Você está na página 1de 15

JUSTIÇA ADMINISTRATIVA n.

° 63 • Maio/Junho 2007

O acto administrativo contratual

1. Introdução: a autonomia substantiva do con- que resulta para os contraentes que se compro-
trato administrativo. 2. Os poderes de confor- metem no domínio do direito privado (1), numa
mação da relação contratual: distinção entre relação portanto em que um factor (o factor ad-
acto administrativo e direito potestativo admi- ministrativo ou de interesse público) introduz
nistrativo. 3. O critério do acto administrativo uma modelação contratual específica.
contratual: o conteúdo do poder. 4. (cont.): o Não quer isto dizer que não haja lugar a um
critério da fonte de direito violada. 5. (cont.): o direito comum da contratação pública, aplicável
critério da fonte dos poderes. 6. Posição adop- a todos os contratos da Administração (ou de
tada. 7. A razão de ser da autoridade nos con- quem actua em sua substituição ou por sua de-
tratos administrativos. legação), que há efectivamente (2), nem, muito
menos, que o contrato administrativo nada deva ao
contrato de direito privado, à sua disciplina, porque
1. Introdução: a autonomia substantiva do lhe deve muito, quer em aspectos fundamentais
contrato administrativo (sentido e consequências básicas da consensua-
lidade, por exemplo), quer em aspectos ligados
Relativizadas que têm sido, por força de su- ao próprio desenrolar (normal ou patológico)
cessivas leis, a autonomia procedimental e con- da relação constituída, lançando-se mão, no que
tenciosa do contrato administrativo, este é um não estiver regulado de outra forma, do regime
momento importante para afirmar que o que geral do direito civil (ou do direito comercial).
interessa decisivamente à sua manutenção no con- Mas isso também não pode fazer esquecer que
texto das instituições do direito administrativo há, no contrato administrativo, especificidades
é a autonomia substantiva. Basta esta, mesmo que directamente decorrentes do facto de ele, além
desaparecessem as outras duas (ou seja, mesmo de definir, em obediência à lógica do pacto, os di-
que a lei sujeitasse todos os contratos da Admi- reitos e obrigações das partes, se traduzir simul-
nistração que interessem ao mercado à exigência taneamente num instrumento ou mecanismo
da sua atribuição concursada ou concorrencial e votado à prossecução de interesses públicos, ou
mesmo que a jurisdição administrativa se torne, seja, por nele estar também presente a lógica da
neste aspecto, puramente estatutária, deixando
para trás a sua origem especializada, em função
do direito aplicável), basta isso, dizia-se, para
(1) Assim, MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA/PEDRO GONÇAL-
lhe conferir, aproveitando as palavras de PEDRO
VES/PACHECO DE AMORIM, Código do Procedimento Adminis-
GONÇALVES, um lugar entre os demais institutos trativo Anotado, 1997, cit., p. 806.
do “direito administrativo do nosso tempo”. Em (2) Como tem sido sustentado, embora em termos que
termos sumários, essa autonomia substantiva do parecem não coincidentes, por MARIA JOÃO ESTORNINHO,
desde o Requiem pelo contrato administrativo, 1990, pp. 151 e
contrato administrativo revela-se no facto de ele
segs., e depois por ALEXANDRA LEITÃO, na sua tese A protec-
investir as partes numa relação jurídica diversa ção judicial dos terceiros nos contratos da Administração Públi-
(em princípio, estruturalmente diversa) daquela ca, 2002, pp. 173 e segs.

3
O acto administrativo contratual

função (3). Não nos referimos apenas, note-se, a Para compreender a sua razão e disciplina é
um conceito de interesse público difuso ou es- necessário, portanto, partir da premissa de que
tatutário, digamos assim, como quando se afir- o contrato administrativo se caracteriza por
ma que “a Administração prossegue sempre o dois traços fundamentais: é contrato e é admi-
interesse público”, porque aí esse interesse tem nistrativo. De um lado, está o acordo de vontades,
um conteúdo essencialmente (embora não ex- elemento constitutivo e conformador do con-
clusivamente) negativo, no sentido de não ser trato, que pressupõe e é modo de realização da
dado à Administração, em caso algum (seja no autonomia das partes (pública e privada). Do
âmbito de uma concessão de serviços públicos, outro, a relação contratual administrativa assim
seja na administração do seu património, seja na constituída, assente num esquema combinado
celebração de negócios auxiliares, etc.), guiar-se de direitos e obrigações e de prevalência fun-
por interesses particulares ou optar por soluções cional do interesse público. E é precisamente na
que não se mostrem adequadas ao seu dever dialéctica entre estas duas ideias, que acompa-
jurídico geral de boa administração. Referimo- nha toda a sua vida, que se encontra o carácter
-nos também e sobretudo a um interesse público peculiar da figura.
em sentido estrito, de conteúdo essencialmente Afirmar portanto a autonomia do contrato
positivo, sinónimo de função administrativa, en- administrativo não implica que este se encontre
quanto atribuição concretamente cometida por lei nos antípodas do contrato (da instituição con-
a uma entidade, por cuja satisfação esta ficará tratual que encontramos no Código Civil) ou
responsável perante a colectividade. que o respectivo regime jurídico represente (ou
Ora, como esse factor funcional não é, claro, deva representar) a antítese, ponto por ponto,
tido em conta na disciplina contratual comum, a do regime da relação contratual privada. Ou
sua consideração no direito administrativo con- seja, o contrato administrativo, para o ser, não
tratual determina, por força da lei ou de prin- implica a sujeição a uma regulação tão excepcio-
cípios jurídicos, a existência de uma regulação nal que, de contrato, passasse a contreto (5), mas
própria, que tenha justamente em vista a tutela apenas uma particularidade relativa, fundada
do interesse público implicado no objecto do contrato, na própria autonomia do direito administrativo
do “interesse público contratualizado”. Existem enquanto complexo de normas que disciplina a
e coexistem por isso, no regime do contrato ad- gestão da coisa pública.
ministrativo, duas lógicas distintas, que fundam Assim, sendo certo que a autonomia substan-
a sua razão de ser em considerações bem diver- tiva do contrato administrativo não prescinde de
sas, sem que, no entanto, uma exclua ou rejeite
a outra, antes se combinando e interagindo de
GONÇALVES, O contrato administrativo. Uma instituição do
forma peculiar – introduzindo uma delas, a ló-
direito administrativo do nosso tempo, 2003, pp. 31 e segs.,
gica da função (administrativa), variações ou sustentando porém, com razão, a p. 104, que a lógica da
perturbações (mais ou menos extensas) na lógica função só se impõe de “forma inequívoca” nos contratos
do pacto (da consensualidade) –, para dar vida com objecto público (poder público, domínio público, ser-
viço público).
a uma figura também ela peculiar: o contrato
(5) GARCÍA DE ENTERRÍA, considerando de pura logoma-
administrativo (4). quia a objecção de que o contrato administrativo repugna
ao conceito de contrato, fundado na mais rigorosa igual-
(3) Assim, LIBERATI, Consenso e funzione nei contratti di dade das partes, afirmava que, para afastar esse jogo de
diritto pubblico tra amministrazioni e privati, 1996, pp. 71, 156 palavras, mais valia designá-lo “contreto”, tal como DON
e 264. MIGUEL DE UNAMUMO chamou “nivola” a uma novela que
(4) Referindo-se também a estas duas lógicas na com- não cumpria os cânones clássicos, evitando assim even-
preensão da autonomia do contrato administrativo, PEDRO tuais críticas.

4
JUSTIÇA ADMINISTRATIVA n.° 63 • Maio/Junho 2007

uma análise do regime de cada um dos contratos Há aspectos (modo de produção de efeitos
administrativos, pensamos serem as seguintes, e a adstrição a um fim) em que as duas figuras
em geral, as consequências da lógica da função: se aparentam. Assim, se os direitos potestativos
i) aplicação primária ou preferencial de princí- constituem o poder jurídico de alguém, por acto
pios e regras de direito administrativo; ii) apli- seu, produzir determinados efeitos que inelu-
cação ponderada das normas de direito privado, tavelmente se impõem a outra pessoa, se são,
sujeitando-as a um teste prévio de não-incompa- por isso, poderes jurídicos ordenados à tutela
tibilidade (podendo resultar daí ou a recusa da imediata e ex se dos interesses do respectivo
sua aplicação ou a sua aplicação adaptada); iii) titular, o acto administrativo é fruto do poder
e o reconhecimento de posições de supremacia (público de autoridade) de definir o Direito apli-
jurídica ao contraente público, que, por ora, se cável ao caso concreto, determinando, por via
admite passar pela atribuição de poderes públi- imperativa, a criação, modificação ou extinção
cos ou de direitos potestativos (6). de estados ou de posições jurídicas (direitos ou
obrigações) de terceiros, sendo também por isso
um mecanismo de autotutela (declarativa) da
2. Os poderes de conformação da relação Administração (8).
contratual: distinção entre acto administrativo Por outro lado, apesar de se tratar de uma
e direito potestativo administrativo nota que costuma ser reportada apenas ao acto
administrativo, o direito potestativo de titula-
O que se pretende saber é justamente se essas ridade pública é igualmente um poder funcio-
posições de supremacia habilitam a Administra- nal. Não é essa, claro, a perspectiva civilística
ção à prática de actos administrativos ou se, pelo (porque aí o direito potestativo é expressão da
contrário, essas posições não traduzem senão autonomia da vontade do sujeito, não adstrito à
meros direitos potestativos, questão que temos prossecução de qualquer outro interesse senão
como uma das mais teoricamente complicadas daquele que o respectivo titular entenda como
que se suscitam no âmbito do contrato admi- mais apropriado ou desejado, tudo conforme as
nistrativo (7). suas conveniências: uma posse que é também li-
cere), mas, para nós, não há outra forma de qua-
(6) O problema geral da caracterização do poder públi-
lificar os direitos potestativos da Administração,
co de autoridade (e do acto administrativo) foi recente e
desenvolvidamente tratado por PEDRO GONÇALVES, Entida-
muito menos num contrato administrativo, por
des privadas com poderes públicos, 2005, pp. 590 e segs., e por isso que os fins da sua actividade nunca são
MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Anulação de actos administrativos e juridicamente livres ou indiferentes. Os seus
relações jurídicas emergentes, 2002, pp. 83 e segs. poderes, sobretudo quando veículos da acção
(7) Note-se que só por comodidade colocamos assim os
termos da controvérsia, porque acto administrativo e direi-
administrativa, são sempre funcionalmente or-
to potestativo não se situam no mesmo plano de análise. denados, não arbitrários (9).
Na verdade, o acto administrativo é o resultado do exercício De resto, tratando-se aqui de direitos de ti-
(momento dinâmico, acção) de uma potestade pública, o tularidade pública (sujeito activo), que têm co-
produto de uma habilitação normativa para o exercício de
um poder público de autoridade, enquanto o direito potes-
tativo é essa mesma potestade ou poder (momento estáti-
co), exercitável por acto negocial (ou por declaração negocial (8) Referindo-se também a esta proximidade, RUI MA-
unilateral). O acto administrativo situa-se, por isso, numa CHETE, Privilégio da execução prévia, DJAP, VI, 1994, p. 7, e
perspectiva lógica (e cronológica), num plano subsequen- VASCO PEREIRA DA SILVA, Em busca do acto administrativo per-
te ao do direito potestativo, donde a equação correcta seria dido, 1996, p. 558.
acto administrativo/declaração negocial ou poder público (9) Como tão bem explicou ROGÉRIO SOARES, em Interesse
de autoridade/direito potestativo. público, legalidade e mérito, 1955, pp. 121 e segs.

5
O acto administrativo contratual

mo objecto (em sentido impróprio) a situação tituladora” do acto administrativo, resultante


jurídico-administrativa do co-contratante ou o do “privilégio da formação unilateral do título
próprio contrato administrativo, que, por outro executivo”, é desconhecida dos actos privados,
lado, encontram o seu fundamento num título designadamente, dos actos negociais produto
público (lei, regulamento, contrato administra- do exercício de um direito potestativo, consti-
tivo: facto ou fonte) e cuja garantia se efectiva nos tuindo, por isso, uma qualidade inédita do acto
próprios tribunais administrativos, segundo administrativo (12).
meios processuais específicos, faz todo o senti- E isto mostra bem a diferente potência jurí-
do, uma vez que todos os elementos da respec- dico-formal de uma e outra figura. Na verda-
tiva relação jurídica são de direito público, que de, quando o efeito jurídico que interfere com
se fale em direitos potestativos administrativos, de o contrato (ou com a posição do co-contratante)
regulação (preferencialmente) administrativa. é determinado por acto administrativo, a Ad-
E que, portanto, o seu exercício dê lugar a actos ministração, em caso de inadimplemento da
negociais de direito administrativo ou a declarações medida decretada, passa imediatamente, se o
unilaterais administrativas. acto for exequível, para um procedimento ad-
No entanto, relevando (acto administrativo ministrativo de execução ou para um processo
e poder potestativo) de uma certa ideia de po- judicial executivo, consoante o que resultar da
der – (de conformação unilateral de posições lei (por exemplo, do art. 187.° do CPA). Se, pelo
jurídicas alheias) –, trata-se, em todo o caso, de contrário, a mutação for determinada por acto
um poder ou autoridade bem distintos, de na- negocial, então, em caso de incumprimento do
tureza e força muito diversas. Assim, enquanto que for aí estabelecido, não resta em princípio
o direito potestativo se esgota na capacidade de ao contratante público senão propor uma acção
introduzir uma modificação na esfera jurídica de declarativa, para obter do tribunal a condenação
outrem, já o poder (público de autoridade) de do co-contratante no comportamento devido.
que constitui manifestação o acto administrati- Circunstância, esta, que põe a nu uma se-
vo não se consome nessa virtualidade, vai mais gunda diferença, a saber, o ónus de impugnação
longe, porque aí a modificação é acompanhada judicial (13). Com efeito, quando o acto admi-
de uma especial sanção do ordenamento jurídi- nistrativo seja ilegal (e anulável), o contratante
co, a executividade. É que o acto administrativo tem o ónus de se dirigir a tribunal, em prazo
é, como se sabe, legalmente configurado como relativamente curto, com vista a obter a respec-
um título executivo, como um documento sufi- tiva sentença invalidatória, sob pena de, não o
ciente para invocar uma dada situação jurídica fazendo, se formar “caso decidido”, estabilizan-
e dotado de aptidão para, por si só, fundar uma do-se a situação e impedindo-se-lhe de obter
actividade executiva, seja ela administrativa ou
judicial (10) (11). Ora, esta sua força ou “função
(12) A lei, é verdade, atribui a determinados documen-
tos particulares essa característica executiva, mas, além de
essa execução passar sempre pelos tribunais (ao contrário
(10) ALBERTO XAVIER, Conceito e natureza do acto tributário, da executividade do acto administrativo, que em muitos
1972, p. 536. casos envolve a sua executoriedade), há-de tratar-se aí de
(11) No primeiro caso, dito de executoriedade, há um documentos “assinados pelo devedor” (art. 46.° do CPC),
“poder substancial de execução”; no segundo, há um direito enquanto o acto administrativo só vai assinado pelo “cre-
processual, assistindo à Administração o poder de exigir dor”, digamos assim, que elabora o seu próprio título exe-
que o tribunal, sem necessidade de processo declarativo cutivo.
prévio, execute os direitos unilateralmente definidos, se- (13) Referida também por PEDRO GONÇALVES, Entidades
gundo um processo. Privadas, p. 646.

6
JUSTIÇA ADMINISTRATIVA n.° 63 • Maio/Junho 2007

a reintegração da legalidade contratual ou da resultará tamquam non essent, absolutamente ine-


sua esfera jurídica. Se, ao invés, se tratar de um ficaz na esfera jurídica do contratante, que pode
mero acto negocial, o ónus (agora, de acção) continuar a agir como se acto algum tivesse sido
pertencerá, salvo se as circunstâncias de facto praticado (15).
permitirem outra coisa, à Administração, não à Isto para não falar do respectivo regime jurí-
sua contraparte (14). dico, onde as diferenças são, como se sabe, mui-
Outra diferença relevante, que opera no pla- tas e relevantes: a decisão administrativa é fun-
no da ilegalidade do exercício do poder, consiste no damentada e, em regra, produto de um procedimento
facto de, ao contrário do acto administrativo, (a que se opõe a inexistência de regras prévias e
que, mesmo sendo anulável (que é a regra da hetero-determinadas quanto ao modo do exer-
sanção da ilegalidade), se mantém vinculativo, cício do direito potestativo administrativo, que
autoritário, eficaz (no que toca à produção dos carecem sempre de previsão legal), no âmbito
seus efeitos típicos) e exequível, os efeitos jurí- do qual, aliás, se reconhecem várias garantias
dicos associados ao acto negocial, salvo regime específicas do interessado (direito à informação,
em contrário, só se produzem, e aí vinculam, se direito de consulta do processo e passagem de
e na medida em que estejam verificados os pres- certidões, direito de audiência, etc.).
supostos de facto e de direito de que depende a
legitimidade do seu exercício (uma rescisão do
contrato por grave incumprimento só vincula, 3. O critério do acto administrativo contra-
melhor, só existe juridicamente se tiver havido, tual: o conteúdo do poder
de facto, grave incumprimento). Se, pelo con-
trário, o direito potestativo é exercido fora dos Havendo nesta matéria um século de dou-
respectivos pressupostos, a declaração unilateral trina e de jurisprudência (com as suas fórmu-
las, tão habituais, da “cláusula de sujeição”, da
“submissão do particular à disciplina do inte-
(14) É verdade que em alguns casos de exercício de di-
reitos potestativos á a contraparte que ficará na posição de
resse público” e da “prevalência da reserva de
ter de ir a tribunal contestar a legalidade do acto negocial, interesse público”), que nos permite ir dando
mas ou isso resulta do regime legal instituído (que é ex- por adquirido que o contrato administrativo é,
cepcional) ou então resulta de uma circunstância exterior à
de facto, um domínio da actividade da Admi-
própria força do direito potestativo em causa, de algo que
não lhe é juridicamente inerente, dependendo antes da con-
nistração (potencialmente) aberto à presença de
creta situação de facto em que se encontram as partes, a sa- poderes de autoridade (16), o maior problema
ber, de o autor do acto negocial estar ou não em condições está em saber quando é que ela é titular de po-
de, por si só, satisfazer o seu direito, materializando-o. deres desses, ou seja, que critério nos permite
Imagine-se que a Administração, por acto sanciona-
identificar, de entre a gama de prerrogativas ou
tório negocial, retém verbas que devia entregar ao outro
contraente. Aqui, será em princípio este que, por força das faculdades que lhe são reconhecidas no âmbito
circunstâncias, tem o ónus de contestar a “legalidade” da
sanção aplicada. No entanto, se a execução imediata do
acto negocial não se encontrar na disponibilidade do titular (15) Assim, GUIDO GRECO, I contratti dell’amministrazione
do direito, da Administração, é esta que, no caso de o co- tra diritto pubblico e privato, 1986, pp. 109 e 110.
-contratante não cumprir, não adequar a sua conduta ao (16) Não significa isto que a autoridade se manifeste
efeito jurídico determinado, tem de accionar os tribunais, com igual intensidade em todos eles, pois, se existem uns
instaurando o competente processo judicial (declarativo), predispostos à presença de poderes públicos (os contratos
sob pena de o acto negocial não produzir efeitos práticos de colaboração, primeiro que todos, mas também, em ní-
– como sucede no caso do acto de devolução ou restituição vel aproximado, os contratos de atribuição subordinada),
de verbas ou do acto de modificação unilateral das presta- outros, nem tanto, podendo dar-se o caso, até, de as partes
ções (pressupondo que se trata de actos negociais). se relacionarem num puro esquema paritário.

7
O acto administrativo contratual

de um contrato administrativo, a existência de em cláusula de direito privado. Sendo errónea a


um poder habilitante da prática de um acto ad- premissa, também o é a conclusão, claro, de que,
ministrativo (17). como a autonomia privada pode, ela própria,
Afastada que está, por ser contrária ao nos- conformar e “construir” situações de suprema-
so sistema actual de contrato administrativo, a cia jurídica idênticas (do ponto de vista do seu
hipótese de se proceder à qualificação jurídica conteúdo verbal), então, no direito administra-
unitária das declarações contratuais da Admi- tivo contratual, não há poder público. Por nós,
nistração (como propunha GUIDO GRECCO), um portanto, rescindir, sancionar, modificar, alterar,
primeiro critério é o do conteúdo das posições de resolver, dirigir, fiscalizar, inspeccionar, autori-
supremacia jurídica de que é titular a Adminis- zar, validar, aprovar, etc., não são em si mesmos
tração no seio do contrato, nos termos do qual se- “poderes exorbitantes”, não revelam, pelo me-
riam meros direitos potestativos os poderes que nos quando analisados apenas pelo seu simples
encontrassem (ou pudessem encontrar) corres- enunciado verbal, a pertinência a uma ou outra
pondente ou similar no domínio dos contratos figura, ao acto administrativo ou ao acto unila-
privados e, ao invés, habilitações para a prática teral negocial. Da mesma forma que o dever de
de actos administrativos (ou poderes públicos) requerer ou de solicitar, etc., não configuram, em
aqueles que não pudessem encontrar homólogo si mesmos, “deveres exorbitantes”, correlatos
nessas mesmas relações contratuais. necessários de um poder público de autorida-
Historicamente relevante entre nós (18) e po- de (expresso pelos respectivos e subsequentes
dendo ter, em casos muito contados, algum in- acto de deferimento ou de indeferimento). O
teresse (pense-se, por exemplo, na rescisão por critério, desde que adaptado, ainda poderia ter
motivos de interesse público e, em certa pers- algum relevo em hipóteses em que a lei priva-
pectiva, na modificação unilateral), pensamos da proibisse ou não previsse o exercício de um
que este critério é de recusar. É que praticamente determinado poder e a lei administrativa, na
todas as fattispecie de actos administrativos con- regulação do contrato homólogo celebrado pela
tratuais são reproduzíveis ao abrigo da autono- Administração, lhe reconhecesse tal poder, mas
mia privada, em contratos de direito comum (19), seria sempre um relevo limitado (aos contratos
não sendo por isso adequado pretender que o com objecto passível de contrato de direito pri-
carácter público ou potestativo dos poderes de vado) e, em nossa opinião, não mais do que um
supremacia jurídica se decida em função da sua indício da existência de um poder público.
insusceptibilidade ou não de figurar licitamente

4. (cont.): o critério da fonte de direito vio-


(17) Apesar de, na versão que conhecemos, haver indi-
lada
cações muito valiosas para o caso, não se pense que este
problema ficará completamente resolvido com a entrada
em vigor do novo Código dos Contratos Públicos, entre Um outro critério possível é o da fonte de di-
outras razões, porque ele surge sobretudo quando há lei reito violada, que, como o próprio nome indica,
especial reguladora de um determinado (tipo de) contrato,
apela à natureza do dever posto em xeque pe-
e leis destas, como se sabe, há muitas. Para se ter uma ideia
da legislação sectorial sobre contratos administrativos, ver lo co-contratante da Administração (20). Assim,
MARCELO REBELO DE SOUSA/ANDRÉ SALGADO DE MATOS, Direi-
to Administrativo Geral, II, 2007, pp. 304 e segs.
(18) Por importação da doutrina francesa, quando se re- (20) Que às vezes parece encontrar-se implícito na nos-
porta ao critério das cláusulas juridicamente impossíveis, sa jurisprudência: cf. Acs. do STA de 2/5/2001, P. 44 269,
ilícitas ou inabituais num contrato privado. de 2/5/2002, P. 593/02, de 3/6/2003, P. 295/03, e de
(19) Neste sentido, GUIDO GREGO, I contratti …, p. 55. 29/4/2003, P. 1498/02.

8
JUSTIÇA ADMINISTRATIVA n.° 63 • Maio/Junho 2007

quando o acto do contratante público asenta no apenas para a natureza do “preceito” atributivo
incumprimento, pelo co-contratante, de obriga- do poder e para o seu regime. Imagine-se, por
ções legais ou regulamentares atinentes ao con- exemplo, que a lei, prevendo a possibilidade de
trato, teríamos um acto administrativo. Quando, aplicação de sanções contratuais, que identifica,
pelo contrário, se trata do incumprimento de descreve parte do regime do contrato, deixando
obrigações de natureza contratual, então pode- depois para este a disciplina da restante relação
remos ter (dependendo do caso) um acto nego- jurídica. Será que, em casos destes, a natureza
cial, uma declaração administrativa unilateral, do poder sancionatório (previsto na lei) deve
uma interpelação, um acto opinativo, etc., mas variar em função da natureza da obrigação vio-
não um acto administrativo. lada ou deve corresponder-lhe uma qualificação
O presente critério tem a seu favor o facto de unitária? E se, porventura, o acto sancionatório
assentar numa distinção importante no contexto se fundar simultaneamente na violação de obri-
das relações contratuais administrativas, a saber, gações legais e contratuais?
a distinção entre disciplina legal e disciplina con- Mais importante ainda é o facto de o critério
formada pela vontade das partes, atribuindo a da fonte de direito violada não se adequar ao
esta relevo puramente contratual (por isso que regime do CPA. É que, como se verá adiante, o
o acto da Administração que respeite ao seu in- poder de aplicar sanções no contrato administra-
cumprimento comungará da mesma natureza, tivo é um poder de fonte legal, assente na alínea
ou seja, será um acto negocial) e à primeira rele- e) do respectivo art. 180.°, só sendo contratual,
vo normativo (por isso que o acto que respeite ou aí, para preenchimento da respectiva remissão,
ateste o seu incumprimento terá, como sucede a indicação da espécie de sanção aplicável (por
em geral no ordenamento extracontratual, diga- referência genérica ou especificada a um ilícito
mos assim, a natureza de acto administrativo). contratual). Dito de outro modo: mesmo que
Não cremos porém que seja ele o mais adequa- prevista no contrato, a sanção aplicável ao seu
do ao problema. Desde logo, porque só serve à abrigo funda-se na autoridade conferida por
qualificação dos poderes da Administração em aquele preceito de lei, não propriamente na sua
matéria de incumprimento ou violação das obri- previsão contratual. E se é assim, então a nature-
gações do seu co-contratante (é dizer, ao poder za da sanção deve ser procurada no plano legal,
sancionatório, incluindo a rescisão-sanção e, não no plano contratual.
eventualmente, ao poder fiscalizador), quando
a questão aqui em causa é bem mais ampla (co-
mo qualificar, por exemplo, o poder de rescisão 5. (cont.): o critério da fonte dos poderes
por motivos de interesse público ou o poder de
modificação unilateral, segundo esse critério?). Um terceiro critério possível para identificar
Acresce que, em nossa opinião, o critério em o acto administrativo contratual remete para a
apreço nem serve aos casos ou poderes a que se fonte da atribuição dos poderes ou simplesmente
aplica, por envolver, em certa medida, uma in- fonte dos poderes (21). De acordo com este critério,
versão da lógica das coisas e de, por causa disso, quando haja atribuição legal de um poder de su-
não conseguir explicar a mutação da natureza premacia jurídica à Administração, temos aí uma
do acto em situações que, tudo indica, pedem norma de competência, cujo exercício se traduz
solução idêntica. Com efeito, este critério parte
da natureza da obrigação violada para daí re-
(21) Aplicado por alguma jurisprudência, por exemplo,
tirar a natureza do poder, quando o problema Acs. do STA de 14/2/1974, P. 8996, de 2/5/2002, P. 593/02,
deve ser analisado autonomamente, olhando de 4/10/2001, P. 47 334, e de 31/10/1989, P. 25 984.

9
O acto administrativo contratual

na prática de um acto administrativo; diversa- em causa terá natureza negocial ou potestativa,


mente, quando se trata da atribuição contratual afastando-se assim a possibilidade de as cláu-
de um poder, isso equivale quanto muito a um sulas contratuais servirem de fonte autónoma
direito potestativo. (sem habilitação legal) de actos administrativos
Trata-se, desde logo, de um critério que aten- contratuais, ou seja, afastando a operatividade
de, e agora na perspectiva correcta, à tal distin- das chamadas cláusulas contratuais exorbitan-
ção entre regime legal e regime contratual do tes, no sentido de cláusulas atributivas de prer-
contrato administrativo, atribuindo a este úl- rogativas públicas (23).
timo a força que lhe corresponde pelo facto de É ponto, de resto, que devia considerar-se
provir da autonomia das partes e ao segundo, adquirido na teoria do contrato administrativo:
é dizer, aos poderes conferidos pela lei, a força as cláusulas contratuais não podem atribuir ou
que se lhes assaca em geral. É também um cri- reconhecer à Administração quaisquer poderes
tério simples (que permite eliminar muitas das para a prática de actos administrativos, porque
dúvidas que se suscitam quase quotidianamen- a lei é a única fonte legítima do poder público.
te nesta matéria, sendo que, aqui, a segurança, E, que se saiba, o contrato administrativo não
associada à previsibilidade da natureza e, logo, configura um domínio out of law ou um domí-
do regime procedimental, substantivo e conten- nio onde a hard law possa assentar numa mera
cioso aplicável ao acto da Administração, seja declaração de vontade da Administração.
ele administrativo ou negocial, é um factor im- É verdade que até 1991, data da entrada em
portantíssimo) e que, além disso, se encontra em vigor do CPA, a questão se punha em termos
sintonia com dois dados elementares da nossa algo diversos. Nessa altura, na falta de lei ge-
ordem jurídica, a saber, que, primeiro, só a lei ral, a estipulação de poderes de autoridade no
(directa ou “habilitantemente”) pode atribuir contrato – embora não fosse considerada como
poderes públicos para a prática de actos admi- necessária à titularidade desses poderes na esfe-
nistrativos (princípio da legalidade), segundo, ra do contratante público – era legítima (mas só
que os “poderes conferidos por lei expressamen- era legítima) se se contivesse dentro dos limites
te a uma pessoa colectiva de direito público [se] consentidos (pelas normas especiais ou) pelos
presumem públicos sempre que outro carácter princípios gerais dos contratos administrativos, de
não resulte da sua natureza” (22) (proposição que seriam revelação (24). Mas, se era esse o es-
que é afirmada num contexto preciso, como se
verá adiante).
Apesar de tudo, parece-nos que o critério da (23) A hipótese dos contratos com objecto passível de
fonte dos poderes é parcialmente incorrecto, não contrato de direito privado cuja administratividade resul-
te do facto de terem sido expressamente submetidos pelas
podendo por isso ser alcandorado a “chave do
partes a um regime substantivo de direito público confi-
problema”. Vejamos. gura uma hipótese especial, afirmando PEDRO GONÇALVES
que o contrato administrativo, aí, é “a fonte imediata de
5.1. Temos por correcta, claro, a primeira pro- todos os poderes públicos” (Contrato …, p. 106). Note-se
porém que no texto está em causa uma questão diferen-
posição, segundo a qual, quando a posição de
te: saber se uma cláusula de um contrato administrativo
supremacia jurídica se fundar em mera cláusula (já qualificado como tal) pode atribuir poderes públicos
contratual (que não configure a transcrição, den- autónomos dos que resultam da lei, não se a vontade das
sificação ou integração do regime da lei), o poder partes pode ser a fonte da administratividade do contrato
e, em consequência (mas também por intermédio do art.
180.° do CPA), fonte de poder público.
(22) MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrati- (24) Assim, MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, Direito Adminis-
vo, I, p. 432. trativo, 1980, pp. 663 e 695 e segs., e, em especial, SÉRVULO

10
JUSTIÇA ADMINISTRATIVA n.° 63 • Maio/Junho 2007

tado do problema antes de 1991, se a habilitação 5.2. Correcta a primeira, consideramos porém
concreta para a prática de acto administrativo, incorrecta a segunda proposição resultante do
por força do clausulado contratual, se esgotava critério em apreço, nos termos da qual haveria
no estrito domínio consentido pelos princípios uma identificação necessária entre atribuição
gerais de direito administrativo (esquecendo legal de uma posição de supremacia à Admi-
as leis especiais), então, hoje, como o conteúdo nistração e habilitação específica para a práti-
destes se encontra cristalizado e condensado ca de acto administrativo. Desde logo, porque
no art. 180.° do CPA (25), não há espaço para as isso pode contrariar a própria natureza prima
cláusulas exorbitantes autónomas. Dito de ou- facie da posição de supremacia em causa, co-
tra forma, quaisquer cláusulas do contrato que mo sucederá na hipótese de um preceito legal
(na falta de habilitação normativa) se arroguem atribuir à Administração (mesmo que só a ela)
título bastante para a atribuição de poderes de a faculdade de optar pela renovação do con-
supremacia jurídica são hoje, no máximo, cláu- trato administrativo, que, de acordo com esse
sulas atributivas de direitos potestativos ou en- critério, consubstanciaria a prática de um acto
tão são cláusulas ilegais (26) (27). administrativo, quando nos parece evidente,
salvo indicação objectiva em contrário, a sua
natureza negocial.
CORREIA, Legalidade e autonomia contratual nos contratos ad- Por outro lado, a tese geral de que os pode-
ministrativos, 1987, pp. 729, 731 e segs., 734, como também res conferidos por lei se presumem públicos (no
o acórdão do STA de 15/6/1985 (AD, n.° 291, p. 310). sentido de configurarem poderes públicos de au-
(25) Parece não haver muitas dúvidas sobre a correc-
toridade) só colhe no plano extracontratual ou,
ção da segunda premissa menor do silogismo. Basta olhar
para a história do contrato administrativo em Portugal e
pelo menos, funda-se num pressuposto que não
ler, depois, a observação com que FREITAS DO AMARAL et allii colhe totalmente em matéria contratual. Com
abrem o seu comentário ao referido preceito legal: “neste efeito, ela parte do princípio de que os direitos
preceito, consagram-se genericamente os poderes de que
privados resultam da mera atribuição de capaci-
a Administração Pública goza em sede de execução e ex-
tinção dos contratos administrativos, com os contornos
dade civil à Administração Pública (28), não sen-
que a doutrina e a jurisprudência tradicionalmente lhes do necessário, por isso, a sua enumeração legal,
assinalam” (Código do Procedimento Administrativo Anotado, quando, no domínio dos contratos, a generalida-
p. 306). de dos poderes de supremacia jurídica, mesmo
(26) Dir-se-ia que esta alternativa não faz sentido, pois
se o poder de supremacia jurídica estabelecido no contra-
que consubstanciem direitos potestativos, carece
to deve agora considerar-se um direito potestativo, então sempre de previsão específica (legal ou contra-
não há ilegalidade. Será assim em regra. Mas também tual), não decorrendo em circunstância alguma
pode acontecer que os termos em que ele se encontra dis- da mera capacidade de direito privado da Ad-
ciplinado o atirem irreversivelmente para o domínio dos
ministração. Por isso que, quando o legislador
poderes públicos (para a prática de acto administrativo),
por exemplo, porque se dispôs aí que, emitida a declara- (especial) atribui, na regulamentação de um de-
ção, a Administração pode, na falta de cumprimento, exe- terminado contrato (ou espécie contratual), um
cutá-la coercivamente. Neste caso, a melhor solução talvez poder de supremacia jurídica à Administração,
passe pela ilegalidade do que seja revelação ou sinal de
não o faz (pelo menos, necessariamente) porque
poder público e pela manutenção da natureza potestativa
do resto. queira reconhecer-lhe um poder público de au-
(27) Coisa diferente é saber se tais cláusulas podem con-
tribuir para a qualificação (administrativa) do respectivo
contrato, questão a que pode responder-se afirmativamen- o que significa que afinal essas cláusulas só podem valer,
te se (e só se) a sua inscrição no texto contratual indicar, mesmo se em termos que consideramos muito limitados,
para além de qualquer dúvida razoável, estarem aí subja- como cláusulas específicas de interesse público.
centes considerações fundamentais de interesse público, (28) MARCELLO CAETANO, Manual …, p. 432.

11
O acto administrativo contratual

toridade: fá-lo porque, caso contrário (e fora do art. 180.° do CPA; iv) ou na hipótese especial do
elenco dos poderes elencados no art. 180.° do exercício (ou do controlo do exercício) de pode-
CPA), a Administração não gozará dessa posição res normativos. Fora estes casos (o que vale por
de supremacia. Por último, e é esta a principal dizer, em princípio), os poderes de supremacia
crítica que apontamos ao critério em apreço da jurídica atribuídos à Administração, mesmo que
fonte dos poderes, é importante não esquecer por disposição da lei, configuram um direito
que o contrato, mesmo o administrativo, cons- potestativo administrativo, exercitável por acto
titui um instrumento naturalmente pouco pre- negocial (ou por declaração unilateral) de direito
disposto à existência de poderes públicos. Por público. A título excepcional, admitimos igual-
nós, a regra, no contrato administrativo, é a de que a mente a existência de um acto administrativo na
Administração é parte, não autoridade, os seus actos hipótese de isso ser necessário à tutela da posição
(decisões) são declarações negociais, não actos jurídica de terceiros, como provavelmente sucedia
administrativos. A autoridade no contrato deve na situação do acórdão do STA de 23/6/1998 (P.
ser legalmente assumida ou querida como tal, 32 282), em que estava em causa a impugnação,
deve resultar de uma intenção legal objectiva, por parte de operadoras privadas de televisão,
passível de demonstração, e não apenas do mero de uma resolução governamental que atribuía
facto (que pode relevar-se absolutamente neutral ao concessionário do serviço público uma com-
desse ponto de vista) do enunciado de uma po- pensação financeira ou uma indemnização com-
sição de supremacia jurídica no texto da lei. pensatória, tendo o tribunal rejeitado o recurso
contencioso por entender que a resolução não
configurava um acto administrativo (29). Aceitan-
6. Posição adoptada do como boa, no plano do direito substantivo, a
solução que o STA deu ao caso, embora talvez
Em suma, por nós, aceitamos como boa a im- com outros argumentos, pensamos que, no pla-
possibilidade, nos termos e com as consequências no do direito processual, hoje em dia, uma de
assinaladas, de as cláusulas contratuais autóno- duas: ou, como julgamos preferível, se incluem
mas (no sentido de carecerem de base legal ha- estes litígios no âmbito da acção administrativa
bilitante) conferirem poderes públicos de au- comum, se necessário, interpretando as normas
toridade, mas rejeitamos que todas as posições respeitantes à legitimidade processual em con-
legais de supremacia jurídica da Administração formidade com o direito constitucional à tutela
no contrato se reconduzam necessariamente jurisdicional efectiva ou, se não for assim, então,
ao conceito de poder público de autoridade, a
uma norma de competência para a prática de
um acto administrativo, por nos parecer que
(29) O acórdão referido foi objecto de análise e crítica
existem ou podem existir aí meros direitos po- por parte de ALEXANDRA LEITÃO (em CJA, n.° 25, pp. 15 e
testativos públicos. segs.), que, embora com alguns fundamentos com que
Proporíamos, assim, em alternativa, de forma não concordamos, sustentava justamente que a qualifica-
ção como acto administrativo era necessária à tutela dos
mais matizada ou mitigada, o seguinte: só há
terceiros, na medida em que estes não tinham acesso à
poder público de autoridade em quatro casos, acção sobre contratos, cuja legitimidade estava, na altura,
a saber, i) quando isso resulte objectivamente restrita às partes. A posição da Autora encontra-se melhor
do teor da regulação normativa em causa; ii) desenvolvida em A protecção judicial dos terceiros, cit., pp.
228 e segs. e 271 e segs. Também no sentido de que a quali-
quando se trate da produção de efeitos de direito
ficação de acto administrativo contratual pode resultar da
apenas passíveis de título público; iii) quando necessidade de protecção de terceiros, VIEIRA DE ANDRADE,
se trate do exercício dos poderes inscritos no A Justiça Administrativa, 2006, p. 205, nota 384.

12
JUSTIÇA ADMINISTRATIVA n.° 63 • Maio/Junho 2007

mesmo mantendo-se, no que respeita às relações (habilitada) resulte, pelo teor do enunciado ou
entre os contratantes, a natureza da declaração pelas proposições secundárias a ele apostas, a
em causa, tal qual resulta do direito substanti- qualificação da declaração como acto adminis-
vo, deve considerar-se, no domínio das relações trativo. É o caso, por exemplo, de a lei atribuir
entre os contratantes e terceiros, e apenas para a esse acto força de título executivo, de prever
efeitos de impugnação judicial (não para efeitos a posse administrativa de um bem na sequência
substantivos), ir aí implícito, nessa declaração, da medida adoptada, de retirar consequências
um acto administrativo. imediatas (endógenas ou exógenas ao contrato)
Em relação à proposta atrás avançada, esta- da decisão adoptada, de remeter a contestação
mos conscientes de alguns inconvenientes seus, de um acto para formas processuais impugna-
resultantes do facto de ela ser mais casuística, tórias, etc.
não fornecendo, numa matéria tão carente dela, Em terceiro lugar, devem considerar-se igual-
a segurança (que também não é assim tão ab- mente administrativos aqueles actos cujos efei-
soluta) proporcionada pelo critério da fonte do tos jurídicos só são passíveis por título público,
poder, mas a verdade é que, em assuntos des- casos, portanto, em que a declaração tem por
tes, dados à intervenção avulsa do legislador, objecto situações apenas constituíveis, modifi-
não nos parece que seja esse critério de binário cáveis ou extinguíveis por acto administrativo.
simples o mais adequado. Sucede isso, por exemplo, com a autorização
Vejamos então cada uma das hipóteses. dada pelo concedente para ocupação ou utiliza-
Haverá poder público quando se trate do ção de bens do domínio público não integrados
exercício, com base na lei (directamente ou com inicialmente no contrato. Ou com as servidões
fundamento em acto legalmente habilitado), de que, sendo constituídas pelo concessionário, só
poderes normativos próprios do contratante pú- se tornam efectivas após a aprovação, pelo con-
blico, como sucederá no caso dos regulamentos cedente, dos projectos de infra-estruturas ou de
emitidos pelo concedente no âmbito da conces- outras obras da concessão (30).
são, ou quando se trate de poderes de controlo Por último, devem considerar-se poderes
(aprovação ou similar, homologação, autoriza- públicos, salvo quando outra coisa resultar de
ção, etc.) respeitantes ao exercício de poderes lei especial ou da própria natureza do contrato,
normativos (com reflexos para terceiros) por os poderes previstos no art. 180.° do CPA (31), a
parte do co-contratante, desde que devidamen-
te habilitado para o efeito. Ou seja, no caso dos
poderes normativos da Administração, por não (30) Aliás, estas questões (mesmo que disciplinadas na
nos parecer viável outra qualificação senão essa “lei” do contrato) são, do ponto de vista do seu conteúdo,
extracontratuais, ligadas a posições gerais de autoridade
de que há aí uma norma emitida no exercício da
(por exemplo, dominial) da Administração, prévias e ex-
função administrativa, se se preferir, um regula- teriores ao contrato.
mento. Em relação aos regulamentos emitidos (31) É essa a opinião largamente maioritária da doutri-
pelo co-contratante que tenham eficácia externa na, como pode ver-se (referem-se apenas algumas obras
que se dedicam ao contrato administrativo depois do
(não nos referimos, note-se, às cláusulas regula-
CPA) em FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrati-
mentares de alguns contratos), pela mesma ra- vo, II, 2001, p. 615, MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA/PEDRO GON-
zão, a que acresce o facto de, num caso desses, ÇALVES/PACHECO DE AMORIM, Código …, cit., p. 828, MARCELO

se dever ter igualmente como administrativo o REBELO DE SOUSA/ANDRÉ SALGADO DE MATOS, Direito …, cit.,
p. 358, PEDRO GONÇALVES, O contrato …, cit., pp. 116 e segs.,
acto de controlo do contratante público.
SANTOS BOTELHO/PIRES ESTEVES/CÂNDIDO DE PINHO, Código
Em segundo lugar, haverá poder público do Procedimento Administrativo Comentado, p. 798, SOUSA
quando da disciplina legal ou regulamentar FÁBRICA, O contrato administrativo, DJAP, VI, 1994, pp. 531

13
O acto administrativo contratual

saber: a modificação unilateral do conteúdo das isso implicada nesta opção um apelo à história
prestações contratuais (32), a direcção do modo do contrato administrativo, sabendo-se que o
de execução das prestações (ordens, instruções, art. 180.° do CPA constitui uma síntese feliz dos
etc.), a rescisão do contrato por imperativo de principais poderes de que a Administração goza
interesse público, a fiscalização do modo de exe- no seio do contrato administrativo e que sempre
cução do contrato e a sanção contratual – que foram considerados, entre nós, como poderes
são poderes legais ou extracontratuais (no sentido públicos de autoridade, exercitáveis por actos
em que têm a sua origem numa fonte exterior administrativos. Mas existem outros argumen-
ao contrato e valem independentemente da sua tos ponderosos. Desde logo, porque é essa a
previsão no contrato, salvo o sancionatório) (33) sugestão que decorre imediatamente da refe-
e, em certo sentido, estatutários, porque assentes rência, aí, a “poderes de Administração”, mais
na especial relação que, num dado caso, inter- ainda se combinada com a história do contrato
cede entre o objecto do contrato e o sujeito ad- administrativo entre nós (35). Depois, porque o
ministrativo (34). legislador do CPA sentiu a necessidade de, em
É verdade que, olhando só, “nua e cruamen- alguns casos, afastar a figura do acto adminis-
te”, para esse preceito legal, não pode afirmar-se trativo do seio do contrato (art. 186.°, n.° 1, do
que é de actos administrativos, e não de actos CPA), o que só se percebe e justifica porque,
negociais, que se trata quando a Administração noutras hipóteses, é de acto que se trata, como
Pública exerce os poderes aí previstos. Vai por sucede paradigmaticamente (aliás, só podia su-
ceder) com os poderes do respectivo art. 180.°.
Por outro lado, o nosso sistema jurídico assenta
e 532, JOSÉ LUÍS ESQUÍVEL, Os contratos administrativos e a ar-
bitragem, 2004, p. 226. Uma posição mais mitigada pode
no pressuposto de que é dado à Administração
ver-se em MARIA JOÃO ESTORNINHO, por último, Direito Eu- comportar-se como autoridade [ver, por exem-
ropeu, cit., pp. 472 a 479, e em VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça plo, arts. 4.°, n.° 2, alínea g), 47.°, n.° 2, alínea d),
…, cit., p. 205. e 180.°, n.° 1, alínea c), todos do actual CPTA], e
(32) Ver, por exemplo, Ac. do STA de 22/10/1996 (P.
39 207). Não negando que isso também possa acontecer com
onde essa autoridade sempre se aceitou existir é
outros poderes, o poder de modificação unilateral é mui- precisamente naquele leque de poderes de acção
tas vezes exercido por via normativa (assim, por exemplo, que se encontra previsto nesse preceito do CPA.
LOURENÇO VILHENA DE FREITAS, O poder de modificação unilate- Por último, porque o art. 187.° do CPA pressu-
ral do contrato administrativo pela Administração, 2007, p. 155).
põe que haja actos dotados de força executiva,
(33) Neste sentido, por exemplo, SOUSA FÁBRICA, O con-
trato …, cit., pp. 531 e 532. que são necessariamente actos administrativos,
(34) Além de que alguns desses poderes são dotados de e esses só podem ser os resultantes do exercício
um regime jurídico específico, diverso dos seus congéne- dos poderes do art. 180.° (36).
res privados. Com efeito, há aí poderes ad extra e poderes
São no entanto necessários alguns esclareci-
ad intra. Nos primeiros, a Administração dispõe de um
instrumento jurídico-formal (acto administrativo) para mentos adicionais.
exercer os seus “direitos contratuais”, mas que deixa into- Em primeiro lugar, o facto de até agora nos
cadas as regras de fundo que definem a relação contratual, termos referido ao acto administrativo como
quaisquer que sejam (por exemplo, poder de direcção ou
resultado do exercício destes poderes públicos
poder de fiscalização). Diversamente, os poderes ad intra,
pressupondo igualmente a utilização daquele instrumen- foi sobretudo por contraposição com a outra
to formal, têm, além disso, “pretensões substantivas”, alternativa, que seria a de considerar tais pode-
implicam desvios mais ou menos acentuados ao regime
aplicável aos correspondentes (ou similares) poderes pri-
vados, como sucede, por exemplo, com o poder de modi-
ficação unilateral e, segundo alguns Autores, com o poder (35) Assim, PEDRO GONÇALVES, O contrato …, cit., p. 117.
sancionatório. (36) Assim, PEDRO GONÇALVES, O contrato …, cit., p. 117.

14
JUSTIÇA ADMINISTRATIVA n.° 63 • Maio/Junho 2007

res como meramente potestativos. Não signifi- supremacia jurídica pode ou deve ser reporta-
ca que, em nossa opinião, haja sempre um acto da, para estes efeitos, a um determinado poder
administrativo quando estejam em causa tais legal (v. g., será que a autorização da cessão de
poderes. Pode haver perfeitamente uma norma uma concessão administrativa deve ser repor-
administrativa (v. g., um regulamento de modifi- tada ao poder de fiscalização ou a aprovação
cação das prestações de vários concessionários), do projecto de construção do “estabelecimen-
como pode não haver regulamento nem acto ad- to” de um serviço público concedido ao poder
ministrativo. Para que se coloque esta hipótese de direcção?).
(de acto administrativo), há-de estar em causa Se não há prejuízo da natureza pública do
uma decisão, um acto com carácter decisório. poder em causa quando se trate de cláusu-
Por exemplo, a larga maioria das faculdades las concretizadoras, menos ainda no caso das
integradas no poder de fiscalização não se con- cláusulas contratuais integrativas, que têm lugar
substancia na prática de um acto administrativo. quando a lei, em vez de enunciar (genérica ou
Em segundo lugar, os actos da Administração especificadamente) que poderes de acção cabem
resultantes do exercício dos poderes elencados à Administração, se limita a dizer que lhe cabe
no art. 180.° do CPA devem ser considerados um determinado poder em abstracto, remetendo
como actos administrativos, tenham eles como para o contrato a previsão concreta dos poderes
fundamento directo essa norma geral ou norma em causa, previsão que é necessária do ponto
de lei especial, salvo se nesta existirem dados ob- de vista da capacidade concreta para agir. Por
jectivos em sentido contrário (embora isso não exemplo, diz-se no art. 180.° do CPA, na respec-
signifique necessariamente, tudo depende, que tiva alínea e), que a Administração pode “aplicar
esteja excluída a operatividade dos poderes do as sanções previstas para a inexecução do con-
art. 180.°). Em terceiro lugar, a regulação ou confor- trato”, o que significa que, sem essa previsão
mação contratual de um poder público atribuído no clausulado contratual (sem, por exemplo, a
(ou reconhecido) por lei, como por exemplo estes previsão da possibilidade de aplicação de mul-
do art. 180.° do CPA, não prejudica nem altera tas pela ocorrência de certos factos), não haverá,
a respectiva natureza. Ou seja, a circunstância na prática, poder sancionatório. Este preceito
de existirem cláusulas contratuais com uma fun- funciona assim apenas como norma habilitante,
ção concretizadora, conformadora ou densificadora como norma legal de autorização, sendo depois
de poderes públicos previamente inscritos em integrado através da previsão de concretas san-
norma legal (genérica ou especificadamente), e ções administrativas em documento regulamen-
de, portanto, a Administração fazer aplicação tar ou contratual.
imediata dessas cláusulas, não da lei, não sig- Dado talvez o carácter sui generis da hipótese,
nifica que se trate afinal de meros actos nego- é aqui que a jurisprudência dos nossos tribunais
ciais ou declarações unilaterais administrativas. se tem revelado menos uniforme, sobretudo em
Nesses casos, o contrato limita-se a concretizar, relação à rescisão decretada na sequência de in-
densificar ou especificar o conteúdo (ou os pres- cumprimento do contrato pelo co-contratante,
supostos ou o regime) de poderes legais de que ora tratada como acto administrativo (37), ora
a Administração já seria titular, mesmo que, co- como acto negocial, invocando-se, neste último
mo às vezes acontecerá, a invistam na prática de caso, o critério da fonte (contratual) da atribui-
actos não expressamente previstos (é diferente
de admitidos) na lei. Temos porém consciência
(37) Por exemplo, Acs. do STA de 24/11/1992, P. 30 597,
que é aqui que se colocam maiores dificuldades, de 21/10/1997, P. 34 019, de 30/6/1999, P. 40 693, e de
por ser difícil saber se e quando uma posição de 14/2/2002, P. 47 543.

15
O acto administrativo contratual

ção do poder ou o da natureza (contratual) da do contraente público sobre a execução do con-


cláusula violada (38) ou então os dois, conjuga- trato que se traduzam” em “ordens, directivas ou
damente (39). De resto, à primeira vista, a tese da instruções no exercício dos poderes de direcção e
rescisão-acto negocial até podia ter alguns argu- de fiscalização”, na “modificação unilateral das
mentos a seu favor, já que, para alguma doutri- cláusulas respeitantes ao conteúdo e ao modo de
na civilística, a rescisão por incumprimento não execução das prestações previstas no contrato”,
tem natureza sancionatória, o que a afastaria na “aplicação das sanções previstas para a ine-
do âmbito do art. 180.°, alínea e), do CPA, para xecução do contrato” e na “resolução unilateral
não dizer também que, quando não prevista no do contrato” (art. 284.°, n.° 2), resolução esta que
texto de um contrato administrativo, subsiste abrange a resolução-sanção por incumprimento
sempre a faculdade de rescindir, embora nesse (art. 306.°). Além disto, prevê-se inovatoriamente
caso assuma natureza de acto negocial. Aconte- no art. 285.° (embora em termos que deixam ficar
ce que, em direito administrativo, a rescisão por algumas dúvidas) que “as decisões proferidas
incumprimento sempre foi considerada como no exercício dos poderes do contraente público
uma sanção (40), não se vendo, em face do art. tipificados no presente capítulo”, no capítulo IV,
180.°, alínea e), do CPA, como pode ela, quan- e que não se subsumam no elenco atrás referido
do prevista no clausulado contratual, escapar à “só revestem a natureza de acto administrati-
natureza de acto administrativo (41). vo quando tal estiver estipulado no contrato, e
desde que outra coisa não resulte da respectiva
6.1. A terminar esta parte, diz-se apenas (por- natureza ou da lei”, ou seja, quando estiver dito
que haverá certamente oportunidade de voltar ao no contrato que o exercício desse poder configu-
tema) que na versão do Código dos Contratos Públi- ra um acto administrativo (embora talvez possa
cos aprovada para discussão pública se mantém a admitir-se que isso também resulte de outras
solução tradicional, referindo-se expressamente, “evidências”, como, por exemplo, a de atribuir
aí, sem margem para dúvidas, que “revestem a à declaração administrativa a natureza de título
natureza de acto administrativo as declarações executivo ou a de remeter o co-contratante para
a acção administrativa especial) e desde que is-
so não contrarie a lei ou a natureza (paritária ou
de outra ordem) do contrato em causa – solução
(38) Assim, Acs. do STA de 21/5/1996 (Ap.-DR de
23/10/1998), de 29/1/1998, P. 42 633, e de 14/12/1999,
esta, do art. 285.°, que não nos parece configurar
P. 44 269. qualquer excepção ao princípio da legalidade,
(39) Ac. do STA (P) de 2/5/2001 (AD, n.os 476-477, p. por isso que se trata de um caso em que há habi-
1189). litação normativa adequada.
(40) Entre tantos, MARCELLO CAETANO, Manual …, p.
637.
(41) Relativamente a outras medidas sancionatórias, o
STA já considerou tratar-se de acto administrativo a sus- 7. A razão de ser da autoridade nos contra-
pensão de uma concessão de uso privativo do domínio tos administrativos
público por violação do respectivo regulamento (Ac. de
26/2/1998, P. 39 046), a revogação do alvará de um concessio-
nário de exploração dominial (Ac. de 19/3/1999, P. 29 829), Resta dizer que o acto administrativo contra-
a reposição de quantias indevidamente recebidas, por in- tual tem a sua razão de ser no âmbito do contrato
cumprimento contratual (por exemplo, Ac. de 23/1/2007, administrativo, uma razão prática e de eficiên-
P. 21/03), o mesmo acontecendo, em geral, com as multas
cia. É certo que ele representa, de alguma forma,
contratuais, embora nas empreitadas de obras públicas a
questão, por motivos processuais, tenha algumas especifi- um elemento de distúrbio na lógica do pacto
cidades (Ac. do STA de 15/5/2002, P. 46 106). (que se quer paritário, com exclusão de posições

16
JUSTIÇA ADMINISTRATIVA n.° 63 • Maio/Junho 2007

jurídicas de predomínio tão claro como essas que transporte para a relação contratual a sua condi-
desembocam na prática de um acto administra- ção geral de potentior personna, como sucede em
tivo) e no próprio conceito de partes (que apela Espanha. Mas a actuação por acto administrati-
a contraentes ligados por vínculos contratuais vo deve existir (e estar legalmente prevista) para
subjectivos, num esquema relacional de direitos assegurar a permanente e eficaz disponibilidade ad-
e obrigações, não de poderes públicos e corres- ministrativa do interesse público contratualizado (é
pondentes sujeições). Homogeneidade na estru- para isso que servem os poderes de modificação
tura contratual, portanto, não heterogeneidade, unilateral, de direcção, de rescisão-sancionatória
é o que propõem alguns Autores. e de rescisão por imperativo de interesse pú-
O problema é que, se a lógica do pacto pede blico) e, embora aqui a questão não se coloque
isso, a lógica da função administrativa reclama num plano tão fundamental, mas ainda assim
ou justifica, em alguns casos, precisamente o útil e justificado, nas garantias secundárias ou
contrário. A premissa que se impõe fixar é por instrumentais de supervisão e controlo (poder de
isso a seguinte: a “contratualização” do interesse direcção) e de contínua compulsão (em regra, por
público ou da função administrativa altera a sua via das multas contratuais ou similares), rapi-
substância, torna-a em algo de diferente, menos damente efectiváveis. É essa a razão de ser da
digna ou carente da protecção jurídica que lhe autoridade no contrato administrativo.
é dada em geral? Se se entender, como nós, que E o co-contratante, no meio disto tudo? Não
a prossecução do interesse público por via con- se discutindo que a sua posição saia juridica-
tratual merece e carece da sanção que, por via mente enfraquecida, a verdade é que, em prin-
de regra, lhe é atribuída extracontratualmente, cípio, ele será um empresário, que contrata na
então parece justificável e compreensível uma expectativa legítima de obter um lucro. Não é
Administração contratante titular de poderes a prossecução do interesse público que directa-
públicos de autoridade. É que o acto administra- mente o motiva: o que o move, natural e com-
tivo não configura uma abstracção derivada dos preensivelmente, é a expectativa de ganho. Se
postulados da soberania, fundando-se antes em é assim, então a intangibilidade da cláusula de
razões e preocupações bem palpáveis e práticas remuneração (e similares) e a obrigatoriedade
de quem cuida da coisa pública (por isso que ele inafastável da reposição do equilíbrio financeiro
representa, como dizia ORLANDO CARVALHO, uma do contrato, quando seja afectado por acto do
derivação do “princípio da urgência do interesse contratante público, garantem uma adequada
público”) e constituí um modo eficiente da rea- protecção dos seus interesses patrimoniais, per-
lização da vontade contratual da Administra- mitindo que também aqui se possa falar num
ção, que se pressupõe corresponder à vontade equilíbrio harmonioso entre a prossecução do
da colectividade. interesse público e o respeito pelos direitos e in-
Para assegurar a prevalência contratual do in- teresses legalmente protegidos dos particulares,
teresse público ou da função administrativa não que é, afinal, como o leitor bem sabe, aquilo que
é necessário, longe disso, que a Administração define o Direito Administrativo.

RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA

17

Você também pode gostar