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Instituto de Educação – Universidade do Minho

Mestrado em Ensino de Português no 3. º Ciclo do Ensino Básico e Ensino Secundário

ESTAR EM CASA COM ADÍLIA LOPES

Marta Rodrigues

Braga, 2023
Instituto de Educação – Universidade do Minho
Mestrado em Ensino de Português no 3. º Ciclo do Ensino Básico e Ensino Secundário

ESTAR EM CASA COM ADÍLIA LOPES

Marta Rodrigues – PG51143

Temas de Literatura Portuguesa Contemporânea


Professor Carlos Mendes de Sousa

Braga, 2023
Talvez, quem sabe', a poesia seja alguma espécie obscura de religião, talvez ela própria seja uma língua
estrangeira falada em regiões distantes e interiores. Talvez escrevendo poesia e lendo e ouvindo poesia
estejamos perto de algo maior do que nós ou do nosso exato tamanho. Por que alguma razão há de haver
para a persistência da poesia mesmo em tempos tão pouco gloriosos como os nossos (Pina 2010:70).
CONTEXTUALIZAÇÃO

O presente trabalho insere-se na unidade curricular de Temas da Literatura


Portuguesa Contemporânea, pertencente ao Mestrado em Ensino de Português no 3. º Ciclo
do Ensino Básico e Ensino Secundário e tem como principal objetivo dar a conhecer a
poetisa Adília Lopes através dos seus poemas.

Numa das suas crónicas, Manuel António Pina lança uma questão: Por que
continuam os homens a escrever poesia? Imagino facilmente Adília a responder-lhe: Os
meus poemas são papéis, ações, obrigações (Lopes, 2018, p.30) ou Escrever/ andar de
escorrega (Lopes, 2021, p.39), como se poesia fosse tudo aquilo que ela é e que a faz feliz.

Adília Lopes é o pseudónimo literário de Maria José da Silva Viana Fidalgo de


Oliveira, nascida em 1960, em Lisboa. Frequentou a licenciatura em Física, mas acabou por
desistir praticamente no final do curso. Mais tarde, iniciou a licenciatura em Literatura e
Linguística Portuguesa e Francesa e pelo meio, publicou o seu primeiro livro Um Jogo
Bastante Perigoso (1985).

“Quando andava na Faculdade de Ciências estudava astronomia, as leis de Kepler,


mas não andava de noite a ver as estrelas e a Lua. Quando andava na Faculdade de Letras,
estudava a cantiga d’amigo ‘Bailemos nós ja todas tres ai amigas/ so aquestas avelaneiras
frolidas’, mas não dansava. A minha vida estava toda errada. Mas estudar foi bom.” (Lopes,
2022).

Sobre o facto de escrever dançar com “s”, Adília apontou:

“Desde que comecei a dansar escrevo dansar com s como a Sophia… Enquanto
danso, penso. Penso e giro. De girar e de gerir. Enquanto danso, raciocino e raciocino
melhor. Enquanto danso, rezo pela paz.” (Lopes, 2016).

Será pelo facto de esta letra apresentar mais “movimento”?

A poesia de Adília é conversa, é diário, é risível. Em entrevista, Adília Lopes afirma


que “[o que escreve] é sempre autobiográfico, mas [...] ‘quanto mais insincero mais
sincero’”, esclarecendo: “por exemplo, eu digo [...], ‘tenho uma doença mental, tenho um
eczema’, tenho uma doença mental é verdade, mas não tenho um eczema”. Este jogo com
a verdade factual do enunciado poético é recorrente na obra de Adília Lopes: “Nasci em

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Portugal / não me chamo Adília” (Lopes 2014: 291). Por este motivo, considerou-se
importante apresentar alguns dados biográficos da poetisa.

É o livro Estar em Casa, publicado em 2018, que dá título a este trabalho. É um livro
de componente autobiográfica e com poemas que refletem o quotidiano da autora.

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CONHECER ADÍLIA LOPES

Adília conta-nos quem é através dos seus poemas.

A autora publica, no livro A Pão e Água de Colónia (Seguido de Uma Autobiografia


Sumária) (1987), o poema:

AUTOBIOGRAFIA SUMÁRIA DE ADÍLIA LOPES

Os meus gatos

gostam de brincar

com as minhas baratas

(Lopes, 2014)

A autobiografia caracteriza-se por um género literário que constitui uma narrativa


de carácter pessoal e a personagem principal é o próprio escritor. A partir desta ínfima
definição, facilmente percebemos que o poema autobiográfico de Adília pouco se encaixa
neste género literário – as personagens principais são os gatos e as baratas; mas acredito que
o carácter pessoal da autora está presente através da referência aos seus gatos que fazem
parte de todas as suas obras. Os gatos de Adília são parte da sua família. Em Memória, lê-
se “O primeiro livro de que me lembro de ter gostado muito foi um livro para crianças com
ilustrações a cores. Eram uns gatos que entravam numa casa.” e foi depois do
desaparecimento de uma das suas gatas que Adília nunca mais parou de escrever. Os gatos
estão afetivamente conectados à sua poesia. Valter Hugo Mãe, escreveu uma vez que "Adília
Lopes é a poeta dos gatos e das baratas, não deixa de ser uma certa Alice construindo o
seu mundo de fantasia".

Ricardo Araújo Pereira relata, na crónica “Boca do Inferno: Uma reflexão acerca de
lixo”, que numa entrevista com Adília Lopes apresentou uma interpretação metafórica de
“Autobiografia sumária [...]”, com a qual se identificava pessoalmente: “[o]s meus gatos,
isto é, aquilo que em mim é felino, arguto, crítico [...], aquilo que em mim é
perspicaz – e até cruel – gosta de brincar com as minhas baratas, ou seja, com aquilo
que em mim é repugnante, negro, rasteiro, vil” (Pereira 2009: s.p.). Depois de ter
explanado a sua interpretação perante Adília Lopes, a autora “[d]isse o seguinte: ‘Pois. Bom,

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comigo, o que se passa é que eu tenho gatos. E tenho também baratas, na cozinha. E os gatos
gostam de ir lá brincar com elas.’ E depois exemplificou, com as mãos, o gesto que os gatos
faziam com as patinhas” (ibidem).1 Esta interpretação do poema foi aquela com que mais
me identifiquei, no entanto, para a autora, parece ser simplesmente literal.

Pois bem, tentarei eu fazer a minha própria análise desta peculiar autobiografia:
como referido anteriormente, Adília Lopes trata-se do pseudónimo da escritora Maria José,
creio que aquilo que parece uma redundância – o facto de no título a autora acrescentar “de
Adília Lopes” – chega a fazer sentido, uma vez que Adília poderia escrever também a
autobiografia de Dido ou de Marianna Alcoforado ou de um dos tantos “eus” que Adília diz
ter. Da própria Maria José já não faria sentido, tendo em conta que a autora admite serem
exatamente a mesma – uma como água em estado sólido, outra como água em estado gasoso.
Seguidamente, a escritora refere que esta autobiografia é sumária, ou seja, limitada ao
essencial e ao mais importante. E como é habitual na poesia adiliana, descrever um
momento banal da sua vida pode levar às interpretações mais absurdas. Os gatos, embora
domesticados, são predadores naturais. Gostam realmente de brincar (e matar) diversos
roedores e insetos. Aos olhos da maior parte das pessoas, são animais queridos e engraçados;
as baratas tratam-se de insetos pequenos, sobreviventes a qualquer alteração climática,
resistentes. Para as pessoas, são normalmente nojentas. Mas e se aquilo que parece um jogo
altamente perigoso for na verdade uma bela história de amizade? O poema inclui
determinantes possessivos – “meus gatos” e “minhas baratas”. Não se generalizam os gatos
e as baratas, são os de Adília e estes podem ser diferentes de todos os outros. Apesar da
dessemelhança entre estes dois bichos e de ter efetivamente tudo para correr mal, parece
haver uma união que leva a um final feliz. Creio que aqui não há lado mau, há um momento
feliz onde ganham gatos e baratas – provavelmente o mais importante para Adília tendo em
conta o seu amor por animais. Apesar de Adília ter crescido rodeada de gatos e de lhes
demonstrar sempre um amor profundo, ela não reduz a significância das baratas. A escritora
mostrou-se sempre apaixonada por animais, dedicando-lhes muitos dos seus poemas.
Exemplo disso é um poema escrito num inédito capítulo lançado na segunda edição de Estar
em casa, Bule:

1
Adaptado de Autobiografia e autorretrato em Adília Lopes: “Reduzir ao absurdo” (Ferreira, 2019).
http://dx.doi.org/10.21747/21828954/ely14a3

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BICHOS

Lembro-me de todos os animais que tive. Tenho muitas saudades de todos. Quase todos tiveram
mortes trágicas e eu isso não aceito, não há consolação para isso. Nos meus momentos mais felizes, penso,
acredito que a ressurreição vai acontecer e que eu abro a porta da minha casa e todos os animais que tive vêm
a subir a escada, estão vivos e vão entrar em casa e todos cabem na casa e a casa é eterna. (Lopes, 2017)

Por vezes, a arte de Adília apresenta-se em pequenos e longos textos escritos em


prosa. “Não há poesia sem verdade, mas também não há verdade sem prosaísmo, diz-nos
então Adília. [...] O contrato de leitura autobiográfica projetado pela poesia adiliana
permite-lhe construir uma imagem de poetisa que, até certo ponto, inverte esta conceção: a
sua seria a poesia de uma mulher biograficamente muito próxima dos padrões de uma vida
vulgar, sem grande história, e a muitos níveis distante dos padrões convencionais do sucesso
e também do «sussexo», para retomar um jogo de palavras adiliano.” (Martelo, 2010, p.
242)

Além dos animais, outra temática muito presente na obra de Adília é o amor. Por
norma, sempre infeliz, exteriorizando uma profunda solidão.

Em Estar em casa (2018), escreve:

O ZERO E O UM

Quis sempre

ter um namorado

e só um

o que me custava

era não ter nenhum

(Lopes, 2018)

Em Dobra (2021), escreve:

As minhas cartas de amor

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eram tão infelizes

que hoje são cartas de jogar

(Lopes, 2021)

A poesia adiliana, atravessada no humor e na ironia, leva-nos a fazer uma viagem


emocional a lugares onde todos já estivemos: estar só mesmo amando imensamente. Em
concordância com Marques (2015), a solidão, a impossibilidade do amor, as exigências
impossíveis que o mundo faz às mulheres, a inevitável desilusão e o sentimento de perda
face a tudo, fazem com que a sua poesia se fixe em nós com uma carga mais trágica que
anedótica e nunca como uma mera mimesis da realidade.

Em 2004, a revista Relâmpago lançou uma questão a diversos autores – “Como se


faz um poema?” Há [no depoimento de Adília] “uma espécie de nudez que é quase
incómoda. Como se, neste caso, fôssemos mesmo convidados a ir além da entrada e
surpreendêssemos a poetisa ao espelho, no interior da sua casa. A quem, senão a um amigo
íntimo, diríamos isto – “Eu vivo de uma maneira sofrida actualmente porque tenho uma
doença psíquica, posso vir a ter dificuldades de dinheiro e o mundo não está cor-de-rosa”?”
(Martelo, 2010) Adília optou por comentar um poema indiscutivelmente autobiográfico,
inspirado em Sophia de Mello Breyner:

Apanhei o cabelo

em rabo de cavalo

agora a minha solidão

vê-se melhor

vê-se tão bem

como a minha face

E a minha face

é desassombrada

as sombras

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não são minhas

(Lopes, 2004)

Ainda de acordo com a ensaísta Rosa Martelo (2010), somos sempre “desarmados
pela sua imagem de anti-poeta e de menina. E, todavia, esta condição desarmada de Adília
Lopes também é a sua arma mais desarmante. Porque é ela que lhe permite ser
especialmente eficaz na denúncia da hipocrisia, da crueldade, da cupidez e da estupidez do
mundo em que vivemos (…) o modo como olha para a linguagem, a maneira como
persistentemente a experimenta, questiona, desloca e analisa nada tem de fútil ou inocente.”

"“Eu sou 8 ou sou 80. É uma das coisas mais acertadas que há a dizer sobre mim”,
escreve Adília num dos fragmentos diarísticos que integra este novo livro [Manhã]. E assim
é. E assim continua a ser. Dona de uma imaginação vocabular notável, de jogos de palavras
e de sentidos que misturam a cultura erudita de Proust, Roland Barthes, Hölderlin, Camões,
Espinosa com a Condessa de Ségur, as tias velhas, as bonecas de louça, os gatos e as baratas,
a autora criou um imaginário poético único. De tal forma siderante que não há um só poeta
com ou sem qualidades, cultor do quotidiano, que lhe chegue aos pés. Porque a poesia de
Adília é uma espécie de “máquina ativadora da melancolia” com as suas paisagens
construídas sobre memórias íntimas, restos de uma infância nunca deixada, espantos de um
mundo adulto nunca inteiramente compreendido. O seu quotidiano traduz sempre a
passagem do tempo vivida no envelhecimento do corpo próprio e nos objetos que a rodeiam,
infalivelmente partidos, gastos, esquecidos…" (Marques, 2015) Uma mulher na casa dos
sessenta anos, acompanhada por gatos e por uma solidão profunda, de espírito transparente
que nos transmite tudo aquilo que é através dos seus poemas. Encontramos na poesia de
Adília um conforto muito semelhante àquele que sentimos em casa. Pena não ser
reconhecida como merecia. Portugal deve-lhe amor.

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Referências bibliográficas

Marques, J. (2015). Adília Lopes: a louca da casa. Observador. Consultado


a 12 de janeiro de 2023. https://observador.pt/2015/04/27/adilia-lopes-a-louca-da-
casa/

Martelo, R. (2010). As Armas Desarmantes de Adília Lopes. Disdakalia XL,


2, pp. 207-222. https://revistas.ucp.pt/index.php/didaskalia/article/view/2289

Lopes, A. (2018). Estar em casa. Assírio&Alvim.

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