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CADERNOS DE NOVO

TESTAMENTO

HUMBERTO MACHARETTI
CADERNOS DE NOVO
TESTAMENTO

Humberto Macharetti

Seminário Teológico Batista


Carioca

Rio de Janeiro

2020
Unidade I – O Estudo Científico
do Novo Testamento

1
Nesta primeira unidade conhecermos a metodologia de Estudo
das escrituras sagradas como um todo e, em especial do Novo
Testamento.

Nossa ênfase recairá na Crítica Bíblica do Novo Testamento que


pode ser descrita como um conjunto de metodologias que nos
prepara para a análise e para a compreensão do texto bíblico.

Veremos também as características do ambiente histórico e social


no período em que os escritos do Novo Testamento foram
produzidos, com interesse especial no Império Romano.

2
1. A Crítica Bíblica do Novo
Testamento
Propósitos
Entender os ensinos fixados nas páginas do Novo Testamento de
forma que possamos aplicá-los hoje às nossas próprias vidas é o
grande desafio de cada cristão. Voluntariamente ou não estamos
todos envolvidos com a grande tarefa da hermenêutica que nos leva
à reposta para apenas uma pergunta: “O que Deus está falando
comigo agora por meio de suas escrituras?”
Não se trata de uma tarefa menor ou negligenciável. Dela ninguém
pode fugir. Não posso me conformar em não entender o que meu
Deus fala comigo. Seu pré-requisito está definido na exegese que
responde a uma segunda pergunta: “O que Deus falou aos leitores
dos livros sagrados do tempo em que foram escritos? Como eles
entenderam a mensagem?”
A busca das respostas para essas duas questões nos leva a
mergulhar em um mar de águas turvas em decorrência das tremendas
alterações culturais acumuladas durante os milênios: não falamos as
mesmas línguas dos povos antigos, não entendemos o universo da
mesma forma que eles entendiam, temos padrões de relações
humanas diferentes das deles e, sobretudo, vivemos uma era que se
admira e se amedronta frente aos avanços da tecnologia da mesma
forma que os antigos se admiravam e se amedrontavam diante dos
anjos e dos demônios. Não caçamos demônios nem bruxas, caçamos
“Pókemons”. Não somos motivados por boas novas. Somos
motivados por “Fake News”. Essa pesquisa nos leva a uma viagem
para uma terra distante do passado onde muitas coisas nos são
desconhecidas. Necessitamos de um mapa, e talvez de um guia.

Uma introdução ao Novo Testamento


Os objetivos de uma introdução
O estudo de uma introdução ao Novo Testamento é feito com o
objetivo de preparar o estudante para a correta interpretação dos
escritos. O princípio norteador de todo o estudo pode ser formulado
de maneira muito simples: “o sentido mais correto de um texto bíblico
é aquele que foi entendido por seus primeiros leitores”. Portanto, para

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atingirmos nossos objetivos, precisamos estar aptos a responder às
seguintes perguntas:1. Que entendemos por “Crítica Bíblica do Novo
Testamento”? 2. Quais são as diversas atividades desenvolvidas na
tarefa de “criticar” os livros da Bíblia? 3. Que chamamos de “evidência
eterna” e de “evidência interna” no estudo de um livro da Bíblia? 4.
Por que precisamos identificar o autor de cada escrito, o tempo em
que ele escreveu e quem foram seus leitores? Finalmente: “Que
mensagem ele queria transmitir?”
A abordagem das questões apresentadas exige que o intérprete lance
mão das evidências que lhe estão disponíveis no próprio texto e fora
dele, a fim de que possamos chegar às repostas mais prováveis.
Chamamos de evidências internas aquelas que estão no próprio
texto do livro em estudo. Dessa forma, quando um evangelista declara
que Jesus Cristo, em sua infância, foi levado ao templo de Jerusalém
por seus pais1 temos uma importante evidência interna de que ele
viveu antes do ano 70, quando o templo foi destruído pelos romanos.
A citação, por outro lado, foi escrita muitos anos depois.
Chamamos de evidências externas aquelas provenientes de outros
textos, bíblicos ou não. Nessa categoria está o texto conhecido como
testimonium flavianum, de autoria do autor judeu Flávio Josefo, que
escreveu no final do século I da era cristã e que faz referência a Jesus
Cristo.
Havia neste tempo Jesus, um homem sábio [, se é lícito chamá-lo
de homem, porque ele foi o autor de coisas admiráveis, um
professor tal que fazia os homens receberem a verdade com
prazer]. Ele fez seguidores tanto entre os judeus como entre
os gentios.[Ele era o Cristo.] E quando Pilatos, seguindo a
sugestão dos principais entre nós, condenou-o à cruz, os que o
amaram no princípio não o esqueceram;[porque ele apareceu a
eles vivo novamente no terceiro dia; como os divinos profetas
tinham previsto estas e milhares de outras coisas maravilhosas a
respeito dele]. E a tribo dos cristãos, assim chamados por causa
dele, não está extinta até hoje2
A busca dessas evidências envolve um trabalho meticuloso que inicia
pela crítica textual cujo objetivo é fixar, dentre a multiplicidade das

1 Lc. 2.27
2 Flávio Josefo, Antiguidades Judaicas, Livro 18, parágrafos 63
e 64.
4
variantes do texto bíblico, aquela que mais se aproxima do autógrafo,
isto é, do original produzido pelo autor.

Primeiros leitores, tempo e local de composição


Todo autor pretende que sua mensagem seja entendida pelos
leitores. Por essa razão ele geralmente opta por lhes escrever em sua
língua nativa e por usar, em sua argumentação, figuras e elementos
que façam parte da realidade cotidiana dos leitores. Reconhecemos
esse fato quando declaramos que a Bíblia é a palavra de Deus
escrita em linguagem humana3. Se ela tivesse sido escrita na língua
dos anjos não poderíamos entendê-la.
Porque os livros da Bíblia foram escritos no período de
aproximadamente um milênio, os leitores mudaram, suas línguas
mudaram, suas referências culturais também mudaram. Quando
isolamos um livro do texto sagrado precisamos nos perguntar quem o
escreveu, quando (tempo) ele foi escrito, onde (local) foi escrito e para
quem (leitores) foi escrito. Leitores diferentes poderiam entender o
mesmo texto de maneiras diferentes.

Quem escreveu?
Evidentemente que os mesmos leitores podem receber mensagens
escritas por pessoas diferentes. Cada uma delas pretende comunicar
alguma coisa de seu interesse (seu objetivo teológico) e tem uma
forma peculiar de escrever (seu estilo). Por essa razão é
indispensável identificar quem escreveu e o que pretendia quando
escreveu.

Crítica Bíblica, nossa caixa de ferramentas


Pode causar estranheza o fato de usarmos a palavra crítica com
relação à Bíblia. Isso ocorre principalmente porque uma escola
teológica muito popular ensina a doutrina da “inerrância da Bíblia” e,
com isto, ela quer dizer que o texto bíblico, tal como temos hoje, é
digno de toda a confiança porque, sendo de origem exclusivamente
divina por um mecanismo de ditado verbal, é imune a qualquer tipo
de erro4. Embora tenha sido copiado e traduzido inúmeras vezes no
curso dos milênios preservou-se impecavelmente correto.

3 Declaração doutrinária das igrejas batistas do Brasil título 3


4Os adeptos dessa doutrina afirmam que Deus usou os autores
5
Nós, por outro lado, cremos que podemos confiar no texto bíblico não
porque presumamos sua exatidão e sim porque o submetemos a
exame com as ferramentas críticas e os resultados que obtivemos
comprovaram sua correção. Dana5 nos declara:
Crítica Bíblica do Novo Testamento é o processo que determina as
origens, as fontes, a conservação e a credibilidade dos vinte e sete
livros do Novo testamento

A crítica bíblica pode ser feita em vários níveis de profundidade.


Antigamente se falava em baixa crítica e em alta crítica. O que era
antigamente denominado baixa crítica é hoje chamado de crítica
textual. A alta crítica, por sua vez passou a ser denominada crítica
literária. A crítica textual tem por objetivo a obtenção do melhor texto
possível de um livro da Bíblia. Por melhor texto entende-se aquele
que se aproxima com maior exatidão do texto original (autógrafo).
A crítica literária se desdobrou em várias tarefas conhecidas como
crítica das fontes, crítica da forma, crítica da redação e crítica
canônica. A crítica das fontes tem por objetivo identificar as origens
dos materiais utilizados na composição dos textos bíblicos. No Novo
Testamento encontramos muitos textos repetidos em livros diferentes.
Como ocorre, com as narrativas dos milagres e parábolas. O trabalho
dessa fase se constitui em descobrir de onde esse material veio e
como foi utilizado. A crítica da forma tem como objetivo pesquisar as
modificações que o material presente nos textos bíblicos sofreu
durante a fase de transmissão oral que precedeu sua fixação por
escrito. A crítica da redação analisa os escritos com o intento de
descobrir os critérios que levaram os autores a relatar algumas
ocorrências e a omitir outras. Seu grande objetivo é a descoberta dos
objetivos teológicos dos autores. A crítica canônica estuda os
critérios de canonicidade, isto é, as qualificações que um escrito deve

dos livros da Bíblia apenas como copistas e lhes ditou os textos


palavra por palavra. Dessa forma, para eles o texto bíblico é
atemporal e não reflete a cultura nem a história do tempo em
que foi escrito.
5Dana, H. E., El Nuevo Testamento ante la Crítica, El Paso,
Bautista, 1965. Cap. 1 – La Naturaleza de la Crítica
Neotestamentária, y porque es necessária.
6
apresentar para ser considerado inspirado e, em decorrência disto,
ter seu uso sancionado na liturgia.

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2. A crítica textual do Novo
Testamento
Propósitos
Existe hoje uma grande variedade de textos do Novo Testamento que
diferem uns dos outros em várias passagens. Ainda que os
examinemos em sua linguagem original, o grego comum,
encontraremos uma grande multiplicidade de textos apresentando
divergências decorrentes de erros de cópia. Uma vez que pretendo
ter conhecimento da mensagem divina que o texto registra é natural
que deva escolher o texto mais fiel ao original porque, de outra forma,
correrei o risco de crer que erros introduzidos no texto,
intencionalmente ou não, também são verdades reveladas para
minha vida.
Dessa forma, para ter certeza de que estou usando o melhor texto eu
precisarei: 1. Conhecer a metodologia utilizada na cópia e na
preservação dos textos. 2. Conhecer os mecanismos pelos quais os
erros mais frequentes se introduziram nas cópias.3. Conhecer a
metodologia utiliza para localizar e corrigir os erros de cópia. 4.
Identificar as principais adições feitas ao texto do Novo Testamento
durante o processo de transmissão do texto escrito.

O objetivo e a necessidade do trabalho


O objetivo da crítica textual do Novo Testamento é fixar, da
maneira mais exata possível, o texto de cada um dos seus livros
tais como produzido originalmente pelo autor. Essa necessidade
advém do fato de não possuirmos atualmente nenhum dos
manuscritos originais e sim cópias deles. Uma vez que essas cópias,
pelo menos a princípio, gozam todas da mesma credibilidade, não
podemos usar como critério de escolha nossa simpatia pessoal por
uma ou pela outra.
Um princípio fundamental deve ser observado. Na crítica textual
estatística não funciona. Isso significa que o número de cópias de um
documento que chega a nossas mãos não pode ser usado como
critério para decidir qual é a versão correta. Por exemplo, o fato de
possuirmos dez cópias de um mesmo texto das quais nove
apresentem a forma A e apenas uma a forma B não nos autoriza a
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concluir que a forma A é a mais correta porque pode ter acontecido
de A ter resultado de uma cópia errada de B que tenha sido depois
copiada mais oito vezes. A solução para esse problema depende,
portanto, em determinar qual é o documento mais antigo porque ele,
tendo sido copiado um menor número de vezes, com grande
probabilidade apresentará um menor número de erros.

A metodologia de trabalho
Para chegar a concluir qual é o texto mais antigo, várias tarefas
necessitam ser desenvolvidas:
Análise do tipo de substrato usado na cópia – Os copistas dos
livros do Novo Testamento usaram o material que, a seu tempo,
estava mais disponível para o trabalho. Nos três primeiros séculos os
cristãos eram uma comunidade pobre e, por isso mesmo, faziam as
cópias dos documentos em papiros, produto mais barato, de origem
vegetal e pouco resistente que se deteriorava com velocidade,
obrigando a refazer todo o trabalho em um período curto. Esse fator
aumentava a probabilidade de ocorrência de erros de cópia. A partir
do quarto século, quando por iniciativa do imperador Constantino, o
cristianismo foi reconhecido como religião lícita e passou a contar com
o apoio imperial, os cristãos puderam usar o pergaminho, material
mais caro de origem animal, como substrato de cópia. Algumas
dessas cópias, denominadas “códices” persistem até hoje.
Análise do tipo de letra usado – o modo de escrever mudou com o
passar do tempo. Como as cópias eram feitas por ditado ocorria
frequentemente erro por parte do leitor que precisava “calcular” onde
terminava uma palavra e começava a outra porque não havia
pontuação nem separação de palavras no texto. Além disso usava-se
abreviaturas para economizar escrita. Por exemplo, θεὸς (Deus) era
abreviado como θC.
Análise dos mecanismos de produção de erros – Cada tipo de erro
que aparece na cópia de textos do Novo Testamento tem mecanismos
de produção conhecidos. Inicialmente precisamos distinguir os erros
intencionais dos erros acidentais. Os erros intencionais eram
introduzidos principalmente com o objetivo de harmonizar um texto
bíblico com outro texto que lhe é paralelo.
Essa situação ocorre, por exemplo na narrativa da conversão do
apóstolo Paulo, registrada em Atos 9.5:

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“Saulo perguntou: quem és tu, Senhor?” Ele respondeu:” Eu sou
Jesus, a quem você persegue.” (Nova Versão Internacional – NVI,
2000).
Algumas versões mais antigas inseriam após a pergunta, uma
declaração:
“E ele disse:” Quem és tu, Senhor?” Ele disse:” Eu sou Jesus, a
quem tu persegues. Duro é para ti recalcitrar contra aguilhões”.
(Versão Almeida Revista e Corrigida – ARC – 1959).
Na versão mais antiga foi utilizado um texto no qual o copista
acrescentou a frase marcada em negrito para fazer uma
harmonização com Atos 26.14.
Os erros involuntários de cópia são consequentes à qualificação dos
copistas, ao método de transmissão e às características próprias da
língua grega. Diferentemente do Antigo Testamento que foi copiado
por copistas profissionais, o Novo Testamento foi obra de amadores
de boa vontade que careciam de um preparo adequado. A cópia não
era visual e sim um ditado. Alguém lia o texto em voz alta enquanto
outros copiavam em papiros o que lhes era ditado. Erros podiam
ocorrer quando a pronúncia do leitor não era muito clara ou quando o
ruído ambiental prejudicava a comunicação.
Finalmente, a língua grega apresentava uma série muito grande de
dificuldades aos leitores e aos copistas. Além de, como já
mencionamos, as palavras serem grafadas apenas com maiúsculas
e não serem separadas umas das outras, as frases também não
tinham sinais de pontuação. Para complicar mais não existe
acentuação tônica e sim distinção entre vogais longas e curtas que
nem sempre são fáceis de perceber. Dessa forma os erros podem
ocorres por:
1. Interpretação errada do texto pelo leitor
1. Audição equivocada do copista
2. Confusão provocada na leitura ou na audição por ´palavras
com sons parecidos.
O primeiro tipo de erro ocorre porque, como já foi mencionado, nos
textos gregos antigos as palavras não eram separadas e competia ao
leitor a tarefa de decidir onde uma terminava e a seguinte começava.
Um exemplo clássico de como isso acontece é dado pela análise da
expressão inglesa GODISNOWHERE, que pode ser lida de duas

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formas diferentes: 1. GOD IS NOW HERE – Deus está aqui agora e
2. GOD IS NOWHERE – Deus não está em nenhum lugar.
O segundo tipo de erro, denominado itacismo, resulta da existência
no texto de palavras com sons e sentidos parecidos tais como
 (nós) e  (vós) que podem ser facilmente confundidas em
um ditado. Exemplo clássico de itacismo ocorre em Romanos 5.1. No
texto recebido lemos:
“Δικαιωθέντες οὖν ἐκ πίστεως εἰρήνην ἔχωμεν πρὸς τὸν θεὸν διὰ
τοῦ κυρίου ἡμῶν Ἰησοῦ Χριστοῦ,” que pode ser traduzido por
“Justificados pois, pela fé, temos paz com Deus por meio do nosso
senhor Jesus Cristo.
No texto crítico, por outro lado, temos:
“Δικαιωθέντες οὖν ἐκ πίστεως εἰρήνην ἔχoμεν πρὸς τὸν θεὸν διὰ
τοῦ κυρίου ἡμῶν Ἰησοῦ Χριστοῦ” que pode ser traduzido por
“Justificados pois, pela fé, tenhamos paz com Deus por meio do
nosso senhor Jesus Cristo.
A distinção entre o presente do indicativo e o presente do subjuntivo
é dada apenas pela diferença de sons entre as vogais omicron (curta)
e ômega (longa) em ἔχoμεν/ ἔχωμεν.
O terceiro tipo de erro é chamado ditografia e é produzido pela
repetição não intencional de letras em uma frase produzindo uma
alteração de seu sentido original. Esse mecanismo é observado em
Romanos 7.25:

χάρις δὲ τῷ θεῷ διὰ Ἰησοῦ Χριστοῦ τοῦ κυρίου ἡμῶν. ἄρα οὖν
αὐτὸς ἐγὼ τῷ νοῒ δουλεύω νόμῳ θεοῦ, τῇ δὲ σαρκὶ νόμῳ ἁμαρτίας.”
Que pode ser traduzido por: “Graças a Deus, por Jesus Cristo
nosso Senhor! De modo que eu mesmo com o entendimento
sirvo à lei de Deus, mas com a carne à lei do pecado.”
Em algumas traduções temos: “
() χάριςτῷ δὲ τῷ θεῷ διὰ Ἰησοῦ Χριστοῦ τοῦ κυρίου ἡμῶν. ἄρα
οὖν αὐτὸς ἐγὼ τῷ νοῒ δουλεύω νόμῳ θεοῦ, τῇ δὲ σαρκὶ νόμῳ
ἁμαρτίας.” Que pode ser traduzido por: “Agradeço a Deus, por
Jesus Cristo nosso Senhor! De modo que eu mesmo com o
entendimento sirvo à lei de Deus, mas com a carne à lei do
pecado.”
O quarto tipo de erro é denominado haplografia e resulta da
supressão de um grupo de letras ou de palavras em uma frase. Seu
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mecanismo de ocorrência se chama parablepsis (olhar para o lado)
e ocorre quando duas frases que se seguem têm términos idênticos
ou muito parecidos (homoiteleuton). O olho do leitor pode saltar a
segunda frase fazendo com que ela seja omitida no ditado.

Os resultados do trabalho
Como resultado das pesquisas textuais várias passagens da Bíblia
foram modificadas. Isso explica por que quando comparamos as
versões da Bíblia mais modernas tais como a versão Almeida Revista
e Atualizada (ARA) ou a Nova Versão Internacional (NVI) com as
versões mais antigas como a versão Almeida Revista e Corrigida
(ARC) encontramos algumas diferenças significativas. Veremos, a
seguir, alguns exemplos.

Texto cujas partes foram suprimidas


Romanos 8.1: “Portanto agora já não há condenação para os que
estão em Cristo Jesus” (NVI) e, “Portanto, agora nenhuma
condenação há para os que estão em Cristo Jesus, que não andam
segundo a carne, mas segundo o espírito” (ARC). A segunda parte
do versículo, suprimida na NVI, resulta provavelmente de adição
feita por copista em texto mais recente.
Atos 9.5: “Saulo perguntou:” Quem és tu, Senhor?” Ele
respondeu: “Eu sou Jesus, a quem você persegue.” (NVI). “E ele
disse:” Quem és tu, Senhor?” Ele disse:” Eu sou Jesus, a quem tu
persegues. Duro é para ti recalcitrar contra aguilhões”. (ARC
1959). Já discutido anteriormente.

Textos apresentados entre colchetes


O término longo de Marcos – Os versículos 9 a 20 de Marcos 16
que descrevem a aparição de Jesus Cristo aos seus discípulos são
apresentados entre colchetes em algumas versões. Revisada da
Imprensa Bíblica Brasileira, de 1986, baseada em ARC. Além disso,
coloca uma nota de rodapé informando a ausência dos versículos
destacados nos textos mais antigos. A NVI não adiciona os colchetes,
mas coloca uma nota de rodapé informando que “Alguns manuscritos
antigos não trazem os versículos 9-20; outros manuscritos do
evangelho de Marcos apresentam finais diferentes”.
O livramento da mulher apanhada em adultério – João 7.53 – 8.11.
A NVI informa que muitos manuscritos omitem este trecho e que
alguns outros o colocam em posição diferente.

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O “coma” joanino – I João 5.7-8:
“Porque três são os que testificam no céu: O Pai, a Palavra e o
Espírito Santo; e estes três são um. E três são os que testificam na
terra: O Espírito, a água e o sangue; e estes três concordam num.”
(ARC). Há três que dão testemunho: o Espírito, a água e o sangue
e os três são unânimes (NVI).
As versões mais novas suprimem o versículo 7, identificado como
adição recente feita com o objetivo de fortalecer os argumentos a
favor da doutrina trinitária.

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3. A Crítica Literária do Novo
Testamento
Propósitos
A análise de qualquer texto inicia pela evidenciação de suas partes
(perícopes) e pela determinação da origem de cada uma delas.
Quando versões paralelas de uma mesma perícope estão disponíveis
em dois ou mais escritos precisamos explicar as semelhanças e as
diferenças entre elas. Nesse trabalho utilizamos as metodologias da
crítica literária que incluem a crítica das fontes, a crítica da forma e a
crítica da redação.

A crítica das fontes


Objetivo da crítica das fontes
O estudo comparativo de vários livros do Novo Testamento permite
perceber que alguns registros são repetidos de maneira quase
idêntica em dois ou mais livros. As parábolas e as narrativas de
milagres de Jesus Cristo são registradas em dois ou mais evangelhos.
A Epístola de Judas praticamente se repete no capítulo 2 da segunda
epístola de Pedro.
O objetivo da crítica das fontes é a identificação das origens de cada
um dos materiais usados na composição dos textos bíblicos. De
especial interesse, nesse caso, é o problema da precedência.
Quando temos dois textos idênticos ou muito parecidos precisamos
estabelecer qual deles foi escrito primeiro e qual deles é cópia do
outro.
Outro assunto abordado nessa disciplina é a identificação de adições
feitas aos autógrafos após sua canonização que são suficientemente
antigas para que não possam ser detectadas pelas ferramentas
usuais da crítica textual. A abordagem, nesse caso, é feita com
ferramentas da crítica literária, tais como a análise de vocabulário, isto
é, verifica-se se as frequências com que determinadas palavras são
usadas nesse texto são idênticas as encontradas no resto do escrito.
É o caso do capítulo 1 do evangelho de João, onde Jesus é

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identificado como Logos (Verbo). Essa identificação não se repete no
restante do livro.

Metodologia da crítica das fontes


A metodologia da crítica das fontes envolve, entre outras coisas, o
estudo comparativo de textos no que respeita a:
1. Frequência com que o autor usa determinadas palavras
e expressões. Coincidências nas sequências de
apresentação de narrativas dentro de uma série. Se
encontramos em dois ou mais livros um grupo de
narrativas exatamente na mesma sequência é provável
que se verifique uma de duas hipóteses. A primeira é que
um dos escritores tenha copiado a série inteira do outro.
A segunda é que os dois tenham copiado a série de um
terceiro cujos escritos foram perdidos. Na realidade, é
muito pouco provável que dois ou mais autores
trabalhando independentemente sequenciem uma série
de narrativas de maneira absolutamente idêntica. O estilo
de composição de um autor se preserva quando um
escrito seu é copiado por outro.
2. As maneiras de fazer citações e de interpretar o antigo
testamento dentro do novo também diferem de autor para
autor. Alguns o citam pelo texto Massorético (texto
hebraico usado pelos judeus palestinos) outros pela
Septuaginta (texto grego dos judeus da diáspora).
Inúmeras interpretações ocorrem com destaque para as
alegorias e as tipologias.
3. As concepções teológicas e filosófica dos autores
também divergem e se preservam em seus textos
quando são copiados. O apóstolo Paulo identifica a
origem dos males que acometem o homem com a
atuação da ira de Deus.1 O apocalipse de João o
identifica com a atuação de Satanás.2

Resultados do trabalho
Essa metodologia foi aplicada com sucesso aos evangelhos sinóticos 3
e permitiu reconstituir a sua árvore genealógica. Hoje se aceita a
hipótese das quatro fontes. Ela estabelece alguns princípios: O
evangelho de Marcos é o mais antigo de todos, tendo sido escrito por
volta de 68 d.C. Além dele os demais autores consultaram uma outra

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fonte que não foi preservada e que foi identificada como fonte Q.
Mateus e Lucas adicionaram, cada um, material peculiar resultante
de suas próprias pesquisas.

A crítica da forma
Objetivo da crítica da forma
O estudo da crítica da forma, também chamada de história da forma,
foi iniciado no início do século XIX com os trabalhos de M. Dibelius
(Die Formgeshichte des Evangeliums, 1919) e de Rudolf Bultman (Die
Geshichte der Synotischen Tradition, 1921) e seu escopo de trabalho
se localiza no que poderíamos chamar de “a pré-história do texto”.
1. A crítica da forma, também denominada história da forma,
estuda as transformações que as narrativas bíblicas sofreram
na fase de transmissão oral, antes de terem sido fixadas
definitivamente pela escrita. Embora esse objetivo possa
parecer inatingível, um conjunto de postulados válidos torna
a missão exequível. São eles:
1. As histórias e ditos de Jesus, com exceção apenas da
narrativa da paixão, circularam inicialmente em pequenas
unidades independentes que eram transmitidas oralmente.
2. Essas unidades podem ser classificadas de acordo com seus
gêneros literários. Dibelius chamou-as de paradigmas e
Bultmann de apotegmas.
3. A antiguidade de cada unidade e, consequentemente, seu
valor histórico, podem ser avaliados pelo uso de critérios
específicos tais como: A

Metodologia da crítica da forma


1. A aplicação dessa metodologia segue passos bem
determinados:
1. Examina-se cuidadosamente todo o texto com o objetivo de
extrair suas unidades mais simples (perícopes). Se
tomarmos, por exemplo, o evangelho de Marcos e
colocarmos em destaque as expressões conectivas tais como
logo, imediatamente e em seguida, poderemos isolar doze
breves relatos que são inteiramente independentes um do
outro.

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2. Cada perícope pode ser classificada em um gênero literário
particular. Dibelius encontrou oito gêneros: parábolas, logias,
paradigmas, novelas, lendas pessoais e lendas cultuais
(mitos).
3. O valor histórico e a idade relativa de cada unidade podem
ser avaliados pelo uso de critérios específicos tais como:
1. Comprimento – De duas narrativas paralelas, a mais
curta é a mais antiga. Quem reconta uma história sempre
adiciona elementos ilustrativos novos.
2. Adornos – A adição de adornos tais como nomes de
pessoas, números de grande valor e detalhes descritivos,
caracterizam narrativas mais recentes.
3. Semitismos – A presença de palavras, expressões ou
estilos semíticos (provenientes da língua hebraica ou da
aramaica) está presente nas narrativas mais antigas.
4. A aplicação desta metodologia segue passos bem
determinados: Aplica-se a hipótese de trabalho fundamental
da crítica da forma que admite que cada um dos gêneros
literários presentes no texto do Novo Testamento não surgiu
ao acaso, mas resultou da atuação de fatores ambientais que
operavam no tempo em que foram transmitidos oralmente.
Segundo os autores alemães cada gênero literário tem seu
próprio Sitz im Lebem (lugar na vida). Dessa forma, cada
perícope guarda um relacionamento íntimo com as condições
de vida dos grupos que a preservou em cada momento
quando foi narrada. Brown4, em sua obra, “A comunidade do
discípulo amado” estabelece que é possível ler duas histórias
no evangelho de João. A história da atuação de Jesus Cristo
em confronto com os fariseus e a história da comunidade que
registrou o evangelho.

Resultados do trabalho
Essa metodologia permitiu entre outras coisas, evidenciar, que as
diferenças observadas entre narrativas paralelas presentes nos
quatro evangelhos resultaram do fato de elas terem sido veiculadas
simultaneamente em comunidades diferentes que suportavam
diferentes influências, pressões e perseguições. Dessa forma, a
mesma narrativa pode ser apresentada em um formato apropriado

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para a evangelização (proclamação), para a apologética (defesa de
fé da comunidade) ou para a liturgia (uso no culto).
A crítica da forma não foi aceita imediatamente por toda a comunidade
teológica. Muitas objeções foram colocadas.
A primeira delas é a declaração de que a crítica da forma
impõe ao texto uma excessiva racionalização que leva, por
vezes a negar, ou a colocar em dúvida, a natureza
sobrenatural de seu conteúdo, como ocorre, por exemplo, nas
narrativas de milagres e de exorcismos. Para muitos, esses
conteúdos são mitos adicionados pela comunidade à
narrativa original no processo de comunicação oral.
A segunda é a declaração de que a crítica da forma
desqualifica os autores bíblicos de sua situação como
agentes inspirados e os transforma em meros compiladores
de tradições comunitárias.
Apesar de todas as objeções, essa metodologia produziu resultados
muito importantes. Aos que desejarem uma visão melhor de seu
alcance aconselha-se a leitura da obra “As parábolas de Jesus” de
Jeremias6.

A crítica da redação
Objetivo da crítica da redação
A crítica da redação surgiu como uma reação à crítica da forma com
o objetivo de reabilitar os escritores bíblicos como autores reais e não
apenas como meros compiladores de narrativas populares. Seu
trabalho se baseia nos seguintes postulados:

Metodologia da crítica da redação


1. O foco principal da sua atenção é o livro como um todo, com
seu texto fechado e não as suas partes constituintes.
1. Nessa fase do trabalho se torna de extrema importância
descobrir por que dentre os autores de textos paralelos, como
é o caso dos três evangelhos sinóticos, houve diferentes
critérios para a seleção de cada uma das partes inseridas no

6 Jeremias, J. As parábolas de Jesus, tradução de João Rezende Costa, São


Paulo, Paulinas, 1983.
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texto. Isto é, procura-se explicar as causas das diferenças
observadas nas apresentações finais.
2. Vistos dessa forma, os autores bíblicos podem ser entendidos
como pessoas que escreveram motivados pelos fatos no
lugar e na época em que viveram e que, pela seleção e pela
edição do material utilizado, deixaram marcados em suas
obras suas características teológicas particulares.

Os resultados do trabalho
O grande alvo da Crítica da redação é a descoberta do objetivo
teológico do escrito. Com que objetivo o autor escreveu? É possível
que ele quisesse evangelizar, isto é proclamar a mensagem aos que
não a conheciam. Ele poderia também ter um objetivo doutrinário
(ensino) ou apologético (defesa de sua fé). A análise do material
peculiar do livro dá uma excelente indicação do que o autor pretendia.

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4. O mundo do Novo
Testamento
Propósitos
Para entendermos como vivam e pensavam os autores do Novo
Testamento necessitamos conhecer as principais características dos
tempos em que viveram. Quase todos eles eram judeus, falavam a
língua aramaica e eram súditos do Império Romano que tinha uma
estrutura de dominação muito forte centrada no culto a um imperador
divinizado.
Consideraremos, portanto, algumas questões que precisamos
responder: 1. Quais eram os limites geográficos do que se entende
por Mundo do Novo Testamento. 2. Como era a organização política
e social do Império Romano? 3. Quais foram os imperadores romanos
que interferiram com a história bíblica? 4. Que governantes romanos
e judeus que, direta ou indiretamente, se relacionam com os fatos
descritos nos livros do Novo Testamento e quais foram as principais
características de cada um deles. 5. Qual era a situação política da
Palestina nos tempos do Novo Testamento?

Geografia Política do Império Romano


Chamamos de “Mundo do Novo Testamento” a um conjunto de terras
situadas em volta do Mar Mediterrâneo oriental que serviu como
cenário geográfico para os fatos narrados nos livros históricos do
Novo Testamento: Os quatro evangelhos e os Atos dos Apóstolos.
Estes fatos incluem o ministério de Jesus Cristo, a expansão inicial
da Igreja na Judeia, a obra missionária dos cristãos primitivos e o
processo de institucionalização da igreja ocorrido no final do primeiro
século.
As terras em estudo se estendem desde a península itálica, no
ocidente, até o deserto da Arábia, no oriente e desde o limite norte do
deserto de Saara, ao sul até um paralelo que tangencia o norte do
Mar Negro, ao norte. No tempo em que se passaram os fatos
descritos nos livros do Novo Testamento todo este território integrava
o Império Romano. Muitos dos nomes das regiões que encontramos
na Bíblia, tais como Síria, Ásia, Bitínia, Galácia, Ponto, Macedônia e
Grécia, são nomes de províncias dados pelos dominadores romanos.

20
O império romano, criado por César Augusto, se constituía numa
espécie de mosaico político e étnico resultante da junção de grande
número de unidades geográficas denominadas províncias. O sistema
político romano foi constituído de maneira a respeitar as
peculiaridades dos povos submetidos, especialmente as suas
religiões. Cada província podia manter a sua própria língua nativa,
adorar os seus próprios deuses desde que concordassem em cultuar
a deusa Roma e o Imperador e, na maioria dos casos, era governada
por líderes nativos que juravam lealdade à Roma e recebiam por
méritos militares (ou compravam por grande soma) o título de cidadão
romano7
Em virtude da Helenização, instituída por Alexandre e por seus
sucessores a língua grega era o idioma comum às províncias da parte
oriental do império enquanto o Latim era falado no lado ocidental. Este
fato (a existência de uma língua comum) associado à implantação de
um eficiente sistema de estradas terrestres e de rotas marítimas e à
segurança decorrente da presença de tropas romanas por toda a
parte, foi de extrema importância para o livre deslocamento de
missionários dentro do império e possibilitou também o surgimento do
Novo Testamento.

Panorama histórico do Império


O Império Romano, fundado por César Augusto, se originou da
pequena república de Roma cujo território inicial se limitava à parte
central da península itálica. Depois de haver passado por lutas, nas
quais foram derrotados vizinhos rivais tais como os etruscos, ao norte,
e os cartagineses, ao sul, Roma adquiriu o domínio completo das
rotas terrestres e marítimas do Mediterrâneo, o que lhe permitiu uma
expansão geográfica sem precedentes na história. Roma se
estruturou inicialmente na forma de república com Júlio César, e,
posteriormente, com César Augusto, transformou-se num império
onde um sistema de patronato e clientela 8 unia as províncias. Nesse
sistema se destacavam a veneração à deusa Roma e ao imperador
que recebeu o título de divino. O Apocalipse de João mostra o
movimento de resistência dos cristãos do final do primeiro século

7At.22.24-29
8HORSLEY, RICHARD A., Paulo e o Império, religião e
poder na sociedade imperial romana, São Paulo, Paulus, 2004.
Parte II – Introdução: Patronato, sacerdotados e poder.
21
contra a exigência de prestar culto ao imperador. A mensagem deste
livro estimula os cristãos à perseverança e à fidelidade. A sucessão
dos imperadores não era hereditária, mas cada um deles tinha a
prerrogativa de indicar seu próprio sucessor o qual era submetido à
aprovação do senado9.

Imperador Início Término


César Augusto 27 a.e.c. 14 e.c.
Tibério César 14 37
Caio (Calígula) 37 41
Cláudio 41 54
Nero 54 68
Galba 68
Otão 68
Vitélio 69
Vespasiano 69 79
Tito 79 81
Domiciano 81 96

Os imperadores romanos do primeiro século

Na tabela acima aparecem os nomes dos imperadores romanos cujos


governos cobrem o período em que se deram os fatos relatados nos
livros do Novo Testamento, isto é, no século I da era cristã.
Pode-se observar que o tempo de governo dos imperadores era muito
variável. O período que se seguiu à morte de Nero, 68-69, ficou
conhecido como o ano dos quatro imperadores e foi caracterizado

9SUETÔNIO, A vida dos doze Césares, tradução Pietro


Nasseti, São Paulo, Martin Claret, 2006.
22
pela rápida substituição de três deles. Parecia que o Império havia
terminado. Foi nesta época que mais se intensificou a luta dos judeus
contra os romanos. O apocalipse de João descreve este ano como o
período em que a cabeça da besta foi ferida 10 . Vespasiano que
assumiu em 69, reordenou a política, inaugurou a dinastia dos Flávios
e curou o “ferimento aparentemente mortal” da cabeça da besta.
Alguns destes imperadores merecem atenção especial ou porque
seus nomes são mencionados na Bíblia ou porque durante seu
governo ocorreram fatos que repercutiram profundamente na História
do Cristianismo. Augusto governava na época do nascimento de
Jesus Cristo 11 e Tibério no período em que iniciou a pregação de
João Batista no deserto da Judeia 12. Cláudio era o governante na
época em que foi dada ordem para expulsão dos judeus de Roma. As
evidências mostram que foi neste período que Áquila e Priscila saíram
daquela cidade 13 . Nero promoveu perseguição aos cristãos
acusando-os de haver mandado incendiar Roma conforme nos
informa o historiador romano Tácito 14 . Vespasiano e seu filho Tito

10 Apocalipse 13.3
11 Lucas 2.1
12 Lucas 3.1,2
13 Atos 18.2
14Caius Cornelius Tacitus (55/56-118 d.C.), senador romano.
Em sua obra Annals (ca. 116-117 d.C.) ele inclui uma biografia
do Imperador Nero (54-69 d.C.) onde comenta o incêndio na
cidade de Roma, cuja responsabilidade é atribuída ao
imperador, com as seguintes palavras: “Nenhum esforço
humano, nem a generosidade do imperador, nem mesmo o mais
apaziguador dos deuses pode terminar com a crença
escandalosa de que o incêndio foi ordenado [por Nero].
Portanto, para extinguir o rumor, Nero escolheu como
substitutos para serem incriminados em seu lugar, punidos de
forma pouco comum e castigados por seus atos vergonhosos
aqueles pertencentes ao grupo chamado Cristãos”. O fundador
que lhes deu esse nome [Cristus em Latim], foi executado no
reino de Tibério Cesar pelo procurador Pôncio Pilatos.
Suprimida por algum tempo, a superstição mortal eclodiu
novamente não apenas na Judeia, a origem desse mal, mas
23
participaram como comandantes na Guerra Judaico Romana (66-70).
Domiciano, também filho de Vespasiano, segundo as hipóteses mais
aceitas, era o imperador na época em que foi concluído o texto do
Apocalipse de João.

Classes sociais e distribuição de riquezas


Havia muitos pobres nas províncias. Os romanos, entretanto, só se
preocupavam com os ricos. Eles sempre procuravam se associar aos
ricos de cada província e lhes davam cargos importantes no governo
os quais eram ricamente remunerados assumindo, muitas vezes a
condição de arrendatários do Império. Saoût 15 nos apresenta uma
descrição bastante minuciosa da vida econômica no Império Romano.
O procônsul desta província da Ásia tinha um salário de um
milhão de Sestércios (talvez o equivalente a 2.500.000 francos
franceses). O salário de Galião (At.8.12) não devia ser muito
inferior…. Segundo At.12.21, Herodes Agripa, naquele dia estava
vestido com trajes reais. Flávio Josefo, que narra o mesmo
episódio, precisa que estas vestes eram totalmente em prata e de
um tecido admirável.
Se havia estes casos de riqueza, por outro lado, havia as classes
pobres: os escravos, as viúvas e aqueles que faziam da pobreza uma
opção de vida, tais como os escribas judeus 16. Os romanos sempre
escolhiam os ricos das terras dominadas para ocupar posições
importantes no governo e ignoravam completamente os pobres.

A Palestina sob o Governo Romano


Geografia física da Palestina
A Palestina se situa no braço ocidental da região que ficou conhecida
como O crescente fértil, uma área com a forma de meia lua que,
iniciando na península do Sinai, se estende para o norte pela faixa

também na cidade [de Roma], na qual todas as coisas horríveis


e vergonhosas partindo de todas as partes vieram juntas e se
tornaram populares.
15Saoût, I. Atos dos Apóstolos – ação libertadora p. 179.
16JEREMIAS. J. Jerusalém no Tempo de Jesus—pesquisas de
história econômica—social no período neotestamentário. São
Paulo, Paulinas, 1983.
24
territorial compreendida entre o mar Mediterrâneo e o deserto da
Arábia, até a Síria. Daí se dirige para o oriente e para o sul pela
Mesopotâmia, acompanhado os vales dos rios Tigre e Eufrates até o
Golfo Pérsico.
Como caminho natural entre dois grandes impérios, o Egito ao sul e
Assíria, Babilônia e Pérsia, ao norte, a Palestina foi, por todo o
período veterotestamentário, alvo da cobiça dos governantes vizinhos
que dela se serviam como via natural e base estratégica para as suas
conquistas militares e, eventualmente, como alvo para suas
pilhagens. Depois de um curto período de independência política
resultante da revolução doas Asmoneus, as lutas entre Aristóbulo e
Hircano pela sucessão no trono pontifical dos Macabeus abriram o
caminho para que os romanos, comandados por Pompeu, entrassem
na Palestina e fizessem a sua anexação ao Império como província
subsidiária da Síria no ano 63 a.C.
No tempo do Novo Testamento a Palestina era uma província romana
limitada ao ocidente pelo mar Mediterrâneo, ao norte pela província
da Síria, ao sul pelo Egito e ao oriente pelo deserto árabe. Esta
pequena faixa de terra estava dividida em cinco distritos: Judeia,
Samaria, Galileia, Decápolis e Pereia. A Judeia era o centro da vida
religiosa e social do povo judeu. Em Jerusalém, sua capital religiosa,
se encontravam o templo reconstruído por Herodes o Grande e o
Sinédrio, uma espécie de Assembleia Nacional. Na capital política,
Cesareia marítima, onde se alojavam os governantes e as legiões
romanos, o próprio Herodes mandou construir dois templos, um em
honra à deusa Roma e outro em honra ao Imperador.

Principais cidades da Palestina.


Jerusalém – A capital religiosa e principal cidade do país. Nela se
encontrava o templo que a tornava o centro da vida social e religiosa
do país. A presença do templo determinava um grande movimento de
peregrinos que iam anualmente às festas e entregavam os seus
dízimos. A prática do segundo dízimo que determinava que cada fiel
gastasse em compras na cidade de Jerusalém uma quantidade de
dinheiro igual àquela que havia sido entregue no templo, promoveu
na cidade um florescente comércio, principalmente de “souvenires”.
Cesareia marítima – Foi construída por Herodes, o grande, para ser
a capital romana da Judeia. Nela se encontravam templos dedicados
à adoração de Roma e do Imperador, a residência do Governador
Romano e as bases de operação das legiões romanas, entre outras

25
coisas. É citada no livro de Atos dos Apóstolos no episódio da
conversão do centurião Cornélio e no julgamento de Paulo.
Tiberíades – Edificada por Herodes Antipas, filho de Herodes o
Grande, tetrarca da Galileia e da Pereia, para ser sua capital. Essa
cidade começou a ser construída após o ano 14 d.C., quando César
Augusto morreu e foi sucedido por Tibério, que permaneceu no
comando do império até 37 d.C. A
Cafarnaum – Situada à margem do mar da Galileia, era uma colônia
de pescadores na qual vivia a família de Simão Pedro, Nela se
encontrava uma sinagoga que Jesus frequentou. Nas suas
vizinhanças se deu também o episódio da restauração de Pedro
depois da ressurreição.

Principais governantes da Palestina


Os governantes da Palestina no período bíblico foram sucessores da
dinastia dos Asmoneus, que começou a declinar em 63 A.C. quando
Pompeu dominou a região e acabou, dizimada por Herodes, o
Grande.
Herodes, o Grande (37 a.e.c – 4 e.c.) - Herodes recebeu o poder dos
romanos, por negociação de seu pai Antípater, um idumeu, e
consolidou-o pelo casamento com Mariane, filha de Antígono, um rei
asmoneu. Depois de conseguir o apoio dos romanos, assumiu o
domínio de Jerusalém das mãos de Antígono e nomeou sumo –
sacerdote a Anás, que não pertencia à família zadoquita. Seu governo
foi caracterizado por grandes obras públicas dentre as quais se
destacam a reconstrução do templo de Jerusalém, a construção da
fortaleza da Massada no extremo sul do país e construção de
suntuosos edifícios na cidade de Cesareia marítima. Seu nome é
citado em Mateus 2.22 quando se descreve o retorno de José e Maria
da terra do Egito.
Arquelau e seus irmãos (4-6 d.C.) - Sucederam a Herodes após sua
morte. A Arquelau coube a Judeia, a Samaria e a Idumeia. A Antipas
coube a Galileia e a Pereia. Filipe (4-36 d.C.) - Empreendeu grandes
construções e ficou conhecido como um governante justo e pacífico.
Herodes Antipas (4-39 d.C.), ilho de Herodes o Grande não era judeu.
Seu pai era idumeu e sua mãe samaritana. É o governante mais
citado nos evangelhos. Jesus o chama de “esta raposa” (Lc.13.32).

26
Ele ordenou a morte de João Batista que o denunciou por causa de
sua união ilegal com Herodíades 17.
Agripa I – Neto de Herodes o Grande e de Mariane, era o governante
citado em Atos dos Apóstolos. Foi nomeado rei pelo imperador
Calígula, foi o responsável pelo martírio de Tiago, entre outros.
Governantes Romanos – Paralelamente ao governo judeu havia
governantes romanos que, na realidade, detinham o poder supremo.
O mais conhecido destes foi Pôncio Pilatos que emitiu a sentença de
condenação de Jesus Cristo à morte na cruz.

17Mt.14.1-12
27
5. Cânon e texto do Novo
Testamento
Propósitos
No estudo deste capítulo pretendemos abordar duas questões
importantes A primeira: por que motivos, dentre os muitos livros que
foram escritos pelos seguidores de Jesus Cristo nos dois primeiros
séculos de nossa história, apenas vinte e sete foram selecionados
para serem usados pelas igrejas como literatura permitida em seus
cultos? A segunda: Como os textos desses livros foram preservados
por cópia, traduzidos e editados até chegar às nossas mãos?

Por que surgiu o Novo Testamento?


O Novo Testamento, tal como o conhecemos hoje, é constituído por
vinte e sete livros que são aceitos como literatura inspirada particular
do cristianismo. Os quatro primeiros, denominados evangelhos, são
coleções de relatos de feitos e de ensinos do Senhor Jesus Cristo. O
livro dos Atos dos Apóstolos, por sua vez, descreve a história da
formação da igreja cristã no primeiro século. As epístolas são
compêndios de teologia prática que enfatizam principalmente os
princípios éticos do cristianismo e o combate às heresias. Finalmente,
o Apocalipse de João se constitui em uma mensagem de alento para
cristãos perseguidos pelo poder imperial que os estimula à
perseverança até a volta do Senhor.
Essa coleção de escritos foi formada com o passar dos tempos. Só
ficou definitivamente pronta no final do século IV. Desses vinte e sete
livros nada menos de vinte já vinham sendo aceitos pelos cristãos
como literatura inspirada desde o final do século II. Os restantes
exigiram um exame mais minucioso e demorado para que fossem
finalmente admitidos no cânone.
Quando Jesus declarou: Examinais as escrituras porque vós cuidais
ter nelas a vida eterna.” 18 ele pensava nas escrituras hebraico
aramaicas (velho testamento). Igualmente, Paulo, declarou que “toda

18Jo. 5.39
28
a escritura é inspirada por Deus….” 19 pensando nos escritos dos
profetas hebreus dos velhos tempos. Jamais ele imaginou que seus
escritos seriam igualados, em termos de revelação e autoridade aos
escritos dos antigos que ele mesmo havia aprendido a reverenciar.
Isso, entretanto, aconteceu e de maneira bastante precoce. A
segunda epístola de Pedro declara que “
como também o nosso amado irmão Paulo lhes escreveu, com a
sabedoria que Deus lhe deu. Ele escreve da mesma forma em todas
as suas cartas, falando nelas destes assuntos. Suas cartas contêm
algumas coisas difíceis de entender, as quais os ignorantes e
instáveis distorcem, como também fazem com as outras escrituras,
para a própria destruição deles.20

Houve três motivos principais para que isso acontecesse:


1. A necessidade de preservar a pureza da vida (santidade) e
das doutrinas dos cristãos contra o sincretismo com as
religiões populares da época. Um bom exemplo está nas
instruções que Paulo dá aos cristãos de Corinto a respeito da
maneira correta de celebrar a ceia do Senhor que estava
sendo confundida com os banquetes político-religiosos do
império romano21.
1. A necessidade de dispor de argumentos autorizados para
responder os questionamentos daqueles que pretendiam
descaracterizar o cristianismo com uma religião autônoma ou
negar a validade de seus dogmas fundamentais 22.
2. A necessidade de prover os cristãos da segunda geração e
das seguintes com um relato fiel dos ensinos do Mestre Jesus
Cristo que lhes permitisse propagar sua fé atingindo os que
estavam de fora.
Essas necessidades levaram os cristãos dos primeiros séculos a
colecionar os escritos reconhecidos como autorizados a preservá-los
por meio de cópias periódicas. Uma vez que já não mais dispunham
da presença dos apóstolos e dos demais líderes da primeira geração

19II Tm.3.16
20II Pd.3.15b,16.
21 I Co.11.17-34.
22 Jd.3,4.
29
(presbíteros, bispos) passaram a usar as palavras escritas por esses
líderes como fonte de instrução.

Critérios de canonicidade
Chamamos de cânon ou cânone ao conjunto de livros sancionado
pela igreja para uso na liturgia. Essa palavra, que passou do grego
para nossa língua sem tradução, significava originalmente “cana”,
uma vara que os construtores usavam para medir suas obras e
verificar se elas seguiam corretamente a especificação do arquiteto.
Nem sempre houve um cânone coincidente com o atual. Ele foi
formado por um processo de seleção desenvolvido por líderes das
igrejas nos primeiros séculos que seguiram alguns critérios com muito
rigor. Os principais são:
1. Ortodoxia (consistência doutrinária) - Hoje o texto escrito do
Novo Testamento é usado para a aferição da correção de
uma doutrina ou prática eclesiástica. Nos tempos iniciais
acontecia o oposto. O que era aceito por consenso, a partir
do testemunho dos apóstolos e de outros líderes, servia como
critério para avaliar a fidelidade doutrinária dos escritos. 23
Qualquer escrito que apresentasse alguma divergência do
que foi recebido por tradição era automaticamente rejeitado.
1. Apostolicidade – Aqueles escritos cujas autorias podiam ser
atribuídas a um apóstolo, ou a alguém que os tivesse
composto sob orientação direta de um apóstolo, eram
imediatamente aceitos como verdade revelada. Os apóstolos
haviam aprendido a verdade diretamente do Senhor. 24
Durante sua vida eles foram consultados para esclarecer
dúvidas a respeito de questões doutrinárias nas igrejas. 25
Após suas mortes, as igrejas passaram usar os textos que
eles haviam escrito ou sancionado como referência para o
mesmo objetivo.26 Portanto, o fato de que um escrito era de
autoria de um apóstolo lhe conferia grande autoridade e lhe
abria as portas no processo de canonização. Esse critério

23 I Jo.1.1.
24 I Co.11.23
25 At.15
26 II Pd.3.15,16.
30
conduziu a um erro. A epístola aos hebreus foi canonizada
porque naquela época se acreditava que ela havia sido
escrita pelo apóstolo Paulo. A sabedoria de Deus aproveita
até os erros dos homens para fins preciosos!
2. Suficiência ou antiguidade – quando dois escritos
apresentavam aproximadamente os mesmos conteúdos
apenas o mais antigo era preservado. Não se podia perder
tempo e trabalho guardando repetições. Esse critério também
não foi absoluto. A epístola de Judas é praticamente a
repetição da segunda parte da segunda epístola de Pedro.
Essa ocorrência pode ser explicada pelo fato de alguns livros
terem adquirido grandes prestígios em algumas
comunidades.
3. Aceitação universal (catolicidade) – os escritos que eram
aceitos pela grande maioria dos cristãos (igrejas do oriente e
do ocidente) foram canonizados com maior facilidade do que
aqueles que só foram preservados em nichos pequenos de
cristãos.

Pequena história do cânon


A formação do cânone só veio a se completar no final do século IV,
mais especificamente em 397 d.C. Entretanto, precocemente, os
escritos dos autores cristãos foram ganhando um “status” que os
equiparava aos escritos inspirados do Antigo Testamento e admitidos
para uso na liturgia pelas igrejas. Até que a listagem se completasse
passaram-se nada menos de três séculos.
1. O primeiro esforço registrado para elaborar uma lista de livros
sagrados para os cristãos se deve a Marcião 27 que, movido
pelo desejo de combater as investidas judaizantes, publicou
por volta do ano 140 d.C. uma relação onde se encontrava
apenas o evangelho de Lucas, o livro de Atos dos Apóstolos
e dez das treze epístolas do apóstolo Paulo.

27Marcião de Sinope - ou Marcion – (Μαρκίων Σινώπης) – A


sua teologia, chamada Marcionismo, propunha a existência de
dois deuses distintos, um no Antigo Testamento e outro no
Novo.
31
1. Ainda no século II, Irineu da Lyon 28 mencionou a existência
de quatro evangelhos que ele relacionou aos quatro pontos
cardeais, o livro de Atos dos Apóstolos, o Pastor de Hermas
e treze epístolas paulinas.
2. Tertuliano de Alexandria29 listou os evangelhos e as epístolas
que ele fez corresponderem à lei e aos profetas do antigo
testamento, respectivamente o que permite perceber que os
cristãos usaram o antigo testamento como modelo para a
organização do seu cânone. O cânone de Tertuliano continha
vinte e um livros: os quatro evangelhos, o livro de Atos dos
Apóstolos, treze epístolas de Paulo, a primeira epístola de
Pedro, a primeira epístola de João e o Apocalipse de João.
3. Orígenes de Alexandria30 dividiu os escritos cristãos em três
grupos. I – Os escritos plenamente aceitos: Os quatro
evangelhos, Atos dos Apóstolos, as treze epístolas de Paulo,
I Pedro, I João e Apocalipse de João. II – Os que tinham
aceitação contestada por alguns grupos de cristãos: II Pedro,
II João, Hebreus, Tiago e Judas. III – Os definitivamente
rejeitados: Atos de Paulo, o Pastor de Hermas, Apocalipse de
Pedro, Didaquê e a epístola de Barnabé.
4. O cânone muratoriano – Coleção de documentos da Igreja de
Roma que foram descobertos no século oitavo por um
bibliotecário chamado Muratori e datados do período de 170

28Irineu de Lyon, Εἰρηναῖος [pacífico] transliterado em


Irenaeus, (ca. 130—202) nasceu, segundo se crê, na Ásia
Proconsular, foi discípulo de Policarpo de Esmirna e assumiu
seu episcopado na igreja de Lyon (Lugdunun), na província da
Gália.
29Quinto Sétimo Florente Tertuliano, originalmente um
filósofo pagão, (ca.160 - ca.225), se converteu ao cristianismo
antes de 197, foi um escritor prolífico de obras teológicas e
ascéticas.
30Orígenes (ca.185 – ca.254) ensinou em Alexandria, onde
Clemente havia ensinado. Ele mudou-se posteriormente
para Cesareia e morreu ali depois de ter sido torturado durante
uma perseguição.
32
– 200 d.C. Incluía os quatro evangelhos, os Atos dos
Apóstolos, treze epístolas de Paulo, duas de João, a epístola
de Judas, o Apocalipse de João e o Apocalipse de Pedro.
5. O cânone foi fechado ao final do quarto século nos concílios
de Hipona (397) e de Cartago (398).
6. Eusébio de Cesareia publicou em 325 d.C. uma relação na
qual apareciam: os quatro evangelhos, o livro de Atos dos
Apóstolos, quatorze epístolas de Paulo (incluindo Hebreus), I
João, I Pedro e Apocalipse de João como livros cuja
inspiração era plenamente aceita. Uma segunda relação
continha os livros com canonicidade discutida: as epístolas
de Tiago, Judas, II Pedro, II João e III João. Finalmente
apresentou os livros cuja canonicidade havia sido
definitivamente recusada: o Apocalipse de Pedro, Atos de
Paulo, o Pastor de Hermas, Didaquê e Epístola da Barnabé.

Nossas Bíblias
Temos hoje várias versões do Novo Testamento em língua
portuguesa. Nosso estudo nos coloca, inicialmente, diante da
necessidade de escolher uma versão de referência. Isso é
consequência do processo de tradução da Bíblia das línguas originais
para as modernas.
Atualmente distinguimos dois grandes grupos de Bíblias em nossa
língua: as Bíblias católicas e as Bíblias protestantes. Elas podem ser
identificadas pelo conjunto de livros que apresentam. As Bíblias
protestantes contem sessenta e seis livros, sendo trinta e nove no
antigo testamento e vinte e sete no novo. As Bíblias católicas nos
apresentem ainda um conjunto de livros que são chamados de
apócrifos (escondidos) pelos protestantes ou de deuterocanônicos
pelos católicos.
As Bíblias protestantes mais antigas são derivadas da primeira
tradução feita por João Ferreira de Almeida 31 a partir dos textos
hebraico e aramaico para o Antigo Testamento e do texto grego para
o Novo. Derivados de seu trabalho, temos hoje as versões Almeida

31João Ferreira Annes de Almeida (1628 – 1691), católico e


convertido ao protestantismo. Tornou-se ministro da Igreja
Reformada Holandesa. Completou a tradução da Bíblia para a
língua portuguesa em 1654.
33
Revista e Corrigida (ARC) e Almeida Revista e Atualizada (ARA).
Dispomos hoje ainda da Nova Versão Internacional (NVI), feita sob os
auspícios da Sociedade Bíblica Internacional, da qual, a primeira
parte completada foi o novo Testamento (1994). O volume completo
foi impresso em 2001. A Nova Almeida Atualizada (NAA) foi publicada
pela Sociedade Bíblica do Brasil em 2017.
As Bíblias católicas mais tradicionais são derivadas da versão do
padre Matos Soares 32 a partir do texto latino de Jerônimo 33 ,
conhecido como “vulgata” 34. Após o Concílio Vaticano II (1962–1965)
foram lançadas versões católicas a partir dos textos originais
hebraicos e gregos. Destaca-se, entre elas, a “Bíblia de Jerusalém”
(1981,2002).
Nos povos de língua inglesa é muito popular a Bíblia do Rei Tiago 35
(KJV) ou Jaime I (BKJ) publicada no século XVII (1611) sob os
auspícios da Igreja anglicana. Atualmente já possuímos uma tradução
desta importante versão para a língua portuguesa.
Encontramos ainda versões preparadas por grupos religiosos para
seu uso particular. É o caso da “Tradução Novo Mundo das Escrituras
Sagradas” do grupo denominado “Testemunhas de Jeová”, feita a
partir de um texto em inglês de 1961. Essa versão não usa os nomes
“Antigo Testamento” e “Novo Testamento”. Em seu lugar utiliza
“Escrituras Hebraico aramaicas” e “Escrituras Gregas Cristãs”. Uma
peculiaridade desta versão está em encontrarmos o nome “Jeová” no
Novo Testamento, o que não acontece nas demais36.

Pequena história do texto


As traduções do Novo Testamento das Bíblias em português foram
feitas a partir de duas fontes: O “texto recebido” de Erasmo de

32Lisboa, 1932.
33Eusebius Sophronius Hieronimus (347 – 420)
34Tradução latina concluída em 400 DC.
35Sugerimos a leitura de: NORTON, D. A Bíblia King James,
uma breve história de Tyndale até hoje, BVBOOKS, Rio de
Janeiro, 2013.
36Pois, o que diz a escritura? “Abraão exerceu fé em Jeová, e
isso lhe foi contado como justiça”. Rm.4.3 (TNM)
34
Roterdão37 e o Texto Crítico preparado por uma equipe de eruditos
dentre os quais sobressai o nome de Constantino von Tischendorff38.
Erasmo de Roterdão publicou em 1516 a primeira edição do Novo
Testamento grego, feita a partir de manuscritos antigos, com falhas
complementadas por uma retroversão da vulgata latina. Duas novas
edições foram feitas em 1519 e em 1522. A primeira delas apresenta,
pela primeira vez, o título “Novum Testamentum”. A segunda causou
certa celeuma porque Erasmo, de posse de dados mais substanciais,
resolveu excluir do texto a passagem conhecida como “o coma
joanino”.
Porque três são os que testificam no céu: o Pai, a Palavra e o
Espírito; e estes três são um. E três são os que testificam na terra:
O espírito, a água e o sangue, três concordam num. (I Jo.5.7-8).
Ameaçado de excomunhão, sob a acusação de Arianismo, Erasmo
reintroduziu o texto suprimido na versão seguinte, editada em 1514.
Hoje, de posse de manuscritos mais fiéis, os textos modernos
apresentam a forma minimizada que não menciona o testemunho
celeste:
E o Espírito é o que dá testemunho, porque o Espírito é a verdade.
Porque três são os que dão testemunho: o Espírito, e a água, e o
sangue; e estes três concordam. (I Jo.5.7-8).
A quinta e última edição da obra de Erasmo foi lançada em 1535 e é
até hoje a base para a tradução do Novo Testamento para línguas
modernas.
O século XIX assistiu ao nascimento do “Texto Crítico”, este baseado
no “Códex Sinaiticus” e no “Códex Ephraemi Syri Rescriptus” que

37Erasmo de Roterdã ou Desidério Erasmo (nascido Roterdã,


Holanda, 1466, morto em Basiléia, Suíça, 1536)
38Konstantin von Tischendorf (1815-1874) descobriu o
“Codex Sinaiticus” no mosteiro de Santa Catarina, no sopé do
Monte Sinai. Era um hábil linguista. Decifrou e publicou em
1845 o Códice de “Ephraemi Syri rescriptus”, que contém
partes de todos os livros das Escrituras Gregas Cristãs (Novo
Testamento), exceto II Tessalonicenses e II João. o Códice
contém ainda partes das Escrituras Hebraicas (Velho
Testamento) traduzidas para o grego.
35
vieram à luz como resultado dos trabalhos de um grupo de eruditos
dentre os quais se destaca Tischendorff. Oito textos do Novo
Testamento foram lançados entre 1841 e 1873, sendo a última
denominada “Editio Octava Critica Maior”. Por esta razão este texto
ficou conhecido como “texto crítico”. As versões mais modernas do
Novo Testamento em português (ARA, NVI) foram preparadas a partir
deste texto.

Divergências entre textos


A apreciação de algumas passagens pode ajudar a entender as
diferenças. Comecemos com Rm.5.1.
Texto Recebido: δικαιωθεντες ουν εκ πιστεως ειρηνην εχομεν προς
τον θεον δια του κυριου ημων ιησου χριστου.
Texto Crítico: Δικαιωθέντες οὖν ἐκ πίστεως εἰρήνην ἔχωμεν πρὸς
τὸν θεὸν διὰ τοῦ κυρίου ἡμῶν Ἰησοῦ Χριστοῦ,

A diferença essencial dos dois textos está no tempo do verbo. No


texto recebido o verbo “εχομεν” se encontra no presente do indicativo
como se verifica pela presença da vogal breve ômicron. No texto
crítico o mesmo verbo aparece no presente do subjuntivo “ἔχωμεν”
indicado pela presença da vogal longa ômega. Essa variação pode
ser explicada pelo fato que as cópias do Novo Testamento eram feitas
por ditado oral. Na leitura é fácil confundir sons breves com longos.
Um bom exemplo da língua inglesa é a possibilidade de confundir “fit”,
ajuste, com som breve com “feet”, pés, onde o som é longo.
Traduzindo a partir do texto recebido teremos: “Justificados, pois, pela
fé, temos paz com Deus por meio do senhor nosso Jesus Cristo”. A
tradução a partir do texto crítico, por outro lado, fornece: “Justificados,
pois, pela fé, tenhamos paz com Deus por meio do senhor nosso
Jesus Cristo”. Outro texto que merece ser examinado: Romanos 8.1:

NVI Portanto, agora já não há condenação para os que estão em Cristo


Jesus.
ARC Portanto agora nenhuma condenação há para os que estão em Cristo
Jesus, que não andam segundo a carne, mas segundo o espírito.

36
ARA Portanto, agora nenhuma condenação há para os que estão em Cristo
Jesus.
TR ουδεν αρα νυν κατακριμα τοις εν χριστω ιησου μη κατα σαρκα
περιπατουσιν αλλα κατα πνευμα.
TC Οὐδὲν ἄρα νῦν κατάκριμα τοῖς ἐν Χριστῷ Ἰησοῦ.

Uma comparação muito fácil de ser vista mostra que as versões mais
modernas, revisadas, segundo os melhores manuscritos gregos e
hebraicos (ARA, NVI) seguem o texto crítico. A versão mais antiga
(ARC) segue o texto recebido. A diferença aí pode ser explicada
porque o texto recebido foi preparado a partir de manuscritos no qual
a segunda parte do versículo foi adicionada (um erro intencional de
cópia). Provavelmente tratava-se de uma anotação feita à margem
por um copista que foi posteriormente incorporada ao texto. As
versões mais modernas (ARA, NVI) seguem o texto do códex sinaítico
que não recebeu essa adição.

37
Unidade II – Livros Históricos
do Novo Testamento

38
Nesta unidade estudaremos os livros que nos fornecem a
linha histórica do Novo Testamento: Os evangelhos
sinóticos e o livro dos Atos dos Apóstolos.

Os três primeiros evangelhos: M\teus, Marcos e Lucas


são chamados sinóticos por causa da semelhança de
seus conteúdos. Muito cedo os cristãos perceberam que
as três narrativas da obra de Jesus Cristo podem ser
colocadas lado a lado e examinadas sem mover os olhos
da página (syn + óptikos).

O livro de Atos dos Apóstolos trata da história da igreja


cristã das origens após a morte e a ressurreição de Jesus
Cristo com ênfase especial para a obra missionária.

39
1. Os evangelhos sinóticos
Propósitos
No estudo desta primeira unidade de “Livros Históricos do Novo
Testamento” pretendemos abordar algumas questões significativas
para o início de nossos estudos. Existem em nosso Novo Testamento
nada menos de quatro livros denominados “evangelhos”. A final de
contas, que é um evangelho? Por que existem quatro deles e não
apenas um, já que seus conteúdos são muitas vezes repetitivos?
Foram escritos outros livros que também recebem o nome de
evangelhos? Se o foram por que motivos eles não estão em nosso
Novo Testamento? Quando estes livros foram escritos? Quem foram
os seus respectivos autores? O que os motivou a escrever? Quem foi
o seu público original na época em que escreveram? O que é a crítica
bíblica e em que ela nos ajuda a compreender os evangelhos?

Que é um evangelho?
Logo que abrimos o Novo Testamento encontramos um conjunto de
quatro escritos que apresentam em comum o fato de serem
denominados evangelhos. O que significa este nome e por que ele é
utilizado?
A primeira pergunta tem uma resposta simples. A palavra evangelho
é originária da língua grega (εὐαγγελίου) e foi utilizada nas províncias
orientais do Império Romano para denominar as novidades
interessantes que eram divulgadas pelos arautos do imperador.
Literalmente significa boas novas ou boas notícias.
O Cristianismo, nascido dentro do império, reconheceu em Jesus de
Nazaré seu legítimo rei. Assim pareceu bem aos escritores cristãos
dos primeiros séculos usar a palavra evangelho para identificar os
relatos dos atos e ensinos benéficos do rei Jesus a favor daqueles
que o aceitavam como salvador e mestre.
Nos três primeiros séculos do Cristianismo, dezenas de livros
receberam esta denominação. Destes, quatro apenas foram
escolhidos para integrar a literatura litúrgica dos cristãos. São aqueles
que encontramos em nosso Novo Testamento cujas autorias são
atribuídas a Mateus, Marcos, Lucas e João. Dizemos que eles foram
canonizados. Outros evangelhos, como os atribuídos a Tomé, Maria
Magdalena e Valentino foram descartados.

40
O estudo científico da composição destes livros utilizando as mesmas
ferramentas aplicadas na análise de outras literaturas antigas é
denominado “crítica bíblica”. Uma das tarefas da crítica bíblica é
tentar determinar a data de composição dos livros. As evidências
reunidas até hoje permitiram concluir que a mais antiga destas obras
é aquela cuja autoria é atribuída a Marcos. Autores antigos não
colocavam títulos em suas obras nem as assinavam. Em geral se
usava a primeira palavra significativa do texto para identificar a obra.
O livro de Marcos começa com as frases:
Princípio do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus. Como está
escrito nos profetas: Eis que eu envio meu mensageiro diante de
tua face, que preparará teu caminho diante de ti. Voz do que clama
no deserto: Preparai o caminho do Senhor, endireitai suas
veredas.39
A palavra evangelho, por ser a primeira significativa do texto, foi
escolhida para designar o livro. As frases seguintes nos dão uma pista
para descobrir o modelo usado pelo autor. Ele faz referência aos livros
dos profetas do Antigo Testamento. Estes livros serviram como
modelo para o relato das obras e ensinos de Jesus. Na língua grega
comum, em que os evangelhos foram escritos, o primeiro deles se
tornou um modelo para a composição dos seguintes. Estava
estabelecido um novo gênero literário de uso exclusivo dos cristãos:
O Evangelho

Quantos evangelhos foram escritos?


Não sabemos com exatidão. Além dos quatro evangelhos canônicos
contidos no Novo Testamento de todas as versões da Bíblia temos
muitos outros livros que não foram incorporados ao cânon 40. Dentre
eles são mais conhecidos o Evangelho de Tomé, o Evangelho de
Filipe, o Evangelho de Maria Madalena, o Evangelho de Valentino, o
Evangelho da Verdade e o recentemente descoberto Evangelho de
Judas Iscariotes. Se receberam todos a mesma designação, é de se
esperar que seus conteúdos compartilhem alguns dados.

39Mc.1.1-4
40Cânon ou cânone, palavra da língua grega para a vara que os
construtores usavam para medir as obras. Na crítica bíblica é
utilizada para rotular o conjunto de livros cuja utilização nas
celebrações litúrgicas é autorizada pela igreja.
41
Afinal de contas, que vem a ser um evangelho? A palavra evangelho
não foi inventada pelos cristãos como poderia parecer a quem fizesse
uma primeira leitura despreocupada. Ela já existia no tempo em que
o Cristianismo iniciou suas atividades e era utilizada pelos oráculos
do império para introduzir a leitura dos decretos que o imperador, ou
algum de seus legados, baixava beneficiando o povo. Os escritores
cristãos passaram a utilizar esta palavra para introduzir os relatos dos
benefícios que Deus fazia a favor de seu povo. Alguns dos
evangelhos mais antigos são apenas coleções de ditos de Jesus.
Outros mais elaborados incluem relatos a respeito da vida e da obra
dos Mestre.
No tempo em que os evangelhos foram compostos (do primeiro ao
terceiro século da era cristã) o Cristianismo ainda não tinha um
repertório de doutrinas estabelecido. Esse fato permitia que muitas
variantes doutrinárias convivessem e reivindicassem ser a
interpretação autêntica dos ensinamentos do Mestre. Uma das
vertentes do Cristianismo destes tempos foi o Gnosticismo, uma
interpretação que ensinava que o grande problema do homem não é
o pecado e sim a ignorância. Dessa forma, o que salva o homem não
é perdão concedido pela graça divina e sim o conhecimento
(Gnose41) obtido por meio de uma iluminação especial.
O Evangelho de Tomé42 é a obra mais conhecida da biblioteca que
nos foi legada pelos cristãos gnósticos. Ele foi descoberto em 1945
no Egito, fazendo parte da chamada biblioteca de Nag Hammadi 43.

41Os gregos conheciam dois tipos de conhecimento. O


conhecimento empírico, obtido pela observação da natureza e
pela aprendizagem cuidadosa de suas regras era o episteme, de
onde deriva a palavra Epistemologia. O conhecimento mais
perfeito, ou gnose, por outro lado só poderia ser obtido por um
processo de iluminação interior ou pela recepção de
ensinamentos secretos passadas por um iluminado.
42 LELOUP, JEAN-YVES (Trad.) O Evangelho de Tomé,
Petrópolis, Vozes, 1997.
43Nag Hammadi é uma aldeia no Egito, conhecida como
Chenoboskion na antiguidade, cerca de 225 km ao noroeste de
Assuan. Nesta aldeia foi encontrado, em 1945, um conjunto de
manuscritos que ficaram conhecidos como biblioteca de Nag
42
Este evangelho é uma coleção de 144 ditos de Jesus que teriam sido
proferidos diante dos apóstolos que lhes eram mais chegados tais
como Dídimo Judas Tomé, que segundo os cristãos gnósticos, era
irmão gêmeo de Jesus44, nos quarenta dias entre a ressurreição e a
glorificação. Não apresenta nenhuma referência à vida do Mestre ou
aos seus atos salvadores (curas, exorcismos, purificação de
leprosos), mas faz muitas referências a ensinos, inclusive a parábolas
que também são encontradas nos evangelhos sinópticos 45. Um dos
textos mais conhecidos é o “logion” 2 que descreve o processo de
iniciação gnóstica:
Disse Jesus: Aquele que procura, continue sempre em sua busca até que
tenha encontrado; E quando tiver encontrado sentir-se-á perturbado;
Sentindo-se perturbado, ficará maravilhado e reinará sobre tudo.

Os verbos usados nesse texto descrevem o caminho da iluminação:


buscar (conhecimento), encontrar, perturbar-se, maravilhar-se e
reinar (dominar, ter controle).
Outro Evangelho famoso dos gnósticos é aquele cuja autoria foi
atribuída a Maria Magdalena 46 . Os gnósticos tinham um grande
apreço por Maria Magdalena que eles consideravam a esposa de
Jesus Cristo. O último “logion” do evangelho de Tomé faz referência
a ela:
Disse-lhe Simão Pedro: Maria deve afastar-se do meio de nós porque as
mulheres não são dignas da vida. Respondeu Jesus: Eis que eu hei de guiá-
la para que se torne Homem. Ela também virá a ser um espírito vivo,
semelhante a vós, Homens. Com efeito, toda mulher que se fizer Homem
entrará no Reino de Deus.47

Hammadi, contendo textos do antigo gnosticismo e outras


obras da cultura helênica.
44A palavra grega “Dídimos” significa gêmeo.
45Sinóticos é uma palavra também de origem grega que significa
“vistos de um mesmo lugar”. Ela é aplicada aos evangelhos de
Mateus, Marcos e Lucas.
46NAHMAD, C. & BALEY, M. (Tradutores) Ensinamentos Ocultos
de Maria Madalena, Rio de Janeiro, Nova Era, 2007.
47Evangelho de Tomé, logion 114.
43
Possuímos atualmente a versão incompleta deste evangelho em
língua portuguesa. Um de seus ditos descreve uma conversa de
Pedro com Jesus:
Pedro falou: Já nos explicaste sobre os elementos da vida e da matéria, e
sobre como o mundo se distancia deles. Conte-nos qual é o pecado do mundo,
aquele pelo qual se deve morrer. O Senhor respondeu: A matéria não possui
pecado. O pecado não existe. Sois vós quem os criais. Assim como no
adultério sois infiéis a vossa verdadeira natureza e agis conforme o hábito
da vossa natureza corrupta.48

Aqui temos a colocação de uma doutrina básica do Gnosticismo, a


inexistência do pecado, na boca do Mestre Jesus Cristo. Essa
doutrina é inaceitável para os cristãos tradicionais.

Por que quatro evangelhos no Novo


Testamento?
Dos muitos evangelhos escritos nos três primeiros séculos do
Cristianismo apenas quatro foram incorporados ao Novo Testamento.
No exame de canonização eles foram cuidadosamente analisados
para se ter certeza de que se conformavam a critérios de provados
pela igreja e já estudados anteriormente. Esses critérios de
canonicidade foram considerados na seleção dos livros do Novo
Testamento e levaram à seleção dos 28 livros no final do século IV,
mais precisamente em 397 e 398, nos concílios de Hipona e Cartago.
Não podemos dizer que nossos irmãos do passado tenham acertado
tudo. Algumas dúvidas ficaram por ser solucionadas. Vejamos alguns
exemplos:
1. Na epístola de Judas encontramos uma citação ao apócrifo de
Enoque (Enoque etíope) onde este livro é chamado de profecia:
E Enoque, o sétimo depois de Adão, também profetizou sobre estes,
dizendo: Eis que o Senhor veio, com dezenas de milhares de seus
santos; para fazer julgamento contra todos, e reprovar a todos os
perversos entre eles, por todas as suas obras de perversão, que
perversamente cometeram, e por todas as duras palavras que os
perversos pecadores falaram contra ele49.

48NAHMAD, C. & BALEY, M, op. cit. pp 276,277.


49Jd.14,15
44
Se um livro canônico declara que um apócrifo (não canônico) é
profecia autêntica então algo está errado.
2. No evangelho de João encontramos o trecho que descreve Jesus
Cristo julgando uma mulher pega em flagrante de adultério 50. Este
trecho de composição tardia foi incorporado ao quarto evangelho
embora não fosse autêntico.
3. O término longo do evangelho de Marcos :é hoje considerado uma
adição tardia.

A árvore genealógica dos evangelhos


Com base nos estudos da crítica bíblica, especialmente da crítica das
fontes, somos hoje capazes de reconstituir a história da composição
dos evangelhos sinópticos que pode ser colocada em alguns
princípios simples:
1. Existe alto grau de interdependência entre os textos de Mateus,
Marcos e Lucas que deixa evidente que estes evangelistas
compartilharam material proveniente de fonte (s) comum
(comuns).
1. Quando um texto aparece nos três evangelhos invariavelmente o
texto de Marcos é a fonte, os textos de Mateus e de Lucas são
variantes mais novas. Fica assim determinada a prioridade de
Marcos, que é o evangelho mais antigo.
2. Os textos comuns a Mateus e Lucas que não ocorrem em Marcos
derivam de uma segunda fonte que foi denominada fonte Q.

Conclusão
Temos quatro evangelhos no nosso Novo Testamento. Eles desfrutam
desta posição porque foram canonizados pela igreja cristã que
analisou seus conteúdos atendendo a critérios rigorosos,
especialmente os de ortodoxia e apostolicidade. Outros evangelhos,
escritos na mesma época, foram rejeitados com base nos mesmos
critérios. Os três primeiros são chamados sinóticos porque
apresentam os ensinamentos e ações de Jesus Cristo de um mesmo
ponto de vista. O Livro de Atos dos apóstolos é a segunda parte do
evangelho de Lucas e apresenta a história da igreja cristã no período
dos apóstolos. Não sabemos com segurança o nome de nenhum dos

50Jo.8.3-12.
45
autores destes livros. O que temos são tradições aceitas pelos
cristãos com base nos testemunhos escritos dos pais da igreja, isto
é, dos teólogos e historiadores cristãos que viveram dos séculos II ao
IV.

46
2. O Evangelho segundo Marcos
Propósitos
O evangelho cuja autoria é atribuída a João Marcos pela tradição é o
menor dos quatro fixados no Novo Testamento. Ele omite todos os
fatos referentes à genealogia e à infância de Jesus Cristo. Ele
também não é explícito a respeito do que ocorreu depois do calvário.
Não faz referência a ditos importantes do mestre como é o caso do
sermão do monte. Por outro lado, ele enfatiza os milagres,
especialmente as curas e os exorcismos. Nas páginas seguintes
pretendemos discutir tópicos tais como: Quem foi o autor deste livro?
Onde e quando escreveu? Para quem escreveu? Quais foram as suas
fontes de informação? Qual foi a sua motivação para a escrita? Ou
seja, qual foi o seu objetivo teológico?

Introdução
Acredita-se hoje que esse evangelho é o mais antigo de todos. Sua
datação mais provável é a da época da guerra judaico – romana (64-
68 e.c.) quando Nero era o imperador em Roma. Sendo o primeiro,
ele forneceu um modelo para os demais evangelhos o sucederam. O
autor, que era judeu, viu em Jesus Cristo um profeta e compôs o
evangelho no estilo dos livros proféticos do velho testamento. Em seu
texto encontramos, portanto, oráculos (ditos proféticos),
ensinamentos de Jesus; A eles foram acrescentados relatos de curas,
milagres e exorcismos que comprovam a autenticidade da chamada
divina do profeta e alguns dados de sua vida que permitem localizar,
de maneira ainda que pouco precisa, histórica e geograficamente a
sua atuação.

O problema da autoria
Nenhum dos autores dos evangelhos se identifica no texto que
escreveu. A autoria é presumida com base nos testemunhos dos pais
da igreja e dos dados que são recolhidos no texto. No primeiro caso
temos as evidências externas e no segundo as evidências internas.
Com relação a este evangelho, a autoria de Marcos é atestada por
testemunhos antigos, tais como o de Papias (Bispo de Hierápolis,
ca.140 d.C.) registradas por Eusébio de Cesareia na sua História
Eclesiástica. Além dele, Irineu, bispo de Lyon e Clemente de
Alexandria também declararam a autoria de Marcos.

47
As evidências internas são poucas e fracas. Alguns querem ver no
relato do jovem que acompanhou o cortejo que prendeu Jesus envolto
em um lençol51 uma referência autobiográfica porque dificilmente tal
fato teria algum interesse para outra pessoa que não fosse o próprio
autor. João Marcos, sobrinho (ou talvez primo) de Barnabé, que
acompanhou seu tio e Paulo na primeira viagem missionária descrita
nos Atos dos Apóstolos, era jovem no tempo em que estes fatos
aconteceram. Sua desistência em persistir na empreitada missionária
causou uma dissenção entre os dois apóstolos e determinou sua
separação na segunda viagem52. Mais tarde, Paulo pede que Marcos
lhe seja levado por causa de sua utilidade 53. No encerramento de sua
primeira epístola, Pedro envia saudações da igreja que está em
Babilônia (Roma) e de um Marcos, a quem chama de filho 54 e que,
presumivelmente, é o próprio João Marcos, parente próximo de
Barnabé. Por causa desta referência acredita-se que Marcos
conviveu com Pedro alguns anos em Roma e que, sob a orientação
dele, redigiu o evangelho. Portanto, a fonte dos fatos narrados neste
evangelho teria sido o relato pessoal de Pedro que foi testemunha
ocular deles.

Data, local de composição e primeiros


leitores.
Acredita-se hoje que Marcos escreveu o evangelho quando esteve
com Pedro em Roma. Como a tradição ensina que Pedro e Paulo
foram martirizados em Roma na fase final da guerra judaico – romana,
entre os anos 64 e 68 DC, acredita-se ainda que a data mais provável

51 Mc.14.51-52
52At.15.36-38: E depois de alguns dias, Paulo disse a Barnabé:
Voltemos a visitar a nossos irmãos em cada cidade onde tenhamos
anunciado a palavra do Senhor, para ver como estão. E Barnabé
aconselhou para que tomassem consigo a João, chamado Marcos.
Mas Paulo achou adequado que não tomassem consigo a aquele
que desde a Panfília tinha se separado deles, e não tinha ido com
eles para aquela obra.
53Somente Lucas está comigo. Toma juntamente a Marcos, e
o traz contigo, porque ele é muito útil para o trabalho deste
serviço. II Tm.4.11.
54Saúda-vos a igreja eleita que está na Babilônia, e também
Marcos, meu filho. I Pd.5.13.
48
da composição deste livro tenha sido no período de 64-68 e que o
local de composição tenha sido a própria cidade de Roma. Este
evangelho foi escrito para um público não judeu. Algumas evidências
internas permitem perceber este fato:
Marcos relata que quando Jesus se encontrava no templo, no recinto
onde os judeus faziam suas ofertas, uma viúva pobre lançou ali tudo
quanto tinha 55. Ele informa que a viúva lançou ali duas pequenas
moedas (lepton, lepta no plural). No texto original do versículo 42 lê-
se: “και ελθουσα μια χηρα πτωχη εβαλεν λεπτα δυο ο εστιν κοδραντης”. Marcos
informa que as duas pequenas moedas (λεπτα δυο) valiam tanto quanto
um quadrante (ο εστιν κοδραντης). Se ele achou necessário informar o
valor das moedas é porque seus leitores não a conheciam e, portanto,
não eram judeus.
Em algumas ocasiões, Marcos se preocupa em esclarecer seus
leitores a respeito de costumes que eram por demais conhecidos dos
judeus. No primeiro capítulo, após descrever a maneira como Jesus
havia curado um leproso, Marcos relata o que a lei exigia que se
fizesse naquela situação: “E disse-lhe: Olha que não digas nada a
ninguém; mas vai, mostra-te ao sacerdote, e oferece por tua limpeza
o que Moisés mandou, para que lhes haja testemunho”56.
Acredita-se então que Marcos teria escrito para cristãos não judeus,
isto é, gentios, provavelmente que habitavam na cidade de Roma e
necessitavam de algumas informações adicionais para entenderem
como Jesus Cristo exerceu seu ministério profético na Palestina.

Objetivo e mensagem central


Podemos simplificar a questão admitindo que o objetivo de um
evangelho é apresentar a vida e a obra de Jesus Cristo a seus
leitores. Marcos fez isto muito bem. Entretanto, quando o personagem
focalizado é alguém sobre cuja pessoa pairam interpretações
divergentes, por vezes o autor precisa enfatizar uma delas. Entende-
se que, no curso de uma rebelião contra Roma, os judeus não cristãos
pretendessem ter o apoio dos cristãos na guerra. Que melhor

55E vindo uma pobre viúva, lançou dois leptos, que são duas
pequenas moedas. E Jesus, chamando a si seus discípulos, disse-
lhes: Em verdade vos digo que esta pobre viúva lançou mais que
todos os que lançaram na arca do tesouro; (Mc.12.42-43).
56 Mc.1.44.
49
argumento poderia ser usado que não o do convencimento de que os
romanos foram os responsáveis pela morte de Jesus Cristo? A análise
do Evangelho de Marcos permite concluir que o autor abraçou a tese
contrária. Os responsáveis pela morte de Jesus na cruz não foram os
romanos e sim os próprios judeus (fariseus e herodianos).
Marcos declara claramente que morte de Jesus Cristo foi premeditada
e resultou de uma conspiração dos fariseus com os herodianos
(judeus)57. Mais tarde; Marcos informa que os fariseus preparavam
armadilhas para Jesus 58 . Informa que os mesmos fariseus
frequentemente questionavam Jesus em assuntos da lei para
apanhá-lo em algum erro e o condenarem 59 . Ao final da narrativa
(capítulo 15), Marcos informa que Pilatos, o representante oficial de
Roma, tentou usar de vários artifícios para livrar Jesus da morte e que
só o entregou porque os judeus exigiram. Desta forma, a
responsabilidade pela morte de Jesus Cristo não cabe aos romanos
e sim aos líderes da comunidade judaica (fariseus e herodianos).

A estrutura do livro
O Evangelho de Marcos é organizado em cinco partes que descrevem
a vida e o ministério de Jesus Cristo.
A primeira parte (1.1-13) começa com uma citação do profeta Isaías,
o e mostra João Batista predizendo a vinda do Messias. Descreve
também o batismo e a tentação de Jesus.
A segunda parte (1.14-9.50) descreve o ministério de Jesus, na
Galileia, para onde foi depois da prisão de João Batista.
Na seção um, chama Simão Pedro e seu irmão André para segui-
lo para o ministério junto com os outros dez discípulos (1:14-20).
Jesus começa a fazer milagres durante esta seção do livro (1.21)
conhecido como o seu Ministério Galileu até o versículo 6:29.
A seção dois da segunda parte descreve a retirada da Galileia por
Jesus e seus discípulos e o milagre de alimentar cinco mil pessoas
com cinco pães e dois peixes (6.37-44). Este capítulo também

57E saindo os fariseus, tiveram logo conselho, junto com os


herodianos, contra ele, sobre como o matariam. Mc. 3.6.
58E saíram os Fariseus, e começaram a disputar com ele,
pedindo-lhe sinal do céu, tentando-o. Mc.8.11
59Mc.10.2,12,13.
50
descreve o milagre de Jesus caminhando sobre as águas (6.49), a
confissão de Pedro que Jesus é o Messias (8.29), e da transfiguração
(9.2-5). Na última parte desta seção, Jesus prediz sua morte e
ressurreição (9.32).
A seção três da segunda parte começando com o versículo 9.33,
abrange o período quando Jesus vai a Cafarnaum e prega aos seus
discípulos sobre quem é o maior (Marcos 9:36) e outros assuntos.
A terceira Parte (10.152) Descreve o ministério na Pereia. Lá, ele
ensina sobre vários assuntos, faz o milagre de restituir a visão a um
cego que mostra fé (10.52) e novamente prediz a sua morte e sua
ressurreição aos seus discípulos (Marcos 10.33-34).
A quarta parte (11.1 – 15.47), frequentemente chamada de paixão,
nela se descreve a entrada triunfal em Jerusalém no lombo de um
jumento (11.1-11). Em Jerusalém, Jesus ensina muitas lições ao
responder perguntas, contando parábolas e dá avisos para as
pessoas. A seguir encontramos a instituição da Ceia do Senhor
(14.17-26). Depois Jesus é preso, julgado e crucificado.
A quinta parte (16.1-20) narra a ressurreição e fatos posteriores

Aspecto em destaque – O término longo do


evangelho
Os últimos versículos do evangelho de Marcos (16. 9-20) são
conhecidos como término longo. Esse texto está hoje sob a suspeita
da crítica bíblica, uma vez que o estudo dos manuscritos mais antigos
que chegaram ao nosso conhecimento permite concluir que temos aí
algo que não fazia parte do original. Algumas características
importantes podem ser vistas nele. Inicialmente, o versículo doze,
declara que Jesus manifestou-se depois “noutra forma”. Essa é uma
referência a uma crença gnóstica que ensina que o corpo de Jesus
não era verdadeiro e sim, uma ilusão de ótica. Jesus podia, portanto,
assumir quantas formas diferentes desejasse Outro aspecto
importante é a ênfase dada às manifestações carismáticas de poder:
exorcismos, glossolalia, imunidade a agentes venenosos e curas.
Baseados nesses textos, alguns cristãos carismáticos têm
desenvolvido práticas exóticas tais como a “dança com serpentes”
feita por um grupo de cristãos americanos do norte de origem
indígena.

51
3. O evangelho segundo Mateus
Propósitos
Da mesma forma que fizemos para o evangelho estudado
anteriormente, pretendemos questionar aqui quem foi seu autor,
quando escreveu, para quem escreveu e quais eram seus objetivos
teológicos. Além disso, pretendemos também entender o tipo de
relação que este livro guarda com o evangelho de Marcos.

Introdução
A leitura do evangelho segundo Mateus impressiona qualquer leitor
pela riqueza de referências ao Antigo Testamento, tanto à lei quanto
aos profetas. Nele, mas que em qualquer outro livro do Novo
Testamento, se percebe a ideia subjacente de que em Jesus Cristo
se deu o pleno cumprimento das promessas messiânicas, feitas aos
antigos. Ele é claramente dirigido a uma comunidade de cristãos de
cultura e raízes judaicas. Salvo apenas pela epístola de Tiago, é o
mais judaico de todos os livros do Novo Testamento.

O problema da autoria
A autoria deste evangelho é tradicionalmente atribuída a Mateus, um
dos doze apóstolos 60 . Uma vez que este evangelho também não
identifica seu autor, ficamos na dependência das citações dos pais da
igreja (evidências externas) e das perícopes sugestivas do próprio
texto (evidências internas) para chegar a alguma conclusão sobre sua
autoria. Papias (138 e.c.) menciona Mateus como autor e informa que
ele teria escrito originalmente em Aramaico. Seu livro teria sido
posteriormente vertido para a língua Grega.
As evidências internas apontam para um autor judeu convertido ao
Cristianismo e que enfrentava dura oposição dos líderes da
comunidade judaica. A referência ao escriba que se converte 61 tem

60E, entrando, subiram ao cenáculo, onde permaneciam Pedro e


João, Tiago e André, Felipe e Tomé, Bartolomeu e Mateus;
Tiago, filho de Alfeu, Simão o Zelote, e Judas, filho de Tiago.
At.1-13.
61E disse-lhes: Por isso, todo escriba que se fez discípulo do
reino dos céus é semelhante a um homem, proprietário, que tira
52
sido interpretada como uma nota autobiográfica. O autor deste
evangelho se mostra conhecedor profundo da lei, dos profetas e dos
costumes judaicos. Na perícope contida no início do capítulo 12 o
autor usa seus amplos conhecimentos da lei para discutir e justificar
o comportamento de Jesus Cristo:
1 Naquele tempo passou Jesus pelas searas num dia de sábado;
e os seus discípulos, sentindo fome, começaram a colher
espigas, e a comer. 2 os fariseus, vendo isso, disseram-lhe: Eis
que os teus discípulos estão fazendo o que não é lícito fazer no
sábado. 3 Ele, porém, lhes disse: Acaso não lestes o que fez
Davi, quando teve fome, ele e seus companheiros? 4 Como
entrou na casa de Deus, e como eles comeram os pães da
proposição, que não lhe era lícito comer, nem a seus
companheiros, mas somente aos sacerdotes? 5 ou não lestes na
lei que, aos sábados, os sacerdotes no templo violam o sábado,
e ficam sem culpa?

Data, local de escrita e primeiros leitores.


Já vimos anteriormente que o evangelho de Mateus é posterior ao de
Marcos uma vez que o seu autor utilizou aquele livro como roteiro
para organizar a sua obra e como fonte de material para a
reconstituição histórica do ministério de Jesus Cristo. Uma vez que o
livro de Marcos foi escrito no período de 64 – 68 da era cristã, somos
então levados a admitir data posterior para Mateus.
Uma evidência interna auxilia nossa pesquisa. No evangelho de
Mateus encontramos a narrativa da conhecida “Parábola das bodas”
62. No versículo sete desta parábola encontramos a declaração:

Mas o rei encolerizou-se; e enviando os seus exércitos,


destruiu aqueles homicidas, e incendiou a sua cidade.
Esta menção ao incêndio da cidade, inserida em uma parábola
tipicamente antijudaica, tem sido interpretada como referência à
destruição de Jerusalém pelas tropas romanas comandadas por Tito,
que ocorreu no ano 70. Assim sendo, poderemos admitir 70 DC como
a data mais antiga para a escrita do evangelho. A data mais recente
pode ser fixada inicialmente a partir da citação de Papias (138 DC).

do seu tesouro coisas novas e velhas. Mt.13.52

62Mt.22.1-14
53
Podemos então admitir que o evangelho de Mateus foi, mais
provavelmente, escrito no período entre 70 e 80 da nossa era, cerca
de 50 anos depois da ocorrência dos fatos que narra e que, neste
período, as informações não contidas em Marcos ou em qualquer
outra fonte escrita (Q) foram veiculadas pela tradição oral.
Os leitores originais eram judeus cristãos que estavam enfrentando a
primeira crise de identidade do Cristianismo: como ser cristão sem
deixar de ser judeu? Em outra passagem do livro saem da boca de
Jesus Cristo as seguintes palavras:
“Não se deita vinho novo em odres velhos; do contrário se
rebentam, derrama-se o vinho, e os odres se perdem; mas deita-se
vinho novo em odres novos, e assim ambos se conservam” 63

Esta declaração foi feita porque os discípulos de Jesus Cristo o


questionaram pedindo instruções (sem dúvida para responder aos
fariseus) sobre a razão por que eles, diferentemente dos fariseus e
dos demais judeus não observavam a lei do jejum. Jesus Cristo então
lhes responde que sua doutrina era algo totalmente novo que não
podia ser contido pela “armadura legal” do Judaísmo. Uma nova
realidade entrava em cena e necessitava de uma liturgia totalmente
nova.
A contextualização histórica atual nos informa que os cristãos da
Comunidade de Mateus, que preservaram os fatos particulares
narrados neste livro eram originalmente judeus que se converteram
ao Cristianismo e, a partir desta conversão, começaram a ser
perseguidos pela liderança dos judeus (escribas e fariseus) por
admitirem a divindade de Jesus Cristo. Essa admissão contrariava o
princípio básico do Judaísmo declarado no “Shemá”64. Por causa das
perseguições, surgidas especialmente após a morte de Estevão, a
comunidade se deslocou para o norte e foi se fixar nas proximidades
de Antioquia da Síria. Neste local o líder da comunidade, um escriba
convertido, redigiu o evangelho.

Objetivo e mensagem central


A determinação do objetivo teológico desta obra permite a admissão
de, pelo menos, três hipóteses que não são mutuamente excludentes.

63Mt.9.17
64Dt.6.4.
54
Uma obra litúrgica, para uso nos cultos – O estudo da estrutura
deste livro permite ver que ele foi organizado na forma de cinco partes
nas quais cada uma delas apresenta um discurso de Jesus precedido
de uma narrativa introdutória. Este formato o torna equivalente aos
cinco livros da lei de Moisés que eram lidos regularmente na
sinagoga. Assim sendo, acredita-se que ele foi feito para ser lido nas
sinagogas dos cristãos, já que Jesus era “O Profeta” semelhante a
Moisés. Em apoio a esta interpretação está o fato de que uma parte
significativa do material peculiar contido neste livro (sermão do monte,
parábola do joio e do trigo, anúncio do nascimento de Jesus a José)
era usado pelos cristãos em sua liturgia.
Uma obra apologética – Cabe a Moule 65 o mérito de haver
enfatizado este aspecto. Dele tomamos emprestadas as seguintes
declarações:
“De modo reiterado, Mateus tem sido definido como o evangelho
para os judeus. Com mais propriedade, todavia, poderia chamar-
se o evangelho contra os judeus, pois grande parte dele se
apresenta como munição para os cristãos quando fossem atacados
por cristãos não judeus que diziam: Vosso mestre não era o
Messias (resposta: sim ele era, por descendência de Davi,
harmonizando-se com o modelo da Profecia; Mt.1.1 e seguintes);
ou: Vosso Mestre não era um verdadeiro rabino pois ele solapou
a Lei: (Resposta: pelo contrário, ele estabeleceu um ideal moral
mais rígido que o dos rabinos: Mt.5.17-20; ou ainda: A pretensão
dos nazarenos de serem o verdadeiro Israel é falsa (resposta: não
porque é sobre a confissão de Jesus Cristo que Israel está
edificado; Mt.10.16 e seguintes.”
A combatividade intrínseca do Evangelho de Mateus é notória. A
expressão “escribas e fariseus hipócritas” aparece inúmeras vezes. 66
A ênfase em afirmar que Jesus Cristo tinha autoridade para reformar

65 MOULE, C.F.D. As origens do Novo Testamento, São


Paulo, Paulinas, 1979, 2711 pp. Cap. V – A igreja toma posição
(3) Os evangelhos e o livro de Atos dos Apóstolos.
66 O fato de o evangelho não mencionar os saduceus e
sacerdotes também é uma evidência favorável à sua
composição depois do ano 70 porque nesta época o sacerdócio
deixou de existir.
55
a lei de Moisés também é uma forma de atacar os líderes judeus que
se sentiam seguros seguindo um sistema legalista rígido.
Uma obra pastoral – Brown 67 , que situa a composição deste
evangelho no período pós-apostólico, chama a atenção para o seu
aspecto pastoral. Para ele, em contraste com a posição de Moule (já
mencionada), e de outros autores, o objetivo principal do autor não foi
combater o adversário judeu e sim, tentar conciliar as posições dos
cristãos com as dos judeus, mostrando que a autoridade de Jesus
Cristo não é incompatível com autoridade da lei de Moisés. Para ele
este evangelho é uma obra essencialmente eclesiológica (é o único
evangelho no qual aparece a palavra igreja) e fornece elementos
inclusive para a aplicação de disciplina nas comunidades do final do
primeiro século.

Conteúdo e plano
O evangelho de Mateus está estruturado na forma de cinco discursos
de jesus que são direcionados pelo tema “Reino de Deus” (ou reino
dos céus). O fato de a estrutura do evangelho estar calcada na própria
estrutura da Lei de Moisés reforça a tese de que o autor deste livro
esteja caracterizando Jesus como o “novo Moisés” que foi prometido
no livro do Deuteronômio. 68 Transcrevemos aqui as divisões como
são mencionadas na obra de Hale.69
Introdução: Genealogia e nascimento e preparação para
o ministério de Jesus (1.1 – 4.11)
Primeiro discurso – O reino, sua natureza e
características (4.12 – 7.29)
Narrativa introdutória: (4.12-25)
Discurso: O sermão do monte (5.1 – 7.29)
Segundo discurso – Apresentação e propagação do reino
(8.1 – 11.1)
Narrativa introdutória (81—9.34)

67 BROWN, R.E. As Igrejas dos Apóstolos – cap. 8 – A


herança da cristandade judia/pagã em Mateus: Autoridade que
não anula Jesus.
68 Deuteronômio 18.15.
69 Hale,B D. Introdução ao Estudo do Novo Testamento. 3ª ed.
RJ JUERP, 1989.
56
Discurso: A missão dos apóstolos (9.35 – 11.1)
Terceiro discurso – A inauguração do reino (11.2 – 12.35)
Narrativa introdutória (11.2 – 12.50)
Discurso: As parábolas do reino (13.1 – 13.52)
Quarto discurso – A relação de Jesus com o reino (13.53
– 19.1)
Narrativa introdutória (13.53 – 17.21)
Discurso: Normas internas do reino (17.22 – 19.1)
Quinto discurso – A última apresentação formal do reino
à nação judaica (19.2 – 26.1)
Narrativa introdutória (19.2 – 23.29)
Discurso: Escatologia (24.1 – 26.1)
Conclusão – Paixão, morte e ressurreição (26.1 – 28.20).

Destaques e peculiaridades
Conforme estava escrito – Como já vimos em estudo anterior,
Marcos inicia seu evangelho citando o profeta Isaías. Isso mostra que
os cristãos interpretaram a vida e a obra de Jesus Cristo como
cumprimento das profecias messiânicas do Antigo Testamento.
Mateus levou este tipo de argumentação ao extremo. Neste
evangelho a palavra “escrito” como referência ao texto do Antigo
Testamento aparece nada menos de 9 vezes: 2.5, 4.4, 4.6, 4.7, 4.10,
11.10, 21.13, 26.24 e 26.31.

O uso da palavra igreja – O evangelho de Mateus é o único dos


evangelhos canônicos em que se encontra a palavra igreja (16.18,
18.17). Este é mais um argumento favorável à composição deste
evangelho no último terço do primeiro século (depois do ano 70)
porque antes deste período o nome igreja ainda não havia se
popularizado entre os judeus cristãos e seu uso era praticamente
restrito aos cristãos helenistas.

A fixação no número dois – O autor de Mateus tem uma fixação no


número dois. Ele duplica os personagens de vários dos episódios:
Mateus Episódio Marcos Lucas João

57
4.18 Jesus chama dois pescadores no 1.16 ..... .....
mar da Galileia (Simão e André).
4.21 Jesus chama dois outros 1.18 ..... .....
pescadores (Tiago e João)
8.28 Jesus cura dois endemoninhados 5.1 8.26,27 .....
em Gadara.
9.27-31 Jesus cura dois cegos ..... ..... .....
18.19 Quando dois concordam Deus ..... ..... .....
aprova
20.30 Jesus cura dois cegos em Jericó 10.46-52 18.35-43 .....
21.1-2 Jesus manda dois discípulos 11.1-11 19.28-40 12.12-19
buscar dois animais

Estes textos mostram a grande importância do número 2 para o autor.


Ele não apenas duplicou o número e personagens em algumas
narrativas como também as agrupou em duas em outros casos. Ainda
inseriu material de cunho exclusivo onde se faz referência ao número
2. Segundo os preceitos da Lei (Deuteronômio) o testemunho de um
só não tinha valor, mas o testemunho de dois era verdadeiro. Por esse
motivo o autor tende a apresentar em duplas os personagens dos
relatos que faz.

58
4. A obra lucana, parte I – O
evangelho
Propósitos
Continuando nossos estudos dos evangelhos canônicos encontramos
aquele cuja autoria é atribuída a um homem chamado Lucas, o
companheiro de viagens do apóstolo Paulo. Considerando que a
mesma autoria é atribuída ao livro de Atos dos Apóstolos, as duas
serão estudadas em conjunto. Procuraremos ainda discutir quais
foram as fontes de informação utilizadas pelo autor, quais foi a sua
população alvo em termo de leitores e quais foram os seus objetivos
teológicos.

Autoria – evidências externas


Baseados em dados da tradição, aceitamos hoje a autoria lucana
tanto para o terceiro evangelho quanto para o livro de atos dos
apóstolos. Algumas referências são úteis neste sentido:
O documento denominado “fragmento muratoriano”, datado de 170 –
180 e.c., atribui a Lucas, médico e companheiro de viagens do
apóstolo Paulo, a autoria dos dois livros.
O “prólogo antimarcionita”, datado de 160 – 180 d.C., identifica o autor
do terceiro evangelho como sendo Lucas, siro, natural de Antioquia e
médico de profissão.
Irineu da Gália (185 d.C.) identificou o autor deste livro como sendo
Lucas, seguidor do apóstolo Paulo e redator do evangelho ensinado
por ele.
O conjunto destas declarações nos permite então traçar o perfil do
autor destes livros como sendo um estrangeiro (siro – o único autor
não judeu do Novo Testamento), médico de profissão e companheiro
de viagens missionárias do apóstolo Paulo. Baseado no fato de que
em Cl.4.14 Lucas recebe o título de “O médico amado” podemos
fechar um perfil que vai orientar nossas pesquisas pelas evidências
internas.

Autoria – evidências internas


O primeiro argumento a ser discutido é a declaração de que o autor
destes livros era médico. Alguns dados favorecem esta posição. Um

59
deles é a narrativa da cura da sogra de Pedro por Jesus. Na narrativa
desse episódio (Mt.8.14-15, Mc.1.30-31 e Lc.4.38-39), Marcos e
Mateus se restringem a declarar que a sogra de Pedro estava com
febre. Lucas declara que ela tinha uma febre muito alta o que o
identifica coo alguém que estava acostumado a ver pessoas com
febre e a avaliar sua intensidade, portanto um médico.
Quanto ao fato de Lucas ser estrangeiro é possível encontrar no seu
evangelho, várias imprecisões a respeito da geografia da Palestina
que permitem concluir que o autor nunca esteve naquele local e que
não conhecia satisfatoriamente sua geografia. Na perícope contida
nos versículos 11 a 19 do capítulo 17 encontramos a descrição da
cura de 10 leprosos, efetuada por Jesus. Encontramos no texto as
seguintes declarações:
1. Jesus Cristo ia para Jerusalém. Se ele atravessava a divisa
entre Samaria e Galileia, então ele vinha do Norte para o Sul.
Teria sido mais apropriado mencionar as localidades no
sentido inverso: passava pela divisa entre a Galileia e a
Samaria.
1. A descrição do milagre menciona que Jesus determinou aos
leprosos que cumprissem o mandamento legal de se
mostrarem aos sacerdotes porque só estes poderiam
confirmar sua cura e declará-los legalmente puros. A rapidez
com que um deles voltou mostra que eles não poderiam ter
ido muito longe. É difícil admitir este fato se eles estavam
mesmo em Samaria.
2. O samaritano que voltou é chamado de estrangeiro. Coisa
inadmissível se ele estava em sua terra natal, como o texto
sugere. A única maneira de conciliar esta descrição com a
geografia é admitir que o autor, por não conhecer a Palestina,
imaginava que a Samaria ficava ao norte do país e que Judeia
e Galileia se constituíam em um território contínuo ao sul.
Essa interpretação é coerente com a descrição do movimento
missionário apresentado nos atos dos apóstolos.
O fato de o autor do livro ter sido companheiro de viagens do apóstolo
Paulo é inferido a parir da narrativa dos atos dos apóstolos. A partir
do versículo 6 do capítulo 16, encontramos seguinte narrativa:
Atravessaram a região frígio gálata, tendo sido impedidos pelo
Espírito Santo de anunciar a palavra na Ásia; e tendo chegado
diante da Mísia, tentavam ir para Bitínia, mas o Espírito de Jesus
60
não lho permitiu. Então, passando pela Mísia, desceram a Trôade.
De noite apareceu a Paulo esta visão: estava ali em pé um homem
da Macedônia, que lhe rogava: Passa à Macedônia e ajuda-nos.
E quando ele teve esta visão, procurávamos logo partir para a
Macedônia, concluindo que Deus nos havia chamado para lhes
anunciarmos o evangelho. Navegando, pois, de Trôade, fomos em
direitura a Samotrácia, e no dia seguinte a Neápolis.

Ocorre aqui uma mudança claramente perceptível. Antes da visão de


Paulo, em Trôade, os verbos estão na terceira pessoa do plural
sugerindo que o autor não se inclui nas ações descritas por eles. A
partir da visão as ações passam a ser descritas por verbos colocados
na primeira pessoa do plural sugerindo que o autor se incorporou à
caravana missionária naquela cidade. Muito embora nenhum dos
argumentos listados seja definitivo, a soma deles é bastante
sugestiva.

Fontes e metodologia de trabalho do autor


O autor do terceiro evangelho foi o único entre os escritores bíblicos
a deixar sua metodologia de trabalho registrada com boa precisão.
No prólogo do evangelho ele declara:
Visto que muitos tem empreendido fazer uma narração
coordenada dos fatos que entre nós se realizaram, segundo no-lo
transmitiram os que desde o princípio foram testemunhas oculares
e ministros da palavra, também a mim, depois de haver
investigado tudo desde o princípio, pareceu-me bem, ó excelente
Teófilo, escrever-te uma narrativa em ordem, para que conheças
plenamente a verdade das coisas em que fostes instruídos. Lc.1.1-
4.

A leitura deste texto permite concluir inicialmente que o autor não foi
testemunha ocular dos fatos narrados e que, portanto, precisou
recuperá-los a partir do testemunho de terceiros tomando,
evidentemente alguns cuidados para obter um resultado satisfatório.
Isto permite identificá-lo como um historiador, no sentido moderno
deste termo. Os cuidados foram os seguintes:
Seleção das testemunhas – O autor declara que só aceitou
informações de testemunhas oculares. Além disso deveriam ser
pessoas que tivessem autoridade reconhecida pelas igrejas para
testemunhar. Deveriam ser “ministros da palavra”, pessoas sobre cuja
veracidade não pairasse qualquer sombra de dúvida. Estes dois
61
cuidados permitiram ao autor minimizar o risco de inserir no seu
relatório de pesquisa relatos de pessoas que, por falta de
conhecimento ou por mal intenção distorcessem a verdade a respeito
dos fados investigados.
Consultas bibliográficas – O autor informa ter conhecimento de que
muitos outros, antes dele já haviam se dedicado ao mesmo tipo de
trabalho. Seguramente ele leu os documentos que chegaram às suas
mãos e selecionou aqueles que lhe pareciam mais fiéis. A crítica
bíblica moderna é unânime em aceitar que Lucas teve acesso ao
manuscrito do evangelho de Marcos e à fonte de ditos chamada Q.
Do primeiro tirou o roteiro para sua obra.
Crítica e ordenação dos dados – O autor declara que não apenas
investigou tudo dede o princípio, mas também que objetivou uma
narração coordenada dos fatos. Estas duas declarações permitem
assumir que ele criticou as informações recebidas e que
provavelmente rejeitou muita coisa que não lhe pareceu coerente.
Permite ainda entender que o autor teve um plano para organizar o
material coletado em uma narrativa organizada. Por comparação se
vê com facilidade que esse plano foi extraído do evangelho de
Marcos.
Um objetivo definido – O autor usou o verbo conhecer ()
para descrever o tipo de resultado que pretendia atingir. Seu objetivo
imediato era instruir o leitor para que ele adquirisse pleno
conhecimento da verdade. Um objetivo coerente com a cultura
helenística do autor.

Data e local de composição e primeiros


leitores
O limite mais antigo para a composição deste evangelho é obtido da
mesma forma que procedemos para o evangelho de Mateus. Admitida
a precedência de Marcos podemos inferir que o evangelho de Lucas
não foi escrito antes de 64 d.C. O limite mais recente nos é fornecido
pela data da escrita de Atos dos Apóstolos que lhes é posterior. Como
livro de Atos descreve minunciosamente a carreira missionária de
Paulo, mas omite sua morte, admite-se que ele teria sido escrito antes
de 68 d.C. Assim sendo, o terceiro evangelho teria sido escrito
durante o período da guerra judaico romana (64 a 68).

62
Objetivo e mensagem central
Lucas declara no prólogo de seu evangelho que o seu objetivo é
instruir um homem que chama de Teófilo (amigo de Deus) na
plenitude dos fatos que já eram de seu conhecimento. Esse nome de
origem helênica nos leva a admitir que o destinatário seria um judeu
helenista ou então um gentio convertido ao Cristianismo.

Divisões
Prefácio (1.1-4)
Narrativas do nascimento e da infância de Jesus (1.5 – 2.52)
Os Nascimentos de João e de Jesus (1.5 – 2.20)
Os princípios da infância de Jesus (2.21-52)
Introdução ao ministério de Jesus (3.1-4.13)
O ministério de João (3.1-20)
Preparação para o ministério de Jesus (3.21 – 4.13)
O ministério na Galileia e nas circunvizinhanças (4.14
– 9.50)
Narrativa resumida da obra inicial de Jesus (4.14-15)
Pregação em Nazaré (4.16-30)
Jesus e as Multidões (4.31 – 5.16)
Conflitos com os líderes religiosos (5.17 – 6.11)
Escolha dos doze (6.12-16)
Instruções aos discípulos (6.17-49)
Natureza e missão de Jesus (7.1-50)
Viagem através da Galileia (8.1-56)
Revelações aos doze (9.1-50)
Caminhada para Jerusalém – Parte I (9.51 – 13.30)
Rejeição pelos Samaritanos (9.51-56)
Testes do discipulado (9.57-62)
A missão dos setenta (10.1-24)
Ensinos acerca dos relacionamentos (10.25-42)
Instruções sobre a oração (11.1-13)
Sinais e rejeição (11.14-54)
O discipulado responsável (12.35 – 13.30)
Caminhada para Jerusalém – Parte II (13.31 – 19.27)
Predição da Paixão (13.31-35)
Instruções numa refeição (14.1-24)
Os termos do discipulado (14.25-35)
A alegria de Deus ao receber pecadores (15.1-32)
Ensinamentos adicionais sobre a riqueza (16.1-31)
O caráter do discipulado (17.1-10)

63
Purificação dos dez leprosos (17.11-19)
Ensino acerca do Reino (17.20-37)
Ensino acerca da Oração (18.1-14)
Entrada no Reino (18.15-39)
Aproximando-se de Jerusalém (18.31 – 19.27)
O ministério em Jerusalém (19.28 – 22.53)
Aproximação e entrada do Messias (19.28-48)
Exame da autoridade de Jesus (20.1 – 21.4)
O discurso escatológico (21.5-38)
Resumo dos últimos dias de ministério (21.37-38)
Preparação para a páscoa (22.1-53)
A paixão (22.54 – 25.36)
O julgamento de Jesus (22.54 – 23.25)
A crucificação (23.26-28)
A ressurreição de Jesus (24.1-53)

64
5. A obra lucana, parte II –
Atos dos Apóstolos
Propósitos
Uma vez que a autoria deste livro já foi discutida por ocasião do
estudo do terceiro evangelho, procuraremos agora identificar as
fontes do material usado em sua composição, data e local da escrita,
ambiente histórico e geográfico que lhe serviu de cenário e o objetivo
teológico do autor. O nome mais credenciado pela tradição para a
autoria de ambos é o de Lucas, aquele que o apóstolo Paulo chama
de “o médico amado”.

Fontes e metodologia de trabalho do autor


Hale 70 cita nada menos de três fontes que foram utilizadas na
composição de Lucas/Atos: 1. Material coletado pelo próprio autor na
qualidade de testemunha ocular que foi de muitos dos fatos narrados
no segundo livro. 2. Fontes escritas que ele teve oportunidade de
examinar, no caso do primeiro livro (Evangelho de Marcos e fonte Q).
3. Informações recebidas do Apóstolo Paulo e de seus colaboradores.
O conjunto Lucas/Atos é, praticamente, o único da Bíblia em que o
autor descreve detalhadamente sua metodologia de trabalho. Essa
declaração se encontra nos prólogos. O prólogo do terceiro
evangelho já foi estudado. O prólogo de Atos, por sua vez, declara:
“Fiz o primeiro tratado, ó excelentíssimo Teófilo, acerca de tudo
quanto Jesus começou a fazer e a ensinar até o dia em que foi levado
para cima, depois de haver dado mandamento pelo Espírito Santo,
aos apóstolos que escolhera; aos quais também, depois de haver
padecido, apresentou-se vivo, com muitas provas infalíveis,
aparecendo-lhes por espaço de quarenta dias, e lhes falando das
coisas concernentes ao reino de Deus”.71
A apreciação do prólogo do terceiro evangelho nos permitiu
reconstituir detalhadamente a metodologia usada pelo autor. Não

70HALE, B. D. Introdução ao estudo no Novo Testamento, Rio


de Janeiro, JUERP, 1983. 271 pp. Capítulo 8 – Atos dos
apóstolos.
71At.1.1-4.
65
temos nenhum motivo para crer que o autor tenha alterado esta
metodologia quando da escrita do segundo livro. Dessa forma, salvo
pelo fato de ele ter sido testemunha ocular de alguns doas eventos
narrados, a metodologia permanece essencialmente a mesma.

Data e local de composição


A data mais provável de composição deste livro pode ser obtida a
o
partir da consideração de dois argumentos: 1 – A data mais antiga
que podemos admitir é obrigatoriamente posterior à data de
composição do terceiro evangelho a qual, por sua vez é posterior à
0
data de composição do evangelho de Marcos. 2 – A data mais
recente é obtida a partir de uma evidência negativa (o argumento de
ausência deve ser sempre tomado com muitas restrições). O livro de
Atos não faz referência a mortes do apóstolo Paulo. Como o apóstolo
é o personagem principal em todo o roteiro da história podemos
admitir que ele ainda estaria vivo quando a escrita do livro foi
concluída porque o autor não teria motivo para omitir um fato desta
magnitude. Considerando que o apóstolo foi martirizado no ano 68
ficamos com o intervalo 64 – 68 como o tempo mais provável de
composição desta obra.

Propósito do autor e plano da obra


Muito embora o autor de Atos declare que o seu objetivo era instruir
um convertido chamado Teófilo a respeito de verdades das quais ele
já era conhecedor, a determinação do objetivo teológico do autor tem
levado à formulação de várias hipóteses por parte dos estudiosos
desta matéria. Schreiner72 nos apresenta Lucas como um teólogo da
salvação guiada por Deus e, a partir da análise da estrutura dos dois
livros, formula a hipótese de uma “Teologia do caminho” como
princípio organizador do pensamento do autor. Segundo este autor,
Lucas enquadra tanto o ministério de Jesus Cristo quanto o
movimento expansionista da igreja das origens no plano geral da
História da Salvação, tal como é delineado no velho Testamento.
Trata-se de um relato dos atos salvadores de Deus a favor do povo
que ele escolheu.

72SCHREINER, J. & DAUTZENBERG, G., Formas e e


estruturas do Novo Testamento, São Paulo, Paulinas, 1977.
Cap.12. Lucas, teólogo da salvação guiada por Deus.
66
O princípio organizador do pensamento do autor na segunda parta da
obra lucana pode ser encontrado no versículo 8 do capítulo 1 de Atos:
Mas recebereis poder, ao descer sobre vós o Espírito Santo, e ser-
me-eis testemunha não só em Jerusalém, mas em toda a Judeia,
Samaria e até os confins da terra.
Neste versículo podemos ver alguns princípios que direcionaram o
pensamento do autor:
A perceptível presença do Espírito Santo, que assume o comando de
todo o processo chegando mesmo a ofuscar a pessoa de Jesus
Cristo. A ordem para testemunhar vinha de Jesus, mas a habilitação
para cumprir a ordem vinha do Espírito.
A vocação expansionista do Cristianismo cujos horizontes atingiam os
confins da terra é o tema central. A visão do autor é francamente
proselitista e missionária. Alguns aqui falam de um movimento
centrífugo. Partindo de Jerusalém (origem e centro de tudo) o
evangelho prossegue pela Judeia (vizinhança mais próxima),
Samaria (vizinhança mais distante) e só se detém quando os confins
do mundo (Roma, a capital do Império) são atingidos.
O livro de Atos dos apóstolos está estruturado em seções que
descrevem o movimento expansionista do Cristianismo. A primeira
relata a evangelização em Jerusalém e na Judeia e tem no apóstolo
Pedro, seu personagem principal. A segunda mostra a evangelização
em Samaria quando sobressai a figura do judeu helenista convertido
Filipe. A última mostra a progressão do evangelho pelas províncias
romanas e tem como personagem principal outro judeu helenista
convertido: Paulo. Cada uma das seções é delineada por uma
espécie de estribilho no qual o autor resume o progresso feito na
seção anterior. A forma mais típica apresente a expressão: “E a
Palavra de Deus crescia e se multiplicava.” Podemos encontrá-la
cinco vezes no livro de Atos.
Atos 6.7 – Após a crise que envolveu a igreja em Jerusalém.
Atos 9.31 – Após a evangelização dos samaritanos.
Atos 12.24 – Após o batismo dos gentios em Cesareia.
Atos 16.5 – Após o concílio em Jerusalém.
Atos 19.20 – Após o batismo dos discípulos de João, em Éfeso.

67
Estudo do conteúdo
Prólogo (1.1-5)
O prólogo faz a ligação deste livro com o primeiro tratado permitindo
identificar o autor dos dois livros como sendo a mesma pessoa.
Permite identificar também sua população alvo e seus objetivos
teológicos.

Expansão do evangelho em Jerusalém e na Judeia


(1.6 – 6.7)
Inicia com a ascensão de Jesus Cristo, seguida da descida do Espírito
Santo no dia de pentecostes, em Jerusalém. Relata, a seguir, o
crescimento vertiginoso da comunidade cristã na Judeia, a
institucionalização da igreja local e a reação dos líderes judeus a este
crescimento. Encontramos ainda o relato do aparecimento do
primeiro ministério estruturado (apóstolos e “diáconos”, como reação
à problemática surgida na igreja.)

Expansão do evangelho em Samaria (6.8 – 9.31)


Após o julgamento e martírio de Estevão, ocorreu uma perseguição
que resultou na dispersão dos discípulos. Uma parte deles (judeus
helenistas convertidos) foi para a Samaria e promoveu uma vitoriosa
campanha evangelística naquela região. Ocorre então o “Pentecoste
samaritano” que foi comprovado pessoalmente pelos apóstolos
sediados em Jerusalém. A linha histórica é quebrada para apresentar
duas conversões miraculosas: um africano, alto funcionário do reino
da Etiópia, cujo nome não é declarado e Saul, judeu helenista da
diáspora, perseguidor da cristandade, que mais tarde adota o
pseudônimo de Paulo.

Início da evangelização dos gentios (9.32 – 12.24)


Pedro visitava cristãos residentes nas cidades de Lida e Jope. Na
segunda hospeda-se em casa de um curtidor chamado Simão. Nesta
localidade tem uma visão desconcertante: um lençol desce do céu
cheio com animais impuros. Simultaneamente uma voz ordena-lhe
que os mate e coma. Ainda aturdido com a visão recebe a visita de
emissários de Cornélio, centurião romano que morava em Cesareia
marítima. Convidam-no para que vá a sua casa.

68
Contrariando a tradição dos judeus, Pedro acompanha os emissários
de Cornélio até sua casa e prega o evangelho. É interrompido pela
manifestação do Espírito Santo que vêm sobre os ouvintes de
maneira semelhante àquela que ocorreu em Jerusalém no dia de
pentecostes.
Início da obra missionária no continente asiático (12.25 – 16.5)
Seguindo o movimento centrífugo, o foco da narrativa se desloca
para o norte. De Jerusalém para Antioquia da Síria. A igreja aqui tem
ministério organizado segundo padrões helenistas: Predicadores
(profetas) e Doutores (mestres filósofos). Neste ambiente o Espírito
Santo se apresenta e convoca dois dos líderes da igreja para a obre
missionária: Paulo e Silas. A primeira comitiva parte para o norte
passando pela Cilícia, Panfília, Psídia e Licaônia. A história termina
com o relato do concílio de Jerusalém que examinou o problema
relativo à circuncisão dos gentios (cap. 15). Neste conflito quebrou-se
a primeira barreira para a expansão do evangelho, a barreira racial,
uma vez que ficou comprovado que o cristão não precisava ser
obrigatoriamente um prosélito do Judaísmo.

Expansão inicial na Europa (16.6 – 19.20)


Após o encerramento da segunda viagem missionária os pregadores,
liderados por Paulo, são orientados pelo Espírito Santo a cruzar o mar
e desembarcar no território europeu (Macedônia). Essa foi a segunda
grande barreira que brada na expansão missionária, a barreira
geográfica. Após haverem passado por Filipos, onde os apóstolos
foram alvo de um livramento miraculoso que resultou na conversão
do carcereiro e de sua família, os missionários tomam o rumo do sul,
passando por Tessalônica e Bereia, e entram na província da Acaia
(Grécia) atingido as cidades de Atenas e Corinto. Da Acaia retornam
por mar à Antioquia da Síria onde, depois de um pequeno intervalo,
partem para a terceira viagem missionária que vai levá-los à Éfeso,
capital da província da Ásia. Nesta cidade ocorre a agregação ao
Cristianismo do último contingente. Os discípulos de João Batista.
Ocorre um novo Pentecostes.

Expansão final na Europa (19.21 – 28.31)


Após o encerramento da segunda viagem Paulo vai a Jerusalém onde
é preso. Levado a julgamento, inicialmente em Jerusalém, depois em
Cesareia, apela para César usando seu direito e cidadania romana.

69
É então levado para Roma onde fica detido aguardando o julgamento
final.

Grandes temas do livro de Atos dos apóstolos


A heterogeneidade da comunidade cristã primitiva – Saltam à
vista do leitor as diferenças existentes entre os diversos grupos
formadores da comunidade cristã primitiva: Judeus hebraístas da
Palestina, judeus helenistas da diáspora, samaritanos, ex-discípulos
de João Batista e, finalmente, gentios. Os conflitos no meio destes
grupos eram inevitáveis, a começar pela igreja em Jerusalém, dividida
por causa do racismo – judeus hebraístas contra judeus helenistas. O
conflito entre judeus hebraístas e gentios se expressa no surgimento
do movimento judaizante que exigia que os gentios convertidos se
tornassem prosélitos do Judaísmo pela submissão ao ritual da
circuncisão e pela obediência à Lei de Moisés.
Fixação contra progresso – Jesus Cristo ordenou a seus apóstolos
que permanecessem em Jerusalém até que recebessem o poder do
céu trazido pelo Espírito Santo. Os discípulos se apegaram à tradição
e desobedeceram à ordem do Mestre. Não progrediram no projeto.
Depois de haverem recebido o poder permaneceram em Jerusalém e
formaram uma comunidade local baseada no compartilhamento de
bens com a pretensão de permanecer até a parusia. Os problemas
não demoraram a aparecer: Conflitos étnicos, tentativas de fraude,
etc.
A doutrina do Espírito Santo – O livro de Atos fornece as bases para
o estudo da Paracletologia. Jesus Cristo sempre agiu sob o controle
do Espírito Santo, nunca fez nada de sua própria iniciativa. Os
apóstolos e igrejas mencionados no livro de Atos também decidiam e
agiam sob o controle do Espírito. Além disso, no livro de Atos
encontramos quatro narrativas de manifestações públicas do Espírito
Santo. A primeira se deu em Jerusalém, no dia de pentecostes (2.1-
11) e envolveu a capacitação para entender línguas desconhecidas
(glossolalia). A segunda ocorreu em Samaria, após a conversão de
uma aldeia de samaritanos (8.5-25). A terceira ocorreu em Cesareia,
na casa de Cornélio (10.1-11.18). Neste caso chama a atenção o fato
de o batismo no espírito haver precedido o batismo nas águas. A
quarta e última ocorre em Éfeso (19.1-7). Aqui a população alvo está
constituída de discípulos de João Batista que ainda não tinham ouvido
falar do Espírito Santo.

70
A doutrina de missões – A metodologia do trabalho missionário está
claramente exposta no livro de Atos. A observação de alguns pontos
pode nos ajudar a entender a razão do sucesso dos pregadores
primitivos. 1 – Concentravam sua atuação em grupamentos urbanos
(cidade), 2 – Iniciavam a pregação com pessoas já atingidas pela
cultura bíblica (judeus helenistas da diáspora), 3 – Instalavam-se em
residências de simpatizantes quando as portas lhes eram abertas. A
igreja doméstica foi de grande valor no trabalho dos apóstolos. 4 –
Sempre que possível criavam igrejas urbanas. 5 – Voltavam
posteriormente para confirmar e reforçar os cristãos na fé. Acima de
tudo, seguiam fielmente as orientações do Espírito.

71
Unidade III – Literatura
Paulina

Contamos hoje com 13 epístolas no Novo


Testamento cujas autorias são tradicionalmente
atribuídas ao apóstolo Paulo.

Elas não estão organizadas pela cronologia de


produção até porque as datas em que foram
escritas não são conhecidas com precisão, sua
ordenação obedece ao critério extensão do texto.
As maiores precedem as menores.

A crítica moderna aceita que algumas delas foram


redigidas por discípulos de Paulo após o
falecimento do seu mestre cujo nome foi incluído
como autor por ser ele o portador dos
ensinamentos veiculados na carta.

As epístolas paulinas são o texto base para o


estabelecimento das grandes doutrinas de nossa
fé: salvação, santificação, atuação do Espírito,
missões e muitas outras. Nunca se poderá
exagerar a importância do seu conhecimento.

72
1. Paulo e o Cristianismo do
primeiro século
Propósitos
Uma vez que já conhecemos o cenário no qual se formou a literatura
cristã do primeiro século, precisamos agora apresentar os atores, isto
é, seus autores e personagens. O apóstolo Paulo escreveu a maior
parte dos livros do Novo Testamento. A descrição de sua vida ocupa
cerca de dois terços do livro de Atos dos Apóstolos e é citado em livros
de outros autores. Para entender a razão dessa importância
precisamos: 1. Descrever de maneira sumária a formação cultural e
religiosa do apóstolo Paulo. 2. Descrever de maneira sumária os
itinerários das viagens do apóstolo Paulo, narradas no livro de Atos
dos Apóstolos. 3. Delimitar os períodos históricos do primeiro século
e 4. Descrever a estrutura das comunidades cristãs no século I

Paulo, o cidadão romano.


Paulo era, segundo ele mesmo descreve, hebreu de hebreus 73. Sua
ligação religiosa era com a corporação dos fariseus 74. Sua cidade de
nascimento foi Tarso75, na província da Cilícia, embora sua família
provavelmente fosse originária de Roma. Do ponto de vista étnico
Paulo, cujo nome de berço era Saul, pode ser descrito como um judeu
helenista da diáspora.
O idioma nativo de Paulo era o Grego comum, língua usada pelo povo
no lado oriental do Império Romano. Paulo era um homem culto,
conhecia os filósofos e poetas gregos (V. Quadro 2) que citava

73 Filipenses 3-5
74 Ibidem
75 Atos 22.3
73
frequentemente em suas obras 76 . Ele possuía uma biblioteca que
carregava consigo em suas viagens missionárias 77.
Paulo tinha conhecimento da língua e da cultura hebraica. Como
qualquer garoto judeu, aprendeu a leitura e a interpretação da Torá
na escola da sinagoga. Seus estudos superiores em doutrinas
judaicas foram feitos em Jerusalém, onde teve por mestre Gamaliel,
neto de Hilel. A escola de Hilel representava o lado menos radical do
Judaísmo. Fez sua iniciação no farisaísmo e se tornou doutor da
Lei78. Provavelmente Paulo era pessoa muito bem relacionada nos
meios políticos e religiosos de Jerusalém. Ele conseguiu uma
autorização assinada pelo sumo sacerdote para perseguir os
cristãos79 e foi testemunhe na execução de Estêvão 80.
Paulo era também um cidadão romano por direito de nascimento 81.
Sua família residiu por muitos anos em Roma. Posteriormente
radicou-se em Tarso, na província da Cilícia. Eram artífices que,
segundo as evidências fazem crer, fabricavam e forneciam tendas
para as legiões romanas.
A carreira política e religiosa de Paulo foi interrompida quando da sua
adesão ao Cristianismo. Ele entendeu que o Senhor a quem ele
perseguia o chamava para uma missão profética de importância
ímpar, a de ser o portador da mensagem do amor de Deus a todos os
povos, especialmente os pagãos 82.
O livro de Atos dos apóstolos nos dá um esboço de suas viagens pelo
Império Romano desenvolvendo o trabalho de proclamação do

76Pois nele vivemos, e nos movemos, e existimos como até


alguns dos vossos poetas o têm dito: Porque dele também
somos geração (Atos. 17.28). Essa citação não implica em que
Paulo concordasse com o que ela declara.
77Quando vieres, traze a capa que deixei em Trôade, na casa
de Carpo, e os livros, principalmente os pergaminhos (2
Timóteo 4:13).
78Fp. 3.5
79Atos 9.1,2
80 Atos 7.58
81Atos 22.25-28
82Gl. 2.6-8
74
evangelho, objetivando principalmente a evangelização da
comunidade gentílica. À semelhança de Jesus Cristo, Paulo reuniu e
preparou um grupo de discípulos que foram habilitados para assumir
cargos de liderança nas igrejas que ele fundava. Dentre eles podemos
citar Timóteo, Tito, Epafras e Apolo. Paulo pode ser chamado de “o
segundo fundador do Cristianismo”, uma vez que as principais
doutrinas cristãs estão esboçadas em suas epístolas.

O Cristianismo do primeiro século


Períodos históricos
O primeiro século do Cristianismo pode ser dividido em períodos
históricos que possuíram características diferentes. O conhecimento
desses períodos históricos muito nos auxilia a compreender por que
motivos foram possíveis a expansão inicial do Cristianismo e a
formação do Novo Testamento.
É usual dividir o primeiro século nos períodos que seguem: 1. O
período de Jesus Cristo vai do início do século até o ano 33, quando
ocorreu a ressurreição. 2. O período da igreja primitiva, que também
pode ser chamado de período apostólico, vai do ano 33 até o ano 70,
quando o templo de Jerusalém foi destruído pelas tropas romanas
comandadas por Tito. 3. O período final, denominado pós-apostólico
ou sub – apostólico, se estende do ano setenta até o final do primeiro
século. Cada um destes períodos teve características particulares e
deu contribuições decisivas para a formação do Novo Testamento.
No período de Jesus Cristo os cristãos eram um pequeno grupo de
dissidentes religiosos, denominados inicialmente como seita dos
nazarenos, que não passava de cerca de duzentas pessoas, incluindo
as mulheres. Neste período não ocorreu composição de qualquer
literatura escrita. O tempo em que Jesus ensinou e agiu foi rico na
produção de material que foi veiculado por seus discípulos na forma
de tradição oral. Os discípulos ouviam e decoravam o que o mestre
falava. Nesta categoria se encontram as parábolas de Jesus e as
narrativas de seus feitos: milagres, curas e exorcismos.
O período apostólico se caracteriza pelo aparecimento de igrejas
com pequeno número de membros, reunidas em casas de famílias,
sob a direção de leigos orientados por apóstolos. O apóstolo que
permanecia na igreja urbana, visitava periodicamente as demais
igrejas a ele ligadas ou se comunicava com elas por meio de cartas.
O adversário das igrejas neste tempo era o poder religioso dos judeus

75
que perseguiam os cristãos acusando-os de serem politeístas por
confessarem a divindade de Jesus Cristo. A ênfase do período foi a
expansão missionária. Neste período foi composta a maioria das
epístolas e, provavelmente também o evangelho de Marcos.
O período sub–apostólico (pós–apostólico) seguiu-se à morte dos
apóstolos e à destruição do templo de Jerusalém. Este período
assistiu à estruturação das igrejas com seleção e preparação de
lideranças locais. O inimigo deixou de ser o governo judeu e passou
a ser o império romano. O desafio já não era expandir a fé e sim
manter a convicção dos crentes diante das crescentes pressões para
que seguissem heresias diversas (Gnosticismo) ou apostatassem da
fé retornando ao Judaísmo. Algumas epístolas, os evangelhos, o livro
de Atos e o Apocalipse foram compostos nesta época.

As comunidades
Os cristãos do primeiro século estavam organizados em
comunidades. Para entendermos o que designamos por comunidade,
precisamos rever nossa conceituação de Cristianismo Primitivo. A
população cristã do primeiro século nunca foi, como vinha se
acreditando há muito tempo, formada por um grupo unitário de igrejas,
homogêneo em termos de doutrinas e de práticas religiosas. Pelo
contrário, os cristãos do primeiro século formavam um grupo
heterogêneo que estava estruturado em comunidades – grupos de
igrejas – que guardavam em comum, além de sua origem histórica, o
respeito a um mesmo líder e um repertório limitado de doutrinas e de
práticas religiosas. 83 Esse repertório doutrinário de cada uma das
comunidades diferia bastante dos repertórios das outras
comunidades congêneres com as quais ela se identificava apenas
pela aceitação de um núcleo doutrinário comum denominado
kerygma apostólico, uma espécie de profissão de fé primitiva que

83A maior parte dos livros do Novo Testamento foi escrita no


último terço do Século I. Este período, que Brown, R.E. (As
Igrejas dos Apóstolos, São Paulo, Paulinas, 1986) chama de "
período subapostólico", se caracterizou pela organização das
igrejas em comunidades centralizadas na pessoa de um
apóstolo. Mais tarde, após a morte dos apóstolos, as igrejas
locais foram adquirindo maior autonomia.
76
definia um programa mínimo de Cristianismo. Moule 84 nos declara
que:
Um viajante, logo depois da metade do primeiro século, por
exemplo, lá pelo ano 60, que fosse de Jerusalém para Éfeso,
encontraria uma variedade notável de doutrina e prática entre
comunidades que, não obstante, reivindicavam todas estar
relacionadas com Jesus de Nazaré. Em qualquer lugar da Judeia,
ele poderia encontrar o círculo de Tiago, irmão do Senhor, que
ainda prestava culto numa sinagoga cristã, formada de judeus
praticantes, que também criam em Jesus como o Messias de Deus,
mas que podiam ter progredido muito pouco com respeito à
formulação da doutrina da divindade de Jesus: o Cristianismo do
tipo ebionita caracterizava--se por uma reduzida cristologia. E
que podemos dizer a respeito do tipo de Cristianismo que se
desenvolveu em Samaria? Provavelmente, tinham lá em alta conta
o nome de João Batista (cuja missão tinha sido intensa naquela
região, e cujo túmulo talvez eles orgulhosamente custodiassem) e
recolheram tradições, muitas das quais estão agora incorporadas
no Quarto Evangelho. Eles concebiam Jesus como aquele que
estava para vir, isto é, o profeta como Moisés (Deuteronômio
18.15). Na cosmopolita Antioquia (ainda que para julgar a partir
de não mais que as referências a ela no Novo Testamento, sem
considerar a sua história posterior) poder-se-ia encontrar uma
notável variedade de tipos de comunidade, ou seja, gentias,
judaicas, judaizantes, helenizantes, com diferentes formas de
cristologia; enquanto que, se nosso viajante seguisse pelo vale do
Lico, encontraria uma estranha amálgama de astrologia oriental,
de legalismo judaico e de crenças cristãs (cf. a carta aos
Colossenses e comentários a respeito). Ao fim de sua viagem, ele
estaria preparado para a fervilhante diversidade de Éfeso, onde
as igrejas paulinas estavam sendo invadidas rapidamente pelo
antinomismo, pelo Cristianismo do tipo joanino (Cf. Atos 20.29ss,
Apocalipse 2.1ss, O Evangelho e as Epístolas de João). Se, depois
tomasse um navio de Mileto para Alexandria, ele mesmo podia
ver-se confrontado ali com uma ulterior variedade de
comunidades cristãs, ou, se ele já as tivesse encontrado em Éfeso,
ou em qualquer outro lugar, nesta cidade elas estariam até mais
concentradas e com uma fisionomia mais definida (cf., por

84Moule, C.F.D. “ As origens do Novo Testamento ", São


Paulo, Paulinas, 1979. pp. 175 – 177.
77
exemplo, Hebreus e Atos 18.24ss). Finalmente, em Roma, ele
poderia encontrar toda a sorte de tendências se acotovelando
umas às outras; eram as sinagogas cristãs judaizantes; as espécies
de gnósticos mais liberais dentre os liberais, muito mais próximas
do culto de mistérios do que do Israel de Deus; congregações
petrinas e paulinas, e tudo mais (cf. Fl. 12.17 e as impressões de
Rm. 15.20).
Essa heterogeneidade doutrinária fica bem patente quando
examinamos a vida de igrejas de grandes metrópoles como a de
Corinto85 cuja congregação era composta de crentes de diferentes
origens e tendências doutrinárias: Uns eram de Pedro, outros de
Paulo (igreja apostólica), outros de Apolo (comunidade joanina) e
outros de Cristo (I Co.3.1-7). Na sua primeira epístola aos Coríntios o
apóstolo Paulo tentou, por meio de restrições e de concessões
parciais, estabelecer um denominador comum que permitisse a
irmãos que divergiam com tal intensidade conviver e comungar sob
um mesmo teto86. Para atingir tal objetivo era estritamente essencial

85Das formas de vida dos cristãos resulta um espectro que se


estende desde um hebraico – cristianismo aramaico, passando
por um cristianismo judaico – helenista até um cristianismo
gentílico – helenista. Sob o ponto de vista sociológico, porém
ele não se apresenta geralmente como distribuição temporal e
espacial sobre comunidades e grupos de comunidades, mas
como correntes que, em grande parte, correm paralelas. Como
se podem constatar nos partidos de Jerusalém (At. 6.1) e de
Corinto (I Co.1.11 s), essas correntes surgiam, na maioria das
vezes, em um mesmo lugar. Goopelt, L. Teologia do Novo
Testamento, São Leopoldo, Sinodal / Vozes, 1982, 2o Vol. p.
313.
86Paulo foi o grande artífice da unificação do Cristianismo
primitivo. Por ser homem de formação eclética, versado tanto
na filosofia dos gregos, quanto na sabedoria dos judeus,
conseguia entender e aceitar sem preconceitos crentes das mais
diversas raças e culturas. Para ele não poderia haver diferenças
na igreja porque: não há grego nem judeu, circuncisão nem
incircuncisão, bárbaro, cita, escravo ou livre, mas Cristo ‚ tudo
em todos (Co.3.11). Pois quem faz injustiça receberá a paga da
78
saber distinguir o cerne da doutrina cristã dos seus ramos supérfluos
que podiam ser podados sem prejuízo para ninguém.
Aceita-se hoje que a existência de várias comunidades, diríamos em
termos atuais, a existência de várias denominações – dentre os
cristãos primitivos foi um dos fatores determinantes do surgimento e
da canonização da literatura constituinte do Novo Testamento. Cada
comunidade contribuiu pela composição de um ou mais livros. A
contribuição particular da comunidade joanina está constituída pelo
quarto evangelho e pelas três epístolas que levam o nome do
apóstolo do amor. Cada comunidade era constituída por uma igreja –
mãe onde ficava o seu líder principal e de várias igrejas filhas onde
ficavam líderes regionais. O primeiro líder de cada comunidade foi um
apóstolo – no sentido mais amplo do significado desta palavra, um
missionário cristão – o qual, após sua morte, foi sucedido por um
bispo ou um presbítero. O apóstolo e os seus sucessores eram os
guardiães da fé‚ num tempo em que ainda não havia um Novo
Testamento escrito. Em seu conjunto, os líderes da comunidade
formavam uma escola87. Aceita-se hoje que o discípulo amado (João
21.24) foi o fundador da escola joanina e que seu primeiro sucessor
foi o presbítero (I João vs.1).
Esse panorama – um Cristianismo dividido em comunidades –
perdurou até o final do século primeiro. A partir do segundo, em
decorrência da distância cada vez maior que os cristãos ficavam dos
primitivos, tanto no tempo quanto no espaço, e também por causa do
desenvolvimento de uma palavra escrita resultante da junção dos
diversos “corpi”, as igrejas locais se tornaram cada vez mais
independentes. A responsabilidade de interpretação da palavra
escrita ficou com o bispo de cada uma delas.

injustiça que fez; e não há acepção de pessoas. (Co.3.25)


87O fenômeno de transmissão de verdades religiosas por meio
de escolas está muito bem estudado para o profetismo
veterotestamentário. Elias e Eliseu foram profetas de uma
mesma escola. Fala-se hoje no livro da escola do profeta Isaías
(V. Schreiner, J, " O livro da escola de Isaías " in Schreiner, J.
Ed., " Palavra e Mensagem – Introdução Teológica e Crítica
aos Problemas do Antigo Testamento ", São Paulo, Paulinas,
1978.).
79
2. O início de um Novo
Testamento
Propósitos
A epístola é o gênero literário predominante no Novo Testamento.
Esse fato não chega a ser uma novidade desconcertante.
Encontramos no Velho Testamento o relato de cartas escritas por
profetas para serem lidas por pessoas que eles não podiam atingir
com sua voz. O caso mais conhecido é o de Jeremias que escreveu
uma carta (epístola) para judeus deportados que se encontravam na
Babilônia.
O rápido processo de expansão geográfica que o Cristianismo
experimentou no primeiro século da era cristã determinou que
aumentasse muito a distância entre as igrejas. Os apóstolos não
podiam visitá-las para passar as instruções necessárias. Essas
instruções eram passadas por meio de epístolas.
Nesse estudo temos como propósito: 1. Listar os principais fatos
históricos que motivaram a produção das epístolas
neotestamentárias. 2.Listar e discutir as condições vigentes no
Império Romano, durante o século I, que permitiram o
desenvolvimento da literatura epistolar cristã. 3.Listar e discutir as
principais características estruturais da literatura epistolar do Novo
Testamento. 4.Discorrer sucintamente sobre a estrutura das epístolas
neotestamentárias. 5. Listar as principais questões doutrinárias e
éticas discutidas nas epístolas e 6. Conceituar corpus paulino e
descrever sua estrutura.

As motivações para a escrita das epístolas


O Novo Testamento começou pelas epístolas. Quem lê o Novo
Testamento pela primeira vez e encontra, de saída, a coleção dos
evangelhos pode, com facilidade, concluir erroneamente, que eles
são o que de mais antigo possuímos em termo de literatura cristã.
Esta concepção é totalmente equivocada. Muito antes de surgir o

80
primeiro dos evangelhos (Marcos) a maioria das epístolas já estava
escrita88.
Por que as epístolas foram aceitas tão precocemente como obras
com autoridade pelas igrejas cristãs? Seguramente isso aconteceu
porque a autoridade das epístolas continua a autoridade apostólica.
A autoridade dos apóstolos foi reconhecida muito precocemente:
quando se instalou a primeira comunidade cristã em Jerusalém e os
problemas começaram a surgir, os apóstolos foram consultados sobre
a maneira de resolvê-los.
Desde então as palavras deles passaram a ter força de sentença
judicial nas questões de doutrina e de prática eclesiástica. Isso
ocorreu, por exemplo, na controvérsia judaizante 89 narrada no
capítulo 15 do livro de Atos dos Apóstolos. Os cristãos judeus
entendiam que os gentios que se convertiam deveriam ser
submetidos ao rito de iniciação da circuncisão tornando-se prosélitos
do Judaísmo. Os cristãos gentios, por outro lado, entendiam que a
circuncisão era um ritual que deveria ser observado exclusivamente
por judeus e que eles, portanto, não precisavam ser circuncidados
para ser cristãos. Os apóstolos, reunidos em Jerusalém, sob a
presidência de Tiago, consideraram a questão e emitiram uma
sentença que passou a ter força de lei para todos os crentes. Essa
sentença gerou uma carta (epístola) circular que foi lida nas igrejas.
Com o passar dos tempos ocorreu a expansão geográfica do
Cristianismo. Algumas igrejas, que se encontravam longe demais
para poder ter a presença do apóstolo ajudando-a a resolver os seus
problemas mandavam emissários com mensagens escritas ou orais 90
para consultar os apóstolos sobre problemas específicos.

88É aceito hoje que os evangelhos começaram a ser escritos


durante a guerra judaico – romana, (65 – 70). A mais antiga das
epístolas (Tiago) foi escrita cerca de duas décadas antes.
89Os judaizantes eram um grupo de fariseus convertidos ao
Cristianismo que entendiam ser necessário impor aos gentios
que se convertiam o cumprimento da lei judaica para que eles
pudessem alcançar a salvação (v. At.15).
90Na sua primeira carta dirigida aos crentes de Corinto, Paulo
informa ter sido consultado por pessoas da família de Cloé. I
81
O apóstolo, impedido de viajar até o lugar onde se encontravam
aqueles irmãos, respondiam-lhes por carta. A reposta era lida para a
igreja que havia feito a consulta original e dela eram feitas cópias que
eram enviadas às igrejas vizinhas que se interessavam pela carta
porque estavam enfrentando problemas da mesma natureza 91. Após
a morte dos apóstolos, as igrejas cristãs se habituaram a fazer e
manter coleções de cópias dos escritos apostólicos que eram
compartilhados entre elas e consultados sempre que surgia um
problema doutrinário92. Estava nascendo o Novo Testamento.

As condições para o surgimento das epístolas


O aparecimento das epístolas neotestamentárias foi favorecido
especialmente pelas condições vigentes no Império Romano na
época do surgimento do Cristianismo. Vamos recordá-las.

Unidade linguística
Como fruto da helenização do oriente, todas as províncias do lado
oriental do Império Romano tinham no Grego a sua língua comum.
Na própria capital do Império, as pessoas cultas conheciam a língua
grega e os códigos de direito eram nela redigidos. O Grego, que
funcionava naquela época como língua internacional, tal como o
Inglês funciona hoje, não era o Grego literário ou Ático, e sim o koine
- (Grego comum) que era usado pelo povo.
Se os escritores do Novo Testamento tinham como objetivo ser
entendidos pela maioria dos seus possíveis leitores eles precisavam
escrever em uma língua que fosse do conhecimento da maioria. A
existência de uma língua de comunicação de domínio público permitia
que habitantes de distantes províncias se comunicassem facilmente
por meio de documentos escritos. A escrita das epístolas
neotestamentárias tirou vantagem desta unidade linguística. Convém,
entretanto, não esquecer de que muito embora a língua usada na
transmissão do pensamento dos autores do Novo Testamento fosse
o Grego, o seu conteúdo era essencialmente oriental, tão oriental
quanto o próprio Cristianismo. Muitos dos escritores do Novo
Testamento pensavam em Aramaico e escreviam em Grego que se

Co.11.
91Cl.4.16
92II Pedro 3.16
82
evidencia pela abundância de aramaísmos no texto do Novo
Testamento.

A Pax Romana
A ascensão de Otaviano (César Augusto) ao governo de Roma teve
como consequência a unificação das províncias em um vasto império
com a cessação temporária das guerras. Neste tempo, segundo
informam os historiadores, o templo de Marte ficou fechado, os
guerreiros guardaram as suas armas e os viajantes gozavam de plena
liberdade para ir e vir por todo o Império. Não é seguro que houvesse
um sistema oficial de correios naquele tempo, mas muitos viajantes
se deslocavam pelas províncias em missões comerciais tanto por
terra quanto por rotas marítimas, tratando dos negócios oficiais do
império e de seus negócios particulares. Estes frequentemente se
tornavam portadores voluntários de correspondência naqueles
tempos93.

O sistema viário
Ao lado da existência de um grande número de viajantes se
encontrava a existência de vias de boa qualidade tanto na terra
quanto no mar. Os romanos foram peritos construtores de estradas 94
e, com a derrota dos cartagineses, garantiram o domínio absoluto no
Mediterrâneo Oriental que eles chamavam de mare nostrum. Seus
navios mercantes e de guerra se deslocavam por ele sem empecilhos
durante toda a parte do ano na qual as condições meteorológicas
eram favoráveis às viagens marítimas. Esses fatores criaram
condições adequadas à existência de uma grande quantidade de
correspondência a qual era transportada sem nenhum problema no
interior do Império.

93Os que foram enviados desceram logo para Antioquia e,


tendo reunido a comunidade, entregaram a epístola. Quando a
leram, sobremaneira se alegraram pelo conforto recebido. (At.
15.30-31)
94Três grandes estradas saíam de Roma. A via Apia, a via
Flamínia e a via Egnatia. Esta última que ia até Bizâncio
(Constantinopla) foi usada pelos missionários cristãos em suas
viagens descritas no livro de Atos dos apóstolos.
83
A estrutura das epístolas
Ao tempo da composição do Novo Testamento, dois tipos de cartas
particulares eram muito populares no império romano. Em primeiro
lugar havia a correspondência de caráter pessoal, idêntica à que
temos em nossos dias. Em segundo lugar vinha a literatura epistolar.
A literatura epistolar não era propriamente uma carta e sim um tratado
literário apresentado na forma de carta. Isto também existe na
literatura portuguesa.
Embora apresente grande diversidade de estilos, a literatura epistolar
do Novo Testamento se enquadra melhor no segundo grupo: As
epístolas aos Romanos e aos Hebreus são, na realidade, obras
teológicas. As epístolas de menor tamanho (Filemon, II João e III
João) parecem mais cartas particulares.
As epístolas do Novo Testamento, especialmente as de Paulo, podem
ser vistas como tratados teológicos colocados na forma de cartas.
Dessa forma, elas podem ser divididas em três partes distintas:
Introdução, Corpo e Conclusão, como se fossem sermões.

Que problemas as epístolas procuravam


resolver?
Como foi dito, o conteúdo das epístolas foi decidido pelo autor com
base, por um lado nas consultas enviadas por seus leitores e, por
outro, nas necessidades doutrinárias que ele mesmo diagnosticava.
As epístolas são documentos ocasionais produzidos para solucionar
problemas existentes na época em que surgiram.
Em decorrência disso as epístolas cobrem a quase totalidade dos
problemas que afligiram os cristãos do primeiro século e apresentam
as soluções que lhes foram dadas pelos apóstolos. Por esse motivo,
o conhecimento do conteúdo das epístolas é indispensável ao
estudante de Teologia como base para o entendimento da maior parte
das doutrinas cristãs, razão por que fazemos, a seguir, uma súmula
dos principais temas das epístolas paulinas:

1. Expectativa frustrada da parusia


A expectativa das comunidades primitivas, em termos de parusia, era
uma consequência natural da sua expectativa messiânica. Assim é
que as igrejas cristãs da Palestina, nas quais a expectativa
messiânica se fundamentava na espera da chegada de um filho de
Davi que viria restaurar a autonomia política de Israel, os fatos
84
ocorridos após a morte e a ressurreição de Jesus Cristo conduziram
naturalmente ao desenvolvimento de uma escatologia expectante que
aguardava a volta imediata de Jesus Cristo para completar a obra de
libertação iniciada e inacabada95. O retardo no cumprimento desta
expectativa é um tema desenvolvido nas epístolas mais antigas,
dentre elas, I Tessalonicenses e I Coríntios. Por outro lado, nas
comunidades formadas com participação majoritária de crentes
oriundos da Samaria e da diáspora, que não esperavam libertação
proveniente da família de Davi e sim a chegada de um ser celestial,
semelhante a Moisés, que os instruiria na verdade, desenvolveu-se
uma escatologia realizada como aquelas que encontramos nas
epístolas joaninas.

2. Problemas éticos e necessidade de santificação


Ao tempo em que foi escrito o Novo Testamento o mundo helenístico,
além de cultuar livremente uma enormidade de deuses, estava
dividido entre duas correntes filosóficas principais: epicureus e
estoicos. A primeira delas, de cunho hedonista, ensinava o homem a
viver para buscar os prazeres da vida. A segunda preconizava a busca
da sabedoria visando uma vida sóbria e livre dos vícios comuns. Já
os ensinamentos hebraicos aconselhavam uma vida muito simples
nas quais as virtudes deveriam ser cultivadas como resultado da
obediência à lei de Moisés. Todas essas tendências estavam
presentes nas comunidades primitivas.
O choque cultural se tornou inevitável, como ocorre ainda hoje nas
missões transculturais, porque, à medida que pregadores judeus
introduziam o evangelho em comunidades pagãs, acostumadas a
uma vida libertina, estimulada pelo culto aos deuses da fertilidade,
viam sua proposição de vida santificada francamente contestada.
Algumas das passagens das epístolas foram escritas para estimular
os crentes, vindos do ateísmo, a adotar uma postura ética mais
coerente com o evangelho e outras para minimizar os atritos surgidos
entre eles e os crentes de etnia judaica.
A primeira epístola aos Coríntios é uma coletânea de preceitos éticos
formulados para responder a problemas específicos de uma igreja
metropolitana na qual se congregavam crentes de muitas
nacionalidades, línguas e culturas diferentes. Problemas referentes

95Então, os que estavam reunidos lhe perguntaram: Senhor


será este o tempo em que restaures o reino a Israel? (At. 1.6)
85
ao casamento, ao consumo de alimentos consagrados aos ídolos, à
pureza de vida e à posição social da mulher são amplamente
discutidos.

3. Problemas de prática eclesiástica


O uso do véu na igreja, a maneira correta de celebrar a ceia do
Senhor, a ordem do culto, a participação de mulheres no ministério,
os critérios para escolha dos líderes e muitas outras questões
similares são discutidas na literatura epistolar.

4. Combate às heresias e à apostasia.


Desde o início de sua história, os cristãos foram vítimas de ataques
por parte de diversos grupos cujos pensamentos teológicos divergiam
do pensamento dos apóstolos o suficiente para poderem ser
classificados como hereges. Durante o primeiro século foi muito ativa
a heresia conhecida como judaizante que preconizava a obediência
integral das leis de Moisés para todos os Cristãos. A partir do final do
primeiro século tornou-se mais ativa a heresia gnóstica que
questionava a realidade da humanidade de Jesus Cristo. Vejamos
mais alguns detalhes sobre eles:
Judaizantes – Cristãos oriundos da comunidade palestina,
provavelmente fariseus convertidos, que não aceitaram o
posicionamento do Cristianismo como religião independente e, que
por esse motivo, exigiam dos novos cristãos gentios o mesmo nível
de obediência à lei mosaica que era exigido dos prosélitos do
Judaísmo, inclusive pela prática da circuncisão. A epístola aos
Gálatas teve por motivação o fato de estes hereges haverem se
espalhado na Galácia contestando a autenticidade do apostolado de
Paulo.
Gnósticos – Cristãos que se diziam dotados de sabedoria de caráter
carismático e interpretavam a interação de Jesus Cristo com o mundo
dentro da perspectiva helenística do dualismo bem x mal, luz x trevas
etc. Eles não concordavam que Jesus Cristo, sendo bom, pudesse ter
tido um corpo de carne, porque para eles na carne (matéria) residia o
mau. Dessa forma, afirmavam que o corpo de Jesus era apenas uma
aparência de carne e desqualificavam o valor de sua morte para a
salvação do homem. Eles foram combatidos na primeira epístola de
João.
Outros – Uma das epístolas do Apocalipse de João faz referência aos
Nicolaítas e aos seguidores de Jezabel. As epístolas aos

86
Colossenses, de Judas, a segunda de Pedro e as pastorais fazem
referência a falsos mestres que ensinavam heresias nas igrejas
primitivas.
Esse vasto repertório de problemas resolvidos faz das epístolas do
Novo Testamento uma coleção de escritos extremamente útil para o
pregador moderno que nelas encontra as soluções para problemas
similares que surgem em nossos dias dentro de suas próprias igrejas.
Não devemos esquecer que na nossa época as igrejas eletrônicas
veiculadas pelos meios de comunicação de massa, substituem com
grande eficácia os pregadores itinerantes dos dois primeiros séculos
do Cristianismo.

As epístolas de Paulo (O corpus paulino).


Chamamos de “corpus” paulino a conjunto de epístolas
neotestamentárias cuja autoria é atribuída ao apóstolo Paulo. Existem
evidências de que esta coleção de escritos se formou muito
precocemente, possivelmente no início do segundo século da era
cristã. Uma evidência a favor disto é a citação feita na segunda
epístola de Pedro (3.15-16) aos escritos de Paulo colocando-os em
mesmo status que os outros escritos (Antigo Testamento). O
surgimento desta coleção de epístolas é indubitavelmente o resultado
do trabalho de colecionadores primitivos, membros de igrejas da
comunidade paulina.
Nas versões modernas da Bíblia, as epístolas paulinas são
arrumadas por seu tamanho e não por sua cronologia provável. As
epístolas maiores precedem as menores, independentemente do
tempo em que elas foram escritas. Não há nenhuma dificuldade em
verificar que a epístola aos Romanos é a maior de todas as epístolas
paulinas e que a epístola a Filemon é a menor. Costuma-se classificar
essas epístolas em quatro grupos:
As primeiras epístolas tratam dos assuntos mais em evidência nos
primeiros dias do Cristianismo. A necessidade de santificação dos
crentes gentios, o retardo da parusia e a preocupação das igrejas com
a sorte futura daqueles que estavam morrendo antes da volta de
Cristo. Por causa da crença no retorno imediato de Cristo, muitos
cristãos vendiam suas propriedades e depositavam o produto da
venda em uma caixa comum de onde de provinha a subsistência para
toda a comunidade. Outros preconizavam que os homens casados
deveriam abandonar suas esposas para viver em celibato
aguardando a volta de Jesus Cristo. Preocupavam-se muito com os

87
destinos dos que estavam morrendo naqueles dias. As respostas para
estas perguntas são encontradas nas epístolas aos Tessalonicenses
e na primeira aos Coríntios.
As grandes epístolas (principais) tratam de problemas muito
diversificados. As cartas aos crentes de Corinto, além de focalizar o
retardo da parusia e o tema da ressurreição, a ela associado, tratam
de inúmeros problemas éticos e problemas de prática eclesiástica. A
Epístola aos Gálatas, escrita para combater os judaizantes, discorre
sobre a preeminência da graça sobre a lei, além de apresentar uma
defesa do ministério de Paulo, que era alvo do ataque daqueles
hereges. A epístola aos Romanos, motivada pelo desejo que Paulo
tinha de obter o apoio financeiro dos crentes de Roma para uma
viagem missionária à Espanha (15.22-24), é um grande tratado
teológico sobre universalidade do pecado e sobre a graça salvadora
de Deus.
As cartas da prisão foram escritas em Roma 96 , por ocasião da
primeira prisão de Paulo. Escrevendo aos Efésios, Paulo discorre
sobre a vocação dos gentios e sobre a eficácia do evangelho da
graça, em oposição à ineficácia da justificação pelas obras da lei. A
carta aos Filipenses foi escrita para agradecer uma oferta que os
cristãos de Filipos enviaram a Paulo enquanto estava preso e nela o
autor procura confortar os crentes daquela cidade. O tema mais geral
desta epístola é “alegrai-vos”. A carta a Filemon, escrita
simultaneamente com a carta aos Colossenses, devolve ao seu dono
um escravo fugitivo recém – convertido. A carta aos Colossenses,
motivada pelo aparecimento de falsos mestres na Ásia menor,
apresenta uma elaboração teológica muito elevada e trata
especialmente da preeminência de Cristo sobre todos os poderes
cósmicos.
As cartas pastorais foram escritas para orientar jovens pastores,
Timóteo e Tito, na solução de problemas eclesiásticos e no combate
aos líderes hereges. São uma espécie de curso de Eclesiologia e
Apologética por correspondência. Seu tema principal é o preparo das

96A crítica moderna admite outras hipóteses, inclusive a


possível ocorrência de pseudonímia em algumas cartas como
Efésios, Colossenses e pastorais. Aceita-se também a
possibilidade de alguma delas ter sido escrita em Cesareia,
onde Paulo permaneceu preso por dois anos.
88
lideranças que sucederão os apóstolos no comando das igrejas, isto
é, os bispos e os diáconos.

As epístolas Gerais.
Essas epístolas são chamadas de gerais, ou católicas, por não terem
destinatário específico e poderem, dessa forma, ser aplicadas à vida
de toda a comunidade cristã. Seus autores conhecidos eram pessoas
que desfrutavam da dignidade de apóstolos embora alguns deles não
tivessem participado do grupo que acompanhou Jesus Cristo no seu
ministério terreno: João, a quem são atribuídas três epístolas, foi
possivelmente o discípulo amado, que acompanhou o Mestre em todo
o seu ministério. Tiago e Judas não faziam parte do grupo original dos
doze, foram provavelmente irmãos de Jesus que se converteram
depois de sua morte. Não conhecemos a identidade do autor da
epístola aos Hebreus, mas a qualidade elevada de sua escrita e a
maneira de apresentar a sua argumentação teológica deixam
entrever que ele foi um cristão convertido dentre os judeus
helenísticos da diáspora, possivelmente oriundo da cidade de
Alexandria, no Egito.
Várias motivações levaram à composição destas epístolas. As de
João combatem o Gnosticismo. Tiago faz uma apologia à religião
prática. Pedro e Judas combatem falsos mestres que estão infiltrando
suas ideias na comunidade cristã. Em suma, as epístolas, por serem
escritos mais antigos, visam a resolução de problemas mais restritos
que os evangelhos.

A visão da Crítica Bíblica Moderna


A Crítica Bíblica moderna, atentando para a forma e conteúdo das
epístolas paulinas, divide as epístolas paulinas em dois grupos de
livros. No primeiro grupo encontramos as chamadas epístolas
genuinamente paulinas cujas autorias são atribuídas ao apóstolo,
tendo sido, portanto, escritas antes do ano 70 da era cristã. O
segundo grupo, chamado de epístolas dêutero–paulinas, contém uma
coleção de cartas cujas autorias são atribuídas a discípulos do
apóstolo Paulo que não se identificaram e que usaram o nome do
mestre como pseudônimo. Vale lembrar que a pseudonímia é uma
prática muito comum na literatura bíblica.
Dentre as epístolas paulinas genuínas encontramos: Romanos, I
Coríntios, II Coríntios, Gálatas, Filipenses, I Tessalonicenses e
Filemon. Seis no total. Dentre as dêutero–paulinas temos: Efésios,

89
Colossenses, II Tessalonicenses, I Timóteo, II Timóteo e Tito. Um total
de sete cartas que teriam sido escritas após o ano setenta e que
refletem as condições de vida das igrejas após a destruição do templo
de Jerusalém.

90
Platão e Paulo

Paulo: Sabemos que todas as coisas cooperam para o bem


daqueles que amam a Deus, daqueles que são
chamados segundo o seu propósito. Porquanto os que
de antemão conheceu, também os predestinou para
serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que
ele seja o primogênito entre muitos irmãos; (Romanos
8.28)

Platão: E podemos supor que os amigos dos deuses recebem


deles o melhor de todas as coisas, exceto apenas por
aquele mal que é a consequência de seus pecados
anteriores?
Glauco: Certamente.
Platão: Deve ser então de nosso consenso que o homem justo
sempre que se encontra em pobreza ou doença, ou em
qualquer outro infortúnio parecido, todas as coisas
irão, por fim, cooperar para seu bem na vida e na
morte; pois os deuses têm cuidado de qualquer que
deseje tornar-se justo e vir a ser igual a Deus, na
medida que o homem possa atingir a semelhança divina
pela busca da virtude?
Glauco: sim, disse ele; se o homem é semelhante a Deus,
seguramente não será esquecido por Ele. (A república,
Livro X [613].

91
3. As primeiras epístolas de
Paulo
Propósitos
As cartas mais antigas de Paulo foram escritas por volta do ano 50 da
era cristã, quando o Império era governado por Cláudio, um imperador
pacífico e equilibrado que não exigiu de seus súditos ser honrado
como se fosse Deus.
Aceita-se hoje que a primeira epístola aos Tessalonicenses foi a mais
antiga de todas e que, possivelmente, a segunda tenha sido escrita
um ano depois da primeira. Outra versão admite que a segunda
epístola teria sido escrita mais tarde por Silvano e Timóteo, após a
morte de Paulo. Para podermos entendê-las necessitamos: 1.
Discorrer sucintamente sobre a cidade de Tessalônica e sobre o início
do trabalho cristão naquele local. 2. Discutir o motivo, tempo e local
de escrita das duas epístolas aos Tessalonicenses. 3. Sumariar o
conteúdo de cada uma das duas epístolas aos Tessalonicenses e
discorrer sobre a motivação de sua composição. 4. Listar e discutir os
temas e as peculiaridades mais marcantes destas epístolas.

A cidade de Tessalônica e sua comunidade


cristã.
A cidade de Tessalônica, fundada em 315 a.C. pelos macedônios,
obteve do imperador Augusto os privilégios de “cidade livre”. Tornou-
se bastante próspera, pois dispunha de um bom porto e pela cidade
passava a Via Egnatia que ligava Roma a Bizâncio (Constantinopla).
Era, ao tempo em que foi escrito o Novo Testamento, a capital da
província da Macedônia. Uma cidade de cerca de 200.000 habitantes
que gozava de relativa autonomia política, sob a supervisão dos
romanos e que abrigava uma população heterogênea a qual incluía
um número razoável de judeus, com administração e tribunais
próprios (At. 17.5-8). Nela existia pelo menos uma sinagoga.
Paulo chegou pela primeira vez a Tessalônica por volta do ano 50 –
51 d.C. Segundo a narrativa contida no livro de Atos dos Apóstolos,
ele vinha de Filipos, no curso de sua segunda viagem missionária,
acompanhado de Silas (Silvano), Lucas e Timóteo. A implantação do
Cristianismo em Tessalônica não foi totalmente pacífica. Uma reação

92
dos judeus daquela cidade precipitou a saída dos missionários que se
dirigiram para Bereia de onde posteriormente foram para Atenas e
Corinto na província da Acaia (Grécia atual).
A população e a igreja de Tessalônica era constituída principalmente
de gentios. Os judeus daquela cidade rejeitaram totalmente a
mensagem dos missionários. Observa-se nas cartas que, desde a sua
fundação, a igreja foi perturbada por inimigos judaizantes que
questionaram a autenticidade do apostolado paulino.

Onde, quando e por que foram escritas estas


epístolas.
Aceita-se geralmente que as epístolas de Paulo aos Tessalonicenses
foram escritas na cidade de Corinto, no período de cerca de três anos
durante os quais Paulo lá permaneceu. Acredita-se que Silas e
Timóteo, logo que chegaram da Macedônia (At. 18.5), anunciaram a
Paulo que alguns homens, chegados à Tessalônica depois deles,
estavam tentando lançar descrédito sobre o seu ministério e os seus
ensinos (2.1-16). Paulo, sabendo disto, escreveu imediatamente a
primeira carta por volta do ano 53. A segunda carta foi escrita logo no
ano seguinte. Sua motivação principal foi o aparecimento de dúvidas
quanto a parusia. Algumas pessoas estavam desanimando porque
Cristo ainda não havia voltado97.

Tema
As epístolas de Paulo aos Tessalonicenses são epístolas muito
simples que versam sobre temas práticos. Nelas não encontramos as
dissertações teológicas que caracterizam as grandes epístolas. A
atenção do autor se volta principalmente para a necessidade de
manter os crentes reunidos aguardando a parusia e de estimulá-los a
observar um padrão de vida puro e elevado (santificação), baseado
no amor ao próximo.
Primeira epístola—A primeira epístola, escrita depois da chegada de
Silas e Timóteo, é praticamente uma defesa da autenticidade do

97A moderna crítica bíblica admite atualmente que a segunda


epístola aos Tessalonicenses seria uma epístola dêutero –
paulina, isto é, uma obra pseudônima, escritas por um discípulo
de Paulo após sua morte e que levaria o nome do apóstolo
como autor.
93
ministério de Paulo em resposta aos ataques que lhe foram feitos
pelos judaizantes que o acusavam de buscar o interesse próprio (I Ts.
2.3-16). Nela, a discussão sobre escatologia é apenas superficial.
Segunda epístola – A segunda epístola se aprofunda mais na
escatologia procurando corrigir os problemas de interpretação que
estavam perturbando a vida da igreja. Alguns pregadores surgiram
dizendo que o “Dia do Senhor” já havia chegado e que eles não foram
arrebatados por não serem suficientemente e santos 98. Adverte que
a expectativa do fim e do juízo próximos (2.19s; 4.6) não deve ser
pretexto para a ociosidade escandalosa (4.11s; 5.13s), e sim servir de
estímulo para uma vida cristã mais digna (3.10-13). Essa foi uma
consequência inevitável da frustração experimentada pelos cristãos
primitivos em decorrência do retardo da parusia 99 . Paulo, Silas e
Timóteo escrevem a segunda epístola aos tessalonicenses para
corrigir esses erros e esclarecer melhor sobre a vinda do Senhor com
consequente instalação do reino de Deus na terra (2.1-12), exortar na
fé (2.13–3,5) e advertir contra a ociosidade (3.6-15).

98 A que não vos demovais da vossa mente, com facilidade,


nem vos perturbeis, quer por espírito, quer por palavra, quer
por epístola, como se procedesse de nós, supondo tenha
chegado o Dia do Senhor. (2 Ts.2:2)
99Naquela época os crentes acreditavam que a ressurreição de
Jesus Cristo havia inaugurado a era messiânica que dentro em
pouco aqueles que morreram em Cristo também ressurgiriam.
Paulo chega a usar o verbo adormecer para representar a morte
do crente significando que a sua permanência no túmulo não
seria longa. Aos crentes de Corinto, aproximadamente dois
anos depois, ele afirma que Jesus Cristo era " primícia dos que
dormem" e que, depois dele outros ressurgiriam. Quando isto
não aconteceu, Paulo foi obrigado a rever sua posição e admitir
que o retorno de Cristo, com a consequente ressurreição de
mortos, só se daria depois do aparecimento do homem da
iniquidade (Anticristo?). Esta é, ainda hoje, a nossa
expectativa.
94
Conteúdo das epístolas
Primeira epístola
Introdução – O Relacionamento de Paulo com a igreja de Tessalônica
(1.1 – 3.13)
Identificação dos emitentes (1.1a)
Identificação dos destinatários (1.1b)
A saudação (1.1c)
Oração e ação de graças (1.2-10)
O caráter do ministério de Paulo
A pureza de seus motivos (2.1-6)
A pureza de suas emoções (2.7-8)
A pureza de sua vida (2.9-12)
A recepção do Evangelho pelos Tessalonicenses (2.13-20)
Recebendo a Palavra de Deus (2.13)
Perseguidos por causa da Palavra (2.14-16)
As intenções de Paulo (2.17-20)
A Missão de Timóteo (3.1-10)
Oração intercessora (3.11-13)
Exortações de Paulo a igreja de Tessalônica a necessidade de
santificação
Sobre a conduta na igreja (4.1-12)
Afrouxamento moral (4.1-8)
O amor aos irmãos (4.9-12)
Preocupações com o futuro (4.13-18)
Jesus Cristo voltará (4.13)
Os remidos voltarão com ele (4.14-16)
Os sobreviventes serão arrebatados (4.17-18)
Sobre a conduta na igreja (5.1-22)
Oração final (5.23-24)
Pedidos finais (5.25-28)

Segunda epístola
Introdução
Saudação (1.1-2)
Agradecimento (1.3-10)
Intercessão (1.11-12)
Instruções aos crentes de Tessalônica sobre temas escatológicos

95
A vinda do Senhor não está próxima (2.1-2)
Virá antes o homem do pecado (2.3-10)
Seu caráter (2.3-5)
Suas restrições (2.6-7)
Seu ministério (2.8-10)
O julgamento dos incrédulos (2.11-12)
Ação de graças e oração (2.13-17)
Exortações diversas e saudações (3.1-18)
Chamada à oração (3.1-5)
Disciplina de vida (3.6-15)
Oração final (3.16)
Saudação final (3.17-18)

Os grandes temas das primeiras epístolas


1. A volta de Jesus Cristo
A expectativa de uma parusia 100 iminente foi uma constante nos
primeiros anos do Cristianismo. Os cristãos daquele tempo
acreditavam que Jesus Cristo, que havia sido elevado aos céus
quarenta dias após sua ressurreição, voltaria brevemente para reunir
os seus servos, para exercer o juízo de Deus e instalar o Seu Reino
no mundo, com sede no Templo de Jerusalém.
Esta esperança tinha raízes antigas. Seus primeiros sinais se
encontram na pregação de João, o batista, quando anuncia: “O
machado já está posto à raiz das árvores; toda a árvore, pois, que não

100Parusia era o nome dado a uma festa que a província


realizava quando recebia a visita do imperador ou de alguma
alta autoridade do império. Naquele tempo tudo parava para
honrar o ilustre visitante. Situação como esta ocorre ainda em
nossos dias quando recebemos, por exemplo, a visita do Papa.
No contexto do Cristianismo primitivo este termo foi utilizado
para descrever a comemoração que os cristãos planejavam
fazer no retorno do Salvador que havia subido aos céus e que,
brevemente, voltaria para implantar o Reino de Deus.
96
dá bom fruto é cortada e lançada no fogo” 101. Com isso queria ele
Dizer que muito em breve Deus exerceria o juízo na terra e implantaria
definitivamente o Seu reino.
Jesus Cristo sancionou esta interpretação quando deu instruções a
seus discípulos para a realização de uma investida evangelística
dentre os judeus: “Em verdade vos digo que não passará esta
geração, sem que todas estas coisas se cumpram” 102. A partir deste
momento, os discípulos passaram a viver aguardando que Jesus se
dirigisse a Jerusalém e se assentasse no trono na casa do. Essa
expectativa não se realizou.
Após a morte e ressurreição, Jesus ensinou que iria ter com o Pai,
mas que voltaria. Mais uma vez os discípulos esperavam que ele
implantaria um reino glorioso: “Eles estando reunidos outra vez,
perguntaram-lhe: Senhor, é agora, porventura, que restabeleces o
reino a Israel?” 103 Os cristãos de Jerusalém viveram uma ardente
expectativa da volta do Senhor e não ousavam afastar os pés do
templo porque aguardavam que naquele lugar o Senhor reapareceria
para inaugurar o reino: “Diariamente perseverando unânimes no
templo, e partindo pão em casa, comiam com alegria e singeleza de
coração,”104 Por causa desta convicção chegaram a criar um sistema
de vida comunitário no qual os crentes, deixando seus afazeres
diários, se desfaziam de seus bens e participavam de refeições em
mesa comum105.

101O machado já está posto à raiz das árvores; toda a árvore,


pois, que não dá bom fruto, é cortada e lançada no fogo.
Mt.3.10
102Em verdade vos digo que não passará esta geração, sem
que todas estas coisas se cumpram. Mt.24.34
103At.1.6
104Diariamente perseverando unânimes no templo, e partindo
pão em casa, comiam com alegria e singeleza de coração,
louvando a Deus e tendo a simpatia de todo o povo. Todos os
dias acrescentava-lhes o Senhor os que se iam salvando.
At.2.46-47
105E vendiam as suas propriedades e bens e os repartiam por
todos, conforme a necessidade de cada um. Atos 2.45
97
Com a difusão do evangelho através da obra missionária, a
expectativa de parusia iminente, com a esperança que ela
alimentava, também se difundiu. Os cristãos de Tessalônica viviam
nesse clima: “… e como vos convertestes dos ídolos a Deus, para
servirdes ao Deus vivo e verdadeiro, e para aguardardes dos céus
seu Filho, a quem ele ressuscitou dentre os mortos — a saber, Jesus
que nos livra da ira vindoura. 106 A problemática abordada nesta
epístola se levantou porque a volta de Jesus estava demorando para
se realizar e alguns crentes estavam morrendo. Os que ficaram vivos
começaram a se preocupar porque, segundo entendiam eles, seus
queridos que morreram haviam perdido a oportunidade de participar
do reino que Jesus Cristo implantaria no mundo quando voltasse.
Paulo, nestes escritos, procura tranquilizar a igreja a respeito desta
preocupação. Ele desenvolve o que poderíamos chamar de primeira
escatologia cristã. Essa escatologia previa:
1. Na volta de Jesus Cristo os mortos terão precedência sobre os vivos
2. . A ressurreição dos mortos precederá a convocação dos vivos. 107
3. Jesus Cristo descerá dos céus quando o anjo tocar a trombeta.
4. Seremos arrebatados para nos encontrarmos com o Senhor nos ares.
5. Virá antes o “homem do pecado”.108que se faz passar por Deus e enganará muitos
com suas astúcias.
6. Ele será derrotado pelo sopro da boca de Jesus

Na segunda epístola aos Tessalonicenses, Paulo adverte os cristãos


daquela cidade de que a volta de Cristo seria precedida pela
apostasia e pela chegada do “homem da iniquidade” que se oporia a
tudo quanto se chama Deus ou é objeto de culto. A análise da história
do povo de Israel nos mostra os modelos nos quais Paulo pode ter se
baseado para elaborar o perfil desta figura:

106E como vos convertestes dos ídolos a Deus, para servirdes


ao Deus vivo e verdadeiro, e para aguardardes dos céus seu
Filho, a quem ele ressuscitou dentre os mortos—a saber, Jesus
que nos livra da ira vindoura. I Ts.1.9b-10
107Isto vos dizemos pela palavra do Senhor, que nós os que
vivermos, os que formos deixados até a vinda do Senhor, de
modo algum precederemos os que já dormem; I Ts.4.15, 16.
108 II Tessalonicenses 2.1-12
98
No século II A.C., quando a Palestina estava sob o domínio dos reis
da dinastia Selêucida, Antíoco IV, cognominado Epifanes,
empreendeu um movimento de helenização da Palestina. Ele
determinou que fossem construídos ginásios e estádios onde os
jovens se exercitavam nus. Determinou também que um altar a Zeus
fosse construído no recinto do templo de Jerusalém e que os judeus
fossem proibidos, sob pena de morte, de circuncidar seus filhos,
obedecer à Lei e guardar os rituais do culto. O “abominável da
desolação” de que fala o profeta Daniel, e também o primeiro livro de
Macabeus se refere a este episódio.
O historiador judeu Flávio Josefo nos conta em “Guerras dos
Judeus”109 que o imperador romano Caio110 Calígula (37–41 E. C.)
determinou a Petrucio, alto oficial romano sediado em Antioquia da
Síria que introduzisse sua estátua no templo de Jerusalém. Ele partiu
para lá com uma tropa a fim de atingir este objetivo, mas foi
interceptado por uma comitiva de Judeus quando acampou na cidade
de Tolemaida. Os judeus o convenceram a não colocar a estátua e a
escrever ao imperador solicitando a revogação da ordem.
Venturosamente, enquanto este processo tramitava, Calígula veio a
morrer assassinado. Como no Império Romano a validade dos
decretos do imperador acabava com sua morte, as estátuas nunca
chegaram à Jerusalém.

2. Defesa do apostolado de Paulo


Na primeira epístola Paulo se defende de duas acusações que lhe
são feitas por seus adversários; provavelmente judeus da seita dos
fariseus descontentes com o fato de ele ter se passado para o lado
dos cristãos. A primeira acusação é de que ela pregava o evangelho
visando obter remuneração, isto é, ele seria um mercenário. No
capítulo 2 de I Tessalonicenses, Paulo apresenta como defesa um
relato da maneira como procedeu enquanto esteve na cidade de
Tessalônica 111 . Ela lembra os leitores de que trabalhou com as

109Flávio Josefo, Guerras dos Judeus, livro 2.


110O nome Caio, transliterado para o grego, tem como soma
do valor numérico de suas letras 616. Esse valor aprece em
alguns manuscritos antigos do apocalipse em lugar do 666.
111 I. Ts.2.9
99
próprias mãos para prover seu sustento e de que não foi pesado a
ninguém.
A segunda acusação, respondida mais adiante, é a e que ele não era
fiel à palavra empenhada porque havia prometido voltar à Tessalônica
para visitar a igreja e não cumpriu a promessa. Paulo esclarece que
não foi por vontade própria que deixou de ir e sim por que motivos
independentes de seu controle (Satanás) havia lhe impedido de
realizar o seu projeto 112 . Uma constante na vida de Paulo era a
presença de inimigos que o atacavam em qualquer lugar em que
estivesse.

3. Crítica a um sistema de vida decadente


A convicção de que Jesus Cristo voltaria rapidamente levou os
primeiros cristãos a se esquecerem da recomendação do Mestre para
que se espalhassem pelo mundo e a se fixarem em Jerusalém 113,
fundando um sistema de vida comunitário no qual todos permaneciam
juntos e participavam de uma mesa comum114.
As consequências do erro não se fizeram esperar: Inicialmente, a
igreja foi envolvida numa controvérsia racista na qual os cristãos
judeus palestinos discriminavam cristãos judeus helenistas
provenientes da diáspora 115 . A situação foi tão grave que os
apóstolos levaram a igreja a eleger sete homens para administrar o
problema. Posteriormente, a concentração em Jerusalém de um
grande número de pessoas que nada mais fazia que se reunirem para
cantar hinos e falar de um líder que havia sido crucificado atraiu a

112 1Ts.2.18
113 Mas recebereis poder, ao descer sobre vós o Espírito Santo,
e sereis minhas testemunhas tanto em Jerusalém, como em toda
a Judeia e Samaria, e até as extremidades da terra. At 1.8
114Diariamente perseverando unânimes no templo, e partindo
pão em casa, comiam com alegria e singeleza de coração,
At.2.46.
115Nesses dias, porém, crescendo o número dos discípulos,
houve uma murmuração dos helenistas contra os hebreus,
porque as viúvas daqueles eram esquecidas na distribuição
diária. At.6.1
100
desconfiança das autoridades que acabaram por lhe mover uma
perseguição que resultou no apedrejamento de um deles.
Os cristãos de Tessalônica se tornaram, em tudo, imitadores dos
cristãos da Judeia e reproduziram o seu sistema de vida 116. Muito
cedo a igreja começou a sofrer por causa desta opção. Problemas
como a ociosidade, a intromissão nos negócios alheios e a
maledicência passaram a ser uma constante na sua vida 117. Paulo
precisou corrigir a igreja levando os irmãos a reconsiderarem esta
situação.

4. A necessidade de santificação
O evangelho chegou ao mundo dos gentios que na sua vida anterior
viviam na idolatria e nas práticas sexuais imorais 118 . Agora, era
necessário estabelecer a comunhão desses gentios convertidos com
os cristãos judeus.
Evidentemente, ninguém, que fosse suficientemente lúcido, pensaria
em rebaixar o padrão de santidade observado pelos cristãos judeus
para que o evangelho se tornasse mais acessível aos gentios. É
possível que nos dias de hoje alguns grupos religiosos pensem desta
forma. A solução evidente e lógica seria então levar os cristãos
gentios a viver no mesmo patamar de santidade dos cristãos judeus.
Impunha-se a santificação da igreja.
O processo de santificação tinha dois objetivos a serem atingidos. O
primeiro era o abandono dos padrões de vida gentios contaminados
pela idolatria e pela prostituição 119 . O segundo era a adoção de

1161Ts.2.14.
1171Ts.4.11,12, 2Ts.3.10.
118Porque eles mesmos anunciam de nós qual a entrada que
tivemos entre vós, e como vos convertestes dos ídolos a Deus,
para servirdes ao Deus vivo e verdadeiro, 1 Ts 1:9.
119Pois esta é a vontade de Deus, a vossa santificação, que vos
abstenhais da fornicação, que cada um de vós saiba possuir o
seu vaso em santidade e honra não na paixão da
concupiscência, assim como fazem os gentios que não
conhecem a Deus; e que ninguém transgrida e defraude nisto a
seu irmão, porque o Senhor é vingador de todas estas coisas,
101
padrões de vida mais puros e sadios. A santificação era, para os
nossos primeiros irmãos, um alvo desafiador e continua sendo
desafiador para nós ainda hoje.

como antes vo-lo dissemos e testificamos. Pois Deus não nos


chamou para imundícia, mas em santificação. I Ts.4: 3-6
102
A formação cultural de Paulo

Escrevendo aos cristãos de Corinto Paulo declara: Porque Cristo


não me enviou para batizar, mas para pregar o evangelho; não em
sabedoria de palavras, para não se tornar vã a cruz de Cristo.
Porque a palavra da cruz é deveras loucura para os que perecem;
mas para nós, que somos salvos, é o poder de Deus. porque está
escrito: Destruirei a sabedoria dos sábios, e aniquilarei a sabedoria
o entendimento dos entendidos. Onde está o sábio? Onde o
escriba? Onde o questionador deste século? Porventura não tornou
Deus louca a sabedoria deste mundo? 1 Coríntios 1.17-20,

O fato de Paulo não ter feito uso da sabedoria na pregação do


evangelho não significa que não a tivesse, Como veremos no
estudo que se segue Paulo conhecia os escritos dos filósofos e dos
poetas gregos, principalmente de Platão, dos estoicos e dos
epicureus, que ele cita em suas epístolas.

Paulo declara ter sido instruído na lei e na sabedoria judaica por


Gamaliel, neto de Hilel (Atos 22,3). Mas, declara também que
desprezou toda a sua sabedoria por amor a Cristo.(Filipenses 3,7-
8).

103
4. A primeira epístola de Paulo
aos Coríntios
Propósitos
A igreja de Corinto foi fundada pelo apóstolo Paulo no curso de sua
segunda viagem missionária. O Novo Testamento a descreve como
uma igreja grande, boa, porém muito heterogênea e complicada. Os
problemas na igreja de Corinto determinaram que o apóstolo tivesse
de lhe escrever várias vezes. Admite-se que foram até 6 cartas que
posteriormente se consolidaram em duas epístolas.
Para compreendermos as situações que motivaram a escrita
precisamos: 1. Discorrer sucintamente sobre a história e as condições
de vida na cidade de Corinto do tempo do Novo Testamento. 2.
Discutir sucintamente o processo de formação da comunidade cristã
em Corinto. 3. Discutir a autoria, tempo e local de composição desta
epístola. 4. Apresentar os principais temas e divisões do texto desta
epístola.

A cidade de Corinto
A Corinto dos tempos bíblicos era a capital da província da Acaia
(atual Grécia) e ficava situada no istmo que liga o território continental
à península do Peloponeso. Sua posição era estratégica porque
ficava equidistante de dois importantes portos marítimos, um no mar
Jônico (costa ocidental) e outro no Egeu (costa oriental). Dessa forma,
a cidade de Corinto era parada obrigatória para os viajantes que
vinham por mar do ocidente (Roma) para o oriente ou que de lá
retornavam.
A antiga Corinto foi destruída por Munius, general romano, no ano 146
a.C. Cerca de um século depois (44 a.C.) Júlio César mandou
reconstruí-la e fez dela a capital da província da Acaia, sob o governo
de um pró-cônsul. Nesse período a cidade cresceu reunindo pessoas
provenientes de todos os recantos do Império, tornou-se importante
centro comercial, industrial e cultural. Esse fato determinou a reunião
em Corinto de pensadores das mais diferentes correntes filosóficas e
também de cristãos de diferentes origens quanto à nacionalidade e
quanto à filiação doutrinária.
A vida na cidade era a mais libertina possível. Chegou-se a criar
naquele tempo o verbo “corintianizar” que pode ser entendido como
104
equivalente do moderno mundanizar. A vida religiosa era muito
variada. O culto ao imperador e à deusa Roma eram as práticas
oficiais. Ao lado delas, muitas outras práticas existiam. Espalhavam-
se pela cidade templos dedicados às mais diversas divindades, tanto
ocidentais quanto orientais. No ponto mais alto da cidade se
encontrava o templo de Afrodite, a deusa do amor, com seus rituais
de fertilidade, dos quais se ocupava uma grande legião de
sacerdotisas prostitutas. Além delas, as mulheres responsáveis da
cidade estavam obrigadas a servir periodicamente como sacerdotisas
no culto de Afrodite, enquanto cumpriam votos feitos à deusa. Durante
este tempo elas deveriam ter suas cabeças raspadas.
Paulo escreveu a epístola aos Romanos da cidade de Corinto.
Quando ele redigiu o capítulo 1 desta epístola descrevendo a
depravação humana, especialmente no campo das perversões
sexuais, possivelmente estava se inspirando no dia a dia da
metrópole que o hospedava.

A comunidade cristã de Corinto


A igreja de Corinto apareceu em consequência à pregação de Paulo
em sua segunda viagem missionária. O livro de Atos dos Apóstolos
nos dá uma excelente descrição dos fatos ocorridos nessa
ocasião120. Entende-se pela leitura das duas epístolas que a igreja
de Corinto era uma igreja bastante heterogênea em termos de etnias,
doutrinas e práticas religiosas. Essa conclusão é coerente com a
posição cosmopolita da cidade que a abrigava.
A igreja de Corinto era heterogênea em termos de nacionalidades,
línguas, classes sociais e tendências doutrinárias. Podemos dizer que
nela se congregavam e comungavam evangélicos de diferentes
denominações.

A epístola
Autoria, data e local de composição.
A autoria paulina destas duas epístolas é aceita sem restrições
maiores em todo o curso da História do Cristianismo. Elas, inclusive,
estavam entre os primeiros livros a serem aceitos no Cânon do Novo
Testamento. O Estudo do Livro de Atos dos Apóstolos nos leva a
concluir que a primeira das duas cartas foi escrita de Éfeso, mais

120At.18.1-18
105
provavelmente na primavera do ano 54 e a segunda da Macedônia,
no outono do ano seguinte.

Conteúdo
Saudações e ações de graça (1.1-9)
Orientações sobre problemas éticos
Divisões e vaidades na igreja (1.10 - 4.21)
Tolerância com a imoralidade (5.1-13)
Litígios entre crentes em tribunais seculares (6.1-11)
Fornicação e prostituição (6.12-20)
Resposta a várias perguntas formuladas pelos
coríntios
Perguntas sobre o casamento (7.1-40)
Os limites da liberdade cristã (8.1 – 11.1)
O manual de Eclesiologia
A atuação da mulher na igreja (11.2-16)
Normas para a celebração da Ceia do Senhor (11.17-
33)
O uso correto dos dons espirituais (12.1 – 14.40)
Escatologia – a ressurreição dos mortos (15.1-58)
Conclusão (16.1-24)

Os grandes temas da epístola


Heterogeneidade e divisões na igreja
A primeira epístola começa com o tratamento dos problemas
disciplinares da igreja que foram apresentados a Paulo. A maioria
deles de ordem ética. Encontramos de saída, uma igreja dividida em
grupos que se digladiavam como se fossem partidos políticos.
A heterogeneidade de origem doutrinária dos membros da igreja fica
evidente ao primeiro exame do texto: Uns são de Cefas (cristãos
judeus oriundos da Igreja Apostólica da Palestina), outros de Paulo
(Cristãos gentios ou helenistas convertidos pela pregação do
Apóstolo), outros são de Apolo (Cristãos provenientes da comunidade

106
Joanina), outros finalmente, são de Cristo (talvez judeus da diáspora
convertidos durante o Pentecostes)121.
Quando esse agregado de grupos, que tinham muito pouco em
comum uns com os outros, se reunia sob um mesmo teto não era fácil
chegar a uma unidade de identidade da fé. Na realidade, tudo podia
acontecer.

Imoralidade X santidade
Ao mesmo tempo em que estes grupos discutiam entre si para saber
quem era mais crente a igreja se apresentava conivente com diversos
tipos de imoralidades assimilados do mundo pagão (glutonaria,
embriagues, prostituição, incesto)122.

Desavenças entre irmãos


Na igreja de Corinto as tendências doutrinárias se acotovelavam
criando uma grande confusão. As desavenças na igreja eram
grandes. Os casos surgidos entre irmãos estavam sendo levados aos
tribunais seculares trazendo escândalo para o evangelho e ridículo
para o nome da igreja123. Os irmãos daquela igreja não conseguiam
chegar a um acordo, discutiam e se desentendiam por vários motivos.
Paulo censurou aqueles irmãos por causa de seu comportamento
insensato.

Casamento e estabilidade familiar


Apareceu naquele tempo na igreja um grupo de mestres,
(provavelmente suas raízes estariam no comportamento de judeus da
seita dos essênios) que aconselhavam os homens da igreja a optar
por uma vida de castidade (celibato). Os casados deveriam separar-
se de suas esposas para aguardar em castidade a iminente volta de
Jesus Cristo. A consulta a cerca desta proposta de comportamento
motivou o apóstolo Paulo a escrever um tratado magnífico sobre
relacionamento conjugal e familiar que ficou registrado no capítulo 7
de I Coríntios. Dele tiramos os seguintes ensinamentos.
1. O casamento faz parte do plano de Deus para a vida de seus
filhos.

121At.2.5.
122I Co.5.1-13, 6.11-20
123I Co.6.1-10
107
2. Preferencialmente, o casamento deve ser feito com pessoa
da mesma fé. O casamento misto deve ser evitado.
3. O casamento tem valor mesmo quando o cônjuge não
professa a mesma fé. O cristão não deve tomar a iniciativa de
romper com o pacto matrimonial.
4. O relacionamento sexual entre cônjuges deve ser regular e
satisfatório para ambos.
5. Em tempos de crise o casal pode, de comum acordo, se privar
temporariamente do relacionamento sexual para se dedicar à
oração e ao jejum.

Liberdade com responsabilidade


Paulo ensinava que a salvação dada por Cristo libertava o homem do
domínio da Lei. Alguns confundiam a liberdade dada por Cristo com a
libertinagem vigente no mundo pagão. Paulo precisou doutrinar a
igreja mostrando as diretrizes que limitavam a liberdade do verdadeiro
cristão. Nossa liberdade termina onde começa a liberdade de nosso
irmão

Ordem e desordem no culto – um manual de


eclesiologia
Comportamento das mulheres na igreja – É muito discutida a
recomendação de Paulo para que as mulheres permanecessem
caladas na igreja124 e, caso tivessem alguma dúvida, perguntassem
aos seus maridos em casa. Essa colocação deve ser interpretada no
contexto social do Império Romano no qual o pater famílias tinha
autoridade incontestável e inquestionável. Algum visitante que,
entrando na igreja cristã, visse uma mulher discutindo nas
assembleias, poderia interpretar este ato como uma contestação do
poder pátrio de seu esposo e, portanto, um comportamento
ameaçador à estabilidade social do Império.

Alimentos próprios e impróprios


“Comei de tudo quanto se vende no mercado, nada perguntando por
causa da consciência”.125 Paulo reformula os conceitos concernentes
à pureza alimentar. Para eles não existem alimentos impuros ou

124I Co.14.34
125I Co.10.25.
108
alimentos impróprios para o consumo por terem sido dedicados aos
ídolos. Tudo pode ser consumido com ação de graças.

Ceia do Senhor X Celebração pagã


A celebração da ceia em Corinto estava totalmente equivocada. A ceia
deles não era a ceia do Senhor, era uma celebração pagã onde havia
ostentação, glutoneria e embriagues. Paulo orienta a igreja quanto a
maneira correta de celebrar.

Dons espirituais a serviço da comunidade


A comunidade era francamente carismática e Paulo os repreendeu
mostrando-lhes que, ao valorizar dons espirituais de caráter
transitório, tais como as línguas e as profecias, eles se comportavam
como crianças mau educadas que se julgam com direitos especiais
por serem as donas da bola (Capítulos 12,13 e 14). Paulo lhes mostra
que todas aquelas vaidades que separavam os cristãos deveriam ser
desprezadas a favor de uma vida forjada no legítimo amor de Cristo
(Cap. 13). A igreja também tinha problemas com aqueles que se
envaideciam por se julgarem portadores de dons espirituais em maior
número de e de dons espirituais mais valiosos que os outros, segundo
seu próprio critério: Uns falavam em línguas estranhas, outros
profetizavam. Paulo aproveita a situação para lançar as normas para
a ordem de culto que podem ser encontradas nos capítulos 12, 13 e
14. Recapitulemos algumas delas:
Tudo que acontece no culto deve contribuir para a edificação
espiritual da comunidade.
Os dons espirituais são distribuídos por Deus visando atender as
necessidades do trabalho.
Com exceção do amor, que é perene, todos os outros dons têm prazo
de validade. Todos os outros cessarão quando a perfeição for
atingida.
Há uma hierarquia de dons espirituais. Os mais úteis à comunidade
são os mais importantes.
No culto é essencial a existência de ordem. Qualquer elemento do
culto que não contribua para a edificação da igreja deve ser evitado.

Expectativa de parusia e ressurreição


Restava ainda uma dúvida a respeito daqueles que estavam
morrendo antes da parusia. Paulo socorre os crentes de Corinto
109
apresentando a doutrina da ressurreição dos mortos, no melhor estilo
herdado do Judaísmo farisaico: “Os vivos serão transformados na
volta de Cristo e os mortos ressurgirão revestidos de corpos
espirituais incorruptíveis para se encontrarem com o Senhor. Diante
disto é preciso saber guardar a esperança e se empenhar com todas
as energias in trabalho do Mestre126.”

126I Co.15.58
110
A caverna de Paulo

Platão, filósofo da antiguidade grega retratou a situação natural do


homem preso à sua ignorância como a de um ser aprisionado e
acorrentado no interior de uma obscura caverna. Ele permanece com
sua movimentação restrita, de costas para uma fenda, por onde entra
apenas um feixe de luz. Todas as informações que recebe são
sombras que se projetam na parede à sua frente e sons que chegam
aos seus ouvidos, vindos do exterior. Por isso, as sombras que se
movem aparentemente falam.
O homem só chegará a conhecer o mundo real, a verdade, se escapar
da caverna onde se encontra acorrentado e e fizer uma excursão pelo
mundo exterior. De início, seus olhos serão ofuscados pelo brilho do
sol. Depois, se acostumará com a luminosidade e verá todas as
coisas com nitidez. Se ele voltar à caverna e relatar suas descobertas
aos seus companheiros provavelmente ninguém lhe dará crédito.
Julgarão que ele é um alienado e suas narrativas serão consideradas
alienações.
A maneira como Paulo descreve a situação do homem escravizado
pelo pecado é semelhante à do acorrentado na caverna. Nesse
cárcere não existem paredes opacas para bloquear a luz do sol ou
impedir a chegada dos sons. Mas, o pecado do homem escurece sua
visão e o impede de ouvir as palavras que trazem libertação e
iluminação.
No primeiro capítulo da Epístola aos Romanos, Paulo nos mostra o
homem como alguém com capacidade inata para reconhecer a
existência do Deus único e para perceber a vontade dele para sua
vida. Acorrentado pelo pecado, obscurecido pela rebelião, só
alcançará a verdade se alguém, vindo de fora (um salvador), lhe
trouxer a palavra da verdade que iluminará a sua vida.

111
5. A segunda epístola de Paulo
aos Coríntios
Propósitos
A segunda epístola de Paulo aos coríntios é uma das cartas mais
pessoais do autor. Podemos dizer que, enquanto na primeira carta os
holofotes estão dirigidos para a igreja, na segunda, as luzes da plateia
se apagam e um “spot light” é lançado no palco onde Paulo, num
solilóquio, repassa toda a sua vida. A defesa de seu ministério ocupa
a maior parte de sua argumentação. A seguir, veremos as questões
sobre: 1. Autoria, tempo e local de composição desta epístola e 2.
Principais temas e divisões do texto desta epístola.

Autoria, integridade, data e local de


composição.
Aproximadamente um ano se passou. As divisões e lutas internas na
igreja parecem ter sido resolvidas. Adversários não satisfeitos com os
resultados que mostravam a fidelidade da igreja a Paulo resolveram
iniciar o ataque contra o apóstolo.
A autoria paulina destas duas epístolas, bem como das demais
constituintes do grupo em estudo, é aceita sem restrições maiores em
todo o curso da História do Cristianismo. Elas, inclusive, estavam
entre os primeiros livros a serem aceitos no Cânon do Novo
Testamento. O Estudo do Livro de Atos dos Apóstolos nos leva a
concluir que a primeira das duas cartas foi escrita de Éfeso, mais
provavelmente na primavera do ano 54 e a segunda da Macedônia,
no outono do ano seguinte127.
Acredita-se hoje, diante da heterogeneidade de conteúdo do texto,
que a segunda epístola, tal como a conhecemos na atualidade, seja
uma mistura de fragmentos de, pelo menos, quatro cartas que Paulo
teria enviado aos crentes daquela cidade. A primeira, chamada de
carta da imoralidade, seria anterior a I Coríntios. Sobressai um grande

127II Co 1.15,15, 7.5


112
fragmento identificado como a carta das lágrimas 128 na qual o autor
se queixa do desprezo recebido dos crentes.

Conteúdo da epístola
Saudações e ações de graça (1.1-11)
Paulo defende seu ministério (1.12-6.10)
Demora no cumprimento das promessas (1.12 – 2.13)
Um ministério autenticado por frutos (2.14 – 3.18)
Um ministério cristocêntrico (4.1-15)
Um ministério de sofrimentos (4.16 – 5.10)
Um ministério de reconciliação (5.11 – 21)
Um ministério de abnegação (6.1-10)
Exortação à santidade (6.11 – 7.4)
Retrospectiva dos efeitos da primeira carta (7.5-16)
Coleta para os pobres de Jerusalém (8.1-9.15)
Respostas às acusações sofridas (10.1 – 13.10)
Conclusão (13.1-14)

Os grandes temas da epístola


Quando comparamos esta carta com a precedente podemos observar
uma mudança radical no foco das discussões. Na primeira carta as
discussões estavam focalizadas na vida da igreja. Na segunda o foco
se dirige para a vida do apóstolo.
O que teria motivado esta mudança? Podemos concluir que
chegaram a Corinto pessoas que não ficaram muito satisfeitas com
os efeitos que a primeira carta causou na vida da igreja, restaurando
o prestígio do apóstolo Paulo e que resolveram contra-atacar. Como
sempre acontece nestas ocasiões, quem não tem competência para
discutir os argumentos do opositor esquece os mesmos e ataca sua
vida.
A leitura da carta permite concluir que várias acusações foram feitas
contra o apóstolo e ele necessitou reservar parte do seu tempo para
respondê-las. Paulo faz aqui sua própria defesa. O resultado é que
esta carta é uma das cartas mais pessoais do apóstolo, onde ele

128II Co 2.4
113
rasga o coração para a igreja. Talvez esse caráter de personalidade
seja superado apenas pela epístola aos filipenses.

Quem eram os inimigos de Paulo?


Paulo sempre foi seguido, e perseguido, por adversários implacáveis
que procuraram atacar e invalidar os resultados de seu trabalho. No
início de seu ministério, seus adversários foram os próprios judeus 129
que se apresentavam com cristãos. Fariseus, antigos companheiros
de Paulo na perseguição aos cristãos, não podiam se conformar com
o fato de seu líder haver trocado de lado e, por isso, procuravam
combatê-lo.

As acusações feitas contra Paulo


1. Paulo não tem palavra, ele prometeu visitar a igreja e não foi.
A epístola começa com uma longa exposição de Paulo explicando as
razões por que ele não voltou a Corinto como era o seu propósito e o
que ela havia declarado à igreja. Protesta que ele não pode ser
chamado de leviano ou sem palavra. O que ocorreu é que fatores
supervenientes de sua vida o impediram de atingir o objetivo 130. Pelo
menos duas razões cooperaram para que Paulo não cumprisse o
prometido. Ele protesta que sua visita naquela ocasião levaria tristeza
aos crentes de Corinto 131 e não alegria, como ele gostaria que

129Sendo vós sábios, com prazer suportais os insensatos; pois


se alguém vos escraviza, se alguém vos devora, se alguém se
apodera de vós, se alguém se exalta sobre vós, se alguém vos
dá na cara, o suportais. Falo com vergonha, como se nós
fôssemos fracos. Mas naquilo em que alguém se faz ousado,
com insensatez falo, também eu sou ousado. São hebreus?
Também eu. São israelitas? Também eu. São descendentes de
Abraão? Também eu. São ministros de Cristo? Falo como fora
de mim, eu ainda mais; (II Co.11:19 -23a).
130II Co 1.23, 2.
131Eu, porém, determinei isto por mim mesmo, não ir ter
convosco outra vez em tristeza. Pois se eu vos entristeço, quem
é, então, o que me alegra, senão aquele que por mim é
entristecido? Isto mesmo escrevi, para que, chegando, eu não
tenha tristeza da parte dos que me deviam alegrar, tendo esta
114
acontecesse. Uma explicação plausível para esta declaração está em
que se Paulo fosse ter a cidade de Corinto naqueles tempos difíceis
precisaria aplicar uma disciplina muito rígida à igreja. Logo depois ele
tenta se redimir de sua aparente intransigência recomendando que a
igreja proceda misericordiosamente com o irmão que fora afastado da
comunhão por causa do incesto132. Outro motivo que entristeceria a
igreja seria a contemplação da aparência de Paulo serviria como
motivo de escândalo para a igreja. No mundo helênico o homem era
julgado por sua aparência. Para ser bom também era preciso ser
bonito. Paulo, naquela ocasião sofria de uma enfermidade que
provavelmente o desfigurava e ele mesmo dá evidências deste fato.
Quando compara seu próprio corpo a um vaso de barro que, apesar
de encerrar um precioso conteúdo, está quase de despedaçando,
entendemos que uma enfermidade o assolava133. Mais tarde ele fala

confiança em todos vós, que o meu gozo é o de todos vós. Pois


em muita tribulação e angústia de coração vos escrevi com
muitas lágrimas, não para que fôsseis entristecidos, mas para
que conhecêsseis o amor que mais abundantemente tenho para
convosco. II. Co.2.1-4
132II Co.2.5-11
133Temos, porém, este tesouro em vasos de barro, a fim de que
a excelência do poder seja de Deus, e não venha de nós. Em
tudo somos atribulados, mas não angustiados; perplexos, mas
não desesperados; perseguidos, mas não abandonados;
derribados, mas não destruídos; sempre levando no corpo a
mortificação de Jesus, para que também a vida de Jesus seja
manifestada em nosso corpo. Pois nós que vivemos, estamos
sempre entregues à morte por amor de Jesus, para que também
a vida de Jesus seja manifestada na nossa carne mortal. Assim a
morte opera em nós, mas a vida em vós. Mas tendo o mesmo
espírito da fé, conforme está escrito: Cri, por isso falei; também
nós cremos, por isso também falamos, sabendo que aquele que
ressuscitou ao Senhor Jesus, também nos ressuscitará a nós
com Jesus e nos apresentará convosco. Pois tudo é por amor de
vós, para que a graça, sendo multiplicada por muitos, faça
abundar a ação de graças para a glória de Deus. Por isso não
115
de um “espinho na carne”, um “mensageiro de satanás”134 referindo-
se provavelmente ao conceito helênico de que enfermidades
poderiam ser causadas por demônios enviados pelo maioral deles.
Não sabemos que enfermidade seria esta, mas, escrevendo aos
gálatas, ele revela que não estava enxergando direito 135 e diz que
eles, se possível fora teriam doado seus próprios olhos em benefício
do apóstolo136.
2. Paulo é um mercenário, prega o evangelho pelo desejo de
remuneração. Outra acusação feita pelos adversários contra Paulo é
a de que ele pregava o evangelho aos gentios para ter vantagem
pecuniária. Era hábito entre os judeus que os mestres religiosos
fizessem voto de pobreza e não cobrassem nada por seus
ensinamentos. (“De graça recebestes, de graça dai”). Já os mestres
filósofos das escolas gregas recebiam remuneração de seus
discípulos pelos ensinamentos. Assim, Paulo teria optado por pregar
aos gentios para ser remunerado. Paulo responde com o testemunho
de sua vida137.

desmaiamos; mas ainda que em nós pereça o homem exterior, o


homem interior renova-se de dia em dia II Co.4. 7-16.
134E por causa da extraordinária grandeza das revelações.
Porquanto, para que eu me não engrandecesse demais, foi-me
dado um espinho na carne, mensageiro de Satanás para me
esbofetear, a fim de eu não me engrandecer demais. Acerca
disto três vezes implorei ao Senhor que o espinho se apartasse
de mim. II.Co.12: 7- 8
135Vede com que letras grandes vos escrevo com a minha
própria mão. Gl.6.11.
136Onde está, então, aquela vossa satisfação? Pois vos dou
testemunho de que, se possível fora, teríeis arrancado os vossos
olhos e mos teríeis dado. Gl.4.15
137Pois não estamos, como muitos, mercadejando com a
palavra de Deus, mas é com sinceridade, mas é de Deus,
perante Deus que em Cristo falamos. II Cor. 2.17 – Despojei
outras igrejas, recebendo delas salário para vos poder servir, e
quando estava convosco e tinha necessidades, não me fiz
pesado a ninguém; pois os irmãos, quando vieram da
116
3, Paulo tem dupla personalidade, ele se comporta de uma forma
quando está presente e de outra quando escreve. Paulo foi
acusado de ter um procedimento muito ousado nas cartas e de ser
humilde quando presente na igreja.138 Na sua defesa, ele alega que
os que fazem essas declarações as fazem por não o conhecerem
como é devido e se basearem apenas em aparências. Na realidade a
sua ousadia é maior do que aquela que aparentemente foi
demonstrada.

A defesa final de Paulo, seu “curriculum


vitae”
A melhor defesa do cristão é mostrar que sua vida é coerente com o
seu discurso.
“Dos judeus cinco vezes recebi quarenta açoites menos um, três
vezes fui açoitado com varas, uma vez apedrejado, três vezes
naufraguei, um dia e uma noite passei no abismo; muitas vezes
estive em jornadas, em perigos de rios, em perigos de salteadores,
em perigos da minha raça, em perigos dos gentios, em perigos na
cidade, em perigos na solidão, em perigos no mar, em perigos
entre falsos irmãos; em trabalho e fadiga, em vigílias muitas vezes,
com fome e sede, em jejuns muitas vezes, em frio e nudez; além
das coisas exteriores, há o que pesa sobre mim diariamente, o
cuidado de todas as igrejas.” (2 Cor 11.24-28).

Este é o curriculum do apóstolo. Ele seria aceito nas igrejas de nosso


tempo?

A oferta para os pobres da Judeia (II Co.9.1-

Macedônia, supriram o que me faltava; e em tudo me guardei e


guardarei de vos ser pesado. II Co.11.8-9.
138Eu Paulo, por minha parte, vos exorto pela mansidão e
clemência de Cristo, eu que, estando presente, sou humilde
entre vós, porém estando ausente, sou ousado para convosco;
sim, vos rogo que, estando eu presente, não seja ousado com a
confiança com que me proponho ser atrevido para com alguns
que nos julgam como se andássemos segundo a carne. II
Co.10.1-2.
117
5).
Paulo relata aos cristãos de Corinto que está patrocinando o
levantamento de uma oferta especial para ajudar os cristãos pobres
da Judeia que padeciam fome por causa de uma seca periódica. Na
condução deste processo, Paulo nos oferece o que poderíamos
chamar de capítulo 2 de seu manual de eclesiologia quando ele relata
todas as precauções que tomou a fim de que não fosse mal
interpretado por aqueles que desejavam acusá-lo de levar vantagem
na condução do dinheiro. Ainda hoje alguns dos grandes obreiros do
Senhor têm seus ministérios comprometidos porque não sabem como
lidar convenientemente com valores pecuniários.

118
Quem eram os judaizantes ?

Paulo, em toda a sua vida após a conversão foi perseguido por


ferozes adversários que pretenderam destruir o que ele fazia,

Entre esses adversários destacam-se os judaizantes. Eram judeus


do partido dos fariseus que se converteram ao Cristianismo, mas
não se libertaram da escrevidão da lei. Eles ensinavam que, para
que um gentio se tornasse cristão teria que, primeiramente, tornar-
se um prosélito do judaísmo pela submissão à circuncisão e pelo
compromisso de guardar todos os preceitos da lei.

Na epístola aos crentes da Galácia Paulo rompe definitivamente


com esse vínculo e proclama a independência do cristianismo em
relação ao judaísmo farisaico.

Hoje algumas pessoas que não entenderam esse ensino do autor


tentam desqualificá-lo pela vinculação da liturgia cristã com a
judaica. Estamos vivendo um movimento neojudaizante em
nossas igrejas. Símbolos judaicos como os anjos, os altares, as
vestimentas sacerdotais e a arca do concerto voltam a ser exibidos
em nossas igrejas.

119
6. A epístola de Paulo aos
Gálatas
Propósitos
A epístola de Paulo aos cristãos da Galácia é uma obra
essencialmente apologética. Aqui o autor se empenha na defesa da
fé cristã genuína contra a pregação de dissidentes que pretendiam
difundir o “outro evangelho” 139.
Os judaizantes foram os primeiros hereges que se aventuraram em
uma “blitz” contra a fé cristã. O fato de a ideia judaizante continuar
viva e ativa nos obriga a estudar essa epístola com muita seriedade.
Para tanto pretendemos: Discorrer sucintamente sobre as duas
hipóteses a respeito da Galácia cujos moradores teriam sido os
destinatários desta carta. Discutir sucintamente a heresia judaizante
do período do Novo Testamento. Discutir a autoria, tempo e local de
composição desta epístola. E, apresentar os principais temas e
divisões do texto desta epístola.

A região chamada Galácia


Duas hipóteses surgiram na tentativa de explicar quem seriam os
destinatários desta epístola. A primeira delas foi chamada de hipótese
da Galácia Étnica ou da Galácia do Sul. A segunda foi a Hipótese da
Galácia Política ou da Galácia do Norte. A região conhecida como
Galácia estava compreendida no que hoje chamamos de Turquia
asiática e recebeu este nome porque era primitivamente habitada por
povos de origem céltica, ou gaulesa, que de lá migraram para a
Europa indo habitar o norte da França (província da Gália) e o sul das
ilhas Britânicas (País de Gales) aproximadamente no ano 240 a.C.
No ano 24 a.C., o reino da Galácia foi anexado ao Império Romano
por decisão de seu último rei.
Por duas vezes Paulo visitou a região da Galácia, no início da
segunda e da terceira viagem missionárias 140 . Impedido de
prosseguir viagem por causa de uma enfermidade, pregou ali o
Evangelho durante alguns meses. Pouco depois da segunda visita,

139Gl 1.6-9
140At.16.6; 18.23
120
as comunidades da Galácia, formadas por convertidos do
paganismo141, foram agitadas pelos judaizantes.
Estes são judeus – cristãos vindos de fora que combatiam com
virulência o evangelho livre da Lei pregado por Paulo (cf. Atos 15,1-
5). Consideravam a observância da Lei necessária para a salvação
também dos gentios – cristãos, e minavam a autoridade de Paulo
como apóstolo. Informado da grave ameaça para a fé cristã, Paulo
escreve esta carta cheia de ira e paixão, provavelmente de Éfeso,
pelo ano 56/57. No tempo em que foi escrita a epístola aos Gálatas,
Paulo se encontrava provavelmente nesta cidade, onde teve notícias
da chegada dos judaizantes à Galácia.

Motivação – resposta aos judaizantes


O motivo que levou Paulo à composição desta epístola foi
indubitavelmente, o trabalho que a seita dos cristãos judaizantes
estava desenvolvendo na Região. Van de Born 142 assim os define:
Os judaizantes são judeus – cristãos da seita dos fariseus
(Atos 15.5). O verbo judaizar, no Novo Testamento, significa
comportar-se como judeu. Assim todo o judeu vivendo
segundo a Lei poderia chamar-se judaizante; mas
praticamente o termo é usado apenas para aqueles judeus –
cristãos que, mesmo depois da decisão do concílio dos
apóstolos (v. Atos 15), continuaram a considerar a
observância da lei judaica pelos gentios convertidos como
necessária para a salvação. Estes judaizantes foram os
adversários mais encarniçados de S. Paulo; em toda a parte
tentaram desfazer a sua obra missionária. S. Paulo combate-
os em Coríntios, Romanos, Filipenses e, sobretudo em
Gálatas. Esses adversários de S. Paulo devemos distingui-
los bem dos pregadores judaicos gnostizantes cujos erros
são combatidos mais tarde nas epístolas pastorais.
Os inimigos de Paulo haviam chegado Galácia com suas doutrinas
legalistas. Sua principal estratégia era negar a autenticidade do
apostolado paulino sob a alegação de que ele, diferentemente dos
demais apóstolos, não tinha estado envolvido na obra de

141Gl 4,8; 5,2s; 6,12s


142Van den Born, Pequeno Dicionário da Bíblia – verbete
Judaizantes.
121
evangelização desde o princípio e que, diferentemente deles, pregava
uma mensagem que havia recebido de segunda mão. Paulo se
defende colocando nesta epístola uma pequena autobiografia onde
ele enfatiza o fato de não ter tido necessidade de procurar nenhum
outro apóstolo para receber dele informações a respeito de Jesus
Cristo e de seu ensino 143. O melhor entendimento dessa biografia
exige a harmonização da epístola aos Gálatas com o capítulo 15 do
livro de Atos dos Apóstolos.

Autoria, tempo e local de composição


A autoria paulina tem sido aceita sem qualquer restrição desde o
tempo dos pais da igreja e, provavelmente esta é a epístola na qual
temos maior massa de evidências internas comprobatórias dessa
autoria. O tempo de composição mais provável foi fixado entre os
anos 54 e 55 e os locais mais aceitos são Éfeso e Macedônia.

Esboço da Epístola
Introdução (1.1-5)
A autoridade de Paulo e a autenticidade da sua mensagem
A originalidade de sua mensagem (1.6-24)
A autenticação dada pelos outros apóstolos (2.1-10)
Paulo versus Pedro (3.11-21)
O caminho da salvação
Salvação por fé e não por obras (3.1-14)
Salvação decorrente de promessas e não da lei (3.15-22)
Os que confiam em Cristo são filhos e não escravos (3.23 – 4.11)
Súplica (4.12-20)
Os que confiam na lei são escravos e não filhos (4.21 – 31)
O caminho da liberdade

143Declaro-vos, irmãos, que o Evangelho que foi pregado por


mim, não é segundo o homem; pois eu nem o recebi, nem o
aprendi de homem algum, mas sim mediante a revelação de
Jesus Cristo. Gl. 1:11-12
122
A liberdade não pode ser trocada pelo legalismo (5.1-12)
Liberdade não justifica licenciosidade (5.13-26)
Liberdade se expressa em serviço (6.1-10)
O contraste entre a vida de sacrifícios e o legalismo. (6.11-18)

Análise do conteúdo
Paulo começa a epístola com uma autobiografia singela, capítulos 1
e 2, cujo objetivo é a comprovação histórica da autenticidade de sua
chamada apostólica e a independência de sua doutrina em relação a
doutrina ensinada pelos demais apóstolos. Ele pretende deixar
provado que o evangelho que ele prega, um evangelho totalmente
independente do legalismo judaico, não é uma elaboração
secundária, um evangelho de “segunda mão” e sim uma obra
autêntica. O argumento mais explorado é o autobiográfico. Paulo
pretende deixar demonstrado que não recebeu o evangelho de outros
apóstolos simplesmente porque não teve contato com eles em tempo
suficiente. Como reforço, adiciona uma descrição dos
desentendimentos que ele teve com Pedro porque este havia se
deixado levar pela bajulação dos judaizantes chegados da Palestina
(3.11-21).

A fonte do conhecimento de Paulo


Paulo protesta aos cristãos da Galácia que o evangelho que ele
pregava não lhe foi ensinado por homem algum, mas recebido por
revelação ( ) do próprio Jesus Cristo. Gl.1.12. Esta
declaração era necessária para responder à acusação feita pelos
judaizantes de que o apostolado de Paulo não era autêntico.
A reflexão que podemos fazer neste tópico mostra que a palavra
apóstolo que Paulo usava ( ) como selo da
reivindicação da autenticidade de seu apostolado é usada em dois
sentidos complementares no Novo Testamento: em primeiro lugar ela
é usada para designar doze homens que acompanharam Jesus Cristo
no seu ministério terreno. Posteriormente ela foi usada também para
outros homens que conviveram com Jesus Cristo nos quarenta dias
que sucedeu sua ressurreição. Neste último caso estão Paulo,
Barnabé e Tiago, que Paulo chama de o irmão do Senhor 144. Dessa

144At.14.14 Mas os apóstolos, Barnabé e Paulo, quando


ouviram isto, rasgaram os seus vestidos e saltaram para o meio
123
forma, Paulo não ensinava um evangelho de segunda mão e sim um
evangelho autêntico.

Gálatas e Tiago
Talvez a maior contradição que a crítica bíblica encontre no Novo
Testamento seja exatamente aquela existente entre as epístolas de
Paulo aos Gálatas e a epístola de Tiago. No terceiro capítulo de
Gálatas Paulo cita Abrão como exemplo de fé salvadora e mostra que
ele não poderia ter sido salvo pela obediência às obras da Lei porque
estas só vieram 430 anos depois. Dessa forma os que têm fé são os
verdadeiros filhos de Abraão e alcançam a salvação. 145 Tiago, por
outro lado, declara que Abrão, ao ofertar seu único filho no monte
Moriá, foi aceito por Deus porque sua fé produziu uma obra
perceptível 146 . Assim, a fé que não gera obras é morta e, se
queremos provar nossa fé, precisamos demonstrá-la por meio das
obras que praticamos. Na realidade, as duas verdades não são
mutuamente exclusivas. A fé na realidade produz obras na vida de
quem a possui. O importante é lembrar que o agente motivador é a fé
e não a recompensa advinda da prática das obras.

Liberdade e vida no Espírito


Os capítulos 3 e 4 apresentam uma réplica de Paulo aos argumentos
dos judaizantes. Os capítulos 5 e 6 contém um apelo de Paulo aos
cristãos na Galácia no sentido de que não abdicassem da liberdade
conseguida pelo sacrifício de Cristo na cruz aderindo ao legalismo
judaico. Paulo nos ensina que os frutos que são produzidos na vida
do homem não dependem da obediência cega a qualquer lei e sim de
uma mudança que o Espírito de Deus faz em nosso interior.

Paulo e a escravidão147
De fato, isto é assim, pelo menos em certa medida, como se pode ver
na forma em que Paulo se dirige aos escravos dentro da comunidade

da multidão,
145Gl 3.7 Sabei, pois, que os que são da fé, esses são filhos de
Abraão.
146Tg 2,21-24
147Segundo, J. L, A chave antropológica da Cristologia de
Paulo, Ciberteologia – Revista de Teologia & Cultura – Ano II,
n. 7, pag. 52
124
cristã. Já que o escravo é um homem, a revolução humanitária e
humanizante proposta pela cristologia paulina lhe é accessível. A
maturidade, a liberdade (antropológica, à qual Paulo se refere), os
dons do Espírito que transformam o homem em um ser novo, tudo
isto está tanto ao alcance do escravo como do “homem livre” da
sociedade greco-romana. O significado de Jesus Cristo suprimiu pela
raiz o muro que segregava os homens de acordo com sua posição
social básica escravo/livre.
Deve ter-se em conta, além disso, que aquele “em Cristo não há
escravo nem livre” não era só, de maneira imediata, um consolo para
o que não se podia mudar, e sim de modo mais imediato, a longo
prazo, o estabelecimento de um ideal que iria até as próprias
estruturas da sociedade e as tomaria de acordo com o princípio
praticado dentro da comunidade cristã.

125
7. A epístola de Paulo aos
Romanos
Propósitos
Chegamos à obra prima do autor. Assim como a “nona sinfonia”
coroou o gênio produtivo de Beethoven, a epístola aos cristãos da
capital do império é a coroa da obra escrita de Paulo. Não se trata
apenas de uma carta, mas de um tratado teológico no qual a salvação
pela graça é o motivo condutor de toda a obra.
Sua motivação é essencialmente missionária. A evangelização dos
gentios é o seu maior objetivo. A necessidade da colaboração dos
cristãos de Roma nessa tarefa é o seu tema. Para entendê-la melhor
vamos abordar as seguintes tarefas: Historiar sucintamente a
formação da comunidade cristã de Roma, discutir sucintamente a
autoria paulina, o tempo e local de escrita desta epístola, discutir o
propósito desta epístola e, apresentar os principais temas e divisões
do texto desta epístola.

A Cidade de Roma
Roma, a capital do Império, fica situada na parte central da península
Itálica, junto ao rio Tibre e próxima da costa do mar Tirreno. Perde-se
no passado a história das origens da igreja cristã naquela cidade. A
interpretação mais correta para a origem do trabalho cristão na capital
do império parece ser aquela dada por Ambrosiaster 148 que nega a
participação de qualquer apóstolo na evangelização inicial daquela
metrópole. Possivelmente alguns judeus daquela cidade estivessem
em Jerusalém por ocasião da festa de pentecostes e, uma vez
convertidos, teriam levado o evangelho até sua cidade natal.
Ao tempo em que os livros do Novo Testamento foram escritos, Roma
era a capital de um grande império que se estendia desde a Armênia
(costa ocidental do mar Cáspio), ao oriente até a Lusitânia (Portugal),
Hispânia (Espanha), Gália (França) e Britânia (Inglaterra) no ocidente.
Ao Sul, se limitava com o deserto de Saara, englobando toda a costa
norte da África com o Egito, Líbia e Cirenaica (Tunísia). Ao Norte era

148Escritor cristão do século IV que elaborou um comentário


das epístolas paulinas, (366 e 384 e.c.).
126
limitado pelos montes Cárpatos onde viviam seus inimigos mais
ferozes, os Partos. Tudo isso fazia de Roma uma grande metrópole
onde se concentravam pessoas de muitas línguas e etnias diferentes
atraídas pela grandeza da capital e pelos favores concedidos pelo
imperador.

A comunidade cristã de Roma


Havia em Roma um contingente de Judeus dos quais alguns
provavelmente estiveram em Jerusalém na festa de pentecostes, e
que, nesta ocasião, conheceram o evangelho. A pregação inicial do
evangelho em Roma deve ter sido tumultuada pela resistência e
oposição dos judeus tradicionais uma vez que o historiador
Suetônio (a.e.c. 69 – a.e.c. 122) na biografia do Imperador Cláudio,
relata que este mandou expulsar os judeus de Roma porque eles
promoveriam tumultos sob a liderança de um certo Cresto149. Isso
poderia ter sido uma referência ao nome de Jesus Cristo.
Alguns gentios se converteram pela pregação dos cristãos de origem
judaica. Como não poderia deixar de ser, nesta cidade, da mesma
forma que nas igrejas do oriente, eles foram perturbados pelo trabalho
dos judaizantes que exigiam a estrita obediência à lei de Moisés
inclusive pela observância do rito da circuncisão para gentios.
Depois que os judeus foram expulsos de Roma o contingente gentio
passou a ser o predominante na igreja e possivelmente essa era a
situação quando Paulo escreveu sua epístola, muito embora Nero
tenha revogado o decreto de seu antecessor permitindo a volta dos
Judeus expulsos à capital.
Muito provavelmente os cristãos romanos só vieram a receber a visita
dos apóstolos posteriormente (por ocasião da perseguição movida
por Nero, por volta do ano 67, quando Marcos teria escrito o seu
evangelho). É possível que Paulo tenha estado preso lá antes (ca. 64,
65).

Autoria, tempo e local de composição


A autoria paulina da Epístola aos Romanos (bem como das demais
constituintes do grupo das grandes epístolas) vem sendo aceita
praticamente sem nenhuma restrição durante toda a História do

149Suetônio, A vida dos Doze Césares, Tradução de Pedro


Nassetti, São Paulo, Martin Claret, 2004, p.263
127
Cristianismo o que se constitui em evidência externa poderosa. A
identificação que Paulo faz de si mesmo se constitui em evidência
interna comprobatória. Por esse motivo, não há muito que discutir
aqui. Sua data mais provável de composição foi durante o inverno dos
anos 55-56, quando Paulo se encontrava na cidade de Corinto. Na
sua escrita, Paulo se utilizou de Tércio como secretário
(possivelmente era um escravo) e a carta foi levada até Roma pela
diaconisa Febe.

Propósito da Epístola
Esta é a única carta que Paulo escreveu a uma igreja que não nasceu
em consequência de seu trabalho missionário. O objetivo especial de
sua escrita pode ser encontrado na análise de algumas passagens,
como segue:
Romanos 1.8-15 – Paulo comunica aos cristãos de Roma sua
intenção de visitá-los para poder conhecê-los mais de perto e
contar com a colaboração deles na promoção de uma
campanha de evangelização e fortalecimento espiritual na
capital do império.
Romanos 15.22-24 – Paulo mostra seu desejo de que sua
estada em Roma se continue com uma campanha
missionária até o extremo ocidente do império, até a
Espanha. Para promover esta campanha ele precisava contar
com a colaboração financeira dos cristãos de Roma uma vez
que os do oriente estariam muito distantes para poder auxiliá-
lo.
Fica evidente do estudo comparativo destes dois textos que Paulo
estava tentando convencer os crentes de Roma a patrocinarem sua
viagem missionária. Em consequência ele apresenta a Teologia da
universalidade do pecado e da graça. Além disso, Paulo, por não ter
nenhuma ascendência sobre a comunidade de Roma, precisava
prepará-la para atender seu apelo, apresentando as credenciais de
seu apostolado uma vez que, naquele tempo, os judaizantes se
deslocavam rapidamente por todo o império (2.17-19).

Tema
O tema de Paulo é perfeitamente coerente com o seu objetivo. Aos
crentes de Roma ele ensina a universalidade do pecado e da graça
bem como a necessidade que todos os homens, inclusive os gentios,
têm de conhecer a salvação dada por Deus, por meio da fé. Alguns

128
versículos chaves permitem acompanhar o raciocínio de Paulo, o que
não é tarefa muito fácil.
3.23 – Porque todos pecaram e destituídos estão da glória de
Deus – O pecado é uma realidade universal. Começando em
Adão, ele passou, por hereditariedade, a todos os seres
humanos. O pecado atinge tanto a judeus quanto a romanos.
Diante dele somos todos iguais.
5.12 – Portanto, assim como por um só homem entrou o
pecado no mundo, e pelo pecado a morte. Assim também a
morte passou a todos os homens porque todos pecaram. A
consequência do pecado do primeiro homem foi a sua morte.
Assim também cada homem que peca morre. A
universalidade da morte é a consequência inevitável da
universalidade do pecado.
5.21 – Para que assim como o pecado veio a reinar na morte,
assim também viesse a reinar a graça pela justiça para a vida
eterna em Cristo Jesus nosso Senhor. A contrapartida natural
do domínio da morte introduzido pelo pecado é o domínio
universal da vida eterna introduzido pela graça de Deus.
6.23 – Porque o salário do pecado é a morte, mas o dom
gratuito de Deus é a vida eterna por Cristo Jesus nosso
Senhor. Temos aqui uma maravilhosa síntese de toda a
doutrina exposta anteriormente.

Divisões
Introdução e tema
– Saudação (1.1-7)
– Ação de Graças (1.8-15)
Tema da epístola (1.16-17) A necessidade do evangelho
A condenação dos gentios (1.18-32)
A condenação dos judeus (2.1 – 3.8)
A condenação universal (3.9-20)
O plano de salvação
A justificação pela fé (3.21-31)
O exemplo de Abraão (4.1-25)

129
Paz com Deus, o resultado da justificação (5.1-11)
A nova humanidade em Cristo (5.12-21)
Réplicas às objeções quanto à salvação pela graça
Objeção: Ela incentiva o pecado
Ela produz santificação (6.1-23)
A Lei e a Graça (7.1-25)
A certeza de salvação (8.1-39)
Objeção: Ela anula as promessas de Deus
A soberana escolha de Deus (9.1-33)
A necessidade de comunicar as boas novas (10.1-21)
O futuro de Israel (11.1-36)

Exortações práticas
O serviço na igreja e outros deveres (12.1-21)
A responsabilidade pessoal (13.1-14)
Como tratar os enfraquecidos na fé (14.1-23)
Ambições missionárias de Paulo (15.1-33)

Saudações pessoais (16.1-27)


A epístola aos romanos pode ser dividida em duas grandes partes: a
primeira, que vai do capítulo 1 até o 11, trata especialmente da
doutrina da salvação. A segunda, começa no capítulo 12 e discorre
sobre temas éticos. Para o estudo da primeira parte usamos a tabela
de Carrez150 et. al.

150CARREZ, M., DORNIER, P., DUMAIS, M &


TRIMAILLE, M., As cartas de Paulo, Tiago, Pedro e Judas,
São Paulo, Paulinas, 1987. Página 163.
130
ESTRUTURA DOS CAPÍTULOS 1 – 11

SEÇÕES Paulo descreve Antes: MISÉRIA Depois:


a situação (incapacidade do SALVAÇÃO
como homem) (onipotência de
Deus)
I – 1.18- Jurista que faz Gentios e judeus Pagãos e judeus
5.11 uma sob o pecado e a salvos
constatação ira de Deus (1.18- gratuitamente
3.20) (3.21-5.11)
II – 5.12 – Teólogo que A humanidade A humanidade
6.33 reflete sobre o solidária com Adão solidária com
batismo. no pecado e na Cristo, o segundo
morte (5.2-14) Adão (5.15-21) e
ressuscitada com
ele pelo batismo
(6).
III – 7.1 – Psicólogo da O homem, escravo O homem
8.39 experiência da Lei, dilacerado reunificado
humana interiormente. (7) interiormente pelo
concreta. Espírito que o
torna filho (8)
IV – 9.11- Historiador do Miséria de Israel Salvação de Israel
11.32 desígnio de separado de Cristo reintegrado em
Deus. (9.1 – 10.21) Cristo (11.1-32).

Destaque – a cultura secular de Paulo


Paulo se utilizou da tese platônica de que os deuses cuidam dos
homens que são seus amigos e de que os males que sobrevêm aos
homens contribuem para o seu bem, e que a adaptou para o contexto
cristão (v. quadro 2, pg. 52). Paulo, nesta epístola mais que em
qualquer outra, se mostra conhecedor tanto da sabedoria herdada
dos judeus, quanto da filosofia grega, aprendida em Tarso. Sob este
aspecto, ele tem, no Cristianismo, uma atuação idêntica à de Filo de
Alexandria, no Judaísmo. Ambos fizeram, cada qual de seu ponto de

131
vista confessional, a harmonização entre a sabedoria judaica e a
filosofia grega.
A formação de Paulo no Judaísmo se deu em uma escola liberal. Seu
mestre, Gamaliel, era neto do grande mestre Hilel, famoso no tempo
de Jesus Cristo por sua interpretação liberal da Lei, ao passo que
Shamai, líder da escola oponente, era muito mais radical 151. Conta-
se, a título de anedota, que certa vez um homem muito rico se
aproximou de Shamai e prometeu-lhe dar uma grande fortuna se ele
fosse capaz de lhe ensinar toda a Lei enquanto permanecesse de pé
sobre um de seus pés. Tendo sido escorraçado, nosso desafiante fez
a mesma proposta a Hilel que, sem perda de tempo, colocou-se sobre
um pé e recitou: "- Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração,
de toda a tua força e de todo o teu entendimento e ao teu próximo
como a ti mesmo. Aí está toda a Lei e os Profetas".
A formação secular de Paulo se deu em Tarso onde estudou Filosofia
sendo fortemente influenciado pelo estoicismo que, segundo Josefo,
tinha muito em comum com a doutrina dos fariseus. A maneira de
escrever de Paulo mostra a influência da filosofia helenística quando
ele se utiliza da diatribe (discussão com um dialogante imaginário)
para colocar os seus conceitos. Sua ética é predominantemente
estoica à medida que ensina a libertação dos desejos da carne para
maior dedicação aos assuntos espirituais.

151Hilel e Shamai foram dois de nossos maiores Sábios, cujas


discussões sobre a Lei Judaica resultaram na criação de duas
escolas de pensamento: a escola de Hilel – que era, geralmente,
mais leniente – e a escola de Shamai – que era mais rígida
quanto às Leis da Torá. Ensina o Talmud que os ensinamentos
de ambas as escolas refletem a Vontade Divina, mas que nós
devemos seguir as diretrizes da escola de Hilel. Porém, na era
messiânica, ensinam os nossos Sábios, a Torá será seguida
conforme os ensinamentos da escola de Shamai.
http://estudosjudaicos.blogspot.com/2008/06/quem-foram-
hilel-e-shamai.html
132
8. A epístola de Paulo aos
Efésios
Propósitos
A cidade de Éfeso foi um dos locais em que Paulo passou maior parte
do tempo de sua vida como missionário. Apenas Corinto e Roma
rivalizam com ela. Em Roma, entretanto, Paulo estava preso. De seu
trabalho nesta cidade resultou a fundação de uma forte igreja cristã.
Outras igrejas foram fundadas em cidades satélites pelo trabalho de
obreiros preparados e enviados por Paulo.
É ensinado tradicionalmente que Paulo escreveu aos efésios no
tempo quando esteve preso em Roma. Na atualidade uma linha de
pesquisa literária admite que esta é uma das cartas dêutero paulinas.
Ela teria sido escrita por um discípulo de Paulo, depois de sua morte.
Para nos apropriarmos de seus ensinamentos vamos: Discorrer
sucintamente sobre as duas hipóteses a respeito da autenticidade da
autoria desta epístola, discutir a autoria, tempo e local de composição
desta epístola, discutir o objetivo teológico para a composição desta
epístola e apresentar os principais temas e divisões do texto desta
epístola.

A autenticidade da autoria desta epístola


As epístolas aos Efésios, Filipenses, Colossenses e a Filemon são,
em conjunto, chamadas de epístolas da prisão porque, segundo é
amplamente aceito, Paulo as teria escrito quando se encontrava
preso pela primeira vez. Qual teria sido o local dessa prisão? O
assunto ainda é muito discutido. Quando estudamos especificamente
a epístola aos Efésios o assunto fica ainda mais complicado porque
não se conhece os destinatários da carta. Quem seriam eles de fato?
O que se sabe é que os manuscritos mais antigos não contem a
expressão aos Efésios nem qualquer outra que identifique os
destinatários.
Por essa razão, muitas hipóteses têm sido levantadas a respeito dos
primitivos leitores desta carta. Uma das mais aceitas nos declara que

133
esta seria a Carta aos laodicenses, mencionada na epístola aos
colossenses152.
Outra corrente crítica advoga que esta epístola seria uma carta
circular sem igreja destinatária definida (uma encíclica). A favor desta
segunda hipótese está a exiguidade de saudações personalizadas,
as quais são muito frequentes em toda a correspondência paulina.
Uma terceira corrente advoga que esta seria uma das epístolas
dêutero paulinas. Aceita-se sem discussão apenas o fato de que os
leitores eram cristãos gentios.
Além disso, a autoria paulina tem sido colocada em dúvida porque:
1. A carta não apresenta referências concretas a fatos da vida
do apóstolo Paulo.
2. Observa-se completa ausência de saudações pessoais, o
que só tem paralelo em Gálatas.
3. A linguagem e o estilo de composição não conferem com o
que se tem nas demais epístolas paulinas. Isto, se não é um
argumento definitivo para afastar a hipótese de autoria
paulina, pelo menos conduz à hipótese de que o texto atual
poderia ter sido editado por um escritor diferente.
A teologia apresentada nesta epístola não combina com o que se
conhece de teologia paulina porque:
1. Esta carta não faz nenhuma referência à volta de Cristo, o
que poderia nos levar a datá-la de época posterior ao primeiro
século.
2. A visão do casamento como figura da união entre Cristo e
Igreja, paralela à figura veterotestamentária da união entre
Deus e seu povo, não combina com a interpretação do
casamento encontrada em I Coríntios 7.
3. A atribuição a Paulo de um ministério de unificação entre
judeus e gentios não combina com o seu conhecido
posicionamento com apóstolo dos gentios.

152Lida que for esta carta entre vós, fazei-a ler também na
igreja dos laodicenses, e a dos de Laodiceia, lede-a vós
também. Cl. 4.16.
134
Tempo, local e objetivo teológico.
A análise destes dados tem levado à admissão da hipótese de que
esta carta teria sido escrita mais tardiamente por um discípulo de
Paulo que teria usado o nome de seu mestre como pseudônimo. O
fato de sua linguagem apresentar estilo semita permite concluir que o
autor desta epístola era um judeu palestino convertido ao
Cristianismo. Dentro dessa concepção uma data alternativa de
composição tem sido marcada entre os anos 80 e 100 da era cristã e
o local aceito como mais provável é a província da Ásia (Éfeso?). Se,
por outro lado, a carta é realmente autêntica, sua composição deve
ser marcada para o ano 62 ou 63 e o local mais provável para Roma.
Nesta carta o autor trabalha especificamente o tema “vocação dos
gentios” que ele chama de o grande mistério de Deus que
permaneceu oculto aos antigos e que, por intermédio de Jesus Cristo,
foi revelado aos seus apóstolos e profetas e a necessidade de
santificação. Dessa forma, os judeus não são os únicos agraciados
por Deus com um lugar especial na História da Salvação. Todo o
mundo está incluído.

Divisões
Saudação (1.1,2)
Ação de graças pelo plano de salvação
O propósito de Deus para igreja (1.3-6)
A redenção de Cristo traz união (1.7-12)
O selo do Espírito (1.13,14)
Oração (1.15-23)
A unidade de todos os crentes em Cristo
Unidade com Cristo e livramento do pecado e da morte (2.1-10)
Gentios e judeus unidos pela cruz de Cristo (2.11-22)
A vocação dos gentios (3.1-13)
Oração e doxologia (3.14-21)
Exortações ao comportamento cristão
Para andar na unidade do Espírito (4.1-16)
Para andar em novidade de vida (4.17-32)
135
Para andar em amor (5.1-21)
Cuidados com os deveres domésticos (5.22 – 6.9)
Exortação ao fortalecimento espiritual (6.10-17) - a armadura de Deus
Exortação à oração (6.18-24).

Os grandes temas de Efésios


A vocação dos gentios
A expressão “mistério de Deus” aparece várias vezes na literatura
paulina153. Nas epístolas de Efésios154 e de Colossenses155 o tema

153Rm.16.25: Agora, ao que é poderoso para vos confirmar,


segundo o meu Evangelho e a pregação de Jesus Cristo,
conforme a revelação do mistério guardado em silêncio durante
os tempos eternos. I Co.2.7: pelo contrário falamos a sabedoria
de Deus em mistério, sim a sabedoria que esteve oculta, a qual
Deus predeterminou antes dos séculos para a nossa glória;
154Ef. 3.3: segundo me foi pela revelação manifestado o
mistério, como antes vos escrevi em poucas palavras, Ef.3.4
pelo qual, quando ledes, podeis entender o meu conhecimento
no mistério de Cristo, Ef.3.9 e trazer à luz qual a dispensação
do mistério que tem estado escondido desde os séculos em
Deus que criou todas as coisas, Ef.5.32. Este mistério é grande,
mas eu falo em referência a Cristo e à igreja. Ef.6.19 e por
mim, para que me seja dada no abrir da minha boca palavra,
para com ousadia fazer conhecido o mistério do Evangelho,
155Cl.1.26 o mistério que esteve escondido dos séculos e das
gerações; mas agora foi descoberto a seus santos, Cl.1.27 a
quem aprouve a Deus fazer conhecer quais são as riquezas da
glória deste mistério entre os gentios, que é em vós Cristo,
esperança da glória, Cl.2.2 para que os seus corações sejam
confortados, estando unidos em amor e para conseguir todas as
riquezas da plena certeza do entendimento, para reconhecerem
o mistério de Deus, Cristo, Cl.4.3 orando ao mesmo tempo
também por nós, para que Deus nos abra uma porta à palavra,
136
“mistério” volta com toda a força. Entendemos que tal mistério se
refere à vocação dos gentios para a salvação.

A unificação da comunidade cristã


A epístola aos Efésios trabalha o tema da unidade cristã, isto é, da
unificação das comunidades cristãs de maioria judaica com as
comunidades cristãs de maioria gentílica 156. Este é um dos motivos
alegados em defesa do argumento de que esta seria uma carta
dêutero paulina. Dizem os críticos que nos tempos do ministério de
Paulo nunca houve clima favorável nem oportunidade para esta
unificação.

A necessidade de santificação (5.1-20)


Como consequência imediata e indispensável da unificação da
comunidade cristã judaica com a comunidade cristã helênica surge o
imperativo de apelar aos cristãos gentios para uma vida de
santificação sem a qual o ideal da comunhão nunca seria atingido.
Paulo inicia colocando um novo padrão de conduta para os crentes:
sede imitadores de Deus e andai em amor (v. 1,2).
Para atingir esse padrão, deveriam começar abandonando as
práticas que observaram na vida anterior, enquanto eram pagãos.
Deveriam abandonar a idolatria com todo o seu cortejo de práticas
associadas: “Mas a prostituição, e toda sorte de impureza ou cobiça,
nem sequer se nomeie entre vós, como convém a santos, nem
baixeza, nem conversa tola, nem gracejos indecentes, coisas essas
que não convêm; mas antes ações de graças” (v3,4).
Também deveriam ser banidas das suas práticas diárias a
embriaguez e o linguajar torpe. Deveriam ser cultivadas a sobriedade
e a conversação em nível adequado aos servos de Deus. As relações
familiares deveriam ser fundamentadas no amor e no respeito.

para falarmos o mistério de Cristo pelo qual também estou em


cadeias,
156Pois ele é a nossa paz, ele que dos dois fez um e derrubou o
muro da separação, a inimizade, tendo abolido na sua carne a
lei dos mandamentos contidos em ordenanças, para que dos
dois ele criasse em si mesmo um homem novo, fazendo assim
paz, Ef.2.14-15.
137
Paulo, em harmonia com o ensinamento de Jesus Cristo 157 e com os
ensinamentos que ele mesmo deu aos crentes de Corinto 158 não
estabelece nenhum código de alimentos “kosher”. Todos os alimentos
são permitidos aos santos desde que consumidos com ação de
graças.

157Mc. 7.9
158I Co.10.25,26
138
9. A epístola de Paulo aos
Filipenses
Propósitos
Paulo estava preso quando escreveu essa carta. A hipótese mais
provável é de que já se encontrava em Roma. A igreja de Filipos
enviou-lhe um emissário que portava uma oferta para ajudá-lo no
atendimento de suas necessidades. Com a oferta chegam notícias de
que alguns dos crentes ficaram abalados e desanimavam de
testemunhar por causa da prisão do apóstolo.
Paulo escreve insistindo na sugestão: “regozijai-vos”. Seu objetivo é
mostrar à igreja que as adversidades da vida não devem motivar
desânimo ou desistência. Devem, ao contrário, estimular-nos a
prosseguir para o alvo. Para compreender melhor esse escrito vamos:
1. Discorrer sucintamente sobre a cidade de Filipos e sobre o início
do trabalho cristão nesta localidade. 2.Discutir a autoria, tempo e local
de composição desta epístola. 3. Discutir o objetivo teológico para a
composição desta epístola. 4.Apresentar a cristologia encontrada na
epístola aos Filipenses.

A cidade de Filipos e sua comunidade cristã


A cidade de Filipos ficava situada na província romana da Macedônia,
ao norte da província da Acaia. Hoje existe uma pequena república
denominada Macedônia na Península Balcânica. Entretanto, o que se
constituía na província da Macedônia dos tempos bíblicos era uma
área bem maior que ficava, em sua maior parte, compreendida no que
hoje é território grego. A cidade de Filipos que ficava no percurso da
Via Egnatia, apresentava excelente relacionamento com a capital do
Império. Seus habitantes, que desfrutavam da cidadania romana,
procuravam imitar a metrópole em tudo.
Nos tempos bíblicos a cidade de Filipos era um importante centro
comercial. Paulo chegou lá por volta do ano 48, acompanhado de
Silas, Timóteo e Lucas dando início ao trabalho de pregação com
simpatizantes judeus 159 . As primeiras pessoas convertidas foram
Lídia, uma comerciante da cidade de Tiatira, e um funcionário público

159At.16.7-13
139
que exercia a função de carcereiro 160 . A saudação presente na
epístola permite concluir que na época em que ela foi escrita a igreja
de Filipos já estava plenamente estruturada com um ministério
organizado segundo o princípio da divisão do trabalho 161.

Tempo, e local de composição e objetivo


teológico
Paulo estava preso quando escreveu esta carta 162. Discute-se onde
e quando. Tradicionalmente se aceita que esta carta foi escrita
durante a sua primeira prisão em Roma o que nos permite datá-la
para o ano 63. Alguns argumentos podem ser anotados a favor desta
hipótese:
1. A referência à guarda pretoriana encontrada em 1.13. Essa
expressão guarda pretoriana era usada para designar um
contingente sediado em Roma.
1. A expressão “casa de César163” que se usava para designar
familiares e servidores do imperador.
2. A situação de Paulo como prisioneiro sugere que ela
aguardava o resultado de um julgamento164.
Há, entretanto, alguns argumentos contrários a esta hipótese,
vejamos:
1. Sabemos que ao sair de Roma Paulo tinha a intenção de
seguir viagem para a Espanha o que dificilmente se concilia
com sua intenção de visitar Filipos 165.A distância entre Roma
e Filipos era um impedimento à manutenção de
correspondência frequente.
2. Apesar destas alegações a hipótese mais aceita atualmente
é de que esta carta foi escrita em Roma por volta do ano 63.
Seus objetivos são claros: Confortar os crentes de Filipos por

160At.16.14, 25-31.
161Fp.1.1,2.
162Fp.1.13
163Fp.4.22
164Fp.1.19
165Fp.1.26
140
causa do desânimo que estava tomando conta deles como
consequência da sua prisão e agradecer o envio de uma
oferta deles.

Tema
O tema principal desta epístola pode ser resumido em um imperativo
verbal: Regozijai-vos166. Com esta epístola Paulo pretende levar a
igreja a recuperar o entusiasmo perdido por causa da sua prisão.

Divisões
Saudação (1.1,2)
Ação de graças e oração (1.3-11)
Como devem viver os cristãos
Levando e evangelho (1.12,13)
Refletindo Cristo em suas vidas (1.14-18)
Entre esta vida e a futura (1.19-26)
O sentido real da vida (1.27 – 2.30)
O valor do conhecimento de Cristo (3.1-16)
Contraste entre amigos e inimigos da cruz (3.17-4.1)
Exortações finais (4.2-23).

A Cristologia de Filipenses
A epístola aos Filipenses apresenta um modelo de cristologia que
ficou conhecida como a cristologia cenótica, ou cristologia do
esvaziamento. No capítulo 2, a partir do versículo 5, encontramos as
linhas essenciais desta cristologia:
Jesus Cristo é Deus – 2.10,11 – O convite para que ao nome de Jesus
se dobre todo o joelho (sinal de adoração) dos que estão nos céus
(anjos e demônios), na terra (homens vivos) e em baixo da terra
(mortos), mostra que ele é Deus porque um judeu jamais admitiria
adorar alguém que não fosse Deus. Confira Rm.1.
Jesus é o mesmo Deus do Velho Testamento – 2.11 – A palavra
Senhor () usada por Paulo para denominar Jesus Cristo é a

166Fp. 2.18, 3.1, 4.4.


141
mesma que foi usada para traduzir o nome de Deus na Septuaginta.
Isto indica perfeita identidade do filho com o pai.
Para poder se relacionar com os homens, Jesus Cristo se esvaziou
de seus atributos divinos e assumiu a forma humana, em obediência
à vontade do Pai. Essa livre opção o levou até a Cruz.
A cristologia cenótica persiste hoje na escola que defende o chamado
“teísmo aberto”167. Entendemos por teísmo a aceitação da existência
de um Deus imanente que interage permanente e intensivamente
com o homem. O adjetivo “aberto” significa que essa interação não
invalida nem atropela o “livre arbítrio” que o homem recebeu do
Criador. Entre os defensores dessa tese em nosso país são citados
Ricardo Gondim e Ed Renê Kiwitz.

O cuidado contra a falsa circuncisão


Paulo adverse os Filipenses contra os pregadores da falsa
circuncisão168. Pode-se entender, a partir dessa recomendação que
os judaizantes que tanto perturbaram a vida do apóstolo estavam
fazendo duas investidas também na cidade de Filipos.

167Teísmo Aberto in Wickipédia (https://pt.wikipedia.org/).


168Fp.3.1-11.
142
10. Epístolas aos Colossenses e a
Filemon
Propósitos
Paulo nunca esteve em Colossos. A igreja daquela cidade foi
organizada por Epafras (Epafrodito), um colaborador que trabalhou
sob sua orientação. Por esta razão Paulo a considerava como umas
das igrejas que ele mesmo havia fundado. No momento em que esta
carta é escrita a igreja passa por uma crise. Pregadores chegam
difundindo um Cristianismo alternativo, misturado com tradições
judaicas, culto aos anjos e práticas de religiões de mistério
helenísticas.
Essa carta foi escrita para combater a chamada “heresia colossense”.
Para entendê-la pretendemos: 1. Discorrer sucintamente sobre a
cidade de Colossos e sobre o início do trabalho cristão naquela
localidade. 2. Discutir a autoria, tempo e local de composição da
epístola aos Colossenses. 3. Discutir o objetivo teológico para a
composição desta epístola. 4. Sumariar o conteúdo da epístola a
Filemon.

A cidade de Colossos e os destinatários desta


epístola.
A cidade de Colossos ficava situada na península da Anatólia, atual
Turquia, às margens do rio Lico e próxima da cidade de Laodiceia.
Sua população, de raça Frígia, tinha como principal religião o culto de
Cibele, a deusa do amor e da fertilidade dos asiáticos. Os dados que
podemos conseguir da leitura do texto bíblico nos permitem concluir
que Paulo não esteve pessoalmente naquela cidade 169 , mas que
enviou Epafras170 (possivelmente outro nome para Epafrodito 171) até
lá e que este foi o iniciador da obra de pregação local. Assim sendo,
Paulo considerava as igrejas de Colossos como uma extensão natural
de seu ministério. Sabe-se que havia, pelo menos, duas igrejas
naquela cidade as quais se reuniam em casas de família. Uma delas

169Cl.2.1
170Cl.1.7
171Fp.2.25
143
ficava na casa de Filemon172. A população da cidade era constituída
quase exclusivamente de gentios.

Objetivo teológico – a heresia colossense.


Aceita-se geralmente que quando Paulo escreveu esta epístola ele
estava preso em Roma onde havia recebido visitas de Epafras,
Tíquico e Onésimo (este último era escravo de Filemon). Nesta visita
eles lhe comunicaram o aparecimento na cidade de falsos mestres
que procuravam enganar a igreja por meio de sofismas 173 . Muito
embora não se tenha uma definição exata de quem seriam esses
falsos mestres o exame acurado da epístola revela alguma coisa
sobre seus ensinos:
Davam ênfase ao cerimonialismo 174 recomendando a estrita
observação das ocasiões festivas tais como os sábados e as luas
novas.
Ensinavam o culto aos anjos e prezavam as visões que, segundo
Paulo, não passavam de produtos de suas mentes carnais 175.
1.Desprezavam a obra salvadora de Cristo 176.
2. Recomendavam a abstinência de determinados alimentos177.
3. Enfatizavam o ascetismo e a sabedoria178.
Este repertório doutrinário não coincide com o que conhecemos
acerca dos judaizantes, razão por que não podemos classificar os
membros deste grupo como discípulos daqueles. Também não é
possível identificá-los com os Gnósticos, que foram mais ativos no
segundo século, porque estes tinham como doutrina básica a
negação da humanidade de Jesus Cristo. Assim sendo, a heresia
colossense parece ter sido um desvio doutrinário limitado no tempo e
no espaço, que se constituía numa forma de transição.

172Fm.1,2
173Co.2.4
174Co.2.1, 17.
175Co.2.18
176Co.2.19,20
177Co.2.21,22
178Co.2.23
144
Tema
O tema em destaque é a atuação do Cristo Cósmico na realização do
plano de salvação. Será útil fazer um estudo comparativo deste texto
com o prólogo do quarto evangelho para perceber os pontos de
contato entre a heresia colossense e o Gnosticismo. As divisões mais
aceitas para a epístola são as seguintes:

Divisões
Saudação (1.1,2)
Ação de Graças (1.3-8)
Oração (1.9-12)
A obra de Deus em Jesus Cristo
Redenção (1.13,14)
A excelência de Cristo (1.15-19)
A reconciliação (1.20-23)
O ministério de Paulo (1.24-2.3)
Denúncia do ensino falso (2.4-23)
Regras para vida cristã (3.1 – 4.6)
Conclusão (4.7-18)

A cristologia cósmica179
Em Colossenses encontramos a fundamentação do que se
convencionou chamar de cristologia cósmica, que se apresenta como
uma alternativa para a interpretação da pessoa e da obra de Nosso
Senhor Jesus Cristo. Ela apresenta o Filho como
1. Imagem do Deus invisível,
1. Primogênito da Criação,
2. Meio pelo qual todas as demais coisas foram criadas e
3. Mantenedor perpétuo da obra criada.
Essa cristologia que apresenta pontos de contato com a cristologia
joanina e diverge bastante da cristologia cenótica, encontrada na
epístola aos Filipenses, permitiu que se levantassem dúvidas a

179CI.1.14-23
145
respeito da autenticidade da autoria paulina de Colossenses. Alguns
autores chegaram a datá-la do século II da era cristã.

A epístola a Filemon
Filemon era um crente de posses que morava na cidade de Colossos.
Onésimo, escravo de sua propriedade, fugiu de sua casa e foi ter com
Paulo, em Roma. No contato com o apóstolo, Onésimo se converteu
ao Cristianismo e foi encaminhado de volta a Filemon com uma carta
escrita por Paulo. Esta carta, a mais curta de todas as epístolas
paulinas, é um testemunho da transformação que o Evangelho produz
na vida de um homem.

146
11. As epístolas pastorais
Propósitos
As cartas dirigidas a Timóteo (I e II) e a Tito são denominadas
pastorais. A maior preocupação do autor é a preparação de lideranças
que permitissem as igrejas sobreviver à morte do apóstolo. O grande
assunto aqui é a organização eclesiástica com a qualificação de
bispos e diáconos. Iremos, a seguir: 1. Conceituar epístola pastoral e
listar as epístolas classificadas sob este nome. 2.Sumariar os
conteúdos destas epístolas. 3.Discutir a autoria, tempo e local de
composição destas epístolas. 4.Discutir o objetivo teológico para a
composição destas epístolas. 5. Identificar os falsos doutores que são
citados nestas epístolas.

Que são as epístolas pastorais?


O nome Epístolas Pastorais foi criado em 1703 por Bardot para
designar as cartas que Paulo enviou aos líderes de igrejas que ele
mesmo constituiu. São elas: Duas cartas enviadas a Timóteo e uma
a Tito. Timóteo, companheiro de Paulo a partir de sua segunda
viagem missionária, era judeu por parte de mãe e grego por parte de
pai. Paulo o tomou como se fosse um filho de criação e mandou
circuncidá-lo para evitar problemas com os judeus convertidos
quando ele viesse a acompanhá-lo em suas viagens
missionárias 180 .Estando em Corinto, Paulo o designou para dar
assistência à comunidade cristã de Éfeso.
Conhecemos pouco de Tito, uma vez que ele não é citado no livro de
Atos dos Apóstolos. Tudo que sabemos dele vem das referências que
Paulo lhe faz em seus escritos. Sabe-se que era um cristão gentio e
que foi designado para pastorear uma igreja na ilha de Creta. Ele e
Timóteo tinham, portanto, uma situação parecida com a de Epafras
em Colossos. Parece-nos que Paulo, visando uma expansão mais
rápida da obra de evangelização e a melhor consolidação de seu
trabalho evangelístico, designava alguns de seus auxiliares mais
experimentados para implantar trabalhos pioneiros nas cidades que
ele mesmo não podia atingir e também para consolidar o crescimento
cristão das comunidades já atingidas. As epístolas pastorais são
cartas que Paulo escreve a esses dois líderes orientando-os no

180At.16.1,2.
147
combate a hereges que estavam se infiltrando em suas respectivas
comunidades.

Tempo e local de Composição


Desde que aceitemos a autoria paulina, as datas mais prováveis para
a composição das epístolas pastorais devem ser colocadas entre os
anos 64 e 68. Estas são, portanto, as últimas cartas escritas pelo
apóstolo Paulo. Se, como afirma a tradição, Paulo morreu, de fato, no
ano 65, teremos de datá-las entre os anos 64 e 65 da era cristã.

A autoria paulina
Estas cartas, bem como a epístola aos Efésios, têm tido sua autoria
paulina mito contestada. Eis alguns argumentos que têm sido citados
contra a autenticidade da autoria. A evidência externa: As epístolas
pastorais não são citadas nos documentos mais antigos tais como o
cânon de Marcion e o papiro p46.
A análise estatística do vocabulário usado nestas epístolas mostra
diferenças marcantes da frequência de uso de palavras quando as
comparamos com as demais epístolas paulinas. O estilo de
composição também é diferente.
O problema teológico – As doutrinas ensinadas pelos falsos doutores
(ver a seguir) não combina com os desvios doutrinários já conhecidos
na época em que o apóstolo Paulo viveu.
Embora as epístolas pastorais não difiram radicalmente das demais
epístolas paulinas no seu conteúdo teológico, elas diferem
significativamente na terminologia usada para descrever este
conteúdo.

Os falsos doutores
O reconhecimento da heresia combatida nas cartas pastorais exige
que se faça uma identificação dos falsos doutores nelas
mencionados. Essa identificação, se feita com exatidão, vai nos
permitir tirar conclusão sobre a data provável de sua escrita. O estudo
da Epístola aos Colossenses nos permitiu identificar uma heresia que
grassava na Ásia Menor e que apresentava características
intermediárias entre a dos judaizantes (predominante no Século I) e a
dos Gnósticos (predominante no Século II). Vamos tentar agora
caracterizar o tipo de doutrina que esses falsos doutores estavam
ensinando:

148
Colocavam ênfase no legalismo181.
Prezavam as genealogias182
Ensinavam o celibato e proibiam o uso de alguns alimentos. 183
Ensinava uma escatologia realizada (a ressurreição já passou). 184
Da mesma forma que na epístola aos Colossenses, podemos ver aqui
uma forma de pré – Gnosticismo na qual os elementos tipicamente
judaizantes (legalismo, genealogias) se fundem com as influências
helenísticas tais como a negação da ressurreição.

Conteúdo das epístolas


I Timóteo
Saudação (1.1,2)
A situação em Éfeso (1.3-17)
A incumbência dada a Timóteo (1.18-20)
Instruções sobre o culto público (2.1-15)
Qualificações dos oficiais da igreja (3.1-13)
Propósito do trabalho de Timóteo (3.14-16)
Instruções sobre a Apostasia (4.1-16)
Diversos grupos na igreja (5.1 – 6.2)
Os falsos doutores (6.3-10)
A atuação de Timóteo (6.11-21)

II Timóteo
1.Introdução (1.1-5)
2. A primeira orientação (1.6-18)
3. A segunda orientação (2.1-3)

181Tt.3.9, I Tm.6.4, II Tm.2.14-23


182I Tm.1.4
183I Tm.4.1-3
184I Tm.2.18
149
4. A terceira orientação (2.4 – 3.17)
5. A quarta orientação (4.1-8)
6. Instruções finais e saudações (4.9-22)

Tito
Saudação (1.1-4)
Instruções gerais para a reforma religiosa (1.5-16)
Instruções específicas para a pregação (2.1-15)
Instruções finais para os crentes no mundo (3.1-15)
Destaque – A formação de lideranças
A preocupação que sobressai nas epístolas pastorais se refere à
necessidade de dotar a igreja cristã de uma liderança capaz de
assegurar sua sobrevivência até a volta do Senhor. Os cristãos de
primeira geração, os apóstolos que haviam convivido com o Senhor
por quarenta dias após a ressurreição e ouvido seus ensinamentos,
estavam chegando ao final de suas vidas.
Naquele tempo ainda não havia uma coleção de escritos suficientes
para orientar a igreja. O cânon do Novo Testamento só foi fechado ao
final do século IV da Era Cristã. Era essencial que as igrejas fossem
lideradas por pessoas competentes, cujas palavras fossem confiáveis
e que lhes transmitissem os ensinamentos recebidos desde o
princípio185. Principalmente porque heresias começavam a se infiltrar
nas igrejas.
Um dos cuidados do apóstolo Paulo foi o de deixar instruções muito
precisas para a escolha e preparação dos oficiais da igreja,
principalmente bispos e diáconos. Dentro de muito pouco tempo eles
assumiriam os lugares vacantes pelas mortes dos apóstolos e
precisavam, portanto, estar preparados para essa grande tarefa.

185I Jo.1.1
150
Unidade IV – A literatura Joanina

Denominamos “Literatura Joanina” ao conjunto de livros


constituído pelo quarto evangelho (evangelho de João)
e pelas três epístolas cujas autorias são também
atribuídas ao apóstolo de Jesus identificado como
sendo o “discípulo a quem Jesus amava”.

Esses quatro livros foram compostos a partir do final do


século I e refletem as situações vividas pelos cristãos
por causa da sua fé. Inicialmente eles foram rejeitados
pelos judeus por defenderem a divindade de Jesus.
Foram acusados de politeísmo.

Mais tarde, suas igrejas, francamente carismáticas,


foram contaminadas pelo gnosticismo, um movimento
dissidente que negava a realidade da humanidade de
Jesus.

O apocalipse, por tratar de assuntos completamente


diferentes, foi reservado para estudo em uma unidade
particular chamada literatura apocalíptica.

151
1. A comunidade joanina e sua
literatura
Propósitos
Existem, no Novo Testamento, quatro livros cujas autorias têm sido
historicamente atribuídas a João, o apóstolo do amor: o quarto
evangelho e as três epístolas joaninas. Para conhecermos o tipo de
relacionamento que existe entre eles pretendemos: 1. Conceituar
Literatura Joanina. 2. Conceituar comunidade e escola como
unidades estruturais básicas no Cristianismo primitivo. 3. Expor
resumidamente a história da formação da comunidade joanina.
4.Explicar o que se entende por baixa cristologia e alta cristologia. 5.
Identificar a origem da alta cristologia joanina e caracterizar o tipo de
conflito que ela originou no relacionamento dos crentes joaninos com
os judeus.

Que é uma comunidade?


Ao conjunto de livros formado pelo quarto evangelho e pelas epístolas
joaninas (I João, II João e III João) chamamos de Literatura Joanina.
A interpretação desta literatura tem como requisito natural o estudo
do processo histórico de sua formação e este, por sua vez, tem como
requisito o estudo da história do nascimento, crescimento, apogeu,
declínio e colapso do que chamamos de comunidade joanina.
Para entendermos o que designamos por comunidade, em geral e por
comunidade joanina, em particular, precisamos rever nossa
conceituação de Cristianismo Primitivo. A comunidade cristã do
primeiro século nunca foi, como vinha se acreditando há muito tempo,
formada por um grupo unitário de igrejas em termos de doutrinas e de
práticas religiosas. Pelo contrário, os cristãos do primeiro século
formavam um grupo heterogêneo e dinâmico que estava estruturado
em comunidades – grupos de igrejas – que guardavam em comum,
além de sua origem histórica, o respeito a um mesmo líder e um
repertório limitado de doutrinas e de práticas religiosas. 186 Esse

186A maior parte dos livros do Novo Testamento foi escrita no


último terço do Século I. Este período, que Brown, R. E. (As
Igrejas dos Apóstolos, São Paulo, Paulinas,1986) chama de "
período sub – apostólico ", se caracterizou pela organização das
152
repertório doutrinário de cada uma das comunidades diferia bastante
dos repertórios das outras comunidades congêneres com as quais ela
se identificava apenas pela aceitação de um núcleo doutrinário
comum denominado kerygma apostólico, uma espécie de profissão
de fé primitiva que definia um programa mínimo de Cristianismo.
Moule 187 nos declara que:
Um viajante, logo depois da metade do primeiro século, por
exemplo, lá pelo ano 60, que fosse de Jerusalém para Éfeso,
encontraria uma variedade notável de doutrina e prática entre
comunidades que, não obstante, reivindicavam todas estar
relacionadas com Jesus de Nazaré. Em qualquer lugar da Judeia,
ele poderia encontrar o círculo de Tiago, irmão do Senhor, que
ainda prestava culto numa sinagoga cristã, formada de judeus
praticantes, que também criam em Jesus como o Messias de Deus,
mas que podiam ter progredido muito pouco com respeito à
formulação da doutrina da divindade de Jesus: o Cristianismo do
tipo ebionita caracterizava-se por uma reduzida cristologia. E que
podemos dizer a respeito do tipo de Cristianismo que se
desenvolveu em Samaria? Provavelmente, tinham lá em alta conta
o nome de João Batista (cuja missão tinha sido intensa naquela
região, e cujo túmulo talvez eles orgulhosamente custodiassem) e
recolheram tradições, muitas das quais estão agora incorporadas
no Quarto Evangelho. Eles concebiam Jesus como aquele que
estava para vir, isto é, o profeta como Moisés. Na cosmopolita
Antioquia (ainda que para julgar a partir de não mais que as
referências a ela no Novo Testamento, sem considerar a sua
história posterior) poder-se-ia encontrar uma notável variedade
de tipos de comunidade, ou seja, gentílicas, judaicas, judaizantes,
helenizantes, com diferentes formas de cristologia; enquanto que,
se nosso viajante seguisse pelo vale do Lico, encontraria uma
estranha amálgama de astrologia oriental, de legalismo judaico e
de crenças cristãs (cf. a carta aos Colossenses e comentários a
respeito). Ao fim de sua viagem, ele estaria preparado para a

igrejas em comunidades centralizadas na pessoa de um


apóstolo. Mais tarde as igrejas locais foram adquirindo maior
autonomia.
187Moule, C.F.D., " As origens do Novo Testamento", São
Paulo, Paulinas, 1979. v. pp. 175 – 177.
153
fervilhante diversidade de Éfeso, onde as igrejas paulinas estavam
sendo invadidas rapidamente pelo antinomismo, pelo
Cristianismo do tipo joanino (Cf. At.20.29ss, Apocalipse 2.1ss, O
Evangelho e as Epístolas de João). Se, depois tomasse um navio
de Mileto para Alexandria, ele mesmo podia ver-se confrontado
ali com uma ulterior variedade de comunidades cristãs, ou, se ele
já as tivesse encontrado em Éfeso, ou em qualquer outro lugar,
nesta cidade elas estariam até mais concentradas e com uma
fisionomia mais definida (cf., por exemplo, Hb. e At.18.24ss).
Finalmente, em Roma, ele poderia encontrar toda a sorte de
tendências se acotovelando umas às outras; eram as sinagogas
cristãs judaizantes; as espécies de gnósticos mais liberais dentre
os liberais, muito mais próximas do culto de mistérios do que do
Israel de Deus; congregações petrinas e paulinas, e tudo mais (cf.
Fl. 12.17 e as impressões de Rm.15.20).

Essa heterogeneidade doutrinária fica bem patente quando


examinamos a vida de igrejas de grandes metrópoles como a de
Corinto188 cuja congregação era composta de crentes de diferentes
origens e diferentes práticas religiosas: Uns eram de Pedro, outros de
Paulo (igreja apostólica), outros de Apolo (comunidade joanina) e
outros de Cristo (I Co.3.1-7). Na sua primeira epístola aos Coríntios o
apóstolo Paulo tentou, por meio de restrições e de concessões
parciais, estabelecer um denominador comum que permitisse a
irmãos que divergiam com tal intensidade conviver e comungar sob

188Das formas de vida dos cristãos resulta um espectro que se


estende desde um hebraico – cristianismo aramaico, passando
por um cristianismo judaico – helenista até um cristianismo
gentílico – helenista. Sob o ponto de vista sociológico, porém
ele não se apresenta geralmente como distribuição temporal e
espacial sobre comunidades e grupos de comunidades, mas
como correntes que, em grande parte, correm paralelas. Como
se podem constatar nos partidos de Jerusalém (At. 6.1) e de
Corinto (I Co. 1.11 s), essas correntes surgiam, na maioria das
vezes, em um mesmo lugar. Leonhard Goopelt, " Teologia do
Novo Testamento", São Leopoldo, Sinodal / Vozes,1982, 2o
Vol. p. 313.
154
um mesmo teto189. Para atingir tal objetivo era estritamente essencial
saber distinguir o cerne da doutrina cristã dos seus ramos supérfluos
que podiam ser podados sem prejuízo para ninguém.
Aceita-se hoje que a existência de várias comunidades – diríamos em
termos atuais, a existência de várias denominações – dentre os
cristãos primitivos foi um dos fatores determinantes do surgimento e
da canonização da literatura constituinte do Novo Testamento. Cada
comunidade contribuiu pela composição de um ou mais livros. A
contribuição particular da comunidade joanina está constituída pelo
quarto evangelho e pelas três epístolas que levam o nome do
apóstolo do amor. Cada comunidade era constituída por uma igreja
mãe onde ficava o seu líder principal e de várias igrejas filhas onde
ficavam líderes regionais. O primeiro líder de cada comunidade foi um
apóstolo – no sentido mais amplo do significado desta palavra, um
missionário cristão – o qual, após sua morte, foi sucedido por um
bispo ou um presbítero. O apóstolo e os seus sucessores eram os
guardiões da fé‚ num tempo em que ainda não havia um Novo
Testamento escrito. Em seu conjunto, os líderes da comunidade
formavam uma escola 190 . Aceita-se hoje que o discípulo amado

189Paulo foi o grande artífice da unificação do Cristianismo


primitivo. Por ser homem de formação eclética, versado tanto
na filosofia dos gregos, quanto na sabedoria dos judeus,
conseguia entender e aceitar sem preconceitos crentes das mais
diversas raças e culturas. Para ele não poderia haver diferenças
na igreja porque: não há grego nem judeu, circuncisão nem
incircuncisão, bárbaro, cita, escravo ou livre, mas Cristo ‚ tudo
em todos (Co 3.11). Pois quem faz injustiça receberá a paga da
injustiça que fez; e não há acepção de pessoas. (Co 3.25)
190O fenômeno de transmissão de verdades religiosas por
meio de escolas está muito bem estudado para o profetismo
veterotestamentário. Elias e Eliseu foram profetas de uma
mesma escola. Fala-se hoje no livro da escola do profeta Isaías
(V. Joseph Schreiner, " O livro da escola de Isaías" in
Schreiner, J., Ed., " Palavra e Mensagem – Introdução
Teológica e Crítica aos Problemas do Antigo Testamento", São
Paulo, Paulinas,1978.
155
(Jo.21.24) foi o fundador da escola joanina e que seu primeiro
sucessor foi o presbítero (II Jo.1).
Esse panorama – um Cristianismo dividido em comunidades –
perdurou durante o século primeiro. A partir do segundo século, em
decorrência da distância cada vez maior que os cristãos ficavam dos
primitivos, tanto no tempo quanto no espaço, e também por causa do
desenvolvimento de uma palavra escrita resultante da junção dos
diversos corpi, as igrejas locais foram se tornando cada vez mais
independentes ficando as responsabilidades de interpretação da
palavra escrita com o bispo de cada uma delas.

História da comunidade joanina


A história da comunidade joanina não ficou explicitamente registrada
em nenhum livro. Ela é reconstituída pela leitura das entrelinhas do
quarto evangelho. Esse fato faz com que o conhecimento dos
problemas tratados no quarto evangelho seja indispensável à
interpretação das epístolas joaninas que são um ‘instantâneo’' de um
período de vida da comunidade. Vários autores têm tentado a
recomposição dessa história e, infelizmente, em decorrência da
exiguidade de dados, não tem chegado a resultados absolutamente
concordantes embora todos eles usem metodologias de trabalho
absolutamente corretas. Alguns pontos, entretanto, estão bem
firmados nesta história. Vejamos a reconstituição de Brown: 191

Período precedente à composição do quarto


evangelho (ca. 50 – 89)
A semente primitiva da comunidade joanina está constituída por
discípulos de João Batista. Eles eram judeus palestinos (hebreus) que
atenderam ao apelo profético de João e que, diante da indicação
deste (Eis o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo), não
tiveram nenhuma dificuldade em aceitar Jesus Cristo como o
Messias.
Muito cedo esse grupo foi engrossado por egressos da comunidade
de Qumran, 192 que viviam às margens do Mar Morto. A adesão

191Brown, R. E. " A comunidade do discípulo amado", São


Paulo, Paulinas, 1983.
192Para ter maiores informações sobre a comunidade de
156
desses discípulos à comunidade pode ser explicada tanto pela
proximidade geográfica quanto pela afinidade doutrinária. Essa
comunidade se constituía de uma população dissidente formada no
período de governo dos Asmoneus (Século II a.C.) que se acreditava
ser o único e legítimo Israel de Deus e que aguardava a chegada de
dois messias, um levítico e outro davídico. No meio deles se
encontrava um discípulo dotado de virtudes naturais de liderança que
ficou sendo conhecido pelo cognome de discípulo amado.
Provavelmente este discípulo assumiu a liderança no meio dos
cristãos de sua comunidade depois da morte de Jesus Cristo. É hoje
largamente aceita a hipótese de trabalho que afirma que o discípulo
amado não era outro senão o apóstolo João, filho de Zebedeu. A
contribuição teológica deste grupo à comunidade joanina foi,
especialmente, o dualismo que aparece frequentemente no quarto
evangelho: Luz e trevas, cristãos e mundo, verdade e falsidade, o que
está em cima e o que está em baixo etc. Alguns historiadores
admitem, com base na proximidade geográfica, que o próprio João
Batista, antes de sua chamada profética, teria sido um participante da
comunidade de Qumran (um essênio).
O terceiro contingente que se juntou aos dois originais está
constituído pelos judeus helenistas da diáspora. Eles eram chamados
de helenistas porque sua língua de nascimento era o Grego, não
conheciam nem o Hebraico (Língua primitiva dos judeus) nem o
Aramaico (Língua oficial no período da dominação Persa). Eles
diferiam dos judeus palestinos por não mostrarem qualquer apreço
pela religião oficial estabelecida em Jerusalém (templo e sacerdócio)
e por não compartilharem com eles nenhuma aversão pelos
samaritanos. Muitos deles, depois de convertidos, entraram em
conflito com a liderança política e religiosa de Jerusalém e se
mudaram para Samaria onde iniciaram uma campanha evangelística
que resultou em muitas conversões. Isso ocorreu depois da morte de
Estevão. O líder na evangelização da Samaria foi o helenista Filipe.
Os samaritanos se constituíram no quarto contingente formador da
comunidade (Jo.4). Sua contribuição especial à teologia do grupo foi
a sua alta cristologia193. Eles, da mesma forma que os helenistas,

Qumran, consultar as seguintes obras: 1. Orrú, G., Os


manuscritos de Qumran e o Novo Testamento, São Paulo, Vida
Nova,1993 e 3; Poully, J. Qumrã, São Paulo, Paulinas, 1992.
193Chamamos de alta cristologia a concepção teológica que
157
aguardavam um messias celestial preexistente que dominava toda a
sabedoria e que viria comunicar essa sabedoria aos homens (Jo.4.25,
12.34, 16.30). Essa aceitação da alta cristologia provocou uma
dissensão irreconciliável entre os joaninos e os líderes do Judaísmo
Palestino. Estes acusaram os crentes joaninos de estarem adorando
outro Deus (politeísmo) em desrespeito às escrituras (Deuteronômio
6.4) e, por esse motivo, os expulsaram das suas sinagogas.

A época em que foi escrito o evangelho (ca. 90 d.C.)

No tempo em que o quarto evangelho foi escrito a Comunidade


Joanina, sediada em Éfeso, província da Ásia, estava enfrentando os
efeitos de um problema muito sério: Seus constituintes – que não
haviam ainda compreendido a necessidade de deixar de serem
judeus, tinham sido expulsos das sinagogas sob a acusação de
politeísmo, isto é‚ de estarem adorando outro Deus porque ensinavam
a preexistência de Jesus, como referido acima. No quarto evangelho,
mais que em qualquer outro escrito neotestamentário, encontramos a
defesa da alta cristologia pela afirmação da encarnação do Verbo
eterno (Jo.1-14). Pela leitura deste evangelho entendemos que
Jesus, embora humano, é perfeitamente divino. O quarto evangelho
mostra Jesus envolto em uma atmosfera gloriosa do princípio até o
fim de suas narrativas.
Muito embora nessa época os joaninos já houvessem adotado, de
conformidade com a sua tradição teológica, uma visão dualista do
mundo que dividia os homens em apenas dois grupos – os que estão
nas trevas e os que estão na luz – eles já faziam distinções em cada
um dos grupos mencionados. Eles criam ser os cristãos mais perfeitos
(e quem não o crê?), mas admitiam a existência de outros grupos de
cristãos que compartilhavam com eles algumas de suas doutrinas e

admite a pré – existência de Jesus Cristo e, por conseguinte, a


sua divindade. Por outro lado, a baixa cristologia só admite a
sua humanidade. A diferença fica evidente quando comparamos
os testemunhos de João Batista a respeito de Jesus que podem
ser recuperados dos evangelhos sinóticos e do quarto
evangelho. Neste último, a diferença dos sinóticos, João
declara que Jesus era maior do que ele porque já existia antes
dele mesmo ter começado a existir.
158
que p precisavam ser instruídos para chegar ao completo
conhecimento da verdade. Os que estão de fora, precisando,
portanto, ser ou evangelizados, ou combatidos, também podem ser
divididos em vários grupos. Vejamos como os joaninos faziam estas
divisões.
A leitura atenta do quarto evangelho nos permite identificar quatro
grupos de cristãos:
Os crentes joaninos, como o discípulo amado, que eram os mais
nobres porque nunca abandonaram o Mestre.
Os crentes da Igreja Apostólica, ligados a Pedro, que não eram tão
perfeitos quanto os joaninos porque não ficaram ao lado de Cristo no
momento de seu sofrimento, mas o negaram e se afastaram dele
(João 13.36-38).
Os cripto cristãos, como José de Arimateia (João 19.38), que criam
em Jesus, mas não revelavam sua crença publicamente por medo de
serem expulsos da sinagoga (Jo.12.42).
Os cristãos de fé inadequada, como os irmãos de Jesus (Jo.7.3-5)
que não aceitavam toda a liturgia convencional e como aqueles outros
que se afastaram de Jesus depois de haverem ouvido o discurso a
respeito da eucaristia (Jo.6.60-66).
Além dos cristãos, que eram aliados, havia os adversários. Uma vez
que o que o quarto evangelho tem um propósito apologético, a
identificação dos adversários ‚ essencial à sua compreensão. De sua
leitura podemos inferir a existência de alguns grupos de adversários,
que ainda permaneciam nas trevas:
Os batistas – discípulos de João Batista que ainda não haviam se
convertido e que faziam oposição aos membros da comunidade.
Entendemos a sua oposição pela ênfase do evangelho em afirmar
que João era menor que Jesus.
Os judeus não convertidos que perseguiam os crentes (Jo.9), em sua
maioria, líderes das sinagogas que foram responsáveis pela expulsão
dos Joaninos.
O mundo – gentios não convertidos que fazem oposição ao
evangelho.

159
A época em que foram escritas as epístolas
O período em que foram escritas as epístolas joaninas está marcado
pelo surgimento de uma dissidência muito grave dentro da própria
comunidade. Surgiram homens que abraçando uma teologia
gnóstica, ensinavam que Jesus Cristo não tinha experimentado uma
vida real na carne, que sua vida carnal foi apenas uma aparência. É
o que conhecemos pelo nome de docetismo. Além disso, os
dissidentes ensinavam a doutrina da impecabilidade do crente e
levavam os crentes ao desespero ensinando uma escatologia
plenamente realizada que não lhes deixava nada a esperar. Essa
dissidência levou à dissolução da comunidade. Os inimigos de dentro
são mais perigosos que os de fora.

160
O verbo

Verbo (do latim “verbum”) é a palavra usada para


traduzir o grego “lógos”. Em nossa língua pode ser
traduzido como “a palavra”. Seu sentido, entretanto,
é muito mais rico. De “lógos” deriva lógica, nome
dado à parte da filosofia que descreve a ordenação
do universo.

O verbo não é apenas a palavra que Deus fala, é


também a expressão da Sua sabedoria na
organização da obra criada. É algo que precede,
ordena e dá sentido à própria criação.

Sem o lógos esse mundo seria o caos. Por causa da


presença do lógos ele é o cosmos. Portanto, nada
mais justo do que identificar Jesus Cristo que
denunciou e corrigiu a desordem vigente no mundo
de seu tempo com o lógos que assumiu a
encarnação e armou sua tenda no meio do nosso
acampamento,
161
2. O quarto evangelho
Propósitos
A expressão “quarto evangelho” popularizada pelo grande autor
Charles Haroldo Dodd194, nos é extremamente útil na medida que nos
libera de um compromisso “a priori” com qualquer hipótese a respeito
de autoria desse livro. Ele é tão peculiar que talvez nem seja muito
apropriado chamá-lo evangelho.
No desejo de entendê-lo melhor, vamos nos ocupar das seguintes
tarefas: 1. Discutir sucintamente as hipóteses sobre a autoria do
quarto evangelho. 2. Discutir a época e o local de composição deste
evangelho. 3. Discutir sucintamente o objetivo teológico, a mensagem
central e as características básicas deste evangelho e 4. Apresentar
as principais divisões do livro.

O problema da autoria
O Corpus Joanino
Assim como não estudamos a autoria de cada uma das epístolas
paulinas independentemente das demais, estudamos a autoria do
conjunto ou corpus, também não estudamos a autoria dos escritos
joaninos independentemente uns dos outros, fazemos o estudo do
conjunto. Tradicionalmente a autoria das três epístolas e do quarto
evangelho tem sido atribuída ao apóstolo João com base em
semelhanças de textos, especialmente quando comparamos o
prólogo do quarto evangelho com o da primeira epístola. Hoje, à luz
do conhecimento do mecanismo de transmissão de tradição oral via
comunidades primitivas, esse conceito vem sendo atualizado.

Evidências internas
O quarto evangelho, da mesma forma que os três primeiros, não
identifica de maneira explícita quem foi o seu autor. Existe, entretanto,
uma referência a ele no epílogo:
E Pedro, virando-se, viu que o seguia aquele discípulo a quem Jesus
amava, o mesmo que na ceia se recostara sobre o peito de Jesus...

194DODD, C. H. A interpretação do quarto evangelho, São


Paulo, Paulinas, 1977. 628 pp.
162
Este é o discípulo que dá testemunho destas coisas e que as
escreveu e sabemos que o seu testemunho é verdadeiro 195.
Esse comentário foi adicionado por um redator tardio (o segundo
autor) que usou o prestígio que aquele discípulo a quem Jesus amava
(o primeiro autor) possuía na comunidade para testemunhar da
veracidade do conteúdo do testemunho. Sabemos que o seu
testemunho é verdadeiro porque o conhecemos e não podemos
admitir que ele minta (diferentemente dos que estão ensinando falsas
doutrinas em nosso meio).
O fato de o quarto evangelho identificar o autor da maior parte de seu
conteúdo como sendo o discípulo a quem Jesus amava nos permite
direcionar o estudo da sua autoria para a identificação deste discípulo.
Como já vimos anteriormente, a hipótese mais aceita é a de que ele
seria João, o filho de Zebedeu. O estudo detalhado do livro parece
apoiar irrestritamente esta hipótese uma vez que ele nos revela que
o autor do livro era alguém que privava da intimidade de Jesus Cristo,
tinha o Hebraico como língua nativa e conhecia muito bem os lugares
da Palestina mencionados no livro.

Evidências externas
A tradição mais antiga atribui a João, filho de Zebedeu, irmão de
Tiago, e participante do círculo mais íntimo dos apóstolos a autoria do
quarto evangelho. Assim é que Irineu da Gália (Século II) declara que
João, filho de Zebedeu, escreveu o evangelho na cidade de Éfeso
quando já estava muito velho. Este testemunho tem sido aceito como
verdadeiro porque Irineu foi discípulo de Policarpo de Esmirna o qual,
por sua vez foi discípulo do próprio João. Talvez por causa desta
palavra de Irineu a autoria das três epístolas tenha sido atribuída
também ao mesmo João uma vez que o adjetivo presbítero, que
aparece na saudação da segunda e terceira epístolas, pode ser
traduzido como velho.
Hoje, à luz do estudo da transmissão de conhecimentos via
comunidades e escolas, admite-se que dois homens trabalharam na
composição do evangelho. O primeiro, conhecido com o discípulo
amado, era um judeu palestino, amigo íntimo de Jesus, mas não
obrigatoriamente do grupo dos doze. O segundo, que podemos
chamar de o evangelista, ou o ancião, foi o que deu a redação

195João 21.20-25
163
definitiva ao evangelho, introduzindo nele as referências à pessoa do
discípulo amado e outros comentários.

Outros nomes
Também foram apontados como possíveis autores do evangelho
Lázaro de Betânia (por ser muito amigo de Jesus) e João Marcos.
Contra este segundo pesa a alegação de que não haveria razão
plausível para ele escrever dois evangelhos e os dois apresentarem
estilos tão diferentes.

Data e local de composição


De acordo ainda com o testemunho de Irineu da Gália, o quarto
Evangelho foi escrito na cidade de Éfeso, capital da província da Ásia.
Essa é, até hoje, a hipótese mais aceita. A data mais recente para a
composição deste livro é dada pelo papiro p52, descoberto no Egito
e datado do ano 130. Este papiro, apenas um fragmento do capítulo
18 do quarto evangelho, tem grande importância por ser o manuscrito
mais antigo que possuímos em termo de literatura neotestamentária.
A data mais antiga é fixada no ano 70 por admitirmos a precedência
dos sinópticos sobre o quarto evangelho. Aceita-se hoje que o texto
original do livro foi fechado no ano 90, mas não se manteve intocado
tendo sofrido a adição da passagem que descreve o livramento da
mulher pecadora (8.1-11).

Objetivo teológico e mensagem central


Este evangelho nos mostra, mais que qualquer outro, um elevado
nível de elaboração teológica. Seu texto contém uma declaração do
objetivo do autor:
Jesus, na verdade, operou na presença de seus discípulos ainda
muitos outros sinais que não estão neste livro; estes, porém estão
escritos para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para
que, crendo, tenhais vida em seu nome 196.
Observemos que o propósito do autor é por um lado apologético. Ele
pretende deixar demostrado – contra os argumentos de seus
opositores – que Jesus é o Cristo (o Messias esperado pela
comunidade palestina) e o Filho de Deus (o Messias esperado pela
comunidade da diáspora e pelos samaritanos). Por outro lado, ele tem

196Jo. 20.30,31.
164
um objetivo evangelístico. Ele pretende que os seus leitores
conheçam a verdade, creiam nela e tenham vida.
A verdade mais importante que podemos aprender no quarto
evangelho é que Jesus Cristo é, em todos os tempos e lugares, o
único capaz de atender a todas as expectativas e de satisfazer a
todas as necessidades de qualquer ser humano independentemente
de raça, língua, nacionalidade, nível cultural ou de qualquer outra
característica distintiva que possamos encontrar. Judeus criam nele
pelos sinais que fazia e gregos pelo conhecimento que demostrava
ter. Pobres o seguiam pelo alimento que proporcionava e ricos pela
paz interior que a riqueza não podia conferir. Judeus palestinos
encontravam nele o Filho de Davi, samaritanos encontravam nele o
profeta celestial preexistente, essênios nele achavam o messias
davídico e judeus da diáspora nele encontravam o messias de uma
ordem sacerdotal muito superior à de Levi.

Parte 1: O livro dos sinais – O testemunho de


Deus
O autor do quarto evangelho não se preocupou em contar a vida de
Jesus Cristo. A ênfase dada por ele aos sinais praticados durante o
ministério terreno de Jesus vem da sua concepção teológica que
entendia Jesus como o profeta semelhante a Moisés, um homem
celestial preexistente, a um tempo divino e humano. Assim como o
ministério de Moisés foi confirmado por muitos sinais o de Jesus
também o foi. O livro dos sinais não é uma obra biográfica e sim uma
obra apologética que visa provar aos líderes dos judeus que, naquele
tempo, tinham sua sede em Jâmnia, a divindade de Jesus.
A narrativa desses sinais também objetiva provar que Jesus, por ser
de natureza divina, tinha poder para subjugar os inimigos que o
homem temia: O poder da Lei e de seus representantes, as forças da
natureza, as doenças (cuja ocorrência era atribuída pelo povo
ignorante à atuação de demônios), e, também, a própria morte. Muitas
das passagens deste livro tem sido e continuarão sendo usadas como
permanente fonte de inspiração para a confecção de sermões
evangelísticos.
Primeiro sinal: Transformação da água em vinho nas bodas em
Caná da Galileia197 – O primeiro sinal apresentado pelo autor já nos

197Jo.2.1-11
165
mostra alguns dos critérios usados na escolha de todos eles. Em
primeiro lugar ele foi feito em público – uma festa de casamento –
diante dos olhos de muitas testemunhas. Adicionalmente, ele foi
objeto do exame de um especialista no assunto: O Mestre-sala,
provavelmente o único, além de Jesus Cristo, que não estava bêbado
durante o casamento, examinou o vinho recentemente chegado e
atestou sua qualidade superior. Esse sinal nos remete à crença
helênica de que Dionisos (Baco), o deus da vegetação e, portanto,
também do vinho, era capaz de transformar água em vinho
justamente porque era deus. Jesus, transformando água em vinho,
comprovava sua natureza divina e, fazendo o melhor vinho, mostrava
sua superioridade aos deuses greco-romanos.
Segundo sinal: Uma cura à distância198 - Nesta ocasião Jesus se
encontrava em Caná, a mesma cidade onde havia transformado a
água em vinho. Foi procurado por um homem cujo filho estava doente,
à beira da morte, na cidade de Cafarnaum, há quilômetros de
distância. Este lhe pede que restaurasse a saúde do filho. Jesus
prometeu àquele homem que seu filho não morreria e o despediu.
Chegando em casa aquele homem encontrou o filho curado e,
perguntando a que horas a melhora havia acontecido, recebeu a
informação de que foi exatamente na hora em que Jesus lhe disse
que seu filho não morreria. Esse milagre parece apontar para a
onipresença (virtude divina) de Jesus, que podia operar em dois
lugares diferentes ao mesmo tempo.
Terceiro sinal: Cura de um paralítico no sábado 199 - A cura do
paralítico no alpendre do tanque de Bethesda coloca em evidência a
onipotência de Jesus Cristo quando mostra que para ele o impossível
não existe. A crença popular dizia que periodicamente um anjo descia
naquele local e que o vento provocado pelo movimento de suas asas
agitava as águas. O primeiro que tocava as águas nesse momento
seria curado. A cura do paralítico era impossível porque ele não tinha
nenhuma chance de ser o primeiro a tocar as águas agitadas. Jesus
o curou sem necessitar das águas. Outro aspecto importante é que o
ex-paralítico saiu correndo e pulando imediatamente depois da cura
mesmo carregando o peso de uma paralisia de 38 anos de duração.
A experiência de qualquer pessoa que tenha sido submetida a uma
imobilização temporária depois de uma cirurgia ortopédica mostra

198Jo,4.43-54
199Jo.5.1-16
166
que é necessário um longo tempo de fisioterapia para a remoção dos
bloqueios articulares e para a recuperação da musculatura atrofiada.
Aquele homem imediatamente se levantou e saiu andando. Só Jesus,
por ser Deus, pode fazer semelhante coisa!
Quarto sinal – A multiplicação dos pães200 - Neste episódio Jesus,
dispondo apenas de cinco pães e dois peixes, alimenta uma multidão
de milhares de pessoas. Esse sinal aponta para a onipotência do
Mestre que não era limitado por falta de poder. Alguns críticos querem
ver aqui uma interpretação alternativa segundo a qual o milagre
consistiria apenas em estimular a solidariedade do povo e levar cada
um a expor o alimento que trazia escondido. Ainda que assim fosse
seria um milagre, mas, não parece que essa interpretação esteja
coerente com objetivo teológico do autor do evangelho.
Quinto sinal – Jesus caminha sobre as águas 201 –- Mais uma vez,
a mitologia helênica nos ajuda a entender o significado de uma
perícope bíblica. Os gregos acreditavam que Poseidon (Netuno para
os romanos) podia caminhar sobre as águas porque era deus dos
mares. Mostrando que Jesus era capaz de caminhar sobre as águas,
o autor, mais uma vez coloca um argumento a favor da divindade de
Cristo. A referência ao vento impetuoso lembra a figura de outro deus
da mitologia grega: Éolo que controlava a fúria dos ventos.
Sexto sinal – Jesus cura um cego de nascença 202 – A narrativa
deste sinal está muito bem documentada, inclusive com a referência
a um processo instaurado pelos fariseus no qual o cego e os pais dele
foram ouvidos. O peculiar deste sinal, que aponta mais uma vez para
a superioridade de Jesus, é colocado pelo próprio autor no texto:
“Nunca se ouviu dizer que alguém houvesse aberto os olhos a um
cego de nascença”. Para os judeus a cura de um cego de nascença
era um dos três milagres de competência exclusiva do Messias.
Dessa forma foi feito imediatamente um inquérito para comprovar sua
veracidade. O fato de o cego ter sido curado é um argumento
fortíssimo a favor da messianidade de Jesus Cristo e esta é a razão
por que esse sinal foi incluído na coleção de relatos.

200Jo.6.1-15
201Jo.6.16-24
202Jo.9. 1-41
167
Sétimo sinal – A ressurreição de Lázaro de Betânia 203 -
Ressurreição era uma doutrina judaica. Os gregos, alternativamente
acreditavam na imortalidade da alma e na possibilidade de um retorno
à vida em outro corpo de carne (reencarnação). Esse sinal, portanto,
é colocado visando abalar as concepções judaicas. O diferente neste
sinal é que os judeus, bem como outros povos da antiguidade,
admitiam que a ressurreição só era possível enquanto se preservava
a integridade do corpo do defunto, o que, em países frios. tem um
limite aproximado de três dias. Jesus, ressuscitando um homem,
morto por um tempo superior a este não estava apenas devolvendo a
vida, estava também devolvendo a integridade a um corpo em
princípio de degradação. Ele estava criando matéria nova, coisa que
nenhum homem, apenas Deus, podia fazer.

Os testemunhos dos homens


O autor apresenta alguns testemunhos de pessoas que eram
consideradas dignas de confiança pela comunidade ou que
representavam um número significativo de testemunhas oculares.
Dentre eles destacamos Nicodemos, João Batista e toda uma aldeia
de Samaritanos.
O testemunho de Nicodemos 204 se descreve dessa forma: “Ora,
havia entre os fariseus um homem chamado Nicodemos, um dos
principais dos judeus. Este foi ter com Jesus, de noite, e disse-lhe:
Rabi, sabemos que és Mestre, vindo de Deus; pois ninguém pode
fazer estes sinais que tu fazes, se Deus não estiver com ele.”
Nicodemos é descrito como fariseu, homem muito religioso,
conhecedor da lei, e principal (príncipe, líder) dos judeus. Era alguém
com autoridade para analisar os fatos e emitir opinião sobre eles. Ele
descreve sua conclusão de maneira simples: Tu, Jesus és Mestre de
origem divina porque de outra forma não poderias fazer os sinais que
tu fazes.
João o batista, que era tido por todos os judeus como profeta, portanto
uma pessoa de cuja boca saiam palavras de Deus, se referiu a Jesus
dizendo: “Este é aquele de quem eu disse: o que vem depois de mim
passou adiante de mim porque antes que eu existisse ele já

203Jo.11.1-44
204Jo 3.1,2.
168
existia”.205 Ao proclamar a preexistência de Jesus, João proclamava
também sua divindade. João era reconhecido por todos como profeta
e, portanto, sua palavra não podia ser posta em dúvida.
Um grupo de samaritanos que ouviram a palavra da mulher e foram
por ela levados a Jesus declararam: “e diziam à mulher: Já não é pela
tua palavra que nós cremos; pois agora nós mesmos temos ouvido e
sabemos que este é verdadeiramente o salvador do mundo”. 206

Parte 2: O livro da Paixão


O livro da paixão (11.55 – 20.31), incluindo o testamento de Jesus
(13.1-17), a hora da glorificação na cruz (18-19) e o Dia do Senhor
(20), é a parte que o quarto evangelho tem em comum com os
evangelhos sinóticos. Quando fazemos o estudo deste texto em
conjunto com o correspondente nos sinóticos encontramos algumas
diferenças, mas não incompatibilidades com os demais relatos.

Texto em discussão: O livramento da mulher


pecadora (João 7.53 – 8.11)
Este episódio tem a sua autenticidade contestada 207 nos informa que
este texto, além de não figurar nos manuscritos mais antigos, aparece
algumas vezes inserido no evangelho de Lucas. Conclui ele que " -
embora esta secção não faça parte dos evangelhos originais,
podemos estar gratos pela sua preservação, porquanto ilustra
admiravelmente bem diversas coisas que precisamos compreender.
Vemos nela o espírito empedernido dos fariseus para com uma
miserável criatura humana, apanhada no ato do pecado, ".

Esboço do livro
PRÓLOGO (1-1.18)
O LIVRO DOS SINAIS (1.9-11.54)

205Jo 1.15
206 Jo.4.42
207Champlin, R. N., O Novo Testamento Comentado Versículo
por Versículo, São Paulo, Milenium, 4a impressão, 1983. Vol.
2, p. 395 ss.
169
Primeiro sinal – a água transformada em vinho em Caná.
Segundo sinal – uma cura à distância
Terceiro sinal – cura de um paralítico no sábado
Quarto sinal – multiplicação dos pães
Quinto sinal – caminhando sobre as águas
Sexto sinal – cura de um cego de nascença
Sétimo sinal – ressurreição de Lázaro
O LIVRO DA PAIXÃO (11.55 – 20.31) incluindo o testamento de Jesus
(13-17), a hora da glorificação na cruz (18-19) e o Dia do Senhor (20).
EPÍLOGO (21.1-25) incluindo a pesca milagrosa.

170
Uma cristologia

A primeira tarefa importante dos cristãos dos


primórdios foi a de dar uma definição aos de
fora a repeito da identidade do fundador de
seu grupo. “Quem é esse Jesus de Nazaré que
vocês chamam de Cristo?

Muitas respostas foram tentadas. Para judeus


ele era o salvador prometido por meio dos
profetas, nas escrituras. Entretanto, outras
versões existiam.

No final do primeiro século, o cristianismo foi


invadido por cultuadores de religiões de
mistério que acreditavam que o Jesus era
apenas “o salvador do mundo”, um ser divino,
mas não humano que veio a esse mundo para
ensinar aos homens o caminho de retorno
para sua origem: Deus.

Para esses cristãos, que ficaram conhecidos


171
como gnósticos, Jesus nunca teve uma vida
verdadeiramente humana, mas apenas uma
aparência (cenosis) de vida. Ensinavam o que
3. Gnosticismo
Propósitos
O Gnosticismo foi um movimento religioso que se infiltrou no
Judaísmo do segundo templo e, a partir dele, no Cristianismo
nascente. Caracteriza-se especialmente por sua capacidade de
sincretizar conceitos e práticas de outras religiões.
A literatura joanina apresenta invasões gnósticas na igreja do final do
primeiro século e as reações que essa invasão provocou. Para
entendê-la precisamos: 1. Conceituar Gnosticismo e Docetismo. 2.
Delimitar o período histórico em que o Gnosticismo interagiu com o
Cristianismo. 3. Listar as principais escolas gnósticas evidenciando
suas particularidades. 4. Listar os principais autores gnósticos com
suas obras. 5. Descrever sucintamente as principais doutrinas
práticas e ritos gnósticos. 6. Listar os principais anti-gnósticos com
respectivas obras.

O que é Gnosticismo?
O nome Gnosticismo deriva da palavra grega “gnosis” que significa
conhecimento revelado de caráter esotérico, em contraste com o
conhecimento empírico e experimental (episteme) 208 . Podemos
conceituar o Gnosticismo como um sistema filosófico e religioso no
qual a salvação é alcançada pelo conhecimento de nomes e fórmulas
mágicas que o adepto usará após a morte, na viagem de retorno para

208Procurando salvar o homem não pelo reconhecimento e


submissão a Deus, mas pelo conhecimento e pela " ciência do
bem e do mal", a gnose ao mesmo tempo é um ateísmo prático
e uma forma de racionalismo. " Concretamente, escreve o prof.
Drago Romano, o gnosticismo que contaminou nossa
civilização é uma forma herética do Cristianismo. Os gnósticos
tinham conhecimento do dado revelado mas dele serviam-se
como matéria a ser informada pela racionalidade e até pela
imaginação para [...] produzir cosmologias e antropologias
fantasiosas" A GNOSE E A " MORTE DE DEUS" Hélio Drago
Romano
http://www.permanencia.org.br/revista/filosofia/drago3.htm
172
suas origens. O Gnosticismo da atualidade é organizado na forma de
sociedade secreta de cunho esotérico, análogo e relacionado à
Ordem Rosa-cruz, à Teosofia e à Maçonaria.
Ensinavam os adeptos deste sistema religioso que o homem, cujo
espírito se origina do pleroma 209 , deve após a morte, quando se
libera da escravidão da matéria, empreender uma viagem de retorno
às suas origens. Nessa viagem ele deverá enfrentar a oposição dos
governantes das sete esferas celestes210, os arcontes, que tentarão
impedir a sua reintegração no pleroma211.
Para ser vitorioso nesta viagem, o espírito deveria conhecer os nomes
dos arcontes e as fórmulas mágicas que seriam usadas para iludi-los
e conseguir a passagem para a esfera superior. Essas fórmulas
mágicas, segundo os mestres gnósticos, haviam sido reveladas aos
primeiros líderes pelo “redentor que veio do céu”, atravessando as
sete esferas, e que só poderiam ser reveladas aos iniciados de sua
escola. Dessa forma, o Gnosticismo pode ser conceituado
essencialmente como uma religião de mistério, ou esotérica, que
distinguia os iniciados dos não iniciados.

209Pleroma é considerado como Plenitude, o Todo, o Tao.


Acredita-se que sua definição esteja além da compreensão
humana, pois os antigos gnósticos o descrevem como o nada.
210As sete esferas correspondem aos sete corpos celestes
conhecidos na ocasião: Lua, Sol, Mercúrio, Vênus, Marte,
Júpiter e Saturno. Para os gnósticos cada um deles é governado
por um príncipe ou arconte cuja função é dificultar a
reintegração do espírito ao pleroma a qual ocorre após a morte.
211Ef.6.10-12 – Quanto ao mais, sede fortalecidos no Senhor e
na força do seu poder. Revesti-vos de toda a armadura de Deus,
para poderdes ficar firmes contra as ciladas do diabo; porque a
nossa luta não é contra o sangue e a carne, e sim contra os
principados e potestades, contra os dominadores deste mundo
tenebroso, contra as forças espirituais do mal, nas regiões
celestes.
173
Quando o Gnosticismo foi importante?
O Gnosticismo floresceu especialmente entre os séculos II antes de
Cristo e o século V da era cristã. Suas influências no Cristianismo se
fazem sentir especialmente a partir das três últimas décadas do
primeiro século. O Gnosticismo propagou-se no mundo helenístico
praticamente a reboque do Cristianismo e interagiu com ele ativa e
passivamente. É possível encontrar alguma influência gnóstica na
igreja de Corinto por volta do ano 50, mas seu desenvolvimento mais
expressivo só se deu no final do primeiro século. Em decorrência de
sua tradição sincrética o Gnosticismo interagiu ricamente com o
Judaísmo do segundo templo e com o Cristianismo nascente.
É interessante considerar que o Gnosticismo identificou o seu
“redentor que veio do céu” com figuras do messias judaico e com o
próprio Jesus Cristo. A escola docética 212, especialmente, mostrava
Jesus como um personagem que desceu do céu para esclarecer a
humanidade. Essa escola deixou a sua influência marcada
especialmente na literatura joanina 213 onde Jesus é apresentado
como o “salvador do mundo”.214

Quais foram as principais escolas gnósticas?


São descritas duas origens para o pensamento gnóstico: Antioquia
(Síria) e Alexandria (Egito). Estas foram duas metrópoles importantes
no período de influência helenística que se sucedeu à morte de
Alexandre, o grande. A partir destes centros de influência política e
filosófica da antiguidade surgiram quatro escolas de pensamento
gnóstico: Siríaca, Alexandrina, Dualista e Antinomiana. Cada uma
destas escolas desenvolveu nomenclaturas, doutrinas e práticas

212Esta escola é chamada docética por não admitir a realidade


da humanidade de Jesus Cristo. Para eles, essencialmente
dualistas, o espírito do “redentor que veio do céu”,
essencialmente bom, nunca poderia habitar em um corpo de
matéria que era essencialmente má. Dessa forma, a vida de
Jesus na carne não era real mas apenas aparência (Gr. Dokéo).
213“Eu sei, respondeu a mulher, que há de vir o Messias,
chamado Cristo, quando ele vier, nos anunciará todas as
coisas” (João 4.25).
214Jo.4.42 e I Jo.4.14.
174
particulares. O Gnosticismo, da mesma forma que o Cristianismo
primitivo, apresentava uma grande diversidade de doutrinas e de
liturgias.
A escola siríaca, originada na Ásia ocidental, é a mais antiga de todas.
Dela participaram pessoas como Simão mago, Menandro, Cerdo e
Cerinto 215 . Os grupos conhecidos como ofitas, Naasenos 216 e
ebionitas também se filiavam a esta escola. Sua cosmogonia 217
ensinava que o mundo havia sido criado por 7 anjos demiurgos a
partir da matéria (hylos) preexistente e que o homem foi feito por um
deles que identificavam como Deus dos Judeus. O Bom Deus, por
piedade, dotou-o com a centelha da vida que é o espírito.
A escola helenística, originária de Alexandria no Egito, era
essencialmente dualista. Seus representantes mais conhecidos foram
Basileus e Valentino. Eles ensinavam a existência de uma divindade
andrógena que era, ao mesmo tempo “O Bom Deus” e “A Mãe
Luminosa”. Essa divindade gerava emanações aos pares (um macho
e uma fêmea) que eram divindades menores (hipóstases) que
ajudavam a preencher a distância entre o Bom Deus e o homem.
A escola dualista teve como principais representantes Potitus,
Basiliscus e Lucanus que eram discípulos de Marcion, aquele que,
pela primeira vez elaborou uma lista com os livros sagrados do Novo
Testamento. Eles ensinavam que o Deus de Jesus Cristo não era o
mesmo Deus do Antigo Testamento. Enquanto este era um demiurgo,
o Deus de Jesus era o Verdadeiro Deus.
A escola antinomiana (adversária da lei) é representada pelos
nicolaítas citados no Apocalipse de João 218. Ensinavam que a Lei e
a Moral foram impostas pelo Deus dos judeus que, segundo eles, não
era o verdadeiro Deus. Por esta razão não estavam obrigados a
observar nenhuma das duas. Suas vidas eram completamente
desregradas e libertinas.

Quais foram as principais obras do

215Cerinto foi contemporâneo do autor do quarto evangelho.


216Adoradores de serpentes.
217Cosmogonia – Explicação para a origem do universo e do
mundo em que vivemos.
218Ap.2.6, 2.15
175
Gnosticismo?
Muitas das obras que hoje conhecemos como pseudoepígrafos do
Novo Testamento são de natureza gnóstica: O evangelho de Tomé,
chamado Dídimo, O evangelho da Verdade e o Evangelho de
Valentino são as mais conhecidas.
O evangelho de Tomé219 - Era o evangelho canônico dos gnósticos.
É constituído por uma série de ditos que Jesus teria dado a Tomé que,
segundo os gnósticos teria sido seu irmão gêmeo. A estrutura deste
evangelho lembra o da fonte de ditos conhecido como documento Q.
Reproduzimos abaixo alguns de seus versículos iniciais:
Estes são os ensinamentos secretos que Jesus falou e que Dídimo
Judas Tomé registrou. 1 – E ele disse “Quem descobre a
interpretação destes ditos não provará a morte”. 2 – Jesus disse:
“Aqueles que buscam não devem desistir da busca até que achem
o que é procurado. Quando eles acharem ficarão perturbados.
Quando estiverem perturbados eles se maravilharão e reinarão
sobre todos [e depois que reinarem eles descansarão]”. 3 – Jesus
disse: “Se seus líderes lhe disserem, ' vejam o reino (do Pai) está
nos céus então os pássaros precederão vocês.
O evangelho de Maria Madalena 220 - O evangelho de Maria
Madalena foi publicado em 1955, após a descoberta da Biblioteca de
Nag Hammadi. O texto sobrevive em dois fragmentos gregos do
século III e numa tradução mais longa para o copta datada do século
V, nos quais o testemunho de uma “mulher” precisou pela primeira
vez ser defendido. No texto fragmentado, os discípulos fazem
perguntas sobre o Salvador ressurreto e recebem respostas. Depois
eles se lamentam, dizendo:
“Como poderemos ir aos gentios e pregar o Evangelho do Reino
do Filho do Homem? Se nem Ele foi poupado, como o seremos

219 O Evangelho de Tomé Traduzido e comentado por Jean-


Yves Lelooup, Tradução Brasileira por Guilherme João de
Freitas Teixeira. Petrópolis, Vozes, 1986
220Clair Namad & Margaret Bailey, Ensinamentos ocultos de
Maria Madalena, Tradução Rodrigo Alves, Rio de Janeiro,
Nova Era, 2007.
176
nós?” E Maria os incita a ter coragem: " Vamos antes louvar sua
grandeza, pois Ele nos preparou e tornou-nos homens."

Depois ela traz uma visão do Salvador que ela tinha tido e relata a
sua conversa com Ele, o que mostra influências Gnósticas. A visão
dela não encontra aprovação universal:
“Mas André respondeu e disse aos irmãos, ' Digam o que vocês
pensam com respeito ao que ela disse. Pois eu não acredito que o
Salvador tenha dito isso. Pois certamente tais ensinamentos são
de outras ideias'.”. "Pedro também se opôs a ela com relação a
esses assuntos e perguntou-lhes sobre o Salvador. 'Teria ele, então,
falado secretamente a uma mulher de preferência a nós e não
abertamente? Devemos nós voltar e escutá-la? Terá Ele a
preferido a nós?'

Uma grande parte do fundamento é expresso como um diálogo entre


Maria e os discípulos onde Maria é a pessoa que responde às
perguntas. Após a partida de Jesus, conforme o texto, a autoridade
da igreja foi dada a Maria, indicando que o texto se tenha originado
em uma corrente que tinha em Maria sua fundadora e a considerava
mais importante que os outros apóstolos. Parte desse favorecimento
da única discípula conhecida pode ter sido devido à sua habilidade
como mulher de representar a importante figura de companhia
feminina de Cristo, conforme o evangelho gnóstico mostra 221.
O evangelho de Judas Iscariotes – Descoberto recentemente, narra
uma conversa em que Jesus teria dado revelações especiais a Judas
e louva o fato de o apóstolo o haver ajudado a se livrar do corpo de
matéria no qual estava aprisionado
O evangelho de Valentino – Escrito por volta do terceiro século,
começa com as seguintes palavras: 1. Quando ressuscitou dentre os
mortos, Jesus passou doze anos falando com os seus discípulos. 2.
E ensinava-lhes os lugares não somente dos primeiros preceitos
como também do primeiro mistério, o que está no interior dos véus,
no interior do primeiro preceito, que é o próprio vigésimo quarto
mistério, e assim também as coisas que se acham mais além, no

221Wikipedia:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Evangelho_de_Maria
177
segundo lugar do segundo mistério, que está antes de todos os
mistérios.

Quais foram as suas principais doutrinas?


Teologia
O Gnosticismo é essencialmente panteísta. Os gnósticos admitem a
existência de um Deus superior, absolutamente transcendente que
não pode ter nenhum contato com a matéria, nem mesmo no ato da
criação. Seu Deus é tão transcendente que eles não conseguem
desenvolver uma teologia. É um ser andrógino também conhecido
como Deusa mãe222. Dele emanam divindades menores, geralmente
aos pares, uma masculina e outra feminina que são suas hipóstases.
O Deus maior, com suas emanações de primeira ordem, constitui o
Pleroma.
Das divindades primárias emanam outras, secundárias. Dentre estas
divindades destacam-se os arcontes: governantes tirânicos das
esferas celestiais que se apresentam como se fossem deuses e que
fazem oposição ao espírito desencarnado que empreende sua
viagem de retorno ao pleroma.
A matéria, finalmente, é uma divindade no máximo grau de
degradação. Por esse motivo ela deve ser periodicamente destruída
pelo fogo e restaurada ao seu estado primitivo.

Cosmogonia e antropologia

222Outros textos em Nag Hammadi apresentam uma diferença


marcante entre as fontes “heréticas” e as ortodoxas: as fontes
gnósticas utilizam, de modo constante, o simbolismo sexual
para descrever Deus No entanto, em vez de descrever um Deus
masculino e monístico, muito desses textos falam de Deus
como uma díade que abraça tanto elementos masculinos quanto
femininos. Pagels, E. Os Evangelhos Gnósticos, Trad. Marisa
Motta, Rio de Janeiro, Objetiva, 2006. Pág. 54.
178
Como ocorre em qualquer outra doutrina, inclusive no Cristianismo,
os mestres gnósticos acreditavam ter respostas para as três grandes
perguntas do ser humano: De onde viemos, quem somos e para onde
vamos? 223 A resposta para as duas primeiras perguntas exigem a
elaboração de uma cosmogonia 224 e de uma antropologia 225 ,
respectivamente. A resposta para a terceira exige a elaboração de
uma escatologia226 e de uma soteriologia227.
Para eles o cosmos ou universo é formado por dois princípios. O
primeiro é o princípio numinoso ou espiritual, o segundo é o princípio

223Este conhecimento ou gnose, por si só, opera a redenção de


todo o mal, tornando o homem um ser imortal (pela disciplina
iniciática). Já as principais características do gnosticismo atual
podem ser resumidas da seguinte forma: A gnose é o
conhecimento do que fomos (vidas passadas), do que somos
(ontologia), de onde viemos (cosmologia), de onde estamos
(conhecimento científico) e para onde iremos (escatologia).
Isso implica em mergulhar profundamente dentro de nós
mesmos para buscar o auto-conhecimento e o resgate da
consciência de nossas vidas passadas, do que temos dentro de
nós, em recônditas profundezas, em forma de qualidades,
virtudes, dons e material psicológico para ser usado, trabalhado
e transformado. http://rsguimaraes.wordpress.com/teologia-
gnostica/
224Cosmogonia – a doutrina da criação.
225Antropologia – a doutrina do ser humano. Preocupa-se com
a natureza divina do homem e com a existência de uma alma
imortal dentre outras coisas.
226A escatologia é a doutrina que trata do futuro, do que
acontecerá no fim. Ela se divide em escatologia individual e
escatologia cósmica. Na escatologia individual estudamos o
que acontecerá o fim da vida do homem: morte, juízo,
ressurreição. Na escatologia cósmica nos ocupamos com o que
acontecerá no fim deste mundo: Volta de Cristo, Juízo final,
ressurreição de mortos, arrebatamento da igreja etc.
227Doutrina da salvação.
179
hílico ou material. Os dois se opõem sendo o princípio espiritual
essencialmente bom e o material essencialmente ruim 228. O princípio
material precisa passar por purificações periódicas no final de cada
era. Essas purificações são feitas com fogo. Os dois princípios não
podem conviver harmoniosamente. O Bom Deus, essencialmente
bom, não pode ter qualquer tipo de contato com a matéria,
essencialmente má, nem mesmo no ato da criação.
O homem compartilha a natureza do universo. Ele é um duplo
formado por um espírito de natureza divina e por um corpo, de
natureza hílica. Três classes de homens são definidas: Os hílicos ou
materiais nos quais predomina a matéria, os pneumáticos ou
espirituais nos quais predomina o espírito e os psíquicos (com alma)
nos quais matéria e espírito se equilibram229.

Escatologia e soteriologia
Após a morte, a parte divina de cada ser humano deve empreender a
viagem de retorno à sua origem (o pleroma) para atingir a salvação.
Esse conceito de salvação é desvinculado da maneira como o homem
vive e, portanto, não envolve nenhuma formulação de caráter ético ou
sacramental. Se o que produz a perdição do homem não é seu
pecado e sim a sua ignorância, em contrapartida, o que produz a sua
salvação não é o arrependimento que possibilita o perdão e sim o
conhecimento que bane as trevas da ignorância.

228O mundo se fez manifestado quando o bem e o mal se


uniram. Quando Deus e o diabo, ou melhor, quando os deuses e
os diabos se fundiram como arquitetos; pois, em um princípio,
e antes que as coisas fossem absolutas, o Bem e o Mal não
eram compreensíveis (enquanto não tomaram a forma
humana).Krum-Heller, A., A Igreja Gnóstica, tradição
Huiracocha, São Paulo, Madras, 2007. Pág. 94.
229Os Gnósticos dividem, ainda, os seres humanos em três
condições distintas (que são como uma trindade), a que dão os
nomes de: physikoi (materiais), psichikoi (anímicos) e
pneumatikoi (espirituais). Krum-Heller, A., A Igreja Gnóstica,
tradição Huiracocha, São Paulo, Madras, 2007. Pág. 83.
180
Existe certa predestinação nesta doutrina. Os homens hílicos
(materiais) nunca serão salvos. Os homens pneumáticos (espirituais)
serão sempre salvos. Os homens psíquicos, por fim, poderão
alcançar a salvação se eles se submeterem, durante a vida terrena, a
um aprendizado no qual adquirirão o conhecimento dos nomes dos
arcontes que terão de enfrentar na viagem de retorno após e a morte
e os nomes e as fórmulas mágicas, ou encantamentos, para imobilizá-
los e obter passagem para a esfera imediatamente superior até que
alcancem o pleroma.
Observa-se que nesta doutrina não existe nada semelhante ao juízo
e que, em nenhuma instância, o homem pode ser questionado ou
responsabilizado pelas coisas que fez ou deixou de fazer durante a
vida.
Os gnósticos modernos passaram a admitir um caminho para a
salvação de todos, o caminho da reencarnação, por meio do qual um
homem hílico poderia voltar ao mundo como psíquico ou como
pneumático após a sua morte.

Cristologia – o docetismo
A cristologia predominante no Gnosticismo nos tempos bíblicos foi o
docetismo, palavra que significa aparência. Os gnósticos
identificavam o Cristo da Bíblia com o “Redentor que veio do céu” de
natureza essencialmente divina. Em decorrência dessa natureza
divina, diziam eles, o Cristo jamais poderia ter sido envolvido em um
corpo de matéria porque a matéria é essencialmente má e corrupta.
Ensinavam eles que o corpo de Cristo era imaterial, razão pela qual
gozava de propriedades muito particulares tais como atravessar
paredes para penetrar em recintos fechados, caminhar sobre as
águas do mar, andar sem deixar pegadas e se apresentar com
aspectos diferentes para duas ou mais pessoas ao mesmo tempo.
Enquanto um discípulo via Cristo com a aparência de um menino, o
outro, ao mesmo tempo, o via com a aparência de um velho. O corpo
de Jesus Cristo era, para eles, algo semelhante a um holograma. Esta
cristologia é inaceitável para cristãos autênticos porque se
acreditamos que Jesus Cristo não viveu em um corpo
verdadeiramente de carne teremos que aceitar que sua morte
também foi apenas de aparência.

181
O quarto evangelho coloca a tese contrária. No prólogo lê-se “o verbo
(Jesus) se fez carne”230e o testemunho de Tomé, reconhecendo a
divindade do Cristo foi dado depois de tocar o seu corpo, ver e sentir
as marcas dos ferimentos deixados pela execução na cruz. Também
a primeira epístola de João começa declarando a realidade da
humanidade de Jesus Cristo e conclui declarando e que qualquer
pessoa que negue esta realidade não senão o próprio anticristo.

Hamartologia – a origem do mal, o pecado e o


perdão
Um problema sério apresentado pelos mestres gnósticos aos cristãos
do final do primeiro século consistiu em sua maneira de interpretar o
comportamento humano. Para eles não existia nada nem mesmo
parecido com o que chamamos de pecado 231. Em consequência, o
homem não poderia ser responsabilizado por nenhum mal que
causasse a alguém ou por nenhum deslize ético que cometesse
porque, na qualidade de integrante do mundo material, não tinha
possibilidade de proceder de outra forma.
Lembremos que os cristãos seguem os hebreus na explicação para a
existência do mal no mundo. Para ambos, Deus criou um mundo bom
e perfeito sem qualquer sombra de imperfeição (Gênesis 1.31). O mal
entrou no mundo por causa dos anjos que se rebelaram, mantiveram
relações proibidas com as mulheres e lhes ensinaram todas as
espécies de males levando-as a se rebelarem também é a cometerem
todos os tipos de pecados (Gênesis 6.1-5, Apocalipse de Enoque,
livro 1, capítulo 8).
Para os gnósticos o mundo é essencialmente mal porque foi criado
por um deus inferior que o construiu imperfeito e corrompido. Dessa

230Jo.1.14.
231A Igreja Gnóstica não aceita pecados; mas, sim, erros;
porque parece um absurdo fazer acreditar que os pecados serão
perdoados, quando ninguém pode se arrogar esse poder, nem
prestar a menor ajuda nestes problemas, em que só é
responsável a personalidade de cada um. Krum-Heller, A., A
Igreja Gnóstica, tradição Huiracocha, São Paulo, Madras, 2007.
Pág. 108.
182
forma, o mundo não pode produzir nada de bom porque sua natureza
é corrompida por origem e o homem, parte dele, não pode ser
responsabilizado por nada de mau que faz. O pecado simplesmente
não existe.
Os gnósticos da escola antinomiana se recusavam a obedecer aos
preceitos da lei e a observar os mais elementares princípios da ética.
Para eles, lei e ética eram coisas de um deus menor, o deus dos
judeus. Dessa forma, nada do que o homem fizesse nesta vida, de
bom nem de ruim, teria influência na viagem de retorno ao pleroma
após a morte.
Um dos maiores problemas enfrentados pelo autor da primeira
epístola joanina foi enfatizar a existência do pecado como resultado
de uma escolha livre e consciente de cada ser humano e a
consequente responsabilidade de cada um pelo bem e pelo mal que
comete. Chamou também a atenção de seus leitores para a
necessidade de obter perdão pelos pecados cometidos. Esse perdão
teria que vir obrigatoriamente de Deus.

Ressurreição – negavam a ressurreição.


Os gnósticos acreditavam que a matéria era essencialmente má.
Libertar-se dela pela morte era um benefício inestimável. Assim
sendo, não haveria nenhuma razão para que um morto ressuscitasse
e voltasse a viver sob a escravidão da matéria. Os gnósticos
modernos, entretanto, assimilaram dos espíritas a crença na
reencarnação.

Paracletologia – o espírito democratizado


Os mestres gnósticos ensinavam que um só e o mesmo espírito era
derramado sobre todos os homens. Em um período em que a
estabilidade da igreja dependia essencialmente da autoridade de sua
liderança, porque ainda não havia o testemunho escrito contido hoje
nos livros canonizados, essa interpretação introduzia um fator de
instabilidade social porque, qualquer um membro que se sentisse
inspirado pelo espírito, se achava com o direito de questionar os
ensinamentos do líder e de ir contra as suas ordens.

Ritos e práticas gnósticas


Batismo – Os gnósticos praticavam o batismo que era
frequentemente repetido para o mesmo seguidor da seita. Todas as

183
seitas gnósticas possuíam esse rito, de alguma forma; no Mandeísmo
o batismo diário era uma das grandes práticas do sistema. As
fórmulas utilizadas pelos cristãos gnósticos parecem ter variado
amplamente. Os Marcosianos diziam: " Em nome do Pai
desconhecido de todos, da Verdade, a Mãe de todos, do Cristo, que
desceu sobre Jesus     ". Em Irineu de
Lyon (I, xxi, 3), encontramos a fórmula: " Em nome de que foi
escondida de cada divindade e senhorio e verdade, o que [nome]
Jesus de Nazaré foi colocada em nas regiões de luz" e outras diversas
fórmulas, que eram, por vezes pronunciadas em hebraico ou
aramaico.
Confirmação – A unção dos candidatos com óleo ou pomada
odorífera é um rito gnóstico que ofusca a importância do batismo.
Simboliza a recepção do Espírito. Alguns estudiosos sustentam que
tenha substituído completamente batismo e se tornado o único
sacramento de iniciação. Isto, no entanto, ainda não está
comprovado.
Eucaristia – A Eucaristia gnóstica era celebrada com a partilha do
pão. O uso de sal, neste rito, parece ter sido importante. Ao que se
sabe não faziam uso do vinho e sim de água.
O “nymphon”, também chamado “hyeros gamos” (câmara nupcial) é
um resquício das cerimônias de adoração aos deuses da fertilidade
das religiões primitivas. Hieros gamos (ιερός γάμος ou ιερογαμία, o "
casamento sagrado "), é a copula (às vezes casamento), de uma
divindade e um homem ou uma mulher, muitas vezes com um
significado simbólico e geralmente realizadas na primavera (mais ou
menos por volta do equinócio, meados de março). O Hieros gamos
surgiu na Suméria há 5.500 anos atrás. Mais tarde se espalhou pela
Europa e se tornou culto oficial de várias religiões pagãs ao longo da
história. É comum ainda o surgimento do Hieros gamos ser datado de
apenas 2.000 anos atrás.
Neste ritual, a alta sacerdotisa assumia o papel do avatar da grande
deusa Inanna e fazia sexo com o rei ou imperador, que assumia o
papel do deus Dumuzi, para mostrar sua aceitação pela deusa como
governante justo daquela região, ou simplesmente para comemorar o
poder reprodutor feminino. Isto era feito diante da corte, pois naquele
tempo não havia tabus para se praticar sexo em público se fosse em
uma cerimônia religiosa. Os homens da corte usavam longas túnicas
pretas e as mulheres, vestidos de gaze branca, sendo que ambos
usavam máscaras andróginas (brancas e pretas). Eles se
184
posicionavam ao redor de uma circunferência imaginária, deixando o
espaço de um círculo entre si. O círculo era o ambiente no qual a alta
sacerdotisa e o rei ou imperador realizariam o ato sexual. A corte
então se balançava para frente e para trás e entoava cânticos por ora
fortes por ora quase inaudíveis.232
Os gnósticos interpretam a passagem que relata a unção de Jesus
por Maria Magdalena uma semana antes de sua morte na cruz (João
12.3) como uma referência ao casamento sagrado 233 . Maria teria
assumido o papel da divindade feminina e Jesus o da divindade
masculina. Dizem que após o jantar os dois teriam subido ao terraço
da propriedade e ali teriam completado a união conjugal. Em
consequência, Maria tria engravidado e, mais tarde, dado à luz uma
filha chamada Tamar.
As vogais mágicas – o gnosticismo é uma crença essencialmente
mágica. Os gnósticos acreditavam que as sete vogais do alfabeto
grego tinham poderes mágicos uma vez que representavam o
universo numinoso, único existente antes da criação da matéria a
qual, por sua vez, era representada pelas consoantes. Algumas
escolas gnósticas cantavam mantras que eram exclusivamente
vocálicas. A expressão alfa e ômega que aprece no livro do
Apocalipse de João é, provavelmente de inspiração gnóstica 234. Ela
faz referência ao primeiro elemento e ao último de um grupo de sete,
o número que representa a totalidade ou o pleroma.

Os pais anti–gnósticos
O presbítero – Pouco conhecemos deste personagem. Ele se
identifica por este título na segunda e terceira epístolas que são

232Wikipedia – http://pt.wikipedia.org/wiki/Hieros_gamos
233NAHAMAD, CLAIRE & BAILEY, MARGARET,
Ensinamentos ocultos de Maria Madalena, Rio de Janeiro,
Nova Era, 2007. Trad. Rodrigo Alva. Cap. 3 – O Hieros Gamos
(casamento sagrado), pp. 32- 41.
234Eu sou o Alfa e o Omega, diz o Senhor Deus, aquele que é,
que era e que há de vir, o Todo-poderoso. Ap. 1.8.
185
atribuídas a João. Provavelmente escreveu também a primeira
epístola e algumas partes do quarto evangelho, especialmente o
prólogo e o epílogo.
Justino, o mártir – Viveu no século II da era cristã. Nasceu em Flávia
Neápolis. Sua educação inicial incluiu retórica, poesia e história. Mais
tarde mostrou interesse por filosofia. Estudou retórica, poesia e
história. Mais tarde mostrou interesse por filosofia. Estudou o
estoicismo e platonismo. Justino foi introduzido na fé diretamente por
um velho homem que o envolveu numa discussão sobre problemas
filosóficos e então lhe falou sobre Jesus. Ele falou a Justino sobre os
profetas que vieram antes dos filósofos, ele disse, e que falou " como
confiável testemunha da verdade". Eles profetizaram a vinda de Cristo
e suas profecias se cumpriram em Jesus. Justino disse depois que "
meu espírito foi imediatamente posto no fogo e uma afeição pelos
profetas e para aqueles que são amigos de Cristo, tomaram conta de
mim; enquanto ponderava nestas palavras, descobri que a sua era a
única filosofia segura e útil". Justino " se consagrou totalmente a
expansão e defesa da religião cristã". Justino continuou usando a
capa que o identificava como filósofo e ensinou estudantes em Éfeso
e depois em Roma. Os trabalhos que escreveu incluem: Duas
apologias em defesa dos cristãos e sua terceira obra foi Diálogo com
Trifão. A convicção de Justino da verdade do Cristo era tão completa
que ele teve morte de mártir sendo decapitado no ano 165 d.C. 235
Irineu da Gália – Também conhecido como Irineu de Lião, há escassa
informação sobre sua vida e muitas coisas são pouco exatas. Teria
nascido na Ásia proconsular, pelo menos em alguma província em
seu limite, na primeira metade do século II. Não se sabe a data certa
de seu nascimento. Está entre os anos 115 e 125, ou entre 130 e 142
segundo outros autores. Informa ter sido discípulo de Policarpo de
Esmirna, o que também é contestado. Policarpo, por sua vez, foi
discípulo do Apóstolo João. Veio a ser mais tarde Bispo da igreja de
Lião na Gália. Sua obra literária (onde sobressai o Adversus
Haereses) foi de caráter apologético, motivada pela necessidade de
combater os hereges, especialmente os gnósticos236.
Tertuliano de Cartago, o mais importante e original dos escritores
latinos, tirando Agostinho de Hipona, nasceu por volta de 155, em
Cartago, filho de pagãos. Formou-se como jurista e exerceu

235Wikipédia - http://pt.wikipedia.org/wiki/Justino
236Wikipédia - http://pt.wikipedia.org/wiki/Ireneu_de_Lyon
186
advocacia em Roma. Converteu-se ao Cristianismo por 193, e
estabeleceu-se em Cartago, pondo a sua erudição ao serviço da fé.
A partir de 207 passou ao montanismo, e permaneceu separado da
Igreja até a morte, ocorrida por volta de 222. Obras principais: Escritos
apologéticos (de defesa da fé contra os opositores): aos pagãos,
Apologeticum (a sua obra mais conhecida), O testemunho da alma,
contra Escápula, contra os judeus. Escritos polêmicos: A prescrição
dos hereges, contra Marcião, contra Hermógenes, contra os
valentinianos, O batismo, Scorpiace, A carne de Cristo, A ressurreição
da carne, Contra Práxeas, A alma. Escritos disciplinares, morais e
ascéticos: Aos mártires, Os espetáculos, O vestido das mulheres, A
oração, A paciência, A penitência, A esposa, A exortação da castidade,
A monogamia, O véu das virgens, A coroa, A fuga na perseguição, A
idolatria, O jejum, A pudicícia, O manto237.

Conclusão
O estudo do Gnosticismo tem duplo interesse para o estudante de
teologia. Em primeiro lugar é interessante porque o Gnosticismo
clássico interagiu ricamente com o Cristianismo em sua fase de
formação inicial (sobretudo nos séculos II a IV da era cristã)
contribuindo com elementos que ajudaram os cristãos a definir suas
doutrinas. O dualismo presente, sobretudo na literatura joanina, (luz
contra trevas, mundo de cima contra mundo de baixo etc.) tem
inspiração gnóstica. A apresentação de Jesus Cristo como o salvador
do mundo que desceu dos céus e para lá retornou, após sua morte e
ressurreição, também apresenta inspiração desta fonte. Do ponto de
vista negativo, o Gnosticismo deu um forte estímulo aos apologetas
que refutaram suas teses, especialmente na formulação da cristologia
e na definição da doutrina do pecado e do perdão.
Em segundo lugar, o Gnosticismo apresenta interesse por ser uma
“religião” viva com igreja e clero organizados e atuantes em nossos
dias. Hoje, um dos mais renomados dentre os líderes gnósticos é
Victor Manuel Gómez Rodríguez (Girardot, Cundinamarca, 6 de
março de 1917 — Cidade do México, 24 de dezembro de 1977) que
ficou conhecido pelo pseudônimo de Samael Aun Veor. Foi um
escritor, doutrinador e professor de ocultismo, além de fundador do
Gnosticismo “samaelino”. Foi o reformulador dos conhecimentos
apresentados pela Gnose escrevendo um novo tratado de ocultismo
no qual cita ensinamentos contidos no budismo, hinduísmo,

237Wikipédia - http://pt.wikipedia.org/wiki/Tertuliano
187
Rosicrucianismo e Teosofia, constituindo a base do Gnosticismo
samaelino contemporâneo. Também fundou o Instituto Gnóstico de
Antropologia e escreveu mais de setenta livros.
O Gnosticismo moderno pode ser classificado como uma religião
esotérica que apresenta afinidades com a Ordem Rosacruz, com a
Teosofia e com a Maçonaria. A Igreja Gnóstica no Brasil foi fundada
em 2 de novembro de 1936 por Arnold Krum-Heller (Mestre
Huiracocha) sob os auspícios da Fraternitas Rosicruciana Antiqua.
Sua confissão de fé gnóstica tem as seguintes declarações:
Creio na Unidade de Deus. Creio no Pai, como entidade
impessoal, inefável, não revelada, que ninguém viu, mas cuja
Força, Potência Criadora, foi e é plasmada no ritmo perene
do Céu e da Terra. Creio no Filho, como Tesouro de Luz,
Chrestos manifestado em Jesus Creio na transmutação do
pão material em substância espiritual. Conheço e reconheço
a Essencialidade Cristônica da Vida, concebida como um
todo, sem fim cronológico, que abarca uma órbita fora do
tempo e do espaço.238

238KRUM-HELLER, A. A Igreja Gnóstica – Tradição


Huiracocha, Trad. Ziéde C. Moura, São Paulo, Madras, 2007.
p. 32.
188
4. As epístolas joaninas
Propósitos
As epístolas joaninas foram escritas na última década do século I com
o objetivo de combater a infiltração de falsos mestres (gnósticos) nas
igrejas da comunidade. Para estudá-las pretendemos: 1. Discutir o
tipo de dependência literária existente entre as epístolas joaninas e o
quarto evangelho. 2. Discutir as hipóteses mais aceitas sobre a
autoria das epístolas joaninas. 3. Discutir o local de composição
destas epístolas. 4. Caracterizar a heresia dos dissidentes joaninos.
5. Discutir a posição teológica do autor frente a essa heresia.

O Problema Joanino
Em estudo anterior tivemos a oportunidade de abordar o chamado
problema sinóptico que trata das relações de dependência existentes
entre os três primeiros evangelhos. Quando fazemos uma leitura em
conjunto do quarto evangelho e das três epístolas joaninas
transparece imediatamente a dependência literária desses escritos. A
explicação dessa dependência em termos de precedência e de
compartilhamento de material é o que chamamos de problema
joanino.
Esta ligação é tão forte que tradicionalmente os críticos vem
aceitando uma autoria comum para os quatro livros. O apóstolo João,
filho de Zebedeu, teria sido o seu autor. Essa conclusão parte
inicialmente da comparação do prólogo da primeira epístola com o do
evangelho. A identidade de autoria da primeira epístola com as outras
duas é inferida com base em comparações de vocabulário, estilo e
conteúdo de seus textos.
A busca atual da solução para este problema nos leva a percorrer os
já conhecidos caminhos da crítica bíblica, muito especialmente os da
crítica da forma que nos introduz no estudo da participação das
comunidades primitivas na preservação de material constante dos
livros bíblicos por meio de tradição oral. O pressuposto básico para
este trabalho está em que cada perícope presente no quarto
evangelho e, possivelmente também nas epístolas joaninas,
preexistiu na forma de tradição oral que foi transmitida pelos membros
mais antigos da comunidade aos mais novos e que assumiu a forma
mais adequada ao seu uso em cada ocasião específica.

189
Quando cada um dos livros foi escrito, o autor selecionou o material
– recebido por tradição oral – que era mais útil à discussão do
problema teológico que a sua comunidade estava vivendo naquele
momento. Dessa forma, o objetivo teológico de cada um dos escritos
reflete uma crise particular da comunidade no seu processo de
evolução.
Hoje dois princípios são amplamente aceitos no encaminhamento
para a solução do problema joanino:
A precedência do evangelho sobre as epístolas – O quarto evangelho
foi composto antes das três epístolas e a sua existência foi o motivo
para a composição delas. Na pior das hipóteses, foi o motivo para a
composição da primeira que é apenas um comentário apologético do
evangelho.
O problema gerador das epístolas – As três epístolas foram escritas
pelo mesmo autor com o objetivo de combater uma heresia de caráter
gnostizante que líderes dissidentes estavam disseminando na
comunidade (I João 2.26). Esse problema foi gerado por uma
interpretação errônea do quarto evangelho. Observa-se na leitura da
segunda e da terceira carta que algumas das igrejas da comunidade
estavam negando sua hospitalidade aos enviados do líder.

O problema da autoria
O autor da primeira epístola não se identifica. O autor da segunda e
da terceira se identifica como sendo o presbítero. Da interpretação
que dermos a esta palavra vai sair nossa conclusão sobre a autoria
das epístolas. Três são as interpretações mais aceitas.
João, o filho de Zebedeu – Há evidências históricas de que o apóstolo
João morou durante muitos anos na cidade de Éfeso e de que,
portanto, teve tempo suficiente para escrever as três epístolas.
Aqueles que advogam a autoria do apóstolo João tomam o termo
presbítero no seu sentido literal, isto é, velho. Dizem que o apóstolo
se identificou desta forma por já estar muito idoso no tempo em que
foram escritas as duas últimas epístolas.
Um líder da comunidade – Outra maneira de interpretar o termo
presbítero é como sendo um líder da comunidade o qual,
possivelmente teria sido um discípulo e sucessor do apóstolo João.
Naquele tempo a palavra presbítero era usada para identificar os que
presidiam sobre uma comunidade cristã, de forma idêntica ao que
acontecia nas sinagogas dos judeus. Assim sendo, o autor das

190
epístolas teria sido o bispo da igreja de Éfeso que sucedeu a João, o
segundo elo da escola joanina.
Uma testemunha – Brown239 nos apresenta mais uma hipótese para
a interpretação de presbítero. Este termo teria sido usado no primeiro
século para indicar uma linha contínua de testemunho que nascia da
própria revelação: O Verbo recebeu seu conhecimento do Pai. O
apóstolo aprendeu com o Verbo e o presbítero aprendeu com o
apóstolo. Interpretado desta forma, o termo presbítero teria sido
usado para indicar alguém que, mesmo não sendo um líder, recebeu
uma informação em primeira mão de um apóstolo. Aceite-se esta
interpretação ou a anterior, fica bem estabelecido que o autor das
epístolas teria sido o mesmo que escreveu o epílogo do evangelho
testemunhando da veracidade do discípulo amado.

A dissidência joanina e sua heresia


A motivação para a composição das epístolas joaninas fica clara a
partir da leitura da primeira delas. Surgiu na comunidade um grupo
dissidente que, por interpretar o quarto evangelho de maneira errada,
ensinava doutrinas que se afastavam do kerygma apostólico o
suficiente para serem classificados como hereges. Cumpria-se a
profecia de Jesus Cristo quando disse que o maior inimigo do homem
está dentro de sua casa, embaixo do seu teto. Ainda hoje, o maior
problema de nossas igrejas no está naqueles que apedrejam nossas
janelas ou disseminam falsas doutrinas pelos veículos de
comunicação de massa. O maior problema de nossas igrejas se
constitui naqueles que, estando conosco, aderem a doutrinas e
práticas eclesiásticas que não se conformam aos princípios bíblicos
que adotamos e tentam difundi-las em nosso meio. O estudo mais
profundo das epístolas joaninas nos dá a chave para entendermos
em que consistia a pregação desses dissidentes:
Ensinavam uma Cristologia Docética segundo a qual Jesus Cristo no
teria vindo com um corpo de carne verdadeiro e sim com uma
aparência de corpo porque Jesus, sendo essencialmente bom, não
poderia ter intimidade com a carne que é essencialmente má
(dualismo). O problema com esta concepção reside em que se a
humanidade de Jesus Cristo não foi real a sua morte também não foi
e o seu sacrifício na cruz no encerra nenhum poder salvador.

239Referência 2
191
Ensinavam que, uma vez convertido, todo o crente passa a desfrutar
da autoridade que lhe dá a presença do Espírito Santo em sua vida.
Tudo quanto o crente fala resulta da atuação do Espírito. Dessa
forma, todos os crentes têm igual autoridade para serem intérpretes
da Palavra de Deus porque o mesmo Espírito fala por todas as bocas.
Esse ensino encerra uma contestação da autoridade que sempre foi
conferida aos apóstolos e líderes eclesiásticos como intérpretes da
Palavra.
Ensinavam a impecabilidade do crente – O crente, por ter o Espírito
Santo atuando em sua vida, não comete pecado. Nada do que ele
faça ou deixe de fazer afeta o seu espírito porque ele está acima de
todas essas coisas.
Escatologia plenamente realizada – Os dissidentes ensinavam
também que todas as promessas de Deus ao homem já se haviam
cumprido e que nada mais restava a esperar.

A resposta do autor das epístolas


A primeira epístola joanina é uma orientação que o autor dá às igrejas
de sua comunidade sobre a melhor maneira de tratar com os
dissidentes e como refutar os seus ensinos. Neste livro,
diferentemente do que vimos nas cartas de Paulo, o autor não recorre
à lógica helenista para refutar seus adversários. Ele apenas reafirma
a autoridade de um testemunho que tem vínculos com as origens.
As duas outras epístolas, embora menores, caem no mesmo contexto
de combate aos hereges quando apresentam um enviado do
presbítero para quem algumas das igrejas da comunidade estavam
negando a sua hospitalidade. Vejamos o procedimento aconselhado:
Prudência no ouvir (I João 4.2) - Não devemos conceder o benefício
da credibilidade a todos quanto ocupam os púlpitos de nossas igrejas
ou nos falam pelos meios de comunicação de massa. Existem muitos
falsos profetas andando pelo mundo.
Um critério para teste (I João 4.2,3) - O profeta que merece crédito da
igreja não é aquele que consegue o maior número de adeptos por
causa de sua bela oratória e sim aquele que se conserva fiel aos
fundamentos doutrinários estabelecidos na palavra de Deus. Todos
os pregadores devem ser testados com respeito a sua fidelidade ao
Kerygma primitivo. O ponto do Kerygma que estava sendo
desrespeitado naquela ocasião era a declaração de que Cristo veio
na carne, o reconhecimento da perfeição e da plenitude de sua

192
humanidade. Quem quer que fosse que negasse essa verdade
deveria ser rejeitado pela igreja.
Convivendo com os hereges à distância (II João 7-10) - Os que
ensinavam falsas doutrinas eram anticristos e deveriam ser
anatematizados. Não deveriam ser recebidos em casa nem saudados
nas ruas. O autor recomenda uma rejeição radical.
Acreditando no poder que opera em nós (I João 4.4-6) - Não
precisamos ficar correndo de um lado para outro em busca de
novidades. Se estamos realmente no Espírito, o poder que opera em
nós é maior que aquele que opera nos falsos profetas. Um crente não
necessita deixar a sua igreja para procurar a atuação do espírito em
outras denominações. Precisa apenas reconhecer o poder de Deus
que opera nele mesmo.

A refutação dos ensinos gnósticos


Contra a acusação a respeito da imperfeição divina – “E esta
é a mensagem que dele ouvimos, e vos anunciamos: que
Deus é luz, e nele não há trevas nenhuma” 1.5
Contra a inexistência do pecado – “Se dissermos que não
temos pecado nenhum, enganamo-nos a nós mesmos, e a
verdade não está em nós. Se confessarmos os nossos
pecados, ele é fiel e justo para nos perdoar os pecados e nos
purificar de toda injustiça. Se dissermos que não temos
cometido pecado, fazemo-lo mentiroso, e a sua palavra não
está em nós.” 1.8-10.
Contra a negação da humanidade de Jesus Cristo – “O que
era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os
nossos olhos, o que contemplamos e as nossas mãos
apalparam, a respeito do Verbo da vida” 1.1
Contra a escatologia realizada – “Filhinhos, esta é a última
hora; e, conforme ouvistes que vem o anticristo, já muitos
anticristos se têm levantado; por onde conhecemos que é a
última hora” 2.18.
No que respeita a unção do espírito e à necessidade de
buscar conhecimentos secretos – “Ora, vós tendes a unção
da parte do Santo, e todos tendes conhecimento” 2.20, “E
quanto a vós, a unção que dele recebestes fica em vós, e não
tendes necessidade de que alguém vos ensine; mas, como a

193
sua unção vos ensina a respeito de todas as coisas, e é
verdadeira, e não é mentira, como vos ensinou ela, assim
nele permanecei” 2.27

A escatologia das epístolas


A postura teológica do autor das epístolas era apocalíptica. Para ele
A última hora havia chegado.
Muitos anticristos andavam pela terra.
Os exércitos do mal já haviam entrado em guerra contra os
exércitos da luz.
Apenas uma esperança resta aos filhos da luz.
Se a última hora não tinha chegado para todo o mundo, pelo menos
ela tinha chegado para a comunidade que o presbítero presidia. Essa
guerra trouxe como consequência a dissolução da comunidade Livre-
nos o Senhor de termos semelhante Armagedon dentro de nossas
igrejas!

Texto em discussão – o Coma Joanino


O texto compreendido nos versículos 7 e 8 de I João, cap. 5, ficou
conhecido pelo nome de coma joanino e foi muito popularizado por
seu uso na defesa da doutrina da Trindade. Nas versões mais antigas
do Novo Testamento eles aparecem na forma:
Porque três são os que testificam no céu: O Pai, a Palavra e o Espírito
Santo; e estes três são um. E três são os que testificam na terra: O
Espírito, a água e o sangue; e estes três concordam num.
Nas versões mais modernas da Bíblia, como por exemplo, a revisão
de 1986 da versão Almeida pela Imprensa Bíblica Brasileira, o texto
foi corrigido para:
E o Espírito é que dá testemunho porque o Espírito ‚ a verdade.
Porque três são os que do testemunho: O Espírito, a água e o sangue;
e estes três concordam.
Essa supressão foi feita com o objetivo de atingir uma forma do texto
mais fiel ao original. Observe-se que a menção ao tríplice testemunho
da Trindade (Pai, Palavra, Espírito) desapareceu. Acredita-se que a
inserção deste testemunho tenha sido feita por volta do século IV com
o objetivo de fortalecer a defesa da doutrina da Trindade. É importante
que saibamos que, mesmo sem este texto, possuímos argumentos
194
bíblicos suficientes para sustentar a interpretação Trinitária da Pessoa
Divina. Os mais valiosos são: II Coríntios 13.13 e a fórmula batismal
de Mateus.

195
Unidade VI – Literatura
Apocalíptica

O apocalipse de João é o único livro desse gênero No Novo


Testamento. No Antigo Testamento encontramos o livro de Daniel.
Outras obras apocalípticas foram produzidas tais como o livro de
Enoque que foi citado por Jesus Cristo e pelo autor da epístola de
Judas.
Textos apocalípticos são encontrados no sermão escatológico de
Jesus Cristo e nas epístolas de Paulo. Podemos afirmar que o Novo
Testamento nasceu em um berço apocalíptico;

196
1. Literatura apocalíptica do
Novo Testamento
Propósitos
A literatura apocalíptica é um gênero literário que se tornou muito
popular entre os judeus a partir do século II antes de Cristo. Ela é
essencialmente marcada por determinismo e fatalismo. Os autores
apocalípticos creem que Deus já determinou o curso da história e que
nada que o homem faça ou deixe de fazer pode demovê-lo de seus
propósitos.
Diferentemente da atitude profética, na qual sempre havia
oportunidade para arrependimento restauração, a apocalíptica nos
mostra um “fim de linha” sem alternativas. Para entendê-la melhor,
vamos nos dar às seguintes tarefas: 1. Definir literatura apocalíptica.
2. Discutir as relações da literatura apocalíptica com a literatura
profética e a literatura sapiencial do Velho Testamento. 3. Identificar a
literatura apocalíptica do Novo Testamento e 4. Discutir os princípios
de interpretação da literatura apocalíptica.

Apocalíptica, uma revisão


Gottwald 240 define a apocalíptica como: “um tipo de literatura
reveladora com estruturação narrativa, na qual uma revelação a
respeito de julgamento e salvação do tempo do fim e/ou a respeito
dos reinos celestes é dada a um ser humano por um mensageiro do
além-túmulo”.
Esta definição encerra as características básicas da literatura
apocalíptica que são as seguintes:
Literatura reveladora com estruturação narrativa que se propõe a
trazer ao conhecimento de pessoas selecionadas fatos que são
mantidos fora do alcance da população geral. Essa literatura tem,

240Norman K. Gottwald, Introdução socioliterária à Bíblia


hebraica, São Paulo, Paulinas, 1988. Pág. 541.
197
portanto, objetivo idêntico ao da literatura das religiões de mistério do
mundo helenístico as quais só podem ser entendidas por um grupo
de iniciados. Diferentemente da literatura profética, ela não é
composta na forma de poesia e sim na forma de prosa.
Literatura escatológica que diz respeito aos tempos do fim ou aos
reinos celestes prometidos para o fim, cujo conteúdo mostra ao leitor
como uma antecipação do futuro.
Dada a um ser humano por um mensageiro de além-túmulo –
Estruturada na forma de visões explicadas por um personagem
extraterreno que é o veículo por meio do qual flui a sabedoria divina.
Não se sabe exatamente onde, nem como surgiu a literatura
apocalíptica. O que se tem de mais certo é que o seu período de
produção se estendeu do século II a.C. até o século II d.C. R. Noth 241,
discorrendo sobre suas origens, nos mostra a apocalíptica como um
caminho mais excelente da profecia e nos apresenta uma tentativa de
definição segundo a qual deve ser classificado como apocalíptico:
“Qualquer escrito dito como ou parecendo ser divinamente inspirado
e explanar o verdadeiro sentido e a relevância de revelações
anteriores para o futuro ou os últimos dias, aplicando-os
enigmaticamente a eventos presentes em uma estrutura histórica e
astro cósmica unificante de erudição teórica; com imagens estranhas
ou extra – espaciais, e relacionado a um mundo intensamente ativo
de seres cuja natureza se encontra entre o divino e o humano.”
Temos de admitir que uma definição como essa confunde mais que
esclarece uma situação que, por si só, já é suficientemente confusa.
A tese de filiação da apocalíptica à profecia que ela apresenta (os
escritos apocalípticos seriam interpretações atualizadas de profecias)
não pode se manter. Devemos procurar outra origem.
Von Rad 242 , mais esclarecedor, chama a nossa atenção para a
filiação existente entre a literatura apocalíptica e a sapiencial

241Robert Noth, Da profecia à Apocalíptica via Zacarias in "


Profetismo, Coletânea de estudos ", São Leopoldo, Sinodal,
1985. Pág. 220.
242Gerhad von Rad, Teologia do Antigo Testamento, São
Paulo, Aste, 1974. Vol. II, pág 296 ss.
198
mostrando que nesta, mais que na literatura profética, devemos
buscar as raízes do fenômeno apocalíptico. Para ele a apocalíptica é
um tipo de literatura na qual o autor se mostra possuidor de uma
sabedoria revelada de caráter carismático na qual se propõe a
comunicar a alguns dos seus leitores o verdadeiro sentido das
profecias. Coloca ainda em evidência o fato de que não foi utilizado o
nome de nenhum dos profetas clássicos do tempo da monarquia
como pretenso autor de obras apocalípticas o que enfraquece a
hipótese de filiação da literatura apocalíptica à profética.
É aceito geralmente que o primeiro apocalipse composto
integralmente foi o livro de Daniel, escrito durante a revolução dos
Macabeus (Século II a.C.). Embora o primeiro Enoque tenha algumas
seções mais antigas que as de Daniel, a sua forma final só foi dada
posteriormente. Por esse motivo Daniel veio ser o paradigma para a
composição dos demais apocalipses da mesma forma que Marcos
veio a ser o paradigma para a composição dos evangelhos que o
sucederam. O estudo da forma e do conteúdo dos livros apocalípticos
é de extrema utilidade porque eles refletem a forma e o conteúdo do
pensamento judeu consequentes, por um lado, às pressões da
Helenização, e por outro, à reação radicalizante da liderança religiosa
de Jerusalém.

A literatura apocalíptica do Novo Testamento


O apocalipsismo foi o modo essencial de vida dos autores do Novo
Testamento. Tanto Pedro quanto Paulo e João estavam certos de
estarem vivendo um período messiânico de grande tribulação que
precederia uma parusia imediata. Paulo cria que estaria vivo na
parusia e participaria do arrebatamento dos crentes (I Co.15.52),
Pedro procurava justificar o retardo da volta de Jesus Cristo apelando
para a elasticidade do tempo divino (II Pd.3.8), João estava certo de
viver a última hora como era atestado pela presença de anticristos no
mundo. (I Jo. 2.18). O próprio Jesus Cristo apelou para os conceitos
apocalípticos quando advertiu os seus discípulos a respeito do fim
próximo da cidade de Jerusalém. (Mt.24,25)

199
O pequeno apocalipse dos evangelhos sinóticos
O sermão de Jesus Cristo relatado nos capítulos 24 e 25 do
Evangelho de Mateus e nas passagens paralelas de Marcos e de
Lucas ficou conhecido como o “Pequeno apocalipse dos Evangelhos
Sinópticos”. Nele, Jesus Cristo discorre sobre as coisas que
aconteceriam no final dos tempos. A análise da passagem mostra que
ela trata de dois eventos diferentes: O primeiro foi a destruição de
Jerusalém que se deu no ano 70 da era cristã e o segundo se refere
ao final dos tempos243.
Este texto, motivado pela visão dos edifícios do templo, parece conter
uma síntese de duas palavras emitidas em ocasiões diferentes. A
primeira delas aponta para fatos que se realizaram quando da invasão
de Jerusalém pelos romanos no ano 70. A própria introdução do
Senhor Jesus nos indica isto quando ele declara: “Em verdade vos
digo que não se deixará aqui pedra sobre pedra que não seja
derribada.”(v.2). Dessa forma, sua inclusão no texto dos sinópticos
parece ter um sentido retrospectivo para testemunhar que tudo
quanto o Senhor profetizou se cumpriu de fato. Outros dados que
apontam para essa ocasião são as recomendações para orar pedindo
que a fuga não se desse no sábado nem no inverno. Se o Senhor
apontasse para o cataclismo universal simplesmente não haveria
para onde fugir.
Outra parte parece apontar para o final da época (éon) corrente
refletindo uma expectativa da comunidade de cristãos hebraístas da
Judeia relacionada com a instalação do reino messiânico. Nessa
segunda linha de pensamento se anotam as advertências quanto a
vinda de falsos profetas que se apresentarão como sendo o Cristo
(24.5), guerras, perseguições, torturas, fomes e terremotos. O estudo
do texto exige a análise das duas situações.

243A crítica bíblica aceita atualmente que originalmente eram


dois textos distintos, relatos de sermões proferidos em ocasiões
diferentes, que no processo de transmissão por tradição oral
foram fundidos. A fusão de perícopes é um processo que
aparece várias vezes na formação da literatura
neotestamentária.
200
Ideias apocalípticas em Paulo
Paulo cria viver o momento da grande tribulação. Para ele a divisão
da história do mundo em duas eras, se constituía em uma realidade
palpável e indiscutível: “Pois tenho para mim que a aflição deste
tempo presente não se pode comparar com a glória que em nós há
de ser revelada.” Rm. 8.18. Naquele tempo que ele vivia
predominavam as aflições. No tempo que estava para chegar
predominaria a glória.
Dentro desta visão, Paulo desenvolveu uma soteriologia que não se
restringia ao ser humano como indivíduo (soteriologia antropológica)
mas que teria repercussões sobre toda a criação (soteriologia
cosmológica) Rm.8.19-21. O resultado da redenção do homem será
a constituição de um novo mundo redimido. O éon presente,
dominado pelas forças do mal, será substituído pelo éon futuro,
dominado pelas forças do bem.
Paulo acreditava que ele estaria vivo na parusia (I Co.15.51,52) e
essa sua crença condicionava não apenas a sua forma de vida
pessoal, mas também as instruções éticas que ele passava às igrejas
que os consultavam. Suas instruções aos crentes de Corinto a
respeito do casamento indicam que ele aguardava a parusia,
acompanhada da ressurreição dos mortos e da adesão dos gentios
ao Israel de Deus, para muito breve. Isto o autorizava a sugerir aos
solteiros daquela igreja que permanecessem solteiros. Não valeria a
pena casar-se para permanecer casado por poucos dias. Os que já
eram casados não deveriam, entretanto, abdicar desta situação, mas
deveriam preservar seus casamentos (I Co.5).
Paulo também esperava para breve a aparição do " homem da
iniquidade", (II Ts.2,3) uma espécie de anticristo que comandaria as
forças do mal na sua luta contra os escolhidos do Senhor e que por
fim, seria destruído pelo sopro da boca do Senhor Jesus Cristo. Essa
figura, calcada na discrição que o livro de Daniel faz do homem vil
(Dn.11.21 ss.), operará sinais, prodígios e maravilhas e se oporá
frontalmente a Deus e ao culto. Sua chegada seria para muito breve.

Ideias apocalípticas na literatura joanina


Já tivemos a oportunidade de estudar a escatologia realizada da
comunidade joanina. O presbítero, da mesma forma que Paulo e a

201
maioria dos cristãos do final do primeiro século, cria viver o período
da grande tribulação. Ele podia identificar a presença de muitos
anticristos circulando pelo mundo com falsas doutrinas a respeito do
salvador, o esfriamento do amor fraternal que levava igrejas a negar
a hospitalidade a seus enviados e uma longa série de desmandos
típicos da apostasia daqueles tempos.

Apocalipse de João
A mais conhecida das obras deste gênero e único livro do Novo
Testamento integralmente apocalíptico, o Apocalipse de João pode
ser dividido em duas partes. A primeira delas, composta em estilo
epistolar como era comum nos tempos em que foram escritos os livros
do Novo Testamento, contém 7 mensagens dirigidas, cada uma delas
a uma das sete igrejas da província da Ásia. A segunda parte,
apocalíptica por excelência, trata das coisas que acontecerão no fim
dos tempos: O grande sofrimento, a chegada do Anticristo, a luta entre
os exércitos do mal e do bem com a vitória deste, o juízo final, o novo
céu e a nova terra. Aceita-se hoje que este livro tenha sido composto
no tempo em que o imperador Domiciano perseguia e martirizava os
Cristãos. Este livro será estudado a seguir com maiores detalhes.

202
2. O Apocalipse de João
Propósitos
O apocalipse de João é uma obra cuja importância extrapola a da
própria Bíblia. Suas narrativas inspiraram romances, filmes e novelas.
Seus personagens são divulgados em obras de grande circulação na
“media” falada, escrita e televisada. Ele é frequentemente associado
ao terror.
O apocalipse de João é, entretanto, uma obra de consolação que
anuncia a vitória final dos crentes fiéis ao final dos sofrimentos aos
quais estavam sendo submetidos. Para entendermos como ele pode
ser usado hoje em consonância com os objetivos de seu autor,
pretendemos: 1. Discutir sucintamente as hipóteses sobre a autoria
do Apocalipse. 2. Discutir sucintamente as hipóteses sobre data e
local da composição deste livro. 3. Identificar seus destinatários. 4.
Identificar o seu objetivo teológico. 5. Sumariar o seu conteúdo. 6.
Listar os textos bíblicos externos ao Apocalipse que fornecem dados
para a identificação dos símbolos usados em sua composição.

Autoria
A autoria joanina do Apocalipse tem sido amplamente aceita em
decorrência tanto de evidências internas quanto de evidências
externas. Vejamos as principais:

Evidências externas
A tradição mais antiga vem atribuindo a João, filho de Zebedeu, a
autoria deste livro. Muito valiosos a este respeito são os testemunhos
de Justino, o Mártir (ca. 166) e de Irineu (ca.190) que afirmam a
autoria joanina deste livro. Destes dois, o testemunho de Irineu tem
valor especial porque ele foi discípulo de Policarpo de Esmirna o qual,
por sua vez, foi discípulo do apóstolo João.

Evidências internas
O autor do livro se identifica pelo nome de João em quatro passagens
(1.1, 1.4, 1.9 e 22.8). Duas hipóteses podem ser admitidas: 1a – Ele
se chamava mesmo João. 2a – Ele tinha outro nome e usou o nome
de João como pseudônimo, o que era muito frequente nas obras

203
compostas no início do Cristianismo, especialmente para a literatura
apocalíptica. Se o autor se chamava mesmo João restará a tarefa de
identificar quem foi este João.
A discussão da hipótese de pseudonímia deve começar pela
avaliação da frequência com que o nome do autor é citado nesta obra.
Nas obras reconhecidamente pseudônimas a repetição do nome do
autor costuma ser muito frequente para enfatizar a autoridade do
escrito. No livro de Daniel, por exemplo, o nome Daniel é citado 73
vezes em 357 versículos o que nos dá uma frequência aproximada
de uma citação em cada 5 versículos. No livro de João, por outro lado,
o nome João é mencionado apenas 4 vezes em 407 versículos o que
fornece uma frequência aproximada de uma citação em cada cem
versículos. Esse dado nos fala contra a hipótese de pseudonímia e
nos leva a ficar com a escolha de que o autor do livro se chamava
mesmo João.
Um segundo dado, nas obras pseudônimas o nome citado como autor
é sempre acompanhado de uma grande quantidade de predicados o
que se entende com facilidade porque a menção do seu nome é, de
certa forma, uma homenagem que lhe é feita. No livro de João o nome
do autor, provavelmente uma autorreferência, é feito sem nenhum
predicado com manda a boa regra da modéstia.
Essas evidências, embora negativas, são muito fortes e não podem
ser esquecidas. Elas apoiam a hipótese de que o autor deste livro foi
mesmo alguém chamado João. Mas, quem foi este João? A tradição
identifica este autor com o apóstolo João que fazia parte do círculo
mais íntimo de Jesus o qual seria ainda a mesma pessoa que o quarto
evangelho chama de o discípulo que Jesus amava. A confirmação, ou
a rejeição, desta hipótese tem de ser feita com base em estudos
comparativos de vocabulário, frequência do uso das palavras,
gramática e estilo deste livro com o quarto evangelho e com as
epístolas joaninas. Estes estudos são áridos demais para serem
discutidos aqui. Os interessados devem se direcionar para os
comentários específicos. Além disto os resultados obtidos com estes
estudos devem ser tomados com certa reserva porque, como já
tivemos oportunidade de ver anteriormente, não podemos atribuir
com segurança a autoria do quarto evangelho, e muito menos das
epístolas joaninas, ao filho de Zebedeu.

204
Summers244 alinha algumas das características principais deste João
que escreveu o Apocalipse. Isto é o que temos de melhor para afirmar
sobre ele:
1. Era um Judeu Cristão que, com muita probabilidade, viveu a
maior parte da sua vida na Galileia.
2. Usava a sintaxe grega de forma extremamente livre.
3. Seu estilo não permite identificá-lo com nenhum outro autor
do Novo Testamento, nem mesmo com o autor do quarto
evangelho ou das epístolas Joaninas.
4. Gozava de indiscutível autoridade entre as igrejas da
província da Ásia.
5. Era homem de profunda visão espiritual e se posicionava
como profeta, denunciando contundentemente o pecado. 245

Tempo de composição
O Apocalipse foi composto em um tempo quando os cristãos estavam
sendo duramente perseguidos e martirizados. As três hipóteses mais
aceitas apontam para 1 – A época de Nero (54-68), 2 – A época de
Vespasiano (69-79) e 3 – A época de Domiciano (81-96). Três
questões dificultam a determinação segura desta época:
1a – O mito do Nero redivivo – Acreditava-se no primeiro
século, após a morte de Nero, que ele ressuscitaria para
voltar ao comando do Império. Dessa forma, o autor poderia
ter feito uma interpretação livre do mito e identificado

244SUMMERS, R. A mensagem do Apocalipse – Digno é o


Cordeiro, Rio de Janeiro, JUERP, 2a ed., 1972. 199 pp.
245Essa declaração necessita de comentário adicional –
Embora tenhamos feito distinção prévia entre literatura
profética e literatura apocalíptica o que encontramos, de fato,
no Apocalipse de João é um forte conteúdo profético na forma
apocalíptica. Um reflexo, sem dúvida, da nova realidade
inaugurada com a chegada de Jesus Cristo.
205
Vespasiano ou Domiciano com o imperador que os havia
antecedido.
2a – Cronologia fictícia – Os livros apocalípticos ignoram a
cronologia e fazem referências ao passado como se fosse
presente ou futuro. O autor deste livro poderia muito bem ter
escrito no final do primeiro século – tempo de Domiciano—
simulando viver na época de Nero ou de Vespasiano. Hoje é
mais aceito entre os críticos o período de Domiciano (81-96)
como o mais provável para a composição do Apocalipse.
3a – Os dois documentos – A observação da existência de
textos duplicados no apocalipse (por exemplo 21.1-8 e 21.9 -
22.5) levou o erudito M. E. Boismard a elaborar a hipótese de
que o Apocalipse de João foi escrito a partir de dois
documentos distintos que, entretanto, seriam provenientes de
um mesmo autor. O primeiro deles, baseado em Daniel, teria
sido escrito no tempo de Nero. O segundo, baseado em
Ezequiel, teria sido escrito no tempo de Vespasiano ou de
Domiciano. A obra final, como a temos hoje, teria resultado de
uma fusão desses dois documentos – tal como Taciano fez
mais tarde com os evangelhos – e da anexação da introdução
contendo as cartas às sete igrejas da Ásia.

Destinatários
Os destinatários declarados são os crentes da província da Ásia
(comunidade joanina?) Devemos, entretanto, levar em consideração
outra hipótese. Na dedicatória do Apocalipse são referidos os nomes
de 7 igrejas. Como o número 7 simboliza a totalidade é possível que
o autor, ao mencionar sete igrejas, estivesse se dirigindo à totalidade
da comunidade cristã da época. A análise geográfica favorece a
hipótese de destinatários mais restritos uma vez que uma estrada
ligava as sete cidades mencionadas permitindo que um mensageiro
fosse a cada uma das sete igrejas com facilidade.

Objetivo Teológico
Este apocalipse, como os demais, é uma obra de consolação escrita
para estimular cristãos perseguidos a perseverar firmes na fé. O
estímulo vem da contemplação do cordeiro que foi morto, mas venceu
206
e da Jerusalém Celestial prometida como prêmio aos que se
mantiverem fiéis.

Estrutura do Livro
O livro está estruturado em duas partes. A primeira, escrita no gênero
epistolar, inclui as sete cartas para as igrejas da Ásia. A segunda,
composta no gênero apocalíptico, descreve visões de coisas que vão
acontecer no futuro consolidando a vitória de Deus contra seus
adversários.

Parte epistolar profética (capítulos 1-3)


Na análise da primeira parte aplicam-se os conhecimentos que já
possuímos a respeito da literatura epistolar. Podemos observar que
cada uma das sete cartas foi escrita na estrutura típica das epístolas
neotestamentárias com a identificação do autor – no caso presente
um autor extraterreno – identificação dos destinatários e um conteúdo
que lembra o discurso profético de julgamento e censura no qual o
juiz anuncia a sentença contra o acusado e, eventualmente, lhe
oferece uma oportunidade de arrependimento. A parte epistolar do
Apocalipse tem, portanto, cunho essencialmente profético e nela a
denúncia do pecado, especialmente o pecado da apostasia, assume
papel preponderante.

As cartas às sete igrejas da Ásia


O Apocalipse de João inicia com a identificação do autor das cartas
descrita na imagem do “Cristo glorificado”, a identificação do vidente
que serviu como instrumento para a transmissão da mensagem e a
declaração do objetivo do livro: Mostrar fatos que ocorreriam muito
brevemente. A seguir, aparece uma série de sete cartas dirigidas a
sete igrejas da província da Ásia: Éfeso, Esmirna, Pérgamo, Tiatira,
Sardes, Filadélfia e Laodiceia. Estas cartas seguem um mesmo
padrão de composição com pequenas variações. Nosso propósito no
presente estudo é conhecermos a maneira como as cartas foram
estruturadas.
A moderna crítica bíblica defende que os capítulos 1 a 3 foram
escritos tardiamente e anexados ao restante do livro para servir como
207
introdução. Algo semelhante ao que acontece no livro de Jó, obra
essencialmente poética, que recebeu tardiamente uma introdução e
um epílogo em prosa nos quais se encontra a disputa entre Satanás
e Deus a respeito da fidelidade do patriarca.
As sete cartas seguem essencialmente ima estrutura e podem ser
divididas em até 7 partes. A carta à igreja de Éfeso é uma das mais
completas. Nela achamos todas as partes, como segue:
1. Identificação do destinatário, introduzida com a expressão
“Ao anjo da igreja em”. Na língua grega a palavra anjo
significa mensageiro. Entendemos, dessa forma, que a carta
é dirigida ao mensageiro (pastor) de Deus para a igreja.
2. Identificação do remetente que faz uma referência à visão
apresentada no capítulo 1. Reconhece-se com facilidade a
pessoa de Jesus Cristo como agente de autoridade por trás
da escrita da carta.
3. Um elogio introduzido com “conheço as tuas obras” seguida
da enumeração dos bons resultados apresentados no
ministério da igreja local.
4. Uma repreensão introduzida com a expressão “tenho, porém,
contra ti” seguida dos resultados negativos do ministério
pastoral.
5. Uma advertência introduzida pelo imperativo “arrepende-te”.
6. Uma ameaça que aqui consiste no término do ministério – a
remoção do candeeiro.
7. Uma promessa iniciada com a expressão “ao que vencer”.

Características das igrejas


Vivemos em um mundo alheio à presença e à atuação de Deus.
Alguns chegam a afirmar que Ele não existe. As cartas do apocalipse
nos ensinam que Deus, na pessoa de Jesus Cristo, está sempre
atento ao que nos acontece e toma providências para corrigir todo o
mal. Estar em uma igreja já é razão suficiente para que não nos
esqueçamos dos cuidados de nosso Mestre a nosso favor. Nunca nos
esqueçamos do que Ele declarou: “O que vem a mim de maneira
nenhuma o lançarei fora.” (João 6.37)

208
As sete cartas colocam em destaque sete modelos de igrejas. A Igreja
de Éfeso é a igreja grande, situada na capital da província, que a
custa de uma institucionalização conseguiu se harmonizar com os
objetivos das autoridades provinciais e acomodar-se. O preço pago
foi a perda da essência do evangelho.
A igreja de Esmirna é o modelo de igreja perseguida que sobrevive
como “igreja subterrânea”. Seus membros são aprisionados pelo
opressor governamental e martirizados. A igreja de Pérgamo é o
modelo de igreja que permanece fiel, mas que abriu sua guarda e
permite que nela se abriguem pregadores de heresias que deveriam
ser extirpadas. A igreja de Tiatira é a igreja mundanizada cujos
membros se comprometem com imoralidade e prostituição. A igreja
de Sardes é aquela que conserva o nome de cristã, mas se desviou
totalmente dos princípios do cristianismo. Está totalmente à deriva e
sem rumo. A igreja de Filadélfia é a igreja fraca, porém fiel que sabe
identificar e rejeitar os pregadores de doutrinas espúrias. A igreja de
Laodiceia pode ser identificada como aquela que se coloca “em cima
do muro”, vive na duplicidade de conceitos. É cristã na hora dos
cultos, mas terminados os mesmos, sobrevive como se o cristianismo
não existisse.

Parte apocalíptica (capítulos 4 – 21)


A segunda parte da obra é escrita em estilo caracteristicamente
apocalíptico, isto é, estruturada na forma de relatos de visões que
versam essencialmente sobre temas escatológicos. Ela começa com
um convite para que o autor suba até o céu e encerra visões que se
sucedem mostrando ora animais de aspecto irreal, ora os justos na
glória (o céu), ora lutas entre os exércitos do bem e os exércitos do
mal (a terra). As visões são seriadas em grupos de sete e alguns deles
mostram pragas semelhantes às descritas no Êxodo. Tudo marcha
para o " grande final " quando o inimigo é definitivamente derrotado e
aqueles que permanecem fiéis herdam o novo céu e a nova terra.
Nesta parte podemos identificar duas narrativas apocalípticas. A
primeira começa no capítulo 4, com a ascensão do vidente ao céu e
termina com o toque da sétima trombeta (capítulo 11). A segunda
inicia no capítulo 12 com a visão da mulher perseguida e encerra no
capítulo 22 com a descida da Jerusalém celestial e a implantação final
209
do reino de Deus no novo mundo. Segundo o que é aceito pela crítica
bíblica moderna, o apocalipse foi escrito duas vezes, pelo mesmo
autor e em tempos diferentes.
A primeira narrativa, que vai dos capítulos 4 até 11, foi redigida no
tempo do Imperador Nero (54-68 da era cristã). A segunda narrativa,
que começa no capítulo 12 e se estende até o final do livro foi escrita
no tempo do imperador Domiciano (81-96) quase no final do século I.
Os capítulos 1 a 3 foram adicionados posteriormente como
introdução. Evidentemente que ao escrever a segunda narrativa o
autor não tinha mais em mãos o primeiro manuscrito. Por essa razão,
a segunda narrativa é uma paráfrase e não uma cópia da primeira.

Primeira narrativa (capítulos 4-11)


Os selos
A primeira narrativa apocalíptica, escrita no tempo do imperador Nero
(54-68), descreve a maneira como Deus agiria para destruir o inimigo
da igreja, o Império Romano.
Os quatro primeiros selos descrevem o irresistível avanço dos
inimigos (guerreiros partos, que viviam ao oriente, além do rio do
Eufrates) autorizados e mobilizados por Deus, para oferecer um
combate demolidor ao Império Romano que oprimia os cristãos.
O primeiro cavalo (branco) simboliza a vitória dos inimigos. O
segundo cavalo (vermelho) representa a guerra. O terceiro cavalo
(negro) representa a fome. O quarto cavalo (amarelo ou verde)
personifica a morte. Uma sucessão lógica do que ocorre nos países
assolados pela guerra.
O quinto selo introduz o clamor dos oprimidos e que rogam a Deus
por vingança. Deus lhes responde que eles não foram esquecidos,
mas que precisam aguardar o tempo próprio para a ocorrência dos
males que vem contra os inimigos.
O sexto selo mostra Deus mobilizando as forças da natureza para
enfraquecer a resistência do inimigo e transformá-lo em um alvo mais
fácil para o invasor. O modelo é retirado das pragas descritas no livro
do Êxodo, que enfraqueceram o Egito para permitir a saída do povo
de Israel, especialmente a praga das trevas.

210
A narrativa apocalíptica só pode ser bem entendida por aqueles que
estão sendo oprimidos por causa do evangelho e julgam que Deus
não se importa com o que lhes acontece. A Bíblia nos ensina que o
Senhor nunca se esquece dos que lhe são fiéis e que, no tempo
apropriado, lhes providencia o socorro necessário.

As trombetas
A abertura do sétimo selo introduz uma série de sete pragas que são
anunciadas pelo som das sete trombetas tocadas pelos anjos. Os
toques das trombetas anunciam as intervenções divinas que
preparam o inimigo para a derrocada final. Elas anunciam a ação
salvadora de Deus a favor de seu povo oprimido. Existe ainda aqui
uma analogia com as pragas derramadas sobre o império do Egito,
que enfraqueceram o poder do Faraó, facilitando a saída dos Judeus.
Nosso objetivo é apreciar a correspondência entre os fatos ocorridos
no Egito e as providências divinas anunciadas pelas trombetas no
Apocalipse de João, para que possamos entender que o nosso Deus
não muda. O que Ele fez por Israel no passado continua fazendo por
sua igreja em nossos dias. A narrativa das trombetas, de certa forma,
reproduz o que já se havia visto com os selos. A ordem aqui, porém,
está invertida; primeiramente, são recrutadas as forças da natureza
para enfraquecer o inimigo. Os efeitos das pragas são parciais,
atingem apenas a menor parte (um terço) de cada um dos locais
mencionados. Finalmente os guerreiros do oriente são liberados para
o ataque fulminante.
A primeira trombeta anuncia a praga da saraiva (chuva de pedras)
acompanhada de fogo que atinge a terra firme destruindo uma
pequena parte (um terço) de toda a sua vegetação (cf. Êxodo 9.18-
19). A segunda trombeta anuncia a praga lançada contra o mar (águas
salgadas), atingindo um terço de sua vida. A terceira trombeta anuncia
o cataclismo que atinge as águas doces (fontes e rios), que se tornam
amargas e não podem ser bebidas pelos homens (cf. Êxodo 7.19). A
quarta trombeta anuncia a praga dirigida contra os céus (atmosfera),
que escurece durante uma parte do dia levando os homens a andar
em trevas (cf. Êxodo 10.21,22). Os quatro elementos da natureza
(terra seca, águas salgadas, águas doces e ar) são atingidos
preparando a derrocada dos inimigos do Senhor.

211
A segunda série começa com a quinta trombeta que introduz a praga
dos gafanhotos (cf. Êxodo 10.12). Neste contexto, eles são muito
mais malignos e poderosos. São dotados de poder para atormentar
os homens causando-lhes grandes sofrimentos. O toque da sexta
trombeta anuncia, por fim, a invasão inimiga. Eles são anunciados
como os quatro anjos da morte que vêm do lado oriental do Eufrates.
Seus cavalos e cavaleiros trazem mais três pragas mortais: fogo,
fumaça e enxofre.
A sétima trombeta anuncia o fim com a vitória do Senhor: A ira das
nações se derrama sobre o opressor, Deus reina e o Seu santuário,
que estivera oculto aos homens, pode enfim ser visto novamente em
toda a sua glória.
A sequência de eventos introduzidos pelo toque das trombetas dos
arcanjos concorda com o que já havia sido anunciado na abertura dos
selos. Aqui, entretanto a intensidade e a dramaticidade estão
aumentadas. Como aconteceu no Egito, os rebeldes opressores são
os alvos exclusivos de todas as pragas. Os justos e obedientes são
poupados e não sofrem nenhum mal. Deus vela e zela por aqueles
que lhe são fiéis e não permite que nada de mal lhes aconteça.

Segunda narrativa (capítulos 12-22)


A trindade maligna
Nesta segunda versão da narrativa as personagens opressoras são o
Dragão (Satanás), A besta que veio do mar (O imperador romano), a
besta que veio da terra (O governo da província da Ásia) e a a grande
prostituta identificada como Babilônia (Roma, a capital do Império). A
ação se encaminha para a derrocada final da grande Babilônia e de
todos quantos nela confiam.
A primeira parte de cena se passa nos céus. Uma mulher (a nação de
Israel) grávida está prestes a dar à luz um filho (O Cristianismo). Seu
inimigo mortal (Satanás, simbolizado por um dragão) a vigia com a
intenção de lhe devorar o filho (Jesus Cristo) e impedir que ele domine
o mundo. O Arcanjo Miguel, defensor de Israel (Daniel 12.1), é o
primeiro libertador que faz guerra contra o dragão e o vence. Este
texto é baseado na narrativa da queda dos anjos, da apocalíptica
judaica que é encontrada no apocalipse de Enoque.

212
O dragão derrotado desce à terra e, não podendo mais agir de
maneira autônoma, transfere seu poder para a besta que veio do mar,
o Império Romano. Este livro foi escrito para os cristãos da província
da Ásia. Os habitantes desta província conheciam que os romanos
tinham chegado do ocidente, navegando pelo mar Mediterrâneo que
eles chamavam de “Mare Nostrum” (o nosso mar).
Em seguida, a besta entrega parte de sua autoridade ao falso profeta
(a besta que veio da terra) que representa o governo provincial da
Ásia. Este, para agradar seu patrono, constrange os moradores da
terra a prestar culto ao imperador (a primeira besta) e a levar sobre si
o seu número (666). Os que não concordam são presos, torturados e
mortos.

As pragas
Mais uma vez a linha de raciocínio do autor é apresentada com
clareza absoluta. Deus não muda e continua agindo exatamente da
mesma forma. Ele fere os homens direta e indiretamente por meio
dos elementos da natureza. Aqui, mais uma vez, o modelo seguido é
o das pragas do Êxodo. Elas são recontadas com uma linguagem
apocalítica, rica de novas imagens e de novos significados. Os
homens atingidos pelas pragas, rebelam-se e se reúnem para
guerrear contra Deus. Mera inutilidade. Neste estudo poderemos
perceber, mais uma vez, que os desígnios estabelecidos por Deus
não podem ser mudados por nenhum tipo de reação humana.
Aqui a história se repete: A ordem é dada para a liberação de sete
anjos. Eles não trazem trombetas e sim taças. Cada uma das taças
contém pragas que visam um objetivo específico. A soma de seus
efeitos é o enfraquecimento do opressor para que ele possa ser
derrotado com maior facilidade.
A primeira praga se dirige contra os adoradores marcados com o sinal
da besta que são feridos com úlceras (Êxodo 9.8-12). Logo a seguir,
uma maldição é lançada sobre o mar. A terceira praga atinge todos os
rios e fontes de água doce (Êxodo 7.14-25). A quarta praga se lança
contra o sol e a quinta traz trevas sobre o trono da besta (Êxodo
10.21-26). A sexta praga faz com que sequem as águas do rio
Eufrates (Êxodo 14.21-27). A diferença aqui está em que o
afastamento das águas beneficia os invasores que lutarão contra a
besta.
213
Os homens reagem para lutar contra Deus, reunidos no Armagedom.
Enquanto esperam o fim se precipita sobre eles. A sétima praga é
derramada e acontece a queda da Grande Cidade (Babilônia). Tudo
chegou ao fim determinado.
Provavelmente o autor se inspirou nos fatos ocorridos durante a
erupção do vulcão Vesúvio no ano 79 (o ano em que morreu o
imperador Vespasiano), que destruiu as cidades de Pompeia e
Herculano. Quando ele escreveu os fatos estavam recentes na
memória de todos.
No tempo próprio, Deus socorre seu povo e o liberta da opressão.
Não podemos prever quando a queda do opressor acontecerá, mas
podemos ter certeza de que, mais cedo ou mais tarde, ela virá. Conta-
se que na primeira, e também última viagem do Titanic, o
comandante, muito seguro da tecnologia empregada na construção
de sua embarcação, teria declarado: “Nem Deus pode afundar este
navio!”. O Titanic afundou. Deus não precisou fazer nada, bastou um
“iceberg”.
Muitos governantes se sentem absolutamente seguros em seus
poderosos castelos e desprezam os clamores de seus governados.
Eles se esquecem de quantos impérios poderosos, e considerados
invencíveis, chegaram ao fim.

A queda da Babilônia
Deus anuncia por meio de seus mensageiros (anjos) que a cidade
ímpia (Babilônia = Roma) não ficaria de pé. Seria destruída sem
nenhuma chance para os que com ela se associavam. Não é possível
construir um império alicerçado sobre o mal e ser bem-sucedido para
sempre. Mais cedo ou mais tarde o edifício vai ruir.
A cidade de Roma é aqui chamada de Babilônia. Para os judeus este
nome era sinônimo de terra do desterro e da opressão.
Historicamente, a Babilônia (atual Iraque) foi a terra para onde os
nativos de Judá foram deportados após a invasão de Nabucodonosor.
Lá ficaram por um período de cerca de setenta anos, privados da
possibilidade de subir a Jerusalém para prestar culto no templo.
Compare os salmos 122 e 137.
Roma, capital do Império Romano é a nova Babilônia. Suas tropas
invadiram Jerusalém no ano 70 d.C., destruíram o templo e puseram
214
fim ao culto. Os judeus dispersos já não tinham onde cantar nem
oferecer seus sacrifícios. Os cristãos não podiam adorar seu Senhor,
eram constrangidos à adoração de César.
Ela se tronou a terra do suplício para os mártires. A arena do “circus
maximus” ficava embebida no sangue de cristãos despedaçados
pelas feras. Uma boa imagem era a prostituta embriagada com o
sangue dos mártires.
Todos os que tinham seus negócios na capital imperial se lamentaram
quando a sua ruína se precipitou. Negociantes de todas as
nacionalidades e de todas as especialidades perderam em um
momento seu mercado mais próspero. Anuncia-se aqui a queda do
Império Romano e sua cabeça, Roma, a grande babilônia rolará.

Novos céus e nova terra


Aqui encerramos o estudo do Apocalipse de João. Nosso propósito é
compreender que Deus não muda seus propósitos apesar de todos
os contratempos que o homem introduz na história. O final dos
tempos retorna ao princípio. No Gênesis se descreve a criação da
terra e dos céus. No critério de qualidade do Criador eles eram
perfeitos. A adesão do homem ao pecado prejudica o projeto original
e corrompe a criação. Depois que for vencido o opositor e os seus
adeptos forem eliminados Deus retomará o projeto original fazendo
surgir novos céus e nova terra. Tudo começa de novo.

Conclusão
Satanás está derrotado, mas ainda não está aniquilado. Mesmo tendo
seus poderes restritos ele continua oferecendo combate aos
escolhidos do Senhor. Em momentos históricos importantes ele se
associa aos governantes sedentos de poder que desprezam o
respeito aos direitos fundamentais do ser humano e passa a oprimi-
los.
Ainda hoje esta história está acontecendo com irmãos nossos que
vivem em países onde os governantes são totalitários e adotam
religiões de caráter fundamentalista. Nossos missionários em países
árabes, especialmente nos governados por xiitas, e em outras terras
dominadas por religiões animistas e fetichistas, vêm sofrendo
perseguições

215
O clímax do Apocalipse é a habitação de Deus no meio de Seu povo.
Como Ele não pode ter nenhum contato com o que é contaminado e
comprometido pelo pecado, a chegada do Senhor deve ser precedida
pelo afastamento de todos que se contaminaram com os poderes
malignos e pela restauração da própria natureza (Romanos 8.18-23).
O projeto original do Senhor chegará ao seu objetivo final.

216
3. Desenvolvimento histórico da
escatologia cristã
Propósitos
Escatologia é o estudo do futuro. De um futuro que, obviamente, ainda
não existe. Por essa razão é um assunto difícil, cheio de hipóteses,
incertezas e de discussões sem conclusões. Os cristãos, no curso
destes vinte séculos de história, nunca chegaram a um acordo.
Para tentar compreender a situação atual vamos fazer uma
recapitulação do desenvolvimento histórico do assunto conforme os
tópicos seguintes: 1. Sumariar a escatologia do período apostólico. 2.
Sumariar a escatologia do período pós-apostólico. 3. Sumariar a
escatologia agostiniana. 4. Sumariar a escatologia da Reforma
Protestante. 5. Listar e descrever sucintamente os principais
postulados das escolas modernas de interpretação do Apocalipse:
Preterismo, Futurismo, Amilenismo, Pré-milenismo, Pos-milenismo,
Dispensacionalismo. 6. Mencionar e justificar a posição oficial dos
Batistas Brasileiros quanto a interpretação do Apocalipse.

Introdução
A compreensão das posições assumidas em nossos dias por
diferentes grupos de cristãos com respeito à interpretação do
Apocalipse exige que façamos a reconstituição da história das
interpretações desde o período em que foi escrito o Novo Testamento
até os nossos dias. Fala-se muito hoje em pré-milenismo, amilenismo,
dispensacionalismo. É importante que o estudante conheça essas
interpretações e é importante também que ele conheça a
interpretação oficial da Convenção Batista Brasileira, firmada na sua
declaração doutrinaria.

As escatologias do período apostólico


A primeira escatologia difundida no período apostólico foi a
escatologia que ensinava o retorno iminente de Jesus Cristo para
estabelecer o reino de Deus na Terra com sede no templo de
Jerusalém,
217
Essa escatologia foi derivada a partir da interpretação dos
ensinamentos do Mestre, registrados nos evangelhos sinóticos. No
discurso de preparação para a grande missão evangelística,
registrado no capítulo 10 do evangelho de Mateus, encontramos
Jesus declarando: “e indo, pregai, dizendo: É chegado o reino dos
céus” (v.7) e “Quando, porém, vos perseguirem numa cidade, fugi
para outra; porque em verdade vos digo que não acabareis de
percorrer as cidades de Israel antes que venha o Filho do homem”
(v.23).
A promessa não se realizou nos dias da vida terrena do Senhor, após
sua ressurreição, ele anunciou que voltaria. Os mesmos discípulos
questionaram: “Aqueles, pois, que se haviam reunido perguntavam-
lhe, dizendo: Senhor, é nesse tempo que restauras o reino a Israel”
(At. 1.6).
Paulo, no início de seu ministério apostólico, cria em uma volta muito
breve do Senhor quando o Reino seria restaurado em um tempo em
que ele ainda estaria vivo: “Dizemo-vos, pois, isto pela palavra do
Senhor: que nós, os que ficarmos vivos para a vinda do Senhor, de
modo algum precederemos os que já dormem. Porque o Senhor
mesmo descerá do céu com grande brado, à voz do arcanjo, ao som
da trombeta de Deus, e os que morreram em Cristo ressuscitarão
primeiro. Depois nós, os que ficarmos vivos seremos arrebatados com
eles, nas nuvens, ao encontro do Senhor nos ares, e assim estaremos
para sempre com o Senhor” (I Ts. 4;15-17).
Mais tarde, sentindo os efeitos do desgaste causado por suas
insalubres atividades missionárias, o apóstolo revê sua expectativa e
admite sua morte próxima: “Quanto a mim, já estou sendo derramado
como libação, e o tempo da minha partida está próximo” (II Tm. 4.6).
Essa mudança de expectativa escatológica se reflete a segunda
epístola aos tessalonicenses. Nesse escrito, o autor desmente a
doutrina de que o “dia do Senhor” já tinha acontecido e explica que
antes dessa ocorrência deve aparecer o homem da iniquidade. (II Ts.
4.1-4).

A escatologia do período pós-apostólico


A expectativa escatológica dos cristãos primitivos foi a continuação
natural de sua expectativa messiânica. Os cristãos das igrejas
apostólicas, em sua maioria judeus palestinos, interpretaram o
218
messianismo de Jesus com base na expectativa messiânica da nação
judaica. Para eles Jesus era o Filho de Davi que viria com a missão
específica de restaurar a soberania política em Israel instalando um
Reino de Deus essencialmente terreno e político. Quando essa
expectativa foi frustrada os cristãos judeus deslocaram para a
segunda vinda de Cristo a sua expectativa messiânica (At.1.6) e
desenvolveram uma escatologia expectante. Para os crentes da
comunidade joanina, que não aguardavam um messias político e sim
um profeta celestial conhecedor de todas as coisas (Jo.1.30, 4.25), a
vinda de Jesus preencheu integralmente todas as expectativas, nada
mais tinham a esperar. Dessa forma, a comunidade joanina
desenvolveu uma escatologia realizada (Jo.3.3). O primeiro século do
Cristianismo viveu o confronto entre a escatologia expectante da
comunidade apostólica e a escatologia realizada da comunidade
joanina.
As experiências vividas pelos cristãos do primeiro século levaram os
dois grupos a uma convergência de opiniões. Os crentes da
comunidade apostólica passaram muito rapidamente de sua
concepção inicial ao que podemos denominar como uma escatologia
em processo de realização. Uma expectativa de uma volta iminente
de Jesus Cristo quando todas as promessas divinas pendentes
seriam então cumpridas. Esta é a situação que encontramos nas
comunidades cristãs de Jerusalém e de Tessalônica, nas quais os
crentes vendiam as suas propriedades e se cotizavam na compra de
mantimentos que eram distribuídos a todos na medida da
necessidade de cada um. A comunidade joanina chegou ao mesmo
resultado por um caminho diferente. O surgimento de dissidentes
hereges que levaram a escatologia realizada a um extremo
incompatível com a ética cristã, levou a liderança da comunidade a
reformular a sua posição e a admitir que nem todas as expectativas
haviam sido satisfeitas naquele tempo.
Os escritos mais maduros do Novo Testamento parecem apoiar esta
posição. A primeira epístola de João declara: Nós já somos filhos de
Deus, mas ainda está por se revelar o que nós seremos (I Jo.3.2).
Paulo, escrevendo aos romanos, declara: A criação aguarda em
ardente expectativa a manifestação dos filhos de Deus (Rm.8.18-30).
É este o quadro que encontramos no encerramento do período
apostólico. Apesar dessa indefinição, alguns fatos ficaram bem
estabelecidos desde aquela época: 1—Cristo virá outra vez, 2-Os
219
crentes que morrerem antes da volta de Cristo ressuscitarão nessa
ocasião, 3 – Aqueles que ficarem vivos serão transformados e
receberão um corpo espiritual. 4 – Virá finalmente o juízo no qual os
homens serão separados em dois grupos. Os bons irão para o
descanso eterno e os maus para o sofrimento eterno.

A escatologia agostiniana
Findo o século primeiro da Era Cristã, o ardor escatológico da igreja
esfriou pela frustração decorrente do não cumprimento da promessa
da parusia. A igreja se institucionalizou e se hierarquizou. - Pode-se
dizer que o Cristianismo experimentou uma situação semelhante
àquela que tinha sido vivenciada pelos judeus dissidentes de Quaram
– Só mais tarde, com Agostinho (século IV), os cristãos começaram a
revisar a sua escatologia. Esta é a escatologia aceita ainda hoje pela
igreja católica. Seus pontos fundamentais são os seguintes:
1. Haverá um só juízo final.
2. A primeira ressurreição descrita no Apocalipse é a conversão.
3. O diabo foi amarrado por mil anos quando da primeira vinda
de Cristo.
4. O reinado dos santos por mil anos é diferente do reino eterno.
5. Os mortos que não ressuscitaram são os espiritualmente
mortos.
Essa interpretação motivou sérias expectativas de fim de mundo no
ano 1000 da era cristã, expectativas que, evidentemente, não se
cumpriram. As principais características da escatologia agostiniana
são as seguintes:
1. Preterista – declara que todas as profecias dos apocalipses
de Daniel e de João se cumpriram no passado.
2. Amilenista – não admite o reino milenar de Cristo.
3. Simbolista – não admite a interpretação literal do Apocalipse.

A escatologia da Reforma Protestante


Com o advento da Reforma Protestante, os cristãos que se
desligaram da Igreja Romana, adotaram um sistema escatológico
com ênfase histórica que colocava em destaque a posição apóstata
220
do Catolicismo Romano. Não foi difícil para eles identificar a Babilônia
com a Roma papal e o Anticristo com o próprio papa. Summers chama
esse método de interpretação de método da continuidade histórica.
A principal característica desta interpretação se constitui na
identificação dos eventos descritos no Apocalipse com fatos históricos
que já haviam ocorrido no tempo em que a Reforma Protestante
ocorreu. Esta interpretação é caracterizada como preterista. Por
exemplo, a abertura do livro selado, descrita no capítulo 10, é
identificada com a própria Reforma Protestante e as ocorrências
posteriores são interpretadas como profecias a respeito do papado. A
queda da Babilônia seria a destruição final do papado.
Summers nos mostra os principais pontos fracos desta interpretação:
1. O Apocalipse, interpretado desta forma, não teria nenhum
interesse para os crentes aos quais ele foi originalmente
dirigido. Que elemento de consolação poderia haver em fatos
que só se realizariam depois de 15 séculos, no mínimo?
2. Esta interpretação enfatiza demasiadamente a apostasia da
Igreja Romana, em detrimento de outros fatos não menos
importantes para os Cristãos de todos os tempos.
3. Sem qualquer critério, ela busca significado para as
narrativas do Apocalipse apenas em fatos ocorridos em
países dominados pelo Catolicismo Romano.
4. Desce a pormenores indevidos na interpretação dos fatos
históricos.
5. Os cálculos temporais feitos com base nesta interpretação
foram totalmente desmentidos.

A escatologia futurista ou pré-milenista.


Diferentemente dos preteristas da Reforma Protestante, que
interpretavam a maior parte dos eventos apocalípticos como já tendo
se cumprido no passado, os futuristas, ou pré-milenistas, jogam para
o futuro o cumprimento de uma grande quantidade destes mesmos
eventos. Estes podem ser divididos ainda em dois grupos, os pré-
milenistas históricos, mais moderados, e os dispensacionalistas. A
grande maioria das denominações evangélicas pentecostais adota a
posição pré-milenista. Assim também o fazem os Batistas Regulares
221
e os seguidores da Igreja Universal. A característica essencial do
dispensacionalismo é a admissão de que Jesus Cristo voltará duas
vezes. Na primeira ocorrerá o arrebatamento da igreja e na segunda
o juízo final. Entre as duas virá a grande tribulação. Por esta razão os
dispensacionalistas são também chamados de pré-tribulacionistas.

Pontos fortes desta interpretação:


1. É uma interpretação que toma a Bíblia ao pé da letra –
Summers considera o literalismo uma virtude. Permitimo-nos
a licença de discordar dele porque, como estabelece a
Hermenêutica, cada gênero literário da Bíblia tem as suas
regras particulares de interpretação. Nada nos autoriza a
aceitar que a interpretação literal seja a melhor para o gênero
apocalíptico que é essencialmente simbólico,
2. Mantém viva a expectativa do regresso do Senhor.
3. Na realidade não precisamos acreditar em milênio para
mantermos vivo o nosso fervor evangelístico. Basta-nos
atentar para as palavras do Mestre que nos mostram que os
campos estão brancos para a ceifa já no momento presente
e não apenas no futuro remoto.

Deficiências:
1. O Apocalipse, interpretado dessa forma, não teria nenhum
valor para os seus primitivos leitores.
2. Ela é incompatível com a declaração do autor de que os
eventos narrados nos livros se cumpririam brevemente (1.1).
3. Essa interpretação despreza inteiramente o simbolismo do
Apocalipse.
4. Ela se associa a uma Filosofia Materialista do Reino de Deus.

O método da formação histórica


O método da formação histórica é uma variante do método da
Filosofia da História. Ele se baseia no método preterista quando
admite que a maior parte dos eventos descritos no Apocalipse faz
referência a fatos que se cumpriram no período em que viveram os
seus primitivos leitores e diverge dele quando admite que desses
eventos podem ser aprendidas lições que são válidas para cristãos
222
de qualquer tempo ou lugar em que se repitam as condições de vida
experimentadas pelos primitivos leitores. Onde houver perseguição
religiosa os perseguidos poderão encontrar um elemento de
consolação nas páginas do Apocalipse.
Os princípios fundamentais deste método são:
1. O autor escreveu sua mensagem visando essencialmente
encorajar e edificar os cristãos do seu próprio tempo.
2. O Apocalipse foi escrito em sua maior parte (parte II) em
linguagem simbólica cujos símbolos podiam ser entendidos
pelos leitores aos quais ele foi originalmente dirigido pois, de
outra forma, no poderiam encontrar nenhum elemento de
consolação em sua leitura.
3. O Apocalipse usa uma simbologia extraída do Antigo
Testamento que foi adaptada à cultura da comunidade cristã
do primeiro século.
4. As visões apocalípticas devem ser interpretadas como um
todo. Devemos procurar o seu significado global sem darmos
atenção demasiada aos detalhes.
1. O Apocalipse estimula a imaginação do leitor.

A escatologia pós – milenista


A escatologia pós -- milenista se caracteriza por considerar os mil
anos como um símbolo do longo período que precederá a volta de
Jesus Cristo. Neste período o evangelho será pregado a todo o
mundo, pela atuação exclusiva do Espírito, ocorrerão inúmeras
reprises do pentecostes, e a aceitação maciça da mensagem trará o
reinado da paz que persistirá até a volta de Cristo. Nesta interpretação
o milênio representa o triunfo do evangelho no mundo.

Posição dos batistas brasileiros


A posição dos batistas brasileiros está firmada no artigo 19 de sua
Declaração Doutrinária e pode ser caracterizada como amilenista.
Schaly246 na introdução de seu livro sobre escatologia cristã analisa

246Schaly, H. Pequena história da escatologia cristã, Rio de


Janeiro, JUERP, 1968. 73 pp.
223
a posição oficial dos batistas da Convenção Batista Brasileira
expressa em suas declarações doutrinárias e conclui que,
diversamente dos Batistas Regulares que são francamente
premilenistas, nós batistas da CBB, somos amilenistas. Destaca que
na história do povo batista brasileiro tem havido alguns eminentes
líderes de crença premilenista, tais como John Mein e Salomon
Ginsburg, sendo que este último nos deixou como uma de suas
heranças o hino 106 do Cantor Cristo no qual se registra uma oração
que pede a inauguração do milênio. Apesar destas posições isoladas,
os documentos oficiais da denominação (declarações doutrinárias)
são unânimes em afirmar que Jesus Cristo voltará uma única vez para
consumar o Reino de Deus não deixando, portanto, nenhum espaço
para a ocorrência de um milênio histórico.

224
4. Um ensaio de interpretação
do apocalipse
Os números inteiros
O princípio fundamental para a interpretação dos números que
aparecem no Apocalipse de João é que eles devem ser tomados pelo
seu valor simbólico e não pelo seu valor aritmético. Os judeus
cristãos, para quem a mensagem do Apocalipse de João foi enviada,
não pensavam em números da mesma forma que nós. Para eles os
números, assim como as cores, suscitavam ideias precisas. Tanto os
números inteiros quantos os fracionários eram usados correntemente
para passar ideias. Isso não se constitui em peculiaridade deles.
Nossa cultura também tem resquícios desse simbolismo. Dizemos
por vezes que “sociedade de três não dá certo” ou que “sete é conta
de mentiroso”. Vejamos o que os inteiros significam na Bíblia:

Um, o número de Deus


Deuteronômio 6.4 Ouve. Israel, o SENHOR, nosso Deus, é o único
SENHOR. A fidelidade devida a Deus exigia que o seu culto nunca
fosse compartilhado. Saído do politeísmo primitivo 247, Israel deu um
grande passo ao evoluir para o henoteísmo quando concluiu que,
embora pudesse haver outros deuses, deveria comprometer-se a
adorar exclusivamente o SENHOR (IAWE). Esse passo possibilitou o
seguinte que foi a evolução para o monoteísmo autêntico. Quando
povo chegou à conclusão de que tudo mais que ele antes havia
conhecido como Deus não o era na realidade, eram falsos deuses,

247O assunto é polêmico. Entretanto a palavra para Deus na


língua hebraica (Elohim) é plural, significando na realidade
“Os deuses” v. Gênesis 1.1. Encontramos ainda na religião
hebraica antiga vestígios do politeísmo no culto a Azazel, o
líder doa anjos decaídos, que consistia em enviar um bode ao
deserto para aplacar a sua ira. Levítico 16.8-26.
225
Deus mesmo só existe um, atingiu o estágio final de sua evolução
religiosa.

Dois, o número do testemunho


Dt.17:6 Por boca de duas ou três testemunhas, será morto o que
houver de morrer; por boca de uma só testemunha, não morrerá.
Ap.11:3 E darei poder às minhas duas testemunhas, e profetizarão
por mil duzentos e sessenta dias, vestidas de pano de saco.
O número dois está indissociavelmente ligado ao testemunho. E o
mínimo de testemunhas que pode ser aceito em um processo legal.
O número dois é citado mais frequentemente na forma oculta e não é
visto no texto escrito, mas a ideia dele é comunicada. Isso é possível
porque nas línguas antigas como o Hebraico havia o número
gramatical dual que era o número próprio das coisas que existem
obrigatoriamente aos pares. As palavras deste número apresentam a
desinência “aim” (v.g. “Shenaim” = dois. “Mizraim” = os dois Egitos,
alto Egito e baixo Egito, “Shamaim” = os dois céus). Nas línguas
modernas há vestígios deste número. Em português temos uma única
palavra representativa “ambos” que não é um (singular) nem muitos
(plural), é obrigatoriamente dois. Na língua inglesa as palavras como
“scissors” (tesoura) e “trousers” ou “panties” (calças) também
apresentam esta ideia.
No Apocalipse de João o número dois aparece implicitamente na
composição do fracionário “três e meio” como “um tempo e (dois)
tempos e metade de um tempo”.
Ap.12.14 E foram dadas à mulher duas asas de grande águia, para
que voasse para o deserto, ao seu lugar, onde é sustentada por um
tempo, e tempos, e metade de um tempo, fora da vista da serpente.

Três, o número da obra completa


Gn.1.1 No princípio, criou Deus os céus e a terra. 2 E a terra era
sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo; e o
Espírito de Deus se movia sobre a face das águas. 3 E disse Deus:
Haja luz. E houve luz. 4 E viu Deus que era boa a luz; e fez Deus
separação entre a luz e as trevas. 5 E Deus chamou à luz Dia; e às
trevas chamou Noite. E foi a tarde e a manhã: o dia primeiro.
6 E disse Deus: Haja uma expansão no meio das águas, e haja
separação entre águas e águas. 7 E fez Deus a expansão e fez
226
separação entre as águas que estavam debaixo da expansão e as
águas que estavam sobre a expansão. E assim foi. 8 E chamou
Deus à expansão Céus; e foi a tarde e a manhã: o dia segundo.
9 E disse Deus: Ajuntem-se as águas debaixo dos céus num lugar;
e apareça a porção seca. E assim foi. 10 E chamou Deus à porção
seca Terra; e ao ajuntamento das águas chamou Mares. E viu
Deus que era bom. 11 E disse Deus: Produza a terra erva verde,
erva que dê semente, árvore frutífera que dê fruto segundo a sua
espécie, cuja semente esteja nela sobre a terra. E assim foi. 12 E
a terra produziu erva, erva dando semente conforme a sua espécie
e árvore frutífera cuja semente está nela conforme a sua espécie.
E viu Deus que era bom. 13 E foi a tarde e a manhã: o dia terceiro.
14 E disse Deus: Haja luminares na expansão dos céus, para
haver separação entre o dia e a noite; e sejam eles para sinais e
para tempos determinados e para dias e anos. 15 E sejam para
luminares na expansão dos céus, para alumiar a terra. E assim foi.
16 E fez Deus os dois grandes luminares: o luminar maior para
governar o dia, e o luminar menor para governar a noite; e fez as
estrelas. 17 E Deus os pôs na expansão dos céus para alumiar a
terra, 18 e para governar o dia e a noite e para fazer separação
entre a luz e as trevas. E viu Deus que era bom. 19 E foi a tarde e
a manhã: o dia quarto.
20 E disse Deus: Produzam as águas abundantemente répteis de
alma vivente; e voem as aves sobre a face da expansão dos céus.
21 E Deus criou as grandes baleias, e todo réptil de alma vivente
que as águas abundantemente produziram conforme as suas
espécies, e toda ave de asas conforme a sua espécie. E viu Deus
que era bom. 22 E Deus os abençoou, dizendo: Frutificai, e
multiplicai-vos, e enchei as águas nos mares; e as aves se
multipliquem na terra. 23 E foi a tarde e a manhã: o dia quinto.
24 E disse Deus: Produza a terra alma vivente conforme a sua
espécie; gado, e répteis e bestas-feras da terra conforme a sua
espécie. E assim foi. 25 E fez Deus as bestas-feras da terra
conforme a sua espécie e o gado conforme a sua espécie, e todo o
réptil da terra conforme a sua espécie. E viu Deus que era bom.
26 E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a
nossa semelhança; e domine sobre os peixes do mar, e sobre as
aves dos céus, e sobre o gado, e sobre toda a terra, e sobre todo
réptil que se move sobre a terra. 27 E criou Deus o homem à sua
imagem; à imagem de Deus o criou; macho e fêmea os criou. 28
227
E Deus os abençoou e Deus lhes disse: Frutificai, e multiplicai-
vos, e enchei a terra, e sujeitai-a; e dominai sobre os peixes do
mar, e sobre as aves dos céus, e sobre todo o animal que se move
sobre a terra. 29 E disse Deus: Eis que vos tenho dado toda erva
que dá semente e que está sobre a face de toda a terra e toda
árvore em que há fruto de árvore que dá semente; ser-vos-ão para
mantimento. 30 E a todo animal da terra, e a toda ave dos céus, e
a todo réptil da terra, em que há alma vivente, toda a erva verde
lhes será para mantimento. E assim foi. 31 E viu Deus tudo quanto
tinha feito, e eis que era muito bom; e foi a tarde e a manhã: o dia
sexto.

A criação é, por excelência, a obra completa de Deus. Deus gastou 3


dias para criar (dar forma) o universo (primeiro, segundo e terceiro) e
mais 3 para povoá-lo (quarto, quinto e sexto). Ele criou o universo
inteiro (uma terra e dois céus). No primeiro dia separou a luz das
trevas. No segundo separou as águas inferiores (oceano terrestre)
das superiores (oceano celeste). No terceiro separou a terra seca,
com três espécies de vegetais, das águas: Erva verde, erva verde que
dá sementes (cereais) e árvores frutíferas. No quarto povoou os céus
com três espécies de luminares: sol, lua e estrelas. No quinto povoou
a atmosfera e a água (elementos fluidos) com três espécies de
animais: aves, peixes e répteis marinhos. No sexto dia, povoou a terra
seca com três espécies de animais: répteis terrestres animais
selvagens e animais domésticos. Por fim criou o homem que também
é um animal, mas se distingue dos outros por ser a coroa da criação.
Dessa forma para que o elemento criado seja completo ele precisa ter
3 partes (3/3 = 1).
O número três passa a ideia de algo completo. Com todas as partes
incluídas. Quando Jesus Cristo quis mostrar que Pedro o abandonaria
completamente na hora do sofrimento declarou que o discípulo o
trairia três vezes e, ao recuperá-lo mais tarde exigiu que Pedro
reafirmasse seu amor também bem três vezes.
Jo.13.38 Respondeu-lhe Jesus: Tu darás a tua vida por mim? Na
verdade, na verdade te digo que não cantará o galo, enquanto me não
tiveres negado três vezes.
Jo.21.17. Disse-lhe, terceira vez: Simão, filho de lonas, amas-me?
Simão entristeceu-se por lhe ter dito pela terceira vez: Amas-me? E
228
disse-lhe: Senhor, tu sabes tudo; tu sabes que eu te amo. Jesus disse-
lhe: Apascenta as minhas ovelhas.
Na língua hebraica a tríplice repetição era a forma usual para indicar
o superlativo. A visão de chamada do primeiro Isaías (Is.6.1-9) relata
que ele viu a corte celestial onde os serafins faziam a tríplice
declaração da santidade de Deus. Nós, que somos herdeiros desta
tradição, encerramos o nosso culto com o tríplice amém. A confissão
de fé padrão da Igreja Católica Romana envolve uma tríplice
declaração de reconhecimento de culpa: “Mea culpa, mea culpa, mea
maxima culpa”.

Quatro, o número do mundo


Ap.9.14 a qual dizia ao sexto anjo que tinha a trombeta: Solta os
quatro anjos que estão presos junto ao grande rio Eufrates.15 E foram
soltos os quatro anjos que estavam preparados para a hora, e dia, e
mês e ano, a fim de matarem a terça parte dos homens.
O número quatro é o número do mundo, ou da terra. Na concepção
geográfica da antiguidade a terra era plana e tinha quatro limites:
norte, sul, oriente e ocidente. A referência a esses quatro limites
envolve a totalidade da terra. No livro do Apocalipse este número é
citado muitas vezes fazendo referência ao mundo. Isso não se
constitui em inovação. No livro de Daniel se faz referência à totalidade
do mundo falando-se dos quatro ventos do céu:
Dn.11.4. Mas, estando ele em pé, o seu reino será quebrado e será
repartido para os quatro ventos do céu; mas não para a sua
posteridade, nem tampouco segundo o poder com que reinou, porque
o seu reino será arrancado e passará a outros.
Também Ezequiel profetiza a destruição completa de Israel dizendo
que ela se estenderá aos quatro cantos da terra:
Ez.7.2 E tu, ó filho do homem, assim diz o Senhor JEOVA acerca da
terra de Israel: Vem o fim, o fim vem sobre os quatro cantos da terra.
Entendemos, dessa forma, que o número quatro faz referência à
totalidade da extensão do mundo conhecido na época em que foram
escritos os livros estudados. Os quatro animais do Apocalipse de João
também representam a totalidade da criação:

229
Ap.4.6 também havia diante do trono como que um mar de vidro,
semelhante ao cristal; e ao redor do trono, um ao meio de cada lado,
quatro seres viventes cheios de olhos por diante e por detrás; 7e o
primeiro ser era semelhante a um leão; o segundo ser, semelhante a
um touro; tinha o terceiro ser o rosto como de homem; e o quarto ser
era semelhante a uma águia voando. 8 os quatro seres viventes
tinham, cada um, seis asas, e ao redor e por dentro estavam cheios
de olhos; e não têm descanso nem de noite, dizendo: Santo, Santo,
Santo é o Senhor Deus, o Todo-Poderoso, aquele que era, e que é, e
que há de vir.
O leão é o mais importante dos animais selvagens, o touro é o mais
importante dos animais domésticos, o homem é o mais importante ser
de toda a criação e a águia a mais importante das aves. Em conjunto,
representam toda a criação rendendo glórias ao Criador.

Sete, o número da plenitude


Ap. 3.1 E ao anjo da igreja que está em Sardes escreve: Isto diz o
que tem os sete Espíritos de Deus e as sete estrelas: Eu sei as tuas
obras, que tens nome de que vives e estás morto.
O número sete é usado no Apocalipse de João para indicar a
plenitude. Assim é que a plenitude do espírito de Deus, presente em
Jesus Cristo, é indicada pela expressão: “os sete Espíritos de Deus”.
O número sete é obtido pela soma de 3 (o número da obra completa)
e 4 (o número da extensão da terra). Para os judeus ele representava
o limite máximo que podia ser almejado. Um discípulo que almejava
atingir a perfeição inquiriu a Jesus:
Mt.18.21 Então, Pedro, aproximando-se dele, disse: Senhor, até
quantas vezes pecará meu irmão contra mim, e eu lhe perdoarei? Até
sete? 22. Jesus lhe disse: Não te digo que até sete, mas até setenta
vezes sete.
No livro do Apocalipse aparecem várias séries de sete: sete espíritos
de Deus (1.4), sete igrejas (1.11), sete castiçais (1.12), sete estrelas
(1.16), sete selos (5.1), sete trombetas (8.2), sete pragas (15. 1). Uma
forma alternativa de fazer referência ao número sete no Apocalipse é
a citação das letras alfa e ômega. O alfabeto grego possui sete
vogais, das quais, alfa é a primeira e ômega é a última. A citação dos

230
dois elementos extremos do conjunto envolve a citação do conjunto
inteiro que tem sete elementos.
Dez, o número do homem
Ap.2.10 Nada temas das coisas que hás de padecer. Eis que o diabo
lançará alguns de vós na prisão, para que sejais tentados; e tereis
uma tribulação de dez dias. Sê fiel até a morte, e dar-te-ei a coroa da
vida.
Ap.12.3 E viu-se outro sinal no céu, e eis que era um grande dragão
vermelho, que tinha sete cabeças e dez chifres e, sobre as cabeças,
sete diademas.
Ap.13.1 E eu pus-me sobre a areia do mar e vi subir do mar uma besta
que tinha sete cabeças e dez chifres, e, sobre os chifres, dez
diademas, e, sobre as cabeças, um nome de blasfêmia.
Ap.17.3 E levou-me em espírito a um deserto, e vi uma mulher
assentada sobre uma besta de cor escarlate, que estava cheia de
nomes de blasfêmia e tinha sete cabeças e dez chifres.
Ap.17.7 E o anjo me disse: Por que te admiras? Eu te direi o mistério
da mulher e da besta que a traz, a qual tem sete cabeças e dez
chifres.
Ap.17.12 E os dez chifres que viste são dez reis, que ainda não
receberam o reino, mas receberão o poder como reis por uma hora,
juntamente com a besta.
Apocalipse 17:16 E os dez chifres que viste na besta são os que
aborrecerão a prostituta, e a porão desolada e nua, e comerão a sua
carne, e a queimarão no fogo.

Dez, o número do homem.


O homem tem dez dedos na mão. Dez dias, portanto, simbolizam a
duração da vida de um homem. Ap. 2.10 nos ensina que alguns dos
cristãos que estavam presos não sairiam da prisão com vida. Só lhes
restava manter a fidelidade até a morte para receber o prêmio para o
qual foram vocacionados. Os dez chifres dos animais (o dragão e as
duas bestas) representam suas atuações por meio de poderes
humanos. Retiramos os chifres das vacas para que elas não tenham

231
o poder de nos atacar. Se retiramos os chifres (seres humanos
devotados) do dragão ele também não poderá fazer nada contra nós.

Doze, o número do povo de Deus


Doze é obtido pela multiplicação de 3 e 4. Também representa um
todo completo e historicamente se refere à totalidade do povo de
Israel. No livro de Apocalipse aparece na sua forma singular, como
dobro (vinte e quatro) e como quadrado (cento e quarenta e quatro).
Ap.7.5-8 Da tribo de Judá, havia doze mil assinalados; da tribo de
Ruben, doze mil; da tribo de Gade, doze mil; da tribo de Aser, doze
mil; da tribo de Naftlali, doze mil; da tribo de Manassés, doze mil; da
tribo de Simeão, doze mil; da tribo de Levi, doze mil; da tribo de
Issacar, doze mil; da tribo de Zebulom, doze mil; da tribo de José,
doze mil; da tribo de Benjamim, doze mil.
Ap.4.4 E ao redor do trono havia vinte e quatro tronos; e vi assentados
sobre os tronos vinte e quatro anciãos vestidos de vestes brancas; e
tinham sobre a cabeça coroas de ouro.
Ap.14.1 E olhei, e eis que estava o Cordeiro sobre o monte Sião, e
com ele cento e quarenta e quatro mil, que em sua testa tinham escrito
o nome dele e o de seu Pai. 2 E ouvi uma voz do céu como a voz de
muitas águas e como a voz de um grande trovão; e uma voz de
harpistas, que tocavam com a sua harpa. 3 E cantavam um como
cântico novo diante do trono e diante (os quatro animais e dos
anciãos; e ninguém podia aprender aquele cântico, senão os cento e
quarenta e quatro mil que foram comprados da terra.
Os vinte e quatro tronos com os vinte e quatro anciãos são
interpretados como uma referência aos doze patriarcas de Israel (o
antigo povo de Deus) e aos doze apóstolos da igreja (o novo povo de
Deus) isso significa que o livro reconhece a continuidade da obra de
Deus, que começou com Israel, na igreja cristã. Os cento e quarenta
e quatro mil (12 x 12 x 1000) nos falam de uma multidão inumerável.

Seiscentos e sessenta e seis, o número do mal


Ap.13.18. Aqui há sabedoria. Aquele que tem entendimento calcule o
número da besta, porque é número de homem; e o seu número é
seiscentos e sessenta e seis.

232
Duas linhas de interpretação têm orientado a análise deste número. A
primeira delas consiste em obter a soma dos valores numéricos das
letras que compõem um determinado nome. Por este método somos
levados a concluir que o número 666 no livro de Apocalipse identifica
o imperador Nero uma vez que a soma dos valores das letras do seu
nome transliterado para o Hebraico, Foi pela aplicação deste método
que os cristãos reformados identificaram a besta com o papado: a
soma dos valores romanos das letras componentes do título usado
pelo papa (Vicarivs filii dei) também dá 666.
A segunda linha de interpretação depende da consideração das
características do pensamento hebreu. 1 – O número seis (sete
menos um) representa a falha em atingir a plenitude. Lembremos que
palavra hebraica para pecado significa “ficar aquém do alvo”. 2 – A
tríplice repetição é usada na língua hebraica para indicar o modo
superlativo. Isaías, em sua visão de chamada, contemplou serafins
que declaravam três vezes a santidade de Deus:
Is.6.3 E clamavam uns para os outros, dizendo: Santo, Santo, Santo
é o SENHOR dos Exércitos; toda a terra está cheia da sua glória.
No Apocalipse de João, esta visão é repetida:
Ap,4.8 E os quatro animais tinham, cada um, respectivamente, seis
asas e, ao redor e por dentro estavam cheios de olhos; e não
descansam nem de dia nem de noite, dizendo: Santo, Santo, Santo é
o Senhor Deus, o Todo-poderoso, que era, e que é, e que há de vir
O que os animais diziam, tanto na visão de Isaías quanto na de João,
é que Deus é o mais santo de todos os santos. A tríplice repetição do
número 6 indica, de maneira enfática, a declaração da falha em atingir
a plenitude absoluta. Outra argumentação a favor desta linha de
interpretação é que o numeral seis em língua hebraica (shishi) tem
uma pronúncia que lembra o chiado da serpente, que no mesmo livro
do Apocalipse simboliza o inimigo maior (12.9. 20.2)

Mil, o número das coisas inumeráveis


O número 1000 na literatura bíblica, especialmente no Novo
Testamento, nos comunica a ideia de alguma coisa que é muito
grande para ser contada, de algo inumerável, e, portanto, indefinido.
Este o sentido com que este número é usado na segunda epístola de
Pedro.
233
II Pd.3.8. Mas, amados, não ignoreis uma coisa: que um dia para o
Senhor e como mil anos, e mil anos, como um dia.
No livro de Apocalipse ele aparece compondo os 144.000 para passar
a ideia de uma multidão inumerável e aparece isolado para descrever
a duração do reinado do messias quando o inimigo será imobilizado:
Ap.20.2 Ele prendeu o dragão, a antiga serpente, que é o diabo e
Satanás, e amarrou–o por mil anos.
O ensino do Apocalipse é que depois do término daquela perseguição
pela qual a igreja estava passando haveria um período de paz e
tranquilidade de duração ilimitada. Esta previsão se cumpriu. Após a
morte de Domiciano os cristãos não sofreram maiores perseguições
e, no quarto século, foram reconhecidos como religiosos dentro da lei
do Império Romano.

Os números fracionários
Um quarto, o número da menor parte
Ap.6:8. E olhei, e eis um cavalo amarelo; e o que estava assentado
sobre ele tinha por nome Morte; e o inferno o seguia; e foi-lhes
dado poder para matar a quarta parte da terra com espada, e com
fome, e com peste, e com as feras da terra.
Sendo quatro o número característico do mundo completo na cultura
helenística, o seu recíproco ¼ (quarta parte) representa uma fração
do mesmo mundo. A menção de quarta parte no texto acima indica
que a mortandade atingiria apenas a minoria da humanidade.

A divisão assimétrica (um terço e dois terços)


Se a obra completa tem obrigatoriamente três partes na cultura
hebraica, a sua divisão em partes desiguais, tem que ser
obrigatoriamente por trios. Nessa divisão um terço representa a parte
menor e dois terços representa a parte maior. Como adverte o profeta
Zacarias:
Zc.13:8 E acontecerá em toda a terra, diz o SENHOR, que as duas
partes dela serão extirpadas e expirarão; mas a terceira parte
restará nela.
Observemos que Zacarias usa a expressão duas partes (de três) para
se referir à maioria e a terceira parte para se referir à minoria. Dentro
234
dessa óptica, quando o numeral 1/3 aparece no Apocalipse ele
sempre faz referência a algo limitado e não muito grande, em geral a
um período de tempo.
Ap.8.7 E o primeiro anjo tocou a trombeta e houve saraiva e fogo
misturado com sangue, e foram lançados na terra, que foi
queimada na sua terça parte; queimou-se a terça parte das
árvores, e toda a erva verde foi queimada. 8 E o segundo anjo
tocou a trombeta; e foi lançada no mar uma coisa como um grande
monte ardendo em fogo, e tornou-se em sangue a terça parte do
mar. 9 E morreu a terça parte das criaturas que tinham vida no
mar, e perdeu-se a terça parte das naus. 10 E o terceiro anjo tocou
a trombeta, e caiu do céu unia grande estrela, ardendo como uma
tocha, e caiu sobre a terça parte dos rios e sobre as fontes das
águas. 11 E o nome da estrela era Absinto, e a terça parte das
águas tornou-se em absinto, e muitos homens morreram das águas,
porque se tornaram amargas. 12 E o quarto anjo tocou a trombeta,
e foi ferida a terça parte do sol, e a terça parte da lua, e a terça
parte das estrelas, para que a terça parte deles se escurecesse, e a
terça parte do dia não brilhasse, e semelhantemente a noite.

A divisão simétrica: três e meio


Se o número 7 representa a plenitude. Facilmente entendemos que a
sua metade (três e meio) representa a limitação. Existem várias
maneiras de o livro do Apocalipse se referir à expressão 3 1/2.
Vejamos:
a) Um tempo e tempos e metade de um tempo (12.4) - como já
tivemos a oportunidade de discutir a expressão tempos significa na
realidade dois tempos. A mulher (igreja) estava sendo perseguida
pelo dragão (Satanás) que queria devorar o seu filho (a obra
redentora da igreja no mundo) mas essa perseguição não duraria
eternamente, continuaria por um tempo curto.
b) Três dias e meio – Também sinaliza para um tempo limitado:
Ap.11.9 E homens de vários povos, e tribos, e línguas, e nações
verão seu corpo morto por três dias e meio e não permitirão que
o seu corpo morto seja posto em sepulcros. Ap.11.11 E. depois
daqueles três dias e meio, o espírito de vida, vindo de Deus, entrou

235
neles; e puseram-se sobre os pés, e caiu grande temor sobre os que
os viram.
c) Quarenta e dois meses – são três anos e meio o que significa um
período curto ao passo que sete anos significariam um período
ilimitado (pleno)
Ap.11.2 E deixa o átrio que está fora do templo e não o meças;
porque foi dado às nações, e pisarão a Cidade Santa por quarenta
e dois meses. Ap.13:5. E foi-lhe dada uma boca para proferir
grandes coisas e blasfêmias; e deu-se lhe poder para continuar
por quarenta e dois meses.
c) Mil duzentos e sessenta dias – O ano do calendário hebreu era
lunar e se compunha de 360 dias. Para sincronizar o seu calendário
como calendário solar os hebreus observavam, a cada quatro anos
um ano de 13 meses o que corresponde ao dia extra do nosso ano
bissexto. 1260 dias é o número de dias de três anos e meio e tem
exatamente o mesmo significado das duas expressões anteriores.
Ap.11.3 E darei poder às minhas duas testemunhas, e profetizarão
por mil duzentos e sessenta dias, vestidas de pano de saco.
Apocalipse 12:6 E a mulher fugiu para o deserto, onde já tinha
lugar preparado por Deus para que ali fosse alimentada durante
mil duzentos e sessenta dias.
O primeiro versículo (11.3) nos informa que o luto das testemunhas
(pano de saco) teria duração limitada e o segundo que a vida da igreja
em esconderijos para não sucumbir à perseguição também seria
limitada. Nenhum desses males duraria tanto que não pudesse ser
suportado.

As cidades
Babilônia, o lugar do cativeiro
Na história do povo de Israel a Babilônia representa o local do
desterro, para onde o povo foi levado como castigo por sua
infidelidade à aliança celebrada com o Senhor. Desde então o nome
Babilônia passou a significar domínio estrangeiro, cativeiro, privação
de atividades de cunho espiritual, tais como o acesso ao templo, aos
sacrifícios diários e à comunhão com os escolhidos.
Ao mesmo tempo que se desenvolvia a rejeição à Babilônia,
desenvolvia-se também um grande desejo de retornar à Jerusalém.
236
Nesse período nasceu o sionismo. Essa situação é bem descrita no
salmo 137.

Jerusalém, na terra ou no céu


Jerusalém sempre foi o lugar ideal para todo o judeu. É decantada
nos salmos (122) como o lugar onde ele desejava estar todos os dias
de sua vida. No tempo em que o apocalipse foi escrito a Jerusalém
terrestre já não existia mais porque havia sido destruída pelas legiões
romanas no ano 70. A alternativa foi a visão da Jerusalém celestial,
perfeita e indestrutível, que no tempo próprio desceria à terra para ser
a nova habitação do Senhor com o seu povo (Ap. 21.2).

Animais terríveis, símbolos de poder


Na apocalíptica judaica os animais predadores foram utilizados para
simbolizar os impérios que exerceram poder sobre o povo de Israel.
No livro de Daniel encontra-se a descrição de quatro animais
terríveis.248: O primeiro tinha aparência de um leão, o segundo era
semelhante a um urso, o terceiro era semelhante a um leopardo e o
quarto, apresentava aspecto tão terrível que não podia ser
identificado com nenhum animal conhecido. Este último tinha dentes
de ferro e dez chifres. A descrição das “bestas” no Apocalipse de João
é moldada a partir da visão deste último animal. Os animais
representam impérios e os chifres atestam seu poder. Quanto mais
numerosos forem os chifres mais poderoso será o animal.
As bestas do Apocalipse são uma representação alegórica do poder
imperial romano. A primeira delas, que veio do mar, alude às legiões
romanas que chegaram do ocidente transportadas em navios. A
segunda, surgida da terra, se refere ao poder político do imperador
encarnado pelos líderes provinciais. A interpretação vem logo a
seguir:

248 Daniel 7.1-7


237
Estes grandes animais, que são quatro, são quatro reis, que se
levantarão da terra. Mas os santos do Altíssimo receberão o
reino e o possuirão para todo o sempre, sim, para todo o
sempre. Daniel 7.17-18.

A leitura desse texto orientada pela história permite concluir que o


primeiro animal, semelhante a um leão com asas era o império
assírio. O segundo, semelhante a um urso, representava o império
babilônio. O terceiro animal, representa o império medo-persa. O
quarto, finalmente, é a descrição do império de Alexandre, o grande,
da Macedônia.
O sucessor do império de Alexandre foi o império romano fundado por
César Augusto que é representado no apocalipse de João pela besta
que veio do mar.

238
Unidade VI – Epístolas Gerais

São chamadas de epístolas gerais, ou católicas,


aquelas que não se dirigem a uma igreja ou a um
grupo específico de igrejas. Seus destinatários são
todos os cristãos.

Entre elas encontramos as epístolas aos Hebreus, a


epístola de Tiago, duas epístolas de Pedro, três
epístolas de João e a Epístolas de Judas.

239
1. Epístola aos Hebreus
Propósitos
A Epístola aos Hebreus é a primeira das chamadas Epístolas Gerais
ou Epístolas Católicas. As epístolas deste grupo, em contraste com
as paulinas, não são dirigidas a uma igreja ou a uma pessoa, em
particular. Elas têm como destinatários toda uma comunidade de
salvos. É uma espécie de encíclica, um tipo de literatura que teve seu
início no período neotestamentário e que se tornou muito popular no
patrístico. Esta epístola é um livro peculiar do Novo Testamento uma
vez que foge aos padrões que já conhecemos para a literatura
epistolar. Ela não identifica seu autor e também não identifica seus
destinatários. Quando a lemos temos a impressão de ter em mãos um
livro cuja primeira página foi arrancada. Sua composição apresenta o
estilo de um tratado teológico e não de uma carta.
No estudo desta epístola enfrentaremos as seguintes tarefas: 1.
Discutir sumariamente os argumentos favoráveis e contrários à
autoria paulina da epístola aos Hebreus. 2. Discutir sucintamente as
outras hipóteses de autoria: Lucas, Clemente de Roma, Barnabé,
Silvano, Apolo. 3.Discutir a identificação dos possíveis destinatários
desta epístola. 4.Discutir as hipóteses sobre a data mais provável
para a composição do livro. 5.Discutir o propósito teológico do autor

Autoria
Por muito tempo a autoria desta epístola foi atribuída ao apóstolo
Paulo e a aceitação da autoria paulina foi o argumento decisivo para
a canonização deste livro. Em algumas edições antigas da Bíblia em
língua portuguesa ele ainda aparecia com o título Epístola de Paulo
aos Hebreus. Dessa forma, os elementos derivados da tradição
recomendam que comecemos o exame da questão autoria pela
hipótese de autoria paulina.

Evidências externas
Desde o tempo de formação do cânon, estabeleceu-se uma nítida
diferença de posicionamento entre a igreja ocidental, de língua latina,
e a oriental, de língua grega, com respeito à canonização deste livro.
A primeira só veio a admitir a autoria paulina desta carta e, junto com

240
ela, a canonicidade, a partir do século IV. O cânon de Marcion e o
cânon Muratoriano (ambos de Roma) não incluem esta epístola.
Outros autores romanos tais como Clemente e Hermas também não
fazem alusão ao nome do autor desta epístola. Os autores orientais,
embora tenham aceito a canonicidade desta epístola mais
precocemente, também não reconheceram a autoria paulina.

Evidências internas
Muitas evidências obtidas a partir do texto desta epístola nos falam
contra a autoria paulina:
Falta de identificação – Paulo se identifica claramente em quase todas
as epístolas que escreveu. O autor desta epístola, por outro lado, não
nos dá nenhuma identificação. Não teríamos como explicar a falta de
identificação nesta epístola se é que ela foi escrita por Paulo.
Língua e estilo – O Grego da Epístola aos Hebreus é de qualidade
muito melhor que o Grego das epístolas paulinas 249. Não há como
justificar o uso de um Grego de qualidade inferior por um autor que
podia escrever melhor. Também o estilo é diferente; as epístolas
paulinas são ricas em digressões e em declarações parentéticas.
Moody chega a declarar que para entender Paulo temos que imaginá-
lo dialogando com um personagem que recebe uma saraivada de
argumentos aos quais só tem oportunidade de responder com
grunhidos. A Epístola aos Hebreus, por outro lado, apresenta uma
linha de raciocínio impecável, com todas as proposições e exemplos
comprobatórios perfeitamente posicionados.
Uso do Velho Testamento – O uso do Velho Testamento pelo autor
desta epístola vem sendo alistado com argumento contrário à autoria
paulina. Hale alega que enquanto Paulo cita o Velho Testamento pelo
texto massorético o autor desta epístola o cita pelo da Septuaginta e
vai mais além; o autor desta epístola usa para o Velho Testamento
uma interpretação alegórica, exatamente do tipo que se usava em
Alexandria, diferentemente de Paulo que faz uso de tipologias: No
sacerdócio de Melquisedeque encontramos uma alegoria do

249Enquanto os demais livros do Novo Testamento são


redigidos no Grego popular ou comum este é redigido no
Grego literário, o Ático.
241
sacerdócio de Jesus Cristo, no santuário levítico encontramos uma
alegoria do santuário celestial. Paulo também usa a interpretação
alegórica do Velho Testamento, mas dá preferência ao uso das
tipologias. Essa era a técnica de interpretação usada pela escola
rabínica de Jerusalém.
O raciocínio – Diferentemente do raciocínio que encontramos
usualmente em Paulo, o raciocínio desenvolvido na Epístola aos
Hebreus é claro e límpido. Além disto, ele segue claramente o padrão
de argumentação da escola de Alexandria.
A Cristologia – A Cristologia sacerdotal desenvolvida pelo autor desta
epístola usando Melquisedeque como tipo de Jesus Cristo não tem
paralelo em nenhum escrito Paulino. Além disso, Paulo nunca admitiu
ter recebido o seu evangelho de testemunhas, como o faz o autor
desta epístola.

Destinatários
Este é outro problema ainda não resolvido. A epístola não identifica
os seus destinatários. Seu tipo de argumentação, rico em referências
ao Antigo Testamento, sugere que os leitores primitivos eram judeus
helenistas convertidos ao Cristianismo. Percebe-se também que, de
alguma forma, eles se ligavam à comunidade cristã de Roma e
estavam sendo perseguidos por causa da sua fé.

Data
Esta epístola não pode ter sido escrita depois de 95 d.C. uma vez que
nesta data ela foi usada por Clemente de Alexandria. Se admitirmos
a autoria paulina teremos que fazer a sua data de composição
retroagir até 68 d.C., ano em que Paulo morreu. A palavra do autor
declarando aos leitores que, na sua luta contra o pecado eles ainda
não haviam resistido até o sangue, sugere que eles eram cristãos que
estavam sendo perseguidos, mas ainda não martirizados. Se esses
leitores pertenciam mesmo à comunidade de Roma, podemos fazer
uso deste argumento para declarar que a epístola foi composta antes
de 64 (data do incêndio de Roma) que marcou o início do martírio de
cristãos. O tipo de heresia que ela combate sugere a atuação dos
judaizantes o que favorece sua datação para o primeiro século. Todos
estes dados concordam em que a epístola aos Hebreus tenha sido
escrita antes do ano 64. Esta conclusão é favorecida ainda pelo fato

242
de o autor fazer referência aos sacrifícios do templo que pareciam
estar ainda em execução.

Propósito – uma advertência contra a


apostasia
Uma vez que não conseguimos identificar com precisão nem o autor
da epístola nem os seus destinatários encontramos algumas
dificuldades em fixar o objetivo teológico deste livro. Três fatos,
entretanto, ficam claros a partir da leitura do mesmo: 1-Os leitores
estavam sendo perseguidos por causa do evangelho e o autor
pretendia estimulá-los à perseverança com base nos testemunhos de
fé do Antigo Testamento. Estavam também sendo convidados a
apostatar do Cristianismo e retornar ao Judaísmo (que era uma
religião lícita) para escapar à perseguição. 2 – O cumprimento da
promessa ainda não havia sido atingido, o que pode ser interpretado
como uma referência à expectativa não satisfeita da parusia. 3 – A
igreja estava sendo complacente com seus membros que
apostatavam da fé e que, posteriormente, se mostravam interessados
em se reintegrar à comunhão. Este fato deixou o autor bastante
aborrecido.
Essas observações nos levam a concluir que esta epístola foi escrita
com o objetivo de estimular os leitores a não abandonarem a fé cristã
para retornar às obras da lei mosaica mesmo que este retorno lhes
poupasse as desagradáveis experiências decorrentes da perseguição
oficial.

Esboço (segundo a Bíblia vida nova)


Prólogo – Curso e clímax da revelação divina (1.1-3)
A preeminência do próprio Cristo (1.4 – 4.13)
A superioridade de Cristo aos anjos (1.4-14)
Aviso: Perigo de indiferença a essas verdades (2.1-4)
O motivo que levou Cristo a se tornar humano (2.5-18)
A superioridade de Cristo a Moisés (3.1-6)
Aviso: Os efeitos da incredulidade (3.7 – 4.13)
O sacerdócio de Jesus Cristo (4.14 – 10.18)
A importância do seu sacerdócio para a conduta pessoal (4.14-16)
243
Qualificações de um sumo sacerdote (5.1-10)
Aviso: Imaturidade e apostasia são conquistadas apenas pela fé,
longanimidade e esperança (5.11 – 6.20a)
Condição dos leitores (5.11-14)
Terminar a carreira cristã exige constância (6.9-20a)
O Eterno sucessor de Melquisedeque (6.20b – 7.28)
O próprio Melquisedeque (6.20b – 7.3)
Melquisedeque é superior ao sacerdócio levítico (7.4-10)
Cristo é superior ao sacerdócio levítico (7.11-28)
O santuário celeste e o novo pacto (8.1-13)
Serviço sacerdotal sob os dois Testamentos (9.1-28)
O investimento do sacerdote no antigo pacto (9.1-10)
A importância do sangue em ambos os pactos (9.11-22)
A insuficiência dos sacrifícios sob a lei em contraste com a eficácia e
caráter do sacrifício de Cristo (10.1-18)
A perseverança dos crentes (10.19 --12.29)
Atitudes a serem buscadas e atitudes a serem evitadas (10.19-38)
A Fé em ação – exemplos ilustres do passado (11.1-40)
Incentivos para a ação no presente e no futuro (12.1-29)
Post-scriptum – Exortações, questões pessoais e bênção (13.1-25)

Destaque – a questão sobre a perda da


salvação
A leitura dos versículos 4 a 8 do capítulo 6 desta epístola sugeriu a
muitos leitores a possibilidade de o autor defender a tese de que o
verdadeiro crente pode perder a salvação. De fato, ele declara que é
impossível a restauração para o arrependimento daqueles que tendo
sido iluminados, tendo provado o dom vindo do mais elevado céu,
tendo se tornado participantes do Espírito Santo, tendo provado a boa

244
palavra de Deus e os poderes do mundo vindouro, abandonaram e fé
e de novo crucificaram o Senhor Jesus.
Entretanto o autor não faz referência à salvação nesse texto. Ele
apenas aplica a seus leitores cristãos que estavam apostatando da fé
e retornando ao judaísmo os rigores da própria lei judaica:
“.... Será que, quando se fizer alguma coisa sem querer, e isso for
encoberto aos olhos da congregação, toda a congregação
oferecerá um novilho para holocausto em cheiro suave ao Senhor,
com a oferta de cereais do mesmo e a sua oferta de libação,
segundo a ordenança, e um bode como sacrifício pelo pecado. E o
sacerdote fará expiação por toda a congregação dos filhos de
Israel, e eles serão perdoados; porquanto foi erro, e trouxeram a
sua oferta, oferta queimada ao Senhor, e o seu sacrifício pelo
pecado perante o Senhor, por causa do seu erro. Será, pois,
perdoada toda a congregação dos filhos de Israel, bem como o
estrangeiro que peregrinar entre eles; porquanto sem querer errou
o povo todo. E, se uma só pessoa pecar sem querer, oferecerá uma
cabra de um ano como sacrifício pelo pecado. E o sacerdote fará
perante o Senhor expiação pela alma que peca, quando pecar sem
querer; e, feita a expiação por ela, será perdoada. Haverá uma
mesma lei para aquele que pecar sem querer, tanto para o natural
entre os filhos de Israel, como para o estrangeiro que peregrinar
entre eles. Mas, a pessoa que fizer alguma coisa temerariamente,
quer seja natural, quer estrangeira, blasfema ao Senhor; tal
pessoa será extirpada do meio do seu povo, por haver desprezado
a palavra do Senhor, e quebrado o seu mandamento; essa alma
certamente será extirpada, e sobre ela recairá a sua iniquidade.
250
Ele preconiza para os apóstatas uma pena de excomunhão sem
qualquer chance de retorno posterior à comunidade dos crentes. O
que está em discussão é o juízo humano e não o juízo divino. Ele
coloca que crentes imaturos (Hebreus 5.11-14) correm o risco de
apostatar quando pressionados pelas perseguições e que a
comunidade dos crentes (igreja) deve agir muito severamente com
eles excluindo-os definitivamente de comunhão.

250Números 15.24-31
245
2. Epístola de Tiago
Propósitos
A epístola cuja autoria vem sendo historicamente atribuída a Tiago,
aquele que Paulo chama de “o irmão do Senhor”, é um dos livros do
Novo Testamento mais impregnados da cultura hebraica. Nele
encontramos passagens no estilo de literatura sapiencial e outras no
estilo profético. Sua canonização foi trabalhosa e, na época da
Reforma Protestante, Marinho Lutero quis revertê-la sob a
argumentação de esta seria uma “epístola de palha” por causa de sua
ênfase nas obras como elementos comprobatórios da fé.
Para entendê-la melhor pretendemos: 1. Discutir sucintamente as
hipóteses sobre a autoria desta epístola. 2. Discutir a identidade de
seus destinatários. 3.Discutir as hipóteses sobre data e local mais
prováveis de sua composição. 4.Caracterizar o estilo literário desta
epístola.

Autoria
O autor se identifica como Tiago, servo de Deus e do Senhor Jesus
Cristo. Esta identificação lacônica tem levado os críticos a aceitar que
este Tiago era pessoa suficientemente conhecida da igreja primitiva
para dispensar maiores apresentações. O fato de Tiago ser a forma
helenizada de Jacó levou alguns críticos a formularem a hipótese de
pseudonímia para este livro. Para eles o autor seria um judeu
convertido ao Cristianismo que escreveu aos seus irmãos de raça
usando o nome do patriarca da nação como pseudônimo. Essa
hipótese, embora apoiada pela boa qualidade literária do Grego em
que esta epístola foi redigida, não vingou porque a pseudonímia não
é de ocorrência frequente em literatura epistolar. Assim sendo,
podemos admitir que o autor deste livro se chamava mesmo Tiago e
era pessoa de conhecimento público. Mas, quem seria esse Tiago?
A admissão do nome Tiago como sendo do verdadeiro autor da
epístola restringe o estudo da autoria a quatro pessoas que são assim
denominadas no Novo Testamento: 1 – Tiago apóstolo, filho de
Zebedeu, 2 – Tiago apóstolo, filho de Alfeu, 3 – Tiago apóstolo, o bispo
de Jerusalém que Paulo chama de irmão do Senhor e 4 – Tiago, pai
de Judas, o apóstolo.

246
O primeiro Tiago, filho de Zebedeu e irmão de João, foi martirizado
muito cedo na história do Cristianismo (ca. 44 d.C.) e provavelmente
não chegou a ter tempo suficiente para escrever este livro. Outros
dois (O pai de Judas e o filho de Alfeu) não recebem crédito de
nenhuma evidência externa. Resta-nos, dessa forma, como hipótese
mais provável, a autoria do Tiago, bispo de Jerusalém, a quem Paulo
chama de irmão do Senhor (provavelmente por ser parente próximo
de Jesus Cristo).
Pouco ou quase nada se conhece da vida deste homem durante o
ministério terreno de Jesus Cristo. Parece que ele e outros parentes
próximos do Mestre só aceitaram o Cristianismo depois da
ressurreição de Cristo. Tiago, particularmente, veio a adquirir grande
prestígio entre os primitivos cristãos da comunidade palestina a ponto
de se tornar o mais preeminente nome na igreja de Jerusalém – o
primeiro bispo – como atestam as narrativas contidas nos Atos dos
Apóstolos. Observe-se que na controvérsia sobre a circuncisão dos
gentios, Tiago funcionou como juiz desempatador e a sua palavra foi
aceita por todos sem discussão (At.15). Nesse episódio, ele aparece
citando ditos extraídos das sentenças do rei Salomão, o que prova
sua grande cultura e o habilita para ser o autor desta epístola.

Destinatários
Tiago designa seus leitores com as doze tribos que se encontram na
dispersão (1.1) e a reunião destes mesmos leitores pelo nome de
sinagoga (2.2). Estas designações levaram alguns críticos a
postularem que este livro teria sido uma antiga obra sapiencial
hebraica que foi oportunamente vertida para o Grego e adaptada ao
uso dos cristãos. Isso explicaria o fato de a pessoa de Jesus Cristo
ser citada apenas duas vezes em todo o livro.
Entretanto não parece que Tiago tivesse escrito a judeus não
convertidos uma vez que ele cita o nome de Jesus Cristo
explicitamente precedido de Senhor, adjetivo que um judeu não
convertido jamais usaria neste contexto. Para o judeu só Deus
poderia ser chamado de Senhor (kyrios). Isso nos leva a admitir que
ele estava interessado nos cristãos previamente residentes em
Jerusalém (os cristãos se consideravam o único e verdadeiro Israel
de Deus) e que foram dispersos em decorrência da perseguição
surgida depois da morte de Estêvão (v. At. 8.1).

247
Hoje, o estudo da organização das igrejas cristãs em comunidades
que mantinham fidelidade a um apóstolo, reforça a hipótese de que
existia uma Comunidade de Tiago, que praticava uma forma de
Cristianismo judaico – hebraísta e que seria a destinatária natural
desta epístola (Gl. 2.12).

Tempo e local de composição


Admitida a hipótese de autoria mencionada no parágrafo anterior, o
livro de Tiago teria sido o escrito mais antigo de todo o Novo
Testamento. A data mais recente para a sua composição é dada pela
morte do autor (ca. 62 e.c.) e o local mais provável é a própria cidade
de Jerusalém (a menos que se admita a pseudonímia). Hoje, face à
análise do conteúdo do livro que mostra um Cristianismo
doutrinariamente muito pobre (ebionita), aceita-se que sua data mais
provável de composição seja 48 e.c.

Estilo literário e propósito teológico


A epístola de Tiago é um livro peculiar no Novo Testamento. Tem-se
dito corretamente que ele se identifica melhor com a literatura
sapiencial do Velho Testamento do que com os demais livros do Novo.
Na realidade, esta epístola mais parece uma “colcha de retalhos”
formada pela reunião de diversos fragmentos. Evidência adicional
pode ser encontrada no fato de que o nome de Jesus Cristo só é
citado duas vezes em todo o livro e que seu estilo de composição,
baseado em máximas e proposições soltas (MASHAL) faz com que
ele se pareça com os livros de Provérbios e de Eclesiastes.
Por outro lado, não podemos ignorar que esse formato sapiencial
encerra um conteúdo fortemente profético – a marca registrada do
Cristianismo. A simples leitura dos versículos iniciais do capítulo 5 nos
revela a preocupação do autor em combater a injustiça social paralela
a que encontramos nos profetas Amós e Jeremias. Podemos assim
dizer que esta epístola possui uma alma profética revestida por um
corpo sapiencial.
O propósito teológico deste livro fica evidente quando verificamos a
existência de várias exortações para que os irmãos que foram
dispersos mantenham a sua esperança. Entretanto, o valor teológico
deste livro tem sido muito discutido, principalmente porque ele
enfatiza a importância das obras como confirmação da fé. Martinho

248
Lutero, altamente comprometido com sua proposição sola gratia,
chegou a denominá-la " epístola de palha" por causa de sua
referência ao valor das obras contestando, desta forma, a sua
canonicidade.

Esboço
O propósito de Deus na religião pura (1.1-27)
A tentação que edifica (1.1-12)
A tentação que destrói (1.13-26)
Deus, o principal bem do crente (1.17-18)
Exortação à santidade pessoal (1.19-27)
Os testes da religião pura (2.1 – 5.20)
A parcialidade egoísta (2.1-13)
A fé operante pelo amor (2.14-26)
Os perigos da língua (3.1-18)
O eu carnal e o eu espiritual (4.1-12)
A verdadeira confiança (4.13-17)
O teste das riquezas (5.1-6)
Paciência na opressão (5.7-11)
Restrição nos compromissos (5.12)
A oração que prevalece (5.13-20)

249
3. Primeira epístola de Pedro
Propósitos
Essa epístola foi direcionada a cristãos de etnias judaica e helênica
que habitavam na província da Ásia. Seu objetivo foi fortalecê-los no
momento em que eles enfrentavam perseguição por parte das
autoridades romanas. O autor procura enfatizar a necessidade de
resistir fielmente mesmo diante do grande sofrimento.
É discutida sua autoria e muitas outras questões são colocadas. Para
termos uma abordagem organizada se seu estudo pretendemos: 1.
Discutir as evidências internas e externas favoráveis à autoria petrina
desta epístola. 2. Discutir as objeções que têm sido levantadas contra
a autoria petrina deste livro. 3. Discutir a identificação dos possíveis
destinatários desta epístola. 4. Discutir as hipóteses sobre as datas e
locais mais prováveis de composição deste livro. 5. Discutir o
propósito teológico do autor.

Autoria
Autoria Petrina
O autor desta epístola se identifica como sendo Pedro, apóstolo de
Jesus Cristo, e, por esse motivo, a autoria petrina tem sido aceita sem
muitas contestações desde a mais remota antiguidade. Como prova
desta aceitação temos o fato de que a primeira epístola de Pedro
entrou no cânon do Novo Testamento sem sofrer nenhuma restrição.
Algumas evidências internas e externas vêm em apoio a esta hipótese
de autoria. No primeiro grupo podemos listar: 1 – O próprio
testemunho do autor quando se identifica como Pedro e quando
declara haver sido uma testemunha dos sofrimentos de Jesus Cristo.
2 – As concordâncias de estilo e vocabulário entre esta epístola e os
textos dos sermões que são atribuídos a Pedro no livro de Atos dos
Apóstolos. Dentre as evidências externas temos o testemunho de
Irineu (ca.180) que citou o texto deste livro identificando Pedro como
seu autor.
Vem surgindo, entretanto, algumas objeções contra a autoria petrina
desta carta. As principais são as seguintes:

250
A relativa pobreza da epístola em referências ao ministério e aos
ensinos de Jesus Cristo.
As qualidades da linguagem e do estilo que seriam incompatíveis com
a cultura de um pescador galileu.
A referência a uma perseguição que dificilmente se localizaria nos
dias de Pedro (I Pd.4.12-16).
O Paulinismo, isto é, os pontos de contato entre as doutrinas expostas
nesta epístola e as ensinadas por Paulo (compare I Pd.1.18 com I
Co.6.20 e I Pd.1.9 com Rm.3.25).
Com respeito ao primeiro argumento – a pobreza em referências aos
atos e ensinamentos de Jesus – podemos alegar que essas
referências não eram necessárias ao objetivo do autor que pretendia
consolar crentes que estavam sofrendo perseguições. Bastava-lhe
mostrar a morte e a vitória de Jesus na ressurreição.
Quanto à incompatibilidade da qualidade do texto desta epístola com
a cultura de um pescador do mar da Galileia, podemos argumentar
inicialmente que seria preconceito admitir que um pescador galileu
não poderia ser culto e conhecer bem a língua grega que era muito
difundida naquele tampo. Em segundo lugar, o autor declara ter sido
auxiliado por Silvano e este poderia ter se encarregado da forma final
do texto, o que era muito comum naqueles dias.
Quanto à perseguição podemos admitir que o autor faz referência ao
tempo de Nero (64-68) quando os Cristãos foram perseguidos logo
depois do incêndio de Roma.
Finalmente, no que diz respeito ao Paulinismo desta epístola, não
temos nenhuma razão para acreditar que muito embora Pedro e
Paulo fossem representantes típicos de diferentes comunidades,
Pedro da comunidade cristã judaico – palestina e Paulo da
comunidade cristã helenística, houvesse alguma incompatibilidade
entre os dois a ponto de torná-los adversários irreconciliáveis. O
simples fato de os dois serem apóstolos, e haverem negociado
pacificamente seus respectivos campos de atividades, prova que eles
tinham muita coisa em comum. Por outro lado, o fato de Silvano ser
citado como auxiliar de Pedro prova que houve um intercâmbio de
informação entre os dois obreiros.

251
Pseudonímia
Uma segunda hipótese a ser considerada é a de que esta carta teria
sido escrita por um discípulo de Pedro que usou o nome do mestre
para conseguir maior autoridade. Os argumentos contrários à autoria
petrina favorecem a pseudonímia.

Destinatários
Pedro identifica seus destinatários como sendo forasteiros da
dispersão no Ponto, Galácia, Capadócia, Ásia e Bitínia, eleitos
segundo a presciência de Deus Pai (1.1,2). Aceita-se, com base neste
dado, que ele se dirigiu a crentes da comunidade palestina que, após
a perseguição em Jerusalém, se dispersaram pela Ásia menor.

Data e local de composição


A fixação da data e do local de composição depende essencialmente
da escolha que façamos com respeito à autoria. Se esta epístola foi
mesmo escrita pelo apóstolo Pedro, teremos de admitir para ela uma
data de composição anterior à data provável de morte deste apóstolo
(68 d.C.)
A identificação do local é feita a partir de I Pd.5.13, onde o autor
declarou que escrevia da Babilônia. A localização desta Babilônia tem
permitido levantar, pelo menos três hipóteses das quais a mais aceita
é de que esta Babilônia seria um nome usado para fazer referência à
Roma dos Césares como ocorre também no Apocalipse de João.
Essa hipótese é apoiada pelo fato de que os cristãos, seguindo a
tradição apocalíptica vigente na época, costumavam usar o nome
Babilônia para identificar o governo opressor.

Objetivo teológico
Pedro escreveu a cristãos da Ásia que estavam sendo perseguidos e
declara o que seu objetivo era fortalecer a esperança deles na graça
de Deus (I Pd.5.12). Estes cristãos eram provavelmente gentios que,
pelo evangelho foram feitos “povo de Deus”. 251 Este é, portanto, um
livro de consolação para crentes perseguidos.

251Vós, porém, sois raça eleita, sacerdócio real, nação santa,


povo de propriedade exclusiva de Deus, a fim de proclamardes
252
Esboço
Saudação – 1.1,2
Doxologia – 1.3-12
Nossa relação com Deus – 1.13 – 2.10
Nossa relação com os homens – 2.11 – 3.12
Bênçãos por causa da justiça – 3.12 – 5.11
Saudação final – 5.13-14

as virtudes daquele que vos chamou das trevas para a sua


maravilhosa luz; vós, sim, que, antes, não éreis povo, mas,
agora, sois povo de Deus, que não tínheis alcançado
misericórdia, mas, agora, alcançastes misericórdia.(2.9-10)
253
4. Epístola de Judas e segunda
epístola de Pedro
Propósitos
A epístola de Judas e a segunda epístola de Pedro são livros que
compartilham seus objetivos teológicos e uma grande parte de seus
conteúdos. São obras apologéticas que se propõem a refutar o
trabalho de hereges infiltrados na igreja. Os argumentos utilizados
são os mesmos, em sua grande parte calcados no Velho Testamento.
Para entendê-las melhor precisamos: 1. Discutir as evidências
internas e externas para as autorias destas epístolas. 2. Discutir a
dependência literária existente entre os dois livros. 3. Discutir a
identificação dos possíveis destinatários destas epístolas. 4. Discutir
o tipo de problemática teológica cuja existência se pode inferir da
leitura destes livros.

Dependência Literária
Desde há muito tempo vem sendo reconhecida a dependência
literária entre estes dois livros. Indubitavelmente o compartilhamento
de material entre eles não pode ser ignorado mesmo em um exame
muito superficial. Nesta situação é inevitável levantar o problema da
precedência: Qual dos dois livros foi escrito primeiro? Os críticos
discordam na resposta a esta questão. Hale por exemplo admite a
precedência de II Pedro enquanto Carson e Kümmel advogam de
maneira enfática a precedência de Judas.
Esses autores também divergem no que respeita a autoria destes
livros. Hale aceita as evidências internas e aponta para Judas, irmão
de Jesus Cristo, e para Simão Pedro como os mais prováveis autores.
Kümmel prefere, por outro lado, aceita a hipótese de pseudonímia
para ambos os livros. Em suma, a dependência literária entre estes
dois livros pode ser sintetizada da seguinte forma:
O “retrato falado” dos falsos líderes que se apresenta nas duas
epístolas é praticamente idêntico.
As ilustrações retiradas do Antigo Testamento e de fatos da natureza
também são coincidentes.

254
Ocorre concordância de vocabulário e de sequências de palavras.
Ocorre concordância nas citações de apócrifos.
É muito provável que não cheguemos a uma conclusão no final desse
estudo, mas, de qualquer forma, o estudo precisa ser feito.

Autoria
O autor da Epístola de Judas se identifica como sendo Judas, irmão
de Tiago. Isto nos leva a presumir que este Judas e este Tiago eram
pessoas bem conhecidas dos leitores. Embora tanto Judas quanto
Tiago fossem dois nomes muito comuns entre judeus nos dois
primeiros séculos do Cristianismo por serem nomes de dois heróis
nacionais (Judas " O Macabeu " e Tiago, forma helenizada de Jacó)
a citação da relação familiar restringe bastante o nosso campo de
pesquisa e parece apontar para aquele Judas que é citado como
irmão de Jesus, com José, Simeão e Tiago (Mt.13.55).
Aceitando esta hipótese como verdadeira poderemos admitir que
Judas se converteu após a ressurreição de Jesus Cristo e que se
tornou, da mesma forma que Tiago, um líder da comunidade cristã da
Palestina. Se a rejeitamos, podemos ficar com Kümmel aderindo à
hipótese de pseudonímia uma vez que a tradição não nos aponta
nenhum outro Judas com suficiente gabarito para assumir a autoria.
Na segunda epístola de Pedro o autor se identifica como Simão
Pedro, servo e apóstolo de Jesus Cristo. Se aceitamos essa
declaração como verdadeira atribuímos a autoria dessa carta ao
mesmo autor de I Pedro. Essa hipótese é reforçada pelo fato de que
nesta epístola o autor faz referências a episódios do ministério terreno
de Jesus Cristo (transfiguração) mas é enfraquecida pelas
divergências de redação entre os dois livros. Caso contrário, seremos
forçados a optar pela hipótese de pseudonímia.

Objetivo teológico
O tipo de problemática encontrado nesses dois livros é semelhante
ao que já estudamos na epístola aos colossenses e nas joaninas. São
livros escritos para combater o trabalho de falsos profetas que
estavam difundindo heresias no seio das comunidades primitivas. É
fato que os conteúdos das diversas pregações hereges não

255
coincidiam, mas o problema é essencialmente o mesmo. Esse dado
fortalece a posição de Kümmel que data esses livros do século II.
O problema teológico abordado pelos dois livros é o mesmo: o retardo
na parusia com consequente proliferação de explicações alternativas.
Esse tipo de problemática favorece a datação desses livros para o
segundo século e, portanto, favorece também a hipótese de
pseudonímia. Em concordância com essa posição está a referência
da segunda epístola de Pedro (II Pd.3.16) na qual as epístolas de
Paulo são mencionadas com autoridade idêntica à do Antigo
Testamento, o que nos leva a admitir que na época em que esses
livros foram escritos já havia se iniciado o processo de canonização
do corpus paulino o que não podia ter ocorrido no Século I.
As declarações que são atribuídas a estes mestres nestas duas
epístolas permitem classificá-los como gnósticos, os quais só se
tornaram importantes no final do primeiro século. A grande prova da
falsidade de seus propósitos está na sua forma de vida. Eles mesmos
não seguiam as coisas que ensinavam, gostavam de honras, de
festas, de bebedices e de glutonarias.

Canonização
Essas epístolas não são citadas nos cânones de Marcion e de
Muratori que são os mais antigos conhecidos. O fato de os dois livros
fazerem citações literais de obras não canônicas (Enoque Etíope e
Ascensão de Moisés) foi o determinante do retardo para a sua
canonização, especialmente porque a referência a Enoque classifica
essa obra como uma profecia, isto é um livro cuja inspiração era
reconhecida naquele tempo

256
Bibliografia Recomendada
1. ALAND, K. & ALAND, B. O texto do Novo Testamento,
Tradução de Vilson Scholz, Barueri, SP, Sociedade Bíblica do
Brasil, SP, 2013.
1. BITTENCOURT, B. P. O Novo Testamento: metodologia da
pesquisa textual. 3ª ed. RJ: JUERP, 1993.
2. BOCK, D. L. Os Evangelhos Perdidos: A verdade por trás
dos textos que não entraram na Bíblia, Trad. Emirson
Justino, Rio de Janeiro, 2007. 275 p.
3. BROWN, R. E. Introdução ao Novo Testamento, São
Paulo, Paulinas, 2004. 1135 p.
4. BROWN, R. E. As igrejas dos apóstolos, São Paulo,
Paulinas, 1986.
5. BROWN, R. E. A comunidade do discípulo amado, São
Paulo, Paulinas, 1983, 209 pp.
6. BRUCE, F. F. Merece confiança o Novo Testamento? 2ª ed.
SP: Vida Nova, 1990.
7. BRUCE, F. F. Paulo, o apóstolo da graça – sua vida, cartas
e teologia, São Paulo, Shedd, 2003.
8. CARREZ, M., DORNIER, P., DUMAIS, M & TRIMAILLE, M.
As cartas de Paulo, Tiago, Pedro e Judas, São Paulo,
Paulinas, 1987.
9. CARSON, D.A., MOO, D. J. & MORRIS, L. Introdução ao
Novo Testamento, São Paulo, Vida Nova, 1992.
10. CROSSANT, J. D. & REED, J. L., Em busca de Jesus.
Debaixo das pedras, atrás dos textos. São Paulo,
Paulinas, 2007.
11. CROSSANT, J. D. & REED, J. L., Em busca de Paulo.
Como o apóstolo de Jesus opôs o Reino de Deus ao
Império Romano. São Paulo, Paulinas, 2007.
12. DANA, H. O mundo do Novo Testamento, Rio de Janeiro,
a
JUERP, 2 edição, 1977.
13. DODD, C. H. A interpretação do quarto evangelho, São
Paulo, Paulinas, 1977. 628 pp.
14. GUNDRY, Robert. H. Panorama do Novo Testamento.
Tradução de João Marques Bentes. 4ª ed. SP: Vida Nova,
1991.
15. HALE, B. D. Introdução ao Estudo do Novo Testamento.
3ª ed. RJ: JUERP, 1989.
16. HEYER, C.J. DEN, Paulo, um homem de dois mundos,
trad. Luiz Andrade Solano Rossi, São Paulo, Paulus, 2009.
17. HORSLEY, R. A, Paulo e o Império, religião e poder na
sociedade imperial romana, São Paulo, Paulus, 2004.
18. JEREMIAS. J. Jerusalém no Tempo de Jesus—
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19. KUMMEL, W. G. Introdução ao Novo Testamento. São
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20. KRUM-HELLER, A., A Igreja Gnóstica – Tradição
Huiracocha, Tradução de Ziéde C. Moura, São Paulo,
Madras, 2007. 158 p.
21. KÄSEMAN, E., Perspectivas Paulinas, São Paulo,
Teológica - Paulus, 2ª edição, 2003.
22. LADD, G. E. Commentary on the Revelation of John,
Grand Rapids, Eerdmans, 1a ed.1972. 308 pp.
23. LELOUP, JEAN-YVES, O Evangelho de Tomé, Petrópolis,
Vozes, 1997.
24. Mc DOWELL, E. A. A soberania de Deus na história—A
mensagem e o significado do Apocalipse, Rio de Janeiro,
JUERP, 1a ed., 1976. 178 pp.
25. MOULE, C. F. D. As origens do Novo Testamento. São
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26. NAHMAD, C. & BAILEY, M., Ensinamentos ocultos de
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27. PACKER, J. I.; TENNEY, M.C. & WHITE Jr., W. O mundo
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28. PAGELS, E. Os Evangelhos Gnósticos, Tradução de
Marisa Marta, Rio de Janeiro, objetiva, 2006. 246 p.
29. PAROSCHI, W. Origem e transmissão do texto do Novo
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30. PATTE, DANIEL, Paulo, sua fé e a força do evangelho,
São Paulo, Paulinas, 1987.
31. PLATÃO, A República, Tradução Enrico Corvisieri, São
Paulo, Best Seller, 2002.
32. REICKE, B. I., História do Tempo do Novo Testamento,
São Paulo, Paulinas, 1996.
33. ROWLEY, H. H. A importância da literatura apocalíptica,
São Paulo, Paulinas, 1980. 216 pp.
34. SALDARINI, A. J. A comunidade judaico-cristã de
Mateus, São Paulo, Paulinas, 2000. 360 p.
35. TENNEY, Merrill C. O Novo Testamento: sua origem e
análise. 2ª ed. SP: Vida Nova, 1989.
36. SAÔUT, Y. Atos dos Apóstolos—ação libertadora, São
Paulo, Paulinas, 1991.
37. SANDERS, E. P., Paulo, a Lei e o Povo Judeu, São Paulo,
Paulinas, 1990.
38. SCHREINER, J. & DAUTZENBERG, G. Formas e
estruturas do Novo Testamento, São Paulo, Paulinas,
1977.
39. SCHWEITZER, A. O misticismo de Paulo, o apóstolo,
São Paulo, Fonte, 2006.
40. SHEDD, R. P. A Escatologia do Novo Testamento, São
Paulo, Nova Vida, 1991.
41. SUMMERS, R. A mensagem do Apocalipse—Digno é o
Cordeiro, Rio de Janeiro, JUERP, 2a ed., 1972. 199 pp.
42. TENNEY, M. C. O Novo Testamento, sua origem e
a
análise, São Paulo, Vida Nova, 2 edição, 1989.
43. VÁRIOS. Uma leitura do Apocalipse, São Paulo, Paulinas,
1983
SUMARIO

................................................................................................... 2
1. A Crítica Bíblica do Novo Testamento.................................. 3
Propósitos .............................................................................. 3
Uma introdução ao Novo Testamento ................................... 3
Quem escreveu? .................................................................... 5
Crítica Bíblica, nossa caixa de ferramentas .......................... 5
2. A crítica textual do Novo Testamento ................................. 8
Propósitos .............................................................................. 8
O objetivo e a necessidade do trabalho ................................. 8
A metodologia de trabalho .................................................... 9
Os resultados do trabalho .................................................... 12
3. A Crítica Literária do Novo Testamento ............................. 14
Propósitos ............................................................................ 14
A crítica das fontes .............................................................. 14
A crítica da forma ................................................................ 16
A crítica da redação ............................................................. 18
4. O mundo do Novo Testamento ........................................... 20
Propósitos ............................................................................ 20
Geografia Política do Império Romano .............................. 20
Panorama histórico do Império ........................................... 21
Classes sociais e distribuição de riquezas ........................... 24
A Palestina sob o Governo Romano ................................... 24
Principais cidades da Palestina. .......................................... 25
Principais governantes da Palestina .................................... 26
5. Cânon e texto do Novo Testamento .................................... 28
Propósitos ............................................................................ 28
Por que surgiu o Novo Testamento? ................................... 28
Critérios de canonicidade .................................................... 30
Pequena história do cânon................................................... 31
Nossas Bíblias ..................................................................... 33
Pequena história do texto .................................................... 34
Divergências entre textos .................................................... 36
Unidade II – Livros Históricos do Novo Testamento ............. 38
1. Os evangelhos sinóticos ...................................................... 40
Propósitos ............................................................................ 40
Que é um evangelho? .......................................................... 40
Quantos evangelhos foram escritos? ................................... 41
Por que quatro evangelhos no Novo Testamento? .............. 44
A árvore genealógica dos evangelhos ................................. 45
Conclusão ............................................................................ 45
2. O Evangelho segundo Marcos ............................................ 47
Propósitos ............................................................................ 47
Introdução ........................................................................... 47
O problema da autoria ......................................................... 47
Data, local de composição e primeiros leitores................... 48
Objetivo e mensagem central .............................................. 49
A estrutura do livro ............................................................. 50
Aspecto em destaque – O término longo do evangelho ...... 51
3. O evangelho segundo Mateus ............................................. 52
Propósitos ............................................................................ 52
Introdução ........................................................................... 52
O problema da autoria ......................................................... 52
Data, local de escrita e primeiros leitores. .......................... 53
Objetivo e mensagem central .............................................. 54
Conteúdo e plano ................................................................ 56
Destaques e peculiaridades ................................................. 57
4. A obra lucana, parte I – O evangelho .................................. 59
Propósitos ............................................................................ 59
Autoria – evidências externas ............................................. 59
Autoria – evidências internas .............................................. 59
Fontes e metodologia de trabalho do autor ......................... 61
Data e local de composição e primeiros leitores ................. 62
Objetivo e mensagem central .............................................. 63
Divisões ............................................................................... 63
5. A obra lucana, parte II – Atos dos Apóstolos ...................... 65
Propósitos ............................................................................ 65
Fontes e metodologia de trabalho do autor ......................... 65
Data e local de composição ................................................. 66
Propósito do autor e plano da obra...................................... 66
Estudo do conteúdo ............................................................. 68
Grandes temas do livro de Atos dos apóstolos .................... 70
Unidade III – Literatura Paulina ............................................. 72
1. Paulo e o Cristianismo do primeiro século ......................... 73
Propósitos ............................................................................ 73
Paulo, o cidadão romano. .................................................... 73
O Cristianismo do primeiro século ..................................... 75
As comunidades .................................................................. 76
2. O início de um Novo Testamento........................................ 80
Propósitos ............................................................................ 80
As motivações para a escrita das epístolas.......................... 80
As condições para o surgimento das epístolas .................... 82
A estrutura das epístolas ...................................................... 84
Que problemas as epístolas procuravam resolver? ............. 84
As epístolas de Paulo (O corpus paulino). .......................... 87
As epístolas Gerais. ............................................................. 89
A visão da Crítica Bíblica Moderna .................................... 89
3. As primeiras epístolas de Paulo .......................................... 92
Propósitos ............................................................................ 92
A cidade de Tessalônica e sua comunidade cristã. .............. 92
Onde, quando e por que foram escritas estas epístolas. ...... 93
Tema .................................................................................... 93
Conteúdo das epístolas ........................................................ 95
Os grandes temas das primeiras epístolas ........................... 96
............................................................................................... 103
4. A primeira epístola de Paulo aos Coríntios ....................... 104
Propósitos .......................................................................... 104
A cidade de Corinto........................................................... 104
A comunidade cristã de Corinto ........................................ 105
A epístola........................................................................... 105
Os grandes temas da epístola ............................................ 106
................................................................................................111
5. A segunda epístola de Paulo aos Coríntios........................ 112
Propósitos .......................................................................... 112
Autoria, integridade, data e local de composição. ............ 112
Conteúdo da epístola ......................................................... 113
Os grandes temas da epístola ............................................ 113
Quem eram os inimigos de Paulo? .................................... 114
A defesa final de Paulo, seu “curriculum vitae” ............... 117
A oferta para os pobres da Judeia (II Co.9.1-5). ............... 117
............................................................................................... 119
6. A epístola de Paulo aos Gálatas......................................... 120
Propósitos .......................................................................... 120
A região chamada Galácia................................................. 120
Motivação – resposta aos judaizantes ............................... 121
Autoria, tempo e local de composição .............................. 122
Esboço da Epístola ............................................................ 122
Análise do conteúdo .......................................................... 123
A fonte do conhecimento de Paulo ................................... 123
Gálatas e Tiago .................................................................. 124
Liberdade e vida no Espírito ............................................. 124
Paulo e a escravidão .......................................................... 124
7. A epístola de Paulo aos Romanos ..................................... 126
Propósitos .......................................................................... 126
A Cidade de Roma ............................................................ 126
A comunidade cristã de Roma .......................................... 127
Autoria, tempo e local de composição .............................. 127
Propósito da Epístola ........................................................ 128
Tema .................................................................................. 128
Divisões ............................................................................. 129
Destaque – a cultura secular de Paulo ............................... 131
8. A epístola de Paulo aos Efésios ......................................... 133
Propósitos .......................................................................... 133
A autenticidade da autoria desta epístola .......................... 133
Tempo, local e objetivo teológico. .................................... 135
Divisões ............................................................................. 135
Os grandes temas de Efésios ............................................. 136
9. A epístola de Paulo aos Filipenses .................................... 139
Propósitos .......................................................................... 139
A cidade de Filipos e sua comunidade cristã .................... 139
Tempo, e local de composição e objetivo teológico ......... 140
Tema .................................................................................. 141
Divisões ............................................................................. 141
A Cristologia de Filipenses ............................................... 141
O cuidado contra a falsa circuncisão................................. 142
10. Epístolas aos Colossenses e a Filemon ........................... 143
Propósitos .......................................................................... 143
A cidade de Colossos e os destinatários desta epístola. .... 143
Objetivo teológico – a heresia colossense......................... 144
Tema .................................................................................. 145
Divisões ............................................................................. 145
A cristologia cósmica ........................................................ 145
A epístola a Filemon ......................................................... 146
11. As epístolas pastorais ...................................................... 147
Propósitos .......................................................................... 147
Que são as epístolas pastorais? ......................................... 147
Tempo e local de Composição .......................................... 148
A autoria paulina ............................................................... 148
Os falsos doutores ............................................................. 148
Conteúdo das epístolas ...................................................... 149
1. A comunidade joanina e sua literatura .............................. 152
Propósitos .......................................................................... 152
Que é uma comunidade? ................................................... 152
História da comunidade joanina ........................................ 156
2. O quarto evangelho ........................................................... 162
Propósitos .......................................................................... 162
O problema da autoria ....................................................... 162
Data e local de composição ............................................... 164
Objetivo teológico e mensagem central ............................ 164
Parte 1: O livro dos sinais – O testemunho de Deus ......... 165
Os testemunhos dos homens ............................................. 168
Parte 2: O livro da Paixão ................................................. 169
Texto em discussão: O livramento da mulher pecadora (João
7.53 – 8.11) ....................................................................... 169
Esboço do livro ................................................................. 169
3. Gnosticismo ...................................................................... 172
Propósitos .......................................................................... 172
O que é Gnosticismo? ....................................................... 172
Quando o Gnosticismo foi importante? ............................ 174
Quais foram as principais escolas gnósticas? ................... 174
Quais foram as principais obras do Gnosticismo? ............ 175
Quais foram as suas principais doutrinas? ........................ 178
Teologia ............................................................................. 178
Cosmogonia e antropologia .............................................. 178
Escatologia e soteriologia ................................................. 180
Cristologia – o docetismo ................................................. 181
Hamartologia – a origem do mal, o pecado e o perdão..... 182
Ressurreição – negavam a ressurreição. ........................... 183
Paracletologia – o espírito democratizado ........................ 183
Ritos e práticas gnósticas .................................................. 183
Os pais anti–gnósticos....................................................... 185
Conclusão .......................................................................... 187
4. As epístolas joaninas ......................................................... 189
Propósitos .......................................................................... 189
O Problema Joanino .......................................................... 189
O problema da autoria ....................................................... 190
A dissidência joanina e sua heresia ................................... 191
A resposta do autor das epístolas ...................................... 192
A refutação dos ensinos gnósticos .................................... 193
A escatologia das epístolas ................................................ 194
Texto em discussão – o Coma Joanino ............................. 194
Unidade VI – Literatura Apocalíptica ................................... 196
1. Literatura apocalíptica do Novo Testamento .................... 197
Propósitos .......................................................................... 197
Apocalíptica, uma revisão ................................................. 197
A literatura apocalíptica do Novo Testamento .................. 199
2. O Apocalipse de João ........................................................ 203
Propósitos .......................................................................... 203
Autoria .............................................................................. 203
Tempo de composição ....................................................... 205
Destinatários...................................................................... 206
Objetivo Teológico ............................................................ 206
Estrutura do Livro ............................................................. 207
Parte epistolar profética (capítulos 1-3) ............................ 207
Parte apocalíptica (capítulos 4 – 21) ................................. 209
Primeira narrativa (capítulos 4-11) ................................... 210
Segunda narrativa (capítulos 12-22) ................................. 212
Conclusão .......................................................................... 215
3. Desenvolvimento histórico da escatologia cristã .............. 217
Propósitos .......................................................................... 217
Introdução ......................................................................... 217
As escatologias do período apostólico .............................. 217
A escatologia do período pós-apostólico .......................... 218
A escatologia agostiniana .................................................. 220
A escatologia da Reforma Protestante .............................. 220
A escatologia futurista ou pré-milenista............................ 221
O método da formação histórica ....................................... 222
A escatologia pós – milenista ............................................ 223
Posição dos batistas brasileiros ......................................... 223
4. Um ensaio de interpretação do apocalipse ........................ 225
Os números inteiros .......................................................... 225
Os números fracionários ................................................... 234
As cidades ......................................................................... 236
Animais terríveis, símbolos de poder ................................ 237
Unidade VI – Epístolas Gerais .............................................. 239
1. Epístola aos Hebreus ......................................................... 240
Propósitos .......................................................................... 240
Autoria .............................................................................. 240
Destinatários...................................................................... 242
Data ................................................................................... 242
Propósito – uma advertência contra a apostasia................ 243
Esboço (segundo a Bíblia vida nova) ................................ 243
Destaque – a questão sobre a perda da salvação ............... 244
2. Epístola de Tiago ............................................................... 246
Propósitos .......................................................................... 246
Autoria .............................................................................. 246
Destinatários...................................................................... 247
Tempo e local de composição ........................................... 248
Estilo literário e propósito teológico ................................. 248
Esboço ............................................................................... 249
3. Primeira epístola de Pedro ................................................ 250
Propósitos .......................................................................... 250
Autoria .............................................................................. 250
Destinatários...................................................................... 252
Data e local de composição ............................................... 252
Objetivo teológico ............................................................. 252
Esboço ............................................................................... 253
4. Epístola de Judas e segunda epístola de Pedro ................. 254
Propósitos .......................................................................... 254
Dependência Literária ....................................................... 254
Autoria .............................................................................. 255
Objetivo teológico ............................................................. 255
Canonização ...................................................................... 256

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