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A Política Externa Cabo-verdiana num Mundo Multipolar: entre a Ambivalência

Prática e a Retórica Discursiva?1


Suzano Costa
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas
Universidade Nova de Lisboa

Jorge Nobre Pinto


Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas
Universidade Técnica de Lisboa

“O tempo dos homens não é nunca imune às malhas do


espaço. A nossa pertença a um espaço arquipelágico,
atlântico, peri-africano, saheliano – mesmo quando, no
dia-a-dia, disso perdemos consciência – limita-nos,
amplia-nos, define-nos o leque das possibilidades de
realização histórica. O controle do espaço surge como
um dos meios privilegiados de domínio do tempo
histórico”2.
“Agentes da política externa, portanto, com todas as
limitações inerentes a um país pequeno, ilhado em
termos geográficos, linguísticos, religiosos, étnicos e
diferentes em termos de desenvolvimento social,
encaramos por vezes, a nossa realidade numa óptica de
ilhéus egocêntricos, destemidos na aventura do partir
mas, ao mesmo tempo, receosos e tímidos de assimilar
outros hábitos e comportamentos a qualquer nível”3.

Resumo
O presente artigo visa analisar, numa perspectiva longitudinal, os eixos estratégicos da
política externa cabo-verdiana e perscrutar as mudanças, rupturas, permanências e/ou
(des) continuidades verificadas na acção diplomática do arquipélago no contexto duma
geopolítica multipolar e interdependente, e na encruzilhada atlântica entre a África, a
Europa e as Américas. Intenta-se, a partir da sua inserção estratégica em múltiplos, e
quiçá contrastantes, espaços de cooperação e integração regionais, e da desconstrução
perspectivista da retórica do pragmatismo, averiguar os interstícios que demarcam a
ambivalência prática e a retórica discursiva de uma acção externa que oscila entre uma
orientação pragmática pró-desenvolvimentista e a construção retórica de um ideário
político que apregoa, como recurso estratégico-emancipatório, a boa governação, as
suas múltiplas ancoragens identitárias, uma geografia política de geometria variável, a
insularidade, a retórica da vulnerabilidade e da especificidade, a sua vocação atlântica,
a sua abertura ao mundo e sua ‘utilidade política internacional’ no combate às ameaças
transnacionais (terrorismo internacional, criminalidade transnacional organizada,
narcotráfico, imigração ilegal, tráfico de seres humanos, branqueamento de capitais).
Palavras-chave: política externa, diplomacia, multipolaridade, discurso legitimador.

1 Este artigo retoma, mas desenvolve substancialmente, algumas ideias e conclusões forjadas pelo primeiro
autor na Conferência Internacional intitulada “As Relações Externas de Cabo Verde: entre a Ambivalência
Prática e Discursiva”, organizada pela Coordenação do Curso de Relações Internacionais e Diplomacia do
Instituto Superior de Ciências Jurídicas e Sociais (ISCJS). Os autores agradecem as Professoras Doutoras
Laura C. Ferreira-Pereira e Cristina Montalvão Sarmento os seus preciosos comentários e sugestões críticas
à primeira versão do artigo.
2 António Correia e Silva (1995), Histórias de um Sahel Insular, Praia: Spleen Edições, p. 9-10.
3 Manuel Amante da Rosa (2000), “Que Superpotência no Ano 2010? Que Opção para Cabo Verde?”, in

Conferência de Política Externa – Para uma Diplomacia Moderna e Eficiente, Praia: MNEC, p. 1 [inédito].

1
1. Intróito: entre o Pragmatismo Utilitarista e a Geopolítica do Prestígio?
O presente artigo visa analisar, numa perspectiva longitudinal, os eixos estratégicos da
política externa cabo-verdiana e perscrutar as mudanças, rupturas, permanências e/ou
(des) continuidades verificadas na acção diplomática do arquipélago no contexto duma
geopolítica multipolar e interdependente, e na encruzilhada atlântica entre a África, a
Europa e as Américas. Pretende-se, com este exercício autocrítico de desconstrução
perspectivista, revisitar os princípios basilares da política externa cabo-verdiana e a sua
inserção estratégica num sistema internacional marcado pela multipolaridade, pela
gestão da interdependência complexa4, pela lei da complexidade crescente das relações
internacionais5, pelo multilateralismo6, e pelos desafios centrífugos da globalização e
centrípetos da regionalização.
A política externa7 e a diplomacia constituem vectores privilegiados de perscrutação do
percurso histórico-político de uma nação arquipelágica e diasporizada como é o caso
paradigmático de Cabo Verde. Se analisarmos, do ponto de vista teorético, os eixos
estratégicos e os princípios basilares que nortearam a política externa cabo-verdiana,
desde os primórdios da independência nacional até a transição democrática, denota-se
a predominância de um discurso legitimador que apregoa a existência de uma política
externa extremamente homogénea, coerente nos princípios, pragmática na acção e sem
variações conceptuais substantivas, porque marcadamente desenvolvimentista8, pese
embora forjada na encruzilhada entre a África, a Europa e as Américas. Outrossim, não
obstante as vicissitudes históricas e as condicionalidades geográficas que ora limitam,
restringem, ampliam e definem o leque das possibilidades de sua realização histórica9,
o arquipélago tem escorado soluções institucionais politicamente inteligíveis passíveis
de contornar as vulnerabilidades exclusivas dos contextos insulares e a tese da erosão
progressiva e secular do seu valor estratégico, sob a égide da “geopolítica do prestígio”
e de uma retórica discursiva assaz proficiente.
Reflexo desse posicionamento externo assaz “pragmático”, na encruzilhada atlântica
entre continentes, o arquipélago tem registado ganhos internacionais assinaláveis tais

4 Robert Keohane & Joseph Nye (1998), “Power and Interdependence in Information Age”, in Foreign

Affairs, Vol. 77, Nr. 5 (September-October, 1998), pp. 81-94; Robert Keohane & Joseph Nye (1998), Power
and Interdependence. World Politics in Transition, 3ª Ed., Boston: Little-Brown; Paul R. Viotti & Mark V.
Kauppi [1987] (1999), International Relations Theory: Realism, Pluralism, Globalism, and Beyond, 3ª Ed., Boston:
Allyn & Bacon.
5 Veja-se, para o efeito, a teorização a propósito da lei da complexidade crescente da vida internacional cunhada

por Adriano Moreira, na esteira do pensamento de Teilhard de Chardin, segundo a qual “a marcha para a
unidade do mundo é acompanhada por uma progressiva multiplicação qualitativa e quantitativa dos
centros de decisão (divergência) e de uma multiplicação quantitativa e qualitativa das mútuas relações,
tudo originando novas formas políticas (grandes espaços) e órgãos supranacionais de diálogo, cooperação
e decisão”. José Adelino Maltez (2000), “Lei da Complexidade Crescente”, in Repertório Português de Ciência
Política, [Em Linha], Disponível em [http://maltez.info].
6 John Gerard Ruggie (1993), “Multilateralism: The Anatomy of an Institution”, in John Ruggie (Ed.),

Multilateralism Matters: The Theory and Practice of an Evolutionary Form, New York: Columbia University
Press; Paul Viotti & Mark Kauppi [1987] (1999), International Relations Theory. Realism, Pluralism, Globalism,
and Beyond, 3ª ed., Boston: Allyn & Bacon, p. 218.
7 A foreign policy analysis evidencia-se como a disciplina académica que se dedica à investigação aplicada e

ao estudo sistemático do processo de formulação da política externa e situa-se na intersecção entre a teoria
das relações internacionais e as políticas públicas. Michael Clarke (1989), “The Foreign Policy System: A
Framework for Analysis”, in Michael Clarke & Brian White (Ed.), Understanding Foreign Policy: The Foreign
Policy Systems Approach, Cheltenham: Edward Elgar, pp. 27-59.
8 Suzano Costa (2012), “A Política Externa Cabo-verdiana na Encruzilhada Atlântica: entre a África, a

Europa e as Américas”, in Mário Silva, Leão de Pina & Paulo Monteiro Jr., (Org.), Estudos Comemorativos do
V Aniversário do ISCJS, Praia: ISCJS, p. 333.
9 António Correia e Silva (1995), Histórias de um Sahel Insular, Praia: Spleen Edições, p. 9-10.

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como a transição suave, pacífica e bem-sucedida, pelo Sistema das Nações Unidas, do
grupo de Países Menos Avançados (PMA) para o de Países de Desenvolvimento Médio
(PDM) 10 ; a selecção do país, pela segunda vez consecutiva, como beneficiário dos
fundos do Millennium Challenge Account (MCA)11, instituído pela administração norte-
americana com o fito de premiar os excelentes resultados obtidos na boa governação; a
assinatura e aprovação, pelo Conselho de Assuntos Gerais e Relações Externas da UE,
do acordo de parceria especial entre a União Europeia e a República de Cabo Verde12;
e, por último, a adesão do arquipélago à Organização Mundial do Comércio (OMC)13.
Decorrente do pragmatismo desenvolvimentista e da atracção ideológica, identitária e
cultural14 que os grandes espaços geopolíticos internacionais imputam às nações que
ocupam uma posição subalterna e periférica no sistema-mundo contemporâneo15, Cabo
Verde tem encetado um considerável investimento político/identitário nas instituições
políticas multilaterais (de vocação regional, continental ou universal) como locus de
representação, enunciação e reivindicação dos seus interesses estratégicos e de alocação
de recursos para implementação da sua estratégia/agenda global de desenvolvimento,
mobilizando – com recurso a fundamentos históricos, políticos, culturais, geopolíticos,
estratégicos e, até, identitários –, a retórica da vulnerabilidade, da singularidade e da
sua especificidade no concerto das nações.
No entanto, por razões históricas distintas, tanto a inserção estratégica do arquipélago
em múltiplos, e quiçá contrastantes16, espaços de cooperação e integração regionais,
como o pragmatismo desenvolvimentista que envolta o discurso legitimador, a retórica
discursiva e o argumentário político da elite dirigente, têm (re) produzido e redundado
em ambivalências políticas, dissonâncias discursivas e ambiguidades identitárias e, não
raras vezes, em paradoxos no que tange ao tratamento e posicionamento institucional

10 Djalita Fialho (2013), “Cape Verde’s LDC Trajectory: From Admission to Graduation (1977-2007)”, in
Cristina Montalvão Sarmento & Suzano Costa (Org.), Entre África e a Europa: Nação, Estado e Democracia em
Cabo Verde, Coimbra: Almedina [no prelo].
11 O Millennium Challenge Account é um programa instituído pelo governo norte-americano que se destina

a combater a pobreza a nível mundial, promover o desenvolvimento económico sustentado e premiar os


esforços no sentido de promover a boa governação, a democracia, o respeito pelos direitos humanos, a
consolidação do Estado de Direito, a transparência na gestão dos recursos e a introdução de medidas de
combate à corrupção. Os critérios de elegibilidade ao programa de financiamento do Millennium Challenge
Corporation (MCC) são extremamente rígidos pois os Estados beneficiários terão de cumprir rigorosamente
com os preceitos prescritos como sejam o reforço da “good governance, economic freedom and
investments in people”. Para informações mais detalhadas sobre o Millennium Challenge Corporation e o
Millennium Challenge Account/Cabo Verde consulte: <http://www.mcc.gov> e <http://www.mca.cv>.
12 Suzano Costa (2009), Cabo Verde e a União Europeia: Diálogos Culturais, Estratégias e Retóricas de Integração,

Lisboa: FCSH-UNL, p. 302; Suzano Costa (2011), “A Política Externa Cabo-verdiana e a União Europeia:
Da Coerência dos Princípios ao Pragmatismo da Acção”, in Luca Bussotti & Severino Ngoenha (Org.),
Capo Verde Dall’ Indipendenza a Oggi: Studi Post-Coloniali, Udine: Aviani & Aviani Editori, 2011, pp. 105-146;
Victor Barros (2009), “Cabo Verde e a Imaginação dos Espaços de Pertença: Atlântico, África, Europa”, in
Maria Manuela Tavares Ribeiro (Coord.), (Re) pensar a Europa, Coimbra: Almedina.
13 Cabo Verde tornou-se a partir de 23 de Julho de 2008, após ratificação do protocolo de adesão pela

Assembleia Nacional (Resolução n.º 73/VII/2008, de 19 de Junho, publicada no B.O. n.º 22/08, I Série), o
153º Membro da Organização Mundial do Comércio (OMC), depois de um longo processo negocial que
demorou cerca de nove anos. Note-se, ainda, que o pedido de adesão formal à OMC foi requerido em 1999
e o protocolo de adesão aprovado a 18 de Dezembro de 2007 na reunião do Conselho Geral da organização
realizada em Genebra, Suíça.
14 Robert Pfaltzgraff & James Dougherty (2003), Relações Internacionais: As Teorias em Confronto – um Estudo

Detalhado, Lisboa: Gradiva, p. 655-656.


15 Immanuel Wallerstein (1974), The Modern World System, 3 Vols., New York/London: Academic Press.
16 Gabriel Fernandes (2004), “O Lugar como um Não-Lugar – Expatriação, Hibridização e Aventuras

Cosmopolitas Crioulas”, in Cabo Verde – Um Caso Insular nas Relações Norte-Sul, Revista Estratégia, n.º 20,
IEEI, Cascais: Principia, p. 57.

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diferenciado de determinados dossiers. Ao desconstruir a retórica discursiva veiculada
pela intelligentsia cabo-verdiana e subjacente à praxis político-diplomática, denotamos
que as retóricas do pragmatismo, da vulnerabilidade, da especificidade e a mobilização
situacional das pertenças identitárias, são estrategicamente veiculados para sublimar e
autojustificar, por si só, uma ambivalência prática da política externa que resvala, por
vezes, num situacionismo oportunista tributário de uma “politique du ventre”17.
Além da desconstrução analítica do discurso legitimador e da retórica discursiva que
subjaz o argumentário político escorado pela elite dirigente para forjar um dado perfil
de política externa, assente nas noções de diversificação das parcerias estratégicas e de
multiplicação das ancoragens políticas de desenvolvimento, pretende-se cotejar em que
medida a mobilização situacional das múltiplas pertenças identitárias, por um lado, se
entronca com a noção de pragmatismo e, por outro lado, se redunda e se consubstancia
em ancoragens políticas e institucionais, de intensidade e magnitude variadas, em
múltiplos espaços de cooperação e integração regionais (tais como UE, UA, CEDEAO,
CPLP, ONU, OMC, MNA, CILSS, etc.). O manejo das múltiplas filiações identitárias
(europeidade vs. africanidade) se enquadra, em termos epistemológicos, na edificação
de uma ‘identidade de projecto’18, forjada pelos intelectuais orgânicos19 crioulos e pelos
construtores políticos da nação, que, recorrendo a um determinado tipo de substrato
cultural, erigem um ideologema identitário emancipatório20 susceptível de redefinir a
sua posição no sistema-mundo contemporâneo e as relações de poder na arena política
internacional.
Partindo do escopo de uma política externa utilitária, forjada na encruzilhada atlântica,
no contexto de uma geopolítica multipolar e interdependente, e da inserção estratégica
do arquipélago em múltiplos espaços de cooperação e integração regionais, procura-se,
com este artigo, elencar as categorias argumentativas que conformam a retórica
discursiva e o discurso legitimador da política externa cabo-verdiana, ao passo que

17 Jean-François Bayart (1989), L’État en Afrique: la Politique du Ventre, Paris: Fayard, 1989.
18 Manuel Castells [1997] (2007), O Poder da Identidade. A Era da Informação: Economia, Sociedade e Cultura,
Vol. II, 2ª Edição, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
19 António Gramsci atribui aos intelectuais orgânicos a tarefa hercúlea de alterar a cultura política e a

cultura objectiva por via do combate cultural “de modo a amadurecer a sociedade para uma nova fórmula
política” (Bessa, 1997: 46), porquanto o poder constitui o principal objecto da disputa política. António
Gramsci sugere, ainda, a possibilidade de se mudar os vectores da cultura subjectiva dos indivíduos
através de uma intensa operação de propaganda ao nível da cultura política (Gramsci, 1989) com
implicações sobre a fórmula política dominante e o figurino do discurso legitimador. A distinção
estabelecida entre “domínio” (momento da força) e direcção (organização do consenso) é fundamental: o
grupo dominante não se torna dirigente senão quando chega, por intermédio dos seus intelectuais, a
exercer a sua hegemonia sobre a sociedade inteira. Para uma visão mais sistematizada sobre a formação e
o papel dos intelectuais orgânicos na direcção intelectual e moral das sociedades contemporâneas veja-se,
António Gramsci [1945] (1974), Obras Escolhidas, 2 Vols., tradução Manuel Braga da Cruz, Lisboa: Editorial
Estampa; Idem [1949] (1989), Intelectuais e Organização da Cultura, São Paulo: Civilização Brasileira; Idem
(1999), Cadernos do Cárcere, 6 Vols., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Idem (2004), Escritos Políticos, 2
vols., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
20 José Carlos Gomes dos Anjos (2002), Intelectuais, Literatura e Poder em Cabo Verde: Lutas de Definição da

Identidade Nacional, Porto Alegre: UFRGS/Praia: INIPC; José Carlos Gomes dos Anjos (2004), “A Condição
de Mediador Político Cultural em Cabo Verde: Intelectuais e Diferentes versões da Identidade Nacional”,
Etnográfica, Vol. VIII (2), pp. 273-295; Gabriel Fernandes (2000), Entre a Europeidade e a Africanidade. Os
Marcos da Colonização/Descolonização no Processo de Funcionalização Identitária em Cabo Verde, Florianópolis:
UFSC, Tese de Mestrado em Sociologia Política; Gabriel Fernandes (2002), A Diluição da África. Uma
Interpretação da Saga Identitária Cabo-verdiana no Panorama Político (Pós) Colonial, Florianópolis: UFSC; Victor
Barros (2008), “As ‘Sombras’ da Claridade: entre o Discurso de Integração Regional e a Retórica
Nacionalista”, in Luís Reis Torgal, Fernando Tavares Pimenta & Julião Soares Sousa (Coord.), Comunidades
Imaginadas – Nações e Nacionalismos em África, Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, pp. 193-
217.

4
intentaremos desconstruir a retórica do pragmatismo evidenciando, com recurso a
posicionamentos políticos, institucionais, ideológicos e identitários veiculados pela
prática diplomática, alguns episódios que atestam alguma ambivalência prática e/ou
inflexões discursivas no ideário da política externa.
O presente capítulo está estruturado em quatro secções. A primeira debruça-se em
torno da sistematização dos constructos teóricos21 e dos parafusos lógicos através dos
quais se cartografa os princípios basilares e os eixos estratégicos da política externa, e
se reconstitui a trajectória da acção diplomática cabo-verdiana desde os primórdios da
independência, passando pelo período de institucionalização do regime autoritário, até
o advento da democracia multipartidária. A segunda secção averigua as dimensões, os
fundamentos e o discurso legitimador da política externa, procede à sua subdivisão em
estruturantes fases periodológicas e descortina, à luz do processo histórico-político e
das flutuações na arena internacional, as principais mudanças, rupturas, permanências
e/ou (des) continuidades na acção diplomática, desde aos primórdios da bipolarização
ideológica e militar até à institucionalização da geopolítica da multipolaridade. A
terceira secção perscruta e desconstrói analiticamente o discurso legitimador, a retórica
discursiva e as ambivalências práticas de uma política externa forjada, actualmente, na
encruzilhada atlântica e no contexto de uma geopolítica multipolar e interdependente:
(i) elenca-se os constructos teóricos que conformam a retórica discursiva subjacente ao
ideário da política externa cabo-verdiana; (ii) intenta-se insinuar, a partir de evidências
e enunciados da prática diplomática, reminiscências da ambivalência prática, à medida
que se desmonta as retóricas do pragmatismo, da vulnerabilidade, da singularidade e
da especificidade inserindo-as, teoreticamente, no quadro duma orientação pragmática
pró-desenvolvimentista, de uma estratégia de diversificação das relações externas e de
multiplicação das dependências e âncoras de desenvolvimento.
Do prisma da retórica discursiva e da prática diplomática, advoga-se que o ideário da
política externa, na sua saga emancipatória de diversificação das parcerias estratégias e
de multiplicação das ancoragens de desenvolvimento, tem-se quedado atrelada a
aforismos e a situacionais manejos políticos que congregam e aglutinam – a um tempo
múltiplo e prolixo, e a outro tempo conciso e sincrético –, idiomas identitários,
constructos socioculturais e considerações de ordem histórica e estratégico-geopolítica.
Destarte, procede-se à inteligível funcionalização político-ideológica das ambiguidades
identitárias, à mobilização da retórica do pragmatismo utilitarista como subterfúgio à
sua estrutural vulnerabilidade económica, à activação política da relevância securitária
do arquipélago como parceiro útil e confiável no combate às ameaças transnacionais, e
à acentuação da sua condição de nação global, diasporizada e aberta ao mundo como
recursos estratégico-emancipatórios duma agenda pragmática pró-desenvolvimentista.
Por fim, esboça-se os preceitos ideológicos da diplomacia (política, económica, cultural,
securitária) cabo-verdiana, aventa-se algumas recomendações e projecta-se, em termos
prospectivos, os principais desafios de uma diplomacia moderna, arguta e proficiente.

21As teses fundadoras da foreign policy analysis enquanto disciplina académica e grelha de análise dos
fenómenos políticos contemporâneos remontam os anos 1950 e estribam-se em três subconjuntos de
contribuições teóricas paradigmáticas: Richard Snyder, H. W. Bruck & Burton Sapin (1954), Decision-
Making as an Approach to the Study of International Politics, Foreign Policy Analysis Project Series Nr. 3,
Princeton, NJ: Princeton University Press; R. Snyder, H. W. Bruck & B. Sapin (Ed.) (1963), Foreign Policy
Decision-Making: An Approach to the Study of International Politics, Glencoe, IL: Free Press; James Rosenau
(1966), “Pre-theories and Theories of Foreign Policy”, in R.B. Farrel (Ed.), Approaches to Comparative and
International Politics, Evanston: Northwestern University Press, pp. 27-92; Harold Sprout & Margaret
Sprout (1956), Man-Milieu Relationship Hypotheses in the Context of International Politics, Princeton, NJ:
Princeton University Press; Harold Sprout & Margaret Sprout (1965), The Ecological Perspective on Human
Affairs with Special Reference to International Politics, Princeton, NJ: Princeton University Press.

5
2. Arquitecturas da Cultura Estratégica: Política Externa, Interdependência Complexa
e Soft Power em Debate...
A clarificação dos conceitos em ciência política22, esses parafusos lógicos de Max Weber,
constitui tarefa particularmente árdua mas emancipadora. O labor politológico requer
o recurso a um universo multifacetado de conceptualizações teóricas e a consequente
operacionalização do quadro teórico de referência que presidirá a nossa investigação e
a leitura dos fenómenos políticos, i.e., como é que se forja a estrutura de oportunidades
de uma política externa na encruzilhada entre continentes, e no contexto de geopolítica
multipolar interdependente. Esta secção dedica-se fundamentalmente à sistematização
dos enunciados teóricos e à clarificação dos constructos politológicos veiculados para a
compreensão matizada dos fundamentos históricos, políticos, culturais, estratégicos,
geopolíticos e identitários que subjazem às relações externas do arquipélago e à sua
inserção no sistema internacional. As noções de política externa, diplomacia, soft power
e de interdependência complexa constituem os eixos epistemológicos e os parafusos
lógicos através dos quais procedemos à desconstrução analítica e à reconstituição do
discurso legitimador da política externa cabo-verdiana na sua relação com o mundo.

2.1. Política Externa: Do Estado da Arte à Arte do Estado


A política externa é, hodiernamente, definida como o conjunto de políticas, decisões e
orientações estratégicas adoptadas pelos Estados com o propósito de nortear o seu
relacionamento externo – político, económico, cultural e militar – com outras potências
internacionais, cuja prossecução produz implicações directas no ambiente externo
envolvente. A política externa é geralmente arquitectada em cenários de cooperação
internacional multilateral com o intuito de proteger os interesses nacionais de uma
nação, salvaguardar a segurança nacional, projectar determinados objectivos políticos,
ideológicos e culturais e garantir a prosperidade económica.
Autores na esteira de Walter Carlsnaes advogam que a política externa envolve “those
actions which, expressed in the form of explicitly stated goals, commitments or
directives, and pursued by governmental representatives acting on behalf of their
sovereign communities, are directed towards objectives, conditions and actors – both
governmental and non-governmental – which they want to affect and which lie beyond
their territorial legitimacy”23. Christopher Hill, por seu turno, define a política externa
como a soma de relações externas oficiais conduzidas por um actor independente,
geralmente um Estado, num sistema internacional24 cada vez mais interdependente e
globalizado. A política externa constitui, assim, a tentativa de um Estado influenciar ou
controlar os acontecimentos fora das suas fronteiras nacionais.
A conceptualização cunhada por Christopher Hill afigura-se teorética e empiricamente
mais abrangente pelos seguintes fundamentos: (i) a noção ‘actor independente’ permite
a inclusão de fenómenos globais como a União Europeia; (ii) as relações externas são
‘oficiais’ com o intuito de possibilitar a inclusão dos outputs de todos os segmentos do
sistema governamental ou de determinada instituição, ao mesmo tempo que mantém

22 Cristina Montalvão Sarmento (2004), “Novas Arquitecturas Políticas: Redes, Interdependência e


Violência”, in Adriano Moreira (Coord.), A Globalização da Sociedade Civil, Lisboa: Academia Internacional
da Cultura Portuguesa, p. 303; Cristina Montalvão Sarmento (2008a), “Arquitecturas em Rede”, in África-
Europa: Cooperação Académica, Lisboa: Fundação Friedrich Ebert, p. 117.
23 Walter Carlsnaes (2002), “Foreign Policy”, in W. Carlsnaes, T. Risse & B. A. Simmons (Eds.), Handbook of

International Relations, London: Sage Publications, p. 335.


24 Christopher Hill (2003), The Changing Politics of Foreign Policy, London: Palgrave Macmillan, p. 3

6
uma relativa parcimónia no que tange ao elevado volume de transacções internacionais
que vão tendo lugar na política mundial; (iii) a política externa é a ‘soma’ das relações
oficiais porque, caso contrário, todas as acções particulares, isoladas e desconjuntadas
poderiam ser consideradas uma política externa separada – visto que os actores
geralmente procuram almejar um determinado grau de coerência na sua relação com o
mundo exterior; e por último, (iv) a política é considerada ‘externa’ porque o mundo
está divido em comunidades distintas e não como entidades homogéneas25.
A análise empírica da política externa das potências internacionais, sejam elas grandes
e poderosas, pequenas e frágeis, permitir-nos-á compreender o decurso, a evolução, as
rupturas, permanências e (des) continuidades na história política mundial, bem como a
adopção de opções politicamente inteligíveis, pelos Estados, de forma a salvaguardar
uma paz perpétua e a prosperidade das nações. Os partidários da foreign policy analysis
enquanto grelha de análise dos fenómenos políticos, advogam que o móbil do estudo
da política externa reside em compreender não apenas porquê os líderes perfilham
determinadas decisões, mas também como e em que medida constrangimentos
domésticos e oportunidades internacionais afectam as suas escolhas.
Autores na senda de Richard Snyder, H. W. Bruck e Burton Sapin argumentam que
uma explicação sistemática das opções da política externa dos Estados encontra-se na
interacção complexa de múltiplos factores 26 e no estudo comparativo das relações
externas. Outro contributo clássico para o estudo da política externa foi inventariado
por James Rosenau cuja pré-teoria27 forneceu instrumentos metodológicos e constructos
analíticos robustos susceptíveis de reconstituir, por um lado, a trajectória da (i) política
externa no passado e antecipar futuros desenvolvimentos no posicionamento externo
dos Estados; e, por outro lado, (ii) enquadrar a política externa e a política interna sob a
égide do mesmo paradigma analítico, destacando (iii) a potencialidade dos estudos de
caso como referência empírica para a comparação, interpretação e análise do fenómeno
da política externa.
A análise da política externa tem sido tradicionalmente dominada por um enfoque que
privilegia a manutenção e reforço das relações de poder e segurança. Nesta óptica, a
politóloga Marijke Breuning28 assevera que a orientação das políticas externas estava,
até então, enviesada, justaposta e circunscrita a uma leitura securitária dos fenómenos
políticos. No entanto, com o fim da bipolaridade política, ideológica e militar instituída
pela Guerra-Fria e a intensificação do processo de globalização e de integração regional
acentuou-se a interconectividade das economias mundiais e, com isso, os instrumentos
da diplomacia económica assumiram um protagonismo e centralidade na estruturação
da política externa dos Estados contemporâneos.

25 Idem, ibidem.
26 Veja-se o trabalho clássico que introduziu a abordagem teórica do processo de decision-making no estudo
política externa, Richard Snyder, H. W. Bruck & Burton Sapin (1962), Foreign Policy Decision-Making: An
Approach to the Study of International Politics, Glencoe, IL: Free Press.
27 James Rosenau (1966), “Pre-theories and Theories of Foreign Policy”, in FARREL, R. B. (Ed.) – Approaches

to Comparative and International Politics, Evanston: Northwestern University Press, pp. 27-92.
28 Marijke Breuning (2007), Foreign Policy Analysis: A Comparative Introduction, New York: Palgrave

Macmillan, p. 5. É frequentemente apontado como exemplo paradigmático de diplomacia pública e de


exercício do soft power internacional os esforços desenvolvidos pela Agência de Informação dos Estados
Unidos (USIA, 1953-1999), agência especializada encarregue de conduzir a diplomacia pública de suporte
à política externa norte-americana, cuja orientação estratégica era compreender, informar e influenciar o
público externo na promoção dos interesses nacionais, e alargar, no exterior, o diálogo entre os
americanos, as instituições políticas e seus representantes. Mais do que uma instância de exercício do soft
power, constituía, para os mais críticos, um instrumento privilegiado de propaganda da administração
norte-americana.

7
Não obstante a centralidade das questões económicas, a agenda da política externa não
se resume aos aspectos económicos e securitários do mundo político. A complexidade
crescente da vida internacional e o recrudescimento das redes de interdependência,
sempre em constante transmutação, possibilitaram a concomitante permeabilização e
apropriação de novas demandas na estrutura das políticas externas: direitos humanos,
fenómenos ambientais, crescimento populacional e migrações, segurança alimentar e
políticas energéticas, bem como ajuda externa ao desenvolvimento e intensificação das
relações de cooperação, entre nações ricas e pobres, passaram a integrar o elenco e a
hierarquia das prioridades da acção externa.
Acresce à diversidade de problemáticas abarcadas pela acção externa, o acentuar de
uma multiplicidade de actores envolvidos na sua formulação e implementação. Pese
embora a foreign policy analysis atribua particular relevância aos Estados e aos líderes na
concepção e implementação da política externa, na contemporaneidade, verifica-se, a
emergência e o reconhecimento do papel decisivo de um universo multifacetado de
actores, não tradicionalmente associados à prática diplomática, na foreign policy decison-
making. Tal facto conduziu a uma perda sistemática do monopólio da condução das
relações externas pelo foreign office deslocando a exclusividade analítica da foreign policy
analysis da praxis político-diplomática perpetrada pelas instâncias diplomáticas oficiais
para a incorporação de mecanismos de negociação perfilhados por uma multiplicidade
de actores no xadrez internacional.
A analítica da actuação dos Estados na arena internacional só é possível, parafraseando
James Rosenau, se perscrutarmos os múltiplos factores, dimensões e eixos estratégicos
que orientam a sua acção externa, entre os quais a dimensão física29 e a sua capacidade
de projecção internacional. Serão os pequenos Estados insulares e arquipelágicos, como
Cabo Verde, mais agressivos nas suas relações externas, atendendo as suas limitações
físicas? A sua política externa tenderá a evitar a confrontação político-ideológica
devido ao desequilíbrio de poder e dos recursos à sua disposição na relação com outros
Estados? A política externa perfilhada e os seus processos de tomada decisão são, por
conseguinte, condicionados pelo tamanho relativo dos seus potenciais adversários e
pelos interesses de projecção ideológica que lhe estão conexos?
Apesar do tamanho de um Estado nada tenha a ver com a grandeza das suas opções, as
interrogações coligidas por Rosenau são de extrema relevância para a compreensão da
estrutura da acção externa dos Estados contemporâneos, particularmente as grandes
tendências da política externa cabo-verdiana. De entre os contributos clássicos destaca-
se a proposta seminal de Walter Carlsnaes30 que desenvolve uma grelha de análise da
política externa dos pequenos Estados ancorada no profuso debate teórico forjado no
quadro da foreign policy analysis, advogando que os pequenos Estados estão sujeitos a
condicionalidades externas semelhantes às das grandes potências internacionais em
domínios como a segurança, a defesa ou a própria estruturação da política externa.
O estudo da política externa dos small states como unidade de análise científica atingiu
o seu apogeu em meados dos anos 1970 num contexto em que “o conceito de pequenos
Estados não era considerado uma ferramenta analítica relevante para a compreensão

29 James N. Rosenau (2008), “Foreword”, in Steve Smith, Amelia Hadfield & Tim Dunne, Foreign Policy:
Theories, Actors, Cases, New York: Oxford University Press, p. viii.
30 O autor propõe um quadro analítico integrado e inclusivo segundo o qual a política externa dos

pequenos Estados pode ser estudada com recurso às mesmas ferramentas teóricas e empíricas que a acção
externa de outras categorias de Estados. Ver Walter Carlsnaes (2007), “How Should we Study the Foreign
Policies of Small European States?”, in Políticas de Segurança e Defesa nos Pequenos e Médios Estados Europeus,
Revista Nação e Defesa, n.º 118, Outono/Inverno, 3ª Série, Lisboa: Instituto de Defesa Nacional, pp. 7-20.

8
do mundo político”31. Contudo, autores na esteira de Iver Neumann e Sieglinde Gstöhl
argumentam que, não obstante o estudo dos pequenos Estados ocupar uma posição
subalterna e periférica na estrutura das relações internacionais, assume um potencial
considerável para o futuro da investigação quer dos pequenos Estados per si como pela
introdução de aspectos epistemológicos relevantes para a desconstrução analítica dos
paradigmas teóricos hegemónicos da política internacional contemporânea. O marco
histórico referencial da análise moderna das relações externas dos pequenos Estados
deve-se a Annette Baker Fox32, cuja abordagem evidenciou como governos de pequenos
Estados como a Suécia, Espanha, Turquia, Suíça, Irlanda e Portugal evitaram o seu
envolvimento na II Guerra Mundial enquanto outros Estados, igualmente pequenos e
frágeis, não foram bem-sucedidos na prossecução desse desiderato. Isso só foi possível,
parafraseando Baker Fox, graças a uma diplomacia hábil e uma posição geoestratégica
favorável passível de convencer as grandes potências que a neutralidade permanente
dos pequenos Estados poderia lhes ser, a prazo, vantajosa.
A literatura especializada tem destacado a persistência histórica e a inteligibilidade dos
pequenos Estados no seu percurso de sobrevivência perante o poderio hegemónico das
superpotências mundiais porquanto têm perfilhado uma estratégia política assente na
atenuação e redução dos constrangimentos e circunstancialismos estruturais atinentes
à sua exiguidade territorial e à escassez de recursos. As contribuições de Neumann e
Gstöhl postulam, ainda, neste quadro, que as melhorias nos fluxos de comunicação e
transporte – a liberalização da circulação de bens, serviços, capitais e pessoas –
romperam as fronteiras em benefício dos pequenos Estados, cuja conceptualização foi
aperfeiçoada e influenciada pelos desafios centrífugos da globalização e centrípetos da
regionalização, posto o final da bipolarização política, ideológica e militar33. Outrossim,
do ponto de vista teorético, o quadro analítico de referência dos pequenos Estados
beneficiou ainda dos novos desenvolvimentos teóricos no âmbito da teoria das relações
internacionais, mormente os plasmados pelo construtivismo social com o seu enfoque
nas normas internacionais, nos processos identitários e nas ideias; pelo neo-realismo
através da noção que o exercício do poder e a acção dos Estados na esfera internacional
é orientado numa perspectiva sistémica assente no equilíbrio de poder; pelos neoliberais
na relevância atribuída às instituições e aos indivíduos na construção das comunidades
políticas; e, fundamentalmente, pelo ecletismo da teoria crítica cuja centralidade nos
factores ideacionais – ideologia e discurso – permitir-nos-á perceber como as decisões
políticas são consubstanciadas no conhecimento, sendo resultado de um processo de
construção social.
A desconstrução analítica das dimensões, dos fundamentos e dos eixos estratégicos da
política externa de um pequeno Estado insular e arquipelágico, como é Cabo Verde, se
insere no quadro deste postulado teórico porquanto a sua sobrevivência e afirmação
num sistema internacional interdependente e multipolar, afigura-se tributária de uma
diplomacia pragmática, arguta e ancorada em princípios globalmente partilhados. A
consciência das suas limitações internas prefigurou um posicionamento externo assaz
“pragmático” e estruturalmente ancorado em princípios desenvolvimentistas. Por um
lado, a sua pequenez, a descontinuidade territorial, a inexistência de recursos naturais
e a insularidade moldaram os princípios da sua acção externa e a prossecução de uma

31 Peter Baehr citado por Iver Neumann & Sieglinde Gsthol (2006), “Introduction: Lilliputians in Gulliver’s

World?”, in I. Neumann & S. Gsthol (Eds.), Small States in International Relations, Seattle: University of
Washington Press, p. 12.
32 Annette Baker Fox (1959), The Power of Small States: Diplomacy in World War II, Chicago: University of

Chicago Press.
33 Iver Neumann & Sieglinde Gsthol (2006), Op. Cit., p. 13.

9
diplomacia política assente na canalização dos recursos da ajuda ao desenvolvimento.
Por outro lado, as coordenadas da sua identidade geográfica, ao invés de patrocinarem
um posicionamento externo agressivo ou de subserviência aos propósitos de projecção
política e ideológica de outros actores internacionais, apelaram a um pragmatismo sem
precedentes e à reivindicação da sua utilidade política no concerto das nações.
Os constrangimentos estruturais da constelação internacional, as consequências da sua
exiguidade territorial e a inexistência de recursos naturais têm sido atenuados pela (i)
prossecução de uma diplomacia hábil, pragmática e ancorada em princípios, (ii) pela
sua posição geográfica privilegiada na encruzilhada atlântica que permite forjar várias
ancoragens políticas e pertenças identitárias e, finalmente, (iii) pelo ancoramento em
espaços seguros e economicamente mais dinâmicas, como a UE. Verifica-se, contudo,
uma tendência de afastamento de potenciais cenários de confrontação ideológica no
contexto dos múltiplos espaços de integração regional e de cooperação internacional
em que se encontra inserido. O pragmatismo da acção, a não confrontação ideológica
com os principais centros de poder e a prossecução de uma agenda desenvolvimentista
conduziu, com efeito, à integração em múltiplos, e quiçá contrastantes, espaços de
integração política, pese embora atenuada pela retórica discursiva e proclamatória da
não antinomia34 entre os mesmos (CEDEAO, CPLP, UA, UE, OMC etc.).
O postulado exposto está profundamente correlacionado com o facto dos pequenos
Estados, insulares e arquipelágicos, imprimirem maior investimento político, do que as
superpotências internacionais, em acções políticas conjuntas, nos fóruns multilaterais
internacionais e conferirem prioridade às questões económicas e desenvolvimentistas.
À luz deste paradigma teórico, os Estados pequenos, insulares e com parcos recursos,
como Cabo Verde, têm privilegiado as normas, os valores e as instituições multilaterais
como instâncias de intervenção porquanto estas contribuem para estabilizar a política
internacional e cumprem, segundo Paul Viotti e Mark Kauppi, um papel determinante
na gestão de uma multiplicidade de mudanças regionais e globais que se operam no
hodierno, interdependente e globalizado sistema internacional. A prática diplomática
cabo-verdiana esteve historicamente à mercê das relações de poder, dos projectos de
emancipação política e de projecção ideológica das grandes potências internacionais,
forjando o pragmatismo da sua acção política na intersticialidade entre vários espaços
de integração regional e cooperação política multilateral. A durabilidade e consistência
da política externa dos pequenos Estados insulares35 dependem fundamentalmente de
uma “capacidade de interpretação apurada dos fenómenos internacionais e o
estabelecimento de metas realistas conjugados com respostas ágeis e flexíveis” 36 a
problemáticas que desafiem a sua inserção num sistema internacional extremamente
complexo e interdependente.

34 José Maria Neves (2004), “As Relações Externas de Cabo Verde: O Caso da União Europeia”, in Cabo
Verde – Um Caso Insular nas Relações Norte-Sul, Revista Estratégia, n.º 20, IEEI, Cascais: Principia, p. 16.
35 Para uma análise exaustiva do quadro teórico de referência para análise da política externa dos

pequenos Estados veja-se Walter Carlsnaes (2007), “How Should we Study the Foreign Policies of Small
European States?”, in Nação e Defesa, N.º 118, 3ª Série, Lisboa: Instituto de Defesa Nacional, pp. 7-20.
36 Luís Fonseca (2000), “Por uma Política Externa Moderna e Eficaz: Perspectivas e Prioridades”, in

Conferência de Política Externa – Por uma Diplomacia Moderna e Eficiente, Praia: MNEC, p. 1 [inédito].

10
2.2. Da Política Externa às Redes de Interdependência Complexa
Subscrevendo a sugestão teórica inventariada por Steven J. Rosen e Walter S. Jones37
deslocaremos o epicentro do nível de análise dos actores e dos instrumentos da política
externa para o nível dos sistemas internacionais com o propósito de demonstrar como é
que as redes de interdependência complexa influenciam o poder, as relações de poder
e a performance dos Estados na constelação internacional. A discussão teórica38 sobre a
configuração do sistema internacional demonstra que a longa estrutura do poder na
política internacional apresenta, fundamentalmente, três espectros distintos: (i) por um
lado, uma concepção tradicional em que a capacidade de projecção militar constitui o
conceito chave, (ii) por outro, uma percepção do poder que se estrutura com base nas
relações de dependência económica, e (iii) por fim, a noção de que o poder e as relações de
poder se definem num contexto da gestão inteligível da interdependência complexa.
Segundo Kjell Goldmann a imagética clássica do sistema internacional39, como uma
hierarquia de Estados militarizados, se afigura completamente obsoleta e incongruente
com a actual configuração das relações de poder. O poder das capabilidades militares,
até então decisivo na determinação das relações de poder, vem sendo paulatinamente
substituído pela influência das estruturas económicas na distribuição dos recursos de
poder. A institucionalização de uma nova ordem mundial denota a perda sistemática
de hegemonia por parte dos Estados como os principais actores internacionais, cuja
retracção40 tem patrocinado a emergência e o recrudescimento de actores não estatais
com poderes igualmente significativos; o poder se transfere do domínio exclusivo da
confrontação bilateral para a esfera da interacção multilateral entre os vários actores do
sistema internacional; o tradicional enfoque no equilíbrio de poder e na confrontação
ideológica entre as superpotências perde relevância para a realidade internacional
dado o crescente esplendor das redes de interdependência complexa no concerto das
nações.
Devemos a Robert Keohane e Joseph Nye41 a introdução da noção de interdependência
complexa na agenda política/académica global como paradigma analítico de confronto
com os preceitos da perspectiva realista das relações internacionais porquanto o Estado
deixa de ser o único actor relevante do sistema internacional, posto a emergência de
novos agentes transnacionais que subvertem a ordem e a hierarquia das prioridades: as
transacções económicas, as instituições internacionais, os regimes e o bem-estar por
oposição ao hard power e ao clássico equilíbrio de poder, passam a constituir instâncias
de regulação da vida internacional.

37 Steven Rosen & Walter Jones (1977), The Logic of International Relations, Cambridge: Winthrop Publishers,
Inc., p. 181.
38 Kjell Goldmann (1979b), “The International Power Structure: Traditional Theory and New Reality”, in

Kjell Goldmann & Gunnar Sjöstedt (Ed.), Power, Capabilities, Interdependence. Problems in the Study of
International Influence, London & Beverly Hills: Sage Publications Inc, p. 7.
39 O paradigma tradicional do sistema internacional era dominado, segundo Goldmann, por três ideias

fundamentais: (i) as características do sistema internacional determinam significativamente as relações


externas, (ii) o sistema internacional é composto por Estados soberanos e caracteriza-se pela inexistência
de uma autoridade política central, e por último, (iii) o poder dos actores internacionais é mensurado em
função da sua capacidade de produzir danos a outrem através de meios militares. Ver Kjell Goldmann
(1979a), “Introduction”, in Kjell Goldmann & Gunnar Sjöstedt (Ed.), Power, Capabilities, Interdependence.
Problems in the Study of International Influence, London & Beverly Hills: Sage Publications Inc, p. 1; Kjell
Goldmann (1979b), Op. Cit., p. 19.
40 Susan Strange (1996), The Retreat of the State. The Diffusion of Power in the World Economy, Cambridge:

Cambridge University Press.


41 Robert O. Keohane & Joseph S. Nye [1977] (2001), Power and Interdependence. World Politics in Transition,

Third Edition, Boston: Little-Brown.

11
Os teóricos Paul Viotti e Mark Kauppi42, defendem que a interdependência complexa,
enquanto paradigma teorético, está analiticamente ancorada na concepção liberal e
pluralista das relações internacionais. Postulam, com recurso ao institucionalismo liberal,
que a interdependência complexa favorece e instiga a cooperação multilateral, orienta
o comportamento e a convergência de expectativas entre os actores internacionais por
via de regras, princípios, normas e procedimentos de decisão, e estabiliza, através das
instituições internacionais, o sistema internacional, possibilitando, assim, a emergência
de jogos de soma positiva. Assim, a interdependência é para os pluralistas, aquilo que o
equilíbrio de poder é para os realistas, e por conseguinte, o que a dependência representa
para os globalistas e transnacionalistas. A noção de interdependência complexa se
assenta perfeitamente na mundividência dos teóricos pluralistas para quem os actores
não estatais são entidades relevantes na política mundial por introduzirem novas
exigências (demands, support, inputs, outputs) à “caixa negra” internacional, segundo a
acepção de David Easton43, advertindo, assim, para a existência de uma relação de
dependência mútua, sem precedentes, entre os Estados e os demais agentes do sistema.
Os realistas vêem o conceito de interdependência em termos da vulnerabilidade de um
Estado para com o outro (veja-se a mobilização da retórica da vulnerabilidade, no caso
de Cabo Verde) e advertem para a necessidade de se evitar e minimizar tal situação
porquanto gera uma relação de dominação-dependência entre os Estados, enquanto os
pluralistas advogam que a interdependência pressupõe “efeitos recíprocos entre países
ou actores de diferentes países” 44 . Assim sendo, as redes de interdependência
complexa têm contribuído decisivamente para imprimir alterações profundas no
paradigma clássico do poder nas relações internacionais, no qual a interdependência
estratégica e o confronto bipolar entre duas superpotências – os EUA e a ex-URSS – se
assumiram como característica distintiva do sistema internacional.
As teses sobre os mecanismos de dependência económica enfatizam a sua abordagem
sobre as posições de topo ocupadas pelos Estados da OCDE na hierarquia mundial,
estando os países em desenvolvimento, objectos do imperialismo, expostos e à mercê
das relações de poder e de projecção ideológica que se estruturam no sistema mundial.
Advertem, contudo, que qualquer relação de dependência envolve uma dependência
mútua e bidireccional, mau grado, na maioria dos casos, a dependência seja assimétrica
devido à natureza, dimensão, escopo e variabilidade dos recursos de poder, tangíveis e
intangíveis, mobilizados pelos actores internacionais. Ademais, os contributos teóricos
de Robert Keohane e Joseph Nye45 sobre as redes de interdependência complexa na
política internacional advogam que os recursos de poder estão de tal forma difusos,
gerando uma dependência bidireccional, em que os fortes estão dependentes dos mais
fracos, sobretudo, se aludirmos à participação do arquipélago em arranjos cooperativos
multilaterais em matéria securitária.
Se toda a relação implica uma dependência mútua, qual é a singularidade do conceito
de interdependência complexa como variável explicativa de um determinado tipo de
configuração do sistema internacional? Philip Reynolds e Robert McKinlay salientam
que a noção de interdependência implica uma mudança na percepção, em termos de
grau, natureza, escopo e complexidade, das relações de dependência mútua no sistema

42 Paul R. Viotti & Mark V. Kauppi [1987] (1999), International Relations Theory. Realism, Pluralism, Globalism,
and Beyond, 3ª ed., Boston: Allyn & Bacon, p. 7.
43 David Easton (1965), A System Analysis of Political Life, New York: Wiley, p. 32.
44 Robert O. Keohane & Joseph S. Nye [1977] (2001), Op. Cit., p. 8.
45 Idem, ibidem.

12
internacional que justifica, por si só, a introdução de uma nova sugestão conceptual46.
Reynolds e McKinlay, à luz da literatura especializada sobre as relações de poder no
sistema internacional, advogam a existência de quatro principais variações no estudo
científico do conceito de interdependência, que significa, por si só, dependência mútua,
porque os actores e os eventos internacionais em diferentes partes do sistema se afectam
mutuamente.
A primeira está relacionada com o processo de institucionalização à escala global, i.e., a
proliferação de organizações intergovernamentais (em número, filiação, áreas de
intervenção e especialização) cujo crescimento reflecte e estimula o desenvolvimento
de transacções internacionais, requer a mobilização de mecanismos de regulação e
monitorização somente tangíveis através das redes de interdependência internacional.
A segunda variação na produção académica constitui decorrência do sentido e alcance
das transacções verificadas na arena internacional, ou seja, as alterações na natureza,
qualidade e escala das transacções desencadeadas pelos Estados provocaram não só a
ressurreição, segundo Reynolds e McKinlay, da noção “economia política” – agora
prefaciada pelo adjectivo “internacional” –, bem como a politização das relações
económicas internacionais que se consubstancia no controlo das políticas económicas
pelos actores políticos globais ao mais alto nível, na injecção de questões económicas
internacionais na agenda política doméstica, e na perda do controlo dos governos sobre
os instrumentos e resultados da política económica.
A terceira refere-se às ideias e aos problemas associados com a noção de aldeia global,
embora a discussão teórica deste tópico tenha se convertido, quase que exclusivamente,
em manifestações de interdependência entre Estados desenvolvidos e industrializados.
A convencionada “spaceship earth literature”47 vai muito além e assenta o essencial da
sua argumentação sobre os problemas ecológicos do mundo contemporâneo, cuja
resolução requer uma abordagem holística global porquanto “the earth life systems, it
is argued, are threatened by uncontrolled striving for economic growth, by economic
imbalances, and by ill-considered technological development” 48 . O conceito de
interdependência é discutido, segundo esta perspectiva de análise, sob a égide da ideia
de que mesmo os recursos renováveis são, em última instância, finitos, revelando, por
conseguinte, uma preocupação exacerbada com o mundo como um todo.
Por último, a quarta dimensão do estudo do conceito de interdependência resulta da
necessidade de identificar padrões de comportamento da política externa dos Estados na
sua relação com outros actores internacionais. Questiona, ainda, a tradicional distinção
entre política interna e externa advertindo que os resultados políticos são normalmente
melhor compreendidos em termos das redes de influência recíproca entre Estados do
que em termos da influência exercida pelo ambiente externo e doméstico. Para Robert
Keohane e Joseph Nye, a dependência se verifica quando a decisão de um Estado é
determinado ou significativamente afectado por forças externas, por oposição à noção
de interdependência que significa dependência mútua porquanto o sistema internacional
se caracteriza pela influência recíproca entre países ou actores de diferentes países49. O
conceito de interdependência na política internacional e os efeitos recíprocos derivam,
fundamentalmente, da intensidade das transacções internacionais – fluxos financeiros,

46 Philip Reynolds, & Robert McKinlay (1979), “The Concept of Interdependence: Its Uses and Misuses”, in
Kjell Goldmann & Gunnar Sjöstedt (Ed.), Power, Capabilities, Interdependence. Problems in the Study of
International Influence, London & Beverly Hills: Sage Publications Inc, p. 145.
47 Philip A. Reynolds & Robert D. McKinlay (1979), Op. Cit., p. 150.
48 Idem, ibidem.
49 Robert O. Keohane & Joseph S. Nye [1977] (2001), Op. Cit., p. 7.

13
de bens, pessoas e disseminação de mensagens ao longo das fronteiras internacionais –
que se intensificaram exponencialmente desde a Segunda Grande Guerra Mundial.
Robert Keohane e Joseph Nye advogam a necessidade de não limitar o uso do conceito
de interdependência exclusivamente em situações de mútuo benefício50, porque assumir
tal posição seria conferir utilidade analítica ao termo, apenas, em contextos nos quais
uma visão moderna do mundo prevaleceria, onde as ameaças militares são limitadas e
os níveis de conflitualidade reduzidos. A assumpção deste postulado impossibilitaria a
inclusão da supracitada interdependência estratégica (entre os EUA e URSS) no quadro
dos casos de dependência mútua e, tornaria, por conseguinte, ambígua a classificação
das relações dos países industrializados com os menos desenvolvidos como apanágio
da interdependência (ou não), já que tais relações nem sempre são mutuamente benéficas.
O facto de uma relação ser interdependente significa que os actores internacionais são
mutuamente dependentes, não querendo, por conseguinte, significar que os benefícios
e constrangimentos dessa relação sejam simétricos porque a assimetria dos recursos de
poder desencadeia uma espécie de relação de dominação-dependência, à luz de uma
perspectiva realista da interdependência. Esta diferença poderá ser explicada, segundo
Nye e Keohane, com recurso a duas dimensões do conceito de interdependência
complexa: sensibilidade e vulnerabilidade. A interdependência complexa pressupõe uma
relação de vulnerabilidade, que funciona como fonte de projecção de poder, e ocorre
“quando um actor continua sujeito a custos impostos por eventos externos, mesmo
após ter desenvolvido um conjunto de medidas para superar os problemas causados
por outrem” 51 ; por outro lado, a sensibilidade resulta quando, no interior de um
sistema político, a acção do actor X provoca reflexos em Y. Esta circunstância está
relacionada com o facto da nossa era ser caracterizada, segundo Adriano Moreira, por
uma interdependência total que afectou de maneira decisiva os tipos de relações, os
conceitos a que elas estavam subordinadas conduzindo o mundo a ordenar-se segundo
a lógica da planetização dos fenómenos políticos52.
De acordo com John Burton esse complexo de relações de poder faz com que o sistema
internacional se transforme de um modelo estatocêntrico, hierárquico e ancorado nas
relações centro-periferia para o espectro de uma teia de aranha (“cobweb”53), pelo que a
sociedade internacional se estrutura em torno de uma rede entrelaçada de sistemas de
transacção em que os Estados não passam de meras agências de regulação. Assim, a
multiplicação desses centros de poder dá-se no contexto de uma teia de relações de
interdependência provocada pela intensificação das interconexões globais e aceleração
das transacções internacionais (fluxos financeiros, demográficos, de bens, serviços,
informações etc.), que colocam as organizações intergovernamentais, as multinacionais,
a sociedade civil e as ONG’s no centro do sistema internacional, deixando o Estado de
ser o actor proeminente.
A interdependência complexa, ao atribuir particular saliência ao fluxo e complexidade
das transacções internacionais entre Estados e demais actores do sistema internacional,
acaba por contestar alguns dos pressupostos teóricos da escola realista ao secundarizar
o papel central da segurança militar e seus correlatos na agenda política internacional.
Intensificam-se, com efeito, as relações transgovernamentais, verifica-se um incremento

50 Idem, ibidem.
51 Raimundo Batista Santos Júnior (2000), “Diversificação das Relações Internacionais e Teoria da
Interdependência”, in Gilmar António Bedin et al (Org.), Paradigmas das Relações Internacionais, Ijuí: Editora
da Unijuí, p. 250.
52 Adriano Moreira (1996), Teoria das Relações Internacionais, Coimbra: Almedina, p. 56.
53 John W. Burton (1972), World Society, Cambridge: Cambridge University Press.

14
descomunal das relações económicas internacionais que potencia não só a emergência
de novos actores transnacionais como a transformação da organização política do
mundo, que passa a ser, agora, uma sociedade multipolar em vez de um conjunto de
Estados hierárquica e funcionalmente organizados.
A teoria da interdependência complexa acaba por sintetizar certas componentes do
pensamento realista e liberal pois na sua crítica ao conceito de anarquia defendido pelo
realismo clássico de Hans Morgenthau54, Raymond Aron, Edward Carr e G. Kennan,
introduz de forma inovadora o conceito de regime como mecanismo de facilitação da
cooperação multilateral. Apesar da tónica nas relações económicas e nas organizações
internacionais, inter-estadualmente constituídas, como o centro nevrálgico da política
internacional, persistem nessa teorização determinadas heranças do realismo porquanto
as questões militares, embora em decréscimo, continuam a ter a sua relevância na
configuração de uma ordem mundial que se caracteriza, fundamentalmente, por uma
teia de interdependências que se complexificam com a pluralidade de actores e
demandas internacionais.
Em suma, os Estados subscrevem tais mecanismos de interdependência complexa com
a absoluta consciência de que irão sacrificar os seus interesses imediatos, atendendo à
necessidade de forjar plataformas de cooperação multilateral no quadro de um sistema
internacional no qual a tradicional hierarquia entre high politics (estratégico-militar) e
low politics (aspectos económicos, culturais e sociais) é proficuamente subvertida, em
benefício dos actores que apregoam o soft power como estratégica de projecção externa.

2.3. Do Soft Power à Atracção Ideológica, Identitária e Cultural


O poder como produção de efeitos pretendidos se traduz na capacidade de influenciar
os outros a adoptar as nossas preferências por intermédio da mobilização de recursos
de poder tangíveis (poderio militar, económico, ciência, tecnologia) ou intangíveis
(coesão nacional, cultura, ideologia, instituições internacionais). As concepções sobre o
hard power (poder duro) postulam que a prossecução desse desiderato só é possível
com recurso a recompensas e ameaças tangíveis, i.e., incentivos (cenouras) ou ameaças
(cacete), por oposição ao soft power55 (poder brando) que ao invés de coagir coopta,
moldando, consequentemente, a preferência dos outros actores através da persuasão,
prestígio e atracção.
Autores na senda de Joseph Nye são defensores acérrimos das particularidades de uma
“segunda face do poder”56 através da qual os Estados podem determinar o decurso dos
eventos internacionais e reforçar a atracção ideológica, identitária e cultural de Estados
terceiros que, admirando os seus valores, perfilhando o seu exemplo, aspirando o seu

54 Veja-se, com proveito, os expoentes máximos do realismo clássico, Hans Morgenthau [1967] (1995),

Politics Among Nations: The Struggle for Power and Peace, New York: MacGraw-Hill; Raymond Aron (1984),
Paix et Guerre entre les Nations, Paris: Calmann-Lévy; Edward Hallet Carr (1964), The Twenty Years Crisis,
1919-1939: An Introduction to the Study of International Relations, New York: Harper & Row.
55 A expressão soft power foi cunhada e introduzida na literatura da ciência política contemporânea por

Joseph S. Nye (1990), Bound to Lead. The Changing Nature of American Power, New York: Basic Books, p. 188.
O termo soft power é frequentemente utilizado pelos teóricos das relações internacionais para descrever a
habilidade dos Estados, e outras formas de organização política, influenciarem o comportamento e os
interesses de outros corpos políticos por meios culturais e/ou ideológicos. De acordo com esta teorização
os efeitos subtis da cultura, valores e ideais se traduzem no poder de influenciar o comportamento e a
actuação de outros Estados através do prestígio, cultura e ideologia.
56 Joseph S. Nye (2004), Soft Power: The Means to Success in World Politics, New York: Public Affairs Books,

p. 5.

15
nível de prosperidade e abertura, subscrevem tais princípios como parte integrante da
sua cultura estratégica. Os recursos do soft power ilustram que os actores políticos são
susceptíveis atrair outros actores e determinar a agenda política internacional sem,
necessariamente, fazerem recurso ao poderio militar, às sanções económicas ou aos
tradicionais instrumentos de coacção mobilizados pelo hard power.
Para Joseph Nye o soft power57 reside na capacidade de mobilizar proficuamente os
recursos intangíveis do poder e alcançar os objectivos pretendidos cativando e atraindo
os outros, em vez de os manipular com incentivos materiais (recompensas) ou ameaçar
com sanções políticas, económicas e militares. Assim como na vida pessoal, amorosa e
afectiva a existência de uma química misteriosa sustenta o poder de atracção e sedução,
e na vida empresarial a liderança enquanto atributo de poder não é mensurado pela
capacidade de emitir ordens mas por uma cultura empresarial baseada numa gestão
por objectivos e ancorada em valores, no panorama internacional, o poder de projecção
política e ideológica de um Estado ou de outro actor político depende essencialmente
da sua habilidade em captar a atracção, admiração, reverência e respeito de outrem.
Os recursos que produzem o soft power na política internacional decorrem, em larga
medida, dos valores, princípios e ideário que uma organização ou país expressa na sua
cultura, com implicações notórias nas suas práticas políticas internas e na forma como
estrutura as suas relações externas com outros actores internacionais58. Segundo esta
concepção, a capacidade de estabelecer fins objectiváveis decorre de atributos de poder
intangíveis como sejam a existência de uma personalidade atractiva, formação cultural,
valores e autoridade moral. Tais traços de personalidade orientam o poder dos
seguidores e os mecanismos de atracção à sua disposição, na medida em que quando
um líder representa e veicula valores que outros desejam perseguir o exercício da
liderança torna-se menos árduo porquanto não terá que despender os convencionais
recursos do hard power59 poupando, assim, em incentivos, ameaças, coerção, sanções e
recompensas.
O poder de atracção ideológica, identitária e cultural é mobilizado sob a égide do soft
power e dos recursos intangíveis de poder que lhe subjaz, e os líderes políticos à escala
mundial têm, segundo Joseph Nye, apreendido de forma politicamente inteligível o

57 Outro conceito teoricamente aparentado do soft/hard power mas cuja aplicação é feita numa magnitude
distinta é a noção de structural power cunhada por Susan Strange, a propósito da sua oposição à teoria do
declínio hegemónico americano, segundo a qual o exercício do poder nas relações internacionais envolve
quatro (4) áreas distintas: produção, segurança, finanças e conhecimento. O conceito de structural power
(poder estrutural) constitui uma teoria alternativa do poder e das relações de poder no sistema
internacional que extravasa a tradicional competição inter-estatal e introduz uma concepção inovadora e
trilateral de diplomacia. Esta concepção salienta que o poder dos Estados e dos actores não estatais reside,
não somente nos recursos e na riqueza de que dispõem, mas fundamentalmente na capacidade de
influenciarem as estruturas e as relações de poder na arena internacional, em domínios como a segurança,
as finanças, os meios de produção e a sociedade de conhecimento. Ver Ronen Palan (1999), “Susan Strange
1923-1998: a Great International Relations Theorist”, in Review of International Political Economy, Vol. 6, Nr.
2, (Summer, 1999), p. 122; Susan Strange (1988), Op. Cit., p. 25.
58 Idem, ibidem, p. 8.
59 Para Nye o soft power permite que os líderes políticos poupem em incentivos e ameaças (tradicionais

recursos de poder) e apresenta como exemplo paradigmático o facto de muitos fiéis católicos seguirem os
ensinamentos do Papa e da Sagrada Escritura, em matéria de pecados capitais, não devido a uma potencial
ameaça de excomunhão mas pelo respeito e reverência à sua autoridade moral. Outrossim, argumenta que
os muçulmanos radicais apoiavam as acções do Osama Bin Laden não pelas eventuais recompensas ou
ameaças decorrentes deste suporte, mas pela crença na legitimidade dos objectivos preconizados, já que o
poder de atracção do seu ideário manteve-se e continua a presidir o modus operandi de muitos grupos
terroristas à escala mundial, mesmo após o seu desmantelamento parcial pela intervenção das forças norte
americanas no Afeganistão. Joseph S. Nye (2008), The Powers to Lead, New York: Oxford University Press,
p. 31.

16
impacto do poder de atracção cultural. Nye vai mais além advogando, com base nas
teses sobre a contra-insurgência, que até o monopólio da violência física legítima como
prerrogativa do Estado moderno inventariada por Max Weber, não constitui condição
necessária para o emprego da força sendo fundamental, para o efeito, cativar o coração
e o espírito da população, num contexto em que, segundo Raymond Aron, o “sistema
internacional caracteriza-se pela ausência de uma instância que detenha o monopólio
da violência legítima”60. Adverte, ainda, que mesmo em contextos militares, o poder de
atracção e o compromisso como atributo, constituem recursos de poder susceptíveis de
potenciar o estilo de liderança. Para Joseph Nye mesmo o realista britânico Edward
Carr, que descrevia o poder no sistema internacional em três categorias fundamentais
(militar, económico e o poder sobre a opinião61), abriu precedentes no que tange à
valorização do poder de sedução como elemento crucial da analítica do poder dos
Estados.
O soft power mais do que a capacidade de persuadir e influenciar outros actores
políticos e o decurso dos eventos internacionais através da argumentação, constitui a
habilidade de seduzir, cativar e atrair, e pressupõe aquiescência por parte dos agentes
externos. A anuência dos actores externos depende do espectro do comportamento e
dos recursos de poder mobilizados em contextos de interdependência: enquanto o hard
power para coagir, emitir ordens ou incentivos sobre outras entidades do sistema
internacional recorre aos seus instrumentos tradicionais (força, sanções, recompensas)
como prerrogativa do seu poderio; o soft power apela às instituições políticas, ao poder
dos valores, ideologia, atracção cultural e manejos identitários para estabelecer a
agenda mundial reforçando, por conseguinte, a sua capacidade de atracção, cooptação
e reputação internacional.
Para Joseph Nye as alterações sistémicas verificadas na constelação internacional têm
produzido efeitos significativos nos temas políticos, na estrutura do poder e na
proveniência dos recursos de poder, porquanto o poder constitui, na actual contextura
política, um recurso cada vez menos fungível, coercitivo e tangível 62 . O poder do
comportamento cooptativo63 – a produção de efeitos pretendidos de Bertrand Russell –
e os recursos do soft power (atracção cultural, ideologia e instituições internacionais)
têm assumido particular saliência na configuração das relações de poder no sistema
internacional contemporâneo.
Segundo esta perspectiva de análise politológica, os recursos de poder que subjazem a
distribuição autoritária de valores, para utilizar a expressão de David Easton, podem
ser tangíveis (poder militar) ou intangíveis (reputação, prestígio, atracção ideológica e
identitária, se aludirmos aos contornos políticos do acordo de parceria especial entre
Cabo Verde e a UE). Existem, contudo, alguns aspectos tangíveis inerentes aos recursos
do poder do comportamento cooptativo (sistemas de transmissão) mas a maioria são,
devido à sua natureza difusa, essencialmente intangíveis. O poder cooptativo significa
a habilidade de uma nação moldar e estruturar o decurso dos eventos internacionais
fazendo com que outras nações desenvolvam preferências ou definam os seus
interesses com base no seu referencial de acção. As instituições internacionais e as
corporações multinacionais constituem as duas principais fontes do poder cooptativo,

60 Raymond Aron (1972), Études Politiques. Recueil d’ Essays, Paris: Éditions Gallimard, p. 365.
61 Edward Hallet Carr (1964), The Twenty Years Crisis, 1919-1939: An Introduction to the Study of International
Relations, New York: Harper & Row, p. 108.
62 Joseph S. Nye (1990), Bound to Lead. The Changing Nature of American Power, New York: Basic Books, p.

188.
63 Idem, p. 191.

17
pese embora os interesses das últimas sejam frequentemente divergentes dos actores
tradicionais. Enquanto o poder de comando reside na capacidade de alterar as acções
dos outros através de instrumentos de coerção e/ou indução, o poder de cooptação
assenta o essencial da sua intervenção na capacidade de moldar o objectivo e o
comportamento dos outros sob a égide do poder de atracção dos valores ou capacidade
de estabelecer uma agenda política (agenda-setting).
O poder é, por excelência, relacional, sendo um recurso com diminuta fungibilidade64
(atributo não substituível) devido à natureza essencialmente fragmentada da estrutura
política mundial. A natureza relacional e a diminuta fungibilidade do poder deve-se,
segundo Joseph Nye, à importância crescente do contexto político na mensuração dos
recursos do poder e ao facto deste se definir num cenário de interdependência complexa.
Com a emergência dos recursos do soft power na estrutura das relações internacionais
os instrumentos de poder tornaram-se menos coercitivos, a sua natureza difusa volveu
a manipulação da interdependência mais dispendiosa potenciando, consequentemente,
benefícios económicos bidireccionais para os actores em interacção. Os tradicionais
recursos de poder do sistema internacional dão lugar à atracção ideológica, cultural e
identitária, e a resolução dos conflitos internacionais passa a ser salvaguardada pelos
regimes internacionais e através das instituições políticas multilaterais.
Existem, contudo, alguns aspectos intangíveis do poder que só emergem em contextos
de interdependência complexa65 e que revelam ostensivamente o “poder dos fracos”,
pese embora tal inferência seja, segundo Nye, deficientemente descrita na literatura
especializada como resultado da distribuição dos recursos económicos. Esta tendência
poderá ser invertida em contextos de interdependência complexa nos quais a
habilidade de projecção do poderio de um Estado manifestamente mais forte pode ser
atenuada pela maior capacidade de organização e concentração do Estado menor:
atributo particular dos convencionados smart states.
Na sua mais recente pesquisa Joseph Nye66 introduz o conceito de smart power (poder
inteligente) e contextual inteligence (inteligência contextual) para dissertar sobre os
aspectos éticos de uma liderança arguta e eficiente, e a capacidade dos actores políticos
tirarem proveito dos acontecimentos internacionais, em permanente mutação, para
implementarem estratégias politicamente inteligíveis. O smart power (hard power +
soft power = smart power) e a inteligência contextual requerem a prossecução de uma
liderança transformacional ancorada numa interpretação apurada dos fenómenos
internacionais e na adaptação dos recursos de poder ao contexto político vigente. Para
além da redução dos níveis de coerção, da intangibilidade dos recursos de poder e da
sua diminuta fungibilidade, as transformações na estrutura do poder conduzem Joseph
Nye a introduzir, no debate teórico, a noção de conversão do poder67, i.e., o ‘nó górdio’
entre o poder potencial de um país (mensurado pelos seus recursos) e o seu poder real ou
efectivo (medido em função das mudanças comportamentais geradas noutras nações e

64 O princípio da fungibilidade constitui atributo dos bens móveis que podem ser substituídos por outros
da mesma espécie, qualidade e quantidade. O dinheiro é um bem fungível por excelência porque pode ser
convertido e substituído por uma outra moeda com valor análogo.
65 O conceito de interdependência complexa cunhado por Robert Keohane e Joseph Nye atribui particular

saliência aos múltiplos canais transnacionais que interligam as sociedades, incluindo as relações inter-
estatais, transgovernamentais e transnacionais, e o resultado dessas relações se revelam extremamente
complexos com os interesses económicos a assumirem grande importância por oposição ao postulado pelo
realismo clássico. Veja-se Paul Viotti & Mark Kauppi [1987] (1999), International Relations Theory. Realism,
Pluralism, Globalism, and Beyond, 3ª ed., Boston: Allyn & Bacon, p. 473.
66 Joseph S. Nye (2008), The Powers to Lead, New York: Oxford University Press, p. 85.
67 Idem, ibidem.

18
da amplitude das preferências partilhadas), pese embora nem todo poder potencial seja
passível de ser de facto convertido em poder real.
A eficiente convertibilidade dos recursos de poder varia de país para país e depende
fundamentalmente da existência de infra-estruturas físicas adequadas e de um sistema
político robusto que apregoe a intervenção multilateral e a pressão diplomática como
instrumentos de poder alternativos por oposição à força militar. A singularidade do
smart power reside, não na superioridade do soft power sobre o hard power (ou vice-
versa), mas na capacidade de combinar inteligivelmente os recursos de poder
supracitados e os estilos de liderança, adaptando-os a diferentes contextos políticos a
partir de uma visão holística, sistémica e matizada da realidade internacional. O poder,
as relações de poder e a inteligência contextual definem-se de acordo com o contexto e
no quadro de uma tríade conceptual constituída por líderes, seguidores e contexto,
dimensões cruciais para estruturação do poder inteligente: a mobilização inteligível e
combinada dos recursos.
A capacidade de mobilizar combinadamente os recursos para fazer face aos desafios do
mundo contemporâneo constitui uma das singularidades da inteligência contextual e
está na génese do próprio soft power a possibilidade de se forjar recursos vários para
desencadear a atracção, sedução e admiração. Nesta óptica, constituem recursos do soft
power e do poder de atracção todos os atributos – tangíveis e intangíveis – mobilizados
pelos actores para produzir a atracção ideológica, identitária, cultural, civilizacional,
etc. A combinação efectiva dos recursos tangíveis e intangíveis do hard e soft power
possibilita, de acordo com Joseph Nye, a introdução de um atributo que reside na
capacidade de avaliar, compreender e se ajustar ao ambiente externo, em constante
mutação, para que se possa empreender uma estratégia de poder inteligente.
A política externa cabo-verdiana tem adaptado os seus parcos instrumentos e recursos
de poder às constantes alterações verificadas na conjuntura política global, ajustando,
por conseguinte, os seus interesses estratégicos às janelas de oportunidades que vão
emergindo na estrutura política internacional. Os níveis de inteligência contextual do
arquipélago de Cabo Verde e a mobilização de uma inteligível retórica discursiva têm
se revelado bastante profícuos para a sua diplomacia e a parceria especial com a União
Europeia resulta de uma particular apetência para interpretar e compreender o sentido
e a evolução do ambiente externo, mormente no plano estratégico-securitário. O
pensamento geopolítico nacional tem ajustado as potencialidades geoestratégicas do
arquipélago às janelas de oportunidades oferecidas pela constelação internacional nos
domínios da segurança e defesa, combate ao terrorismo internacional, à criminalidade
transnacional organizada, ao narcotráfico e à imigração ilegal.
A apetência em interpretar os sinais do tempo e a estrutura de oportunidades conferida
pelo sistema internacional evidencia, outrossim, o smart power nacional e a capacidade
de mobilizar recursos combinados: a estratégica localização geográfica na encruzilhada
atlântica (entre África, Europa e as Américas) e a reivindicação da sua utilidade política
internacional na luta contra às ameaças transnacionais supracitadas. O espectro do
poder inteligente cabo-verdiano reside na sua capacidade de moldar e ajustar o seu
posicionamento externo e sua cultura estratégica ao ritmo dos eventos internacionais, e
na apropriação do ideário, dos princípios e valores universais que norteiam, segundo
Joseph Nye, a atracção ideológica, identitária e cultural.

19
3. As Relações Externas de Cabo Verde: Dimensões, Fundamentos e Eixos
Estratégicos
Perscrutar, perspectiva e retrospectivamente, o percurso histórico, político e societário
do arquipélago de Cabo Verde, reconstituindo as dimensões, os fundamentos e eixos
estratégicos da sua política externa68, constitui uma tarefa concomitantemente hercúlea
e emancipatória, particularmente num contexto de erosão progressiva69 e secular do
valor estratégico dos espaços insulares. Ao revisitarmos os meandros políticos do Cabo
Verde pós-colonial e os contornos da sua afirmação, imaginação e consolidação política
como nação global, denotamos que o país tem desencadeado, desde os primórdios da
independência nacional até o advento da democratização, um intenso e profícuo labor
diplomático objectivando a sua inserção dinâmica num sistema internacional marcado
pela multipolaridade e pela gestão da interdependência complexa.
Para analisarmos, numa perspectiva empírica e longitudinal, a evolução histórica da
política externa cabo-verdiana, as mudanças, rupturas, permanências e eventuais (des)
continuidades verificadas na acção externa e diplomática do arquipélago importa, em
termos analíticos, adoptar uma grelha de análise e um quadro teórico de referência que
privilegie quatro (4) momentos históricos fundamentais: (i) os primórdios da luta pela
independência nacional e da estruturação dos movimentos emancipatórios, (ii) as bases
da estruturação do Estado pós-colonial e o período de institucionalização do regime
monopartidário, (iii) a abertura política e a transição para a democracia multipartidária
e, por fim, (iv) a actualidade política e as estruturas de oportunidades que configuram
um perfil de política externa e de diplomacia política forjada na encruzilhada atlântica
e no contexto de geopolítica interdependente e multilateral.
Se aferirmos, numa perspectiva sistémica e à luz da supracitada periodização histórica,
as dimensões, os fundamentos e os eixos estratégicos da política externa cabo-verdiana,
as linhas de força da sua diplomacia e as orientações da cultura estratégica nacional,
vislumbra-se, do ponto de vista da retórica pública e institucional, a conformação de
um ethos diplomático cujo discurso legitimador 70 propala a observância de (i) uma
política externa homogénea, (ii) coerente nos princípios, (iii) pragmática na acção, e (iv)
sem variações conceptuais de monta – porque (v) marcadamente desenvolvimentista –,
assente na noção de (vi) diversificação das parcerias estratégicas, (vi) de multiplicação
das dependências externas e das ancoragens de desenvolvimento, (vii) estribado nas
retóricas da vulnerabilidade, da singularidade e da especificidade, na (viii) boa gestão
da coisa pública e no (xix) reforço da sua credibilidade externa, tudo inscrito numa

68 Para uma introdução comparativa ao lugar da política externa na estrutura dos Estados contemporâneos
veja-se, com proveito, Marijke Breuning (2007), Foreign Policy Analysis: A Comparative Introduction, New
York: Palgrave Macmillan; Ryan Beasley (Ed.) (2002), Foreign Policy in Comparative Perspective: Domestic and
International Influences on State Behavior, Washington DC: CQ Press; António Marques Bessa (2001), O Olhar
de Leviathan. Uma Introdução à Política Externa dos Estados Modernos, Lisboa: ISCSP-UTL.
69 João Estêvão (2004), “O Desenvolvimento de Cabo Verde e os Modelos de Integração Económica

Internacional”, in Cabo Verde – Um Caso Insular nas Relações Norte-Sul, Revista Estratégia, n.º 20, IEEI,
Cascais: Principia; Isabel Costa Leite [2004] (2010), “Entre África e Europa: Cabo Verde e a sua Estratégia
de Desenvolvimento”, in Alcinda Cabral (Org.), Patrimónios Partilhados. Estudos sobre África e Ásia, Porto:
Edições Universidade Fernando Pessoa, pp. 1-12; João Estêvão (2007), “A Economia Cabo-verdiana 30
Anos Após a Independência: uma Transição Difícil”, in Jorge Carlos Fonseca (Org.), Cabo Verde. Três
Décadas Depois, Ano VIII, Número Especial, Revista Direito e Cidadania, Praia: D&C, pp. 125-157.
70 O discurso legitimador é o ideário político subjacente à orientação estratégica do discurso: a fórmula

política dominante que legitima a praxis política e a acção dos atores sociais. No universo politológico
português a questão da legitimidade é desenvolvida de forma mais aprofundada e incisiva pelo magistério
do Professor Adelino Maltez, para quem, “a legitimidade está para a política, como a justiça está para o
direito”. José Adelino Maltez (1996), Princípios de Ciência Política. Introdução à Teoria Política, Lisboa: ISCSP-
UTL, p. 153.

20
estratégia global de desenvolvimento nacional e no contexto de uma “geopolítica do
prestígio”.
Uma incursão analítica à história da política externa cabo-verdiana e à sua subdivisão,
para efeitos propedêuticos, em fases periodológicas, permitir-nos-á evidenciar a génese
da estruturação e da consolidação institucional do supracitado discurso legitimador.
Advogamos, à luz das principais dimensões, fundamentos e eixos estratégicos que têm
norteado a política externa e a diplomacia crioula, uma proposta de periodização que a
subdivide em três (3) fases71 históricas distintas mas, analiticamente, complementares:
 [1ª] a da gestão dos recursos da ajuda humanitária e de emergência (1975-1980);
 [2ª] o apogeu da cooperação internacional para o desenvolvimento (1980-1990);
 [3ª] a modernização e maturação de uma diplomacia eficiente e pragmática
(1991-2013).
Posto o advento da independência nacional72, a emancipação do país ao concerto das
nações soberanas e os circunstancialismos históricos inerentes à institucionalização do
Estado pós-colonial, nesta primeira fase (i), os eixos estratégicos da política externa e
da acção diplomática cabo-verdiana gravitaram em torno da edificação dos alicerces e
das bases estruturais do país e da sua sobrevivência73, por via da captação dos recursos
afectos à ajuda humanitária e de emergência, e da sua reconversão económica74, e de
uma participação, assaz tímida, nas instituições políticas multilaterais, sobretudo, as
concessoras de ajuda externa ao desenvolvimento. Denote-se, nesta fase, uma relativa
incidência da componente ideológica subjacente às relações externas do país, devido às
reminiscências do relacionamento político perpetrado, aquando dos movimentos de
libertação nacional, com as potências hegemónicas resultantes do confronto bipolar e
de uma mundividência política binária assente em blocos ideológicos monoliticamente
constituídos.
No entanto, a saliência da dimensão ideológica na política externa cabo-verdiana foi-se
diluindo consideravelmente com o abandono progressivo dos princípios ideológicos
que nortearam a prática diplomática do movimento de libertação nacional (PAIGC), ao

71 Suzano Costa (2011), “A Política Externa Cabo-verdiana e a União Europeia: Da Coerência dos
Princípios ao Pragmatismo da Acção”, in Luca Bussotti & Severino Ngoenha (Org.), Capo Verde Dall’
Indipendenza a Oggi: Studi Post-Coloniali, Udine: Aviani & Aviani Editori, 2011, p. 109; Suzano Costa
(2012), “A Política Externa Cabo-verdiana na Encruzilhada Atlântica: entre a África, a Europa e as
Américas”, in Mário Silva, Leão de Pina & Paulo Monteiro Jr., (Org.), Estudos Comemorativos do V
Aniversário do ISCJS, Praia: ISCJS, p. 350.
72 Algumas posições denotam, contudo, a incidência de uma actividade de político-diplomática anterior à

institucionalização do Estado cabo-verdiano decorrente das negociações internacionais desencadeadas


pelos líderes históricos da independência no quadro dos movimentos de libertação. Veja-se Camilo Leitão
da Graça (1998), “Dos Alicerces Históricos da Política Externa da República de Cabo Verde”, in Revista
Direito e Cidadania, Ano II, n.º 4, Julho, Praia: DeC, p. 166; Richard Lobban (1995), Cape Verde: Criolo Colony
to Independent Nation, Boulder: Westview Press, 1995, p. 145.
73 Deirdre Meintel (1983), “Cape Verde: Survival Without Self-Sufficiency”, in Robin Cohen (Ed.), African

Islands adn Enclaves, Beverly Hills, CA: Sage, pp. 145-166; Craig Murphy (1987), “Learning the National
Interest in Africa: Focus on Cape Verde”, in Transafrica Forum, Vol. 4, Nr. 2, pp. 49-63.
74 A ajuda alimentar e de emergência concedida pelas instituições internacionais, ao invés de redistribuída,

a título gracioso, às populações, era administrada pela EMPA (Empresa Pública de Abastecimento) que a
revendia aos autóctones sendo os fundos provenientes canalizados para a infra-estruturação do país, a
edificação de obras públicas de combate à erosão e à desertificação, a construção de acessibilidades rurais
e de edifícios (através da EMEC) para armazenamento de géneros: uma estratégia inteligível, utilitarista e
pragmática de administração dos parcos recursos à sua disposição por oposição à gestão caritativa e neo-
patrimonial instituída pela elite dirigente dalgumas das suas congéneres africanas.

21
contrário do propalado pela retórica discursiva75, na medida em que “o Estado cabo-
verdiano passou a ter relações externas diferentes das preconizadas ideologicamente e
realizadas pelo Partido. Isso deveu-se ao facto de a captação da ajuda e da cooperação
internacional, visando a consolidação da independência e progresso do país, ter
passado a constituir um dos pilares fundamentais da política externa”76.
A manutenção de um não-alinhamento activo77 e de um pragmatismo ideológico num
momento histórico em que o poder e as relações de poder no sistema internacional
eram dominados pela bipolaridade e pelo exercício do poder de influenciação política,
económica e ideológica78, permitiu a canalização da ajuda externa ao desenvolvimento
de ambas as superpotências e monolíticos blocos ideológicos em confronto (EUA79 e a
União Soviética). Segundo Paul Kennedy, o não-alinhamento constituía uma forma dos
países do Terceiro Mundo influenciarem o decurso dos eventos internacionais pois
“um Terceiro Mundo amadurecera nesta altura, e muitos dos seus membros, tendo-se
libertado por fim dos controlos dos impérios europeus tradicionais, não estavam na
disposição de se transformarem em meros satélites de uma superpotência distante,
mesmo se esta podia oferecer uma ajuda económica e militar útil”80.
O ideário da coerência dos princípios e do pragmatismo da acção81 da política externa cabo-
verdiana se estruturaram em torno de um posicionamento externo congruente com as
demandas do seu desenvolvimento, com a opção por uma política de paz82 e com a
necessidade de diversificação das alianças e parcerias estratégicas de desenvolvimento.
As grandes tendências e eixos da política externa cabo-verdiana, a gestão das múltiplas
dependências e a diversificação das parcerias estratégicas com as principais potências
internacionais são, ainda hoje, tributários e subsidiários da supracitada neutralidade e

75 Ministério dos Negócios Estrangeiros (1998), País Pequeno num Mundo em Transformação: Balanço de
Quinze Anos de Diplomacia Cabo-verdiana (1975-1990), Praia: MNE.
76 Odair Varela (2006), “Cabo Verde: um Desafio Teórico-Paradigmático ou um Caso Singular?”, in Revista

de Estudos Cabo-verdianos, n.º 2, Janeiro, Praia: Edições UNICV, p. 79.


77 A adesão do arquipélago aos princípios ideológicos da neutralidade preconizados pelo Movimento dos

Países Não-Alinhados (MNA) remonta os primórdios da luta de libertação nacional. Alguns países como
Cabo Verde seguiram a direcção precursora de Tito, Nasser e Nehru, optando por ser, genuinamente não-
alinhados como forma de influenciarem decisivamente o decurso dos eventos internacionais. Não obstante
as flutuações verificadas na constelação internacional e no posicionamento externo do arquipélago a lógica
da neutralidade activa e os princípios do não-alinhamento sempre constituíram uma realidade permanente,
recorrente e transversal à acção externa do povo das ilhas como garante da sua sobrevivência, segurança e
independência no concerto das nações. No entanto, com o término da bipolarização ideológica e militar, e
a mudança do centro nevrálgico da barganha política do confronto ideológico-armamentar para o
desenvolvimento socioeconómico das nações, o MNA perdeu a sua relevância estratégica internacional,
reflexo duma pertinência histórica estruturalmente atrelada à mundividência e aos constructos ideológicos
que presidiram o contexto da bipolaridade.
78 Paul Kennedy advoga que o exercício desse poder de influência político-ideológica e a competição feroz

pelas simpatias do resto do mundo entre os EUA e a URSS, consistia na disseminação de um ideário
supostamente universalista – assinatura de tratados de amizade, concessão de créditos comerciais,
conselheiros militares, assistência militar e económica –, cujos destinatários seriam sobretudo os países do
Terceiro Mundo e as nações recentemente independentes. Todos os aspectos mais significativos da política
internacional gravitavam em torno desses dois schwerpunkte (centros de gravidade) opostos, para utilizar a
sugestiva expressão de Paul Kennedy (1987), The Rise and Fall of the Great Powers: Economic Change and
Military Conflict From 1500 to 2000, New York: Random House, p. 445.
79 Laurie Wiseberg & Gary Nelson (1977), “Africa’s New Islands Republic and United States Foreign

Policy”, in Africa Today, Vol. 24, Issue 41, January-March, pp. 7-30.
80 Idem, ibidem.
81 Suzano Costa (2011), “A Política Externa Cabo-verdiana e a União Europeia: Da Coerência dos

Princípios ao Pragmatismo da Acção”, Op. Cit., pp. 105-146.


82 Alguns dos princípios basilares e eixos estratégicos da política externa cabo-verdiana, e os fundamentos

históricos que alicerçaram a sua diplomacia política encontram-se devidamente sistematizados em Renato
Cardoso (1986), Cabo Verde. Opção por uma Política de Paz, Praia: ICL, colecção Estudos e Ensaios.

22
não-alinhamento activos, do pragmatismo ideológico e da opção histórica por uma
política de paz. Essa opção por uma política de paz advogada e sistematizada pelo
eminente diplomata/jurista Renato Cardoso moldou historicamente o posicionamento
externo do arquipélago no concerto das nações e a busca incessante de resolução dos
problemas nacionais e globais por via das instituições multilaterais e dos mecanismos
de concertação político-diplomática no seio da comunidade internacional.
A (ii) segunda fase da política externa cabo-verdiana caracteriza-se fundamentalmente
pela edificação de um quadro político-diplomático devidamente institucionalizado que
possibilitou a captação dos recursos alocados pela ajuda externa de cooperação para o
desenvolvimento e potenciou uma participação mais pró-activa do país nas instituições
políticas multilaterais. A configuração dessas estruturas institucionais contribuiu
peremptoriamente para a intensificação das relações político-diplomáticas com outros
Estados e para a estruturação de um discurso legitimador e de um ideário de política
externa assente na noção de coerência dos princípios e de pragmatismo da acção como
pressupostos teoréticos basilares.
Por sua vez, a (iii) terceira fase da política externa cabo-verdiana coincide praticamente
com a transição do regime autoritário para a democracia multipartidária e com a opção
pela extroversão económica como estratégia de afirmação internacional. Este período
caracteriza-se essencialmente pelo estabelecimento das bases da maturação de uma
acção externa eficiente e pragmática, pelo abandono sistemático de uma diplomacia
política ideologicamente dirigida e pela busca de uma inserção dinâmica na economia
mundial.
As duas primeiras fases da estruturação da política externa cabo-verdiana configuram
uma relação profícua com os instrumentos de condicionalidade estratégica e ilustram
uma dependência estrutural do país aos instrumentos internacionais de promoção do
desenvolvimento preconizados pelas instituições políticas e económicas multilaterais.
Se na primeira fase a política externa esteve virada para o continente africano por via
de uma participação activa nos processos de gestão, mediação e resolução dos conflitos
regionais83, nas duas fases posteriores deparamos uma viragem84 consequente para a
Europa e os EUA ancorada na noção de diversificação das parcerias estratégicas85, na
multiplicação das ancoragens políticas de desenvolvimento e na reivindicação da sua
“utilidade política internacional” no combate às ameaças transnacionais mobilizando,
para efeitos emancipatórios, um argumentário político e uma retórica discursiva que
congrega fundamentos históricos, geopolíticos e estratégicos, e manejos de constructos

83 Exemplo paradigmático da sua envolvência na resolução de dossiers regionais cruciais foi a mediação
do conflito angolano, a manutenção de relações de cooperação com a África do Sul durante o Apartheid, e a
decisão de permitir a escala e o abastecimento dos aviões sul-africanos, em solo cabo-verdiano, porquanto
constituía uma valiosa fonte de receitas para um país pobre, recém-independente, com parcos recursos e
que se confrontava, então, com os desafios da viabilidade e da sustentabilidade do seu desenvolvimento.
Veja-se Anthony W. Pereira (1995), “An Active Role for the Non-Alignment Movement – The Positive Role
of the Cape Verde Islands in Seeking Solutions in Southern Africa”, in Review of International Affairs, Vol. 1,
Nr. 3.
84 Suzano Costa (2009), Cabo Verde e a União Europeia: Diálogos Culturais, Estratégias e Retóricas de Integração,

Lisboa: FCSH-UNL, p. 221; José Ribeiro e Castro (2009), Cabo Verde: Dois Olhares, uma Visão Comum,
Bruxelas: PPD/BE.
85 José Luís Rocha (2010), “As Parcerias Estratégicas no Centro da Política Externa de Cabo Verde”, in

Ministério das Relações Exteriores, [Em Linha] Acessível em <http://www.mirex.gov.cv>; José Luís Rocha
(2010), “Cinco Questões para perceber a Parceria Especial Cabo Verde-União Europeia”, in Ministério das
Relações Exteriores, [Em Linha] Acessível em <http://www.mirex.gov.cv>; Alena Guedes Vieira & Laura
C. Ferreira-Pereira (2009), “The European Union-Cape Verde Special Partnership: The Role of Portugal”, in
Portuguese Journal of International Affairs, n.º 1, Spring, pp. 42-50.

23
culturais e idiomas identitários. Grosso modo, as alterações verificadas na constelação
internacional, o fim da Guerra Fria, a queda do muro de Berlim e a fragmentação das
ameaças, até então estritamente identificadas com blocos ideológicos monoliticamente
constituídos, impeliram a uma profunda readaptação dos modelos, métodos e práticas
da acção diplomática cabo-verdiana, e a uma reestruturação do ideário da sua política
externa perante as exigências da geopolítica da multipolaridade e da interdependência
complexa.
Com efeito, houve uma preocupação exacerbada de modernização das estruturas de
suporte à elaboração e prossecução da política externa cabo-verdiana, por intermédio
de múltiplos arranjos na engenharia institucional e na orgânica do MNE86, de forma a
torná-la mais eficiente, adaptada às relações de poder que se estruturaram na política
internacional e potenciadora da sua inserção dinâmica na economia mundial. É,
igualmente, nesta fase que a prática diplomática assume, com maior acuidade, a
protecção dos interesses da comunidade emigrada, e a sua consagração como país útil87
na esfera internacional, torna parte integrante da cultura estratégica nacional. A
configuração desta cultura estratégica só foi possível graças à adopção criteriosa e
selectiva dos instrumentos da moderna diplomacia pelos agentes da política externa
que permitiu uma diversificação das alianças, a multiplicação das ancoragens políticas
e das parcerias estratégicas de desenvolvimento.
Na segunda metade da década de 1990, elegeu-se como orientação estratégica da acção
pública governamental, a inserção dinâmica do arquipélago na economia mundial88 e a
prossecução de um desenvolvimento económico e social auto-sustentado. Os aspectos
da diplomacia pura e a parcial incidência dos instrumentos da diplomacia económica,
mormente a canalização do investimento directo estrangeiro, assumiram particular
saliência no ideário da política externa. A assumpção desse posicionamento externo
resulta, com efeito, do colapso da diplomacia da representação, do esgotamento de um
modelo de desenvolvimento centrado nos instrumentos tradicionais de financiamento
– a ajuda externa e as remessas dos emigrantes –, da necessidade manifesta de atenuar

86 O espectro da modernização do MNE compreendia, segundo Rui Alberto Figueiredo Soares, ex-Ministro

dos Negócios Estrangeiros e Comunidades, a salvaguarda da eficácia no controlo financeiro das missões
diplomáticas através de uma gestão criteriosa, racional e transparente dos recursos inspirada nos
princípios da gestão privada, o reforço da coordenação e sintonia entre os serviços centrais, as missões
diplomáticas e postos consulares espalhados pelo mundo, a revisão sistemática dos preceitos da cobertura
diplomática, a adopção selectiva dos recursos da moderna diplomacia pelos agentes da política externa, a
busca incessante de soluções inovadoras susceptíveis de garantir a eficiência da diplomacia, adaptar o
Estatuto da Carreira Diplomática às exigências de desenvolvimento do arquipélago e rever a política de
formação e capacitação do staff do Ministério. Veja-se Rui Figueiredo Soares (2000), “Desafios da Política
Externa Cabo-verdiana: Enquadramento da Conferência”, in Conferência de Política Externa – Por uma
Diplomacia Moderna e Eficiente, Praia: MNEC, p. 7 e segts [inédito].
87 A utilidade político-diplomática do Estado de Cabo Verde foi evidente durante o seu mandato como

membro não-permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas e sobejamente reconhecido pela
comunidade internacional dada a sua preciosa contribuição para a análise de dossiers cruciais e defesa
pragmática dos interesses africanos nos conflitos em Angola, Burundi, Libéria, Moçambique, Ruanda e
Somália.
88 O conceito de inserção dinâmica na economia mundial foi introduzido pela primeira vez, e de forma

inovadora, na contextura política nacional, em 1997, atendendo às alterações profundas verificadas no


sistema económico internacional e aos desafios do arquipélago perante a globalização e o processo de
integração regional. O conceito emerge como resposta ao desafio de um desenvolvimento centrado na
dialéctica relação factores internos e externos: recursos internos estruturalmente escassos e exigências de
competitividade do meio envolvente. Sobre a emergência do conceito, sua orientação, sentido e alcance
estratégico veja-se, Ministério da Coordenação Económica (1991), As Grandes Opções do Plano (1997-2000):
Inserção Dinâmica de Cabo Verde no Sistema Económico Mundial – Uma Opção pelo Desenvolvimento Económico e
Social Auto-sustentado, Praia: Ministério da Coordenação Económica, p. 3.

24
a dependência económica do país, salvaguardando, com efeito, um desenvolvimento
sustentado ancorado na inserção dinâmica na economia mundial e na premência em
projectar o seu soft power89 e em capitalizar a sua posição geoeconómica privilegiada.
Para a prossecução desse desiderato da acção pública governamental, a intervenção
dos agentes da diplomacia cabo-verdiana privilegiou um dos princípios fundamentais
da prática diplomática, lapidarmente vaticinados pelo distinto Calvet de Magalhães,
segundo o qual “o agente diplomático, enquanto tal, actua exclusivamente no âmbito
da diplomacia pura e não deve esquecer-se disso. Quando intervém na construção de
uma dada política externa não age como diplomata mas como político ou conselheiro
político. São duas funções que na prática se podem confundir mas que teoricamente
são inteiramente distintas”90. A fragilidade estrutural da economia cabo-verdiana, a
sua dependência endémica ao exterior, a carência de recursos financeiros e naturais são
factores estruturais que continuam, ainda, a determinar o desenvolvimento endógeno e
a moldar estruturalmente as principais dimensões, os fundamentos e eixos estratégicos
da sua política externa. Outrossim, a debilidade da economia cabo-verdiana e a sua
vulnerabilidade estrutural têm sido historicamente atenuadas graças ao pragmatismo
desenvolvimentista da política externa (transformando a necessidade em virtude91) e à
gestão hábil de uma rede diversificada de dependências externas.
Na transição do milénio verifica-se um investimento considerável na área política da
diplomacia como estratégia de viabilização dos ganhos da diplomacia económica sob a
égide da prossecução das parcerias estratégicas para o desenvolvimento. Denota-se,
contudo, como se pode atestar no presente artigo, que a proficiência da acção externa e
a performance económica do arquipélago tem sido relativamente penalizados pelo
desenvolvimentismo granjeado (veja-se a graduação à categoria de PRM), traduzindo,
consequentemente, na drástica redução da ajuda externa e no afastamento progressivo
de alguns parceiros estratégicos (particularmente do norte da Europa). A transição do
grupo dos países menos avançados para o dos países de rendimento médio premeia,
por um lado, a boa governação e a gestão eficiente da coisa pública; mas, por outro
lado, penaliza o esforço continuado da elite dirigente92 em conferir “viabilidade” e
“sustentabilidade” ao desenvolvimento das ilhas, na medida em que a ajuda externa93

89 A expressão soft power foi cunhada, pela primeira vez, por Joseph S. Nye, Jr., (2000), Bound to Lead. The

Changing Nature of American Power, New York: Basic Books, p. 188. Para uma visão mais aprofundada e
sistematizada do conceito veja-se, também, Joseph Nye (2004), Soft Power: The Means to Success in World
Politics, New York: Public Affairs Books; Idem (1992), “O Mundo Pós-Guerra Fria: uma Nova Ordem no
Mundo?”, Política Internacional, 5 (1): 79-97, Lisboa.
90 José Calvet de Magalhães (1996), A Diplomacia Pura, Lisboa: Bizâncio; Álvaro de Vasconcelos (2005),

Conversas com José Calvet de Magalhães – Europeístas e Isolacionistas na Política Externa Portuguesa, Lisboa:
Bizâncio.
91 Christopher Whann (1998), “The Political Economy of Cape Verde’s Foreign Policy”, in African Journal,

Vol. 17, pp. 40-50.


92 A retórica discursiva da elite dirigente oscilou entre o júbilo político, o optimismo insuflado e um registo

celebratório de contornos eleitoralistas (no plano interno) e o pranto desolador perante os parceiros
internacionais (no plano externo), porquanto cônscios da fragilidade do arquipélago face aos desafios e os
constrangimentos da graduação. Uma análise pormenorizada dos contornos político-institucionais e de
todo o processo de negociação conducente à graduação do arquipélago da categoria dos PMA atesta a
existência de (i) impulsos externos em prol da aceitação da graduação, por oposição a (ii) diversas pressões
burocráticas internas que sustentaram a sua continuidade na categoria dos PMA, facto esse que produziu
mudanças sistémicas e inovações incrementais dentro de uma categoria, há muito, estagnada, como atesta
a institucionalização de um quadro negocial de transição suave. Djalita Fialho (2013), Op. Cit., pp. 1-26.
93 Esta inferência é reiterada pelos dados estatísticos sobre o comércio e desenvolvimento do CNUCED.

Estudos desenvolvidos por Mário Murteira, em 1988, já previam, vencida a primeira década de
independência, uma diminuição considerável da ajuda externa ao desenvolvimento concedida a Cabo
Verde. Mário Murteira (1988), Os Estados de Língua Portuguesa na Economia Mundial. Ideologias e Práticas do

25
proveniente do sistema das Nações Unidas irá diminuir significativamente. Este facto
introduz um efeito contraproducente num contexto de gestão pragmática e eficiente
dos parcos recursos disponíveis em que “les dirigeants ont réussi à gérer une économie
dotée de ressources restreintes dont la première source de financement était les envois
d’argent des émigrés et l’aide internationale”94.
Parte das explicações aduzidas, como a convicção de que a boa performance económica
constitui garante de uma maior autonomia por parte dos Estados e a possibilidade de
alocar tais recursos aos países com níveis de pobreza ainda mais gritantes, reforçam de
forma contundente o posicionamento paradoxal dos doadores internacionais. Apesar
do postulado ter subjacente um princípio de solidariedade internacional, do qual Cabo
Verde foi historicamente beneficiário, legitima práticas pouco abonatórias do primado
da condicionalidade política, porquanto a maioria das nações do grupo dos PMA não
adoptaram, ainda, mecanismos rigorosos e eficientes de gestão da APD, promovendo,
consequentemente, a boa governação, os valores democráticos e o respeito escrupuloso
pelos direitos humanos.
Neste contexto de afastamento sistemático de alguns parceiros tradicionais, e dada a
vulnerabilidade do país às flutuações verificadas na constelação internacional, o acordo
de parceria especial entre a União Europeia e Cabo Verde assume particular acuidade e
relevância, porquanto o acesso aos fundos comunitários de apoio da UE irá atenuar,
em parte, os efeitos perniciosos da diminuição sistemática das doações externas no
financiamento do desenvolvimento. Nesta óptica, a diplomacia cabo-verdiana tem
advogado, nas diversas plataformas de negociação multilateral e junto dos seus
principais parceiros estratégicos (como é o caso do Banco Mundial), a alteração dos
preceitos da concessão da ajuda externa e a assumpção de um novo paradigma nos
processos de cooperação internacional para o desenvolvimento que, ao invés de
penalizar, premeie a meritocracia e a boa performance dos Estados na gestão da coisa
pública: “o relacionamento entre os Estados e, em especial, a cooperação internacional
deve conceder uma maior atenção a esse novo paradigma introduzido pelo MCA,
justamente ao aplicar, para a selecção dos países beneficiários, critérios que claramente
apelam ao bom desempenho dos Estados”95.
Mau grado algumas descontinuidades próprias do tempo histórico e das flutuações na
arena internacional, não se vislumbram na contextura política cabo-verdiana alterações
substanciais na diplomacia pública, na sua cultura estratégica nacional e nos princípios
orientadores da sua acção externa. A cooperação internacional para o desenvolvimento
e a alocação dos recursos da ajuda externa constitui o fundamento e a pedra angular de
toda a política externa cabo-verdiana, tendo sido, esta, estruturalmente presidida pela
introdução de mecanismos de condicionalidade política96 tais como a boa governação,

Desenvolvimento, Lisboa: Editorial Presença, p. 158. Dados do Ministério do Planeamento e da Cooperação


apontavam, igualmente, para uma alteração tendencial, embora em proporções variáveis, da composição
da ajuda global: enquanto em 1980 a ajuda pública ao desenvolvimento atingia os 96%, esse rácio foi
diminuindo regularmente ao longo dos tempos, situando-se em 87% na década de 1986. Ver Ministério do
Plano e da Cooperação (1989), Op. Cit., p. 45.
94 Carolina Feilman Quina (2000), “Processus de Développement en Guinée-Bissau et au Cap-Vert:

Quelques Réflexions”, in Maria H. Araújo Carreira (Ed.), De la Révolution des Oeillets au 3ème Millénaire.
Portugal et Afrique Lusophone: 25 Ans d’ Évolution, Paris: Université Paris 8, p. 230; Colm Foy (1988), Cape
Verde: Politics, Economics, and Society, London: Pinter Publishers.
95 José Maria Neves (2006), “Fortalecer o Estado Democrático em África”, in Manuela Franco (Coord.),

Portugal, os Estados Unidos e a África Austral, Lisboa: FLAD/IPRI-UNL, p. 272.


96 Karen Smith (1998), “The Use of Political Conditionality in the EU’s Relations with Third Countries:

How Effective?”, in European Foreign Affairs Review, Vol. 3, N.º 2, (Summer, 1998), p. 257. O conceito de
condicionalidade política tem sido empregue, com particular incidência, desde o fim da Guerra-Fria pela

26
a consolidação do Estado de Direito, o respeito pelos direitos humanos, a promoção de
uma cultura de paz e dos ideais da democracia pluralista, o combate à corrupção e a
assumpção de instrumentos e parâmetros internacionais duma gestão eficiente da coisa
pública. A institucionalização dos instrumentos de condicionalidade política positiva97
pelos doadores internacionais98 foi fundamental para a estruturação, a consolidação e a
afirmação do estado de direito democrático cabo-verdiano e para a adopção de padrões
de exigência, eficácia e eficiência na gestão da coisa pública.
Se nos primórdios da independência, Cabo Verde proclamou como grande desiderato
doutrinário a diversificação das suas relações internacionais, de modo a atenuar a sua
estrutural dependência externa, na actual contextura política e num mundo marcado
pela gestão da interdependência complexa, reforçar e alargar as parcerias estratégicas
responde ao imperativo de consolidar a sua integração dinâmica no mundo e, por essa
via, prosseguir e consolidar, em segurança, o seu processo de desenvolvimento. As
parcerias estratégicas, enquanto dimensão da praxis diplomática, ao darem corpo e
conteúdo à política externa cabo-verdiana, poderão ser estruturadas e reconvertidas
em vectores distintos, simultaneamente complementares, aos níveis da geopolítica
global, da institucionalização de mecanismos de segurança cooperativa e da
cooperação para o desenvolvimento99, aliás, os princípios estruturantes que presidem a
parceria especial com a União Europeia.
A busca de parceiros estratégicos e de soluções institucionais susceptíveis de conferir
“viabilidade” e “sustentabilidade” ao desenvolvimento do “povo das ilhas” constituiu
sempre a pedra angular da política externa cabo-verdiana, daí a opção por ancorar o
país em plataformas continentais estáveis, seguras e economicamente mais dinâmicas.
Esta opção estratégica é reflexo incontornável da atracção ideológica, identitária e
cultural de que as grandes potências internacionais são sujeitos e objecto. Outrossim, a
prossecução de um desenvolvimento sustentado e o reforço da credibilidade internacional
são, igualmente, princípios norteadores da política externa cabo-verdiana a par de uma
concomitante e profícua aposta na low politics100, no soft power e no structural power101

comunidade internacional com o intuito de instigar os países terceiros a instaurarem a democracia


multipartidária e protegerem os direitos humanos como mecanismos de aprofundamento do processo de
integração política.
97 A condicionalidade política positiva pode ser definida como concessão de benefícios caso o Estado cumpra

as condições impostas, enquanto a condicionalidade política negativa envolve a redução, suspensão ou


supressão de tais benefícios se o Estado em questão violar essas condições. Por sua vez, a condicionalidade
económica pressupõe a concessão de benefícios sujeitos ao cumprimento de condições económicas como
sejam a inserção na economia de mercado ou a introdução de políticas económicas específicas (como foi o
caso das políticas ajustamento estrutural, conceito criado a propósito do continente africano). Para Karen
Smith, a condicionalidade política requer a ligação, por um Estado ou uma organização internacional, de
benefícios recebidos por um outro Estado (tais como ajuda, concessões comerciais, acordos de cooperação,
contactos políticos, pertença a instituições internacionais) ao cumprimento de condições relacionadas com
a protecção dos direitos humanos, a paz e a observância de princípios democráticos.
98 Chris Alden & Karen Smith (2005), “Strengthening Democratic Structures and Processes in Africa: A

Commentary on the Role of the European Union”, in The Challenges of Europe-Africa Relations: An Agenda of
Priorities, Lisbon: IEEI, pp. 83-90; Karen Smith (1998), “The Use of Political Conditionality in the EU’s
Relations with Third Countries: How Effective?”, in European Foreign Affairs Review, Vol. 3, N.º 2, (Summer,
1998), pp. 253-274; Karen Smith (2003a), “EU External Relations”, in Michelle Cini (Ed.), European Union
Politics, Oxford: Oxford University Press, pp. 229-245; Karen Smith (2003b), “The European Union: A
Distinctive Actor in International Relations”, in Brown Journal of World Affairs, vol. 9, N.º 2, (Winter/Spring,
2003), pp. 103-113.
99 Jorge Nobre Pinto (2010), Cabo Verde no Contexto Internacional e o Futuro das suas Relações com o Mundo:

entre a África, a Europa e as Américas, Relatório da 9ª Sessão do Ciclo de Tertúlias “Cabo Verde em Debate”
[Tertúlia Crioula], 16 de Outubro de 2010, Lisboa: Livraria Buchholz, pp. 1-7 [inédito].
100 Alguns autores criticam a distinção tradicional e a falsa dicotomia realista entre high politics (soberania,

segurança) e low politics (economia, cultura, ideologia), salientando a possibilidade dos Estados

27
como estratégia de afirmação no cenário internacional, não descurando, ainda, a opção
por uma estratégia política passível de aliar de forma sistemática o multilateralismo e o
ancoramento como resposta às demandas da geopolítica da multipolaridade.
O multilateralismo enquanto orientação estratégica privilegia o primado da cooperação
multilateral como mecanismo de afirmação internacional e de resolução dos problemas
globais (e internos) numa plataforma compromissória e de diálogo sistemático, sendo a
principal via para a “reinvenção da governança mundial”102: “in an increasingly global
world, where the lines between nation-states are becoming blurred, states are indeed seeking
international solutions to domestic problems”103. Ademais, a descontinuidade territorial,
determinada pela insularidade, a estrutural dependência económica ao exterior, a
ausência de recursos naturais (energéticos e alimentares) e a proximidade geográfica a
regiões com tendências fragmentárias e marcadas por forte instabilidade política, social
e demográfica, asseveram ao arquipélago vulnerabilidades estruturais de variada
monta, contudo, aplacadas pelo smart power e por uma estratégia de ancoramento em
espaços estáveis, seguros e economicamente dinâmicos. Resulta evidente que os
Estados frágeis, arquipelágicos e desprovidos de recursos naturais – e que ocupam
uma posição periférica no sistema internacional como é o caso paradigmático de Cabo
Verde104 – optam pelo ancoramento105 como orientação estratégica para multiplicar as
âncoras do seu desenvolvimento e preservar o interesse nacional num cenário de
multipolaridade assimétrica.
Mau grado a sua endémica e estrutural vulnerabilidade às alterações verificadas no
cenário internacional e a proeminência dos constrangimentos económicos, a política
externa cabo-verdiana tem contribuído historicamente para o reforço da credibilidade e
da projecção externa do país, “consolidando sua imagem de parceiro útil na resolução
dos problemas que preocupam a comunidade das nações e afectam a paz e a segurança

mobilizarem recursos para resolução dos problemas domésticos numa plataforma de interdependência
complexa. Por seu turno, a high politics atribui particular saliência às questões securitárias e de soberania,
particularmente os atinentes aos interesses estratégicos dos Estados, por oposição ao low politics que
destaca os aspectos socioeconómicos, o bem-estar e valoriza os interesses de projecção ideológica, cultural
e identitária dos actores no sistema internacional. Norris Ripsman (2004), “False Dichotomy: When Low
Politics is High Politics”, International Studies Association, Montreal, Quebéc, Canada, pp. 1-37, [Em Linha]
Acessível em <http://www.allacademic.com>.
101 Susan Strange (1996), The Retreat of the State. The Diffusion of Power in the World Economy, Cambridge:

Cambridge University Press. Esse poder pode ser definido no âmbito da política internacional, utilizando
a acepção clássica de Bertrand Russell, como a “produção dos efeitos pretendidos”. Bertrand Russell
(1938), Power: A New Social Analysis, London: George Allen & Unwin.
102 Adriano Moreira (2003), “A Reinvenção da Governança”, in Cultura. Revista de História e Teorias das

Ideias: Ciência Política, II Série, n.º XVI/XVII, Lisboa: CHC-UNL, pp. 35-44.
103 Robert Keohane & Joseph Nye (1989), Power and Interdependence, Glencue, IL: Addison-Wesley; Robert

Art & Robert Jervis (Eds.) (1992), International Politics: Enduring Concepts and Contemporary Issues, 3ª Edição,
New York: Harper Collin.
104 Odair Varela (2006), “Cabo Verde: um Desafio Teórico-Paradigmático ou um Caso Singular?”, in Revista

de Estudos Cabo-verdianos, n.º 2, Janeiro, Praia: Universidade de Cabo Verde, pp. 71-88; Idem (2005), Para
Além de Vestfália e Cosmopólis: Que Governação para os Estados “Frágeis”, “Falhados” ou “Colapsados”?,
Coimbra: Universidade de Coimbra, Tese de Mestrado em Sociologia.
105 Esse ancoramento contribuiu peremptoriamente para a configuração de uma política externa

multilateral. A multiplicidade de envolvimentos políticos perpetrados por Cabo Verde enquanto actor
internacional formatou substancialmente a prossecução de uma acção diplomática que elege e privilegia o
multilateralismo como uma âncora potenciadora da sua estratégia de desenvolvimento. Ademais, essas
múltiplas pertenças concorreram decisivamente para a prossecução de uma vivência cosmopolita no
arquipélago, o que explica a opção por inserir Cabo Verde em múltiplos, e quiçá contrastantes, espaços de
cooperação e integração regionais. Gabriel Fernandes (2004), “O Lugar como um Não-Lugar – Expatriação,
Hibridização, e Aventuras Cosmopolitas Cabo-verdianas”, in Cabo Verde – Um Caso Insular nas Relações
Norte-Sul, Revista Estratégia, n.º 20, IEEI, Cascais: Principia, p. 57.

28
mundiais”106. É reservada à política externa uma dimensão eminentemente estratégica
e utilitarista apresentando-se, assim, como instrumento de desenvolvimento
económico e de inserção do arquipélago na economia mundial.
Todavia, a política externa e a diplomacia cabo-verdiana tem-se adaptado às constantes
alterações verificadas na conjuntura política global, ajustando, consequentemente, os
seus interesses estratégicos às janelas de oportunidades que vão emergindo na longa
estrutura política internacional. Esta cultura estratégica nacional tem contribuído para
a concomitante opção de inserir o país em múltiplos, e quiçá contrastantes, espaços de
cooperação e integração regionais: uma espécie de duplicidade da política externa
cabo-verdiana que concorreu para formatação da retórica discursiva duma diplomacia
pragmática, cuja lógica de actuação política se traduz, essencialmente, na maximização
dos benefícios e das vantagens comparativas decorrentes da sua inserção em múltiplos
espaços geopolíticos internacionais e das múltiplas pertenças políticas, identitárias ou
institucionais, sem acautelar, no entanto, dissonâncias discursivas e reminiscências de
alguma ambivalência prática.

4. Cabo Verde e a Geopolítica da Multipolaridade: entre a Ambivalência Prática e a


Retórica Discursiva?
Vivenciamos, hodiernamente, uma época de esbatimento das fronteiras geográficas,
num mundo político marcado pelos desafios centrífugos da globalização e centrípetos
da regionalização, onde a fragmentação e a imprevisibilidade das ameaças configuram
um sistema internacional107 interdependente no qual o Estado deixou de ser o principal
agente, passando a dialogar e a actuar, de forma pluralista, em condições de igualdade,
com instituições internacionais, organizações não-governamentais, poderes erráticos –
comummente apelidados de terroristas, mas que se confrontam com os Estados, não os
reconhecendo como poder superior –, instituições religiosas, como a Igreja Católica,
máfias organizadas, corporações económicas transnacionais e até indivíduos. Ademais,
a crescente complexificação das relações internacionais contemporâneas e as alterações
sistémicas verificadas na proveniência das capabilidades e dos recursos de poder têm
contribuído indubitavelmente para a emergência de múltiplos centros de poder que,
além de escaparem ao controlo dos Estados, desencadeiam uma competição férrea com
os actores tradicionais do sistema internacional provocando, assim, o célebre retreat of
the state108.

106 Alfredo Amílcar Monteiro (2000), “Cabo Verde e o Sistema das Nações Unidas”, in Conferência de

Política Externa – Por uma Diplomacia Moderna e Eficiente, Praia: MNEC, p. 1 [inédito].
107 Robert Keohane & Joseph Nye [1977] (2001), Power and Interdependence. World Politics in Transition, Third

Edition, Boston: Little-Brown; Robert Art & Robert Jervis (Eds.) (1992), International Politics: Enduring
Concepts and Contemporary Issues, 3ª Edição, New York: Harper Collin; Susan Strange (1996), The Retreat of
the State. The Diffusion of Power in the World Economy, Cambridge: Cambridge University Press; Joseph Nye
Jr., (1990), Bound to Lead. The Changing Nature of American Power, New York: Basic Books; Idem, (2002),
Compreender os Conflitos Internacionais. Uma Introdução à Teoria e à História, Lisboa: Gradiva; Idem, (2002),
The Paradox of American Power. Why the World’s Only Super Power Can’t Go It Alone, New York: Oxford
University Press; Idem, (2004), Soft Power: The Means to Success in World Politics, New York: Public Affairs
Books; Idem (2008), The Powers to Lead, New York: Oxford University Press; Robert Pfaltzgraff Jr., & James
E., Dougherty (2003), Relações Internacionais – As Teorias em Confronto. Um Estudo Detalhado, Lisboa:
Gradiva.
108 Susan Strange (1996), Op. Cit.

29
A gestão da interdependência complexa e a institucionalização, com o final da Guerra-
Fria109 e da bipolarização ideológica e militar, duma geopolítica da multipolaridade110,
pressupõem não só o envolvimento das grandes potências na ordem internacional mas,
também, a participação dos pequenos Estados arquipelágicos (como Cabo Verde),
sobretudo, quando justapõem, para efeitos de emancipação política e de projecção do
seu soft power, posicionamentos geoestratégicos privilegiados e a conformação de uma
retórica discursiva, ao serviço da geopolítica do prestígio, que maneja situacionalmente
constructos identitários, preceitos culturais e concepções (várias) de ordem histórica,
estratégica e geopolítica.
Intenta-se, neste capítulo, a partir da inserção estratégica do arquipélago em múltiplos,
e quiçá contrastantes, espaços de cooperação e integração regionais, e da desconstrução
perspectivista da retórica do pragmatismo, averiguar os interstícios que demarcam a
ambivalência prática e a retórica discursiva de uma acção externa que oscila entre uma
orientação pragmática pró-desenvolvimentista e a construção retórica de um ideário
político que apregoa, como recurso estratégico-emancipatório, a boa governação, a
mobilização situacional das múltiplas ancoragens identitárias, uma geografia política
de geometria variável, a insularidade, a retórica da vulnerabilidade e da especificidade,
a sua vocação atlântica, a sua abertura ao mundo e a “utilidade política internacional”
da sua plataforma geográfica111 no combate às ameaças transnacionais.
Assim, para prossecução desta proposta epistemológica de desconstrução do discurso
legitimador da política externa cabo-verdiana e aferir as eventuais mudanças, rupturas,
permanências e/ou descontinuidades na prática diplomática socorrer-nos-emos a duas
escalas analíticas: (i) por um lado, elencar-se-á os constructos teóricos, os enunciados e
as categorias argumentativas que integram o argumentário político e conformam a
retórica discursiva subjacente ao ideário da política externa cabo-verdiana; (ii) por outro
lado, evidenciar-se-á, à luz da praxis diplomática e institucional, reminiscências de
alguma ambivalência prática ao passo que se desmonta o viés da mobilização situacional
das múltiplas pertenças identitárias, advogando que as retóricas do pragmatismo, da
vulnerabilidade, da singularidade e da especificidade têm sido veiculadas, pelo
discurso de chancelaria, ora para encapotar a ambivalência prática e outras distensões,
dissonâncias e ambiguidades discursivas do seu ideário, ora para autojustificar a sua
estrutural orientação pró-desenvolvimentista.
Desde os primórdios da organização administrativa e da institucionalização do Estado
pós-colonial, enquanto entidade jurídico-política, a elite dirigente crioula tem laborado
na construção de uma inteligível retórica discursiva com o propósito de salvaguardar a
sua sobrevivência política e inserção estratégica no sistema internacional. Um universo
multifacetado de enunciados, constructos e categorias argumentativas tem concorrido

109 Michael Hogan (Ed.) (1992), The End of the Cold War: Its Meaning and Implications, Cambridge:
Cambridge University Press; Robert Keohane, Joseph Nye & Stanley Hoffman (1993), After the Cold War:
International Institution and State Strategies in Europe, Harvard: Harvard University Press.
110 John Mearsheimer (2001), The Tragedy of Great Power Politics, New York: W. W. Norton & Company;

Robert Keohane [1984] (2005), After Hegemony. Cooperation and Discord in the World Political Economy, 2ª ed.,
Princeton: Princeton University Press; Donette Murray & David Brown (2012), Multipolarity in the 21st
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Twenty-First Century: Multipolarity and the Revolution in Strategic Perspective, London: Routledge; Matthew
Happold (Ed.) (2012), International Law in a Multipolar Word, London: Routledge.
111 Manuel Amante da Rosa (2006), “O Atlântico Sul perante os Novos Desafios Mundiais”, in Manuela

Franco (Coord.), Portugal, os Estados Unidos e África Austral, Lisboa: FLAD/IPRI-UNL; Manuel Amante da
Rosa (2007), “Geoestratégia de Cabo Verde no Atlântico Médio”, in Revista Direito & Cidadania, Ano VIII,
n.º 25/26, Praia: D&C, pp. 163-187.

30
para a formatação do ideário da sua política externa e consubstanciar uma pragmática
“geopolítica do prestígio” e uma emancipatória “identidade de projecto”112.

4.1. Da Funcionalização Político-Ideológica das Ambiguidades Identitárias


(1) A duplicidade identitária (europeidade versus africanidade) e a activação situacional das
múltiplas pertenças (identitárias, culturais, ideológicas, mundividências etc.) compõem o
núcleo nevrálgico da retórica discursiva da política externa cabo-verdiana, sobretudo,
se aludirmos às suas correspondências e ramificações em termos de estruturas político-
institucionais (UE, UA, CEDEAO, CPLP, ONU, MNA, OMC etc). Outrossim, o interesse
económico e a atracção ideológica, identitária e cultural que os grandes espaços geopolíticos
internacionais são sujeitos e objecto, aliado ao propósito “pragmático” e utilitarista da
política externa cabo-verdiana, incitam montagens muito diferenciadas da cartografia
identitária e de substratos socioculturais – não isentas de ambiguidades políticas,
dissonâncias discursivas e ambivalências práticas – para forjar uma ancoragem política
potenciadora do desenvolvimento e da sua sustentabilidade. Denota-se a persistência
de uma duplicidade identitária e de manejos situacionais das múltiplas pertenças,
assumidas ou obliteradas, em função de interesses economicistas conjunturais.
A atracção ideológica e identitária constitui um dos sete mecanismos processuais do
modelo neofuncionalista113 de Joseph Nye e a plataforma, por excelência, de promoção
do potencial integrador pelas possibilidades de emancipação política e de projecção
ideológica que lhe subjaz. A atracção a um centro político de referência dá-se, segundo
esta perspectiva de análise, pelo estabelecimento de um sentido de identidade que
representa uma força poderosa de apoio ao processo de integração regional. Joseph
Nye atribui particular saliência aos processos de construção identitária como veículo
privilegiado de emancipação política e de potenciação do “ímpeto integrador” no
concerto das nações pelo que “quanto mais forte for o sentimento de permanência e
maior o apelo à identidade, menor será a disposição dos grupos de oposição de atacar,
frontalmente, um determinado mecanismo de integração”114.
O discurso legitimador e a retórica discursiva mobilizada pela política externa cabo-
verdiana se atrelam estruturalmente aos constructos identitários, a substratos culturais
e se inscrevem, do nosso ponto vista, no âmbito da atracção ideológica, identitária e
cultural que as grandes potências internacionais são objecto e sujeitos: objecto porque o
universo multifacetado de valores, princípios, ideais e o progresso económico gera, per
si, sedução, atracção e processos de identificação política; sujeitos por serem actores

112 Ancorada no conceito de construção social da realidade (Berger & Luckmann, 1966), o teórico Manuel

Castells distingue três formas e origens distintas de construção de identidades: (i) identidade legitimadora,
introduzida pelas instituições dominantes da sociedade com o objectivo de expandir e racionalizar a sua
dominação sobre os demais actores sociais; (ii) identidade de resistência, forjada por actores que, situando-se
em posições subalternas, desvalorizadas e/ou estigmatizadas pela lógica de dominação, forjam
identidades contra-hegemónicas e edificam trincheiras de resistência sob a égide de princípios
diametralmente opostos aos preconizados pelas instituições dominantes; e, finalmente, a (iii) identidade de
projecto, quando os actores sociais recorrem a um determinado tipo de substrato cultural para construir
uma identidade emancipatória susceptível de redefinir a sua posição na sociedade e no sistema-mundo
contemporâneo, e de provocar transformações sistémicas em toda a estrutura social. Ver Manuel Castells
[1997] (2007), O Poder da Identidade. A Era da Informação: Economia, Sociedade e Cultura, Vol. II, 2ª Edição,
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
113 Robert Pfaltzgraff Jr., & James E. Dougherty (2003), Relações Internacionais – As Teorias em Confronto. Um

Estudo Detalhado, Lisboa: Gradiva, p. 654.


114 Joseph Nye (1971), Peace in Parts: Integration and Conflict in Regional Organization, Boston: Little, Brown,

p. 73.

31
dinâmicos na produção de um ideário político magnético e emancipador, por via das
suas instituições políticas, sua história intelectual e cultural, e seu “mercado de ideias”,
para utilizar a sugestiva expressão de Raymond Boudon115.
A construção de mecanismos que desencadeiam tais processos de atracção ideológica,
identitária e cultural em Cabo Verde é edificada e mediada pelos intelectuais orgânicos
e pelos construtores da prática diplomática, agora, na encruzilhada atlântica. Diversas
formas de exploração do “mercado das ideias” têm contribuído para acentuar, sob a
égide de constructos luso-tropicalistas, os processos de atracção ideológica e identitária
em direcção à Europa por oposição a África: (i) os movimentos literários evidenciam
processos retóricos e de construção identitária na intersticialidade entre a África e a
Europa; (ii) estratégias de subalternização da incidência de aspectos nitidamente
africanos na representação social da cultura cabo-verdiana, disputas e manejos da
cartografia identitária e uma preocupação exacerbada em conduzir o “povo das
ilhas” 116 a uma cultura de cunho marcadamente europeu 117 ; (iii) salvaguarda dos
valores da paz, democracia e respeito pelos direitos humanos como elementos
estruturantes da cultura estratégica nacional e de convergência com o ideário político
europeu; (iv) construção de uma política externa de afirmação de Cabo Verde no
mundo, que reivindica a sua condição de ponte e sua utilidade e responsabilidade
internacional no combate às ameaças transnacionais; (v) mobilização da imagem
externa de “um país com os pés em África mas a cabeça na Europa”; e, finalmente, (vi)
a ambição de ascender a um centro político e cultural de referência como a União
Europeia são alguns dos aspectos que reforçam essa atracção ideológica, identitária e
cultural.
No plano da prática diplomática e da retórica discursiva da política externa crioula, dá-
se, portanto, a transmutação e o deslocamento dos constructos luso-tropicalistas do
campo estético-literário para o campo da acção política. Assim como os intelectuais
pré-claridosos e claridosos assumiram, em tempos idos, o papel de autênticos baluartes
e mediadores do processo de construção identitária, hoje, a classe política e
diplomática resgata, actualiza e convoca, a partir das mesmas categorias elementares,
determinadas componentes culturais e étnicas, que permitem montagens muito
diferenciadas, para legitimar uma ancoragem política e identitária, tendo como
referencial a UE e o seu ideário político. A elite política e diplomática surge aqui como
a mediadora do processo de legitimação das ancoragens políticas de desenvolvimento.
Não se trata, de todo, de um discurso e argumentário político inovadores. Assume sim,
uma roupagem nova tributária do espírito dos tempos, que nos instiga a uma releitura,
coerente e devidamente contextualizada, dos paradigmas políticos dominantes e do
papel dos processos identitários na construção de uma ideia de comunidade política,
também ela imaginada e mediada pela elite política/intelectual, para usar a sugestiva
expressão do Benedict Anderson. Trata-se, à la limite, da construção ideológica de uma
retórica discursiva activada e posta ao serviço da política externa. O ideário da política
externa e a cultura estratégica cabo-verdiana apropria-se destes dispositivos retóricos
para forjar uma fórmula política dominante, emancipadora e legitimadora da Parceria
Especial. Denote-se, no entanto, que o discurso legitimador, a retórica pública e o

115 Raymond Boudon (2005), Os Intelectuais e o Liberalismo, Lisboa: Gradiva, p. 46.


116 Expressão cunhada para caracterizar o imaginário do povo das ilhas e o modo histórico de pensar do
homem cabo-verdiano, popularizada por um dos poemas (“Um Poema Diferente”, Onésimo Silveira) mais
sonantes da história do movimento literário cabo-verdiano.
117 José Maria Semedo & Maria R. Turano (1997), Cabo Verde: o Ciclo Ritual das Festividades da Tabanca, Praia:

Spleen Edições, p. 39

32
argumentário político que potenciou a subscrição de um acordo de Parceria Especial
com a UE assume uma configuração bipolar e comporta um universo multifacetado de
valências (hibridismos, paradoxos, ambivalências, contradições), porquanto tanto pode
ser forjado para reivindicar a proximidade do arquipélago à Europa, subalternizando
as raízes africanas, como poderá ser mobilizado para reivindicar a pertença africana118.
À luz das duas escalas analíticas supracitadas, e posto a enunciação dos pressupostos
teóricos da duplicidade identitária subjacente à retórica discursiva da política externa
cabo-verdiana, quais são, pois, as evidências empíricas decorrentes da prática política,
institucional e diplomática, tendo sempre em referência a imagética e o ideologema do
pragmatismo?
Hodiernamente, e no contexto de uma região politicamente instável, fustigada por
conflitos, e composta por Estados frágeis, falhados e “colapsados”, como é a africana, a
diplomacia cabo-verdiana destaca como princípios orientadores, além do estreitamento
das relações de boa vizinhança, a integração efectiva na sub-região oeste-africana, a
reactivação política dos CINCO (PALOP), bem como uma participação mais pró-activa
nas organizações regionais e sub-regionais 119 como sejam a União Africana, a
CEDEAO, o CILSS, a Francofonia etc. A intensificação dessas relações assume
particular saliência no ideário da política externa porquanto o arquipélago é subscritor
de vários tratados, convenções e instrumentos jurídicos internacionais, bilaterais e
multilaterais, com organizações da sua sub-região, o que lhe confere uma
responsabilidade acrescida no contexto político africano, apesar da instabilidade
política, da inoperância económica e do déficit institucional que lhe caracterizam.
No entanto, entre a retórica discursiva, o argumentário político e a prática institucional
vai uma distância colossal. A consolidação das relações com plataformas continentais
economicamente mais dinâmicas 120 tem conduzido, se atentarmos ao discurso
veiculado pelas elites (políticas e intelectuais), à subalternização das relações políticas,
e dos laços de integração económica, com as organizações regionais do sub-continente
africano. A prossecução de uma solução pragmática susceptível de assegurar a
sustentabilidade e a viabilidade do desenvolvimento do “povo das ilhas”, tem afastado
Cabo Verde das plataformas de cooperação perpetradas no âmbito das organizações da
sub-região africana, na medida em que o documento sobre as Grandes Opções do Plano121
“abandona a ideia da integração oeste-africana e orienta-se para a integração activa na
economia mundial como opção estratégica a seguir. Captar investimento directo

118 Suzano Costa (2007), “Cabo Verde e a Integração Europeia: A Construção Ideológica de um Espaço
Imaginário”, in Revista Travessias, nº. 8, Rio de Janeiro: MTC/CNPq, UCAM, pp. 111-150
119 A reivindicação de uma participação actuante de Cabo Verde nessas instâncias políticas multilaterais da

sub-região africana decorre do reconhecimento manifesto da sua importância e da necessidade de reforçar


a capacidade das estruturas políticas regionais na gestão e resolução eficaz dos problemas do continente
(mediação, prevenção e resolução de conflitos, supervisão política e eleitoral etc.). O envolvimento nessas
organizações regionais possibilita, ainda, a participação activa nas resoluções e cimeiras intercontinentais.
120 Sobre a problemática da inserção de Cabo Verde em regiões económicas mais dinâmicas (mormente a

União Europeia) como resposta pragmática à erosão progressiva e secular do valor estratégico dos Estados
insulares veja-se os trabalhos de João Estêvão (2001), “As Pequenas Economias Insulares e as Condições do
Desenvolvimento Económico”, in Cultura, Praia: Setembro, pp. 71-78; Idem (2004), “O Desenvolvimento de
Cabo Verde e os Modelos de Integração Económica Internacional”, in Cabo Verde – Um Caso Insular nas
Relações Norte-Sul, Revista Estratégia, n.º 20, IEEI, Cascais: Principia; Idem (2011), “A Economia Cabo-
verdiana desde a Independência: uma Transição Lenta”, in Luca Bussotti & Severino Ngoenha (Org.), Capo
Verde Dall’ Indipendenza a Oggi: Studi Post-Coloniali, Udine: Aviani & Aviani Editori, 2011, pp. 69-89.
121 As Grandes Opções do Plano constituem um documento de acção global que sistematiza uma visão de

conjunto, coerente e devidamente articulada, para o desenvolvimento sustentado de Cabo Verde através
da ideia de “inserção dinâmica no sistema económico mundial”. Vide, Conselho de Ministros (2001), As
Grandes Opções do Plano. Uma Agenda Estratégica, Praia: Conselho de Ministros.

33
estrangeiro e encontrar uma parceria estratégica para o arquipélago tornaram-se
prioridades”122.
A discrepância entre o propalado pelo discurso de chancelaria e a praxis institucional é
tanto maior porquanto, em bom rigor e à luz de uma concepção pragmática da política
externa, a maioria das organizações regionais africanas constitui meras importações
miméticas de soluções institucionais projectadas a partir de outras ecologias sociais e
culturais residindo, nesta particularidade, a matriz da sua ineficácia/ineficiência e a
sua inadequação à prática política autóctone. Organizações como a União Africana
(UA), a CEDEAO123 ou a própria CPLP124, não obstante o seu reconhecimento de jure
pelo sistema internacional padecem, de facto, de uma afirmação nos fora
internacionais 125 . No horizonte destas organizações estiveram sempre soluções
institucionais externas, que foram sendo progressivamente adaptadas e internalizadas
a partir do paradigma institucional dominante no mundo desenvolvido.
Os arranjos efectuados na engenharia institucional atestam paradigmaticamente o facto
supracitado. Senão vejamos. A então Organização da Unidade Africana (OUA), hoje
União Africana (UA), procedeu a uma alteração de nomenclatura, com referência à
União Europeia (UE), com o firme propósito de se tornar numa união essencialmente
política. A CEDEAO assim como a União Económica e Monetária Oeste-Africana
(UEMOA) constituem, igualmente, réplicas de soluções institucionais como a CEE ou a
União Económica e Monetária (UEM), mas com um franco défice de institucionalização
efectiva. O crescente colapso e a ineficácia das estratégias de cooperação pensadas ao
nível da sub-região africana, aliada à erosão progressiva e secular do valor estratégico
dos espaços insulares, têm contribuído para o progressivo afastamento do arquipélago,
do ponto de vista prático e discursivo, destas plataformas institucionais fruto da busca
incessante de uma solução pragmática pró-desenvolvimentista para o arquipélago.
Acresce aos constrangimentos institucionais e às dissonâncias identitárias supracitadas,
distensões e conflitos de interesses económicos (no quadro dos APE e da OMC, etc.) e
políticos (acordos bilaterais de mobilidade, de livre circulação de bens e pessoas126, etc.)

122 João Estêvão (2004), Op. Cit., p. 146.


123 A Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (Economic Community of West African
States ou ECOWAS, em inglês, e Communautée Economique dês États de l’Afrique Ocidentale, ou
CEDEAO, em francês) é uma organização de integração regional que engloba 15 países da África
Ocidental instituída pelo Tratado de Lagos em 1975 com o objectivo de promover o comércio regional, a
cooperação e o desenvolvimento na região. Pese embora a revisão do Tratado da CEDEAO em Julho de
1993, com o objectivo primordial de intensificar a integração económica e a cooperação política através do
estabelecimento de um parlamento oeste-africano, um conselho económico e social bem como um tribunal
susceptível de assegurar o cumprimento das deliberações da Comunidade, as estratégicas de cooperação
do Estado de Cabo Verde têm passado, fundamentalmente, pela ideia de integração activa na economia
mundial por via da captação do investimento directo estrangeiro e a consolidação de parcerias estratégicas
com regiões economicamente mais dinâmicas.
124 Para uma análise desconstrutiva do discurso legitimador da comunidade lusófona e do lugar da CPLP

no ideário da política externa cabo-verdiana, veja-se Odair Varela & Suzano Costa (2009), “Comunidade
dos Países de Língua Portuguesa (CPLP): Comunidade ‘Lusófona’ ou Fictícia?”, in Revista Tempo Exterior,
n.º 19, Vol. X (I), Xullo/Decembro, Espanha, pp. 23-46; Cláudio Furtado (2003), “Cabo Verde e a CPLP: a
Busca de uma Integração (Im) Possível”, in O Mundo em Português, Ano IV, n.º 45-47, pp. 21-23.
125 José Pina Delgado (2008), “A Vinculação de Cabo Verde ao Mecanismo de Segurança da CEDEAO”, in

Revista Direito & Cidadania, nº. 27, pp. 131-149.


126 Manuel Amante da Rosa (2008), “A Problemática da Livre Circulação de Pessoas e o Papel de Cabo

Verde na Segurança da Costa Ocidental e da Fronteira Sul da UE”, in Iva Cabral & Cláudio Furtado (Org.),
Os Estados-Nações e o Desafio da Integração Regional da África do Oeste: o caso de Cabo Verde, Praia: s.e., pp. 127-
144. Para uma dimensão económica da problemática José Luís Rocha (2008), “A Dimensão Económica da
Integração Regional: CEDEAO e o Caso de Cabo Verde”, in Iva Cabral & Cláudio Furtado (Org.), Op. Cit.,
pp. 113-126.

34
com as organizações da sub-região africana, para não referenciar a ocorrência, no país,
de tensões esquizofrénicas e manifestações (nada subtis!?) de racismo, discriminação e
xenofobia127, para com os cidadãos da África Ocidental, sonegadas e desculpabilizadas
pela obtusa retórica da “morabeza”.
Nesta óptica, as relações externas do arquipélago em relação à sub-região africana são
pautadas por uma ambivalência prática e discursiva que inviabiliza a identificação de
uma orientação política e institucional clara e inequívoca face a um continente a que
geograficamente está vinculado. Paradoxalmente, o discurso de chancelaria e a retórica
pública retoma, actualiza e readapta o seu argumentário político para com a sub-região
africana muito por causa do acordo de parceria especial com a União Europeia que, no
seu pilar sobre a integração regional128, devolve claramente o arquipélago ao seu espaço
de pertença original enfatizando, com efeito, a convergência de interesses entre a UE e
o arquipélago de Cabo Verde no combate às ameaças transnacionalmente organizadas
e promoção da segurança colectiva, em domínios como sejam a luta contra o terrorismo
internacional, o tráfico de seres humanos e de migrantes, o narcotráfico e tráfico ilegal
de armas, o branqueamento de capitais, e formas conexas de criminalidade económica
e financeira. Curiosamente, a parceria estratégica atesta que Cabo Verde só é “especial”
e “estratégico” para a Europa, inserido no contexto da sua sub-região, salientando, com
efeito, a complementaridade entre as dimensões securitária (UE) e desenvolvimentista
(Cabo Verde).
Ao contrário do veiculado no espaço público e mediático nacional de que o reforço das
relações com a UE implicaria uma antinomia (ou recusa) no relacionamento político
com as regiões da sub-região africana, a parceria especial postula tanto a incorporação
do arquipélago nas Regiões Ultraperiféricas da UE como o reforço da sua integração
regional na África Ocidental, particularmente na Comunidade Económica dos Estados
da África Ocidental (CEDEAO129). Em suma, por efeito contágio da parceria especial, o
discurso de chancelaria readapta, estrategicamente, seu argumentário político e assume
uma espécie de duplicidade discursiva, primeiro, de aproximação e intensificação das
relações com as RUP da UE e, segundo, ancorado na possibilidade de se conceder, ao
arquipélago, recursos ao abrigo dos Programas Indicativos Regionais (PIR) do FED
para a África Ocidental. E mais: do prisma da ambivalência prática e discursiva, se, por
um lado, o arquipélago reivindica, agora, instrumental e reactivamente (efeito colateral

127 O discurso legitimador comummente veiculado a propósito da representação social do homem cabo-
verdiano redunda, quase invariavelmente, em devaneios narcisistas que prestam tributo à singularidade
do “povo das ilhas”, à sua morabeza, à sua excepcionalidade na relação com o “outro” e a
particularidades várias na “arte do bem receber”. Do nosso ponto de vista a (i) “morabeza” cabo-verdiana
e a “arte do bem receber” que domina a retórica pública se aplica única e exclusivamente ao estrangeiro
cooperante, ao turista de fenotipo branco e aos indivíduos de condição socioeconómica abastada; (ii) os
imigrantes da sub-região africana, convencionalmente apelidados de “mandjakus”, além de
marginalizados, são objecto de tratamento diferenciado, de tonalidade racista, discriminatória e xenófoba,
estando subjacente ao termo “mandjaku” uma conotação marcadamente pejorativa e estigmatizante; (iii) a
retórica do “amigo” é veiculada, tão-somente, em contexto de interacção comercial, e encobre uma
suposta, e inexistente, relação de proximidade, movida, sobretudo, por interesses economicistas e de
deflação do preço de mercado dos produtos em transacção. Para a desconstrução desse mito fundador
veja-se, Suzano Costa (2010), “Racismo, Discriminação e Xenofobia em Cabo Verde: entre a Pseudo-
Morabeza, o Estigma do «Mandjaku» e a Retórica do «Amigo»”, in Jornal A Semana, [Em Linha] Acessível
em <www.asemana.sapo.cv> [versão impressa publicada na edição de 06.08.2010].
128 Suzano Costa (2009), Op. Cit., p. 255.
129 A propósito dos desafios que subjazem à integração regional do arquipélago na sua sub-região veja-se

José Luís Rocha (2010), “Cape Verde and ECOWAS: the Challenges of Regional Integration”, in Portuguese
Journal of International Affairs, n.º 4, Autunm/Winter; José Armando Duarte (2004), “As Relações Externas
de Cabo Verde na África Ocidental e os Quadros Regionais de Cooperação com a UE”, in Cabo Verde – Um
Caso Insular nas Relações Norte-Sul, Revista Estratégia, n.º 20, IEEI, Cascais: Principia, pp. 117-126.

35
da parceria estratégica), um maior protagonismo político nas instâncias políticas da sua
sub-região, mormente a sua participação em projectos bancáveis ou financiáveis, por
outro lado, mantem incólume os intentos de uma “integração específica e diferenciada”
ancorada na retórica da sua especificidade nos domínios da mobilidade, das migrações,
da livre circulação de bens e pessoas, do comércio e da política monetária, quando não
reivindica por um APE bilateral por oposição aos quadros regionais de cooperação da
CEDEAO com a UE.
Posto a funcionalização político-ideológica das supracitadas ambiguidades identitárias
e o manejo da sua inserção em múltiplos espaços de cooperação e integração regionais,
a lógica de actuação política continua a ser marcadamente desenvolvimentista, dirigida
para a captação e a alocação dos recursos, embora num contexto onde a mobilização
situacional das múltiplas pertenças identitárias e a ambivalência prática e discursiva é
encapotada pela retórica do “pragmatismo”.

4.2. Do Pragmatismo Utilitarista à Retórica da Singularidade: gerindo o Triângulo da


Vulnerabilidade Básica...
(2) Além dos manejos situacionais de idiomas identitários e constructos socioculturais,
com notórias reminiscências e implicações político-institucionais, uma outra categoria
argumentativa estruturante da retórica discursiva da política externa cabo-verdiana
congrega a mobilização combinada das retóricas do pragmatismo, da vulnerabilidade, da
singularidade e da especificidade por forma a incrementar o seu poder de barganha e de
negociação política nos palcos internacionais. O argumentário da (i) coerência dos
princípios e do pragmatismo da acção, que caracteriza indelevelmente a acção externa,
obedece, sobretudo, a propósitos desenvolvimentistas de diversificação das parcerias
estratégicas e de multiplicação das ancoragens políticas, radicando nas retóricas da boa
governação130, da boa gestão da coisa pública e do reforço da credibilidade externa o
seu recurso estratégico-emancipatório, por excelência. A coerência dos princípios deve-
se fundamentalmente à premência de conferir “viabilidade”131 e “sustentabilidade” ao
projecto cabo-verdiano – desígnio concomitantemente partilhado quer pelos líderes
históricos da independência nacional assim como pela elite pós-transição democrática,
cuja acção política foi pragmaticamente consentânea com a lógica desenvolvimentista e
com os desafios que se impunham à nação cabo-verdiana, não obstante as vicissitudes
e as circunstâncias adversas típicas dos contextos insulares. Já o pragmatismo da acção
traduz o essencial da sua argumentação na prossecução de uma resposta pragmática,
estrategicamente articulada e congruente com as principais demandas da sociedade
cabo-verdiana: a salvaguarda do bem-estar das populações, a prossecução de um
desenvolvimento sustentável e coerente, a aproximação e o reforço das relações
multilaterais com regiões económicas mais dinâmicas (a UE, os EUA, etc.). Aqui, o

130 Bruce Baker (2009), “Cape Verde: Marketing Good Governance”, in Africa Spectrum, Vol. 44, Nr. 2
(September-October, 1998), pp. 135-147; Bruce Baker & Roy May (2008), “Cape Verde: Is Marketing Good
Governance Enough?”, Stakeholders Report Following Research 2008, UK: Coventry University.
131 Henry Kissinger, académico, diplomata e um dos principais ideólogos da política externa norte-

americana entre 1968-1976, aquando dos movimentos independentistas, subscrevia a tese da inviabilidade
do Estado de Cabo Verde na medida em que, segundo ele, um país com PIB per capita inferior a 270
dólares dificilmente reuniria as condições para ser independente. A viabilização do projecto cabo-verdiano
constituiu uma realidade permanente e recorrente que formatou o imaginário do homem cabo-verdiano e
o modo histórico de pensar da sua classe dirigente. A vantagem comparativa (e competitiva) de Cabo
Verde reside, fundamentalmente, na forma competente como a sua elite política tem gerido a coisa pública,
conduzindo o país a estádios de desenvolvimento exemplares no continente, cifrando, actualmente, o PIB
per capita próximo dos 1200 USD.

36
pragmatismo e a orientação pró-desenvolvimentista da acção externa legitima,
sobrepõe-se e autojustifica qualquer veleidade de denúncia de indícios de
ambivalência prática e discursiva no habitus diplomático crioulo.
À semelhança do pragmatismo ideológico, desenvolvimentista e/ou utilitarista, a (ii)
retórica da vulnerabilidade estrutural afigura-se como um recurso estratégico da acção
pública governamental cabo-verdiana desde os primórdios da independência nacional
até a actualidade política. A estruturação histórica deste discurso legitimador e a sua
institucionalização política se insere na concepção de que a economia cabo-verdiana
sempre se assentou, historicamente, no primado do triângulo da vulnerabilidade básica132:
(a) vulnerabilidade económica (balança de pagamentos, finanças públicas e situação
alimentar, estruturalmente deficitários), (b) vulnerabilidade demográfica (pressão
demográfica sobre os recursos) e, por fim, uma (c) vulnerabilidade ecológica e geográfica
(características geo-climáticas, insularidade e estrutura arquipelágica com custos
elevados).
Se, por um lado, o discurso de chancelaria tem utilizado de forma pragmática, arguta e
proficiente a retórica da vulnerabilidade para alargar substancialmente a sua estrutura
de oportunidades políticas133 nos processos de negociação e alocar os recursos da ajuda
pública ao desenvolvimento no quadro de uma rede diversificada de dependências
externas, por outro lado, e do prisma da ambivalência prática, atrela o argumentário da
sua vulnerabilidade às ameaças securitárias provenientes da sua sub-região (contenção
da imigração ilegal e dos fluxos migratórios, narcotráfico e criminalidade organizada,
terrorismo e fundamentalismo islâmico), e não ao contrário, posicionando-se, assim, do
lado das potências ocidentais, aduzindo-lhe, não raras vezes, paradoxos identitários e
contradições de ordem socioeconómica (mobilidade, livre circulação de bens e pessoas
etc.), político-institucional, cultural (xenofobia) e religiosa (intolerância ecuménica).
Quanto às (iii) retóricas da singularidade e da especificidade, elas assumem contornos
concomitantemente identitários e de ordem estratégico-geopolíticos (insularidade), se
aludirmos ao impacto das coordenadas da identidade geográfica na conformação do
ideário da política externa das ilhas. No plano identitário, a plasticidade do argumento
da singularidade e da especificidade, e as suas consequentes dissonâncias discursivas,
se afiguram tributárias da persistência duma espécie de sociopatia e de esquizofrenia134
identitárias que ainda pulula o imaginário social crioulo, patrocina a fabricação política
de espaços imaginários de pertença135 e toda a produção retórica da inserção cultural
do arquipélago na intersticialidade entre a África, a Europa e o Atlântico. No plano da
prática político-institucional, a título ilustrativo, são de registar algumas perplexidades,
paradoxos e ambiguidades no que tange à justaposição e a um manejo institucional de
geometria variável das políticas migratórias136 preconizadas por Cabo Verde face à UE

132 Conselho de Ministros (2001), As Grandes Opções do Plano. Uma Agenda Estratégica…, p. 44.
133 Sidney Tarrow (1994), Power in Movement: Social Movements, Collective Action and Politics, Cambridge:
Cambridge University Press.
134 Cláudio Alves Furtado (2013), “Cabo Verde e a Integração Regional na África do Oeste: Dissonâncias

Discursivas e Identitárias”, in Cristina Montalvão Sarmento & Suzano Costa (Org.), Entre África e a Europa:
Nação, Estado e Democracia em Cabo Verde, Coimbra: Almedina [no prelo].
135 Victor Barros (2009), “Cabo Verde e a Imaginação dos Espaços de Pertença: Atlântico, África, Europa”,

in Maria Manuela Tavares Ribeiro (Coord.), (Re) pensar a Europa, Coimbra: Almedina.
136 Veja-se, com proveito, José Pina Delgado (2011), “La Regulación Internacional de los Flujos Migratorios

entre Cabo Verde y la Unión Europea (en especial hacia España)”, Revista de Derecho Migratorio y
Extranjería, Nr. 28, pp. 121-152; José Pina Delgado (2013), “O Cruzamento entre a Política Migratória Cabo-
verdiana para a Europa e a Política Migratória Cabo-verdiana para a África Ocidental: Racionalidade,
Incoerência ou Inevitabilidade de uma Democracia em Consolidação?”, in Cristina Montalvão Sarmento &
Suzano Costa (Org.), Op. Cit., Coimbra: Almedina; José Pina Delgado (2010), “Migration Management –

37
por oposição à CEDEAO. Deste situacionismo oportunista, ou melhor “pragmático”,
decorrem, outrossim, dissonâncias discursivas e ambiguidades identitárias quanto à
assumpção de uma pertença africana optando-se, antes, por uma formulação híbrida,
algures entre a obliteração e a exorcização da matriz identitária afro-negras137 e a ilusão
lírica138 de uma pertença à periferia da Europa.
O discurso legitimador que consubstancia a parceria especial entre Cabo Verde e a UE
retoma, actualiza e reforça, no seu preâmbulo, com recurso a fundamentos históricos,
culturais, políticos, ideológicos e identitários, a supracitada retórica da singularidade e
da especificidade cabo-verdiana cuja desconstrução analítica nos remete para múltiplas
subdimensões retórico-discursivas: (i) uma dimensão histórico-cultural tributária da
experiência euromundista europeia e assente na argumentação de que o arquipélago
de Cabo Verde comunga e partilha “laços históricos, humanos, religiosos, linguísticos e
culturais inextricáveis com a Europa”, e que “a sociedade cabo-verdiana é resultado da
fusão dos povos europeu e africano e do diálogo entre as respectivas culturas”139; (ii)
uma dimensão político-ideológica assaz ancorada nos instrumentos de condicionalidade
política da UE, na sua estratégia de cooperação externa com actores terceiros, na
partilha de valores sociopolíticos convergentes e na promoção dos valores da
democracia, paz, direitos humanos e boa governação. São mobilizados argumentos que
apregoam uma experiência histórica comum marcada por relações humanas estreitas e
pela “partilha de valores sociopolíticos fortes”, porquanto o “país defende valores
como a democracia, a defesa dos direitos humanos e a boa governação política e
económica, e as garantias oferecidas pelo Estado de direito em vigor”140; (iii) e por fim,
uma dimensão identitária subsidiária dos manejos da construção identitária mediados
pela elite intelectual e das suas estratégicas de funcionalização política e identitária, na
encruzilhada atlântica. Tais pressupostos de construção identitária concorrem para a
legitimação da vocação atlântica e de ponte entre mundos distintos: “Cabo Verde tem
uma vocação natural para servir de ponte entre dos continentes africano, europeu e
americano, o que constitui o elemento fundamental em torno do qual a Europa e Cabo
Verde partilham interesses e desafios comuns”141.
São, adicionalmente, aduzidos para a formatação desta retórica discursiva, os seguintes
argumentos: (i) da Europa Cabo Verde recebe e vai buscar inspiração para alinhar a
organização do Estado, a configuração do seu sistema político e os mecanismos de

Legal and Administrative Challenges for Small Emerging Economies”, in Workshop “Global Movements:
Migration Management and Its Discontents” – Conference and Workshop Booklet, Osnabrück, Institut für
Migrationforschung und Interkulturell Studien, Universität Osnabrück, 2010; José Pina Delgado (2013), “A
Fragile Emerging Economy Struggling to ‘Negociate’ the New World of Migration Management and its
Legal Obligations – A Preliminary Assessment of Cape Verde’s Recent Experience”, Osnabrück: Institute
of Migration Research [no prelo].
137 José Luís Hopffer Almada (2007), “Funcionalização Político-Ideológica e Síndromas de Orfandade nos

Discursos Identitários Cabo-verdianos”, in Jorge Carlos Fonseca (Org.), Cabo Verde. Três Décadas Depois,
Ano VIII, Número Especial, Revista Direito e Cidadania, Praia: D&C, p. 352; Victor Barros (2008), “As
‘Sombras’ da Claridade: entre o Discurso de Integração Regional e a Retórica Nacionalista”, in Luís Reis
Torgal, Fernando Tavares Pimenta & Julião Soares Sousa (Coord.), Comunidades Imaginadas – Nações e
Nacionalismos em África, Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, pp. 193-214.
138 Corsino Tolentino (2011), “West Africa – Knowledge as the Main Problem of Regional Integration”, in

Corsino Tolentino & Matthias Vogl (Eds.), Sustainable Regional Integration in West Africa, Bonn: Center for
European Integration Studies, Rheinische Friedrich-Wilhelms-Universität Bonn (Discussion Paper), pp. 17-
24.
139 Comissão das Comunidades Europeias (2007a), Comunicação da Comissão ao Conselho e Parlamento

Europeu sobre o Futuro das Relações entre a União Europeia e a República de Cabo Verde [SEC (2007) 1415],
Bruxelas: Comissão Europeia [Bruxelas, 24.10.2007, COM (2007) 641 Final], p. 2.
140 Idem, ibidem.
141 Idem, ibidem.

38
regulação da vida em sociedade; (ii) do espaço comunitário europeu provém cerca de
55% do total da ajuda pública ao desenvolvimento (APD) de que o país é beneficiário,
fundamental para a prossecução do desenvolvimento infra-estrutural e para a garantia
da estabilidade macroeconómica do arquipélago; (iii) Cabo Verde possui, ainda, uma
vasta comunidade imigrada (diaspórica) radicada no espaço comunitário europeu e no
mundo Ocidental, consubstanciando, assim, a tese de uma nação global e diasporizada;
e, por fim, o (iv) acordo de cooperação cambial entre Cabo Verde e Portugal142 que
estabelece a paridade cambial através da indexação do escudo cabo-verdiano ao euro.
No entanto, resulta notório que a retórica da singularidade e da especificidade forjada
pela prática diplomática, configura, per si, paradoxos e ambivalências porquanto a sua
inflexão teórica ou a mobilização situacional das mesmas categorias elementares desse
“sistema IKEA de construção identitária”143, tanto poderá ser mobilizado, em função
dos interesses estratégicos em confronto, para reivindicar uma proximidade cultural à
Europa, obliterando as raízes africanas, como poderá ser escorada para apregoar uma
pertença africana. Outrossim, a noção de pragmatismo utilitarista e a activação política
da retórica da especificidade, ancorada em constructos identitários, histórico-culturais
e político-ideológicos, são estrategicamente mobilizados pelo discurso legitimador da
política externa para multiplicar as dependências externas e gerir o estrutural triângulo
da vulnerabilidade básica.

4.3. Da Securitização das Ameaças Transnacionais


(3) A retórica discursiva da política externa mobiliza, ainda, como recurso estratégico-
emancipatório no sistema-mundo contemporâneo, a sua valência de segurança e defesa,
e a construção heterodoxa de uma dinâmica de poder estribada na sua (i) localização
geográfica privilegiada, (ii) na institucionalização política de mecanismos de segurança
cooperativa, salientando, com efeito, a sua (iii) vocação atlântica e a sua (iv) “utilidade
política internacional” no combate às ameaças transnacionais como sejam o terrorismo
global, a criminalidade transnacional organizada, o narcotráfico, a imigração ilegal, o
tráfico de seres humanos, o branqueamento de capitais e outras formas conexas de
criminalidade económica e financeira. Erige-se, assim, entre as elites dirigentes, uma
retórica discursiva e um discurso legitimador assente no paradigma securitário e numa
estrutura de oportunidades políticas que reforça e acentua a relevância estratégica do
arquipélago, como actor útil e confiável, no processo de securitização144 das ameaças
transnacionais.

142 Para uma visão sistematizada sobre o regime cambial cabo-verdiano e a diferencialidade cabo-verdiana
no contexto da globalização veja-se, Jorge Braga de Macedo & Luís Brites Pereira (2007), “A
Diferencialidade do Regime Cambial Cabo-verdiano”, in Cristina Montalvão Sarmento (Coord.),
Universidade em Rede – Actas do XVII Encontro da Associação das Universidades de Língua Portuguesa, Lisboa:
AULP. Para a credibilidade da sua moeda e os aspectos relacionados com a sua integração nos mercados
financeiros internacionais veja-se J. Braga de Macedo & L. Brites Pereira (2006), “The Credibility of Cabo
Verde’s Currency Peg”, FE-UNL Working Paper Series 494, Lisboa: Faculdade de Economia, Universidade
Nova de Lisboa.
143 De acordo com Anne-Marie Thiesse “o ‘sistema IKEA’ de construção das identidades, que permite

montagens muito diferentes a partir das mesmas categorias elementares, pertence agora ao domínio do
público mundial: a Europa exportou-o quando impôs às antigas colónias o seu modo de organização
política”. Anne-Marie Thiesse (2000), A Criação das Identidades Nacionais, Lisboa: Temas e Debates, colecção
Memórias do Mundo, p. 18.
144 Entende-se por securitização o processo de identificação do tema, sua politização, mediatização e

legitimação pública, pela sociedade civil, como sendo de segurança, exigindo da parte dos actores políticos
e dos Governos uma actuação concomitantemente imediata e eficaz à ameaça. O processo de securitização
ocorre quando, em contexto de emergência, são empreendidas medidas em resposta às ameaças. Tais

39
A natureza fragmentada das ameaças transnacionais, num mundo assaz globalizado e
interdependente, e a existência de objectivos globalmente partilhados como o combate
à criminalidade transnacionalmente organizada, recoloca Cabo Verde no mapa político
mundial e potencia a sua propalada “vocação atlântica” em torno dos desígnios da paz,
da segurança e estabilidade internacionais, como orientações estratégicas da sua acção
externa e diplomática. Se na transição da geopolítica da bipolaridade para a geopolítica
da multipolaridade o espaço atlântico perde a sua centralidade geoestratégica, com os
ataques terroristas de 11 de Setembro (2001) e a planetarização das ameaças, processa-
se a revalorização estratégica e geopolítica da sua plataforma continental como atesta a
inserção do país em arquitecturas securitárias e mecanismos de segurança colectiva e
cooperativa, como sejam a execução, no território cabo-verdiano, do Exercício Steadfast
Jaguar 2006145 pela Nato Response Force, a participação nos Exercícios FELINO (CPLP),
nos mecanismos de prevenção, gestão e resolução de conflitos e manutenção da paz e
segurança da CEDEAO146, no Exercício Africa Endeavor (liderado pelos EUA), entre
outros arranjos securitários de combate às ameaças transnacionais (a serem forjados no
quadro da parceria especial com a UE) que, ancorados na retórica da ameaça existencial,
convertem o arquipélago num agente secutitizador e no vértice mais a sul do triângulo
estratégico europeu.
Neste quadro político Cabo Verde negoceia, por um lado, a sua plataforma continental
e as potencialidades geoestratégicas que lhe subjaz em prol de um projecto político
manifestamente desenvolvimentista e, por outro lado, a União Europeia revaloriza, do
ponto de vista geopolítico, a localização geográfica privilegiada do arquipélago, na
encruzilhada atlântica, atendendo aos seus interesses estratégicos e securitários. O

medidas pressupõem um desvio aos padrões regulares do jogo político. Autores na esteira de Barry Buzan
advogam que a segurança é uma prática essencialmente auto-referencial e intersubjectiva, ou seja, em
termos objectivos, a ameaça pode efectivamente não existir. O actor securitizador, ao utilizar a retórica da
ameaça existencial, violando as regras e os procederes sob os quais se via constrangido, necessitará de um
feed-back satisfatório da audiência (opinião pública e a comunidade internacional) para que o processo seja
legitimado. Barry Buzan (1991), People State and Fear: An Agenda for International Security Studies in the Post-
Cold War Era, Colorado: Lynne Rienner; Barry Buzan, Ole Waever & Jaap de Wilde (1997), Security: A New
Framework for Analysis, Colorado: Lynne Rienner Publishers; Barry Buzan & Ole Weaver (2003), Regions and
Powers: The Structure of International Security, Cambridge: Cambridge University Press; Barry Buzan & Lene
Hensen (2009), The Evolution of International Security Studies, Cambridge: Cambridge University Press. Para
a nossa sub-região veja-se Maurino Évora (2012), “Que Regionalismo Securitário para a África Ocidental”,
in Iolanda Évora & Sónia Frias (Org.), In Progress – Seminário sobre Ciências Sociais e Desenvolvimento em
África, Lisboa: CEsA/ISEG-UTL. Para o processo de securitização do narcotráfico e o fenómeno da
criminalidade transnacional organizada em Cabo Verde veja-se, com proveito, Maurino Évora (2009), Cabo
Verde e o Crime Organizado na CEDEAO: a Cooperação Luso-Cabo-verdiana no Combate ao Narcotráfico, Lisboa:
FCSH-UNL, Tese de Mestrado em Relações Internacionais.
145 Nomenclatura adoptada pela NATO para apelidar um exercício cuja finalidade foi a de avaliar a

capacidade da Força de Reacção da NATO (NRF) fora das fronteiras da Aliança Atlântica, numa operação
de grande envergadura militar que incluiu forças terrestres, aéreas, marítimas e especiais. O Exercício
Steadfast Jaguar 2006 recolocou Cabo Verde no mapa mundial e confirmou a determinância da plataforma
continental cabo-verdiana na prossecução dos desígnios da paz, da segurança e da luta contra o terrorismo
internacional. Com a realização do referido Exercício pelos órgãos da Aliança Atlântica Cabo Verde “viu
exponencialmente aumentado o seu crédito político e valorizado, de facto, a sua posição geoestratégica (...)
a presença da NATO no nosso país não representa um abstracto princípio de solidariedade, mas antes
uma necessidade de defesa dessa Organização, que ganhou corpo com a realização do referido Exercício”.
Ver Onésimo Silveira (2006), “Cabo Verde e a NATO”, in A Semana, 7 de Julho de 2006, Ano XVI, nº. 767,
p. 8, [Em Linha] Acessível em <http://www.asemana.cv>; Odair Varela (2007), “A Encruzilhada da
Defesa e Segurança no Atlântico Médio: Cabo Verde entre a ‘Espada’ da NATO e a ‘Parede’ Africana”, in
Revista Direito & Cidadania, Ano VIII, n.º 25/26, Praia: D&C, pp. 219-248; Paulo Lopes Lourenço (2006),
“Cabo Verde ou da Necessidade de uma Nova Parceria”, in Nação & Defesa, n.º 114, Summer, pp. 7-14.
146 Para uma visão crítica e empiricamente fundamentada veja-se José Pina Delgado (2008), Op. Cit., pp.

131-149.

40
propósito dessa estratégia de inserção internacional é assegurar a inclusão do país na
ordem internacional e influenciar o figurino da acção externa das principais potências
internacionais, cujos interesses políticos e objectivos estratégicos sejam potencialmente
convergentes e consentâneos com os da nação cabo-verdiana (segurança, estabilidade,
paz, desenvolvimento sustentado). A retórica da valência securitária e o engajamento
do país no processo de securitização das ameaças são mobilizados pela política externa,
como contrapartida, num quadro estratégico-emancipatório de obtenção de recursos
financeiros e ajuda orçamental para fazer face aos desafios do desenvolvimento147.

4.4. Manejando a Geografia Política num Contexto Multipolar


(4) Subsidiariamente acoplada à valência da segurança e defesa, a retórica discursiva
da política externa cabo-verdiana e os construtores políticos da nação tem procurado,
desde os primórdios da independência, manejar a sua privilegiada pertença geográfica,
convertendo-a num instrumento político e de poder, por excelência, na sua relação com
as várias potências internacionais e instituições políticas multilaterais. As coordenadas
da identidade geográfica, a pertença a um espaço arquipelágico, atlântico, insular e
peri-africano, têm condicionado as opções estratégicas do arquipélago contribuindo,
assim, para a construção de uma representação social no cenário internacional de uma
nação aberta ao mundo/exterior, consubstanciada na reivindicação da sua vocação
atlântica e de ponte entre mundos.
Os princípios basilares da política externa cabo-verdiana sempre foram marcadamente
influenciados pela consciência das suas vulnerabilidades e limitações enquanto nação
insular e arquipelágica. As coordenadas da identidade geográfica foram, ab initio,
arregimentadas pela elite dirigente como um elemento de poder e formatador da sua
cultura política e do seu pensamento estratégico: i) por um lado, ela é estrategicamente
instrumentalizada para reivindicar inovadoras ancoragens políticas e manejar a sua
inserção em múltiplos cenários de cooperação multilateral, evidenciando, ii) por seu
turno, que o valor estratégico de um espaço é “devido mais à sua dimensão relacional
do que às suas características intrínsecas” 148 e que a sua importância depende
essencialmente do papel que este desempenha no quadro de uma rede inter-activa de
espaços interdependentes porquanto “o valor geoestratégico é algo que se inscreve no
transitório e no conjuntural. Ele não decorre da identidade geográfica, mas das relações
entre esta e a conjuntura”149.
A geografia política150 constitui um elemento de poder por excelência e explica o facto
de “um número considerável de pequenos e micro-Estados ter conseguido afirmar-se

147 Para os novos desafios de desenvolvimento e a problemática da produção da segurança humana veja-se

Gerson Sousa (2011), O Processo de Desenvolvimento Humano em Cabo Verde, Lisboa: ISCSP-UTL; Carlos
Carvalho (2011), A Produção de Segurança Humana em Cabo Verde, Lisboa: ISCSP-UTL.
148 António Correia e Silva (1995), Histórias de um Sahel Insular, Praia: Spleen Edições, p. 10.
149 Idem, p. 53-54.
150 Para a problemática da construção da realidade efectuada sobre os factores geográficos e a sua relação

com o poder destacam-se as posições clássicas de Alfred Thayer Mahan, Harold Mackinder, Nicholas
Spykman para o caso da geopolítica das potências marítimas, e Karl Haushofer e Friedrich Ratzel para o
caso das potências continentais. Fundamentais para compreensão do fenómeno em apreço são também as
explicações teóricas de Harold Sprout e Margaret Sprout sobre a importância das relações homem-meio
para a configuração de determinados padrões de comportamento político. Ver Harold Mackinder (1904),
“The Geographical Pivot of History”, in Geographical Journey, (April, 1904) p. 434; Harold Mackinder
(1943), “The Round World and the winning of the Peace”, in Foreign Affairs, Vol. 21, Nr. 4, (July, 1943), pp.
595-605; Nicholas Spykman (1994), The Geography of Peace, New York: Harcourt and Brace; Friedrich Ratzel
(1987), La Géographie Politique. Les Concepts Fondamentaux, Paris: Fayard; Karl Haushofer (1986), De la

41
internacionalmente, a despeito da sua pequenez e aparente fragilidade, através da
exploração inteligente das suas vantagens e da definição realista das suas expectativas.
Por vezes, a própria pequenez funciona como incentivo para procurar um papel no
complexo cenário internacional do mundo de hoje”151.
O argumento acima exposto atesta, na acepção do politólogo Philipe Moreau Defarges,
a forma arguta e pragmática como os factores espaciais152 afectam o fenómeno político
e a política, assim como o político se serve do espaço para legitimar suas prerrogativas
políticas. No caso de Cabo Verde, à instrumentalização política dessas coordenadas da
identidade geográfica, que até então constrangia, limitava e definia as suas estratégias
de emancipação política, esteve sempre subjacente uma preocupação exacerbada (nem
sempre bem-sucedida) em evitar antinomias, ambiguidades e paradoxos no repertório
discursivo, na práxis política e nas estratégias de integração nos diversos espaços de
cooperação regional e internacional.
Apesar das limitações e das adversidades exclusivas da pertença a um espaço insular,
arquipelágico e peri-africano, a elite política crioula procurou maximizar os benefícios
estratégicos e as vantagens comparativas da sua localização geográfica privilegiada, na
encruzilhada atlântica, instrumentalizando-a, e ampliando, paulatinamente, as suas
possibilidades de inserção e emancipação política no sistema mundial, configurando,
assim, o ideologema e a imagética de uma nação global, arquipelágica e diasporizada,
“cujo valor e importância contrastam com a sua reduzida dimensão física ou a
exiguidade das riquezas endógenas possuídas”153.

4.5. Cabo Verde: uma Nação Global, Arquipelágica e Diasporizada


(5) A diáspora constitui um dos vectores estruturantes da retórica discursiva da política
externa cabo-verdiana154 e, neste caso, o arquipélago tem procurado intensificar as suas
relações político-diplomáticas com contextos sociais155 nos quais a comunidade cabo-
verdiana se revele particularmente expressiva. Ao ideário da política externa esteve
sempre subjacente a defesa dos interesses das comunidades cabo-verdianas no exterior,
o reforço das relações político-diplomáticas com as sociedades de acolhimento e a

Géopolitique, Paris: Fayard; Harold Sprout & Margaret Sproud (1965), The Ecological Perspective on Human
Affairs with Special Reference to International Politics, Princeton, NJ: Princeton University Press.
151 Luís Fonseca (2000), “Por uma Política Externa Moderna e Eficaz: Perspectivas e Prioridades”, in Confer-

ência de Política Externa – Por uma Diplomacia Moderna e Eficiente, Praia: MNEC, p. 1 [inédito].
152 Sobre o peso da geografia nas relações externas e os mecanismos pelos quais os homens forjam a sua

consciência do espaço, convertendo-o, num instrumento de emancipação política veja-se Philippe Moreau
Defarges (2003), Introdução à Geopolítica, Lisboa: Gradiva, p. 13 e 15.
153 António Correia e Silva (2001), “Cabo Verde e a Geopolítica do Atlântico”, in Maria Emília Madeira

Santos (Coord.), História Geral de Cabo Verde, Volume II, 2ª Edição, Lisboa: IICT/ Praia: INIC, p. 2.
154 Para a relação entre a emigração e a política externa cabo-verdiana bem como a problemática das

principais ‘ilhas exteriores’ do arquipélago veja-se, Kátia Cardoso (2004), Diáspora: A (Décima) Primeira Ilha
de Cabo Verde. A Relação entre a Emigração e a Política Externa Cabo-verdiana, Lisboa: ISCTE, Tese de Mestrado
em Estudos Africanos. Desenvolvimento Social e Económico em África, Lisboa.
155 Este foi, contudo, um dos propósitos que presidiu o estabelecimento das primeiras representações

diplomáticas e consulares do arquipélago no mundo e o reforço do relacionamento político com algumas


das principais potências do mundo Ocidental. Pese embora a saliência da geografia como marca identitária
que determina e condiciona decisivamente a estratégia diplomática cabo-verdiana, a emigração e a
diáspora, constituem, também, dimensões tradicionalmente presentes no ideário da política externa e
mobilizados pela prática diplomática. Logo após a independência nacional elegeu-se como prioridade da
política externa cabo-verdiana a protecção dos interesses nacionais no estrangeiro por intermédio da
abertura de consulados de carreira nos países onde a concentração de emigrantes se fazia sentir com
alguma premência e expressividade.

42
garantia da sua participação efectiva na vida política, económica e cultural de Cabo
Verde156.
A relevância da diáspora na política externa é evidente na medida em que os principais
parceiros do desenvolvimento e doadores externos se situam em contextos políticos e
de recepção em que a comunidade cabo-verdiana se revela particularmente expressiva,
além das remessas dos emigrantes157 constituírem, a par da APD e do turismo, um dos
pilares do PIB e garante da estabilidade macroeconómica do arquipélago. O Estado de
Cabo Verde tem ajustado os princípios teóricos da sua política externa à dimensão e
relevância da sua comunidade diaspórica158, pese embora a colossal discrepância entre
o enunciado pela retórica discursiva e a práxis política, sobretudo, no que tange à
mobilização de políticas públicas estrategicamente direccionadas para a diáspora cabo-
verdiana no mundo. Na maioria dos casos o postulado pelo discurso de chancelaria,
pela retórica pública e nos documentos orientadores de política nem sempre redunda,
na mesma proporção, em acções concretas conducentes a uma participação mais pró-
activa da diáspora no processo de formulação e avaliação das políticas públicas.
Entre a retórica discursiva e a prática concreta vai uma distância descomunal. Não se
vislumbra até então a existência de uma política pública estruturante, estrategicamente
direccionada para a diáspora e susceptível de capitalizar, em toda a plenitude, as suas
potencialidades, o que contrasta, em larga medida, com o apregoado pela retórica
política, sobretudo, nos momentos eleitorais. Em bom rigor, o contributo efectivo da
diáspora no desenvolvimento do arquipélago tem-se circunscrito exclusivamente no (i)
envio das remessas económicas – garante da estabilidade macroeconómica – e (ii) na
participação nas eleições legislativas e presidenciais.
Trata-se, contudo, de uma concepção bastante redutora da participação da diáspora no
processo de desenvolvimento de Cabo Verde. A diáspora tem contribuído com pouco
mais do que o envio de divisas e investimentos avulsos, desconjuntados e despojados
de qualquer tipo de racionalidade económica. Por outro lado, o seu envolvimento no
processo de concepção e avaliação das políticas públicas, além de ser incipiente, limita-
se à participação circunstancial nas eleições legislativas e presidenciais. O retorno em
termos de políticas públicas para a diáspora tarda. Ainda assim, do ponto de vista da
retórica discursiva, o facto de o país ser sobejamente referenciado como nação global,

156 O contributo da diáspora em momentos políticos fundacionais da nação cabo-verdiana, como sejam a
luta pela independência nacional e a transição para a democracia multipartidária, salientam a sua
proficiência e vitalidade como instância formatadora da cultura política e da cultura estratégica nacional.
Com efeito, as negociações político-diplomáticas conducentes ao acordo de parceria especial entre Cabo
Verde e a UE procuraram contemplar, ainda, a condição diasporizada da nação cabo-verdiana e o facto de
grande parte do seu contingente populacional, massa crítica e capital humano radicar no espaço comuni-
tário europeu. A historiografia cabo-verdiana ilustra alguns exemplos de movimentos sociais, políticos e
cívicos que, não obstante se estruturarem na diáspora, exerceram um efeito mimético com implicações
notórias na trajectória e no desfecho de determinados acontecimentos políticos. Veja-se José Vicente Lopes
(1996), Cabo Verde: Os Bastidores da Independência, Praia: Spleen Edições, 1996; Luiz Silva (1995), “Le Rôle
des Communautés Émigrées dans la Transition Démocratiques aux Îles du Cap-Vert”, in Lusotopie:
Transitions Libérales en Afrique Lusophone, Paris: Éditions Karthala, pp. 315-322; Michel Lesourd (2005), “La
Diáspora Capverdienne et son Role dans l’Archipel du Cap-Vert. Développement, Politique, Identité”, in
Hommes & Migrations, Dossier “Les Migrants et la Démocratie dans les Pays D’Origine”, n.º 1256, Juillet-
Août, pp. 52-65.
157 Além dos aspectos puramente económicos são ainda aduzidos argumentos de natureza política para

salientar a relevância a diáspora para Cabo Verde, tais como a participação política dos emigrantes nas
eleições presidenciais e legislativas, bem como a possibilidade de se constituírem enquanto actores
políticos activos susceptíveis de condicionar o decurso dos eventos políticos nacionais.
158 Verifica-se, contudo, uma relação de proporcionalidade directa entre a intensificação do relacionamento

político com determinados contextos e o volume da ajuda externa daí proveniente.

43
diasporizada e arquipelágica 159 – representação social teoreticamente ancorada no
fenómeno migratório e nas coordenadas da sua identidade geográfica – constitui um
argumento potenciador da integração, se aludirmos ao “cosmopolitismo político”160 de
Kant, e não às fronteiras geográficas, como referência epistemológica da construção das
comunidades políticas.
Embora exista toda uma teorização sobre a erosão progressiva do valor estratégico dos
espaços insulares e concepções geográficas marcadamente determinísticas, advoga-se
que a insularidade constitui uma vantagem comparativa e competitiva de Cabo Verde,
susceptível de orientar a sua inserção estratégica no sistema internacional e no contexto
de uma geopolítica multipolar e interdependente. A insularidade e a sua localização
geográfica privilegiada, na encruzilhada atlântica entre a África, Europa e as Américas,
tem possibilitado a reivindicação, por parte de Cabo Verde, de múltiplas ancoragens
políticas e pertenças identitárias que se têm revelado fundamentais para a sua inserção
em múltiplos espaços de cooperação e integração regionais. Mutatis mutandis, é notório
que a insularidade, pela especificidade que lhe subjaz, acarreta desvantagens e imputa
vulnerabilidades estruturais. A retórica discursiva veiculada pela política externa de
que a sua economia se assenta no triângulo da vulnerabilidade básica (vulnerabilidade
económica, vulnerabilidade demográfica e vulnerabilidade ecológica e/ou geográfica),
além de configurar uma espécie de smart power, constitui o argumentário político, por
excelência, que tem presidido todo o processo de negociação internacional com Estados
terceiros e a busca de parcerias estratégicas para o desenvolvimento.
A consciência da sua vulnerabilidade estrutural, a inexistência de recursos naturais, a
insularidade, as múltiplas pertenças identitárias e a localização geográfica privilegiada,
na encruzilhada atlântica entre a África, a Europa e as Américas, formataram a noção
de que a diversificação das relações externas161, a boa governação e a geopolítica do

159 A insularidade e a inexistência de recursos naturais susceptíveis de inverter o percurso histórico do


homem cabo-verdiano contribuíram, indubitavelmente, para a intensificação das vagas de emigração para
o Mundo Ocidental (Europa, EUA) e para a formação de uma nação diasporizada dotada de uma singular
mundividência e portadora de padrões civilizacionais tributários dos paradigmas culturais dominantes
nas nações mais desenvolvidas. Suzano Costa (2011), “A Política Externa Cabo-verdiana na Encruzilhada
Atlântica: entre a África, a Europa e as Américas”, in Iolanda Évora & Sónia Frias (Org.), In Progress -
Seminário sobre Ciências Sociais e Desenvolvimento em África, Lisboa: CesA/ISEG-UTL, e-book, p. 253.
160 Immanuel Kant [1784] (1991), “Idea for a Universal History with a Cosmopolitan Purpose”, in H. S.

Reiss (Ed.), Kant, Political Writings, 2ª Ed., Cambridge: Cambridge University Press, pp. 41–53.
161 Para efeitos didáctico-propedêuticos, sobre o assunto, veja-se Renato Cardoso (1986), Cabo Verde. Opção

por uma Política de Paz, Praia: ICL; Ministério dos Negócios Estrangeiros (1991), Um País Pequeno num
Mundo em Transformação. Balanço de 15 Anos da Diplomacia Cabo-Verdiana (1975-1990), Praia: MNE; Anthony
Pereira (1995), “An Active Role for the Non-Alignment Movement – The Positive Role of the Cape Verde
Islands in Seeking Solutions in Southern Africa”, in Review of International Affairs, Vol. 1, Nr. 3; Camilo
Leitão da Graça (1998), “Dos Alicerces Históricos da Política Externa da República de Cabo Verde, in
Revista Direito & Cidadania, Ano II, n.º 4, pp. 151-166; Christopher Whann (1998), “The Political Economy of
Cape Verde’s Foreign Policy”, in African Journal, Vol. 17, pp. 40-50; José Maria Neves (2004), “As Relações
Externas de Cabo Verde: O Caso da UE”, in Revista Estratégia, n.º 20, IEEI, Cascais: Principia; Odair Varela
(2006), “Cabo Verde: Um Desafio Teórico-Paradigmático ou um Caso Singular?”, in Revista de Estudos
Cabo-verdianos, n.º 2, Praia: Edições UNICV, pp. 71-88; Manuel Amante da Rosa (2007), “Geoestratégia de
Cabo Verde no Atlântico Médio”, in Revista Direito & Cidadania, Ano VIII, n.º 25/26, Praia: D&C, pp. 163-
187; José Pina Delgado (2010), “Os Princípios Directores das Relações Internacionais na Constituição da
República de 1992 e a Política Externa Cabo-verdiana”, in Colóquio 18 anos de Estado Constitucional, de
Direito e Democrático, Praia: ISCJS; Suzano Costa (2010), “A Política Externa de Cabo Verde: Mudanças,
Rupturas e (Des) Continuidades”, in Conferência A Política Externa Cabo-verdiana e os Desafios do
Desenvolvimento, Lisboa: Faculdade de Direito de Lisboa; José Luís Rocha (2010), “Sobre a Política Externa
de Cabo Verde”, Acessível em <www.mirex.gov.cv>; António Gonçalves (2010), A Política Externa de Cabo
Verde de 1975 a 2008, Lisboa: Universidade Lusíada; Adilson Tavares (2010), A Importância da Política
Externa no Processo de Desenvolvimento: o caso Paradigmático de Cabo Verde, Lisboa: FCSH-UNL; Suzano Costa

44
prestígio constituem vectores estratégicos por excelência do desenvolvimento das ilhas,
adicionando, para o efeito, uma acção externa ancorada num discurso legitimador que
circunvaga entre uma orientação pragmática pró-desenvolvimentista e a construção
retórica de um ideário político que congrega, para efeitos emancipatórios, fundamentos
históricos, geopolíticos e estratégicos, e manejos situacionais de idiomas identitários e
constructos socioculturais.

5. Conclusão: Que Diplomacia Cabo-verdiana para o Séc. XXI? (Des) Construindo


uma Narrativa Emancipatória...
A inserção estratégica do arquipélago de Cabo Verde no contexto de uma geopolítica
multipolar e interdependente tem-se processado através de uma aposta sistemática na
diversificação das suas relações externas, na multiplicação das ancoragens políticas de
desenvolvimento, nas dinâmicas de cooperação bilateral e multilateral, na participação
pró-activa nas instituições políticas e económicas multilaterais, e nos mecanismos de
segurança cooperativa. Logo após à independência nacional, Cabo Verde, ao contrário
das congéneres africanas, optou pragmaticamente pela diversificação das suas relações
internacionais e pela multiplicação pragmática das suas dependências externas, assente
no multilateralismo, no ancoramento e numa prolífica retórica discursiva que permitiu
uma manipulação, sem precedentes, do instrumento diplomático por forma a ajustar os
seus interesses estratégicos às flutuações na arena internacional.
A política externa cabo-verdiana e a sua prática diplomática têm adaptado e ajustado
os seus interesses estratégicos e o seu smart power às janelas de oportunidades que vão
emergindo na arena política internacional, activando um discurso legitimador atrelado
na mobilização combinada dos recursos do hard power (potencialidades estratégico-
militares, valências de segurança e defesa, e utilidade política internacional no combate
às ameaças transnacionais) e do soft power162 (retórica discursiva proficiente e ancorada
no ideário da atracção ideológica, identitária e cultural). Aqui, o discurso legitimador
da política externa tem revelado níveis satisfatórios de inteligência contextual163 e uma
particular apetência para interpretar, no plano securitário, o decurso e a evolução dos
fenómenos políticos internacionais, justapondo, para efeitos emancipatórios, elementos
geoestratégico-securitários e uma oportunística retórica discursiva.
Ademais, a profícua funcionalização político-ideológica das ambiguidades identitárias,
o recurso à retórica do pragmatismo para contornar a sua estrutural vulnerabilidade e
autojustificar resquícios de ambivalência prática, o enfoque na valência de segurança e

(2011), “A Política Externa Cabo-verdiana e a União Europeia: Da Coerência dos Princípios ao


Pragmatismo da Acção”, in Luca Bussotti (Org.), Capo Verde Dall’ Indipendenza a Oggi: Studi Post-Coloniali,
Udine: Aviani & Aviani Editori, pp. 105-146; Suzano Costa (2011), “A Política Externa Cabo-verdiana na
Encruzilhada Atlântica: entre a África, a Europa e as Américas”, in Iolanda Évora & Sónia Frias (Org.), In
Progress - Seminário sobre Ciências Sociais e Desenvolvimento em África, Lisboa: CesA/ISEG-UTL, e-book, pp.
221-257; Suzano Costa (2012), “A Política Externa Cabo-Verdiana na Encruzilhada Atlântica: entre a África,
a Europa e as Américas”, in Mário Silva (Orgs.), Estudos Comemorativos do V Aniversário do Instituto Superior
de Ciências Jurídicas e Sociais, Praia: ISCJS, pp. 331-372; José da Graça (2012), “A Génese da Política Externa
Cabo-verdiana”, in Proelium, Série VII, n.º 1, pp. 211-229; Manuel Amante da Rosa (2012), “A Política
Externa no Constitucionalismo Cabo-verdiano”, Acessível em <www.mirex.gov.cv>. Para o tratamento
constitucional da política externa veja-se, ainda, a comunicação de José Pina Delgado (2012), “Cabo Verde:
20 Anos de Constituição – um Olhar Académico”, in Conferência Internacional 20 Anos da Constituição
Cabo-verdiana (1992-2012): Liberdade, Democracia e Desenvolvimento, Lisboa: Culturgest, 6 de Outubro de
2012, Acessível em <www.youtube.com>.
162 Joseph Nye (1990), Bound to Lead. The Changing Nature of American Power, New York: Basic Books; Joseph

Nye (2004), Soft Power: The Means to Success in World Politics, New York: Public Affairs Books.
163 Joseph Nye (2008), The Powers to Lead, New York: Oxford University Press.

45
defesa, a sua relevância estratégica no processo de securitização das ameaças globais e
em arranjos securitários cooperativos multilaterais, os manejos situacionais da pertença
geográfica e a construção duma representação social, em termos internacionais, assente
na imagética duma nação global, arquipelágica e diasporizada, têm contribuído para a
diversificação das relações externas do arquipélago e a sua inserção em múltiplos, e
quiçá contrastantes, espaços de cooperação e integração regionais.
Mau grado afigurar-se um país insular, arquipelágico e estruturalmente dependente do
exterior, a diplomacia cabo-verdiana sempre empreendeu um investimento político e
identitário acentuado nos grandes espaços geopolíticos mundiais. Assim, o discurso de
chancelaria preconiza como eixos fundamentais da política externa cabo-verdiana, uma
(i) diplomacia ao serviço do desenvolvimento na era da globalização, uma (ii) política
externa de afirmação de Cabo Verde no mundo164 e a (iii) afirmação das comunidades
cabo-verdianas no exterior, focalizando a sua actuação diplomática em três domínios: a
afirmação da nação global, a promoção da paz e da segurança global e regional, e, por
fim, a concretização de uma agenda económica desenvolvimentista. Para a prossecução
desse desiderato, a política externa cabo-verdiana define cinco estruturantes linhas de
força da sua diplomacia: (1) diplomacia política (promover a visibilidade, incrementar a
participação e reforçar a afirmação do arquipélago no mundo); (2) diplomacia económica
(favorecer o investimento directo estrangeiro, o comércio externo e cooperação técnica
e financeira tendo em vista o desenvolvimento e a prosperidade económica e social do
país); (3) diplomacia securitária (contribuir para estabilidade do arquipélago no contexto
mundial, regional e local, condição indispensável para o desenvolvimento sustentável);
(4) diplomacia pública e ao serviço das comunidades (participar na afirmação, regularização,
integração e desenvolvimento das comunidades cabo-verdianas no exterior); e, ainda, a
(5) diplomacia cultural (projecção mundial de Cabo Verde através da sua cultura)165.
No entanto, a crise económica internacional, os desafios centrífugos da globalização e
centrípetos da integração regional, as drásticas medidas de austeridade em curso de
implementação, o esgotamento da diplomacia da representação e o declínio sistemático
da ajuda externa, obrigam uma profunda readaptação dos modelos, métodos e práticas
da acção diplomática e pressupõem, na linha de Amartya Sen e de Joseph Schumpeter,
uma maior “imaginação criativa” ou “destruição criativa”166 por parte da elite dirigente
na estruturação da agenda de transformação económica do país, no alargamento das
alianças e parcerias de desenvolvimento (a outros mercados e contextos sociopolíticos)
e na edificação de uma narrativa indutora da sua inserção dinâmica no mundo global.

164 Ministério das Relações Exteriores, Acessível em <http://www.mirex.gov.cv>.


165 Conselho de Ministros (2009), Orgânica do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Cooperação e Comunidades,
Decreto-Lei 53/2009, Boletim Oficial, I Série, n.º 46, 2ª Feira, 7 de Dezembro de 2013, Praia: INCV, pp. 993-
1009. Veja-se, ainda, a última revisão da lei orgânica do MIREX que revoga e altera, entre outros aspectos,
a nomenclatura do MNECC, passando a adoptar a denominação MIREX, alteração essa inserida no quadro
de uma estratégia de desburocratização e desconcentração das estruturas do ministério, objectivando uma
maior eficácia, eficiência e unidade na condução e execução das relações externas. Em termos substanciais,
além de objectivar uma maior articulação interministerial na prossecução da política externa e da
racionalização das suas estruturas organizacionais, até então justapostas e com atribuições redundantes,
uma das mudanças estruturais introduzidas, já no Decreto-Lei 53/2009, e na linha da adequação da
política externa aos actuais desafios do desenvolvimento e da integração regional, foi a institucionalização
de um Secretariado Executivo da Parceria Especial Cabo Verde-UE, e da Célula Nacional da CEDEAO que
passam, agora, com Decreto-Lei 17/2013, a estar sob tutela da Direcção Nacional dos Assuntos Políticos e
Cooperação e da Direcção Geral dos Assuntos Globais, respectivamente, perdendo, pelo menos em termos
estatutários, a sua autonomia como estruturas matriciais do ministério. Ver Conselho de Ministros (2013),
Orgânica do Ministério das Relações Exteriores, Decreto-Lei 17/2013, Boletim Oficial, I Série, n.º 25, Quarta-
Feira, 15 de Maio de 2013, Praia: INCV, pp. 660-677.
166 Joseph Schumpeter [1942] (2003), Capitalism, Socialism and Democracy, London: Routledge.

46
Resulta claro que, atendendo à fragmentação das ameaças transnacionais, às demandas
da geopolítica da multipolaridade e à estrutura de oportunidades políticas disponível
no sistema internacional, a construção desta nova narrativa passa necessariamente por
um complexo estrutural dinâmico que articule, de forma profícua e interdependente,
as diplomacias económica, securitária e cultural167, não descurando, o investimento, até
então retoricamente proficiente, nas diplomacias política e pública, num cenário de re-
estruturação da geopolítica global que confere novas centralidades ao atlântico.
Em termos comparativos, de entre os vectores estratégicos da prática diplomática cabo-
verdiana, a diplomacia política e a pública constituem as dimensões mais consistentes e
proficientes da política externa cabo-verdiana. Apesar de se incorrer, não raras vezes,
em ambivalências práticas, a retórica discursiva forjada para promover a visibilidade e
potenciar a imagem externa do arquipélago no mundo tem-se afigurado convergente
com as demandas de um sistema internacional cada vez mais multipolar, globalizado e
interdependente. Por seu turno, vigora uma diplomacia económica incipiente, reactiva,
estruturalmente atrelada ao investimento directo externo, despojada de agressividade e
de uma racionalidade económica direccionada para sectores estratégicos como sejam o
comércio externo, o incremento das exportações, a internacionalização das empresas e
das marcas nacionais, a cooperação técnica e financeira e a nobilitação diferencial do
arquipélago como destino turístico de excelência; a diplomacia cultural168, pese embora
encerre potencialidades incomensuráveis, é praticamente inexistente, redundando, por
vezes, em acções avulsas, desconjuntadas e isentas de uma orientação estratégica169
indutora de desenvolvimento, de investimentos e de internacionalização da imagem de
Cabo Verde no mundo seja por via do turismo, das indústrias culturais ou da economia
criativa; por fim, a diplomacia securitária afigura-se, em termos prospectivos, o vector
estratégico de intersecção com o mundo global e a estrutura de oportunidades políticas
por excelência que potenciará a inserção dinâmica do país no contexto internacional, se
aludirmos aos interesses estratégico-securitários das principais potências mundiais.

167 Suzano Costa (2010), “A Política Externa Cabo-verdiana: Mudanças, Rupturas e (Des) Continuidades”,
Comunicação apresentada na Conferência A Política Externa Cabo-verdiana e os Desafios do Desenvolvimento,
Lisboa: Faculdade de Direito de Lisboa, 20 de Abril de 2010 [não publicado].
168 A cultura tem sido mobilizada por alguns Estados como porta-estandarte para a emancipação de outros

interesses estratégicos e de projecção externa (através de centros culturais, leitorados, bibliotecas etc.). O
recurso à diplomacia cultural como vertente da política externa é tradicionalmente empregue por países
com alguma riqueza e sustentabilidade económica. No caso de Cabo Verde, a inexistência de uma acção
pública governamental direccionada para uma verdadeira diplomacia cultural justifica-se, em parte, pelo
facto do país possuir parcos recursos, procurando canalizar os limitados recursos à sua disposição para
objectivos desenvolvimentistas considerados estratégicos. O recurso aos adidos culturais e de embaixada é
praticamente nulo, senão inexistente, se analisarmos com rigor e acuidade a acção externa cabo-verdiana, e
quando se vislumbram tímidas iniciativas de diplomacia cultural não passam de medidas avulsas e
desconjuntadas. Talvez o cenário seja semelhante ao português como atesta Armando Marques Guedes:
“uma política porventura má, seguramente mal gizada, decerto por via de regra avulsa, por via norma
inconsequente ou, pior, com muito óbvia nitidez, inadequada tanto às conjunturas externas em que
intervém como às finalidades que para si própria desenha. Mas tem-na tido”. Para a importância, sentido e
alcance estratégico da política cultural externa como instrumento de exercício do poder, ainda que brando,
veja-se, para o caso português, os vários trabalhos dispersamente publicados, por Armando Marques
Guedes (2007), “Continuidades e Transformações na Política Cultural Internacional do Estado Português,
1974-2001”, in Cristina Montalvão Sarmento (Coord.), Universidade em Rede – Actas do XVII Encontro da
Associação das Universidades de Língua Portuguesa, Lisboa: AULP, p. 201.
169 A diplomacia cultural constitui um dos eixos estratégicos da acção externa no qual não se vislumbram

investimentos concretos susceptíveis de converter a cultura numa fonte de riqueza e de projecção externa.
Apesar da cultura se afigurar como uma dimensão crucial da identidade cabo-verdiana e da sua afirmação
nos palcos internacionais, esta não tem sido suficientemente potenciada pela prática diplomática como um
instrumento de projecção do soft power nacional.

47
Que perfil para a diplomacia cabo-verdiana no século XXI? O colapso da diplomacia da
representação, a drástica redução da ajuda externa e o abrandamento do investimento
estrangeiro exigem uma estratégia global de redimensionamento das relações externas
e de diversificação da diplomacia cabo-verdiana, com centralidade nas diplomacias
económica, securitária e cultural, não negligenciando um investimento considerável na
área política da diplomacia como locus de viabilização e de incrementação dos ganhos
da acção externa.
Com a desintegração do sistema de blocos político-ideológicos e o fim da guerra fria, os
países industrializados foram transferindo a hierarquia das suas prioridades políticas
para o processo de integração regional, tentando, assim, num contexto de liberalização
dos mercados, serviços e fluxos financeiros, acomodar os seus interesses para a esfera
da diplomacia económica. Se no passado a prática diplomática centrava o seu enfoque
na protecção do interesse nacional, na cooperação política multilateral, na segurança e
nos processos de manutenção da paz, hodiernamente, se estrutura um círculo virtuoso
em que a economia e a diplomacia se alavancam mutuamente e as relações económicas
internacionais se intensificam à escala planetária. À luz dos constructos da diplomacia
económica, a imagem que uma nação, como Cabo Verde, projecta no exterior constitui
um factor de competitividade, indução de investimento externo, atractividade turística,
de transacção de bens e serviços, de internacionalização empresarial170, de assédio aos
mercados emergentes (e.g., BRIC’s, Angola, África do Sul), de acesso a financiamentos
e a projectos bancáveis, sobretudo, se interconectados com temáticas emergentes na
agenda internacional como sejam o ambiente, as alterações climáticas e os recursos
energéticos.
Assim, a diplomacia económica cabo-verdiana deverá ser estrategicamente gizada, no
quadro dos objectivos económicos globais de uma renovada política externa, com o fito
de potenciar o desenvolvimento e a prosperidade socioeconómica, afigurando-se como
força motriz da produção de externalidades positivas indutoras de investimento directo
externo, de comércio externo, da cooperação empresarial descentralizada e passíveis de
promover a internacionalização das empresas nacionais e melhorar as suas condições
de competitividade no mercado mundial. No entanto, atendendo ao, ainda, incipiente
tecido empresarial nacional e à sua débil capacidade de exportação, a diferencialidade
cabo-verdiana em competir no mundo global e em aceder a novos mercados, passará, a
curto prazo, igualmente, pela conjugação profícua e harmónica entre as diplomacias
económica e cultural, acoplando-as a uma estratégia de atracção turística, de promoção
e afirmação da marca/imagem de Cabo Verde no mundo171 e da sua reconversão como
plataforma de transacção e comercialização de bens e serviços.
A edificação desta narrativa diplomática deverá emprestar à economia e à cultura o seu
valor de atractividade, de internacionalização e de projecção externa. Urge proceder-se
no arquipélago à transição sistémica de uma diplomacia económica reactiva, esmaecida
e, por vezes, movida a “toque de caixa”, para uma diplomacia pró-activa, multifuncional
e agressiva face a espaços estáveis, seguros e economicamente dinâmicos, sem ignorar,
no entanto, as especificidades e as vulnerabilidades de uma economia arquipelágica e
estruturalmente dependente do exterior. Mau grado a retórica discursiva acentue, com
particular ênfase, a centralidade da cultura como vector da política externa, denota-se a
manifesta inexistência de políticas públicas estrategicamente direccionadas para a

Guy Carron de la Carriere (1998), La Diplomatie Économique – Le Diplomate et le Marche, Paris: Economica.
170

Jorge Lopes, Carlos Balsa & Alcina Nunes (2010), “É a Imagem Empresarial de Cabo Verde um Espelho
171

do seu Potencial de Desenvolvimento Económico e Social?”, in Economia Global & Gestão, Vol. 15, n.º 1,
(Abril, 2010), pp. 93-114.

48
capitalização da diplomacia cultural como instrumento de soft power e de projecção
internacional da nação crioula.
Sendo a cultura o substrato fundacional da matriz identitária crioula e o elemento
estruturante da afirmação da cabo-verdianidade, resulta paradoxal e contraproducente
a sua não conversão institucional numa orientação diplomática indutora de políticas
públicas e agregadora de valor e retorno económicos. Para tanto, se se perspectivar a
cultura como vector estratégico de desenvolvimento172 e da prática diplomática, poder-
se-á forjar, no quadro desta narrativa emancipatória, um universo pletórico de soluções
institucionais que vão desde a exploração de aspectos da tragédia histórica crioula até à
afirmação da nação global através da sua cultura. De entre os vectores estratégicos que
afrontam a institucionalização de uma acção cultural externa, que se requer dinâmica e
eficiente, destacam-se: (i) a criação de um organismo vocacionado para a promoção,
difusão e projecção externa da cultura cabo-verdiana – Instituto Eugénio Tavares173; (ii)
requalificar o sítio histórico da Cidade Velha e consolidar o seu estatuto de Património
Mundial da Humanidade, inserindo-a, por um lado, na rota internacional dos escravos
e, por outro, agregando-lhe as valências do turismo cultural, da economia criativa e da
cultura e da comercialização de bens e serviços conexos; (iii) internacionalizar a música
e o património imaterial cabo-verdiano apoiado na capitalização da notoriedade global
granjeada por Cesária Évora; (iv) a reconstrução duma narrativa, com valor económico
e de atractividade agregados, ancorado, inclusive, em prospectos da tragédia histórica
tais como: reconstrução da memória da escravatura174 e o papel de Cabo Verde (Ribeira
Grande de Santiago) na economia mercantil e escravocrata, a valorização histórica do
Campo de Concentração do Tarrafal e sua inserção no quadro dum ambicioso projecto
turístico de desconstrução do imaginário/circuito internacional dos regimes fascistas, e
de preservação da memória dos direitos humanos e das experiências da sua superação,
a reconstituição do percurso de inserção estratégica, ascensão, colapso e decadência do
Porto Grande de Mindelo - desde os primórdios da era industrial - nos ciclos históricos
da economia atlântica, potenciar a memorialização do holocausto da fome, as estiagens
e a emigração forçada (e.g., para as roças de São Tomé e Príncipe), seus efeitos sob a
trajectória histórica do povo das ilhas, assim como a reconstituição e a fixação turística
em torno do valor histórico-emancipatório das revoltas sociais (dos Engenhos, Ribeirão
Manuel, Achada Falcão, Monte Agarro, etc.), convertendo-os, no seu conjunto, em

172 Neste particular e com aplicabilidade ao domínio da diplomacia cultural, acompanha-se e subscreve-se

as reflexões coligidas por Filinto Elísio Correia e Silva (2011), “Cabo-verdianidade e sua Matricialidade
para a Construção do Futuro”, in Conferência Internacional Cabo Verde, 36 Anos Depois: Independência,
Democratização e Desenvolvimento, Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 17 de Dezembro de 2011,
Conferência alusiva à Comemoração do II Aniversário da Tertúlia Crioula.
173 Tem sido aventado, pelo Governo, a possibilidade de institucionalização de centros culturais, Casas de

Cabo Verde e um organismo destinado às questões da emigração e da projecção e disseminação da cultura


cabo-verdiana no mundo, a ser baptizada de Instituto Eugénio Tavares – patrono da cultura cabo-verdiana
–, à semelhança dos congéneres institutos Camões (Portugal), Cervantes (Espanha), Goethe (Alemanha),
Società Dante Alighieri (Itália), British Council (UK), Alliance Française (França). José Maria Neves (2011),
Discurso do Primeiro-Ministro José Maria Neves sobre o Dia da Cultura e das Comunidades, Praia: Governo de
Cabo Verde, 18 de Outubro de 2011, Acessível em <www.governo.cv>. Veja-se, ainda, a intervenção de
José Maria Neves na Sessão de Encerramento do V Congresso de Quadros Cabo-verdianos na Diáspora,
Mindelo, 21 de Abril de 2011.
174 A implementação desta estratégia de diplomacia cultural deverá ser forjada no quadro e em articulação

com o Projecto “A Rota dos Escravos”, instituído pela UNESCO em 1994 (Ouidah, Benin) que, além de
pretender reconstituir o roteiro cartográfico do tráfico transatlântico de escravos – que figura entre as mais
extremas violações dos direitos humanos da história mundial –, contempla, entres os seus objectivos
específicos, a elaboração de um guia conceptual e metodológico dirigido aos gestores culturais, com o fito
de facilitar a instalação do turismo de memória em torno da valorização histórica dos monumentos, sítios,
museus e lugares ligados ao tráfico negreiro e à escravidão.

49
factores indutores de economia, desenvolvimento e investimento, mas portador de um
olhar estratégico para o mercado global.
No plano da diplomacia securitária, o arquipélago deverá potenciar o seu estatuto de
referencial de paz, segurança e estabilidade política na sua sub-região, ancorado num
discurso legitimador que apregoe as suas potencialidades nos domínios da segurança e
defesa, e a sua “utilidade política internacional” no combate às ameaças transnacionais
(terrorismo global, criminalidade organizada, narcotráfico, imigração ilegal, tráfico de
seres humanos, branqueamento de capitais), cuja prevenção, gestão e resolução exigem
arquitecturas securitárias multilaterais e arranjos institucionais cooperativos. Ademais,
a fragmentação, imprevisibilidade e planetarização das ameaças transnacionais confere
uma nova centralidade ao espaço atlântico e recoloca Cabo Verde no centro nevrálgico
desta reconfiguração da geopolítica mundial. Parece-nos evidente que, num contexto
de crise económica e de definhamento sistémico da ajuda externa, a retórica discursiva
da política externa terá que se ajustar aos interesses estratégicos das grandes potências
internacionais, recentrando o seu discurso legitimador no processo de securitização das
ameaças globais175 como contrapartida para financiar o seu desenvolvimento endógeno
e alargar a sua estrutura de oportunidades de inserção no sistema internacional. Aliás,
como atesta os contornos da parceira especial e o recrudescimento das ameaças globais,
verifica-se um deslocamento das relações externas do pragmatismo desenvolvimentista
para o domínio securitário (mundial, regional e local), acarretando, para o arquipélago,
desafios de monta no que tange à convergência técnica e normativa e à adequação da
sua arquitectura institucional aos mecanismos securitários, regionais e globais, a serem
forjados no quadro dos múltiplos espaços de integração e cooperação multilateral em
que se encontra abrangido (NATO, UE, CEDEAO, UA, AFRICOM, CPLP, ONU, etc.).
A política externa cabo-verdiana e a sua prática diplomática têm mobilizado, como seu
discurso legitimador, as múltiplas pertenças identitárias, as retóricas do pragmatismo,
da vulnerabilidade, da especificidade e da singularidade, e manejos situacionais de
constructos socioculturais aliado a considerações de ordem geoestratégica e securitária,
ora para fundamentar a sua estrutural orientação pragmática pró-desenvolvimentista e
justificar a opção pela diversificação das suas relações externas, ora para se escapulir a
indícios de ambivalência prática e alargar a sua estrutura de oportunidades de inserção
dinâmica no concerto internacional. A configuração bipolar desta retórica discursiva da
política externa, ao permitirem inflexões teóricas e montagens bastante diferenciadas,
redundam, não raras vezes, em hibridismos, paradoxos, ambiguidades e ambivalências
práticas e discursivas mas também em múltiplas valências emancipatórias como atesta,
hodiernamente, uma particular apetência para se interpretar, compreender e antecipar
o sentido e a evolução dos fenómenos políticos internacionais no plano estratégico-
securitário, quiçá como contrapartida, a prazo, de financiamento do desenvolvimento.

175Segundo Armando Marques Guedes, “desde há muito que o amplo arquipélago de Cabo Verde, um
muito claro choke point, tem vindo efectivamente a ser encarado como ‘uma porta’, ‘um trinco’, ou ‘uma
fechadura’, ‘o gargalo’, que pode permitir, ou impedir, a ligação do Atlântico Norte ao Sul. Hoje é-o mais
porventura do que nunca. Outro tanto foi implicitamente reconhecido por Solomon Passy em 2005 – então
Ministro dos Negócios Estrangeiros da Bulgária, mais tarde, em 2009, candidato ao lugar de Secretário-
Geral da NATO – ao propor, formalmente, a inclusão pura e simples do Estado cabo-verdiano na Aliança
Atlântica; embora tal não tenha sido aceite – entre outros Estados-membros da organização, a Grécia opôs-
se-lhe – alguns destes, entre eles Portugal, coligaram-se de um modo semi-formal, numa ‘Declaração de
Lanzarote’, em 13 de Junho de 2009, celebrada com o intuito de esquissar um esboço de uma arquitectura
securitária soft (virada para a criminalidade organizada, a saúde e o ambiente)”. Ver Armando Marques
Guedes (2012), “Da Desregulação ao Recentramento no Atlântico Sul, e a Construção da «Lusofonia»”, in
JANUS.NET: E-journal of International Relations, Vol. 3, N.º 1, Primavera 2012, pp. 1-36.

50
Para citar este trabalho / To quote this paper:
[Costa, Suzano & Pinto, Jorge Nobre (2014), “A Política Externa Cabo-verdiana num
Mundo Multipolar: entre a Ambivalência Prática e a Retórica Discursiva?”, in Suzano
Costa, José Pina Delgado & Odair Varela (Org.), As Relações Externas de Cabo Verde,
Praia: ISCJS].

51

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