas russos.
No entanto, devido à sua larga e nClTI senlpre rigorosa utilização, vatnos, por v!zes, encontrá-lo
em textos que contradizem esse sentido original, a saber: a) como tcrmo quc id~ntifica a história
narrada pelo texto narrativo; b) como tcrmo que identifica a síntese da história ~rrada pelo texto
narrativo; c) como termo quc identifica a temática e/ou o gênero que caracteriza~história narrada
pelo texto narrativo. É prcciso tomar cuidado com tais empregos, pois eles deixa~ escapar um dos
traços essenciais da obra literária, a sua construção. -;
No quadro abaixo, construído a partir das contribuições de Lodge (1996, p. 4)
e Aguiar e Silva
(1988, p. 711-712), apresentamos alguns dos tcrmos utilizados por diversos autorcs e/ou linhas
teóricas para difcrenciar esses dois planos da narrativa. Embora redutor, este quadr6visá a estabelecer
correspondências entre a terminologia teórica utilizada para distinguir a históriarnarrada do modo
como ela é construída sob a forma de texto.

THOMAS BONNICI I LÚCIA OSANA ZOLIN (onCANIZAlJOIU:S) - 37


JUNIOR

TEORIA/AUTOR mSTÓRIA NARRADA HISTÓRIA CONSTRUÍDA


Formalistas russos fábula trama

Nerv Critieis/11 (Forster) story plot


T. Todorov história discurso

G. Gcnette história (ou dicgesc) narração

Jean Ricardou ficção narração

Roland Barthes réeit narração

Grupo ~ narrativa propriamente dita discurso narrativo

Claude Bremond deit raconté deit racontant

Seymour Chatman história discurso

Quadro 2. Terminologia teórica

Destaque-se o fato de que Genctte (1979) estabelece, na vcrdade, uma distinção tríplice, e
não binária, entre história narrada e história construída. Segundo Lodge,

ele dividiu o discurso narrativo em texto mesmo (récitlnarrativa) e no ato de narrar, o qual
produz o texto (narração). Isso ajuda a definir subcategorias de narrativa técnica mais delicadas,
mas não afeta a oposição fundamental entre História e Discurso. Ele também, às vezes, usa o
termo "diegcse" ao invés de !listoite c isso pode ser fonte de confusão. (Em Gcnette, Narrafit)e
Discollrse, 1980, onde histoire é traduzida como história, récif como narrativa e IJarra/io!/ como
narração) (LODGE. 1996,p. 4-5).

Para O que aqui nos interessa, o termo diegese, muito disseminado, corresponderá à noção de fábula,
de história narrada; o termo discurso, à noção de trama, de história construída. Veja-se o quadro abaixo:

NARRATIVA FORMALISMO RUSSO NEW CRITICISM NARRATOLOGIA


História narrada fábula estória (story) diegese
discurso narrativo ou
História construída trama enredo (pIot)
narração

Quadro 3. Os termos diegese e discurso

A PERSONAGEM E SUAS CLASSIFICAÇÕES

A personagem é um dos principais elementos constitutivos da narrativa. É sobre ela que recai,
normalmente, a maior atenção dispensada pelo leitor, dáda a ilusão de semelhança que tal elemento
cria com a noção de pessoa. O que é uma personagem? Um ser construído por meio de signos verbais,
no caso do texto narrativo escrito, e de signos verbi-voco-visuais, no caso de textos de natureza
híbrida como as peças de teatro, os filmes, as novelas de televisão etc. As personagens são, portánto,
representações dos seres que lTIovimentam a narrativapor meio de suas afões e/ou estados.
As personagens podem ser classificadas a partir de dois critérios: a) segundo o seu grau de
importância para o desenvolvimento do conflito dramático presente na história narrada pelo texto
narrativo; b) segundo o seu grau de densidade psicológica. As tabelas abaixo apresentam a classificação.
das personagens segundo esses dois critérios.

38 - T E o R ! A. L I T E R Á R I A

.,
---..oOl00PERAOORF..S D~ L£tTUIlA 011 NARltATIVA

A personagem é classificada como principal quando suas ações S30 fundamentais


para a constituição e o desenvolyimento do conflito dramático. Gcralmente,
PRINCIPAL descmpenha a função de herói na narrativa, reivindicando para si a atenção c o
interesse do leitor. Não é incomum que um mesmo tcxto aprescnte mais de uma
personagem principal.

A personagem é classificada como secundária quando SU:l.S ações não são


fundamentais para a constituição e o desenvolvimento do conflito dramático.
Geralmente, desempenha uma função subalterna, atraindo menos a atenção c
SECUNDÁRIA o interesse do leitor. Pode acontecer, no entanto, de a personagem secundária
revelar-se, por um artifício do enredo ou por uma reviravolta nos acontecirncntos
da história, fundamental para o descnvolvimcnto do conflito dramático presente
na narrativa.

Quadro 4. Classificação da personagem por sua importância 110 conflito dramático

:, c

TIPO é aquela cuja identificação sc dá, normalmente, por meio de


~lIaI determinada categoria social. A enfermeira, o pirata, O criminoso, o
ias,
açougueiro, a adolescente, o estudante ... são alguns dos possíveis cxemplos.
:3 O
Se a personagem é caracterizada a partir de uma categoria social e se suas
tive
PERSONAGEM PLANA ações correspondem previsivelmente a tal categoria, confirmando os valores
mo
é aquela que apresenta baixo que socialmente lhe são atribuídos, estamos diante de uma personagem
grau de densidade psicológica. tipo.
Em geral, tal pcrsonagem
la, . marca-se por uma linearidade ESTEREÓTIPO é aquela cuja identificação se dá por me,o da
no que se refere à rebção acumulação excessiva de signos que caracterizam determinada categoria
entre os atributos quc social. Exemplos: o pirata com perna de pau, olho de vidro, cara de mau,
caracteriz:l.m O seu ser (a sua barba por fazer, brinco de argola, lenço na cabeça, gancho na mão, chapéu
psicologia) e o seu fazer (as preto com caveira, papagaio no ombro, bebedor de rum etc; a enfermeira
suas ações) (FORSTER, de roupa, sapatos e touca brancos, cabelo preso, unhas curtas, bijuterias,
1974). Tal classificação inclui relógio e maquilagem discretos, prancheta na mão, caneta e termômetro
dois subtipos: a personagem tipo no bolso da camisa ou do avental etc. A personagem estereótipo é, pois,
e a l'er.muagem estereótipo. uma cristalização máxima dos lugares-comuns e dos valores socialmente
atribuídos às diversas categorias sociais. Pode-se dizer que, no te)..'Íoliterário,
sua psicologia e suas ações são como que determinadas pela categoria social
à qual pertence - f.1to normalmente construído por meio da descrição dos
seus atributos frsicos e de seu figurino.

PLANA COM TENDÊNCIA A REDONDA é aquela que apresenta um grau mediano de densidade
psicológica, ou seja, embor~ se marque por uma lincaridade predominante no que se refere à relação entre os
atributos que caracterizam o seu ser (a sua psicologia) e o seuJazer (as suas ações), tal personagem não se reduz
totalmente à previsibilidade. Isso significa que suas ações podem, ainda que de maneira limitada, contrastar
com a sua caracterização psicológica - o que pode vir a surpreender o leitor (CANDIDO, 1976).
I,

o REDONDA é aquela que apresenta um alto grau de densidade psicológica, ou seja, marca-se pela alinearidade
'.a no que se refere à relação entre os atributos que caracterizam O seu ser (a sua psicologia) e o seu jazer (as
suas ações). Noutros termos: apresenta maior complexidade no que se refere às tensões e contradições que
I. caracterizam a sua psicologia e as suas ações. Tal personagem é imprevisível, surpreendendo o leitor ao longo
da narrativa, pois representa de, modo dcnso a complexidade, os conflitos e as contradições que caracterizam
a condição hutn3na e, nesse sentido, não é redutível aos limites de uma categoria social (FORSTER, 1974).
e
)
Quadro 5. Classificação da personagem segundo o grau de densidade
)

psicológica e suas ações (ser + fazer)

THOM •••S BONNICI I Lúctll OS"'NA ZOI.lN (OIlCANIZIII)OIlI:S) - 39

tr
{'F11R A N C O J UNI O R
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~'

( AUTOR, NARRADOR, NARRATÁRIO E FOCALIZAÇÃO

A distinção entre autor e narrador é fundamental para o desenvolvimento do estudo do texto


narrativo a partir de princípios e metodologia científicos. A prin1cira coisa que se deve saber sobre o
narrador é que ele é uma categoria específica de personagem, e não deve, portanto, ser confundido com
o autor do texto, por mais próximo que pareça estar deste, Autor, para ficarmos com uma simplificação
extrema, é aquele que cria o texto e narrador é uma personagen1 que se caracteriza pela função de,
num plano interno à própria narrativa} contar a história presente nUln texto narrativo. Aguiar e Silva
atenta, ainda, para a distinção entre autor empírico} aquele que "possui existência como ser biológico c
jurídico-social", e autor textual} aquele que

existe no âmbito de um determinado texto literário, como uma entidade ficcionat que tem
J. função de enunciador do texto e que só é cognoscí~el e caracterizável pelos leitores deste
mesmo texto. [...] é o emissor que assume imediata e especificamente a responsabilidade da
enunciação de um dado texto literário e que se manifesta sob a forma c a função de um eu
oculta ou explicitamente presente e actuJ.nte no enunciado, isto é, no próprio texto ,literário
(AGUIAR E SILVA, 1988, p, 227 -228),

É comum que o narrador seja classificado a partir da pessoa do discurso que utiliza para narrar e,
também, segundo o seu grau de participação na história narrada. Embora relevantes, tais critérios são
insuficientes para o estudo da complexidade e da importância (estética, ideológica etc.) que o narrador
assume na narrativa.
Uma possível classificação do narrador segundo os critérios anteriormente citados estabelece uma
relação entre a pessoa do discurso utilizada para narrar e o grau de participação do narrador na história
que narra. Assim, o narrador que utiliza a 1" pessoa do discurso (Eu/Nós) seria classificado como
narrador participante, já que a 1" pessoa evidenciaria a sua participação na história narrada, Por sua vez, o
narrador que utiliza a 3' pessoa do discurso (Ele/Eles) seria classificado como narrador observador, pois
a 3:1 pessoa evidenciaria o seu dist~nciamento em relação à história narrada. Além disso} a dicotomia
narrador participante/ narrador observador, muito disseminada nos Ensinos Fundamental e Médio,
parece ter origem nos conceitos de narrador-personagem e narrador-observador propostos, a partir da leitura
de Greimas, por Siqueira (1992).
Tal classificação requer, no entanto, uma boa dose de rigor no que se refere à sua utilização.
Não se pode estabelecer uma relação direta entre o uso da 1" ou da 3' pessoas do discurso e o
grau de participação do narrador na história que narra, É possível imaginar, por exemplo, que
a testemunha que conta em tim tribunal um c~ime que presenciou deva elaborar a sua história
valendo-se da 1" pessoa do discurso. Tal testemunha terá de contar aos presentes algo que viveu
(presenciar um crime), mas não na condição de protagonista (posição necessariamente ocupada
pelo réu e pela vítima), Desse modo, tal testemunha será um narrador que narra em 1" pessoa,
mas não participa da história narrada, senão numa posição secundária, periférica ou} mesmo}
neutra no que se refere à constituição e ao desenvolvimento do conflito dramático da história
narrada. Do mesmo modo} pode-se imaginar que um cientista narre o conjunto de estudos e
experiências que realizou durante.o desenvolvimento de uma pesquisa, valendo-se da 3" pessoa
do discurso. Nesse caso, ele será um narrador que participa fundamentalmente da história
narrada, embora minimize o seu grau de envolvimento com os fatos que constituem tal história}
privilegiando a apresentação dos fatos que caracterizam a pesquisa, em detrimento de seu alto
grau de envolvimento na realização da mesma. Tais exemplos, embora extremos, servem para
nos alertar do perigo de estabelecer uma relação direta entre a pessoa do discurso utilizada pelo
narrador e O seu grau de participação na história que narra ..
Aguiar e Silva lembra-nos de que o narrador cumpre a função de uma voz fundamental no texto
narrativo e que, além disso, é o agente de um processo dejocaliza,ão que afeta a história narrada:
40 - T E o R I A LITERÁRIA
í

OPERADOHES DE LEITURA DA NAHRATIVA

o texto narrativo implica a mediação de um narrador: a lJOZ do narrador (--tiasempre no texto


narrativo, apresentando características diferenciadas em conformidade com o estatuto da
perSOlltl responsável pela enunciação narrativa, c é ela quem produz, no texto literário narrativo,
as outras lJozeJ existentes no texto (...). A voz do narrador tem como funções primárias e
:exto inderrogáveis ,uma função de representação, isto é, a função de produzir intratextualmentc
nc o o universo diegético - personagens, eventos etc, -, c uma jtllJ!iío de OIgmlizaçiio e colltrolo das
com estruturas do tcxto narrativo, quer a nível tópico (microestruturas), quer a nível transtópico
ação (macroestruturas). Como funções secundárias e não necessariamente actualizadas, a voz do
) de, narrador pode desempenhar uma função de illterpretaçiio do mundo narrado e pode assumir
uma função de a[çiio neste mesmo mundo (a assunção destas (dtimas [unções repercute-se nas
,ilva
duas primeiras e suscita problemas de focalização (...] (AGUIAR E SILVA,1988, p. 759).
co e

Baseando-se em Genette, Aguiar e Silva apresenta as seguintes classificações do narrador, que


organizamos nos quadros abaixo:
: tem
deste
le da
meu
rária
É aquele que "não é co-referencial com nenhuma das personagens da diegese,
[...] não participa, por conseguinte, da história narrada. [...] Pode rnanifestar-
HETERODIEGÉTICO
Ir e, se como um 'eu' explícito ou como um narrador apagado, de 'grau zero' "
(1988, p. 761).
são
Idor É aquele que "é co-referencial com uma das personagens da dicgese,
participando da história narrada" (1988, p. 761).
!nU
HOMODIEGÉTICO Subtipo do narrador homodiegético, o narrador
5ria autodiegético é aquele que "é co-referencial
orno AUTODIEGÉTICO
com o protagonista" (1988, p. 762) da narrativa,
z, o narrando a sua própria história.
JOlS
Quadra 6. Classificação do narrador a partir de Genette (1979)
mia
:lio,
ura
Além disso, Aguiar e Silva considera que o narrador "caracteriza-se, ainda, pela ~ua relação,
:ão. enquanto instância produtora do discurso, com o nível da diegese construída pelo seu discurso"(1988,
c o p. 762). Nesse sentido, o narrador classificar-se-á como:

'CU

Ida
oa, É aquele que ocupa a posição de narrador de primeiro grau em uma narrativa
EXTRADIEGÉTICO primária. Seu "aeto narrativo é externo em relação aos eventos narrados naqu~la
10,
narrativa" (1988, p. 762).
na
s e É aquele que ocupa a posição de narrador em uma .narrativa secundária
:oa prod uzida no decurso de uma narrativa primária. Seu ato narrativo é interno
na em relação aos eventos narrados naquela narrativa.
'la,
Subtipo do narrador intradiegétieo, o narrador
1to INTRADIEGÉTICO hípodiegético (ou, na classificação de Genette,
tra metadieg4tico) é aquele que "produz uma narrativa que
HIPODIEGÉTICO
:10 se insere na narrativa primária, interrompendo-a,
representando formal e funcionalmente uma
narrativa dentro da narrativa" (1988, p. 763).
:to
Quadro 7. Classificação do narrador segundo o nível da diegese construída pelo seu discurso

THOMAS BONNICI I LÚCIA OSANA ZOLlN (OHGANIZADORES) - 4]


N c: o JUNIOR

Ressalte-se que, para Genette, os níveis da narrativa não são relativos apenas ao narrador, mas à
estrutura arquitetônica, chamclnos assim, da narrativa e à posição que todos os personagens, e não
apenas o narrador, OCUP;llTI enl relação ao evcnto narrado.
O narra/ária, segundo Aguiar e Silva, se define como o "destinatário intratextual do discurso
narrativo c, portanto, da história narrada" (1988, p. 698). Ele não é universal, ou seja, não existe
necessarialnente em todos os teÀ'tosnarrativos. Manifesta-se preferenciahnente naqueles textos em
que o narrador é personalizado, autonomizado, ou seja, nos textos em que a condição de personagem
do narrador é posta em destaque peja diegese, e não naqueles textos em que o narrador apresenta um
"grau zero" no que se refere à diegese e ao discurso narrativo. Aguiar e Silva destaca o fato de que o
narratário é "U111'tu' intratextua1tnente construído e particularizado como entidade ficcional" cuja
existência e função "articulam-se com os diversos níveis da narração que poden1 ocorrer num texto"
(1988, p. 699).
A jocalizafão corresponde, como o próprio nome sugere, à posição adotada pelo narrador para
narrar a história, ao seu ponto de vista. O foco narrativo é UlTIrecurso utilizado pelo narrador para
enquadrar a história de um determinado ângulo ou ponto de vista. A referência à visão, aqui, não é casual.
O foco narrativo evidencia o propósito do narrador (e, por extensão, do autor) de mobilizar intelectual
e emocionalmente o leitor, manipulando-o para aderir às ideias e valores que veicula ao contar a
história. Segundo Leite (1985), Friedman estabeleceu oito tipos de foco narrativo, a partir das seguintes
questões:

1) Quem conta a HISTÓRIA? Trata-se de um NARRADOR em primeira pessoa ou em


terceira pessoa? de lima personagem em primeira pessoa? não há ninguém narrando?; 2) de
que POSIÇÃO ou ÂNGULO em relação à HISTÓRIA o NARRADOR conta? (por cima? na
periferia? no centro? de frente? mudando?); 3) que canais de informação o NARRADOR usa
para comunicar a HISTÓRIA ao leitor? (palavras? pensamentos? percepções? sentimentos?
do autor? da personagem? ações? falas do autor? da personagem? ou uma combinação disso
tudo?); 4) Aque DrSTÂNCIAele coloca o leitor da história (próximo? distante? mudando?)?
(FRIEDMAN, 1955 apud LEITE, 1985, p. 25).

Antes, porém, de passarmos à apresentação dos oito tipos de foco narrativo identificados por
Friedman, convém cstabelecer uma distinção entre cena e sumário - conceitos mobilizados para
a classificação que o autor faz da focalização. Por cel1a entenda-se a representação do diálogo das
personagens, efetuada por meio do uso do discurso direto; por sumár;o entenda-se o relato generalizado
ou a simples exposição dos eventos que caracterizam a narrativa, efetuados por meio do uso do discurso
indireto, logo, resumidos, sumarizados. A cena é um recurso que cria um efeito de proximidade entre
o leitor e a história narrada; o sUlnário, por sua vez, cria um efeito oposto, demarcando a distância.
entre o leitor e a história narrada.
Segundo Friedman, o foco narrativo pode ser assim classificado:

1) !jt1utor" onisciente intruso - Esse foco narrativo caracteriza o narrador que adota um ponto
de vista divino, para além dos limites de tempo e espaço. Tal narrador cria a impressão
de que sabe tudo da história, das personagens, do encadeamento e do desdobramento das
ações e do desenvolvimento do conflito dramático. Ele usa preferencialmente o sumário,
supritnindo ou minimizando ao máximo avoz das personagens. "Como canais de informação
predominam suas próprias palavras, pensamentos e percepções. Seu traço característico é
a intrusão, ou seja, seus cOlnentários sobre a vida, os costumes, os caracteres, a moral, que
podem ou não estar entrosados com a história narrada" (FRIEDMAN, 1955 apud LEITE,
1985, p. 26-27). O narrador que utiliza esse foco narrativo se interpõe entre o leitor e os
fatos narrados, elaborando pausas frequentes (digressões) para a apresentação de sua opinião
e de seu posicionamento, seja eIn relação à história e aos elementos que a constituem)
seja eln relação aos comportamentos e/ou valores sociais aos quais a história narrada faz
referência e com os quais dialoga;
42 - T E o R I A LITERÁRIA

i
- ":.'---,~---------------- -----------
, NAftR •.••TIV •.••
-~00PF.RADORES DE LEITURA DA

mas à 2) Narrador onisciente "e"lro - Esse foco narrativo caracteriza-se pelo uso da 3' pessoa do diseurso.
e não Tende ao uso do sumário, embora não seja incomum que use a eena I;.ara a inserção de
diálogos e para a dinamização da ação e, consequentemente, do conflito draniático. Reserva-se,
:lIrso normalmente, o direito à caracterização das personagens, deserevendo-as e'2xplicando-as para
~xistc o Icitor. l)istingllc-sc do foco narrativo anterior "pela ausência dc instruç~cs e comentários
li;
's cm gerais ou mesmo sobre Ocomportamento das personagens, embora sua presença, interpondo-
agem se entre o leitor e a HISTÓRIA, seja sempre muito elara" (FRIEDMAN 'i.'"'
5~5apud LEITE,
aum 1985, p. 32); 'I
lue o 3) "E,," COl1l0 tcstell11mlw-Esse foco narrativo caracteriza um narrador que narrade uma perspeetiva
cUJa menos e>.1:eriorem relação ao fato narrado do que os anteriores. Faz u.da l' pessoa do
~>.."tO"
discurso, mas ocupando uma posição secundária e/ou periférica em relasao à história que
narra. Isso, no entanto, não impede que possa "observar, desde dentro, -'contecinlentos,
para e, portanto, dá-los ao leitor de modo mais direto, mais verossímil" (FmEDMAN, 1955
para apud LEITE, 1985, p. 37). Seu ângulo de visão, entretanto, é necessarianl!!te limitado. Por
sua!' situar-se na periferia dos acontecimentos, esse narrador tem de restringil à sua eondição
ctua! de testemunha, ou seja, não sabe de fato senão aquilo que presenciou, limItando-se a fazer
tar a suposi?ões, inferências, deduções etc. daquilo que lhe escapa. Pode utilizal~n.to a eena eomo
intcs o sumano para narrar;

4) Narrador protagonisla - Esse foco narrativo caracteriza um narr oor que narra
neeessariamente em l' pessoa, limitando-se ao registro de seus pensamfttos, percepções
nem
e seiltilllcntos. Narra, portanto, de um centro fixo, vinculado necc''''riamente à sua
2) de
la?na
própria experiêneia, já que, eomo o próprio nome diz, é O protag!'!fista da história
R lisa
ntos?
disso
narrada. Pode valer-se tanto da cena como do sumário, aproximando ~ distanciando o
leitor da história narrada; I
ia?)? 5) Onisciência seietÍl'a múltipla - Esse foco narrativo marca-se pela utilizaçãoifedominante do
discurso indireto-livre. Tal reeurso eria um efeito de eliminação da figu~-ituo narrador, que
é substituída pelo registro de impressões, percepções, pensamentos, sentimentos, sensações
por que remetem à mente das personagens. Como tais pereepções, pensal'~ntos, sensações,
para sentimentos etc. ganham o primeiro plano da voz narrativa e estão ligados a ~ias personagens,
das não há mais um eentro fixo como responsável pela artieulação da histórifarrada, mas uma
:ado multiplicidade de ângulos de visão e, eonsequentemente, múltiplos eanalS de informação.
1rso Há, aqui, um predomínio quase absoluto da cena. Esse foco não deve seifeonfundido com
ltre O foco narrador onisciente neutro, pois 0 autor traduz os pensalncI~s, percepções e
11

;'leIa sentimentos, filtrados pela mente dos personagens, detalhadamente, enruanto o narrador
onisciente os resume depois de terem ocorrido" (FRIEDMAN, 1955 ap:M LEITE, 1985, p.
47); I
nto
6) Onisciência seieli"a - Esse foco narrativo é semelhante ao anterior, mas c~m a diferença de
que se restringe a uma só personagem. Narra de um centro fIXO,seu n:gulo é central, e
são
os canais de informação limitam-se aos pensamentos, sentimentos, per~pções, sensações,
das
memórias, fantasias, desejos etc., do personagem central, que são apresentldos diretamente e
no,
sem mediação ao leitor. Marca-se, como o foco anterior, pelo predomínioi .. lo.uso do discurso
ção

indireto-livre e, não raro, pelo recurso ao fluxo de consciência; .. i
lue 7) Modo dramático - Esse foco caracteriza-se pelo uso exclusivo da cena, log?" pclo predomínio
rE, quase absoluto do discurso direto. A história é narrada a partir do encadeamento de cenas
os nas quais somos informados, pelo discurso direto, sobre o que pensanf. fazem, sentem e
ião
.tn,
objetivam as personagens. A história é narrada de um ângulo frontal e fixo - o, que cria o .,
efeito de estarmos presenciando os fatos no momento em que eles acontecem. E o foco que
faz caracteriza o gênero dratnático, o texto de teatro e, de certo 1110do,o rotcÍ..ro de cinema c das'
telenovelas; •
TIlOMAS BONNICI I LÚClA Os ANA ZOI.IN (OTtCII.NIZAUOlll,S) - 43

»
N C o JUNIOR

8) Câmem - Esse foco é, talvez, a tentativa mais radical de eliminação da presença do autor
e, talllbéI'n, do narrador na narrativa. "Essa categoria serve àquelas narrativas que tentam
transmitir flashes da realidade (01110,5e apanhados por Ull1J cânlera arbitrária c lnecanicJlnente"
(FRIEDMAN, 1955 apud LEITE, 1985, p. 62). 'L11 propósito de atingir a máxima neutralidade
no l1:lrrJf faz, 111uitasvezes, corn que a narrativa seja construída a partir de fragmentos "soltos"
que rOmpC111C0111a ilusão de continuidade, que é UlllJ (bs características ll1ais tradicionais
da narrativa. É Ulna ilusão, no entanto, acreditar que esse foco narrativo seja de fato neutro.
Basta fúer uma comparação com a fotografia ou com o cinema para percebermos que há,
sempre, alguém por trás da cãmera, decidindo o ãngulo e selecionando o que deve ou não ser
representado. Pense-se, por exemplo, no fotojornalismo, que nunca é neutro .no tratamento
que confere à imagens que veicula vinculadas ao texto e aos interesses do jornal. Vale o mesmo
para o telejornalismo,

OBSERVAÇÃO IMPORTANTE: não é um fato incomum a utilização de mais de um foco narrativo


por um mesmo narrador. Tal variabilidade caracteriza, por exemplo, muitos romances, No caso da
identificação de mais de um foco narrativo em um texto narrativo, procure observar qual deles é o que
predomina sobre os demais e, também, observar que efeitos de sentido são criados a partir de tal variação
de focos.

TEMA, MOTIVOS E MOTIVAÇÃO

Tem,a -É o assunto central abordado dramati[{llnente pela narrativa, ou seja, é o assunto que abarca
o conflito dramático nuclear da história narrada pelo texto narrativo, Embora o tema se imponha
pela força que adquire com o desenvolvimento da narrativa, ele pode variar conforme a posição
interpretativa adotada pelo leitor em relação ao conflito dramático, Tal variabilidade depende,
normalmente, do grau de ambiguidade da narrativa. Quanto maior o grau de ambiguidade no
tratamento do conflito dramático da história narrada, maiores serão as possibilidades de definição
do tema pelo leitor;
Motivos - Como já vimos, motivos são subtcmas ligados ao tema e vinculados ao desenvolvimento
da história e ao conflito dramático. Definem-se, normalmente, a partir das ações das personagens
e, também, das situações dramáticas apresentadas no desenvolvitnento da narrativa. Podelll ser
essenciais ao desenvolvimento da história e do conflito dralnático e/ou ser acessórios, secundários,
não-essenciais a tal desenvolvimento. No pritneiro caso, não pOdelTI ser desconsiderados quando .do
estudo da motivação que caracteriza uma narrativa;
Motivação -A motivação compreende o conjunto de Inativos que, articulados ao tema, caracteriZaITI
o modo como este é trabalhado ao longo da narrativa. Sua identificação e seu estudo são importantes
para que o leitor possa avaliar o posicionamento estético e ideológico do autor em relação aos assuntos
que aborda em seu texto.

Nó, CLÍMAX, DESFECHO

Nó - É o fato que interronlpe o fluxo da situação inicial da narrativa, criando UlTIproblema ou


obstáculo que deverá ser resolvido. O nó é o que dá origen1 ao conflito dramático de unla narrativa.
Ele evidencia que só há uma história a ser contada, porque UITIacrise se instalou em determinada
situação, exigindo que se tente resolvê-la de modo a reequilibrar o que ela desestabilizou. Isso, no

44-TEOHIA LITERÁRIA

,I
~OPERADOIlES DE LEITUIlA DA NARRATIVA

autor entanto, não signific:l nccessarialncllte o retorno à Illesrna situação inicial, pois, quase sempre, o
ntam desenvolvimento do connito dram5tico faz com que a situação de equilíbrio final da história seja
ente" diferente da sua situação de origem;
:dade
Clímax - É o elemento que marca o auge do connito dram5tico, momento do tudo-ou-nada entre
Iltos"
as forças contrár;:ls que agem c se dcfront:lmll:l narr:ltiva (ger:llmente represent:ldas pelas personagens
)nais
e pelos valores a elas lig:ldos), engendrando e desenvolvendo a história. Diferentemente do desfecho,
litro.
~ h5, o clímax caracteriza um momento em que a expecL1tiva em relação à resolução do connito central
J ser da narrativ:l ignora qual d:lS forças contdrias vencerá. O clímax, portanto, suspende, mantendo por
ento instantcs em tensão llláxilna, a história contada na narrativa;
Sll10 Desfecho -É a resolução do connito central da narrativa, momento em que uma das forças contdrias
vence e se afirma sobre a sua oponente. Normalmente, liga-se à situação final da narrativa.

vo
da
ue OBSERVAÇÕES IMPORTANTES;
;0 a) os conceitos de nó, clímax e desfecho não se ligam necessariamente às noções de introdução,
desenvolvimento e conclusão de uma narrativa. É preciso ter sempre em mente que uma narrativa se
compõe tanto de llIl1.ahistória como de um texto no qual tal história é veiculada. A distinção entre os
planos da história narrada e do texto narrativo que a veicula é importante para cvitar confusõcs perigosas.
Não há nada que obrigue que a introdução, o desenvolvimento e a conclusão da história correspondam
à introdução, ao dcsenvolvimcnto e à conclusão do texto narrativo que a veicula. É preciso estar atento
a isso para que o desenvolvimento da leitura (análise + interpret:tção) do texto narrativo não apresente
equívocos ou distorções no que se refere à identificação de tais elementos e à leitura de sua função c de
seu sentido no texto;
rca b) assim como uma história não tem necessariamcnte a obrigação de apresentar uma introdução ou uma
ha conclusão fechada, podendo prescindir de uma delas ou, mesmo, de ambas, também não tem a obrigação de
"ão apresentar necessariamente os conceitos de nó, clímax e desfecho, podendo prescindir de algum deles;
le, c) o clímax e O desfecho podem, em certas narrativas, se manifestar simultaneamente, marcando ao
JO mesmo tempo o auge do conflito e sua resolução.
ão

to
1S
ESPAÇO, AMBIENTE, AMBlENTAÇAo
er
s,
:0
Espaço - O espaço compreende o conjunto de referências de caráter geográfico el ou arquitetônico
que identificam o(s) lugar(es) onde se desenvolve a história. Ele se caracteriza, portanto, como uma
n
referência material marcada pela tridimensionalidade que situa o lugar onde personagens, situações e
's ações são realizadas;
's

OBSERVAÇÃO lMPORTANTE: não é incomum que se encontre, em determinados estudos, o espaço


vinculado aos estados psicológicos da personagem por meio da expressão espaço psicológico. Tal expressão é,
a nosso ver, infeliz, podendo causar problemas e equívocos na leitura do te>..1:O
narrativo. A psicologia da
personagem, que é normalmente uma representação da psicologia humana, marca-se, como esta, pela noção
de tempo - o quc inclui tanto a consciência do presente como os conteúdos da memória e, também, as
projeções do desejo e da fantasia.

Ambiente - O ambiente é o que caracteriza detenninada situação dralnática em determinado.


espaço, ou seja, ele é o resultado de determinado quadro de relações e "jogos de força" estabelecidos,

TlIOM"S BONNICI I LÚCI" OS"N'" ZOI.IN (ORG"NIZ"I)OllliS) - 45


normalmentc, entre as personagens que ocupam determinado espaço na história. O anlbiente é,
portanto, o "clima", a "atmosfera" que se estabelece entre as personagens em determinada situação
dramática. Conforme o conflito dramático se desenvolve a partir das ações das personagens, o quadro
relacional estabelecido entre elas muda, alterando a situação dramática e, portanto, o ambiente. Um
nleSlTIOespaço pode, portanto, apresentar diversos an1bientes;
Arnbífllfa,ão - a ambientação compreende a identificação do modo como O ambiente é construído
pelo narrador e, portanto, ela identifica também o trabalho de escrita do autor do texto, as escolhas
que ele faz para construir deste ou daquele modo os ambientes. Lins (1976) define três tipos de
ambientação, a saber:

FRANCA - é a ambientação produzida por meio do discurso de um narrador heterodiegético ou um narrador que
não participa dos eventos fabularcs que narra. Esse narrador explicita, compõe o ambiente que caracteriza um espaço e
determinada situação dramática. Esse tipo de ambientação é bastante típico nos romance realistas, onde predominam várias
pausas descritivas.

REFLEXA- nesse caso, a ambientação é produzida ou composta por meio da focalização de personagem(ns) que, a partir
de sua percepção ou ponto de vista, constrói(em) o ambiente onde se desenvolve a ação. O termo "ambientação reflexa" já
denota essa ideia de que a ambientação é um reflexo do universo de uma ou mais personagens

DISSIMULADA ou OBLÍQUA - Nesse caso, o ambiente é construído, por um efeito de sugestão, a partir das ações
da(s) personagem(ns).

Quadro 7. Classificação da ambientação segundo Lins (1976)

TEMPO E RECURSOS DE SUBJETIVAÇÃO DA PERSONAGEM

Com relação ao tempo, parece-nos que uma das mais completas contribuições vem dos estudos
feitos por Genette, que propõe uma distinção básica entre o "tempo da coisa contada e o tempo da
narrativa" (1979, p. 31).
Tanto a diegese (história narrada, fábula) como o discurso narrativo (a narração, história
construída, tranla) estão inseridos num fluxo temporal. No entanto, a construção da narrativa t.orna
possível a existência de certas distor,ões temporais que se tornam importantes para o estudo do texto
narrativo. Os quadros abaixo sintetizam as contribuições de Genette (1979) para o estudo do tempo
na narrativa. Por uma questão didática, dividimos os conceitos entre àqueles pertinentes ao tempo
da diegese - que iluplica os acontccimentos pertinentes à história narrada e, também, o impacto
desses acontecimentos na subjetividade de determinadas personagens, posta, por vezes, em relevo na
narrativa -, e aqueles pettinentes ao tempo da narração ou do discurso narrativo, que compreende o
tempo dos acontecimentos, dos fatos, das ações apresentadas no discurso narrativo.

Referente à sucessão temporal dos acontecimentos. Pode ser mensurado pela


TEMPO OBJETNO
passagem dos dias, das estações do ano, de datas, enfim, por todo tipo de marcação
(CRONOLÓGICO)
temporal objetiva.

Vincula-se ao tempo cronológico, mas difere deste porque se trata do tempo da


TEMPO SUBJETNO experiência subjetiva das personagens. Caracteriza, pois, o tempo viver/âa! destas, o
(PSICOLÓGICO) modo como elas experimentam sensações e emoções no contato com os fatos objetivos
e, também, com suas memórias, fantasias, expectativas.

Quadro 8. Tempo da diegese (história narrada)

46 - T E ° R I A LITERÁRIA
--~OPEItADOItES DE I.EITURA OA NARIt ••••
TIV ••••

te é,
ação
NARRATIVA IN MEDIARES: o discurso narrativo se inicia com a
adro ORDEM apresentação de um acontecimcntoque pertence ao desenvolvimento
Um da diegese.
Compreende a relação entre
a ordem (disposição) dos
lído A
acontecimentos da diegese NARRATIVA IN ULTIMA RES: o discurso narrativo se micia
lhas (história) e a ordem de
N com :I. apresentação de um acontecimento que pertence :1.0 desfecho
: de A da diegese.
apresentação desses mesmos
C
acontecimentos no discurso
R
(história construída). Como
O ANALEPSES: recuos no tempo, quc permitem a recuperação de
a ordem dos acontecimentos
N fatos passados. Corresponde ao que em linguagem cinematográfica
na diegese e no discurso
I é chamado deJ1asI1baek, mas é anterior, como técnica narrativa, a esse
raramente coincide, criam-se
lIe A recurso.
allacronias - desencon tros en tre
>e S
a ordem dos acontecimentos
:as
na diegese e a ordem de sua
PROLEPSES: antecipações no tempo, que permitem a anteposição,
apresentação no discurso.
no plano do discurso, de um f.1to ou situação que só aparecerá mais
:ir narrativo.
já tarde no plano da diegese. Corresponde ao que, cm linguagem
cinematográfica, é chamado de flaslyiJllvard.

:s
Quadro 9. Tempo da narração (discurso narrativo): tempo dos acontecimentos,
dos fatos, das ações no discurso narrativo

CENA: coincidência entre os acontecimentos da diegcse e o relato dos


mesmos acontecimentos na narração. Sua marca mais evidente são os
s
diálogos, marcados pela presença do discurso direto.
a

sUMÁRIo NARRATIVO: incongruência entre os acontecimentos da


DURAÇÃO diegese e o relato dos mesmos acontecimentos na narração. O narrador
resume, em nível de discurso, os acontecimcntos que, na diegese, marcam-
lhta-se de um desencontro sc por um tempo longo. Sua marca mais evidente é a utilização de discurso
entre. a durarão dos indircto pelo narrador na apresentação resumida dos acontecimentos da
acontecimentos no plano diegese.
da diegese e a durarão do
relato desses mesmos
ELIPSE: O narrador exclui determinados aconteci';lentos da diegese no
acontecimentos no plano
plano do discurso narrativo.
do discurso narrativo. As
relações de duração implicam
a construção dos seguintes e PAUSA DESCRITIVA: o narrador aumenta a temporal idade narrativa
distintos recursos: por meio da inserção de descrições que j'alongarn o tempo", criando, dessc
modo, Qnisoerollias.

DIGRESSÃO: o narrador introduz comentários no discurso narrativo,


fazendo com que o tempo da diegese pare e o tempo do discurso narrativo
(narração) se alongue.

Quadro 10. Tempo da narração (discurso narrativo): tempo dos acontecimentos,


dos f.ltos, das ações no discurso narrativo

TI~OMAS UONNICI I LÚCIA OSANA ZOI.IN (onCANI7.Allonros) - 47

z
CPR
,
A N C O JUNIOR

FREQUÊNCIA NARRATIVA SINGULATIVA: é aquela que apresenta igualdade


entre o número de acontecimentos da diegese e o número de
Refere-se à relação quantitativa apresentações de tais acontecimentos no discurso.
entre os acontecimentos da
NARRATIVA REPETITIVA: é aquela que reitera, no plano do
dicgcse e o número de vezes
discurso narrativo (narração), um mesmo acontecimento pertinente ao
em que esses acontecimentos
no discurso plano da diegesc, apresentando-o várias vezes.
são mencionados
narrativo. Dependendo do modo
NARRATIVA ITERATIVA: é aquela que apresenta uma úniea vez,
como se estrutura essa relação,
no plano narrativo (narração), um acontecimento que aconteceu várias
produzem-se os seguinte tipos de
vezes no plano da diegese.
narrativa:
Quadro 11. Tempo da narração (discurso narrativo): tempo dos acontecimentos,
dos fatos, das ações no discurso narrativo

Os recursos de subjetivação da personagem, vinculados ao tempo, dizem respeito a determinados


recursos que se vinculam à construção do tempo psicológico na narrativa. O tempo psicológico
corresponde à organização do tempo interno das personagens, construindo-se a partir do conjunto
de referências que responde pela subjetividade das mesmas (o que inclui o narrador). Não é
delimitado nem determinado pelo tempo físico, embora estabeleça relações com este. Também não
é controlado socialmente, ou seja, corresponde aos afetos, ao imaginário, ao desejo, à fantasia e à
memória das personagens. Sua lógica, nesse sentido, pode prescindir das relações de causa-e-efeito
e da necessidade de tudo explicar ao leitor. Os três recursos de subjetivação intimamente ligados ao
tempo psicológico são o monólogo interior, a análise mental e o fluxo de consciência. Vejamos cada
um deles:
a) Monólogo interior - em primeiro lugar, é preciso distinguir monólogo interior de monólogo. Este
último é um recurso característico do gênero dramãtico (teatro), que pode caracterizar tanto
uma cena como uma peça teatral na qual uma personagem dialoga consigo mesma. O monólogo
interior também implica o diálogo de uma personagem consigo mesma, mas tal processo não
se realiza sob a forma de um solilóquio, e sim sob a forma de um processo mental no qual a
personagem questiona a si própria numa determinada situação dramática. O monólogo interior
evidencia, desse modo, que a personagem está mentalmente dialogando consigo mesma. Isso,
sem perder o controle de sua consciência ou as relações de causalidade que regem a noção
usual de lógica presente no cotidiano.
b) Análise mental - trata-se da representação de um processo mental no qual a personagem dá
vazão aos seus pensamentos SelTIperder de vista a sua posição numa dada situação dramática.
A diferença entre a análise mental e o monólogo interior reside no fato de que naquela a
personagem articula algo como uma dupla perspectiva, por meio da qual tanto vivencia como
analisa a sua inserção numa dada situação dramática. Isso, sem perder o controle de sua
consciência ou as relações de causalidade que regem a lógica cotidiana;
c) Fluxo de consciência - trata-se da representação de um processo mental no qual a personagem dá
livre curso a tudo O que anima a sua subjetividade, a sua vida psíquica interior; pensamentos,
emoções, idcias, memórias, fantasias, desejos, sensações. Nesse sentido, o fluxo de consciên.cia cria
um efeito de forte perturbação, perda ou, mesmo, abolição das relações de causalidade que regem
a lógica cotidiana e, também, um efeito de perda do controle da consciência pela personagem. O
fluxo de consciência é um recurso utilizado para aproxilnar maximamente o leitor da vida interior
da personagem, composta por elementos do consciente, do subconsciente e do inconsciente. UnI
de seus traços característicos é a fragmentariedade e a dificuldade de avaliar se as referências e as
informações apresentadas pertencem à memória, à imaginação ou à fantasia da personagelTI, bem
.1 como à imprecisão em relação à natureza real ou fictícia dos fatos narrados;
I
48 - T E o R I A LITERÁRIA

I
ii
Ii , ,
----<t100PERAOORES DE lEITURA DA NARRATIVA

de OBSERVAÇÕES IMPORTANTES:
de ,,) O monólogo interior, a análise mCllt:l1 c o Ouxo de cOllsciênci:l são rccursos quc podcm scr utili7 ....
1dos em um
mesmo tcxto;

lo b) Os limites cntre monólogo intcrior c Ouxo de consciência não são precisos. Um fator dc distinção, 110 entanto, reside
nO fato de qu~o primciro não cria o cfeito de perda do controle da consciência pela pcrsona6rcm - traço car:lc[crístico
do scgundo. E preciso nOlar, el1tret.il1to, quc tais recursos podem ser articulados num mcsmo texto. Não é incomulll
que;) partir de lima radicalização do monólogo interior a personagcm passc ao Ouxo de consciência.

:z,
as ******

ANALISE E INTERPllETAÇAO DE TEXTO NARRATIVO COM BASE NOS OPERADORES DE LEITURA DA


NARRA11VA

los
ico Exemplo 1: Leitura, análise e interpretação de llTragédia brasileira", de Manuel Bandeira (1985)
lto
"Tragédia brasileira" é um poema em prosa que integra o livro Estrela da 11!nI/M, publicado por

Manuel Bandeira em 1936. O poema em prosa, criado e desenvolvido por poetas simbolistas franceses
.ão
como Rimbaud e Mallarmé, funde, como o próprio nome sugere, características da poesia com

características da prosa, e foi particularmente cultivado pelos poetas modernistas brasileiros, entre as
ito
décadas de 20 e 30 do século XX.
ao
da o texto narra, COln certo humor, uma história de crimc passional. Para sermos mais precisos,
afábula de "Tragédia brasileira" é a seguinte: Um homem de 63 anos conhece uma prostituta em
precárias condições econômicas e de saúde e a leva para viver junto dele. Após bancar a recuperação
;te
da saúde e da beleza da amante, ele passa a ser traído por esta. Avesso a escândalos, decide mudar-
to
se de bairro cada vez que descobre uma traição da mulher. Após três anos e inúmeras mudanças de
go endereço, ele a mata COIn seis tiros.
ia
a As personagens fundamentais do texto são: Misael, Maria Elvira, os namorados de Maria Elvira. No
)r
que se refere ao grau de importãncia para o desenvolvimento do conflito dramático, as duas primeiras
são principais e as últimas, assim como o médico, o dentista, a manicura c a polícia são.sewndárias.
o,
Embora o texto não ponha em relevo os nanlorados, eles) lncsmo secundários, são essenciais para o
ia
desenvolvimento do conflito dramático.
No que se refere ao grau de densidade psicológica, as personagens classificam-se da seguinte

maneira:
a.
a a) Misael - dependendo da posição interpretativa do leitor, pode ser classificada como plana
o ou como plana com le"dê"âa a redonda, já que sua reação final (o assassinato) pode ou não ser
.a avaliada corno previsível. De qualquer modo, essa personagem não tem densidade suficiente
para scr considerada redonda;

á b) Maria Elvira - no início da narrativa, sua descrição permite que a caracterizemos. como 1'10 lIa-
;, estereótipo, pois caricaturiza a prostituta decadente, doente e miserável. Após a mancebia com
a .Misael, ela se classifica como pIaI/a-tipo, pois deixa de ser uma caricatura da prostituta decadente
1
para cncarnar a promiscuidade c a traição da ll1ulhcr infiel;
c) Namorados de Maria Elvira, médico, dentista, manicura, polícia - são todas planas-lipo, pois
r são definidas por mera identificação de função social.
O narmdor de "lhgédia brasileira" usa da 3' pessoa do discurso para narrar. Ele demonstra ter
eonhecimento de toda a história, embora não participe do conflito dramático nem da história narrada,
marcando-se pelo distanciamento em relação a esta. Por apresentar tais características, ele se classifica
corno narrador obsen1ador.

TIIO~I"S BONNrCl I LÚCI" OSANA ZOI.IN (ORCANIZAIlOnI!S) - 49

b
N C o JUNIOR

o foco narrativo adotado pelo narrador é o narrador onisciente Ileutro. A história é narrada e1113a
pessoa; o narrador adota uma posição distanciada, de observação dos fatos, o ãngulo de visão é global
(onisciência), mas não elnite opiniões nCln comentários sobre as personagens, a história ou, mesmo,
o temário (conceito que engloba ten1a e Inativos presentes nUln teÀ'tonarrativo) que aborda. E, aléITI
disso, não invade a subjetividade das personagens para dizer o que elas pensan1, sentem ou pretendcn1.
Note-se, por fim, que ele dá preferência ao uso de sumário para narrar- O que concentra o controle da
narração na sua voz, privilegiando, pois, a sua perspectiva na abordagem dos fatos.
Tais características do narrador e do foco narrativo, empregados por Manuel Bandeira nesse texto,
reforçam a aproximação de "Tragédia brasileira" com o gênero jornalístico e com O discurso jurídico,
marcando o poema em prosa do poeta modernista pela mistura de gêneros - traço importante da
literatura moderna/modernista. Note-se que o título do texto assemelha-se a uma manchete de jornal
sensacionalista e, também, que, no último parágrafo, a descrição da posição do corpo faz uso do jargão
de policiais e médicos legistas.
O conflito dramático (ou intriga) se estabelece entre as duas personagens principais: Misael e Maria
Elvira. Para melhor compreensão do conflito dramático, pode-se fazer um quadro de características
que opõem uma personagem à outra. Vejamos:

CARACTERÍSTICAS MISAEL MARIA ELVIRA

Funcionário do Ministério da
ProÚssão Prostituta
Fazenda

Não definida. O texto sugere que é mais jovem do


Idade 63 anos
que Misael

O texto não deúne, mas sugere que O texto não define, mas sugere, por meio da "aliança
Estado civil
é solteiro empenhada", a existência de um cas~mento

Bairro em que mora (no L,pa (tradicional bairro de boêmia e prostituição


Estácio (bairro de classe média)
início) quando o texto foi escrito)

Moradia Sobrado Não definida

No início: doente (sífilis), dermite nos dedos, dentes


Características físicas Não definidas
arruinados. Depois: bonita

Indumentária Não definida Definida no final: vestido de organdi azul

Tira Maria Elvira da prostituição;


Torna-se amante de Misael; recupera a saúde c
paga tratamento de saúde, banca
a beleza; satisfaz seus caprichos; trai Misael com
Ações todas as vontades dela; muda-se
outros homens em cada bairro em que vão morar;
de casa a cada traição; mata Maria
morre assassinada com seis tiros
Elvira com seis tiros

Quadro 12. Personagens que constroem o conflito dramático

Note-se, a partir de tal quadro, que Misael e Maria Elvira encarnam motivos (unidades temáticas
mínimas) fundamentais para o estabelecimento e o desenvolvimento do conflito dramático, a saber:
Amor (Ciúme) x infidelidade (Traição). Se o tema deve ser definido de modo a abarcar os paios opostos
que constituem o conflito dranlático, pode-se dizer que o tcn1a de "Tragédia brasileira" é o crime
passional ou a infidelidade. Não se pode afirmar que Maria Elvira seja uma adúltera, pois o texto deixa
claro que ela não era casada com Misael. No entanto, isso não nos impede de reconhecê-la como
traidora, infiel.
Como em toda narrativa há UIna íntima relação entre as personagens e os motivos, vejamos quais.
são os motivos que as personagens encarnam:

50 - T E o R I A LITERÁRIA
-~OI'I:iRAI)ORES DE I.EITURA DA NARRATIVA

.m 3:1
PERSONAGENS MOTIVOS (UNIDADES TEMÁTICAS MÍNIMAS)
;lobal
smo, Misacl Velhice, solidão, amor, dcvoç:io, paciência, discrição, violência
além
Maria Elvir:t .Iovialid:tdc, prostituiç50, miséria, in lidei idade, traição, ingratid:io
dem.
,Ieda N:unorados de Maria Elvira Desejo, sexo

Quadro 13. Personagens e motivos


e},,'to,
dico,
te da
)rnal Note-se que os motivos da velhice (Misael) e da jovialidade (Maria Elvira) se opõem num aspecto
lrgão muito específico, articulando-se COmos motivos do desejo e do sexo (namorados), para, nas entrelinhas,
sugerir que Misael não dava conta do desejo de Maria Elvira, não a satisfazia sexualmente.

~aria Há várias referências espaciais no texto. Isso nos permite classificar os espaços em principal e
iticas se(llndário, conforme o seu grau de importãncia para o conflito dramático. Vejamos:
• Espaço prindpal: Rua da Constituição, pois é nesse local, última moradia dos amantes, que
ocorre o assassinato.
• Espaços seculldários: Lapa, sobrado no Estácio, bairros e ruas do Rio de Janeiro (Rocha, Catete,
Rua General Pedra etc.).
Não há a,."biellte fixo nessa história. Pode-se deduzir, a partir das ações das personagens principais,
que, na situação inicial, Misael e Maria Elvira vivem eIll harmonia, mas, a partir do nó, passatn a viver
em conflito. Esse eonflito marca os diversos espaços, representados no texto pelos nomes dos bairros
I do e ruas do Rio de Janeiro, com uma tensão crescente, que explode em violência quando do assassinato.
Como o ambiente é definido exclusivamente a partir das ações de Misael e Maria Elvira, a ambientação
classifica-se como dissimulada.
Inça
O nó, elemento que introduz o conflito dramático, ocorre quando Maria Elvira arruma o primeiro
ição
namorado, pois é a partir daí que as sucessivas traições e mudanças de endereço se realizarão, produzindo
um efeito tenso e cômico, este último criado pelo modo como as mudanças são representadas no texto:
por meio de uma enumeração, no penúltimo parágrafo, dos bairros em que o casal morou. Nesse
parágrafo, as reticências finais sugerem que as traições e as mudanças foram inúoleras, incontáveis -
Jtcs o que também serve para a construção de uma gradação que marca, progressivamente, o sofrimento
amoroso e o esgotamento da paciência de Misael.
Em I'Tragédia brasileira", o clíHU/X c o desfecho 111anifcstam-se quase que sitTIultaneatTIente, pois o
assassinato de Maria Elvira é, ao mesmo tempo, o auge do eonflito entre ela e Misael (Amor-Ciúme x
c e
"om
Traição) e a resolução do mesmo. O ato de matar realizado por Misael marca a sua e""plosão emocional;
r:u; a morte de Maria Elvira acaba com o conflito dramático, resolvendo-o de maneira trágica. Integra o
desfecho a seqüência final descrita pelo narrador, que nos informa que a polícia encontrou a morta
caída de costas, vestida de .organdi azul.
Esses últimos detalhes reforçam o traço poético do tc;,'to de Manuel Bandeira,já que a partir deles
cria-se uma imagem plástica de forte apelo poético: a imagem da mulher morta, cujo vestido azul
scmitransparcnte de tecido caro, que sedutoratTIente revelava e ocultava ao mesrno tempo o corpo,
:icas está coberto de sangue. De ccrta forma, esse detalhe sintetiza, como numa alegoria, toda a história
ber: de crime passional narrada em UTragédia brasileira", Acrescente-se a isso o fato de que o assassinato
,stos Ocorreu, ironicamente, na Rua da Constituição, que remete às leis e à Justiça que regulam as relações
'iIne sociais, proibindo e penalizando o assassinato na nossa sociedade.
eIXa
Por fitn, note-se que o narrador, ctTIbora lance mão do foco narrador onisciente neutro, não deixa de
)mo
posicionar-se em relação à história que narra. Sutilmente, o nlodo como a história é construída revela
que ele privilegia Misael em detrimento de Maria Elvira, construindo o texto com elementos que
uals tendem a influenciar o posicionamento do leitor em relação aos fatos narrados. Isso é partiClllarmente .
perceptível no [.1tOde que a ingratidão e a promiscuidade de Maria Elvira são ressaltadas quando o

TllOMAS BONNICI I LÚCI" OSANA ZOl.lN (ORCANI7.AOonr.s) - 51

.z
-
JUNIOR

narrador afirma que, apesar de Misael dar "tudo quanto ela queria" c relevar as traições, rTIudando-se
de bairro com ela em vez de lhe dar "uma surra, mTI tiro, uma £lcada", a mulher continuava a arrumar
namorados - o que reforça, na personagem, o traço interesseiro. No entanto, o texto, embora indique,
não destaca o £,to de que entre os amantes pesa uma diferença de idade que afeta de modos diferentes
o sexo e o descjo. Se a essa difercnça associarmos a diferença de classe social, torna-se menos t:1cil
responder à pergunta: quem, afinal, explora quem nessa história?

Exemplo 2: Leitura, análise e interpretação de "Um apólogo", de Machado de Assis (1975)

Umapólogo

Machado de Assis
Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha:
- Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma coisa neste mundo?
- Deixe-me, senhora.

- Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que está com um ar insuportável? Repito que sim, e blarci
sempre que me der na cabeça.

- Que cabeça, senhora? A scnhora não é alfinete, é agulha. Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada
qual tem o ar quc Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida, e deixe a dos outros.
- Mas você é orgulhosa.
- Decerto que sou.
- Mas pdr quê?

- É boa! Porque coso. Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem é que os cose, senão eu?
- Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem os cose sou eu, c muito eu?
- Você fura o pano, nada mais; Clt é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados ...
- Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por você, que vem atrás, obedecendo ao que
eu faço e mando.
- Também os batedores vão atrás do imperador.
~ Você, imperador?

- Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, indo adiante; vai só mostrando' o caminho, vai
fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto ...
Estavam nisto, quando a costureira chegou à casa da baronesa. Não sei se disse que isto se passava em casa de lima
baronesa, que tinha a modista ao pé de si para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da agulha,
pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser. Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo pano adiante, que
era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana _ para dar a isto uma cor poética. E
dizia a agulha:

- Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco? Não repara que esta distinta costureira só se importa
comigo; cu é que vou aqui entre os dedos dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima".
A linha não respondia nada; ia andando. Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ela, silenciosa e ativa,
como quem sabe o que faz e não está para ouvir palavras loucas. A agulha, vendo que ela não lhe dava resposta, calou-se
também, e foi andando. E era tudo silêncio na saleta de costura; não se ouvia mais do que o p'lic-plic-plic-plic da agulha
no pano. Caindo o sol, a costureira dobrou i. costura, para o dia seguinte; continuou ainda nesse e no outro, até que no
quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile.

Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no
corpinho, para dar algum ponto necessário. E enquanto compunha o vestido da bela dama, e puxava a um lado ou outro,
arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, acolchetando, a linha, para mofar da agulha, perguntou-lhe:
- Ora, diga-me, quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é
que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio
das mucarnas? Vamos, diga lá.

Parece quc a agulha não disse nada; mas um alfinete de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre
agulha:

- Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na
caixinha da costura. Faze como cu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico.
Contei esta história a um profcssor de melancolia que me disse, abanando a cabeça: _ Também eu tenho servido de
agulha a muita linha ordinária!

52 - T E O R I A LITERÁRIA
/=....
-----41t 2~ O P E It A D O R E 5 () F. L li. I T U R A D f\ N A fi. RAT I VA
.••..",

)-se "Um apólogo", conto de Maeludo de Assis, apresenta-nos a segl1intefállllla: Um narrador conta
mar a seu professor a história de uma disputa entre uma agulha e uma linha para definir quem era a mais
lue, importante. A agulha provoca a briga, ofendendo a linha. Esta reage, mas, em certo ,;,omcnto, cala-se
ltes e concentra-se no trabalho que ambas, manipuladas por uma costureira, f.1ziam: o vestido de baile de
ãcil uma baronesa. A discussão cessa até o dia do baile. Quando a costureir:1 termina o{ 3rrCI11atcs finais
no vestido, a linha humilha a agulha demonstrando-lhe que é ela quem vai ao bailc:~nquanto a outra
voltará para a caixinha de costura. A agulha cala-se e, depois, recebe um conselho d~um alfinete. O
professor, ao ouvir tal história, faz um comentário no qual compara-se à agulha. Há, se pode ver, t~mo
duas histórias entrelaçadas no conto de Machado, mas a mais importante é a da disp.~a entre a agulha

is
e a linha. Como elas estão animizadas, isto é, apresentando atributos humanos, esta~os diante de um
tipo específico de conto: Oapólogo (conto maravilhoso protagonizado por objetos).
OCOIif/ito dmlluítico (il/triga) do texto pode ser definido de dois modos, compleme';t r~s: Insegurança
I.
x Autoconfiança oulhbalho x Parasitismo Social. Podemos definir como tema o Op~iunismo,já que
. ele é capaz de englobar a totalidade do conflito dramático. Poderíamos, também, a~nar que o tema
é: o Parasitismo Social, que também engloba a totalidade da intriga. Os principaisltivos ligados ao

,
tema são: a ambição, a inveja, a vingança, a arrogância, a ;lstúcia, a sobriedade, a esperteza, a tolice, as
diferenças sociais, a vaidade.
As persol/agws que protagonizam o cotif/ito cel/tml são a agulha e a linha, por isso elas :ficam-se como
I
perso/lagel/s principais. As demais são persollagellS seCllndárias, a saber: o alfinete, a costul~a, a baronesa, o
narrador e o professor de melancolia. No entanto, note-se que há um paralelismo enm as personagens
protagonistas (agulha e linha) e as personagens secundárias (costureira e baronesa; aJ1!,os ordinários e
professor). Esse paralelismo é responsável pela crítica social presente no conto, é O ~ O f.1Zum texto
que cumpre o compromisso com o Realismo ao qual se vincula Machado de ASSiS .. '
O conflito dramático desenvolve-se na casa da baronesa, que é o espaço prillcipa~da narrativa. Os
demais espaços, todos secundários, são: a sala de costura, o salão de baile (simples referência) e a
caixinha da costureira. O ambiente dominante no espaço principal é de tensão, confli15, agressividade .
Como só podemos perceber o ambiente por meio das ações das personagens, a ambientação presente •
no te,,"to é dissim/llada. I'
O I/Ó ocorre logo no início da narrativa, nas primeiras falas da agulha e da linha, quando a
primeira provoca a segunda, c continua a procurar briga, lllcsmo com a resposta r servada da outra.
O desenvolvimento do conflito chega ao auge no dia do bailc, quando a linha vin~se da agulha ao
perguntar-lhe quem é que, afinal, vai ao baile. Nesse momento, Ocorre o clímax da narrativa, pois
.o conflito atinge o seu grau mmITIo. Note-se, no entanto, que esse clílnax liga-~~inlcdiatalnente
ao deifecllo da narrativa: a linha vai ao baile e a agulha, humilhada, ganha um con~lho em tom de
repreensão do alfinete de cabeça grande. .1
O narrador do conto vale-se da 3:1 e da 1:1 pessoas do discurso. Predomina, no entalho, aja pessoa, no
modo como ele organiza a história da agulha e da linha e, por isso, ele c1assifica-se,tesse easo, como
observador. Quando, no final, o narrador utiliza a la pessoa, incluindo-se na narr;ltivaque nos conta, cle
classifica-se como particip;nte. ) .
O tempo cronológico presente na narrativa é linear, ou seja, organiza-se segundo a concepção
dominante de tempo (passado-presente-futuro), e marca-se por relações de caus~e-consequêl1cia.
Não se pode dizer que o tempo psicológico tenha destaque nesse texto, já que as persoílagens principais
são platlas e as seeundárias são plallas-tipo. No entanto, pode-se depreender uma psi~logia e um telllpo
das afães da linha e da agulha. A linha tem como traço psicológico dominante a paciência - o que faz
com que o tempo psicológico de suas ações marque-se por tal elemento. A agulha;Ypor sua vez, tem
como traço psicológieo dominante a agressividade - o que faz com que o tempo psicológico de suas
ações m,.rque-se por tal elemento. Paciêneia sugere segurança, calma, ritmo comedido; agressividade
sugere, nesse caso, arrogância, irritação, ritnlo vc1oz, insegurança. •
As prineipais figuras de linguagem desse conto são: a personificação (evidente na animização da
agulha e da linha), a comparação (dedos da costureira - galgos de Diana), a onomatopéia (plic-plic-plic)

TltOMAS 130NNICl I I.ÚCIA OSANA ZOLlN (O;CANIZAI)Ollr.S) - 53


JUNIOR

e, sobretudo, a ironia (que domina o texto do início ao fim, estabelecendo-se nas f:1lasda agulha e da
linha, e, tambélTI, na associação entre a posição c o comportamento de ambas e seus correspondentes na
costureira e na baronesa). A sutileza crítica de Machado de Assis fica evidente quando percebemos que
tal"associação visa, na verdade, criticar a estrutura socioeconâlnica e política da época, baseada numa
brutal diferença de classes sociais. O grande parasita social do conto telTI UlTIapresença discretíssima:
é a baronesa, que usufrui do trabalho de todas as demais. Desse modo, pode-se notar que Machado
usa de elementos pertinentes ao conto maravilhoso como estratégia para, na verdade, fazer um texto
realista.

Exemplo 3: Leitura, análise e interpretação de "domingo no parque", de Gilberto Gil (In: GÓES,
1982)

domingo no parque

Gilberto Gil

o rei da brincadeira - ê j.osé o sorvete e a rosa - ê josé


o rei da confusão - ê joão a rosa e o sorvete - ê josé
um trabalhava na feira - ê josé oi dançando no peito - ê josé
outro na construção - ê joão do josé .brincalhão - ê josé
o sorvete e a rosa - ê josé
a semana passada no fim da semana a rosa e o sorvete - ê josé
joão resolveu não brigar oi dançando na mente - ê josé
no domingo de tarde saiu apressado do josé brincalhão - ê josé
e não foi pra ribeira jogar juliana girando - oi girando
capoeira oi na roda gigante - oi girando
não foi pra lá oi na roda gigante - oi girando
pra ribeira o amigo joão - joão
foi namorar
o sorvete é morango - é vermelho
o josé como sempre no fim da semana oi girando e a rosa - é vermelha
guardou a barraca e sumiu oi girando girando - olha a faca
foi fazer no domingo um passeio no parque olha o sangue na mão - ê josé
lá perto da boca do rio juliana no chão - ê josé
foi no parque que ele avistou outro corpo caído - ê josé
juliana seu amigo joão - ê josé
foi que ele viu
juliana na roda comjoão amanhã não tem feira - ê josé
uma rosa e um sorvete na mão . não tem mais construção - ê joão
juliana, seu sonho, uma ilusão não tem mais brincadeira - ê josé
juliana e o amigo joão não tem mais confusão - ê joão
o espinho da rosa feriu zé
e o sorvete gelou seu coração_

domingo 110 parque é a letra de uma famosa canção tropicalista da música popular brasileira. Vamos,
neste breve estudo, nos ater apenas à narrativa de crime passional que ela encerra.
Um feirante brincalhão mata, por ciúme, um casal de namorados num parque de diversões em
pleno domingo - eis, sinteticamente, afábula de domingo 110 parque. Para sermos mais precisos, no
entanto, organizemos afábula da seguinte maneira:]osé, feirante brincalhão, mata a facadas o capoeirista
João e sua namorada Juliana num domingo, em frente à roda gigante de um parque de diversões.
As personagens do texto são João, José e Juliana. Em relação ao grau de participação no .
desenvolvimento do conflito dramático, João e José classificam-se como principais e J111ianacomo
", 54 - T E o R I A LITERÁRIA
- .•••.
~OI'ERAI)OI~ES DF. LEITURA DA NARRATIVA

e da secundária. já que ela, clllbora seja essencial para que o triângulo amoroso se configure, não f.'1Zmais
:5na do que ocupar a posição de objeto da disputa entre José e João.
que
Quanto ao grau de densidade psicológica, João e J uliana são planas e José é plana com tendência
JITIa
a redonda, pois, alénl d.c nos surpreender com uma reação violenta motivada pelo ciúme, é a (mica
ma:
personagem cuja psicologia é enfatizada pelo texto, como se pode notar na terceira e na quarta estrofes,
,ado
em que uma breve utilização do foco narrativo ollisciêllcia seielÍlla pelo narrador põe em relevo as
~xto
percepções, pensamentos e sentimentos dessa personagem diante do casal de namorados que ele vê
na roda gigante.
O llarrador, CIl1 "dol11ingo no parque", é preclominantclnente observador, narra cln 33 PCSSO:l,não
participa diretamente do conflito dramático nem da história narrada e não emite opiniões e/ou juízos
sobre a história ou as personagens. Isso confere ao texto um quê de objetividade que o aproxima
levemente do relato jornalístico. O narrador, entretanto, usa de dois focos narrativos para organizar
a sua narrativa: narrador onisciente neutro c onisciência sefetÍl,{/. O priTnciro foco é o que predomina no
texto, enfatizando a neutralidade do narrador e sua distância em relação aos fatos narrados. O segundo
foco manifesta-se na terceira estrofe e nos versos de 1 a 3 da quarta estrofe, aproximando o leitor
da perturbação mental e emocional de José, tomado 'pelo ciúme diante da visão de João e Juliana
namorando na roda gigante. Note-se:

o sorvete c a rosa - ê josé


a rosa c o SOlVe te - ê josé
oi dançando no peito - ê josé
do josé brincalhão - ê josé
o sorvete e a rosa - ê josé
a rosa e o sorvete - ê josé
oi dançando na mente - ê josé
do josé brincalhão - êjosé
juli:ma girando - oi girando
oi na roda gigante - oi girando
oi na roda gigante - oi girando
o amigo joão - joão

o SOlVe te é morango - é vermelho


oi girando e a rosa - é vermelha
oi girando girando - olha a f.'C:l

Nesse trecho, os signos rcnletcm simultaneamente a dados externos c internos, ou seja, aos
detalhes que José vê (os Ilaniorados, a roda gigante, a rosa, o sorvete de morango) e ao ciúme que
progressivamente cresce dentro dele. A repetição cria um efeito de circularidade, que tanto marca o
s, girar dos namorados na roda gigante como a perturbação emocional que mistura a,mor e ódio ao ciúme.
A ênfase conferida à cor vermelha intensifica o conflito dramático, pois se presta tanto à simbolização
do amor como à simbolização do ódio. "
n
o O conflito dramálico (inlriga) é polarizado por José e João, que protagonizam a rivalidade masculina
:a . no triângulo amoroso que tem Juliana como vértice e objeto de desejo. Essas personagens encarnam
os principais motivos (unidades temáticas mínimas) do te:Kto:Ciúme x Amor.

o Há, em princípio, três possibilidades de tema:


o a) o ciúme -uma vez que é o motivo que rege as ações de José, o anti-herói da narrativa;

T1l0M •••S BONNICI I LÚCI'" OS"'N'" ZOL1N (OIlG •••NIí' .•••oollrs) - 55


-
NCO JUNIOn

b) a morte - uma vez que é o motivo que se liga tanto às ações de José como ao destino de João
e Juliana;

c) o amor - uma vez que é o Inativo que se liga às principais ações das personagens.

Como O tema se define pela capacidade de abarcar a polaridade que caracteriza o conflito dramático,
também podemos dizer que seja o crime passional. Uma vez definido um tema, as demais unidades
temáticas passam inlcdiatalllcnte à condição de Inativos vinculados direta ou indiretamente a este. Se,
por exctuplo, o tema definido for o ciüme, o amor, a morte e o ódio tornam-se os motivos associados
a ele.

Os motivos (unidades temáticas mínimas) de domingo /la parqne são: amor, ódio, rivalidade,
competitividade, agressividade, violência, desejo, delicadeza, carinho, alegria, despreocupação,
fragilidade, descontrole, morte, tristeza. Alguns, como o amor, a violência, a morte, são essenciais para
o desenvolvimento do conflito dramático. Já outros, como a delicadeza e o carinho, que se vinculam
a]uliana eJoão quando estão nanlorando, en,bora inlportantes, ocupam UlTIa posição secundária em
relação ao desenvolvimento do conflito dramático.

O nó da narrativa ocorre quando José se depara, no parque de diversões, com João e Juliana na
roda gigante e percebe que eles estavam namorando:

foi no parque que ele avistou


juliana
foi que ele viu
juliana na roda com joão
uma rosa e um sorvete na mão
juliana, seu sonho, uma ilusão
juliana e o amigo joão
o espinho da rosa feriu Zé
e o sorvete gelou seu coração

Tal visão dá início à reação passional de José, que se desenvolve nas estrofes 4 e 5, explodindo
quando ele puxa a faca e mata João e Juliana - trecho que caracteriza o clímax e o desfecho da narrativa:
olha aJaca/ olha o sangue l1a mão - êjosé/ julialla '10 chão - êJosé / outro corpo caído - êjosé/sen amigo João _ êJosé.
Note-se que o c1írnax, momento que caracteriza o auge irresolvido da tensão e das expectativas geradas
pelo conflito dramático, ocorre em olha aJaca/ olha o sangue na mão - êJosé, ao passo que o desfecho, que
caracteriza a resolução do conflito e seus desdobramentos finais, ocorre nos versos finais dessa estrofe
e na estrofe seguinte:

]uliana no chão - ê josé


Outro corpo caído - ê josé
seu amigo] oão - ê josé
amanhã não tem feira - ê josé
não tem mais construção - ê joão
não tem mais brincadeira - ê josé
não tem mais confusão - ê joão
i.
, 56 - T E o R I A
í LITERÁRIA

li.
J 1
,.....:~" .. ---------------------------

-~00PERADORES DE lEITURA DA NARRATIVA

:JoãO o tempo crollológico Ií'lenf é dOlllillante na narrativa. A história é construída C0l11 começo, IllCio c fim,
organizados linearmente, ou seja, Inantendo as relações de crtusa-c-consequência naturais entre uln
episódio ou ação e seus desdobramentos. Além disso, nota-se uma distância entre o tempo da narração
e o tempo da história narrada, situada num passado em relação àquele que narra (o narrador). Um
hico, dado importante é a referência ao domingo, dia da semana dedicado ao descanso c ao divertimcnto.
Iades
O tempo psicológico, vinculado ao foco oll;sciêncin se!elifJfl, faz-se presente C0l11 vcclnência na terceira c
~. Se,
quarta estrofcs, quc dcstacam o cstado passional dc José, criando o efcito de uma máxima aproximação
.ados entrc O leitor c a subjetividadc da personagem.
O espaço pl'illcipal é o parque de diversões perto da boca do rio c, nelc, a roda gigante é o
bde, elcmcnto mais importante. Há uma referência a outros dois espaços - a feira e a construção -,
lção, que são sewlldários. A roda gigante passa, no texto, da denotação (referência física) à conotação
para (rcferência simbólica e psicológica). Como isto acontcce? Vejamos: ela rcmete, por associação
dam direta, à capoeira que João sabe e gosta de lutar, à circulação dos afetos positivos c negativos (amor
.cm e ódio) existentes no triângulo amoroso, à confusão dos corpos no momento do ataque de José e
à própria vertigem deJosé em sua crise de ciúme diante da visão do casal de namorados. O texto,
por sua vez, reforça isso ao marcar-se pela circularidade construída por meio de elementos que se
l na
repetem nos versos.
O ambiente sofre uma alteração progressiva ao longo da narrativa. Na situação inicial, de
apresentação das personagens (estrofes 1 e 2), é tranquilo, rotineiro. No parquc, antes de José vcr o
casal de namorados na roda gigante, é harmõnico, alegre. A partir do nó, torna-se tenso, conturbado,
agressivo. Na situação final é melancólico, triste. A alllbielllaçáo é dissilllulada porque os ambientes vão
sendo definidos a partir das ações das personagens, ou scja, são essas ações que definem o "clima" que
se estabelece entre as personagens nas várias situações do texto.
Note-se que o crime passional cometido por José ocorre num espaço cujo ambiente, normalmente,
se marca pela alegria e pela descontração. O ataque com a faca c o assassinato do casal de namorados
destoa do espaço e do ambiente usuais de um parque de diversões. .
A dramaticidade do confl ito se dá pelo fato de quc o crime passional ocorre em pleno domingo, dia dc
descanso e dc relaxamento das tensões cotidianas, c cm frente à roda gigante de um parque de diversõcs,
que estão usualmente ligados aos motivos de prazer, divertimento, alegria, despreocupação.
Certos detalhes ganharão, no te,,'to, uma dimensão simbólica importante. Os epítetos das
personagens masculinas que dCl1otaJl1 características psicológicas habituais contrastam com as ações
quc eles desenvolvem no conflito dramático criado pelo triângulo amoroso: José, o rei da brincadeira,
ia revela-se violento e assassino;João, o rei da (onfi/sáo, revela-se amoroso e delicado comJuliana, além de
'a: frágil ante a violência de seu rival.
ié. Temos, também, a rosa e o sorvete que J lIliana carrega na mão. Além de represcntarem a relação
as amorosa estabelecida entre ela eJoão, esses clementosjá prenunciam, pela corvenne1ha que apresentall1
le ou sugerem, o sangue lla mão de José. O sorvete de 1110rango a rosa e o sangue nos remetem diretamente
l

fe ao vermelho, cor que sintetiza o ten1a e alguns dos motivos importantes da narrativa: o amor, a paixão,
O ciútTIc, o ódio, a violência, a 111orte,o crime.

Por fim, destaque-se o fato de que os nomes das personagens começam com O) e são grafados em
letras minúsculas - o que cria uma identidade cntre João,José e Juliana, reforçando os laços de amor e
ódio presentes no triângulo amoroso e, também, dcmarcando a sua posição social subalterna.
domingo 1/0 parque marcou,juntamente comA/egria, alegria, de Caetano Veloso, o iníciodo movimento
tropicalista na música Jlopular brasilcira em 1966-67. A canção de Gilberto Gil caracteriza-se

por sua construção cinematográfica cm que, após situar as pcrsonagcns e descrevcr o cenário
onde a ação sc dcsenrolará, o compositor passa a narrar os fatos, empregando a técnica de
montagem cm pcqucnosflashes. Além de letra e melodia, o compositor junta ruídos, palavras
e gritos sincronizados às cenas descritas, evocando rcalisticamente um parquc de diversõcs'
(GÓES, 1982, p. 26).

TllOMAS BONNICI I LÚCIA OSANA ZOl.lN (OrtGAN1".AIlOI1l:S) - 57

tt

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apresentamos, neste capítulo, uma síntese dos princIpais conceitos operatórios para o
desenvolvimento da leitura e da análise do texto mrrativo. Demos ênfase a uma abordagem de base
formalista-estruturalista em relação a tal instrumental de leitura em razão da função que, no todo deste
livro, este capítulo pretende cumprir. Destacamos, no entanto, o fato de que tal viés de abordagem do
texto narrativo é apenas um dos muitos possíveis, já que toda teoria pressupõe um método a partir do
qual sua utilização e seus resultados se tornan1 possíveis. Logo, o leitor encontrará outros caminhos
para o desenvolvimento da análise descritiva e da análise interpretativa do texto narrativo se buscar
informações em outras vertentes de teoria da literatura.

REFERÊNCIAS

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