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Pontifícia Universidade Católica


do Rio Grande do Sul

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Dom Dadeus Grings

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Conselho Editorial
Agemir Bavaresco
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2º Edição no Brasil
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Lu lan KI kn er

~
EDIPUCRS
Jt• r 1111110 .irl Sa ntos Braga - Diretor
Jrniw e 111t1po d Costa - Editor-Chefe ediPUCRS
Po rto Alegre, 201 3
SUMÁRIO

11 NOTA PRÉVIA

13 PREFÁCIO

19 CAPÍTULO 1- A LITERATURA COMO INSTITUIÇÃO

77 CAPÍTULO li -A LINGUAGEM LITERÁRIA

123 CAPÍTULO Ili - TEXTO LITERÁRIO E OBRA LITERÁRIA

167 CAPÍTULO IV - TEXTO LITERÁRIO E ARQUI TEXTUALIDADE

219 CAPÍTULO V -A POESIA LÍRICA

245 CAPÍTULO VI -A NARRATIVA LITERÁRIA

269 CAPÍTULO VI I -A EVOLUÇÃO LITERÁRIA

289 CAPÍTULO VIII - OS PERÍODOS LITERÁRIOS


CAPÍTULO IV
TEXTO LITERÁRIO E ARQUITEXTUALIDADE

1 OCONCEITO DE ARQU ITEXTUALI DADE

1.1 O conceito de arquitextualidade designa uma propriedade ou um


1111junto de propriedades articuladas entre si, que podem ser entendidas como
11 ln~ncia geral capaz de explicar certas semelhanças que congraçam muitos tex-
to literários. Essas propriedades estabelecem-se numa posição de transcendência,
1111forme sugere, no vocábulo arquitextualidade e noutros de constituição seme-
lh.11Hc (arquétipo, arquidiocese etc.), o prefixo arqui-, significando "primazià',
11perioridade". Naquilo que a este capítulo interessa, a problemática da arqui-
1 t ualidade orientar-se-á para o estudo da genologia 1, quer dizer, dos modos, dos
ncros e dos subgéneros literários; não sendo essas as únicas categorias literárias
m críveis de serem explicadas sob o signo da arquitextualidade, elas são decerto
q11das em que essa explicação se torna desde logo operativa.
Esclareça-se desde já que o conceito de arquitextualidade2 estabeleceu-se,
1111 .1mbito da moderna teoria do texto literário, a partir do trabalho teórico de G.
11 nette, em torno da questão genérica da transtextualidade. Com este último

167
·011 ·ci LO , (; ' 11 'li ' pro ·u rou 'S jl t' i 11 ,li !l oh jl'l t l 1',l 1,d l.1 po(- 1j ':l , rt' !' ·ri 11do M' 11 110 .11 l- q11 1· 11.10 p11111m li X lll~ (t o11H1 {- o r: 1M1 d.i ~ Vi1tgl'l1S) ·011sli1ufr:im a
-lhe como sendo a propricdad · da 1r:i11s 't• 11dt 1H t.1 1 ·x 111 .d, ·m f'u11 ç:10 da qu:il 1 111 11niorkd:1d · li1 rd ii.1 v 1d1ur:1l a partir d a subversão dessas prescrições. Uma
possível "saber tudo o que põe lo texto.! cm r · l:i~·:io , manifesta ou scc r ·ta, rn 111 11l1v1•rs:10 positiv:1111l'l11 l' valorada numa perspetiva histórico-literária, atitude tor-
outros textos". 3 11111.1 poss ívd prec isam ente desde que se neutralizou a rigidez normativa que essa
De acordo com a postulação genettiana e conforme noutro local desta oh1 .1 1111 1.10 ·onbcceu, no tempo do Renascimento e do Classicismo europeu.
notámos já, a arquitextualidade é entendida, então, como um tipo particular d1
relação transtextual, a par da intertextualidade, da paratextualidade, da m ctn l .2 Entretanto, outras categorias literárias podem também ser entendidas
4
textualidade e da hipertextualidade. Assim, a arq ui textualidade define-se co 11111 111110 ·ategorias arquitextuais: o verso e as suas modulações técnicas, as figuras de
"o conjunto das categorias gerais ou transcendentes - tipos de discurso, modos d1· t 1111 l ·a, certos reportórios temáticos, míticos e simbólicos, revestem igualmente
enunciação, géneros literários etc. - de onde decorre cada texto singular" .5 11 .ll l T convencional, sendo dotados de variada tensão institucional e diversa-
Como é óbvio, o domínio em que com mais evidência se observa o exl'I 1111 111 • aceites pelos sujeitos que, em determinados quadros histórico-culturais,
cício da arquitextualidade é o dos modos e géneros literários. De facto, quand 11 111111 ·iam os textos literários.
dizemos do Memorial do Convento de José Saramago que é um texto narrativo 1
" e os modos, os géneros e os subgéneros literários possuem um forte
mais propriamente, um romance, mas não exatamente um romance históri rn , 1111 h·r de categorização arquitextual, deve-se isso em parte ao facto de, desde a
estamos a operar uma reflexão dimensionada, nesse caso, a três níveis distintos: :til 111 guidade, terem sido objeto de uma atenção considerável. Os textos platóni-
nível dos modos do discurso, ao nível dos géneros literários e ainda ao nível do ' 11 1· aristotélicos de incidência doutrinária (sobretudo, A República de Platão e a

subgéneros do romance, entendidos como arquitextos daquele texto. A narrati v.1, ,, tlr11 de Aristóteles) incidem com algum pormenor sobre os modos de enuncia-
o romance e o romance histórico constituem, então, referências arquitextuai ~. " do discurso e sobre questões de índole genológica: a distinção de fundamen-
investidas de capacidade classificativa e configurando, simultaneamente, um ho 1 111 dos de representação de propensão narrativa, dramática ou mista, a defi-
rizonte de expectativas que enquadra e rege a leitura. 1\ .lll de géneros como a tragédia, a comédia ou a epopeia, também problemas
Isso não significa que, sempre que aludimos às vinculações arquitextuais dr 1 11,1wreza técnico-compositiva (como o uso do verso ou da prosa) em certos
um texto, seja possível pronunciarmo-nos sobre ele de forma tão particularizad a; 111·ros etc. etc. Algumas dessas questões foram depois muitas vezes retomadas,
e isso não quer dizer também que o estabelecimento de relações arquitextuais dcv.1 l11d.1 na Antiguidade Clássica por Horácio, durante o Renascimento 6 sob o signo
ser entendido necessariamente como critério para a formulação de juízos de valo1 1 111na consciência doutrinária e normativa que se acentua no Neoclassicismo,
definitivos. Obras como as Viagens na minha terra de Garrett (este "desproposi 1Ih tarde em reflexões de Hegel e Goethe; ocorrem estas últimas imediatamente

tado e inclassificável livro das minhas VIAGENS", como lhe chama o narrador) 1111' de a contestação romântica impor uma conceção inovadora, libertária e
ou como o Livro do Desassossego de Bernardo Soares são consabidamente muitn 111111ormativa da criação literária, o que, naturalmente, conduz à subversão dos
problemáticas quanto a uma classificação precisa, no que ao estatuto arquitextu:tl 111 r s ou, no mínimo, à sua hibridização.7
dos géneros diz respeito; e mesmo o citado Memorial do Convento, dialogando d1· Ainda no rasto de atitudes criativas de tipo idealista e de reminiscência
forma algo crítica e num contexto cultural pós-moderno com o romance histó 1111. ntica, é por vezes refutada a existência de entidades transcendentes de tipo
rico oitocentista, não interpreta de forma passiva a dinâmica arquitextual que o 1q11itcxtual, quando se afirma o princípio da irrepetível singularidade dos tex-
liga ao romance e a um seu reputado subgénero. Ora, não parece legítimo, e111 1 literários. Contudo, nos últimos anos, a teoria da literatura tem insistido na
nenhum desses casos - e dificilmente em qualquer outro caso-, exprimir juízo,, 11~ . 10 de que, tanto de um ponto de vista teórico como em termos operatórios,
de valor acerca da qualidade artística de um texto, tendo em atenção apenas .1 1111inua a ser epistemologicamente pertinente o recurso a essas entidades arqui-
forma como esse texto cumpre ou ignora prescrições de índole arquitextual; 1· 111ais; uma tal noção apoia-se no trabalho teórico de autores fundamentais da

168 TEXTO LITERÁRIO E ARQUITEXTUALIDADE O CONHECIMENTO DA LITERATURA 169


1 '<>ria da litl'l':llu1\1 .1t11.il (< :. l .1il : ' ·'• 1 . 11111, t\ 1 li.ti l11 l11 r, 1\ , l l.1111li111 g11 1111 l (,•: tli,~ 1110 1· do N.11111 .tl l 11111 , 111 .1' .10 lllt'1' 11l<> lt· 111po, ·I "~ s:10 1:1mb6111 tex tos
W. Kayser, M . l;ubini , N. h ye, l·'.. St:tig,·1, 1\ l ll't 11,1dl , /\ . !o'owk r, I•'.. Mi11 c1, (, d1t.11los, ou st·j:1, t'o111da•11do1111114 '• 11 •ro lit ·r:írio css ·ncial para o desenvolvimen-
8 111 d.1q11des rnovi111 t·111os llt ·d rios, mas de certa forma encerrando-o dentro de
Genette etc. ), trabalho muitas vezes di scu1 id o t' 11:10 r:tr:ts superad o, mas, dl' q11 .tl
quer forma, base de referência incontornável no prese nte co ntexto. l111tll\·s periodológi ·os es treitos.
Os exemp los que temos dado, apontando para alguns dos problemas le-
1.3 Não nos propomos, neste capítulo, tentar uma classificação rígich d11 1111.1dos pela problemática dos géneros literários, alertam também para o seguin-
modos e dos géneros literários, comportamento que viria contrariar im por1.111 11 t•ssa é uma reflexão que deve ser constantemente apoiada pela referência ao
tes aquisições da moderna teoria da literatura. O que pretendemos é, prinH·1111 p1t>l'l'SSO de evolução literária, processo transformador em função do qual certos
que tudo, mostrar como é possível organizar (ou talvez melhor: destrinçar) '"''•' 1111 1·citos fazem (ou não) sentido. Só assim se evitará que os géneros literários
complexo campo teórico; só em função disso será possível descrever de for1111 j.1111 encarados, como algumas vezes aconteceu no passado, como postulações
consistente alguns dos mais significativos géneros literários. 11111·mativas e de certa forma autoritárias, com puro propósito classificativo; por
Parte-se, assim, da moderna aceitação dos modos e géneros literários co 1111 1 11111ro lado, o diálogo com a História (que também está em causa, quando se ob-
categorias teóricas fundamentadas e epistemologicamente legítimas. Essa acl'il.1 11 va o modo como a literatura evolui) constitui uma forma privilegiada de evitar
ção consegue-se, entretanto, como termo de chegada de um longuíssimo traj l' t1 1 11111.1 fixação de índole metateórica e especulativa, igualmente desligada da dinâ-
histórico que caracteriza a análise desse problema (um trajeto que encontrou 111 1 1111ra de produção e mudança do fenómeno literário: como observa José María
seu caminho diversos marcos de referência ideológico- cultural, forçosamente i11 1'111.11elo Yvancos, "a sensação de problematicidade e de escasso progresso decorre
terferentes na reflexão doutrinária), trajeto a que não é estranho um contri b11111 il11 facto de se ter originado, na Poética atual, um deslocamento da teoria (dizer
muitas vezes sugestivo, mas nem sempre clarificador: a atitude dos próprios cst 11 h l'l'Ca das obras) para a metateoria (dizer acerca da própria teoria), de forma a que
tores em relação aos géneros literários. p11~sa construir-se um tratado de géneros, quase sem mencionar obras literárias". 9
Se a posição dos escritores a esse propósito pode ser muito significativ;1 1 Para além das precauções que essas palavras aconselham, convém notar
estimulante, isso não implica que ela seja necessariamente decisiva. Por exempl11 l tmbém o seguinte: quando tratamos da problemática dos géneros literários loca-
Camilo Castelo Branco intitulou uma das suas obras O Romance de um hor11t111 ll1.11nos e privilegiamos um campo específico num domínio que deve entender-se
rico; quer isso dizer que essa obra há-de ser entendida como exemplo ortodoxo 1 111110 muito mais amplo e que é o dos géneros do discurso. A possibilidade de
definitivo do género literário que dá título àquela narrativa? De maneira nenli11 p«nsarmos na existência de práticas discursivas suscetíveis de serem associadas por
ma. Mais \ se é certo que Camilo se destacou como talentoso cultor de um génrn 1 l~uma relação de semelhança constitui, então, a base de sustentação para subse-
narrativo com grande popularidade na época (a novela romântica), não é segu1 11 pu:ntes configurações genológicas, de índole propriamente literária; ora, uma tal
que ele seja um caso exemplar de cultor do romance, quando comparado co11 1 ossibilidade só faz sentido a partir de uma conceção não estritamente individu-
grandes romancistas do seu tempo: com Flaubert, com Eça, com Clarín ou co11 lista e/ou psicologista das práticas linguísticas. Por outras palavras, dir-se-á que
Dickens, entre muitos outros. processos discursivos não decorrem de escolhas totalmente livres por partes
O que fica dito pode aplicar-se, mutatis mutandis, às reflexões doutrinári.i dos sujeitos que os protagonizam; o que esses sujeitos levam a cabo é a ativação
dos escritores sobre os géneros que cultivam. Para ficarmos ainda no campo d.1 d géneros discursivos, dotados de certa estabilidade previamente constituída, a
ficção narrativa e do romance, diremos que as propostas elaboradas por Zola, 111 1 .trtir da utilização desse elemento transindividual que é a palavra.
conjunto de textos a que deu o título Le roman expérimental, ou o importa1111 O que fica dito apoia-se, antes de mais, nos termos em que Wittgenstein
prefácio de Maupassant a Pierre et jean (intitulado "Le roman") hão-de ser en1 .1 referiu à linguagem como jogo, isto é, prática eminentemente social e intera-
rados como intervenções de facto muito significativas para a definição da poé1i1 ,1 lva; subsequentemente, o que cauciona a postulação da linguagem como jogo

170 TEXTO LITERÁRIO EARQUITEXTUALIDADE O CONHECIMENTO DA LITERATURA 171


{: .1 L'X is1011 ci:1 (co 1no l' llll · o:- di vt'IMI,., J11gm 111111 11) d1• M' 11wllt.111 ~. 1 ., gloh.1b \'de • 11 1H'l lllt id.1d1· d m ,.,, 111 111 1 li 1.11 lm. 1'01 O I li 1() l.1do, (',\ ,\, I l''lll'l'i fkid:1d . l'O lll pr ·-
pormenor, que é possível vcr ifk 1r: :tS dt.lllt.ld .i... M' lll • llt.111 ~· :1s d ' f:1111fli:1, qm· IH'I 11tl1 M' 1m·lltor qll .t1hl11 11•1.H 1011.1d:1 co m Cll l'gori:1s gl'ra is quc os englobam, tal
mirem aos utilizadores (ou, se se quiser, aos jog:idorl's) rcco nh cce r ·rn a ex ist0m 1.1 1111111 .1os gé n ·ros 11:10 lit ·r:írios. Assim e de acordo co m a orientação da moderna
111
de uma linguagem comum, pelo menos em parte. t• 111 l.1 da liLcratura, di sLin guircmos as seguintes categorias e níveis de descrição:
De uma forma mais circunstanciada, Bakhtine, num texto de 19 52 ') \,
não recusa o facto de as frases aparentarem uma origem individual, sobretudo .,, 1.3. l O nível dos modos do discurso, entendidos como categorias abs-
isoladamente observadas; mas acrescenta que "each sphere in which langua gl· 1., 11 11.1s, Lrans-históricas e encerrando virtualidades não exclusivamente literárias.
used develops its own relatively stable types of these utterances. These we may e.ili 1.3.2 O nível dos géneros literários, entendidos como categorias históri-
speech genres". 11 Desse modo, os géneros de discurso predeterminam a ativid :1d1 1 1 transitórias, a par de géneros não literários.
do falante, de tal forma que 1.3.3 O nível dos subgéneros literários, naturalmente também de dimen-
11 lt istórica e entendidos como especificação dos géneros.
the single utterance, with ali its individuality and creativity, can in no w;1\
be regarded as a completel,y free combination of forms of language, as is ''1
pposed, for example, by Saussure (and by many other linguists after hi111 ). 2 MODOS DO DISCURSO EGÉNEROS LITERÁRIOS
who juxtaposed the utterance (la parole), as a purely individual act, to 111 1
system of language as a phenomenon that is purely social and mandaw1 \
for the individuum. 12 2.1 Os modos do discurso, enquanto categorias abstratas, "tornaram-se
h11 l1·pendentes de concretizações contingentes e podem prolongar-se ao longo
111 t ·mpos" 14 ; mas sendo embora categorias abstratas, os modos conexionam-se
Assente-se, então, no seguinte: a definição e descrição de géneros literárim
11111 (e de certa forma originaram-se em) realizações culturais, verbalmente tra-
é legítima e viável, antes de mais em função da condição social da linguagem vc1
li11itlas e de muito antiga tradição. Kate Hamburger contemplou, na sua reflexão
bal (e também, obviamente, da linguagem literária); essa condição social favorcu·
1·1 cada literatura enquanto fenómeno integrado no sistema geral da linguagem,
e estimula a constituição de traços comuns (ou "semelhanças de famílià') q111•
di111ensão modal a que aqui nos referimos, quando se referiu a formas de apre-
remetem para géneros de discurso relativamente estáveis; e sendo a filiação c1 11
111ação que regem a nossa relação com as obras literárias: assim, de acordo com
certos géneros de discurso uma possibilidade que atinge a linguagem verbal, d1·
um modo geral, é v'iável pensar na existência de géneros não literários, que incl11
l l.1111burger, a literatura narrativa e a literatura dramática facultam-nos uma
pniência estética diversa da que é favorecida pela literatura lírica. 15
sivamente podem interagir com os literários. A esse propósito, importa acresccn
Nos vocábulos em destaque (narrativa, dramática e lírica), deve notar-
taro seguinte: o carácter dinamicamente transformador e inovador da linguagc11 1
l o seguinte: eles configuram expressões adjetivas e, por outro lado, remetem
literária permite transposições e integrações de géneros não literários em gé1w
11.1 um possível sistema triádico de referência modal. No que a este último as-
ros literários; assim, a carta, como género de discurso com utilização quotidia11,1
1 110 diz respeito, convém desde já observar que o sistema triádico conta com
não literária, não só pôde ser elaborada como género literário autónomo (po1
liv1 dgação e prestígio consideráveis, nos estudos literários de muitas épocas; além
exemplo, por Sá de Miranda), como ainda veio a constituir-se como elemen111
lt ~o, mesmo quando a análise dessa questão se alarga a outras culturas que não
estruturante de um outro género literário de natureza narrativa: o romance que M '
11cidental (tendência só recentemente acolhida pelos estudos de literatura com-
configurou como romance epistolar. 13
i ~t.lc.la), a tripartição parece continuar a ser um modelo de referência operativo.
Essa espécia de permeabilidade não anula (antes, de certa forma, aconsl'
1 11 mesmo mostrou Earl Miner, que sublinha, com razão, as limitações de uma
lha) a conveniência de se constituir um quadro conceptual que permita entend l'1

172 TEXTO LITERÁRIO EARQUITEXTUALIDADE O CONHECIMENTO DA LITERATURA 173


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/11rlr1rjr11/11 d1· lmg1• d1 , 11 ,1lttM' 11·s· 110 modo dr:1111 :í1irn. Uma 1:11 di s trihui ~. 10 ,
de eonhecirn ·1110 ocidc111ais. 11·
Tanto a fciçfo adjetiva co mo a divi s:to 1rUdi '. I 111 ·11cio11<H.ias sfo rcbt io 1111tl11·c ·mio :1 p11·do11tl11, 111 l.1 de uma certa din~mica de rep rese nw ~·:10 mod.tl .

náveis com a possibilidade de entendermos os modos co mo universais tk n· 11 kvt•, no cntanto, s1.·r ·11 ·arada co mo rigidamente exclusiva; de fac10, st· di 'l.1'

presentação. Na reflexão fundamental de Northrop Frye sobre essa matéria (qi w 1111 d'Os Lusíadas que predominantemente contemplam o modo nar rati vo po
frequentemente se apoia em manifestações literárias da Antiguidade C láss ic 1). 1 1110 ~ afirmar também que certos episódios (como o de Inês de CasLro, no ·:11110
a questão tem que ver com a definição dos chamados radicais de apresenta~·: H i. 11 ll , 1 ,.~urnem uma entoação modal lírica, suscetível de ser encontrada ig u:tl 111 t•111 t'
111 d ·1 ·rminados passos d'O Indesejado; e alguma poesia de Cesário Vndv, ,1·111
segundo Frye,
1 .1r de ser, sobretudo, lírica, privilegia por vezes procedimentos de rcsso 11. 111 i.1
111.11iva (p. ex., quando em "O Sentimento dum Ocidental" são d esc rit os n· rto,,
a origem das palavras "drama", "épica" e "lírica'' sugere que o princí11i11 11.11 ios físicos e humanos).
central do género é bastante simples. A base das distinções de género 11.1
Parece claro, desse modo, que a condição modal não anula a possibilid :1d1·
literatura parece ser o radical de apresentação. As palavras podem ser reprr
sentadas diante de um espectador; podem ser faladas perante um ouvin1 1·,
111crferências ou contaminações, quase sempre insuficientes, contudo, para
1
podem ser cantadas ou entoadas; ou podem ser escritas para um leitor. • 1111 ll1 em causa uma determinada tendência marcante, de feição lírica, narrativa
11 1l1amática. E pelo menos no contexto da tradição cultural do Ocidente, essa
111k ncia modal é observável na esmagadora maioria dos textos literários, se ex-
Mais significativo do que o termo utilizado por Frye (género) é o fac111 111 .irmos caso híbridos ou de transição de que falaremos ainda.
de as suas palavras apontarem para grandes universais de representação (cf. es1:1 Mesmo quando nos referimos a textos que não reconhecemos como lite-
expressão: "a base das distinções de género"), de dimensão modal, suscetíveis dl' 1 11s (ou que, quando muito, confinam com ou parcialmente invadem o campo
particularização histórica em termos de género. E embora aparentando alargar .1 l 1 1; rio), tais como biografias, memórias, sermões, relatos de viagens, diários, car-
tripartição a uma quadripartição, a verdade é que a descrição de Frye envolve, dl' , .1utobiografias, textos historiográficos etc., é ainda possível referirmo-nos, com
facto, apenas três situações de representação: é que, do ponto de vista da reprc 11.1 segurança, a uma determinada propensão modal: no Portugal Contemporâneo
sentação discursiva, é irrelevante que as palavras sejam ditas (segundo modo dl' l >liveira Martins, em muitas cartas de Eça, no Diário de Sebastião da Gama, na
apresentação) ou escritas (quarto modo); o que é essencial é que elas provenhan 1 l111-1rafia Salazar, da autoria de Franco Nogueira, detetamos uma dinâmica narra-
de um narrador que assim protagoniza uma relação narrativa com o destinatári o. 1; ·ertos sermões do Pe. António Vieira envolvem também atitudes narrativas,
É, aliás, muito significativo o facto de Frye se ter referido, no primeiro passo p.tr de episódicos afloramentos líricos; alguns relatos de viagem e de naufrágios,
citado, a drama, épica (implicitamente: narrativa) e lírica, como é igualmentl' 11do fundamentalmente narrativos, não excluem pontuais e intensas represen-
significativo que acabe por reduzir a quadripartição a uma tripartição, quando dc ~o ·s dramáticas: lembre-se o patético relato do naufrágio de Manuel de Sousa
clara: "Epos [i.e., a narrativa épica] e ficção [narrativa impressa, como o romance ! p1'1lveda, na História Trágico-Marítima. 20
formam a área central da literatura e são flanqueados, de um lado, pelo drama e, É possível até, a partir daqui, aventarmos a hipótese de tais géneros discur-
, . " 18 os (como lhes chamaria Bakhtine) poderem muitas vezes ser entendidos como
d o outro, pe la 1inca .
Assim, quando falamos de modos literários, entendemos por essa ex 1 drios, precisamente por força de uma dinâmica modal similar à que reco-
19
pressão basicamente os chamados modos fundacionais da literatura : o modo lw ·emos em textos consagrada e consabidamente literários, como Os Lusíadas,
lírico, 0 modo narrativo e o modo dramático. E dizemos que Os Lusíadas, /•/·ei Luís de Sousa ou Os Maias. Exemplificando: se observamos no Portugal
como epopeia, pertencem ao modo narrativo; que os textos insertos no voluml' 1111temporâneo uma propensão narrativa, confirmada até por procedimentos

174 TEXTO LITERÁRIO EARQUITEXTUALIDADE


O CONHECIMENTO DA LITERATURA 175
1\ ni o d bt 111·,, lvo,, ,,J 111 l l.11 l·~ .1rn dn f',l Ili 111 111111.11111·, ·111 .10 11 111p1 t•t· 11 I · M' (11
111dlvt'I Nm 1•, ~11 ·11»1. 11 1111 1111 111 t' l(•to111 .11Hlo º·' 'Xt' lllpl 0 , t'vrn.ido.~. 11 ,11111 111.
qu • nao qu ·r di z ·r tiu e s · :1 • ·i t ·) qu t·. q11t·l.1 olll ,I .wj.1 .\l l'ihufdo, pl' lo n1 · n o ~. 11
.l .1, 11,i 1r:1g\li:1, n.t qiop1 11, 11,11•lt'!'i.1, na nov ·1:1 1 -' , na 11:irr:1tiv:1 histo riogr:illt. 1, ,
es tatuto e a condição d e obra p:ualiL ·dri:1. 11 1
11 11111·:d1:t , na auwbiogr.dl.1 ·1 .
Ao que fica dito, acrescentar-se-á agora o s ·guinte: se parece im:gávd q111
No Lc-sc ai nd:1 ljll l' ·ss ·s modos derivados nfo formam um ·onju
1110
li·
os modos lírico, narrativo e dramático abarcam o fundamental da produ ção di.-.
li.ido, co mo acontece co 111 a tríade modo lírico, modo narrativo e 1110 tJ dr.t 0
cursiva literária (e mesmo, como se viu, muita da não literária), também é cc 1t11
111 , t I ·o; além de disso, eles revelam-se normalmente de forma subs id i:lri :i, ,.
que certas práticas discursivas dificilmente podem ser enquadradas naquelas n.: p1 1· 111
'' " ·ros dotados de uma caracterização modal dominante. Assim, diz. ·mos di·
sentações modais. A epístola, o diálogo e o ensaio são alguns desses géneros tli •,
11111 romance como Robinson Crusoe de Daniel Defoe que complementa st• ti
0
cursivos, representados em textos de tão funda ressonância cultural como as cart.1
11111do fundamentalmente narrativo com uma outra caracterização mod:d, d .
literárias de Sá de Miranda ou a Carta de Guia de Casados de D. Francisco Ma1111 l I
111clo l autobiográfica, que é a que decorre da importância nele assumida iw lo
de Melo, em diálogos como Il Cortegiano de Castiglione ou a Corte na Aldeit1 d1
ir l.110 da vida do herói; eA Ilustre Casa de Ramires de Eça, sendo igualm ent e.: uni
Rodrigues Lobo, nos Essais de Michel de Montaigne etc. Mas se é assim (ou :1 11·, 1
1 1111:ince (e, por conseguinte, também de configuração narrativa) envo lve.: :1
noutros termos: se essas exceções confirmam a regra), cumpre notar, todavia, q111 11111
• 11111ponente modal histórica, pela forma como privilegia relatos d e co l or:i~·: i o
aqueles textos parecem corresponder a uma tentativa de modelização literári :1 .1
11 •.ioriográfica; a mesma componente modal que, afinal, atinge també m in{ .
partir de práticas discursivas do quotidiano, como as cartas, os diálogos convcr.,,1 11111
"'" lramas românticos. Por outro lado, essa orientação modal suplcti v:i prnl l' ,
cionais correntes ou as dissertações argumentativas. Precisamente isso, recorde-.,l', 111
ili d11zir-se a partir de determinadas estratégias discursivas, relativ::init·ni t· ,11 111
a que Bakhtine chamava géneros de discurso primários, não articuláveis necessari.1 111
11 111 .~ i tentes enquanto géneros; é assim que certos poemas de Gu crr:i J1111 q ,.
11 111
mente com modos fundacionais da literatura; o que, em última instância, podcrl.i
111 •minentemente satíricos, que uma obra como Niebla de Unamuno q . é
até levar-nos a questionar a efetiva feição literária de alguns daqueles textos. 11
111•ntuadamente dialógica, que alguns romances de Vergílio Ferreira são m::ir a-
Por outro lado, importa observar que, se temos atribuído destaque aos rno l 111 l nte ensaísticos etc. etc. z3
dos fundacionais da literatura (um destaque legitimado por uma tradição litedrl.i
No que a essa questão diz respeito, pensamos até, indo um pouco mais
multimilenar e por reflexões teórico-doutrinárias decorrendo em paralelo a cs,,.i
l1111gc do que Fowler, que é possível entender como modos derivados aquilo a qu.
tradição), também é certo que eles não esgotam as possibilidades de formula<;:111 1
1 1man Ingarden chamou essencialidades. Atente-se nestas palavras de Ing::i nk- :
11
modal que o discurso literário realiza. Noutros termos: a um outro nível e d1
11. qualidades (essencialidades) simples ou também 'derivadas' como, p. ·x.,
.1 0
forma não sistemática, encontramos também orientações modais, por assim di zl'l
11l1 lime, o trágico, o terrível, o comovente, o incompreensível, dem on(, ·o,
1 0 0
lj•/ado, o pecaminoso, o triste, a indescritível luminosidade da ventura, 111 , ~ 1:i m- 1
de segundo grau, muitas vezes instituídas a partir de certos géneros que even111
almente desapareceram já, sobrevivendo, no entanto, o modo secundário a q111 l11111 o grotesco, o grácil, o ligeiro, o sereno etc."; e acrescenta:
deram lugar. Retomando as considerações de Alastair Fowler sobre esse assunt o,
dir-se-á então que "os modos [... ] surgem como essências, extraídas das caracl ·
1 .
rísticas permanentemente válidas dessas f,ormas reativamente evanescentes" 21 q111 Estas qualidades não são "propriedades" objetivas no se111 lcl11 l1abitual
e em geral também não são "características" destes ou d.1q111•lrs estados
são os géneros.
psíquicos mas revelam-se normalmente em situações e t1t111ilr'r 1111l'11tos com-
É assim possível falar de modos derivados como o cómico, o trágico, o épl plexos e frequentes vezes muito diversos entre si como 11111 .i 11l1 11osfera es-
co, o elegíaco, o novelístico, o histórico, o biográfico, o autobiográfico etc. Sem t '.1 pecífica que paira sobre os homens e as coisas que st· 1· 11111111 ram nestas
tarem necessariamente representados em uma (e apenas uma) opção de género, 1:11 situações e que tudo no entanto e com a sua luz transflg 11 1o1 ' 1
modos constituem abstrações de propriedades fundamentais que reconhecern m

176 TEXTO LITERÁRIO E ARQUITEXTUALIDADE


O CONHECIMI ·:N 1t1 1> l.ITERATUR/\
( :onw st: v , 1.1111bé111 ·ss.ts "''·l' l ll I rl1d 1111 11111 11111 .1 dl111rn 11.10 .1dj ·1 v,1 Alp1111,\ 1·x1·111pl11 111 11 11 .111 lO lll 11i.ci o1 ·l.11 ·z.1 o qu t: li ·:1 dito. Q uand o
sintomaticamente, ln ga rd ·n ·x ·mplill ·:1 ,1., l 11111 .1dj vti vos subs1.1111i va dos, 11111111 11 x.111drc l lt• 1\ 1il .1 11 11, 11 m ,11111.\ O do s · ·ul o XIX, se co nsagra a romances de
significativo também que mencione o Lr:ígi ·o, ,1 q11 ·aqui nos n.J ·rirnos j(i co1111 1 I• 11 d1i ·a hi stóri ·a (/:'11/'/rn, () 13obo e O Monge de Cister) fá-lo perfilhando um
modo. E tal como aquilo a que temos cha mad o modos derivados , tamb '· 111 .1 1IH'l'O li terário p es tabi li zado no Romantismo europeu; mas, ao proceder as-
essencialidades são derivadas, nesse caso, a partir de co nflitos, amb ientes, ll g111 .1 111 , remete para um modelo, o de Walter Scott, referência incontornável no
etc., que podem tornar-se marcantes numa obra literária particular, conferi11d11 p111 · ·sso de constituição e maturação do romance histórico como hipercódi-
-lhe, desse modo, uma determinada tonalidade modal. Pense-se, por exe111pl11 , p.11 'H Muito significativa também é a relação de dois heterónimos de Pessoa com
numa personagem como Dona Madalena, no Frei Luís de Sousa ou em Euri111 , 11111 µ,é nero lírico como a ode: para Ricardo Reis, ela traduz a adoção de um mo-
no romance homónimo: dos dramas que aquela vive pode dizer-se que revcl:11 11 1h lo técnico-literário clássico, provindo de Horácio e enunciando a resposta, no
os sentidos modais do trágico e do pecaminoso; e Eurico, como herói românti111 , pl .111 0 da linguagem poética, a uma específica cosmovisão; por sua vez, Álvaro
protagoniza tensões e comportamentos de índole sublime. Tudo, afinal, o q111 li :a mpos, em movimento de derrogação, contempla e enuncia um tipo de
acaba por sugerir fundamentais vetores semânticos das obras em causa. 111 11• radicalmente moderna, conexionada com a lição de Walt Whitman e não
11111 a influência dos clássicos.
2 .2 De acordo com o que até agora ficou exposto, deduz-se que os género Seja como for - por aceitação ou por recusa, por depuração ou por misci-
literários podem definir-se como categorias substantivas, representando entid.1 ' 11;1ção, por emulação ou por parodização 29 - , os géneros literários são entida-
des historicamente localizadas, quase sempre dotadas de características form :111 11' mutáveis, não raro com limites algo difusos, tanto no plano diacrónico como
variavelmente impositivas e relacionáveis com essa sua dimensão histórica: s;111 1111 plano sincrónico. Com efeito, o momento em que certos géneros iniciam
essas propriedades que reconhecemos em géneros literários do modo lírico co11 111 11 11 ·ncerram o seu trajeto é normalmente difícil ou impossível de estabelecer
a écloga, a elegia, o ditirambo, o epigrama, o madrigal, o epitáfio, o hino, a ode, .1 1111i precisão: pense-se na dificuldade de saber quando exatamente desaparece a
canção etc.; em géneros literários do modo narrativo como a epopeia, o romanu". pnpeia; por outro lado, as marcas distintivas que os individualizam são eventu-
o conto, a novela etc.; em géneros literários do modo dramático como a tragédi .1 , 1111 ·nte difusas, como por vezes acontece entre o conto e a novela.
a comédia, a farsa, a tragicomédia, o auto etc. 25 Os géneros podem, assim, s1·1 Deve notar-se, entretanto, que a mutabilidade histórica dos géneros, sendo
encarados como hipercódigos que, tal como acontece com a generalidade dos d1 1 11 t • da sua natureza, acentuou-se, sobretudo, depois do Romantismo, quando
digos do polissistema literário, são sujeitos a erosão e suscetíveis de desaparecer<.: 111 , 1 1iação literária foi atingida pela irrupção de valores e atitudes (liberdade, ino-
26 1\.IO, individualismo, subversão das convenções, idealismo artístico etc.) que,
envolvidos na dinâmica própria da evolução literária.
Daqui se infere que, diferentemente dos modos, os géneros literários são prn 1 tl1 1 uns casos, afetaram e perturbaram a relativa normatividade dos géneros li-
natureza instáveis e transitórios, sujeitos como se encontram ao devir da Históri:1, t.írios: textos doutrinários como o prólogo do Camões (1825) de Garrett ou
da Cultura e dos valores que as penetram e vivificam; e os escritores que adota111 , prefácios que Victor Hugo escreveu para as Odes et Ballades (sobretudo o de
transformam ou rejeitam os géneros literários mais não fazem do que dialogar co111 1H 6) são, a esse propósito, exemplarmente expressivos. E na sequência das mu-
a tradição em que se acham imersos, aceitando, prolongando ou refutando cer1.11 l 111 ças aqui representadas, o século XIX foi, de facto, um tempo de forte acele-
normas por ela instituídas. O que corresponde a dizer o seguinte: que só por ah.\ \•IO, no que à evolução dos géneros diz respeito; referindo-se precisamente ao
tração inteiramente artificial se poderia pensar que o escritor consegue alhear-se po1 1111• então se verificou, René Wellek e Austin Warren chamaram a atenção para a
inteiro de uma relação, qualquer que ela seja, com os géneros literários. Fazê-lo scri.1 lt1 l111 ência exercida sobre o processo de mudança dos géneros literários por parte
o mesmo que postular uma criação literária asseticamente impermeável à resson:'.111 11 11 m público muito dinâmico nas suas expectativas e na forma como consumia
27
eia de ecos e vozes culturais emanadas do contexto que envolve essa criação. 1 li vro literário, objeto cada vez mais acessível.3°

178 TEXTO LITERÁRIO E ARQUITEXTUALIDADE O CONHECIMENTO DA LITERATURA 179


Por out ro lado, .1 :1ti vid:1d ·do ·~ rlt111 , 11ll 11111 11.1n pod ·11do .tllt l'. tl' ~ • d1 1 li 11l' IH' I O S lit ·1. 1l m . () q111 , !' Ili 1'iltl111.1111111. 111i.1, 'SI> '1' tr:t lll'/, '111 ll :l lU r:dm ·m ·
constante diálogo que cstabele ·e ·0 111 a l lb tu1 ,, 1• 10111 .t ( :11ltur:1 do Sl' ll t l ' ll\I Hl , 11 t l11 tl .rndo o tl' ·ido , l111111M1 d.11' l(>rrnas c s L '·ti ·as · modeli zand o artist i amente o
pode constituir, em certos momentos espec.:i:ti s, 11111 fo to r impon ante de din:11111 1111111do qu · r ·prL·sc11 1:1111 '· um a ·crta osm ov isão, d eduzida do diálogo (embora
zação (e também eventualmente de retração), no que ~ existê ncia, rcnovaç:10 1 111 111 s ·mprc harmonioso) com os valo res, com as ideias e com a sociedade em que
aceitação dos géneros diz respeito. Assim aconteceu com os poetas simbolistas, t·111 11 1' ·ri tor se integra.-M
diversos aspectos da criação literária e também no que aos géneros diz respeito: p111 Q ue assim é, revelam-no várias leituras que, incidindo sobre a estrutu-
alguma razão, a que não é estranho o fascínio pela recuperação de géneros caídos t· 111 1 1 1los géneros e não só sobre os conteúdos contingentes que eles representam,
desuso, aliado ao culto de um radical refinamento estético, Eugénio de Castro in 1i 11111,, 1r:un que tais géneros devem ser entendidos em conexão estreita com os con-
31 11 los cpocais em que emergem: fê-lo Lukács, num ensaio hoje clássico, quando
tulou uma das suas coletâneas poéticas Silva ; e já num contexto estético diferen1 1·,
Unamuno, em Niebla, atribui à personagem Víctor Goti as seguintes palavras, ex 11111 ·urou demonstrar que o romance aparece numa sociedade em que já não há
plicando a Augusto Pérez em que consiste um novo género designado como nivo/11: l11g.1r para a heroização do coletivo (como acontecia na epopeia), mas, sim, para a
1·1•111 ura de uma procura humana radicalmente individual; fê-lo também Lucien
1111 ldmann, quando analisou as tragédias de Racine à luz de uma explicação que
- Pues le he oído contar a Manuel Machado, el poeta, el hermano dr
111111dcra a integração dessas tragédias nas estruturas mentais do jansenismo; e
Antonio, que una vez que llevó a don Eduardo Benot, para leérselo, 1111
soneto que estaba en alejandrinos o en no sé qué otra forma heterodox.1. f\ 11 ·hei Zéraffa, refletindo sobre a evolução do romance moderno e sobre as suas
Se lo leyó y don Eduardo le dijo: 'Pero ieso no es soneto! ... ' 'No, seúor - 11· l1111vações técnicas, valorizou o significado sociológico daquele género narrativo,
contestó Machado -, no es soneto, es sonite'. Pues así es como mi novcl.1 d1•1 l:1rando que "um romancista é realmente sociólogo quando traduz um objeto
nova a ser novela, sino ... ~cómo dije?, navi!o.. ., nebu!o, no , no , nivola, c~11 . 111 ia l que ele próprio experimenta, e (aqui está o essencial) cujo 'código' soube
jnivola! Así nadie tendrá derecho a decir que deroga las leyes de su género ...
d11 if'rar". E isso acontece precisamente quando o escritor revela "uma forte cons-
Invento el género e inventar un género no es más que darle un nomh11·
nuevo, y le doy las leyes que me place. jY mucho diálogo! 32 111 11 ·ia dos imperativos técnicos e estéticos de que dependerá a transcrição da sua
1 .10 de si mesmo e dos outros" .35
Os próprios escritores manifestam muitas vezes uma consciência mui-
Não basta, contudo, inventar um nome e atribuir ao novo género cert: 1 ~ 111 .1 ruda do tipo de articulações a que temos vindo a fazer referência. Almeida
regras a cumprir, para que ele seja reconhecido e aceite pela comunidade literár i:1; .. 1rrctt, sempre lucidamente atento quanto às conexões estabelecidas entre li-
como nota Jean-Marie Schaeffer, "o autor propõe, o público dispõe: a regra \o li 1,1LUra e sociedade (incluindo-se nessas conexões a dinâmica de substituição e
válida também para as determinações de género". 33 O que quer dizer que, sendo 11.111sformação dos géneros), defendeu, no limiar do seu Frei Luís de Sousa, a
embora relevante, como antes escrevemos, a atividade individual do escritor não !.· 1 gl 1imidade do drama:
absolutamente decisiva para que se consume a constituição - e, mais do que isso,
a generalizada aceitação - de novos géneros; se assim pensássemos, esqueceríamo~
Eu tive sempre na minha alma este pensamento, ainda antes - perdoai-
aquilo que, nesse caso, é realmente conclusivo: a tensa articulação (articulação
-me a inocente vaidade, se vaidade isto chega a ser - ainda antes de ele apa-
muitas vezes difícil de perscrutar, diga-se de passagem) entre géneros literários 1· recer formulado em tão elegantes frases por esses escritores que alumiam
contextos epocais. e caracterizam a época, os Vítor Hugos, os Dumas, os Scribes. O estudo
do homem é o estudo deste século, a sua autonomia e fisiologia moral as
2.3 A partir do que acabamos de afirmar, a noção fundamental que agor:1 ciências mais buscadas pelas nossas necessidades atuais. Coligir os factos
do homem, emprego para o sábio; compará-los, achar a lei de suas séries,
há que desenvolver e ilustrar remete de novo para a historicidade que caracteri:r.:1
ocupação para o filósofo, o político; revesti-las das formas mais populares,

180 TEXTO LITERÁRIO E ARQUITEXTUALIDADE O CONHECIMENTO DA LITERATURA 181


L'd ·r 1.11 11 .1r :1~~i n1p ·l .1~ 11.1~0l'\ 111 11111 1111 li11l i, 1111111 l 11 \ 11 1 1 ~.111 l111 t'l ·l 111.d 1 1 111 ,1g.1d o1.1 111.lit11 l.1, n 1•,1 111 111 d 11 111 odo lí1l o l'X pt -.~.\, 11 11 ,\ · l' ltl v ·r~o; · '· 1:1111
moral qw.:, s<.:m ap :ll':ll O ti l' M'1111,1111111 p1 1·h\1lt1, \ llljll l' ·nd a m. n i 111 0~ l' m 111 111 110t<'irio q 11l' 1111ii 1m 111 11 1 • 1 0~ d o mod o 11 a rr:i 1ivo sao ·nun ·i:'l dos ·m p rosa,
corações da mu lLidáo no m<.: io til' Sl'll~ pd1 pl'ios pass:i tcmpos a miss:w d11 qtt . l ~l· sc mp r · a1i11 µi 11do 111 n.1 ·x 1 ·ns:'io ma is alargada d o que a dos gén eros líricos;
literato, do poeta. E is aqui porqu<.: es ta éprn.: :1lit cdria é a época do tl r:1 111.1 1• l 111 ,d m ·nu;, os g '·nl'ros do modo dram ático configuram-se tanto em prosa como
11
do romance, porque o romance e o drama são, ou devem se r, isto. '
1111 v1:rso, cumprin do um a estrutura m acrocompositiva (atos, cenas etc.) relativa-
1111111 ·estável e quase nunca muito alargada.
Do mesmo m odo, as reflexões doutrinárias explanadas por Zola nos tcxtm No que toca aos géneros dramáticos e por razões que aqui não po-
de Le roman expérimental apontam para a consagração do romance como gé ncrn .11111 se r aprofundadas, torna-se arriscado tentar explicar, de forma inequívoca,
insubstituível para a concretização de um programa de trabalho de base observ.1 1 11pç5.o pelo verso ou pela prosa. Só incorrendo no perigo de uma certa gene-
cional e experim ental, fundado num sistema ideológico de raiz positivista. M:ii ~: 1 di 1,ação é possível aventar algumas hipóteses de explicação, a partir do que
quando o romance, apesar das suas dimensões e da sua capacidade de represl'11 111·1mi te a observação de certas situações particulares. Assim, nalguns casos, a
tação orgânica, se afigura insuficiente para cumprir um tal programa, o escrit o1 11 p ~· a o pelo verso parece ter dependido de convenções epocais, assumidas como

naturalista alarga-o à série romanesca (os Rougon-Macquart de Zola, os Episodi111 1.1h o u funcionando apenas como tradição não contestada: assim, o teatro de
Nacionales de Galdós, as Cenas da Vida Contemporânea de Júlio Lourenço P in111 ' 1 Vicente, de Sá de Miranda e a Castro de António Ferreira enunciam-se em
etc.), espécie de macrogénero que procura apreender a ampla dimensão de u111.1 1 1so; o mesmo acontece com as tragédias de Corneille e Racine e com muito

sociedade em evolução.
d11 teatro de Shakespeare; igualmente com o teatro de C alderón de la Barca,
O que aqui está em causa também, como se vê, é a questão da forma dm dl Lope de Vega e de D. Francisco Manuel de Melo. Mas já no século XVII, a
géneros literários, expressão que importa entender numa aceção a:argada, repo1 l111ação tende a mudar: algumas das mais representativas comédias de Moliere
tando-se tanto à forma do conteúdo como à forma da expressão. E já um ent<.:11 ( 11, 'X.: Les Précieuses Ridicules, L'Avare, Le Malade lmaginaire ou Le Bourgeois
dimento m uito próximo deste que transparece nos termos (muito sintéticos, ma.\ f 1'r11tilhomme40 ) são escritas em prosa, quando o que está em causa
é, cada vez
m u ito sugestivos) em que Wellek e Warren se referem ao conceito de género: "u111 111 .il s, representar satiricamente os costumes d e uma sociedade em mudança,
agrupamento de obras literárias, teoricamente baseado tanto na forma exterio1 drnunciando-os nos termos diretos e vigorosos que uma versificação conven-
(metro e estrutura específicos) como também na forma interior (atitude, tolll , 1 llln al aparentemente prejudicava. Na sequência de Moliere e ainda no contex-

finalidade - mais grosseiramente, sujeito e público)" .37 111 l'volutivo do teatro francês - teatro que, nessa época, constitui um modelo de
Significam essas palavras, desde já, que importa abandonar uma análise do~ 11f n ência incontornável, mesmo para além do universo cultural em que se ma-
géneros fundada apenas na caracterização da forma da expressão. Para ser mais e~ nifesta - , dramaturgos como Le Sage (sintomaticamente autor também de ro-
pecífico: a distinção poesia/prosa38 não constitui, só por si, um fator distintivo do~ 111 .tnces de pendor fortemente crítico), M aurivaux e, sobretudo, Beaumarchais
géneros literários; quando muito, a opção pelo verso ou pela prosa é uma consl' 11 .1duzem em prosa o que resultava da aguda observação dos costumes, da vida
quência, ao nível da forma da expressão, de certas características dominantes, no p i ológica e das contradições sociais do seu tempo. Em oposição, as tragédias
plano da forma do conteúdo. 39 O mesmo pode dizer-se de outros aspectos atinente\ li Voltaire, enunciadas no verso que o gosto clássico mantinha, contemplavam
à configuração formal dos textos literários, com implicações de índole genológic:1. 111 11 itas vezes questões de ordem moral e filosófica mais do que social, perdendo
como acontece com a estrutura macrocompositiva e mesmo com a extensão. 11 iontacto com a realidade envolvente. Algo do que, por outras razões , entre
110 ~ aconteceu com o pesado e convencional teatro de Manuel de Figueiredo e

2.4 Uma caracterização mais minuciosa dessa questão consegue-se se rc orreia Garção, em contraste com a vivacidade dramática e crítica do teatro em
fletirmos acerca do seguinte: é sabido e empiricamente verificável que, na st1.1 p1nsa de António José da Silva.41

O CONHECIMENTO DA LITERATURA 183


182 T EXTO LITERÁRlO E ARQUITEXTUALIDADE
Co 111 o :1d v ·111 0 do Ro 111.1111 b 1110 , M1li 11 1111 11 d1· 11 ovos v. do rt•1i ·111 t· 1·1·,1· 11 11 11 ~.I t•x p ·ri l ll l.1 . () lllllhllll 'CI Ili \( () ' (.1111h 1·111 ,1 ll ()V('l.1 (t• :ti 11d:1 as 111 · 111<'>

tcs, avulta o p ro pós ito c.k: sc instaurar u11 1.1 t1• 11.1 11.11111'.did :i 1· ·x p r ·ssiva, 1H·11 1 1 1 , .1,111 to hi ogr:dl.11·1c ) 111111 1111.1111 1i • ·m prosa , porqu · '·esta q ue u mp re um a
sempre compatível com o culto do verso. A ·ss · pro pós ito, é muito signifl ·:ll iv.1 d 11. mi ·a di s ·u rsiv:i dt· w 111 i11uidac.l e, de regul aridad e e di reta referencialidade
e não isenta de contradição a posição adotada po r Vi cor Hugo no prcf::í ·io dr• l mo logi amcnt e, pros:i r ·!acio na-se com o advérbio latino prorsum, "em fren-
Cromwell: admitindo (e praticando) o verso no teatro, Hugo relativiza-o co 11.,i 11", "direto"); são precisam ente essas propriedades que se afiguram correlatas
deravelmente e declara que ele "não é senão uma forma e uma forma que c.kVt' d ICJll ·lc propósito de representação verosímil, que, em casos extremos (p. ex. :
tudo admitir, que não tem nada a impor ao drama e que, pelo contrário, deli• 1111 ·ontexto do Naturalismo e do Neorrealismo), chega a pretender a fidelidade
deve receber tudo, para transmitir ao espectador: francês, latim, textos de k i,, , d1 1 1 ·s tcmunho documental. 44
blasfémias reais, locuções populares, comédia, tragédia, riso, lágrimas, p ros:1 1· Mas se é assim com géneros narrativos modernos, torna-se necessário
poesià'. Significativamente, contudo, Victor Hugo acaba por concluir: "De IT~ 11 !1 1· rv r também o seguinte: a prosa constitui uma opção formal desses gé-
to, que o drama seja escrito em prosa, que seja escrito em verso, que seja escri111 1111os, mas não um atributo congenitamente requerido pelo modo narrativo.
em verso e em prosa, é apenas uma questão secundária. O nível de uma oh1 .1 N11 11tros géneros narrativos, vinculados a cenários epocais e a contextos comu-
deve fixar-se não segundo a sua forma, mas de acordo com o seu valor intrín s1· 11 11,1·i nais diversos dos do romance e da novela, a utilização do verso não põe
co". 42 Entre nós e pouco depois, Almeida Garrett, que compôs ainda algum:!\ 111 rnusa a condição modal narrativa; essa opção pode até ser legitimada tanto
das suas obras dramáticas de juventude em verso (p. ex., as tragédias de infl uxo p111 ·onvenções próprias desses cenários epocais como por conveniências de
neoclássico Catão e Mérope), opta pela prosa n' O Alfageme de Santarém, em l/111 l11do l · pragmático-comunicativa: acontece assim com a epopeia e também com
Auto de Gil Vicente e no Frei Luís de Sousa, já sob o signo da estética românti c:1. 11 11 r;ttivas de natureza folclórica. No primeiro caso, o peso da convenção alia-se
Justamente a propósito do Frei Luís de Sousa e no que a essa questão n:~ 11junções da declamação: disso se encarregava o rapsodo , em contexto de co-
peita, Garrett adota uma posição clara, afirmada embora de forma algo cautelos:1: 111 1111i ação oral; no caso das narrativas folclóricas, a enunciação eventualmente
depois de declarar que não acredita "no verso como língua dramática possível p:ir.1 111 v ·rso (e com o auxílio da prosódia poética) facilita a fixação de textos em
assuntos tão modernos", acrescenta: pii 11dpio fluidos, fluidez que se explica por força da transmissão oral que lhes

Que os géneros do modo lírico sejam normalmente formuladas em verso


O que escrevi em prosa, pudera escrevê-lo em verso - e o nosso verso so l
dgo que melhor se entenderá quando, mais adiante, analisarmos algumas das
to está provado que é dócil e ingénuo bastante para dar todos os efeitos d1·
arte sem quebrar na natureza. Mas sempre havia de aparecer mais artifíci1 1 11 .tL'terísticas daquele modo literário. Deve, entretanto, referir-se desde já o se-
do que a índole especial do assunto podia sofrer. 43 111111 ·:que pelo menos no que toca à estrutura macrocompositiva e à extensão que
1111 ·la se relaciona, os géneros líricos são claramente diversos dos géneros narra-
11\ · também dos dramáticos. Se estes se acham condicionados por imposições
Assim aconteceu com o Frei Luís de Sousa e com muito do teatro que M' 11 111ntes, sobretudo, à sua ativação em espetáculo teatral, na presença do público
lhe seguiu, já para além do tempo do Romantismo, quando o que estava c111 l1 v 1 .~ a o em atos, cenas etc.; conjugação com artifícios técnicos mais ou menos
causa era transportar para a cena situações e comportamentos cuja desejada au 11 1i ados; extensão muitas vezes ponderada em função de um tempo aceitável
tenticidade requeria a mesma prosa que é a da comunicação quotidiana. 1 11•presentação46 ), os géneros narrativos são, nesse aspecto, mais diversificados;
Algo de similar é o que encontramos nos géneros narrativos e em espc 1111 , o conto tende a ajustar-se a uma única sessão de leitura, ao passo que o ro-
cial naqueles que se propõem representar universos que, sendo ficcionais, hão-d!' l l ll l ' ·em princípio estrutura-se (partes, capítulos, subcapítulos) e dimensiona-se
parecer verosímeis e diretamente relacionados com o mundo apreendido pcl.1 11 1 l11n ção de um processo recetivo bastante m ais demorado.

184 TEXTO LITERÁRIO E ARQUITEXTUALIDADE O CONHECIMENTO DA LITERATURA 185


ll:tdi a t·~s. r t' .1"111.11, .111 d11 g 1 11nrn 1 iitm . l\t·lkii11d11
·: d111 ·111 • opos 1:1 1111 11 .1tl.1111 ·1111· 11·111n11111111111 ,111 11111110 1 rito o d1 ·,pol.1111t·1110 d.1 p10~.1 ; 11·11·111110
sob re esse probl ·ma num 1cxto ·(·ll'l m·, l·:dg.1 1 Po · .dlrn1:iv.1 t:1x.11ivanw111 1 1111, .1 Allll'llO C.1t"i111 q111•, 1111 1 .111dt) 1.1111hl- 111 VOltM llll.11' .1 ll.lllll .did.1d1.· :11rih11ld .1 .
"Defendo que um longo poema n ~t0 cxistc. M:1111L·11h o qu · a fras · 'um 10111 •,11 p111\,1, . 1 .~sin11.·sn1.· vt· u :
poemà é simplesmente uma contradição absoluta"; e pormenorizando: "Atpwl1
Por mi 111, t'~t rt·vo :t prosa dos 111 cus verso.~
grau de emoção que lhe autoriza a designação de poema não pode ser man tid< > .111
. - de grande extensao - "47 E fico co11 Lc nLc,
longo de uma compos1çao .
Porque sei que compreendo a Natureza por fora;
As palavras de Edgar Poe parecem algo excessivas, mas não desprovi da~ d1
E não a compreendo por dentro
sentido, mesmo não se sabendo bem o que nelas se entende por longo poema . .\1
Porque a Natureza não tem dentro;
bem que uma ode ou uma canção (pense-se nalgumas das canções de Camon )
Senão não era a Natureza. 49
possam ser relativamente longas - mas certamente não mais longas do que u111
romance, uma epopeia, uma novela ou até um conto-, já o soneto, a sextin:1, 11
madrigal, a cantiga ou o vilancete caracterizam-se por uma extensão relativaml'll
2.5 Mesmo descontando-se a feição algo redutora que caracte ri za tod .1 .1
te curta, o mesmo ocorrendo com a esmagadora maioria dos poemas sem forn1.1 lll:ttiva de síntese, pensamos que as seguintes palavras de Northrop Fryc l'l'.~ 11
fixa, que chegam a reduzir-se a um único verso. Essa curta extensão - que é t:1 111 1111 111 (embora com uma ressalva que há que fazer) o complexo jogo dc i n 1era~ tH'.\
bém a de uma leitura em circunstâncias culturais e psicológicas muito dive r~.1 ·, 1111· lcmos vindo a descrever:
das do romance - remete genericamente para uma atitude de concentração q111 •
não é apenas emotiva, mas também expressiva. Esta última acaba por ser, afin :rl ,
uma consequência daquela, traduzindo-se exatamente na utilização do verso e d11 Na ficção, a prosa tende a predominar, porque só ela poss 11i o ri111111
contínuo, apropriado para a forma contínua do livro. O dram .1 11 .111 I" "
seu amplo leque de recursos técnico-expressivos; e quando se verifica a contami
sui um ritmo peculiar determinante, mas encontra-se estrci1:111H·111 t· 11•
nação que resulta na chamada poesia em prosa (ou, com mais rigor, modo líri u1 !acionado com o epos nos modos primitivos e com a Acção 110., 111 ,d'
expresso em prosa, situação relativamente rara, mas muito significativa), tamb<'.·111 tardios. Na lírica tende a predominar um ritmo que é poét ico m:i s 11.111
a prosa propende a contemplar procedimentos expressivos que favoreçam o rv necessariamente métrico.s 0

ferido pendor para a concentração lírica: ritmos regulares, imagens recorrente~.


efeitos rimáticos etc., ou seja, algo do que se observa nos Petits poemes em prose dt·
Por sua vez, Alastair Fowler procurou ir mais longe, enunciando tentativa
Baudelaire ou nos textos de Memória doutro rio de Eugénio de Andrade. 48
llH llle um leque alargado de características que funcionam como fator de o rg:111i
Mas é possível também considerarmos uma contaminação em sentido por
~.10 dos géneros: aspecto representacional, estrutura externa, estrutura métri ·;i ,
assim dizer inverso. Quando certos géneros líricos se alargam para além da concen
lt•nsão, tema, atitude, estilo etc. etc. Como o próprio Fowler, no entanto, s11
tração que temos referido - pense-se em éclogas de Bernardim Ribeiro ou de Sá dt•
ll', tais características devem ser encaradas como um repertório que, não sendo
Miranda; pense-se também na extensíssima "Ode Marítimà' de Álvaro de Campo.,
llr,gotável, também não é fechado: fazê-lo, corresponderia a ignorar a dinâmil.':1
-, a poesia em verso tende a narrativizar-se; são então visíveis afloramentos descri
1 r •novação (de instituição, de maturação e de obsolescência) que caracteriza os
tivos, uma certa movimentação de elementos humanos, uma premente imposiç:io
1wros literários, por força da sua irrevogável historicidade. 51
do espaço circundante etc., ou seja, aquilo que nos géneros narrativos formularn
Não há dúvida, contudo, de que a configuração formal dos géneros há-de
normalmente em prosa. Muito, afinal, do que se encontra representado na poe
1, por princípio, explicável pela interação de elementos diversos: pela prernê11 -
sia de Cesário Verde - por exemplo, nos longos poemas d"'O Sentimento du111
l.1 de elementos semânticos atinentes a situações, temas e valores acolhidos por
Ocidental"-, esse mesmo Cesário admirado por um outro poeta, que incessante t'
lc 1 ·rminados géneros, mas não por outros (um romance é capaz de represen1:1r
186 TEXTO LITERÁRIO EARQUITEXTUALIDADE
O CONHECIMENTO DA LITERATU IV\ 1H'.
~i1un~·m·s, I L' lll :t.~ L' v. dol'l'.~ di s 1i111 0~ drn d1 11111 ,11 p1 1pi'l.1 · 1.1d h. il111 l·111 · di vt'IMI .11\l1· 1.1 pl111 lo , .111 11 1.11 l.1 li 1,11,.1111111110 ro11i.111ll' liistt'1iiu1, l".~gotado ljlll' l'Sd, h:\
dos de um a odt:); foLOres pragrn(\ 1i ·os, IL'IHl11 qtll' Vl'I' m m as possihilid.1dL·~ d1 111.il~ 1k um sfru lo, u 11•11qu1 ldrn lúµ,icLM.:ultural (românL i ·o, idealista, hi storicis-

ação dos géneros sob re os seus rccepLOrcs (11111 co nlo propõe-s' no r111 :dnw 111 1 11, lll l'S rn o, t:m ·cno~ . 1w .~, l'l'ª ·ionário e rcstauracionista) que deu lugar àquele
a concretizar efeitos recetivos diferentes d os at in gidos por urn a elegia); mcs11111 11l1g '·11 TO e o legitirnm1.
situações socioculturais que permitem a popularização de certos géneros, 1"111 Nos termos de Alastair Fowler e confirmando as palavras de Marie-Laure
detrimento de outros: não por acaso, o século XIX foi um tempo cultural pri v1 1 )'• ln , dir-se-á, então, que os "subgéneros possuem as características comuns do
legiado para a publicação e consumo do romance, mas já não para a da epo1wi .1 pi 11 ·ro - formas externas e tudo o mais - e, sobre e acima delas, acrescentam
ou para a representação da tragédia. 1.1r,1·ccrísticas substantivas especiais. Uma écloga piscatória ou marítima é uma
O que aqui implicitamente se sugere é que a emergência dos géneros li11· 1Ioga como o é a pastoril, mas acrescenta-lhe um novo leque de tópicos, relacio-
rários pode ser entendida como o resultado disso a que Claudio Guillén chanH HI 11.1dos com pescadores e não com pastores" .54 Além disso, também a configuração
um convite à forma; mas esse convite à forma concretiza-se, por um lado, l'l11 l111'111al dos subgéneros há-de ser entendida como resultado desse convite à forma
termos retrospetivos (isto é, informado pelo peso da tradição formada pelas obr.1 •. d1 tiue falava Guillén: assim, as soluções técnico-literárias que definem um ro-
anteriormente existentes), por outro lado, em termos prospetivos, ou seja, dl'i 111.ince epistolar são muito diversas, no duplo plano da matéria e da forma, das
xando antever (ou, pelo menos, almejando) outras concretizações afins. Coll111 qw· encontramos num romance de família, com óbvias consequências também
escreveu Guillén, "olhando para trás, um género é um enunciado descritivo , di 1111 plano das motivações recetivas.
zendo respeito a um certo número de obras com ele relacionadas. Olhando c111
frente, torna-se, acima de tudo [... ], um convite à combinação (dinamicame1111·
falando) de matéria e forma''. 52 3 ODRAMA EOESPETÁCULO TEATRAL
De modo nalguns casos ainda mais significativo, são os subgéneros q111·
incutem evidente especificidade àquela combinação. Quando aludimos a od l'
3.1 O facto de, no contexto deste trabalho, atribuirmos ao drama um
anacreôntica, a écloga pastoril, a conto policial, a romance gótico, a romanu·
11 lcvo diverso do que reservamos à poesia lírica e à narrativa literária, tem que ver
epistolar ou a romance histórico, é, de facto, a subgéneros que nos estamos .1
d1·s<le já com propriedades fundamentais do modo dramático e com a problemá-
referir; assim, como se deduz das expressões mencionadas (utilizando um subs
111 .1 da sua realização teatral. Com efeito, sem podermos artificialmente separar o
tantivo, que é a designação genológica abrangente, completado por um atribul o
1ptl' é indestrinçável - ou seja: considerar o texto dramático isolado do espetáculo
que o especializa), os subgéneros constituem uma particularização, em contexto.\
11'.ll ral-, a verdade é que os termos em que o modo dramático plenamente se con-
histórico-culturais bem caracterizados, dessa outra categoria mais ampla que é o
111·tiza transcendem o plano da leitura e dos estudos literários, naquilo que eles
género literário. Conforme escreveu Marie-Laure Ryan, "quando dois género,,
111 nificam no presente contexto. Com efeito, se a recepção dos textos líricos e dos
possuem um conjunto comum de regras, mas um apresenta requisitos adicionais,
11·x los narrativos se consuma pela leitura, ela é insuficiente para o pleno enten-
então ele deve ser encarado como subgénero do outro". 53
dim ento do texto dramático, tendo em vista as suas virtualidades espetaculares.
Tal como os géneros, também os subgéneros são entidades historicamen1 r
Por isso mesmo pode afirmar-se, correndo-se embora o risco de algum
localizadas; do mesmo modo, podem cumprir uma função normativa, com di
11•ducionismo, que os textos líricos e os textos narrativos são fundamentalmente
versos graus de impositividade; sendo também, como os géneros, transitórios 1·
llll'rários, num sentido que remete para a dimensão verbal do literário, razão pela
instáveis, são-no de forma por assim dizer mais intensa, uma vez que a sua insti
qtial esses textos merecerão aqui uma atenção mais alongada; mas já os textos
tuição responde a peculiares e não raro fugazes cenários epocais: por isso mesm o,
dramáticos, sendo também literários (porque obviamente, nesse mesmo sentido,
o Memorial do Convento de José Saramago resiste, como ficou sugerido no início

188 TEXTO LITERÁRIO E ARQUITEXTUALIDADE O CONHECIMENTO DA LITERATURA 189


1.1 111 hl- 11 1 vcrh.1b). 11.10 111 .il11 do q11 c· i." º · l l q111 1 1·11 0 111 1.1 p.11 .1 .tll- 111 11l-l1·' 11.111 <:0111 p1 ·« 111 !1· 1 ,1 111 q111 , d« 10 111 1.1 d l' ii v; 1d .1, o .1dj ·tlvo d 1.111 d tko pos
d eve, co mo se di sse, s ·r igno r:1do. tt1.1 11 M' I , ll H'IH io 11 ado tk fi>1·111.1 tt t• ·11,,,1111 1 .1pl l1.1r M' .1 , 1111.i , 01' d 1 v d.1 <W'l'l' lll lº L' lll q ue s · 111 :111ifl:st:i m c dcsc nro la m
m ente sumária, po r transcender os o bj ·t ivm qu t· 11 ·sta o bra procura lll OS ;1 1i111 1 1, 111' i nt e n sa .~ . 1'01 011110 l.1 d o, '· sa bid o tam bé m quc di versos jogos, rituais e
Isso quer dizer, por outras p alavras, qu e a atcrn,:ão qu e co ncedcrem os :10 d 1.11 111 I' tl r :is socia is c11 vo lvt· 111 11m :1 co m po nente d e teatralidad e; o que permite pen-
será parcial, com a consciência de que o é; m om ento de referência sob rct ud11 1 1 q11 · o dra ma · o es petácul o teatral são fenómenos em direta conexão com
propriedades literárias e a potencialidades teatrais, a presente reflexão não p11d1 q11 o ti<li ano: p ense-se, po r exemplo, nas brincadeiras infantis, em certos atos
deixar de remeter para campos de estudo muito mais vastos - o campo da sc111 111 ll 111 q 11i ·os (missas, administração de sacramentos, procissões etc.), em determi-
tica teatral, o da teoria e técnica da representação teatral, o da sociologia do lt.,11 111 ullls atos académicos ou em cerimónias militares, ou seja, práticas atravessadas
etc. etc.-, campos de estudo situados para lá das fronteiras que nos impusc111 11 11 11111 a certa intensidade dramática que se projeta em movimentos corporais
111 ·x pressões performativas consumadas num cenário próprio. Daí o poder
3.2 O termo drama refere-se, antes de mais, ao conjunto dos textos p11 Ili 111:1 r-se, com Martin Esslin, que "o instinto de representação é uma das ativi-
tencentes ao modo dramático, suscetíveis de uma caracterização modal q ut· 11 11 l1•s humanas básicas, essencial para a sobrevivência do indivíduo e para a das
distinga tanto dos textos narrativos como dos textos líricos. Contudo, essa c u .11 111·ci •s. Por isso, o drama pode ser encarado como algo mais do que um mero
terização deverá ponderar, pelo menos, dois aspectos muito importantes da t'X 1 ,,itcmpo". 56 O que inequivocamente sugere a relevância do teatro ao longo
tência dos textos dramáticos: em primeiro lugar e diferentemente do que ou 11 11 1 l li stó ria cultural dos povos, praticamente em todas as latitudes e em todas
com a lírica e com a narrativa, o drama solicita em princípio uma atualização 111 11 < pocas, bem como as diversas facetas (antropológicas, religiosas, sociológicas,
cessada através do espetáculo teatral, atualização que depende de compom·111 1 h o lógicas etc.) que essa universalidade envolve. 57
humanos e técnicos diversificados e quase sempre complexos; em segundo lug.11 Exemplificando de forma muito sintética: a representação da tragédia grega
do ponto de vista da sua existência textual e no que concerne a certas das s11.1 ' r ·ssonâncias ético-morais que suscitava no espectador, os "mistérios" medievais
facetas compositivas, o drama pode aproximar-se da narrativa, já que se estru t1 11 1 11a vocação moralizante e escatológica, o teatro épico brechtiano e a sua propen-
em função de determinadas categorias que lhe são comuns. 11 id eológica, o que revelam também, em tempos e lugares muito afastados entre
Uma vez que o motivo de atenção primeira deste trabalho é a Literal 111 1 1, 1" ·sse carácter universal e culturalmente diversificado de um fenómeno muito
que se manifesta através de textos escritos, insistiremos, sobretudo, nas caral1 1 111 igo. Tão antigo como a necessidade sentida pelo Homem para refletir, em jeito
rísticas fundamentais do drama e nas suas categorias modais dominantes; o q111 r 1111:.ltico, acerca dos grandes problemas que afetam a sua existência.
obviamente não impede a necessária alusão à sua projeção no espetáculo lt',I
trai, projeção aqui apenas esboçada nos vários aspectos que envolve. Por out 1,1 3.3 Quando lemos o passo inicial do Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett,
palavras: a composição do drama e as categorias em que se apoia constitu v111 'lll C se nos depara é o seguinte:
virtualidades disponíveis para essa atualização que só se consuma no espetárn 11 1
teatral e na presença do público.
CENAI
Etimologicamente drama significa "ação'', sentido que se encontra j:í 11 .1
Poética de Aristóteles e que se prolonga na reflexão de autores como Goetl 11 Madalena, só, sentada junto à banca, os pés sobre uma grande almofada,
Hegel, Antonin Artaud ou Bertolt Brecht. 55 A partir desse sentido por assim di n 1 um livro aberto no regaço, e as mãos cruzadas sobre ele, como quem des-
caiu da leitura na meditação.
fundador, torna-se decisiva, na caracterização modal do drama, a valorização d1
tensões e conflitos, resolvidos num determinado tempo e vividos por personagl' 11
em número normalmente não muito alargado. MADALENA, repetindo maquinalmente e devagar o que acabava de ler:

190 T EXTO LITERÁRIO E ARQUITEXTUALIDADE O CONH ECIMENTO DA LITERATURA 191


"N,1tp1(·l(· ('1q ;.11111 d'.d111 ,1 l1·il 111 11 g11 11111l , I ~ 1 ·~ t(• 11J1.1'; 11111 1111 111.!111 1 1111111111 ( ' l.llllli ~ lll ,1 Oltlll l.' .tgt lll l'\ d.t ll'Jll •
Qu · a l(J r1u11a 11:1 0 dt·ix:1d111 .11 1111 d111 .. ," 1111.1\·ao l ·a trai q11 1· 11.11 111 1111 11111 1\ .1gor:1 dt· ·11u111 t· rar) c:tl wr:I :1 di11 :1 111i '.l,:1~·ao d . 1 ~
11 h·1idas i nd i ·a~·o t·s '·1ii l ·"· q t ll' , ·1"10 cumpri las d · forma mai s ou 111 ·nos prtTi
Com paz e alegria d' alma .. . um cngano , um engano ck pou cos inst.1111 1· 1, J11 Sl:tm c nte de acord o vo1n 11rna certa interpretação das rubri cas qu · int ·gr:11n
que seja ... deve ser a felicidade suprema neste mundo. - E quc i11q 1t1 11 ,1
11 lt'X tO segundo. Uma in1 ·rprcLação primeira que inevitavelmente condi cion :1r:í
que o não deixe durar muito a fortuna? Viveu-se, pode-se morrcr. Í\ 1.1
eu! ... (Pausa) Oh! que o não saiba ele ao menos, que nãO suspeite o l'.\1.1.!11 11111.1 outra interpretação: a do público, perante o resultado final da enccnaç:i o .
em que eu vivo ... este medo, estes contínuos terrores que ainda me 11.111 Voltando ao passo inicial do Frei Luís de Sousa, dir-se-á que nele se rcfl 'tt'
deixaram gozar um só momento de toda a imensa felicidade que me d.1v,1 l 1 .dgo de uma ação que justamente constitui um elemento central do drama .
o seu amor. - Oh! que amor, que felicidade ... que desgraça a minha! ('/(111111 1 ~. 1 ação, que se aproxima de momentos de grande tensão, provém, de fac to, dt·
a cair em profunda meditação: silêncio breve). 58
111111Lecimentos anteriores, denunciados no discurso de Madalena, envolve out r:1s
111 IM>nagens, decorre em determinados espaços não por acaso dotados de co mpo
O que desde logo se torna evidente, nesse incipit, é a existência de do1 111 111cs de forte pendor simbólico (retratos, brasões de família, objetos reli g i oso~
textos e não apenas de um: o texto principal, atribuído a Madalena, traduz 11111 11 ,) e concentra-se num tempo relativamente breve, até chegar a um desc nl :1('t'
certo e conturbado estado de espírito, expresso no breve solilóquio da perso 11 .1 lol •nto: a morte de Maria, depois da separação forçada de seus pais.
gem 59
; por outro lado, o texto segundo, em itálico, não enunciado pela perso 11 .1 A partir daqui, torna-se possível definir em termos mais precisos as t':11·:1
gem, faculta indicações minuciosas quanto à sua situação em cena, à sua atirud1 h tÍslicas essenciais do drama, manifestadas nos textos dramáticos e con cn:t i '.l, a d . 1 ~
corporal, à entoação do seu discurso etc. Um texto segundo que, note-se, se ini l i.1 1111 vspetáculo teatral. Na formulação sintética utilizada por Wolfgang Kaysc r, pod l·
(imediatamente antes do fragmento transcrito) com a extensa e não menos mi1111 d 1·mar-se que "temos diante de nós um drama sempre que, num espaço es pcci:t l,
ciosa descrição do espaço e do tempo que enquadram a ação, descrição essa q111 onae' (de per-sonare) apresentam, por meio de palavras e gestos, um aconteci
/ 11'1'

estabelece o cenário em que se desenrola o primeiro ato: sabe-se, então, que l' ll 1111·11co" 61; assim, nos textos dramáticos uma ação normalmente singular é vivid:t
tem lugar numa "câmara antiga, ornada com todo o luxo e caprichosa elegâm i.1 p111· um conjunto de personagens que entre si se relacionam de forma muitas ve'.l.cs
portuguesa dos princípios do século XVII"; que de "duas grandes janelas rasgad.1 1111ílituosa e com recurso dominante ao diálogo 62 ; essas relações são apresentadas
[... ] se vê toda Lisboà'; que, entre outros elementos decorativos, se destaca "11 111 processo evolutivo, num tempo concentrado que imita, em regime de isocro-
retrato, em corpo inteiro, de um cavaleiro moço, vestido de preto, com a cn1 1 111,1, devir e a duração da ação, muitas vezes conduzindo a um desenlace.
60 Esses elementos estruturantes preexistem, entretanto, a uma representação
branca de noviço de S. João de Jerusalém"; e que "é no fim da tarde".
Isso significa desde logo o seguinte: tal como na narrativa, a personagc 111 11.1 presença do público, na qual são atualizadas certas virtualidades expressivas,
e o seu discurso constituem elementos destacados, na configuração de uma aç:11 1 p1t• se encontram previstas quer no texto segundo (rubricas e indicações cénicas),
que começa a ser representada. Mas diferentemente do que ocorre na narrati v:1, ptt•r na disposição macroestrutural do texto dramático, no seu conjunto (repar-
não se manifesta aqui, ao mesmo nível textual do discurso das personagens, u111 ,1 11\,lO em atos, cenas etc.). Daí o poder falar-se na dualidade do texto dramáti co :
voz estruturante e organizadora da ação, correspondendo àquela que na narrati v,1 dualidade do texto dramático é, por um lado, condicionada pelo carácter d ·
é a voz do narrador. É certo que, como leitores, temos acesso aos dois textrn , 111:1.s fases históricas do teatro (em conexão com, p. ex., a ênfase na 'teatralidade',
trata-se, contudo, de uma situação por assim dizer provisória e circunstancial , 1 procura de específicos meios teatrais de expressão, a escrita de argumentos para
ainda aquém do que deverá ser o completamento e a plena articulação de an1 p1nduções individuais, com a possibilidade de adaptação e modificação do texto
bos os textos referidos, no espetáculo teatral. Neste, o público escutará apen:1'> t1 ,); por outro lado, a natureza e interpretação do texto dramático é influenciada
as palavras de Madalena e não as daquela entidade anónima, responsável pcl:1•1 111 lo desenvolvimento da arte verbal (incluindo o desenvolvimento das relações
192 'l' l•X l'O LI TERÁRIO E ARQUITEXTUALIDADE O CONHECIMENTO DA LITERATURA l 9J
ll'.lll!) ) [... !; l 1d111l ,1 lnl ll'll H' lll l' l11lltH'IH i.1d.1 1)('1.t
nllllll.IS L'llll"l' :\ lit l' r;tllll.I l' O p1 1 rnt.11 •1(· 111 pod t• 111 v.tl ·1 prn todo 11111 rl· t r.tto Ml l'i111.11n ·111 · d ·lin ·:ido: no Auto
tradição do pensamento teon'.: ti co :1'L·rc.1 d.1 litl'1.11111.1". 1>1 ,, /l,m ·11 rio !1tji·mo dL· ( :11 Vi 'l'lll " a cadeira qu e acompanha o fidalgo denuncia
11111.1L<>ndi çao social de certo destaque; o lavrador do Auto da Barca do Purgatório
3.4 Referindo-se ao carácter co nce ntrado do dram a, a qu e rcpetidanw11l 1 1111 11111 arado às costas e assim evidencia emblematicamente uma profissão; e na
aludimos já, Emil Staiger observa que os grandes dramaturgos / ,11 "' rios Físicos, o estranho latim exibido por um dos médicos conota um vício de
11 11•111açfo científica, afinal nada eficaz para curar um clérigo doente de amores.
I>~ o l'ísico mestre Fernando:
encuentran conveniente acartar el tiempo, estrechar el espacio, y elegie cl 1
un vasto suceso el momento cargado de interés - un momento poco ;1111 1~
dei final -, y, desde aquí, reducir lo múltiple a una unidad abarcablc ;1 1 11 ~ Dizem os nossos doutores -
sentidos, para que de este modo aparezcan con claridad no las partes ~ i11 11
Ouvi-lo? ouvis que vos digo? -
las trabazones, no lo singular sino la totalidad de relaciones, y nada dr 111
que los oyentes han de retener se esfume en el olvido". 64 Non es bona purgatio, amigo,
illa qui incipit cum dolores,
porque traz flema consigo,
É ainda essa concentração dramática que permite aprofundar uma co 11 e illa qui incipit trarantran,
frontação já esboçada: a do drama com a narrativa.
quia tranlarum est.
A concentração que o drama implica provém da necessidade de uma n·
Ouvi-lo? De físico sam eu mestre,
presentação em princípio ajustada a um tempo limitado: à parte exceções L' 111
mais que de surlugiam,
situações especiais 65 , modernamente essa representação tem em conta a cap:11i
em que me chamam sudeste. 66
dade de fixação da atenção por parte do público, ao assistir a uma sessão l t'. I

tral; diversamente, a narrativa, mesmo quando materialmente muito alargad.1, A existência de elementos comuns ao drama e à narrativa (a personagem,
estrutura-se em função de sucessivas sessões de leitura: quem lê O Crime do Prtrlrr• 1 11•mpo, o espaço etc.) não impede, pois, o reconhecimento de uma especifici-
Amaro fá-lo obviamente em várias etapas. Mas a adaptação teatral do mes11111 1ulc modal que tem que ver com peculiares procedimentos de representação e de
romance (realizada em Portugal em 1978 por Artur Portela e Mafalda Mendes d1 011netização: na narrativa, a representação processa-se por meio de um narrador,
Almeida) encerra a história no lapso temporal de cerca de duas horas que dur:1.1 111 idade ausente no drama; neste, a representação requer a mediação do espetá-
representação. 1110 teatral. Por outro lado, a concretização da narrativa dá-se através da leitura
A concentração dramática efetiva-se ainda por outros motivos. O car:í1 111 malmente silenciosa; a do drama exige performances de diversa natureza (por
ter eminentemente imitativo da ação dramática - contando com a personagl'll1 11 io de atores, com o suporte de técnicos etc.), visando um público fisicamente
em cena, vestida de um certo modo, lidando com determinados adereços c11 11·s •nte e modulando o texto dramático em termos que podem ser visivelmente
- dispensa as intervenções descritivas levadas a cabo na narrativa pelo narrad o1, 111Ílo distintos: uma determinada comédia de Moliere é concretizável de formas
descrições que podem revestir-se de grande minúcia. Quando muito, é no tex 111 1 Llveis, em função de encenações que recorram a diferentes conceções cenográ-
segundo (conforme se observou no passo citado do Frei Luís de Sousa) da oh1.1 f 1.1s, a vários ritmos de marcação do trabalho dos atores etc.
dramática que se exerce essa função descritiva, ainda assim quase sempre em ll' I Isso não impede, como é óbvio, ocorrências de contaminação, ou seja, que
mos muito mais económicos do que aqueles que encontramos na caracterizac,·;111 1111 drama se encontrem momentos narrativos (quando uma personagem narra
de uma personagem ou de um espaço ficcionais. E mesmo em teatro afeta d11 ·ncos passados, quando uma voz "off" estabelece ligações entre atos e cenas etc.)
por alguma rudimentaridade técnica, a presença visível e o discurso direto d.1 111 que na narrativa reconheçamos momentos dramáticos. O episódio do capítulo

194 TEXTO LITERÁRIO E ARQUITEXT UALI DADE O CONHECIMENTO DA LITERATURA 195


XV I11 d'Os Mttitts, c 111 qu · l•'. g:i · Vi l : 1 ~. 1 11·v •l,1111 .i ( ',11 lo.-. .1 v 'Hl.1dl· .1 t• 1r.1d · M.11 1 1111 11•x 1n d1 ,1111. 1l111 1·, \t1l111·1111l11 , 11 n ·~ p ·t.11 il n q11 1· n .1111.ill'l..1, d01 :1dos d · u111
Eduarda, é um daqueles em que ·rg · u11 1.1 ·1t.1 1t· 11s:to dr:1nd1 i ':1. :1poi:1d:1 1111111 10
·111 p.rn· ilo ·u16rio q11 1· M' 11 ,10 1·1110111 r:1 na 11 arrativ:1 lit ·r; ria.
diálogo muito vivo; curiosamente Eça nfo d ·ixo u d · ompletar cssa l ·nsiio 1 '1111 I~: possível ·111 :10 :dln11 :11· llLH.: o dram a represe ntado "contes ta a falaciosa
um subepisódio burlesco que (também dramaticamente) contrasta om a ag11d,·11 .11 1 11i ~·fo da lin gu:1g ·111 ·01110 um meio de dizer coisas". Porque incute às falas
das emoções vividas: esse em que Vilaça procura um chapéu que levou su 111 i1,11 il .1., p ·rso nagcns um a exp rcss ividade que torna presentes e atuais esses discursos, o
De forma também muito significativa, o narrador das Viagens na minha temi, 1111 11111' rc::tliza uma ação que é algo mais do que esse simples "dizer coisas" 71 : ela ten-
final do capítulo XXVl, propõe à leitora curiosa acerca do desfecho da históri.1 111 .11 l:trnbém a refigurar a presença atuante da personagem, não apenas citada nas
Carlos e Joaninha: "Vamos a Santarém, que lá se passa o segundo ato". 67 11 , 1 ~ ía las, mas integralmente vivida. Exatamente porque essa vivência pode levar
1 11111 a empatia que retire lucidez analítica ao espectador, o chamado teatro épico
3.5 Um aspecto crucial da caracterização do drama, tanto naquilo qu e 11 .11 Inspiração brechtiana propõe uma representação distanciada que, esbatendo a
distingue de outros modos literários como pelo que respeita às projeções <:sp' il11 ~iio dramática, reduza aquela atração empática. 72
taculares que o texto dramático solicita, é o que respeita à criação da cham :1d.i A ilusão dramática não tem que ser entendida, portanto, como um requi-
ilusão dramática. 10 insubstituível, nem implica forçosamente, nos seus diversos graus de reali-
Objeto de atenção de incontáveis reflexões acerca do drama e dos g<'.·1H' . 1 ~,1 0, a formulação de juízos de valor definitivos. Se em determinadas épocas
ros dramáticos 68
, a ilusão dramática conexiona-se como questões tão diver~. 1 11lll1rais e em certos géneros dramáticos a ilusão dramática foi encarada como
como a catarse e a teoria da imitação, a verosimilhança e a função ideológi1 o 111>) •civo a atingir, noutras ela aparece consideravelmente desvalorizada. Assim, o
-social do teatro. Ilustre-se a sua relevância (e também a sua complexid:1d, 1 li ,1mado teatro naturalista (que não corresponde necessária nem exclusivamente
relativa) através da evocação de um incidente referido por Stendhal em Rari111 111 teatro escrito e representado no tempo do Naturalismo literário) investe con-
etShakespeare; a certa altura do diálogo entre o Académico e o Romântico, c~ 1 1 111 •rável esforço humano e técnico na criação dessa ilusão: por exemplo, a sala de
último conta o seguinte: 1111rar ou o jardim em que decorre a ação aparecem decorados como tal até aos
111.1i s ínfimos pormenores. Diferentemente, práticas teatrais de índole alegórica
1111 simbólica despojam o espetáculo de componentes que favoreçam a ilusão dra-
O ano passado (agosto de 1822), o soldado que estava de serviço "''
111.ítica: surgem, então, especialmente valorizados não apenas os discursos das per-
interior do teatro de Baltimore, ao ver Otelo que, no quinto ato da trag,'·
dia com esse nome, ia matar Desdémona, exclamou: "Nunca se dirá q111 1111agens em si mesmos, mas também a indumentária estilizada, os jogos de luzes
na minha presença um maldito negro matou uma mulher brancà'. Nc~.\1 11.111sfigurantes, as cenografias ousadas etc. O que significa, em última instância,
momento, o soldado dispara a espingarda e parte um braço ao ator lj(H q11' nem mesmo a superação das exigências imitativas do teatro naturalista - na
fazia de Otelo. 69
11 cção de representação de índole ilusória em que ele foi referido-, nem mesmo
~a superação, dizíamos, elimina a necessidade de se considerar a passagem do

Verdadeira, falsa ou simplesmente deformada, a história atesta bem a for~.1 11·x to dramático ao espetáculo teatral como momento decisivo da existência cul-
persuasiva que pode caracterizar os discursos e os gestos da representação dramá1 i 111 ral do teatro.
ca, sobretudo quando se encontra anulada a distância emocional que o espectad01
de teatro usualmente cultiva: é essa distância emocional que lhe permite assistir .1 3.6 Nos últimos anos, como consequência do desenvolvimento da teoria
conflitos e mortes, dilaceradas separações ou finais felizes sem se envolver na aç:111 .1nálise semiótica, os estudos sobre as práticas teatrais instituíram um domínio
com o excesso atribuído ao soldado que assistia ao Otelo. O que não impede qu(' 111ctodologicamente autónomo: o da semiótica teatral. 73 Em termos gerais, pode
os discursos dramáticos (e também os gestos, as situações encenadas etc.) surj am, di1,er-se que a semiótica teatral interessa-se pela representação teatral considerada

196 TEXTO LITERÁRIO E ARQUITEXTUALIDADE O CONHECIMENTO DA LITERATURA 197


como prm "~so 0111t111i .11ivo <jlll' M' d l11.111il 1.i 1•111 11111~ . 10 de· ~ 1 g110~ ·~ p<'< !11 111•, q11 1• 1·111ho1 .1 . 111 . il i~. l \'1 I .!1 111 111 1.1 M'p.11 .1d.1,
1 t'.\ M'.' pl.11u1 ~ d 1· , 11l v. 1 ~ :io l'~ P ·1:i nd :1r
11 J,11 ioll ,lll\ ~l' 1'111 l l ' .~i,
operando num ·spaço qu · Lcm no ·~ pn·1.11lor o ~c·11 d ·s1ln:11 :\ rio in1 edi:1to. P111 l1
postular-se, desse modo, a existência de um hip ·r ·6digo teatral : d · a ·ordo 111 11 1 No pri111 l· iro 11Ívd , d1·w l l' l'- Sl' em co nta a rd evância artística de uma enti-
1!.1.! · l'X treniam cn1 c i1dlul'lll l': o ence nado r. Res po nsável, em termos gerais, pela
Erika Fischer-Lichte,
11111·11:1c,: ao, ele procede a um a certa leitura do texto dramático, projetando os
11 11ltados interpretat ivos dessa leitura sobre a transformação do texto dramático
this code regulates (1) which material creations are to apply as vch Íl ln 111 111 r ·presentação teatral. A orientação cenográfica, a direção dos atores, a opção
meaning - in other words, as theatrical signs; (2) in what way and 1111.\11 11111 procedimentos e instrumentos de intensificação ou desvanecimento da ilusão
what conditions these signs can be combined selectively with one a1101l111
l1 .1tn:ltica (música, efeitos sonoros, iluminação, cenários etc.) são, entre outras,
and (3) which meanings can be attributed to these signs (a) in certai11 ~r 11
tagma and (b) in some cases, as isolated terms. 74 1tl1 mi es próprias da encenação, conduzindo a um resultado final desejavelmente
11 u•r ·n te. "La pueste en escena", escreve Patrice Pavis no seu Dicionário do teatro,
d1·h • formar un sistema orgánico completo, una estructura donde cada elemento
O hipercódigo teatral compreende três níveis de observação: o nível s i ~ 1 1 1 integra al conjunto, donde nada se deja al azar sino que cumple una función en
mico, que é aquele em que são estabelecidos, em termos genéricos e de princíp1 11 l 1 1 oncepción del conjunto".77
os signos, as combinações de signos e os sentidos suscetíveis de representa1,.111 C omo é evidente, o encenador apoia-se não apenas nas indicações even-
teatral, aquém de práticas historicamente localizadas; o nível normativo, qu e 1· 11 111 .ilm ente facultadas pelo já mencionado texto segundo (as rubricas que acom-
que leva a selecionar certos signos, em função dos géneros dramáticos e das éprn ,1 p.111ham o texto dramático propriamente dito), mas também num conhecimento
culturais em que são adotados (na tragédia grega, no teatro isabelino etc.); o 11 Ív1 1 p1nfimdo da dramaturgia do autor, do contexto epocal que enquadra a sua obra,
discursivo, que é aquele em que se especifica uma determinada atualização (u1 1i.1 q11 .111do não mesmo (e obviamente nos casos em que tal é possível) no diálogo
performance) dos signos do nível normativo, de acordo com escolhas individ11 .1 ltll'l com o dramaturgo. Não o podendo fazer, o encenador que dirige a ence-
75
que distinguem essa particular atualização de todas as outras. 11.1\ ,IO de uma tragédia de Racine há-de estar informado não apenas acerca da
Mesmo reconhecendo-se que uma descrição exaustiva dos signos teau .11 p1odução raciniana, de um modo geral, mas também acerca da cosmovisão de
não cabe nos limites deste trabalho, deve notar-se o seguinte: que esses sig1111 11111 essa produção se encontra imbuída etc. ; do mesmo modo, o encenador que
assumem uma feição manifestativa tanto humana como propriamente técni rn 1 o ·upa do teatro de Brecht conhecerá os princípios ideológicos e dramatúrgi-
-material (p. ex.: mímica e inflexões de voz, iluminação, sons etc.); que a Mt.1 "' que regem o teatro épico, bem como os propósitos sociais que o norteiam.
dimensão e tempo de ocorrência é muito diversificada (da organização do l '' ,jm se incute consistência a um labor que ao ser, como se disse, antes de mais
paço cénico ou da indumentária à fugacidade de um gesto); que, do ponto d1 lllll rpretativo, vem a condicionar a recepção do texto-espetáculo pelo espectador.
vista recetivo, o efeito dos signos teatrais é também variável: as inflexões d1 Essa recepção passa obviamente pelo ator. Em princípio, dependendo da
voz são apenas (e por vezes dificilmente) audíveis, os efeitos de iluminação ~. 111 litl·ção do encenador, o ator procede à ativação cénica dos discursos das persona-
visíveis de forma distinta etc. etc. 76 Mais significativo, no presente contex 111 1lll, bem como de tudo o que contribui para a sua representação: gestos, mímica,
é atentarmos (embora também brevemente) em duas instâncias de ativação 1 1l111cios etc. Sendo assim, a própria distribuição de papéis constitui um momento
organização de signos teatrais: a instância das entidades que de forma m.11 11111 certo destaque para que a interpretação do ator possa dinamizar os aspectos
notória transpõem o texto dramático para o espetáculo s.eatral e a instância d11 lp.11iflcativos da personagem: por isso, as características físicas e técnico-expressivas
componentes de ordem técnico-artística que ilustram e enquadram essa trarn lo' atores vocacionam-nos para determinados papéis, mas não para outros. 78 Por
posição, enquanto processo com fortes incidências materiais. Evidentemc111 1 11111ro lado, convém observar que a relação do ator com o encenador não tem

198 TEXTO LITERÁRIO E ARQUITEXTUALIDADE


O CONHECIMENTO DA LITERATURA 199
q u · ser ·n ·arada ·0 111 0 sub m issao pa s.~ lvil , 11 111.1 v1•1, ljll l' o 11·;1h.dli o d.1q 11 ·I · prnl1• 111 11·1lon"H. s111 n.1 1i,11111·1111 .id qt1o1drn .t l m·;1i.~ dl· t·s p1:dn do) s:10 j:I, t•111 simu lt ~m;o,
manter uma certa m argem de aULo nom ia, p:1r:1.tl é1n d as ori · nt a~·o ·s da cn · ·11 ;t\'. l11 p.1\'0s s ·mi -irnp 1ovl1-. ulrn, lt•vli .1dos · plib li ·os, co m var iada co locação dos cs-
Mais: em certas práticas teatrais, tanto no pass:1d o ·o mo modcrn amc nLc, o :11rn p11 t:id o rcs, m:is :linda :1q1 1r 111 das o nd ições de co nforto que d epois se estabele-
chega a cultivar uma liberdade considerável: a Commedia de!l'Arte, mui to pop11 l.11 11 111 . (;: a arq ui tetura do tc;1Lro itali ano que define o teatro como espetáculo cada
na Europa nos séculos XVI e XVII, assentava no trabalho de improvisação do :11 01 , ·1t, mais associado a m odos de vida burguesa: num edifício construído para esse
a partir de um certo assunto dramático, ilustrado por personagens estereotipad .1,, 111lto , o público localiza-se em diferentes lugares e ordens de arrumação (plateia,
nos nossos dias, o happening, cultivando a vivência espontânea e interativa (co111 11 '.1111 arotes, galeria etc.) de acordo com diversas condições económicas e sociais; e
público) da ação dramática, liberta o ator e estimula a sua criatividade. .!1 1' que, sobretudo a partir do século XVIII, ir ao teatro é um ato social e não
O segundo plano de configuração a que nos referimos é o que diz I'l'.' q H nas cultural, ver o espetáculo não é, por vezes, mais importante do que ser vis-
peito, de um modo geral, a tod os os condicionam entos, opções e instrumento~ 111 11 1 Modernamente, a evolução de conceções dramatúrgicas de forte incidência
de ordem técnico-material em que se suporta o espetáculo teatral. Constitui ml11 1o l1•ológico-cultural levou à desarticulação do tecido arquitetónico convencional:
atuação viva, na presença do público, o espetáculo teatral carece, antes de m:1i,, p11I' •xemplo, a disposição dos espectadores em círculo evidencia o propósito da
de um espaço, com dimensões e disposição arquitetónica específicas; esse esp:t\ 11 11,1 estreita integração no espetáculo, propósito que se completa também através
determina não só o tipo de relações estabelecidas entre atores e público, m as :11 \•, l.1 1nserção de atores no lugar do público.
antes disso, a natureza e funções da representação a levar a cabo, de acordo co111 11 Transformações como as que acabam de ser referidas dependem também
lugar cénico, "codificado duma forma precisa pelos hábitos cénicos de uma épol .1 111 l11strumentos de ordem técnica que em grau diverso podem intervir no espetá-
ou de um lugar" .79 Alguns exemplos recolhidos no devir multissecular do tea t r11 ulo teatral. Palcos móveis, efeitos de luzes e de sons, projeções de imagens (dia-
darão uma ideia mais nítida do que fica sugerido. 1111\l t ivos, filmes) etc. são hoje correntes, como procedimentos que completam
A representação teatral, na Grécia antiga, processava- se num anfüea t rn .1p rofundam os significados dominantes do texto dramático. 82 Desde sempre,
ao ar livre, não raro comportando milhares de assistentes: distribuídos em semi 11 111 udo, o teatro recorreu a elementos auxiliares d e caracterização e descrição
círculo, eles não se limitavam a observar a ação da tragédia, mas de certa fo rn1 .1 l1 .1111 ática: o uso da máscara (que se encontra já na Antiguidade), a maquilhagem,
participavam numa longa celebração que envolvia temas e problemas de grand1• 11 1•,11arda-roupa, os cenários, os elementos decorativos da cena etc. atravessam e
projeção ética, moral e social. Já o teatro medieval, afetado pela precariedad1 · tl1 1\t ram, ao longo da história do teatro, propósitos comunicativos e expressivos
técnica que o caracterizava, concentra-se muitas vezes no adro da igreja: n um.1 11\tin ados a reforçar a mensagem dramática.83 Na Idade Média uma simples le-
atmosfera de fortes conotações religiosas, o público revê episódios bíblicos (11 11da podia indicar, numa espécie de palco contínuo, o lugar do Paraíso e o lugar
pecado original, a paixão e morte de Cristo etc.) cuja evocação não é obviamen11• 111 1n ferno; o drama romântico esforça-se por intensificar os gestos, discursos e
estranha a um propósito de edificação. É ainda esse propósito que encontramo,, 11.1·rerísticas físicas e psicológicas da personagem, favorecendo a ilusão dramáti-
nalgum teatro vicentino, mesmo quando ele se fecha em lugares de acesso restrito: 1, n teatro épico reformula a técnica de representação e, como disse Brecht, põe
o Auto da Barca do Inferno anuncia-se, na rubrica de abertura, como "prefigu r:1 1 p.tl o a narrar, com o auxílio de equipamentos adequados; e o chamado teatro
ção sobre a rigorosa acusação, que os inimigos [entenda-se: os demónios] fazc 11 1 111lirc, concebido e dinamizado por]. G rotowski, assenta numa grande sobrieda-
a todas as almas humanas, no ponto em que per morte de seus terrestres corpo., li 1k recursos materiais, o que leva a uma extrema valorização do trabalho do ator
se partem"; uma "prefiguração" que "foi representada na câmara, pera consolaçii11 11.1 sua capacidade de comunicação com o público.84
da muito católica Rainha Dona Maria, estando enferma do mal de que faleceu". 1111 Seja como for: com maior ou menor apelo a elementos de incidência es-
No final do século XVI e no século XVII, surgem em Portugal rudimentarl'' 1 1.1cular, realçando ou subalternizando o texto dramático, o teatro, no transcur-
pátios de comédias; e em Espanha, os "corrales" (também com a forma de pátio,, 11 d.1 sua existência histórico-cultural, retém, ativa e incessantemente reinventa

200 TEXTO LITERÁRIO E ARQUITEXTUALIDADE O CONHECIMENTO DA LITERATURA 201


as l'u11da11K·1Hais proprkdadL·s 111od.1b do d1.1111 ,1. S.1n t'1>1>.1' pt' ll' ll l'/\ prnp1 inl.1111 1 1 lt' I (() q11t' ().~ 1·,1\111 111 ( Ili 1'P. i.tl LL'l'to/\ gt' IH' I(),\ L' subgé neros) podcrn SL'I
modais - a vivência co nce1nraJa d· ai,·m·s 11 ,1 p1 t'M' ll<,':1 dl' u111 pt'1hlico ·x 1wt t.111 111 .11.1dos como llip111111llH11 do sis Lema liL ·r:í rioH1, ·ntão as suas potencialid a
te - que fazem do drama e do espetáculo Lca tr:tl fe nómenos cm última inst.1111 i.1 d1 ~ d · ·oJifl ·a<,·ao t111111i l111t•111 decis ivamente para o estabelecimento de um a
dirigidos a preocupações, traumas e problemas também perenes. Tudo , afl11 .d, 11 111111unicação liLcr:í1 i.1 ll11id.1; particularizando o que sugerimos, diremos que a
que um grande dramaturgo espanhol resumiu nestes termos: 11 lt11ra de uma novda romântica implica a apreensão de determinados signos e
111digos narrativos, temáticos e ideológicos (por ex.: um ritmo temporal intenso,
11l1 udes de radical idealismo e individualismo, uma intriga intensamente amo-
O teatro é uma escola de choro e de riso e uma tribuna livre de 011111
os homens podem pôr em evidência morais antigas ou equívocas l' n 1m.1, frequentes intrusões do narrador etc. etc.). Assim, a adequada descodifica-
plicar com exemplos vivos normas eternas do coração e do senti111l·111 11 .111 de uma mensagem bem marcada do ponto de vista genológico, apoiada no
do homem. 85 1 1onhecimento do género, favorece consideravelmente a relação interpretativa
111 111 essa mensagem. Conforme nota Thomas Kent, "a capacidade do leitor para
'li 1' ompetentemente a identidade de género de um texto - aquilo a que chamo
4 CRISE ERELATIVISMO DOS GÉNEROS LITERÁRIO 1n·r ·cção de género' - pode ser encarada como um tipo de pré-condição para a
p11'1pria interpretação". 88
Ora, o que entendemos ser a relativização dos géneros conexiona-se com o
4.1 O que até agora ficou escrito não deve levar a pensar que postulanw 1110 ·esso da semiose literária e, em termos mais gerais, com os avanços da própria
aqui uma conceção de género literário como entidade fixa e rigidamente imp11 p1odução cultural. De facto, a partir do momento em que os géneros agem como
sitiva. Se assim fizéssemos, estaríamos a ignorar a historicidade dos género1' 1 11digos, eles estabelecem-se também como virtual desafio à mudança, "princípios
dos subgéneros, várias vezes sublinhada já, e também a ressuscitar artificialmrnt 1 Ir produção dinâmica'' 89 que nessa dinâmica chegam a investir comportamentos
orientações normativas e puramente classificativas que, no passado e no que a L'1' t.1 li' .1utocrítica e autorrevisão.
matéria diz respeito, foram frequentes. Por outro lado, torna-se necessário encu .11 Esses comportamentos são indissociáveis de transformações ideológicas e
a questão dos modos e, sobretudo, a dos géneros literários, por um ângulo q111 111 ioculturais não raro muito profundas, afetando a vários níveis (institucionais,
tenha em atenção dois problemas distintos, mas relacionados entre si. Prim eiro 1 111ico-literários etc.) o fenómeno literário e, no seu contexto, a legitimidade
no plano da criação literária, o que desde o século passado algumas vezes se 11 m .1 operacionalidade dos géneros. Não falamos já no que é sabido: que desde o
tem revelado é uma espécie de crise dos géneros, que não se limita a repetir aqul'l ,1 lfornantismo é patente a tendência para subverter (e depois refazer: na novela
propensão para o hibridismo que foi própria do Romantismo. Segundo: no pla1111 on1ântica, no drama romântico, no romance histórico) os géneros e os subgéne-
teórico-conceptual, manifesta-se uma certa tendência para relativizar as formul.1 º' literários; mais radical do que esse tempo cultural, no aspecto de renovação
ções genológicas estabelecidas e até para fixar outras, inteiramente novas. 1dativização genológica que agora importa, é aquele que, partindo do final do
A descrição que, de um ponto de vista teórico, aqui tem sido privilegiad.1 , t 1110 XIX, acolhe a emergência de movimentos pós-simbolistas, modernistas
assume, como diz Earl Miner, "a necessidade de conceitos que agrupam porçrn· d · vanguarda, normalmente irredutíveis aos esquemas de distribuição de gé-
de um corpus literário mais amplo do que um simples exemplo e mais redll'!I nrros até então dominantes. Com escritores como Mallarmé, Walt Whitman,
do do que essa entidade chamada 'literatura'". 86 Esses conceitos aglutinadon·1 J 111es Joyce, Marcel Proust, Ezra Pound, o pessoano Bernardo Soares, Mário de
orientam-se no sentido de uma função descritiva que lhe atribuímos, fun~ . 11 1 11drade e também Bertolt Brecht, os géneros líricos, as categorias convencionais
que obviamente não anula (antes, de certa forma, precede) a sua vocação hc11 lo romance ou a interação do texto dramático com a cena modificam-se subs-
rística e mesmo virtualidades hermenêuticas que importa também ter em cont.1 11 ·ialmente, em termos tais que é possível falar numa verdadeira desconstrução

202 TEXTO LITERÁRIO EARQUITEXTUALIDADE O CONHECIMENTO DA LITERATURA 20J


gt: nol<'>gic:i: :1qud:1 qu l' {: p :ll L' lll l' c111 t l'X t m t.11 1 d lv1· 11111.' ro 11111 l·'J1111r'.Wlll1 \ 11/.·r, <J 1 111rnltd . 1 ~·ao (111111 1·,1 ,1, 11il11dl1 ,1 t l l .) dos gl- nl'l'os; {: as11i 111 tarnbt'.· 111 qu e Fowln
Livro do Desassossego ou os (,(111/os, indissm Uvd~ de u111:1 r · b ~·ao proli111d:111H·111 1 p111 ur:1 es tabdn· ·1 11 111111111·11111 d a rn o rtt: do género: "Declara-se um género
pluralizante e fragmentadora do sujeito co m a lin gua ge m. 1111110 mono se as ohr:i~ 0111 dt: rel acionadas diretamente já não são amplamente
A expressão desconstrução genológica remete para uma co nceção 1.k csl 1i1 .1 lld ,11., de modo que a sua forma só é inteligível com esforço escolar''. Mas mesmo
que importa comentar brevemente, naquilo em que ela condiciona a qu estiío d11 • 1 '· ' morte é eventualmente imprecisa e também relativizável, "porque um género
géneros. De acordo com essa conceção, a escrita literária elabora-se como prou ·, p11d · sobreviver para um grupo social e desaparecer para outros - como o relato
so de produção arbitrária de sentidos, dissolvendo, no interior do texto, gualq1 1t 1 ili• t ·1-ror, escassamente praticado como forma literária, mas ainda vigoroso na
propósito de estabilidade ou coerência; ora os géneros e os subgéneros pod eri.1 11 1 Ili ~·:10 científica subliterária". 92
precisamente ser entendidos como um modelo de referência exterior ao texto, 1·111 Não custa admitir que a relativização dos géneros constitui, no plano da
certa medida responsável por essa estabilidade sempre diferida. O que só prnl1 11·11ria, uma atitude relacionada com (ou até influenciada por) uma certa instabi-
compreender-se em função de uma escrita descentrada e produtora de uma p:il.1 l1d.1de, verificável em práticas literárias dos nossos dias, práticas essas irredutíveis
vra que interminavelmente transcende as intenções do sujeito. 11 ma referência genológica estável. Em determinados casos - sobretudo naqueles
Significativamente, num texto em que analisa, nos planos teórico, m et:11 r 1n que o escritor questiona, no ato da escrita, categorias genológicas93 - parece
órico e operativo, a problemática dos géneros, Jacques Derrida referiu-se a u111 ,1 prnpriado falar em crise dos géneros ou, pelo menos, em ceticismo quanto à sua
"lei da lei do género". No seu estilo característico e algo perturbante (estilo ki111 1 t\i timidade como categorias formal e institucionalmente sólidas.
de afirmações e refutações, axiomas e paradoxos), Derrida parece sugerir qu l' .1 Um estádio ainda assim relativamente moderado dessa instabilidade é o
postulação do género como categoria literária constitui um estádio decisivo 11.111 ptl' se encontra em tentativas pós-modernistas de refazer, recuperar ou conju-
apenas para a sua hipotética observância, mas, sobretudo, para a sua incess:1111 1 ·' ' géneros e subgéneros narrativos desaparecidos ou pouco reputados do ponto
derrogação: depois de afirmar que "desde que o género se anuncia há que respr1 h vista cultural. Theo d 'haen aludiu assim a esse fenómeno: "Com o advento
tar uma norma, não ultrapassar uma linha limítrofe, não arriscar a impureza, .1 111 pós-modernismo, notamos que aqueles (sub)géneros que até agora ocupavam
anomalia ou a monstruosidade", Derrida enuncia assim essa "lei da lei do gé11 v posições periféricas estão a mudar para o centro do sistema''. 94 O romance poli-
ro": "É precisamente um princípio de contaminação, uma lei de impureza, u111.1 1.il, o romance gótico, o romance histórico, o romance fantástico, o romance de
90
economia do parasita". w nturas são alguns desses subgéneros, tal como, nas últimas duas a três déca-
111 .~ , têm sido adotados (transformados, glosados etc.) por escritores como Italo
4.2 Mesmo fora do quadro da chamada teoria da desconstrução, é pos~ ".tlvino, Umberto Eco, Norman Mailer, Alain Robbe-Grillet, William Golding,
vel convalidar a condição relativizada que pensamos ser necessário atribuir :1m ..1briel García Márquez, Julio Cortázar, Alfredo Bryce Echenique e, entre nós,
géneros. Esse relativismo dos géneros torna-se óbvio desde que neles se acentua ,1 ml- Cardoso Pires (p. ex: O Delfim), José Saramago (Memorial do Convento, A
dimensão histórica já aqui comentada91, a partir do diálogo que estabelecem co 111 l/ht6ria do Cerco de Lisboa) ou Almeida Faria (O Conquistador). O que nesses (e
circunstâncias culturais, ideológicas, sociais etc., eminentemente mutáveis; co11111 outros) escritores se revela é a necessidade de refutar, pela via de uma reconver-
tal, também os géneros, indiretamente envolvidos num incessante processo evo o genológica muitas vezes algo provocatória, o cânone do romance de matriz
lutivo, vêm a ser entidades por natureza mutáveis e mesmo perecíveis. 1llocentista, construído, consolidado e difundido sob o signo de "uma visão hu-
Os termos em que Alastair Fowler procura descrever a vida e morte d.1, 111.111ista do mundo, tradicionalmente associada à ascensão e triunfo da democra-
formas literárias são tributários precisamente da aceitação de uma dinâmica d1 l.1 burguesa no (ou em quase todo o) mundo ocidental''. 95
transformações e interações como a que ficou mencionada: é assim que se postul.1 Nalguns casos mais radicais - esses em que é legítimo falar de crise dos gé-
a existência de fases de aparecimento, secundarização (por imitação de génenil 111 ros, mais do que da sua reconversão - assiste-se a uma verdadeira desagregação

204 TEXTO LITERÁRIO EARQUITEXTUALIDADE O CONHECIMENTO DA LITERATURA 205


das d o mi11 .111t l·~ l' alL\ allt l'S d bso, d.1, d l·~l1•, 11 . 1 ~rn·' 1•,1·11 ol1>gh.1,, ' 1 (· 1111 0~ l l ' 01il tt•1 I c:o11t11do , 1,,ll lt1q u d1 q11 1· .1 ni. 1 ~· ! 1 0 po(·1k.1 l't'\." llP ºl'l' po r r-l'·-
1
lt.lll Vt"/, 'S

damente dirusos (n o qu e diz res p ·iLO , co lllo (· 1>hvio, :1 u111 a possÍvL· I ·ara 'l ·l'i·1.. 1~ . 111
1
1111 d;1s de gc'.·11l·ro, M' lll 11111 11 1•1 ohl'igat o ria1rn.: nte nos ri scos da co nvenção o u da
enquanto género) como escrita, texto o u lkçao co nsLit ue m po r vo.cs a 111 .111.1 11h1'ol ·sc~ n ·ia. l ) ir .w .1. Il i' q11 · :1ass umida co nsciência dessa recuperação pode ser
externa dessa crise, sobretudo quando surgem expressamente refe rid os no rn q 111 1 11.1ra11tia de qu e tais proçcdim entos se encontram protegidos contra os riscos da
do texto ou nos paratextos.96 111ulação pass iva. Po r o utras palavras: o poeta adota (agora sem a coerção insti-
De forma semelhante, também o termo fragmento parece refletir algo d1·, llll ion al que antes provinha de academias, precetivas ou mecenas) determinados

se movimento de desagregação dos géneros, sintoma visível de uma indagação q111 1 11 ·ros líricos, mas não hipoteca, por isso, a possibilidade de inovar pelo interior
se interroga sobre a unidade da linguagem, a da obra literária e, mediatamc1111 , 11.1 1radição. Assim, Epitáfios de Eugénio de Andrade não cumprem minuciosa-
sobre a do sujeito que a enuncia; na Literatura Portuguesa, o caso paradigm ;Íti111 1111•11 te as regras formais do que era, no passado, esse género lírico, subsumindo
de uma escrita fragmentária, plural e indefinida, em termos de género, é O U1 111 1 1111•s mo, no seu contexto, outros géneros líricos, como a ode e a elegia; isso não
do Desassossego de Bernardo Soares; por sua vez, em Rumor Branco de Alm cid.i l111pede que os poemas que naquele volume se encontram ressoem, do ponto de
Faria abandona-se a organização convencional em capítulos e o texto estrutur;1 " hta funcional e temático, como epitáfios, com tudo o que emocionalmente isso
em fragmentos; e Vergílio Ferreira, em vários momentos do volume Pensar, al11 d1 ltnplica. Por sua vez, os Sonetos Românticos de Natália Correia não anulam uma
mesmo à atualidade e ao significado de uma verdadeira estética do fragmen dri11 1111 te personalidade lírica nas constrições formais de uma forma poética que nesse
"º' além do mais, remete para o grande poeta do soneto que foi Antero. O
lllt' permite encarar essa espécie de revivescência técnico-formal sob o signo de
A obra de arte inacabada ou mutilada, o esboço, o fragmento . Ma i ~ d11
1111a modulação lúdico-simbólica que encontramos num outro importante poeta
que nunca isso nos fascina. Porque o que mais importa numa obra de :11 11
é o que ela não diz. É o não dizer que hoje sobretudo se pode dizer. () ronuguês, episódico cultor também de formas poéticas canonizadas: Carlos de
fragmento ou o inacabado acentua a voz do imaginário, antes de ser a d11 )liveira que, no volume Terra de Harmonia, insere um "Vilancete castelhano de
perfeito silêncio. E o silêncio sem mais é hoje o nosso modo de falar. ( lt1 111 Vicente", um "Soneto castelhano de C amões", "Sonetos de Shakespeare rees-
seja, a forma única de a razão ter razão. 97 1lt os em português" etc.
Assim se relativiza de novo o género (porque uma certa prática de género, no
Note-se, entretanto, o seguinte: se até agora temos falado, sobretudo, L· 111 1 .~ente, remete ao passado), atitude que fica ainda aquém de uma outra possível

relativização e crise dos géneros narrativos, enquanto fenómeno recente, tal dew l.1ção, esta de índole desconstrutiva: a de José Gomes Ferreira reutilizando o sone-
1, enquanto forma poética culturalmente reputada. O "soneto que só errado ficou
-se ao facto de os géneros líricos terem sido objeto já, praticamente desde finais d11
século XIX, do impulso de libertação que veio a tornar, em muitos casos, inteir;1 110" , como se lê em epígrafe, cumpre normas rimáticas e estróficas estritas, mas não

mente anacrónica qualquer referência a normas ou classificações de género. E~,.1


98 ormas métricas, como se elas estivessem para além do limite da aceitação possível,
libertação ocorreu praticamente desde o Simbolismo, aprofundou-se depois co111 ir parte de um poeta reconhecidamente seduzido pelo verso livre. Estabelece-se,
os vários Modernismos 99 , com o Futurismo e com o Surrealismo, mais tard<.: (1
sse modo, o equilíbrio instável entre o que ainda é e o que já não é soneto:
em termos ainda mais radicais) com a chamada poesia experimental. 'ºº Peculiar 1
intrinsecamente vocacionada para protagonizar a ruptura, a moderna poesia líri1.1 Se eu pudesse iluminar por dentro as palavras de todos os dias

situa-se e resolve-se muitas vezes num cenário recetivo mais restrito, seletivo e so ll , para te dizer, com a simplicidade do bater do coração

ticado do que aquele que é próprio da ficção narrativa; o que, como parece óbvio, que afinal ao pé de ti apenas sinto as mãos mais frias
favorece também uma comunicação literária por assim dizer desguarnecida des~." e esta ternura dos olhos que se dão.
balizas de orientação comunicativa que, em parte, são os protocolos de género.

206 TEXTO LITERÁRIO E ARQUITEXTUALI DADE O CONHECIMENTO DA LITERAT URA 207


111il 1l 1 h l.1d ',o p.11illr111 ld11il111•,l111 t ' l l . , q11 1·, ·111 1i. 11·1.11 iv. 1 .~ ro 1no llrt!t11lt1 tlrt l'mi11
Nt· rn . 1 ~ . 1 ,, 1w111 t·~ 1 rl'l.1 , , 11 •111 l\ 1111~ ' 1111 111.111
,/,11 C'r11•s de C:irdo.,11 l'IH''• <) <i111· /)iz Mol1·ro d · Dini z Ma ·hado ou Cavaleiro
mas o dc.:sc.:jo de.: Sl' I' :1 11 o il v q11 • 111 r 1•1 1il . 1 ~
l!lf/111111• de Alm eid a F:11 l.1, i n .~ tiLU c m registos ontológico-literários oscilantes e
e o baixinho ao bafo da Lua r ·~ pir:H;ao
.! 1lt1 sos, cn tre o fac LO e a llcç5.o, ~·~gistos por isso mesmo designáveis pelo termo
contar-te todas as minhas covardias.
1.il1•,o estranho, m as suges tivo) facção. 103
Noutros casos - mais convencionais ou, se se preferir, culturalmente mais
Ao pé de ti não me apetece ser herói
• 11 11 .~ ·rvadores - a biografia resiste a assumir-se como tal - por exemplo: em
mas abrir-te mais o abismo que me dói
l111r1r/eo e Guilhermina de Mário C láud io - e o diário surge esvaziado de rígida
nos cardos deste sol de morte viva.
11 l1• r ' ncialidade cronológica, como acontece com os textos de Pensar de Vergílio

l 1•11· •ira. 104 Por outro lado, se uma escritora como Maria Gabriela Llansol inviabi-
Ser como sou e ver-te como és:
11 1.11 •m textos como Causa Amante ou Na Casa de julho e Agosto, qualquer filiação
dois bichos de suor com sombra aos pés.
1•11o lógica estrita, a mesma escritora vem a acolher designações de género - que
. - de 1uas e sal'1va. 101
e omp11caçoes 11,10 forçosamente a sua prática canónica - em obras como Contos do Mal Errante,
111/1 Falcão no Punho - Diário 1 e Finita - Diário 2.
4.3 Uma consequência dos processos de questionação e reformulação, de' Num texto muito cauteloso, onde são mais frequentes as interrogações do
construção e desagregação dos géneros estabelecidos poderá ser a que co nd1 11 q11 1• as respostas, Alastair Fowler avança algumas sugestões, no que toca à postu-
à eventual postulação de novos géneros. Uma postulação que enfrenta desall11 l 1 ~ .10 de novas categorias genológicas, sobretudo no âmbito modal da narrativa.
de ordem teórico-epistemológica equacionáveis em duas perguntas: existem d1 1 declara mesmo, não sem alguma hesitação, que determinados estudos sobre
facto, enquanto tais e por si só, novos géneros? Por outro lado, é legítimo (e \Hll 1 111etaficção podem contribuir para essa redefinição do campo genológico. ''A
' ;>
parte de quem) designar e descrever novos generos. llH'taflcção", escreve Fowler, "deve agora ser encarada como um bem estabelecido
Note-se, desde já, que uma tal postulação não implica um processo de IH 111 ' ro contemporâneo; embora nalguns aspectos dificilmente constitua um gé-
gação e substituição radical dos géneros legados pela tradição literária vivida pr l 1 ll l' IO totalmente satisfatório, já que é mais um agrupamento em função de uma
Cultura Ocidental. A existência e consagração de novos géneros pode fundar '• 111.1neirà de período".
num processo de harmonização discursiva e ontológico-ficcional, por assim d Noutros casos, o subgénero esboçado constitui uma hipótese tão inovado-
zer de reinvenção pós-moderna, mas com antecedentes ilustres. Na Antiguid:1 d1 11 (e mesmo precária) que é difícil ainda atribuir-lhe uma designação facilmente

Clássica, a tragédia e a epopeia incorporavam o mito, de certo modo aquém d1 , irnilável e traduzível: o "poioumenon ou o romance da obra em progresso"
uma indagação acerca da sua ficcionalidade; por sua vez, os relatos de viagr11 11 11stitui, segundo Fowler, "a narrativa da elaboração de uma obra de arte". 105
românticos tendiam a dissolver a factualidade que intrinsecamente os m o ti v.1 \s im se insinua um subgénero a que provavelmente poderá corresponder, de
va numa hipersubjetividade de propensão hibridizante e transfigurante (líri1 ,1 lmma ainda assim algo instável, o Manual de Pintura e Caligrafia de Saramago.
dramática, novelística, filosófico-ensaística etc.): as Viagens na Minha Terra d1 1 1 facto, nele parece operar-se uma subversão avant la lettre da hipótese teóri-
Garrett não são em rigor uma narrativa de viagens, entre outras razões exataml'llll 1 formulada, pois que, ao mesmo tempo, afirma-se e desmente-se a invenção
102 lo género, insinua-se e perturba-se a filiação genológica: porque o que o título
por serem irredutíveis a esse protocolo de referência puramente factual .
Nos nossos dias, não são o mito, o ensaio filosófico, o drama romântico 1111 11uncia - o manual que rege o trabalho do artista em ato de criação - vem a
até mesmo a História (a oficial e heroizante) que fundamentam a referida hari 1111 1 ontrariado por uma designação tentativa e (deliberadamente?) hesitante, em
nização pluridiscursiva; são a notícia de jornal, o relatório policial, a telenovcl:1, 1 lll f\:tr de subtítulo, designação que afinal reconduz à tradição: ensaio de romance.

O CONH ECIMENTO DA LITERATURA 209


208 TEXTO LITERÁRIO E ARQUITEXTUALIDADE
1 •• 11/•. •li ,, p. HI , N11111111111l11, \\ ,d li11111 1111111111111 1111 11111 111 1· 11hN1'1v11q111· "S11u NN 1111· l11 111111·s 1111' l11l i Ih 11111
1ildltli111 lo l111111s 111 l11 11 Hll ilfll 1111 11 1111 1dH11l111111s 11! u 1111h\1rnllons o i thcsc lorm s, th ut Is, hc Ignores spccch
• 1111•H", ( :onw 1: l1h li d « v« 1, 11 111111 1'\tl11 h1dd11l11lu1rn de discurso aqui impll ila antecipa formulações que
1 ()termo gcno logia lili proposto por 1'11111 V1111 'l'iq1l1<·111 (1 1. 1(. W.-lkk l' A. W1111\'I~, '/i'l11 lu rl 11 l ft «111t111 i1 1 1"11w111n\111os. dn ,11111111 11 d1· li11111 <1u \1 1· d1· Ml chcl P~ c h c u x (cí. supra, pp. 109-1 lO [Cap. 11, 3]) . Por outro
Lisboa, Pub. Europa-América, 1962, p. 293), d erivando dl'k o ,1djl' i Ivo gcnol ógiw, hoic con·c11lt'lll ~'l1i1· 11111 1 111111, 11s lt'l'lllOS cm qu l' ll11kh1l111· M ' rd l' rc a d uas ordens de géneros de discurso (os primários ou simples e
zado. Por outro lado, o d estaque que, nas últimas d écadas, klll t.11\ 1\: lerizado os estudos d e gc1~olog1a 1l'll l'l 1 " "'" 1111d:\rios ou complexos, corrcsponde: ....:o a práticas literárias como o romance ou o drama) revelam
-se no aparecimento de revistas consagradas a tais estudos: Z11g111/11ic11i11 Rodzajôw l.1tcmck1Cl1 .(l'rnl,1 lrn 111 1lf illllllS ulln id adcs com o que viria a ser a descrição lotmaniana de sistemas modelizantes primários e se-
dos Géneros Literários), publicada em Lód'z (Polónia), desde 1958 (lê-se no ed itorial do _pn111e1ro 11111 111 ·111 ' 1111d1 rios (cí. supra pp. 126-127 Cap. III, 1.1).
"Pour le théoricien de la littérature le probleme des genres et des especes littéraires const1t:1c lc p1vo1. d1· '•1 (:r. a esse propósito, Costanzo di Girolamo, Teoria Crítica de la Literatura, Barcelona, Crítica, 1982, pp.
préo ccupations scienfiques. [... ]II n'éxiste aucun systeme de théorie littéraire_ qu1 aura1l om1sh1 qu cs~u.11 1 .J,. •m Num outro plano de reflexão e numa obra hoje clássica, André )olles postulou a existência de formas
genres Jittéraires"; p. 13); Genre, publicada desde 1968, inicialmente pela Umvers1dade de Ill11101s (t.111 1.111nl •lr11plcs (lenda, mito, locução, adivinha, conto etc.) , de dimensão primordial e pré-literária, que podem ser
e depois pela Universidade de Oklahoma. . . . . , . .. 111111ldas do seguinte modo: 'Thomme intervient dans la confusion de l'univers; il approfondit, il réduit,
2 Embora aceitável também , qu ando devidamente contextualizado, o conceito de arqmte;cto sugc1c 1111111 1l 111111il; il rassemble les éléments connexes, il sépare, il divise, il décompose et rassemble l'essentiel sur ses
realização localizada e concreta, quando 0 que nos parece teori_camente cor.reto, nesse caso, e acentuar.. li 1.i I" 111 t ns. Les différences s'élargissent, l'équivoque s'élimine ou bien il est renvoyé et ramené à l'univocité.
vés do vocábulo arquitextualid ade, a já referida alusão a propriedades gerais. \ 1, l'lolment de l'e xplication et repliement du classement - l'homme parvient ainsi jusqu'aux Formes fonda -
G. Genette, Introduction à l'architexte, Paris, Seu il , 1979, p. 87. 111111111ics" (Formes Simples, Paris, Seuil, 1972, p. 26; a edição original d essa obra, em alemão, data de 1930).
Cf. supra, pp. 134-135 [Cap. III]. , '' /\ lastair Fowler, Kinds of Literature. An Intro duction to the Theory of Genres and Modes, Cambridge,
s G. Genette, Palimpsestes. La littérature au second degré, Paris, Seuil, 1982, p. 7; cf. lambem P· 11. 1 '•"' ~L1 ~ .. 1larvard Univ. Press, 1982, p. 111.
importante obra de G. Genette incide em especial sobre a hipertextualidade e sobre as suas diversas pral 11 "' C:I'. Kate Hamburger, Logique des genres littéraires, Paris, Seuil, 1986, pp. 21-25.
(paródia, pastiche etc.). . l\11 rl Miner valoriza em especial as literaturas e as p oéticas chinesa e japonesa e nota que nelas a base
6 A importância assumida pela questão dos géneros literários durante o Renascimento emopeu ate.si" '" h111d11cional do modelo tripartido foi a lírica e não o drama, como aconteceu na poética ocidental, de raiz
muito expressivamente no conjunto de estudos reunidos em Barbara K. Lewalski (ed.), Rena1ssance (,c11 " · 1I 1111élica (cf. "Some Issues ofLiterary 'Species, or Distinct Kind', in Barbara K. Lewalski (ed.), Renaissance
Essays in Theory, History, and Interpretation, Cambridge, Mass., Harvard Umv. Pres:, 1986. , lu 111t•s: Essays on Theory, History, and Inte1pretation, ed. cit., pp. 15-44 e também, do mesmo autor, Com-
1
' Apontam-se aqui apenas alguns dos contributo.s mais rele_vantes que essa re~exao conh_eceu: nA ./fr/ 11 1111111//vc Poetics. An Intercultural Essay on Theor ies of Literature, Princeton, Princeton Univ. Press, 1990, pp.
blica de Platão, em Aristóteles, na Poética, e em Horac10, na Epistola ad P1sones. )a no Renasc1me.nto dcsl .11 11 M•1) Uma reflexão acerca da problemática dos modos e géneros, sob retudo orientada para a filosofia da lin-
-se Julius Caesar Scaliger (ou Scaligeri), autor dos Poetices libri septem (1_561); .º Class1c1smo e fortcnw11t1 ll•lf\1'111 e para a filosofia do conhecimento, encontra-se em R. Champigny, "Semantic Modes and Literary

marcado pela Art Poétique (1674) de Boileau; a Estética de Hegel const1tm, no 111rnar do ~omant1smo. u11 111 l 11111cs", in ). P. Strelka (ed .), Theories of Literary Genres, University Park/London, The Pennsylvania State
decisiva intervenção com influência determinante até aos nossos dias; na passagem do seculo XVIII pai •111 1l11lv. Press, 1978, pp. 94- 111.
século XIX, a intervenção de Goethe confina com a dos irmãos August W1lhelm e Fnedr:ch von S~hl q.,1 I. N. Frye, Anatomy of Criticism. Four Essays, Princeton, The Univ. of Princeton Press, 1973, p. 246-247. Cf.
Victor Hugo, sobretudo no prefácio de Cromwell, contribui deci sivame_nte para ª. aftnnaçao _do 1d~'.m" 1" 1 111h6n a importante obra de Claudio Guillén, Literature as System. Essays Toward the Theory of Literary His-
mântico no que à questão dos géneros diz respeito; e depois das pos1çoes defendidas por Bmne~1e1 e, 1111111 11111•, Princeton, Princeton Univ. Press, 1971, sobretudo no cap. "On the Uses ofLiterary Genre'', pp. 114 ss.
quadro ideológico positivista, o idealismo estético de Benedetto Croce vem contranar a propensao no111 111 N. Frye, op. cit., p. 250. Diversas reflexões modernas seguem o princípio da tripartição, com maior ou
tiva dos géneros literários. _ . 111111or consistência e baseando-se em princípios teóricos e epistemológicos por vezes muito diversos entre
s Obras desses diversos autores, com maior ou menor influência na explanaçao que aqu_1 se l~v_a a c.tl 1t1, 1 (11, G. Genette, Introduction à l'architexte, ed. cit., pp. 33 ss.; A. García Berrio, Teoría de la literatura, Ma-
encontram-se mencionadas na bibliografia referente a este capítulo. O historial da reflexao teonca. s11l 111 li 1d, Cátedra, 1989, pp. 444 ss.
essa questão (historial que não cabe aqui fazer, como é óbvio) encontra-se, entre outros'. em M. h~\~ 111 1 . ( '. f. Earl Miner, Comparative Poetics, ed. cit., p. 7. Tanto nesta obra como, sobretudo, no ensaio anterior-
"Genesi e storia dei generi", in Critica e Poesia, Ban, Laterza, 1956, pp. 143-274; P. Hernad1, Beyond (,. 11 " 1111 1 ~ citado, M iner trata a questão com uma certa desenvoltura term inológica, mas refere-se obviamente
New Directions in Literary Classificalion, Ithaca/London, Cornell Univ. Press, 1972, PP· 10 ss., 54 ss. e 11 •I "' 111110 a que aqui chamamos modos.
G Genette Introduction à l'architexte ed. cit., pp. 14- 62; H. Dubrow, Genre, London/New York, Metl1111·11 ( l que aqui se exemplifica leva-nos a compreender a tendência para explicar a tripartição modal, em
1982, pp. 4S-104; V. M . de Aguiar e Sil~a, Teoria de Literatura, 6' ed., Coimbra, Almed ina, 1984, PP· 340 IH\ 1111<10 da forma como a linguagem verbal (a literária e a não literária) modeliza fundamentais categor ias
jean-Marie Schaeffer, Qu'est-ce qu'un genre littéraire?, Paris, Seuil, 1989, PP· 7-63.. . 11 h'mpo: o presente, o passado e o futuro. O modo lírico, o modo narrativo e o modo dramático aparecem
' j. M. Pozuelo Yvancos, "Teoría de los géneros y poética normativa", in M. A. Garrido Gallardo (<'d l 1111\11 como proj eções daquelas categorias, n em sempre, contudo, entendidas em termos idênticos pelos
Teoría semiótica: lenguajes y textos hispânicos, Madrid, C.S.l.C., 1984, p. 395. . . 11l111«S (Hegel, Jean Paul, E. Staiger etc.) que privilegiam essa explicação. Cf. G. Genette, Introduction à
'° Escreve Wittgenstein, no parágrafo 67 das suas Investigações Filosóficas: "Não comigo caractenzar 11 11 "/1/tcxte, ed. cit. , pp. 50-53.
lhor estas parecenças do que com a expressão 'parecenças de família'; porque as diversas parecenças '.' " /\. Fowler, Kinds of Literature, ed . cit., p. 111 .
tre os membros de uma família constituição, traços faciais, cor dos olhos, andar, temperamento etc. 1li Embora apareça muitas vezes afetado por alguma ambiguidade, pensamos que o modo novelístico
sobrepõem-se e cruzam-se da ~esma maneira. - E eu ~irei: os jogos constituem urna família" (Tratad'.'. / 11 vr relacionar-se, em primeira instância, com a novela de feição imaginativa e sentimental. A ambigui-
gico-Filosófico. Investigações Filosóficas, Lisboa, Fundaçao Calouste Gulbenkian,' 1987, PP· ~28- 229) . Y.11 111 •ih• referida leva, entretanto, a que por vezes o adjetivo novelístico seja utilizado como referência à ficção
estudiosos (p. ex.: A. Fowler e E. M iner) apoiaram a sua reflexão acerca dos generos hteranos no con u ·t1 11 11.11lva de um modo geral; não é certamente estranha a essa generalização a diversidade de sentidos que
wittgensteiniano de semelhanças de família . . 111< lcriza novela (e o seu correlato novel) em diversos idiomas.
11 M. M . Bak11 tin, "Th e Problem of Speech Genres", in Speech Genres and Other Late Essay~, Austm , ll 11 l1 /\ consciên cia que os escritores por vezes revelam dessas caracterizações modais e até da sua pluralidade
ofTexas Press, 1986, p. 60. Alguns exemplos de géneros de discurso, segundo Bakhtme: dialogos e r~· l.11 11 .1111. se de formas muito diversas. Victor Hugo, no prefácio de Cromwell, comenta que "Racine, divino po-
do quotidiano, discursos escritos em várias formas, ordens de comando _militares, documentos de ~e~'." 111 , , 1 l'icgíaco, lírico, épico; Moliere é dramático" (V. Hugo, "Préface", Cromwell, Paris, Garnier-Flammarion,
comentários políticos etc. Esse texto destinava-se a u ma obra que se mlltulana prec1sament~ Os G~ne111 1 ili llH, p. 94). E Agustina Bessa Luís, confirmando a propensão eminentemente aforística da sua ficção nar-
Discurso. Uma perspetiva idêntica à de Bakhtine (mas informada pela moderna teona sem1ot1ca) e ad11 t.11 l 1 ll\'11, publicou um volume precisamente intitulado Aforismos, composto por extratos dos seus romances,
por Marie-Laure Ryan em "Toward a competence theory ~,r_genre", in Po~tics, 8, 19;9. PP· 30~~337; ct. ' ',',' " 11111 essa propriedade modal é flagrante.
bém ). Flamend, "Le concept de genre chez Bakhtine repns , m Zagadmema Rodza;ow Literack1ch, 29, 1 ( 1 ll. lngarden, A Obra de Arte Literária, Lisboa, Fund. Calouste Gulbenkian, 1973, pp. 317-318; cf. também
1987, pp. 5-14 (que não se refere, contudo, ao texto de Bakhtine que citámos).

O CONHECIMENTO DA LITERATURA 211


210 TEXTO LITERÁRIO E ARQUITEXTUALIDADE
pp. 120 12. 1. N1111111 p11sl1111 Nl' ll ll' lli 11 111 t· 11t•NI11, t :t•111•lt 1• 11 1111 •1• t11111l11 111" l111 11 11 d111IWN11 1111liil p111vl11d11 d1 1111! ' l\•xl111il t :1•1w1 l1l ty': 111 ll 1 1111111 (1 il ), l 111• 1•111111 <' o/ U11·1111y '/'l 1t·111y, Nl'w Y11 rlt/ l.o nd11 11 , llo utl •d1:1 ., 1989,
ntilu dcs cx isten inl s o u, "ço nw s · di z uni pl1 un1 11111ls 1111 11•11t1·11 11•11 l1 ', 1h- 111 11 'sl· 11t 111 l· 11t11' p111 p1 li111 1l'll tl' (·1il111, 11l111•t11d11 pp. 17H IH2.
lf ri o, d ra mát ico mas Lambé m Lnlgico, có m ico. l'lq;l11,11, h111t 1\sll lo, m n H1ll l'S~11 l'I ~ . 1... \" ( /11l n11 /11, 1/1111 il ' S11lm· <> l'\1111:d to d1· 111 111u v1- 11 (111 1 vi t 11 do mun do) e a sua rel evâ ncia teó rico metodo lógica, veja-se
Iarchitexte, ed. cit., p. 72). 1111111, pp. 55 IC:up. 1. p. '•h l
25 C oncordamos com a análise de Fo wler ace rca ci o co n ·ci to d · 1:1é ncro, mas no ta mos q ue os tcr11111M" '" M. Zéru lfo , n11111<111 <'<' " ' " ' l1'l i11ill'. l.l sboa, Es túdi os Cor, 1974, pp. 95-96 e 97. As obras de Lukács e
que o faz levantam alguns problemas: 'Tal como o uso, o te rm o 'género' \kindj é equi va len te a 'gé nl'l'll lii • l 111ld11 rn nn a qu e f1 zc 111 os rl·kr 11d11 st o, respetivamente, A teoria do romance (l' ed.: 1920; ed. francesa: La
tórico' [historical genre] ou ao impropriamente chamado 'género fixo' [fixed ge nre j" (Kinds cij' Ul<'l'lll llll 1/i11<1l'll' c/11 roman, Pa ri s, Co111 lii ·r, 1970) e Le dieu caché (Paris, Gallimard, 1955).
ed. cit., p. 56) . Os dois termos utilizados ("kind" e "genre") são praticam ente homónim os, co nl(,,·111 1· ., "/lo C onservatório Rea l", O bras de Almeida Garrett, vol. II, Porto, Lello, 1963, p. 1.086. Note-se que,
depreende do que se encontra no Oxford English Dictionary: "kind'; vocábulo que compree nde cli vc rso1- "''" 111 - 1• mes mo texto, Garrett mostra-se também partidário de uma certa hibridização dos géneros, quando se
tidos, significa também "a literary genre': relacionando-se essa aceção com o latim in genere ("charad<'I ,, _ 11 li>1'1• upresença, no Frei Luís de Sousa, de elementos provindos da tragédia clássica. Por sua vez, Antero de
determining the class to which a thing belongs [... ]; generic or specific nature or quality"). Também o ll' xt11 1 111•11tol, numa carta a Carolina Michaelis de Vasconcelos, explicou a sua predileção pelo soneto em função
em inglês da Teoria da Literatura de Wellek e Warren contempla essa aceção: de acordo com o que s111•,1·11 ili 111n t1 disposição pessoal, por assim dizer, inata: "Há mais de 20 anos que faço Sonetos, e todavia nunca es -
Karl Vietor, propõe-se ali que o termo "genre" se aplique a "such historical kinds as tragecly anel conwd ) ' 1illi l esse género nem estudei nos mestres os segredos especiais daquela forma; levou-me para ali uma predi-
(Theory of Literature, New York, Harcourt, Brace and World, Inc., 1956, p. 217). Antecipa-se, desse 11 111d11, !1 \1\0 impensada e singular (pois, quando comecei, ninguém entre nós os fazia já, sepultados como estavam,
aquela que é a designação presentemente adotada por diversos estudiosos. • 11111 todas as outras formas clássicas, debaixo da reprovação dos românticos) e talvez a influência dos nossos
26 Cf. supra, p. 111 [Cap. II, 3]. As potencialidades de codificação que os géneros literários possuem li 11 "111 11111•tus ci o século XVI, que foram dos primeiros que conheci. O fundo de idealismo que há naqueles poetas
analisadas por Maria Corti, que nota, entretanto, que o seu rigor não é o mesmo que encontramos no sis11·11111 1101Hsou-se então de mim e os seus Sonetos, especialmente os de Camões, tornaram-se para mim como um
linguístico ou em sistemas legais (cf. Principi della communicazione letteraria, Milano, Bompiani, 1976, pp. t '•lt 1 v11111:1clho do sentimento. Tais são as minhas raízes, se assim posso dizer". (A. de Quental, Cartas; organ.,

ss.); cf. também Marie-Laure Ryan, "Toward a competence theory of genre': in Poetics, 8, 1979, pp. 307 - ~ .\'/ t11t 1od. e notas de Ana Maria de A. Martins; Lisboa, Ed. Caminho, 1989, vol. II, p. 748).
27 Conforme escreve Mario Fubini, "o poeta, mesmo aquele a que se chama primitivo, não enun cia o "1 '11 ll. Wellek e A. Warren, Teoria da Literatura, ed. cit., p. 289.
canto num mundo virgem, novo, ignaro quanto a outras expressões virtual ou atualmente poéticas, se 111\11 llcferimo-nos aqui a poesia numa aceção corrente, que se refere à enunciação de textos em verso. Essa aceção
mesmo de contos de outros poetas: toda a obra poética assenta numa tradição[ ... ] e encontra[ ... ] na tr.1111 • •111 l' nle não anula uma outra (virtualmente ambígua) que entende poesia como designação geral do modo lírico.
ção o seu fundamento e, pode dizer-se, o seu corpo" ("Genesi e storia dei generi letterari", Critica e Poesi11, t'd 1) ivergimos assim das análises que assentam na distinção poesia/prosa como fator crucial de organização
cit., p. 158. Por sua vez, C. Guillén observa "que o poeta, o crítico e o teórico convergem num certo nL11 111·111 111 'u mpo dos géneros ou até de definição da literariedade: é o caso de autores como Massaud Moisés (A Cria-
de situações ou até coincidem" (Literature as System, ed. cit., pp. 122-123), quanto à validação institucio 111il 1d« W erária, 6° ed., São Paulo, Melhoramentos, s/d., pp. 40-42) e Jean Cohen (Structure du langage poétique,
dos géneros. Uma evidência muito significativa dessa convergência verifica-se através da presença, crn 111 11.11 Is, Plammarion, 1966; id. , Le haut langage. Th éorie de la poéticité, Paris, Flammarion, 1979).
ris de prémios literários, de escritores, críticos e professores de literatura; por outro lado, o facto de L'S" '~ ~ muito conhecida (mas merece ainda assim ser referida pelo especial significado de que nesse contexto
prémios (que possuem uma certa dimensão de validação institucional; cf. supra, pp. 25-27 [Cap. I]) mu lt11- 1 11•vcste) a surpresa do protagonista de Le Bourgeois Gentilhomme quando o professor de filosofia lhe diz
vezes serem convocados em referência expressa a géneros (p. ex.: o Grande Prémio de Romance e Nov..111 •1111' "tout ce qui n'e st point Prose, est Vers; et tout ce qui n'est point Vers, est Prose"; e Monsieur Jourdain,
da A.P.E.), confirma a tendência normativa desses géneros. O que não obsta naturalmente a que eles sl'j11111 I" 1pl exo com a descoberta de que falar com naturalidade corresponde a usar a prosa, pergunta: "Quoi,
postos em causa por obras (e até por decisões de júris) que procuram subvertê-los. q111tnd je dis, Nicole apportez-moi mes pantoufles, et me donnez mon bonnet de nuit, c'est de la Prose?"
28 Os termos em que Herculano alude ao primado de Scott são muito curiosos: ao declarar que o Ü<1 l1" 1 11 in cntário final: "Par ma foi, il y a plus de quarante ans que je dis de la Prose, sans que j'en susse rien"

"não é um romance histórico, ao menos conforme o criou o modelo e desesperação de todos os roman<IM li l1•11vres Completes de Moliere, s/l., Le Club du Meilleur Livre, 1956, vol. III, pp. 227-228).
1 Na advertência ao leitor inscrita na publicação das obras de António José da Silva, o autor pronuncia-se
tas, o imortal Scott" (nota ao prólogo do Eurico, 41' ed., Lisboa, Bertrand, s/d., p. 285), Herculano rec us11 11
género, ao mesmo tempo que implicitamente reconhece a sua relevância cultural. 11li r' a questão do estilo, em termos que remetem diretamente para o uso da prosa e não do verso: "Saberá o
29 Claudio Guillén assinalou, num ensaio muito perspicaz, o significado de que se reveste, na Cu l111 111 11 1r mo leitor desapaixonado não desprezar por menos polida a frase que no contexto de semelhantes Obras
Espanhola dos séculos XV e XVI, o "diálogo" género/contragénero, traduzido, por um lado, na form ação d11 1 11•l1uer, pois muito bem conheço que no cómico se precisa um estilo mediano; que, como a representação
novela picaresca e, por outro, na sua rejeição pelo Quijote de Cervantes (cf. C. Guillén, "Genre and Cou11 t1·1 11111 u imitação dos sucessos que naturalmente acontecem, também a frase deve seguir o mesmo preceito,
genre: The Discovery ofthe Picaresque", in Literature as System, ed. cit., pp. 135-158. l 111•1Hlo diferença que o estilo subl ime e elevado, a que chamaram os Romanos coturno, só se permite nas
3° Cf. R. Wellek e A. Warren, Teoria da Literatura, ed. cit., p. 289. Numa obra recente, Maurice Coutu 1li•1 11.11111di as, em que se trata de cousas graves e nimiamente sérias, como ações e obras heroicas de príncipes.
mostrou mesmo que desde o século XVIII, quando se industrializa a produção do livro (e também qu a11d11 N111omédia, porém, há-de ser o estilo doméstico, sem afetação de sublime, a que chamam soco por se repre-
o número de leitores aumenta consideravelmente e quando o escritor se autonomiza em relação à prote1 1l11 111t ,1r nela matérias de enredos feminis e ações amorosas" (Obras completas de António José da Silva, Lisboa,
mecenática), criam-se condições propícias para a rearticulação dos géneros e em particular para a afirma1 1t11 l lv Sá da Costa, 1957, pp. 5-7).
do romance como grande género moderno (cf. Textual Communication. A Print-based Theory of the NMl'i , V. Hugo, "Préface" de Cromwell, ed. cit., p. 96. Curiosamente, contestando, em textos dramáticos an-
London/New York, Routledge, 1991, especialmente pp. 36 ss. e 93 ss.). t 1lnrcs ao Romantismo, uma certa versificação pomposa, Hugo defende o uso do verso precisamente em
31 Trata-se de um tipo de composição (ou grupo de composições) de definição algo problemática, usa d11 11111 11 ' da naturalidade e como forma de superação da banalidade.
em Portugal nos séculos XVII e XVIII: segundo Coimbra Martins, "a designação aplicava-se às manifesta1·111·- A. Garrett, "Ao Conservatório Real'; in Zoe. cit., p. 1.083 . Que a naturalidade procurada por Garrett
de estro em que o poeta, abalado subitamente por um sentimento violento, soltasse de improviso cantos d1 li 11vés do recurso à prosa tenha sido contrariada pelo empolamento do dramalhão romântico, é algo que
forma fácil e fundo ardente; ou, bem entendido, aos poemas elaborados que imitassem tal espontaneidade 1111 111 ll rre da degenerescência estética sofrida pelo Romantismo português, ao arrepio da clarividência doutri-
desordem'' (in Dicionário de Literatura dir. por J. do Prado Coelho, 3' ed., Porto, Liv. Figueirinhas, 1973, 4" v111 1111l,1 do autor das Viagens.
p. 1.020) . Outras aceções para o mesmo termos encontram-se em A. Fowler, op. cit., pp. 134-135. ' llecordem-se, por exemplo, as palavras de joão da Ega, quando, num episódio conhecido d'Os Maias,
32 M . de Unamuno, Niebla, Madrid, Cátedra, 1982, p. 200. Unamuno constrói nessa sua obra uma curio ,.1 ll11na a sua radical conceção do Naturalismo, conceção não isenta de contradições: "A forma pura da arte
situação de criação ficcional en abyme, assumida precisamente pela personagem Víctor Goti, autor fiel h 111 111 t11rulista devia ser a monografia, o estudo seco dum tipo, dum vício, duma paixão, tal qual como se se tra-
da narrativa que está a ser lida. Também o escritor Ramon Gómez de la Serna tentou, de forma m ais p1·1 t 1 t' d um caso patológico, sem pitoresco e sem estilo! .. :' (E. de Queirós, Os Maias, Lisboa, Livros do Brasil,
sistente, uma inovação de género: as greguerias, descritas numa espécie de teoria geral que se encontra 1111 '" ' p. 164).
advertência prévia às Greguerías escogidas (Paris/Madrid/Lisboa, Agencia Mundial de Librería, s/d.) . Atente-se no que escreveu Bruce A. Rosenberg: "O gén ero de concretização oral [... ] não existe em
33 Jean-Marie Schaeffer, Quést-ce qu'ungenre littéraire?, ed. cit., p. 153. Cf. do m esmo autor, "Literary Gc1111•1 l11 1111 n fixa , como o soneto o hino ou a el egia, mas antes como um ideal fluido, por depender de forças

212 T EXTO LITERÁRIO EARQUIT EXTUALIDADE O CONHECIMENTO DA LITERAT URA 213


lluld11 s lJlll' lllllll11u 111\ll'llll' li ll'iil 'll'lll : d11 dl NJ'llNl\1111 d11 1111dll111 l11, d11 d11 · ·~ 1·1111 1 11111 • t ' i\11 d1•11111I NIli ltl1 •111 1 1111 111"11 ", 111 / 11111111 /ll <', ' 1, 1'11111, 1111 l. d111111li 1'\' l IH l'il
ma l cn t •ndidos, erros e fol has n q11,· a ç111111111 l11t \ ll1111111111111 11 « 111 11p1'11 " 1" ("' l'h1· t: ,· 1111·< 111 tl1 1tl N1111 ,1l l\1 t 1 1111\<11 l·l•\\1 1•1 l l1 iil 1 //11 ~1111/1 1 //1 11/ l/11 •11 /1·1, lll1111111111 g l11 11 , l11d l.11111 LJ1ll v. l' r<'Ss, 1992, pp. 1 ss.
in ). P. Strcl lca (cd.), 'f'/1 eories of Ut cmry Gc11rc. cd . dl .. p. IM ; 111111• s1· q111• 11l11l1111k 11S 11111 ra1l v11 ' 111\1l1t1 1111 Cl/1111 " /1 •1\/111i'/i/11 t>1 11 1rll,1·t! ill ,\11 \ 11 , pp. l .lllJI 1.1191..
poderem ser recolhidas cm livro, como ícz Carrctt , C<llll o /i11111111111'1111, 11 :10 \li l' c111 rn11 s11 l'SSil su111111111 1\,111 l'ud1· dl ~ 1· r ,,. 1p1 1· 11 1'"'' 1•11''" ,,. 1• 111 11111r;1 a ind a um te rceiro texto, constituído pelos dois versos d'Os
primordialmente oral). Sobre a narrativa de transmissão ora l, d '. Dav id E. Bynum, "'l'hc c: c11l'ril N.1111 11 111 / 11 /11r/11 .> qu<· l l. M.1d.il L'l\.1 1 '1'1 ,1t 11 ''" 10111udo, de uma s ituação excecional, ao mesmo tempo que o referi-
Oral Epic Poetry", in Genre, II, 3, 1969, pp. 236-258. .111 ln111111L'nto, i11 corpo1.111d11 M' IH> d i>L L11·s:: la person agem, passa, de certa fo rma, a pertencer-lhe.
46
Não ignoramos, evidentemente, que no passado (na Antiguidade C lássica e na Idad e M<1dia) 11 11 11 ' 1 <:011 li>rm e esc reve lt lngard<'ll , "num 'drama escrito' seguem dois textos diversos um ao lado do outro:
representações - que não eram exatamente espetáculos, mas cer imón ias co letivas de teor rcligio" ' d11 11 11 xlo sccund tlrio, i. e., as rcl'c rê ncias ao lugar, ao tempo etc., em que a respetiva história representada se
ravam muitas horas e até dias . Modernamente, contudo, não é isso que se veri fica; e quando cer ta' 11li1 11 1+.1H•11, quem fa la agora e, eventualmente, ainda aqu il o que de momento faz etc., e o próprio texto principal.
dramáticas ultrapassam o que referimos como sendo um tempo aceitável de representação (lendo 1p11 11 1 1 11• /:exclusivamente constituído por frases 'realmente' pronunciadas pelas personagens" (A Obra de Arte
com vários fatores, incluindo o conforto do público), essas obras tornam-se irrepresentáve is ou d illci \1111 111 1 / lf1•rrlrin, cd. cit., p. 230). Ao notar que "o texto secundário nunca pode fa ltar por completo num drama
representáveis: acontece assim com o Cromwell de Victor Hugo e com Le Soulier de Satin de Pau l C\ :111d11 • 11lto" (p. 231), Ingarden está a referir-se a uma conceção do drama e do espetáculo dramático superada
47
E. Allan Poe, "The Poetic Principie", in Essays and Miscellanies (vol. XIV de The Complete W111 Á• 11/ 11111 Inovações que modernamente tenderam a desvalorizar tanto esse texto secundário como até, em casos
Edgar Allan Poe) , New York, AMS Press Inc., 1965, p. 266. Referindo-se a um texto com a dime1 1'.111 d11 1 ~ l 1 •mos, o próprio texto principal.

Ilíada - e não considerando que se trata de um texto do modo narrativo-, Edgar Poe sugere que o q111· 111 li W. Kayser, Análise e interpretação da obra literária, 5° ed., Coimbra, Arménio Amado, 1970, II vol., p. 273.
se encontra é uma série de fragmentos líricos (Zoe. cit., p. 267). A relevância do diálogo no contexto do drama é assim comentada por Peter Szondi: "La suprématie du
48
Sobre a poesia em prosa, a sua configuração estilística e as suas práticas literárias, a obra de re l'c· r 111 li1 .lhilogue et donc de l'é change interhumain du dram e indique que celu i-ci n'a d'autre matiere que la reproduc-
obrigatória continua a ser a de Suzan ne Bernard, Le poeme en prose de Baudelaire à nos jours, Paris, Nl11 I 111111 du rapport entre les homm es et qu'il ne connait que ce qui brille dans cette sphere" (Théo rie du drame
1959. Veja-se também: Barbara Johnson, "Quelques conséquences de la différence anatomique des il' xl1• 11111r/erne, Lausanne, LÂ.ge d'Homme, 1983, p. 14).
Pour une théorie du poeme en prose", in Poétique, 28, 1976, pp. 450-645; Dominique Combe, Poésic ct 11'1 li Miroslav Procházka, "On the Nature of Dramatic Text", in Herta Schmid e A. Van Kesteren (eds .), Se-
Une rhétorique des genres, Paris, J. Corti, 1989, pp. 91-108. 111/otics of Drama and Theatre, Amsterdam/ Philadelphia , John Benjanins, 1984, p. 102.
49
Poemas de Alberto Caeiro, Lisboa, Atica, 1978, p. 52. Acerca da contaminação dos textos líri rn' 11111 • E. Staiger, Conceptos Fundamentales de Poética, Madrid, Rialp, 1966, p. 174.
procedimentos narrativos, cf. L. Jenny, "Le poétique et le narratif", in Poétique, 28, 1976, pp. 440-449. f. supra, nota 46, Cap. IV, p. 214.
'º N. Frye, Anatomy of Criticism, ed. cit., pp. 250-251. A ressalva que há que fazer é a seguinte: Frye ui Il i 11 G. Vicente, Auto chamado dos Físicos, Obras Completas; pref. e notas de Marques Braga; 3'ed., Lisboa,
substantivamente termos (epos, ficção, drama, lírica) que, de acordo com o critério aqui perfilhado, dl'vrn1 1 lv. á da Costa Ed., 1968, vol. VI, p. 112.
referir-se antes, de forma tripartida, a modos literários, integrando -se epos e ficção no modo narrn1 1v11 A. Garrett, Viagens na minha terra, Lisboa, Ed . Estampa, 1983, p. 229. Mais adiante, anuncia-se, no
por outro lado, de acordo com essa opção que fi zemos, os modos a que alude Frye remetem, de fact o, 1'111 11 ll111ior do capítulo XXXIV, "a peripécia do dramà'. Devendo considerar- se adventícios, esses episódios de
géneros. As teses apresentadas e defendidas nessa importante obra de Northrop Frye foram comentada ' 1•111 11111lam in ação não afetam a essencial condição modal dos textos em que surgem . Parece, pois, excessivo
pormenor por P. Hernadi, Beyond Genre, ed. cit., pp. 131 ss. 1tllr111ar que "se o romance nunca é puramente dramático, é essencia lmente dramático. Não é um jogo de
51
Cf. A. Fowler, Kinds of Literature, pp. 60-74. Andre Lefevere analisou os termos em que se processa a L'V11h 1 p1dnvras dizer que o romance não é uma forma narrat iva com momentos dramáticos, m as uma forma dra-
ção dos géneros literários, em articulação com o processo geral de evolução da história literária (cf. "Systc1m 111 1111\1 ica inserida num quadro narrativo" (S. W Dawson , Drama and the Dramatic, London, Methuen, 1970,
Evolution. Historical Realitivism and the Study ofGenre'; in Poetics Today, vo\. 6, 4, pp. 665-679). l'I'· 79-80). As relações entre texto narrativo e texto teatral foram pertinentemente analisadas por Cesare
52
Cf. C. Guillén, Literature as System, ed. cit. pp. 109- 111. C. Guillén procura esclarecer os sentido, q1 11 1•gre, em Teatro e romanzo. Due tipi di comunicazione /etteraria, Torino, Einaudi, 1984, pp. 3 ss. e 15 ss.
atribui a matéria e a forma; notando que "uma fo rma preexistente nunca pode ser simplesmente 'usurl'.11 111 Cf. Oscar Lee Brownstein e Darlene M. Daubert, Analytical Sourcebook of Concepts in Dramatica The-
p elo escritor ou transferida para uma nova obra'; Guillén sublinha que matéria não se con funde com tl·111 11 •11 y, ed. cit., pp. 220-232. A questão da ilusão dramáti ca encontra-se analisada, n uma perspetiva psicossem i-
assunto ou conteúdo e afirma: "Todas as form as prévias [... ] tornam-se m atéria nas mãos do arti sta q111 111 ka, por Stratos E. Constantinidis, "Illusion in Th eater. The Sign/Stimulus Equ iva lence", in Poetics Today,
trab alha. Se a matéria é aquilo a que o poeta dá forma, então a prosódia, nesse preciso momento, é mat {·1l11 VII I. 8, 2, 1987, PP· 245-260.
o m etro é matéria e um motivo ou uma intriga são-no também tal como um plano de composição nu 1111 1 ,. Stendhal, Racine et Shakespeare, Paris, Librairie Ancienne Honoré Champ ignon, 1925, pp. 15- 16.
princípio de estruturà'; e mais ad iante: "A forma é a presença de uma 'causa' num objeto criado e conslrnl./11 O sentido em que aqu i nos referimos ao vigor ilocutório dos atos discursivos formulados no espetáculo
pelo homem. É a revelação ou o signo de uma relação dinâm ica entre o artefacto 'acabado' e a sua origc 111 1111 1t•1tlral remete para a teo ri a da linguagem de J. Austin , aprofundada por John Searle: o ato ilocutório é aquele
vida e na história prévias" (op. cit., pp. 110-111 ). r 111 que o ato discursivo não só produz um enunciado, mas realiza também uma ação (p. ex.: "Juro que farei
53
Marie-Laure Ryan acrescenta ainda: "A diferenciação dos géneros em subgéneros é potencialmente il i111li 11 11 <1ue me pedes", "Declaro-vos marido e mulher", "Ordeno -te que obedeças!") .
da: para cada género codificado, precisamos apenas de juntar uma regra obrigatória para obtermos um su\>111 1 Sandy Petrey, Speech Acts and Literary Th eory, New York/London, Ro utledge, 1990, p. 86. Centrando -
nero. Contudo, esta proliferação de subgéneros é travada pelos limites do reconhecimento cultural" ("Tnw.11 il '' no drama como exemplo de ato d iscursivo de índole eminentem ente performativa (quer dizer: como
a competence theory of genre'; Poetics, 8, 1979, p. 312). Outro ensaio da mesma autora sobre o mesmo assu111 11 ilt ~c urso que se faz ação), Petrey observa: "Força dramática e força ilocutória coincidem sempre que uma
"Introduction. On the why, what and how of generic taxonomy", Poetics, 10, 1981, pp. 109-126. Jll'Ça é representadà' (loc. cit.). Cf. também K. E Iam, Th e Semiotics of Theatre and Drama, London, Methuen,
54
A. Fowler, Kinds of Literature, p. 112. llJSO, pp. 156 ss.; C. Segre, Teatro e romanzo, ed. cit., pp. 9-11.
55
Cf. Oscar Lee Brownstein e Darlene M. Daubert, Analytical Sourcebook of Concepts in Dramatica '/'/i r Sobre o problema da distância na receção do espetáculo teatral, cf. Daph na Ben Chaim, Distance in th e
ory, Westport/London, Greenwood Press, 1981, pp. 124 ss. Como é evid ente, limitamo-nos por agrn .111 /'/1eatre. The Aesthetics of Audience Response, Ann Arbor, UMI Research Press, 1984. Numa perspetiva m ais
considerar a aceção modal do termo drama. Essa aceção modal não se confunde com designações de gén,·111 11111pla, cf. Susan Bennett, Th eatre Audiences. A Th eory of Production and Reception, Lon don/New York,
como drama burguês ou drama romântico. J(o utledge, 1990.
56
M. Esslin, An Anatomy of Drama, London, Temple Smith, 1976, p. 20. Victor Turner chama a atc111,111 Os funda mentos teóricos da sem iótica teatral en contram-se descritos e bibliograficamente elucida-
para os sentidos que podem ser atribuídos a representar, em relação estreita com a dramatização do q11111I dos em M. de Marinis e Patri zi Magli, "Materiali bibliografici per una sem iotica dei teatro", in Versus,
diano: "Representar é, p ois, trabalho e jogo, uma atividade solene e lúdica, simulação ou verdade, aqui\11 d1 11 , 1975, pp. 53-128; André Helbo, "Theater as Representation", in Sub-Stance, 18/19, 1977, pp. 172-181;
que são feitas as nossas transações mundanas e aquilo que fazemos ou observamos no ritua.I ou no teat 111 Robert Marty, "Bases pour une téatrol ogie", in Kodika s/Code. Ars Sem iotica, vol. 8, nº 1/2, 1985, pp. 121-
(Victor Turner, From Ritual to Theatre. The Human Seriousness of Play, New York, Performing Arts )11111 110. Alguns títulos fundamentais: K. Elam, Th e Semiotics of Th eater and Drama, ed. cit.; M. de Marinis,
na! Public., 1982, p. 102). Cf. também Josette Féral, "La théâtralité. Recherche sur la spécificité du lang.if\• ~1 • miotica dei teatro. L'analisi testuale dello spettacolo, Milano, Bompiani, 1982; Ernest W. B. Hess-Lüttich

214 TEXTO LITERÁRIO E ARQUITEXTUALIDADE O CON HECIM ENTO DA LITERATURA 215


(l' d .), M11/tl111 c1 //11/ ( :111111111111 /1 11111111. V11 /. I /: l '/11•11 11•1 .'11•111/11111" IHlll 11 111 '11 , t :11111 1•1 N1111' V1·1hl f\• l '111!: 1l t'l1 11 N11 11l11 1 p 11 NN 11 d 1 •NN<' 1 1·~111. 1•111!1 h 1 1 h11l1111 l1•x l11 p111l l1l p11 ti l· u111 1111 v.l rh1, g(.. 1,·rus, 1Ht11 li :\ lt'X lll SL'ttt
Schinid e/\ . V:111 1 cs tcrcn (cds.), S1"11tl11ti<'s 1 ~/ /)1'< 111111 1111.! l'/1 ,•11 /1t't 1·d. d l.; I'. P11v ls, V11/1 l'I /11111g1 '' .!1· /,, 11• 11 1•111, 111\ SL'1t1pn · H{' tt \'1111• fl' 111111 , 11111• 1·~~11 p111t kl ptt\':\11 11unc11 é u11 1t1 pe rte nça. I'. isto n:lo po r causa de
scene. Vcrs 1111c séniiologie de /11 rccéptio11 , 2" cd., 1.llk , l' 11'NNl'N \J 11l v. d1• 1.lllc, 198 5; l\r llrn Pl sl'i1 1·1· 1.11li 11 11111 tl 1'sht11'1 l11 111 L't1\ o ti « 1lqtt l'/11 1111 tlt p111tl1 1t lvl d11 dc li vre, nm\ rqui ca e in lass ifi dvel, mas por ca usa do pró-
Th e Semiotics of Th ea ter, Blo oming ton , Jndiana Uni v. l'rcss, l '!9 2. 1•il11 l r11 ço de pnr ti d p:1\tl11 , d111 •1«1111dt• 11'1d lt10 • de marca gen éri ca. Marca ndo-se corn o género, um texto
74
E. Fischer-Lichte, The Semiotics of Theater, ed. cil. , p. 10. l'rcl't.: rlrnos a des ig nação de hipcrcúdl g11 11"1 il111 111rrn -s ·" (loc. i'it.. p. I H'•)
tral, uma vez que o que aqui está em causa é uma entidad e superior, resu ltado da articulação de v ;\i'i11 ~, 11 <:r. s11pm, pp. l 7H 1711.
digos específicos (cf. supra, pp. 103 [Cap. II, 3]) . Cf. também K. Elam, The Semiotics of Th ea/.re 11111/ /)r1111111 , C:C A. Fowl er, "Th e 1.ili: 11 11d lka lh ofLiterary Forms", Zoe. cit., pp. 87-91. Noutro passo desse texto (em
ed. cit., pp. 49 ss. Referimo-nos aqui à representação teatral num sentido estrito e não "no se ntido la1 11 'I "' •)li • por vezes não conseg ue escapa r a uma certa emulação biológica), Fowler enuncia várias interrogações
engloba tanto o drama como a ópera, o ballet, a pantomima, portanto 'toda a apresentação cénica 1k 1111 111 q11t• t'vid cnciam a poss ibilidad e de se considerar a morte dos géneros sob diversos ângulos: "Tal como acon-
obra'" (T. Kowzan, "Texte écrit et représentation théâtrale", in Poétique, 75, 1988, p. 364). 11 , l m m os organismos biológicos, o momento da 'morte' é difícil de fixar. Um género morre quando deixa
75
E. Fischer-Lichte, op. cit., pp. 11-12. Sobre a complexidade de que se reveste o processo cornunku1lv11 ,) ,. l' I' usado? Ou quando já não é olhado com interesse? Ou quando os leitores se tornam insensíveis às suas

que parte da existência do texto dramático, cf. J. L. Styan, "The Play as a Complex Event", in Ge11rl', 1, I , li11 llll\ s?" (loc. cit., pp. 83-84).
1968, pp. 38-54 e Andrzej Zgorzelski, "The Systemic Potential of a Dramatic Text as Theatrical C od cx·: 111 Por exemplo, Maurice Blanchot, não por acaso convocado em duas reflexões distintas, mas conexioná-
Zagadnienia Rodzajów Literackich, XXXV, 1-2 (69-70), 1992, pp. 89-97. 1I t1uanto ao que temos chamado relativização dos géneros: na de Todorov (cf. Les genres du discours, ed.
76
Tadeusz Kowzan tentou uma descrição de treze sistemas de signos teatrais, agrupáveis em cin co , "" , li. , pp. 44-47) e na de Jacques Derrida (cf. "La Loi du genre", Zoe. cit., pp. 186 ss.).
juntos, dizendo respeito ao sistema linguístico, à expressão corporal, à aparência exterior do ator, ao cs p.<\ 11 • 'l'heo d'haen, "Genre Conventions in Postmodern Fiction", in Theo d'haen, R. Grübel e H. Lethen
cénico e aos efeitos sonoros (cf. Littérature et spectacle, La Haye/Paris/Warsawa, Mouton/PWN-Éditi 1111• 11 dN. ), Convention and Innovation in Literature, Amsterdam/Philadelphia, John Benjamins, 1989, p. 408.
Scientifiques de Pologne, 1975, pp. 181 ss. 'l'heo d'haen, Zoe. cit., p. 411. D'haen nota que o conceito de cesura epistémica proposto por Foucault
77
P. Pavis, Diccionario dei teatro. Dramaturgia, estética, semiología, Barcelona/Buenos Aires/Méxi co, 1'1 11 , l1 111damental para explicar o desaparecimento daquela visão do mundo, "algures em meados do nosso
dós, 1983, pp. 385-386. Sobre a encenação, especialmente no que respeita à sua relação com o trabalho d11 l t ul o": "O momento em que a transição Modernismo/Pós-Modernismo tem lugar coincidiria, pois, com

ator, veja-se Fernando Wagner, Teoria e técnica teatral, Coimbra, Almedina, 1979. 1 11•sura epistémica de Foucault" (Zoe. cit.). Note-se, entretanto, que o fa cto de os escritores mencionados
78
A ligação de determinados atores a determinados papéis constitui uma tendência que pode levar a 111 1111 1111•111 hoje atingido um estatuto de notoriedade considerável (até à consagração pelo Prémio Nobel, corno
certa especialização, mas também a algum a rotina: p. ex., o século XIX conheceu um teatro não raro red1111 11ttnleceu com García Márquez e William Golding), constitui um sintoma de "pacificação", através da incor-
dante quanto ao tipo de personagens que punha em cena (o pai nobre, a ingénua, o galã etc.). 1"11'<1ção no sistema literário (com a confirmação das suas instituições de canonização) dos procedimentos
79
A. Ubersfeld, Lire le théâtre, Paris, Éditions Sociales, 1978, p. 156. .!1 I' •futação genológica.
80
G . Vicente, Auto da Barca do Inferno, Obras Completas, ed. cit., vol. II, p. 39. Sobre o significado e alcance metaliterário de termos como os que foram mencionados, cf. R. Champig-
81
Nalguns romances do século XIX ilustra-se essa situação de forma muito sugestiva, tanto em relaçã o 1111 11 y, "Por and against genre labels", in Poetics, 10, 2-3, 1981, especialmente pp. 164-167.
teatro como em relação à ópera: no cap. XV da segunda parte de Madame Bovary de Flaubert, Emma 1w 11 V. Ferreira, Pensar, Lisboa, Bertrand, 1992, p. 164.
contra Léon durante um intervalo da Lucia de Lamermoor, a que assiste fascinada; no cap. XIII d'O Pri111/1 l)e novo aqui a especificidade do modo dramático, no que implica quanto às complexas relações com o
Basílio de Eça, a ida de Luísa ao S. Carlos, constituindo uma pausa na intriga alucinante que a personaf\1' 111 , )ll' iáculo teatral, dificulta o desenvolvimento de uma reflexão em sentido correspondente à que é possível
está a viver, revela-se também um momento de exibição mundana ("Luísa chegara -se para a frente; ao ru ld11 11 v1tr a cabo nos casos da narrativa e da lírica.
da cadeira, cabeças na plateia voltaram-se, languidamente; pareceu decerto bonita, examinaram-na''); ~ 110 O Modernismo brasileiro ocorre depois do Modernismo português; o Modernismo espanhol tem mais
cap. XVI de La Regenta de Clarín, Ana Ozores vive, sintomaticamente durante a representação do Don }1,.111 , 1111cxões com o Simbolismo do que com o seu homónimo português.
de Zorrilla, um episódio de discreta aproximação ao sedutor Álvaro Mesía. ''
111
f. supra, pp. 237-239.
82
Não tratamos agora de apurar a influência exercida sobre a representação dramática por linguagen,, " •• 11 J. Gomes Ferreira, Poesia IV, Lisboa, Portugália, 1979, p. 92.
meios de comunicação autónomos (rádio, televisão, cinema), que muitas vezes acolhem e adaptam textos d' '' Em vários momentos do texto das Viagens chama-se a atenção precisamente para isso; atente-se no
máticos; cf. P. Pavis, Theatre at the Crossroads of Culture, London/New York, Routledge, 1992, pp. 99 ss. 1fl lilnte passo: "Muito me pesa, leitor amigo, se outra coisa esperavas das minhas Viagens, se te falto, sem o
83 q111•rcr, a promessas que julgaste ver nesse título, mas que eu não fiz decerto. Querias talvez que te contasse,
Descrições relativamente pormenorizadas de espaços e instrumentos de utilização cénica encontram ·' ''
em G. Girard, R. Ouellet e C. Rigault, O universo do teatro, Coimbra, Almedina, 1980, especialmente pp. h'I 11t.11 co a marco, as léguas da estrada? palmo a palmo, as alturas e larguras dos edifícios? algarismo por al-
ss. e em P. Van Tieghem, Technique du théâtre, 3ª ed., Paris, P.U.F., 1969, pp. 50 ss. e 71 ss. ~,11 Ismo, as datas da sua fundação? que te resumisse a história de cada pedra, de cada ruína? .. :' (A. Garrett,
84
Textos fundamentais da doutrina brechtiana encontram-se na recolha organizada por Siegfried Unsdd , \ lllgl'ns na Minha Terra, Lisboa, Estampa, 1983, p. 239-240.
Estudos sobre teatro. Para uma arte dramática não aristotélica, Lisboa, Portugália, s/d. Também de edi 1'.111 '"' G. Genette observa que, "em larga medida, a narrativa de ficção heterodiegética é uma mimesis de
portuguesa, veja-se J. Grotowski, Para um teatro pobre, Lisboa, Forja, 1975. 1111 mas factuais como a História, a crónica, a reportagem"; por outro lado, "os procedimentos de 'ficcio-
85
F. García Lorca, "Charla sobre teatro'', Obras Completas, 18' ed., Madrid, Aguilar, 1973, p. 1.1 78. 1111 1 1 ~.ação' [... ] desde há algumas décadas difundiram -se em certas formas de narrativas factuai s como a
86
E. M iner, Comparative Poetics, ed. cit. , p. 8. Cf. também op. cit., p. 217; note-se que o sentido em que MI 11 portagem ou a investigação jornalística (aquilo a que nos Estados Unidos se chama o 'New fourna-
ner se refere, no último capítulo da sua obra, ao relativismo dos géneros difere daquilo que neste mom ent 11 /1 111 ') e outros géneros derivados como a 'Non-Fiction Novel"' (Fiction et Diction, ed. cit., pp. 90-91).
nos ocupa, contemplando antes as interpenetrações modais (p. ex.: a presença pontual da lírica no drama 1111 "" Neste último caso, esse esvaziamento dos protocolos diarísticos relaciona-se ainda com a estética do
na narrativa) a que noutro local aludimos (cf. supra, pp. 174-175 [Cap. IV, 2]). l1<tf1111entário e evidencia-se por uma espécie de efeito de demarcação: o mesmo escritor compõe e publica
87
Cf. supra, nota 26, Cap. IV, p. 212. 111. 1los por assim dizer canónicos (os volumes da Conta Corrente), mencionados nas "obras do autor" exata-
88
T. Kent, Interpretation and Genre. The Role of Generic Perception in the Study of Narra tive Texts, Lon 111\'n\ e na secção "Diário", que também acolhe o volume Pensar, a propósito de cujos textos o autor escreve: "
don/Toronto, Associated Univ. Press, 1986, p. 146. Kent nota que destacados estudiosos da problernáti u1 t 1 textos que se seguem são o esparso e desordenado e acidental do 'fragmento'. Ele tem que ver assim talvez
da interpretação e da receção literárias (E. D. Hirsch, H . Robert Jauss, W. Iser) confirmam a relevânL111 11111bém com o impensável do nosso tempo. Não porque a organização num todo não seja hoj e possível - e
assumida por essa perceção de género no ato interpretativo. Cf. também A . Fowler, "The Life and Death 111 111 ulguns o foi - mas porque a acidentalidade de tudo, a instabilidade, a circunstancialidade veloz, a
Literary Forms", in R. Cohen (ed.), New Directions in Literary History, Baltim ore, The Johns Hopkins Uni v 111 f1lllividade voraz, recusam a aparência do definitivo de quem constrói para a eternidade, harmonizando-

Press, 1974, pp. 80-83. ' preferentemente com o variável e instantâneo do passar. Daí a atualidade do diá rio - e estes textos são
89
Cf. T. Todorov, Les genres du discours, Paris, Seuil, 1978, p. 53. 1111111 espécie de diário do acaso de ir pensando" (Pensar, ed. cit., p. 17).
'º Cf. J. Derrida, "La Loi du genre/The Law ofGenre'', in Glyph. Textual Studies, 7, 1980, pp. 177 e 17'1 f. A. Fowler, "The Future of Genre Theory: Functions and Constructional Types", in R. Cohen (ed.),

216 TEXTO LITERÁRIO EARQUITEXTUALIDADE O CONHECIMENTO DA LITERATURA 21 7

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