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Marta Rodrigues
Braga, 2023
Instituto de Educação – Universidade do Minho
Mestrado em Ensino de Português no 3. º Ciclo do Ensino Básico e Ensino Secundário
Braga, 2023
Talvez, quem sabe', a poesia seja alguma espécie obscura de religião, talvez ela própria seja uma língua
estrangeira falada em regiões distantes e interiores. Talvez escrevendo poesia e lendo e ouvindo poesia
estejamos perto de algo maior do que nós ou do nosso exato tamanho. Por que alguma razão há de haver
para a persistência da poesia mesmo em tempos tão pouco gloriosos como os nossos (Pina 2010:70).
CONTEXTUALIZAÇÃO
Numa das suas crónicas, Manuel António Pina lança uma questão: Por que
continuam os homens a escrever poesia? Imagino facilmente Adília a responder-lhe: Os
meus poemas são papéis, ações, obrigações (Lopes, 2018, p.30) ou Escrever/ andar de
escorrega (Lopes, 2021, p.39), como se poesia fosse tudo aquilo que ela é e que a faz feliz.
“Desde que comecei a dansar escrevo dansar com s como a Sophia… Enquanto
danso, penso. Penso e giro. De girar e de gerir. Enquanto danso, raciocino e raciocino
melhor. Enquanto danso, rezo pela paz.” (Lopes, 2016).
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Portugal / não me chamo Adília” (Lopes 2014: 291). Por este motivo, considerou-se
importante apresentar alguns dados biográficos da poetisa.
É o livro Estar em Casa, publicado em 2018, que dá título a este trabalho. É um livro
de componente autobiográfica e com poemas que refletem o quotidiano da autora.
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CONHECER ADÍLIA LOPES
Os meus gatos
gostam de brincar
(Lopes, 2014)
Ricardo Araújo Pereira relata, na crónica “Boca do Inferno: Uma reflexão acerca de
lixo”, que numa entrevista com Adília Lopes apresentou uma interpretação metafórica de
“Autobiografia sumária [...]”, com a qual se identificava pessoalmente: “[o]s meus gatos,
isto é, aquilo que em mim é felino, arguto, crítico [...], aquilo que em mim é
perspicaz – e até cruel – gosta de brincar com as minhas baratas, ou seja, com aquilo
que em mim é repugnante, negro, rasteiro, vil” (Pereira 2009: s.p.). Depois de ter
explanado a sua interpretação perante Adília Lopes, a autora “[d]isse o seguinte: ‘Pois. Bom,
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comigo, o que se passa é que eu tenho gatos. E tenho também baratas, na cozinha. E os gatos
gostam de ir lá brincar com elas.’ E depois exemplificou, com as mãos, o gesto que os gatos
faziam com as patinhas” (ibidem).1 Esta interpretação do poema foi aquela com que mais
me identifiquei, no entanto, para a autora, parece ser simplesmente literal.
Pois bem, tentarei eu fazer a minha própria análise desta peculiar autobiografia:
como referido anteriormente, Adília Lopes trata-se do pseudónimo da escritora Maria José,
creio que aquilo que parece uma redundância – o facto de no título a autora acrescentar “de
Adília Lopes” – chega a fazer sentido, uma vez que Adília poderia escrever também a
autobiografia de Dido ou de Marianna Alcoforado ou de um dos tantos “eus” que Adília diz
ter. Da própria Maria José já não faria sentido, tendo em conta que a autora admite serem
exatamente a mesma – uma como água em estado sólido, outra como água em estado gasoso.
Seguidamente, a escritora refere que esta autobiografia é sumária, ou seja, limitada ao
essencial e ao mais importante. E como é habitual na poesia adiliana, descrever um
momento banal da sua vida pode levar às interpretações mais absurdas. Os gatos, embora
domesticados, são predadores naturais. Gostam realmente de brincar (e matar) diversos
roedores e insetos. Aos olhos da maior parte das pessoas, são animais queridos e engraçados;
as baratas tratam-se de insetos pequenos, sobreviventes a qualquer alteração climática,
resistentes. Para as pessoas, são normalmente nojentas. Mas e se aquilo que parece um jogo
altamente perigoso for na verdade uma bela história de amizade? O poema inclui
determinantes possessivos – “meus gatos” e “minhas baratas”. Não se generalizam os gatos
e as baratas, são os de Adília e estes podem ser diferentes de todos os outros. Apesar da
dessemelhança entre estes dois bichos e de ter efetivamente tudo para correr mal, parece
haver uma união que leva a um final feliz. Creio que aqui não há lado mau, há um momento
feliz onde ganham gatos e baratas – provavelmente o mais importante para Adília tendo em
conta o seu amor por animais. Apesar de Adília ter crescido rodeada de gatos e de lhes
demonstrar sempre um amor profundo, ela não reduz a significância das baratas. A escritora
mostrou-se sempre apaixonada por animais, dedicando-lhes muitos dos seus poemas.
Exemplo disso é um poema escrito num inédito capítulo lançado na segunda edição de Estar
em casa, Bule:
1
Adaptado de Autobiografia e autorretrato em Adília Lopes: “Reduzir ao absurdo” (Ferreira, 2019).
http://dx.doi.org/10.21747/21828954/ely14a3
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BICHOS
Lembro-me de todos os animais que tive. Tenho muitas saudades de todos. Quase todos tiveram
mortes trágicas e eu isso não aceito, não há consolação para isso. Nos meus momentos mais felizes, penso,
acredito que a ressurreição vai acontecer e que eu abro a porta da minha casa e todos os animais que tive vêm
a subir a escada, estão vivos e vão entrar em casa e todos cabem na casa e a casa é eterna. (Lopes, 2017)
Além dos animais, outra temática muito presente na obra de Adília é o amor. Por
norma, sempre infeliz, exteriorizando uma profunda solidão.
O ZERO E O UM
Quis sempre
ter um namorado
e só um
o que me custava
(Lopes, 2018)
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eram tão infelizes
(Lopes, 2021)
Apanhei o cabelo
em rabo de cavalo
vê-se melhor
E a minha face
é desassombrada
as sombras
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não são minhas
(Lopes, 2004)
Ainda de acordo com a ensaísta Rosa Martelo (2010), somos sempre “desarmados
pela sua imagem de anti-poeta e de menina. E, todavia, esta condição desarmada de Adília
Lopes também é a sua arma mais desarmante. Porque é ela que lhe permite ser
especialmente eficaz na denúncia da hipocrisia, da crueldade, da cupidez e da estupidez do
mundo em que vivemos (…) o modo como olha para a linguagem, a maneira como
persistentemente a experimenta, questiona, desloca e analisa nada tem de fútil ou inocente.”
"“Eu sou 8 ou sou 80. É uma das coisas mais acertadas que há a dizer sobre mim”,
escreve Adília num dos fragmentos diarísticos que integra este novo livro [Manhã]. E assim
é. E assim continua a ser. Dona de uma imaginação vocabular notável, de jogos de palavras
e de sentidos que misturam a cultura erudita de Proust, Roland Barthes, Hölderlin, Camões,
Espinosa com a Condessa de Ségur, as tias velhas, as bonecas de louça, os gatos e as baratas,
a autora criou um imaginário poético único. De tal forma siderante que não há um só poeta
com ou sem qualidades, cultor do quotidiano, que lhe chegue aos pés. Porque a poesia de
Adília é uma espécie de “máquina ativadora da melancolia” com as suas paisagens
construídas sobre memórias íntimas, restos de uma infância nunca deixada, espantos de um
mundo adulto nunca inteiramente compreendido. O seu quotidiano traduz sempre a
passagem do tempo vivida no envelhecimento do corpo próprio e nos objetos que a rodeiam,
infalivelmente partidos, gastos, esquecidos…" (Marques, 2015) Uma mulher na casa dos
sessenta anos, acompanhada por gatos e por uma solidão profunda, de espírito transparente
que nos transmite tudo aquilo que é através dos seus poemas. Encontramos na poesia de
Adília um conforto muito semelhante àquele que sentimos em casa. Pena não ser
reconhecida como merecia. Portugal deve-lhe amor.
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Referências bibliográficas
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